louise bourgeois - a tecelã de memórias
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Este artigo reflete sobre a produção artística desenvolvida pela artista Louise Bourgeois relacionadas ao tema das representações escultóricas de aranhas, e a relação destas esculturas com as memórias da infância e da mãe da artista.Publicação:TINOCO, Letícia Rodrigues. Louise Bourgeois: a tecelã de memórias. In: HATA, Luli; AULICINO, Marcos Rodrigues; SILVA, Vanessa Tavares. Corpo Arte: reflexão e poética. 1 ed. Londrina: Midiograf, 2013. P. 98-103.TRANSCRIPT
Louise Bourgeois: a tecelã de memórias
Letícia Rodrigues Tinoco
UEL (PR)
Resumo:
Este artigo reflete sobre a produção artística desenvolvida pela artista Louise Bourgeois relacionadas ao tema das representações escultóricas de aranhas, e a relação destas esculturas com as memórias da infância e da mãe da artista.
Palavras-chave: spiders(aranhas); mamam(mamã); retrato simbólico.
Introdução
A artista franco-americana Louise Bourgeois construiu um universo artístico
que permeia entre as suas memórias, todas as suas obras narram de uma forma não
linear as suas lembranças e sentimentos. Um de seus temas recorrentes são as esculturas
representando aranhas; As spiders são feitas em diversos tamanhos e formatos que
chegam a alcançar uma escala monumental, estas que ocupam inúmeros espaços
públicos do mundo, e que a artista as nomeou de maman (figura 1), uma homenagem a
sua mãe.
Louise Bourgeois: a tecelã de memórias
Aranha, fio, teia – se tentássemos fazer uma analogia desse aracnídeo com a
espécie humana, poderiámos pensar em mulher, linha, tecelagem. Para compreender o
eterno retorno da temática da aranha nas obras de Louise Bourgeois, é necessário
edentrar em alguns fatores que marcaram sua infância. Bourgeois teve uma ligação de
longa data com as tapeçarias. Ela cresceu na cidade francesa de Albusson, uma cidade
que, segundo a artista, era muito pobre e deixava de opção para trabalho aos homens o
corte de pedra nas pedreiras, e a tecelagem para as mulheres (BOURGEOIS, 2000, p.
89). Os pais de Bourgeois trabalhavam como restauradores de tapeçaria, sua mãe, de
saúde frágil, iniciou-a nas questões do desenho, da cor e dos estilos históricos das
tapeçarias antigas. A própria casa onde moravam era ampla, localizada na beira do rio
Beèvre cujas propriedades químicas influenciavam na tintura das lãs. No segundo andar
funcionava a oficina de tapeçaria onde cerca de 25 mulheres trabalhavam. O ato de
tecer, que sustentava a família, marcou a infância de Louise, havendo uma analogia da
aranha que tece sua teia e a mãe, tecelã.
Uma das memórias de infância da artista refere-se ao uso das tapeçarias
como uma espécie de “tenda”, onde as crianças pudessem se esconder. Assim, a
tapeçaria passa a ser tridimensional, possuindo determinadas alturas, pesos e tamanhos,
onde é possível que se envolva nelas, nas falas da artista: “minha ligação pessoal com a
tapeçaria se deve a esse motivo, bastante escultural em termos de tridimensionalidade”
(BOURGEOIS, 2000, p. 89).
Outra lembrança relacionada à infância, que interferiu na escala monumental
das esculturas maman, era a da mãe da artista, que a encorajava a andar ainda
cambaleante, por entre os móveis da sala, que eram bem maiores e mais altos que ela.
Bourgeois dizia “querer ser capaz de circular debaixo da escultura – assim como fazia
com as muitas “cabanas” das brincadeiras infantis (“esculturas têxteis”)” (WILLIAMS
in LARRATT-SMITH, 2011, p.41).
Mamam apresenta uma monumentalidade e um aspecto de força e
rigidez, vinda do material usado pela artista. Apesar desse aspecto de força, algumas
dessas esculturas carregam um símbolo frágil em seu abdomem: os ovos, que são
esculpidos em mármore, material que por si só é mais delicado que o aço ou o bronze, e
trazem consigo a questão da maternidade. A imensa Maman, também “invoca medo e
apreensão, mas está aberta, contida na beleza. São muitas pernas-escadas (linhas de
energia) e muitos espaços entre elas, levando para fora do claustro na direção do céu
mais além” (WILLIAMS in LARRATT-SMITH, 2011, p.41)...
Figura 1 - Louise Bourgeois, Maman (mamã) 1999 (fundida em 2001) Bronze, stainless steel and marble
895 x 980 x 1160 cmGuggenheim Bilbao Museu
É interessante observar, que as aranhas rígidas e imensas, nos transmitem
mais a sensação de sermos uma presa, um animal prestes a ser devorado por um inseto
superior a nós em termos de tamanho e material, do que a de um ser delicado, sutil e
calmante como Bourgeois descreve as características das aranhas que coincidem com as
qualidades de sua mãe. Estas qualidades foram citadas em 1995, quando Louise
Bourgeois concebeu uma série de nove águas-fortes denominadas Ode a minha mãe,
juntamente com um texto amplo, onde a artista fala sobre suas memórias, composto em
forma de uma narrativa não-linear. A descrição da personalidade da mãe relacionada à
aranha aparece no início do texto, no trecho abaixo:
A amiga (a aranha – por que a aranha?) porque minha melhor amiga era minha mãe e ela era decidida, inteligente, paciente, tranquilizadora, racional, encantadora, sutil, indispensável, arrumada e útil como uma aranha. Ela também sabia se defender, e a mim, recusando-se a responder perguntas pessoais ‘idiotas’, inquisitivas e embaraçosas. Jamais me cansarei de representá-la (BOURGEOIS, 2000, p. 326).
A figura da aranha, representa então uma ambiguidade entre qualidades
consideradas boas e a representação de um animal que pode ser agressivo. Nas palavras
da artista, “ “a aranha fêmea’ tem má reputação – é uma mordedora, uma matadora. Eu
a reabilito. Se tenho de reabilitá-la é porque me sinto criticada”(BOURGEOIS, 2000,
p.217). As aranhas remetem ao tema do canibalismo, tão presente na obra A Destruição
do pai. Segundo Paulo Herkenhoff, “Louise Bourgeois apresenta diversas possibilidades
de explorar o tema do canibalismo. As aranhas são, elas próprias, animais canibais,
porque depois da cópula as fêmeas devoram os machos” (HERKENHOFF, 1997)...
Bourgeois compara a artista a uma aranha: “a artista é uma aranha fêmea que tece teias
astutamente, às vezes rudimentares, às vezes elegantes, a fim de enlaçar o espectador
macho e devorá-lo como um inseto morto” (KUSPT in LARRATT-SMITH, 2011,
p.126).
A agressão, a violência e o canibalismo são vistos em várias obras de
Bourgeois. As séries de aranhas, podem ser consideradas além da representação
simbólica da mãe, como um auto- retrato da artista, devido a dificuldade que sentia em
lidar com os filhos por causa da sua agressividade. Sobre um desenho íntimo sem título
de 1943 (figura 2), Bourgeois é questionada sobre a imagem de uma criança que parece
sair da boca de uma mulher, ela diz que o adulto é ela mesma num ato canibal contra
seus filhos, quando estes a exasperam com suas exigências de crianças e ela não sabia o
que fazer com eles (BOURGEOIS, 2000, p. 268). Nas palavras da artista: “é verdade
que tento comer meus filhos quando eles me irritam, mas não quero mostrar isso em
público. Quero esconder esse meu lado agressivo e canibalesco” (BOURGEOIS, 2000,
p. 296).
figura 2 - Louise Bourgeois, Sem Título, 1943Tinta e lápis sobre papel pardo, 21,5X27,9 cm.
Mamam é descrita como figuras angustiantes por Cristina Álvares, que faz
uma analogia das patas das aranhas com as agulhas, que eram o instrumento de trabalho
da mãe de Bourgeois. “Minha mãe ficava sentada ao sol e consertava uma tapeçaria ou
bordava. Realmente adorava isso” (BOURGEOIS, 2000, p. 226). A aranha pode
construir um casulo e ferir para se proteger, da mesma forma que uma agulha pode tecer
uma roupa que oferece proteção, mas também pode ferir os dedos de quem a manipula.
Para Cristina:
As imensas aranhas de Louise Bourgeois são figuras de angústia, cuja manifestação mais segura é a secreção do suor frio que cobre as costas. E se as suas patas finas e aguçadas como alfinetes, emanando de um núcleo duro e compacto, são uma ameaça de agressão, elas são também agulhas prontas a fiar uma trama que repare e proteja da agressão ou da angústia. "L' aiguille sert à réparer les dommages. C'est une demande de pardon. Ce n'est pas agressif comme l'épingle" (citado in Bernadac, 1995:147). Louise Bourgeois associa a aranha à defesa, à proteção, à mãe (ÁLVARES, 1998, apud BATISTELA, 2003).
Não é apenas a figura da aranha que Louise Bourgeois usou para retratar
simbolicamente a mãe, ela também foi representada como uma tesoura em um desenho
sem título de 1986 (Figura 3). Novamente, representa-se o tema da maternidade, da
agressão, e a ligação com um objeto usado pra cortar: a linha, a lã, a teia... A tesoura
maior representa a mãe, e a menor entre as pernas da tesoura representa ela mesma.
Dessa vez, a mãe é vista de modo diferente das qualidades citadas em comparação às
aranhas: “o fato de ela ser um instrumento cortante e monstruoso não me importava. Eu
gostava dela como ela era: perigosíssima” (MEYER-THOSS apud BRONFEN in
LARRATT-SMITH, 2011, p.118).
Figura 3 - Louise Bourgeois, Sem Título, 1986.
Bourgeois admirava as características da mãe, e em alguns escritos, é notável
um certo tom de competição para com esta, competição que cabia apenas do inconciente
de Bourgeois, uma vez que a mãe morrera quando esta tinha apenas vinte e um anos de
idade. A artista não se sentia tão competente como a mãe, e essa ideia a pertubava. Em
uma descrição da obra She Fox, onde a mãe é retratada na forma de uma grande raposa
com seios e cabeça decepada. Sobre a obra, Bourgeois diz:
O nome “raposa” significa que considero minha mãe uma pessoa uito inteligente, paciente, obstinada, talvez calculista. Para mim ela era uma raposa, porque como eu não me equiparava aquele tipo de competência e aquele antagonismo, esse aspecto ameaçador me exasperava e me impelia à violância (BOURGEOIS, 2000 p. 140).
A insistência pela temática da aranha sugere um luto eterno pela mãe que partiu
muito cedo, como se a artista esperasse o seu retorno, assim como na mitologia,
Penélope esperava pela volta de Ulisses com a esperança de que não estivesse morto e
voltasse para casa. Para esquivar-se de seus pretendentes, tecia durante o dia, e destecia
durante a noite. (KUSPIT in LARRATT-SMITH, 2011, p.136). Para Bourgeois, as
spiders mantinham viva a lembrança da mãe, após a morte desta, Louise manteve a sua
memória ainda mais presente, e sentia a necessidade de tentar agrada-la ou ser boa mãe,
como ela fora.
Se levarmos em consideração a mitologia, é memorável o mito de Minerva e
Aracne. Aracne tornou-se famosa por seus bordados e tecelagens, vangloriava-se tanto
de sua arte, que ousou desafiar Minerva (Atenas), afirmando que as suas cenas em
tapeçarias eram mais bonitas e reais. Aracne tecia e bordava com tanta perfeição, que
deixou Minerva irritada com a sua superioridade, tamanha foi a fronta, que a deusa
reconheceu suas habilidades, entretanto, transformou-a em uma aranha, condenada a
tecer por toda a eternidade (CAMPELLO, 2008, p. 47).
Da mesma forma que ocorria uma competição entre Minerva e Aracne, a figura
da aranha representa também o sentimento de competição de Bourgeois com sua mãe,
no intuito de ser melhor tecelã que ela (ou de ser uma pessoa inteligente, paciente,
obstinada como a mãe), ao mesmo tempo em que reconhece a sua competência e
engrandesse e a imortaliza em uma escultura de bronze denominada Maman.
Referências
BATISTELA, Kellyn. O Erotismo em Marcel Duchamp e Louise Bourgeois. Disponível em: < http://www.ceart.udesc.br/Pos-Graduacao/revistas/2003/2003/kellyn/kellyn.htm>. Acesso em: 03 jun. 2011.
BOURGEOIS, Louise. Destruição do pai / reconstrução do pai: Escritos e entrevistas 1923-97. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
FRAYZE-PEREIRA, João A. Segredos de família em exposição: psicanálise e
linguagens da arte contemporânea. Revista ide, São Paulo, Vol.30 (44), 2007, p. 96-102.
HERKENHOFF, Paulo. Introdução geral. XXIV Bienal Internacional de São Paulo.
Disponível em: http://entretenimento.uol.com.br/27bienal/anteriores/1998/especiais/
ult3926u1.jhtm >. Acesso em: 13 jun. 2011
LARRATT – SMITH, Philip (org.). Louise Bourgeois: O retorno do desejo proibido. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2011.