louça da china no brasil antigo (gilberto freyre)

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LOUÇA DA CHINA NO BRASIL ANTIGO Interessante, na verdade, o trabalho da sra. Jenny Dreyfus sobre "A louça da nobreza brasileira": trabalho que acabo de ter o gosto de ler em MS graças ao meu antigo colega na Camara Federal, o ex-deputado pelo Maranhão, sr. Elizabetho de Carvalho. É a louça nobre - brasonada ou não - um dos aspectos mais curiosos do contacto do Brasil patriarcal com o Oriente. A'fartura em nosso país nos dias, coloniais e mesmo durante os primeiros anos da época imperial, de boa e fina porcelana do Oriente, já me tenho referido em mais de um ensaio. Até arroz doce vendia-se nas ruas em imensos pratos fundos ou em vastas travessas de fabrico oriental. Não é de admirar que quase todo brasileiro ou português dos primeiros dias do Império, enobrecido com o titulo de barão ou o de visconde, tenha procurado ostentar patriarcalmente, do mesmo modo que outros senhores - os tão contentes de sua condição de senhores de engenho que não fizeram questão de titulos de visconde ou de barão - pratos de mesa comprados no Oriente. Vindos de Macau, como então se dizia. Só depois viria a moda da louça européia. Européia e brasonada. Para maior regalo de novos-nobres que eram tambem novos-ricos. Rara a louça oriental de familia nobre do Brasil brasonada. Informa-nos a sra. Jenny Dreyfus que "muitos

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LOUA DA CHINA NO BRASIL ANTIGO

LOUA DA CHINA NO BRASIL ANTIGOInteressante, na verdade, o trabalho da sra. Jenny Dreyfus sobre "A loua da nobreza brasileira": trabalho que acabo de ter o gosto de ler em MS graas ao meu antigo colega na Camara Federal, o ex-deputado pelo Maranho, sr. Elizabetho de Carvalho.

a loua nobre - brasonada ou no - um dos aspectos mais curiosos do contacto do Brasil patriarcal com o Oriente. A'fartura em nosso pas nos dias, coloniais e mesmo durante os primeiros anos da poca imperial, de boa e fina porcelana do Oriente, j me tenho referido em mais de um ensaio. At arroz doce vendia-se nas ruas em imensos pratos fundos ou em vastas travessas de fabrico oriental.

No de admirar que quase todo brasileiro ou portugus dos primeiros dias do Imprio, enobrecido com o titulo de baro ou o de visconde, tenha procurado ostentar patriarcalmente, do mesmo modo que outros senhores - os to contentes de sua condio de senhores de engenho que no fizeram questo de titulos de visconde ou de baro - pratos de mesa comprados no Oriente. Vindos de Macau, como ento se dizia. S depois viria a moda da loua europia. Europia e brasonada. Para maior regalo de novos-nobres que eram tambem novos-ricos.

Rara a loua oriental de familia nobre do Brasil brasonada. Informa-nos a sra. Jenny Dreyfus que "muitos titulares no tiveram carta de baro. Esta , talvez, a razo de to poucos brases em loua oriental".

Escaparam assim muitos dos novos fidalgos do Brasil daquele desgosto que atingiu alguns dos velhos, da Europa, nos dias em que foi moda entre eles loua oriental brasonada: o desgosto de verem seus emblemas ou seus brases d'armas, deformados pelos pintores chineses. Pintores que nem mesmo para agradarem a freguesia branca esqueciam-se de que eram chineses.

Essa fidelidade dos pintores chineses com velha China diga-se de passagem que pode ser vista, noutras reliquias brasileiras: em leques antigos. Porque foi tambem moda entre ns mandarem os poderosos fazer no Oriente leques finissimos, comemorativos de grandes acontecimentos. Num desses leques preciosos, guardado no Museu Imperial de Petrpolis, v-se um grupo que deveria ser de portuguses e brasileiros ilustres com fisionomias quase-europias, com traos inteiramente orientais de rosto ou corpo.

Alis, o assunto - leques do Oriente no Brasil - est a pedir que alguem com a mesma paciencia e a mesma competencia da sra. Jenny Dreyfus se dedique ao seu estudo. Porque o trabalho da sra. Dreyfus sobre loua no de interesse s para snobs retardatrios ou arcicos: interessa tambem ao estudo da influncia do Oriente do Brasil patriarcal.

Coincide com o que digo em captulo sobre esse assunto, no ensaio Sobrados e Mucambos, o que diz a autora na introduo ao seu pachorrento trabalho: que grande foi a quantidade de porcelana chinesa recebida pelo Brasil durante o sculo XVIII e a primeira metade do XIX. Esse desembarque, acentua tambem a sra. Dreyfus no seu estudo que "no era facil, pois as leis e tratados eram severos procurando impedir o descarregamento. Este, no entanto, era feito clandestinamente e para sua execuo simulavam arribadas foradas". Exatamente o que saliento em captulo, "O Oriente e o Ocidente", daquele meu ensaio, para mostrar que nem sempre se pode fazer historia sobre a base de informaes ou documentos de arquivos.

Pois segundo os documentos oficiais, foi pouco, relativamente, o que nos chegou do Oriente, dadas as proibies de comercio direto entre paises orientais e o Brasil colonial; e poucas as nus que aqui tinham licena de descarregar naqueles dias. Outras fontes mostram o contrario: que o comercio do Oriente com o Brasil colonial foi imenso, embora clandestino. Inclusive o comercio de loua.

Repara a sra. Dreyfus que o prestigio da loua da China foi empalidecendo no Brasil, proporo que foi se aperfeioando o fabrico de loua europia. Que esse aperfeioamento se acentuou com a descoberta do caolim semelhante ao da China, isto em Meissen (Saxe), ao alvorecer do sculo XVIII". Fase de que nos resta tanta loua brasonada bonita; inclusive a de bares baianos que abrilhanta a sala de jantar do Reitor Pedro Calmon.

Mas ao fator tcnico deve-se juntar o econmico. Tornou-se a loua europia desde os primeiros anos do sculo XIX uma das afirmaes do imperialismo europeu em suas relaes com areas semi-coloniais com o Brasil.

Fonte: FREYRE, Gilberto. Loua da china no Brasil antigo. Diario de Pernambuco. Recife, 14 set. 1951.

Acessvel em: http://bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/artigos_imprensa/loua_china.html 25/09/2009