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105 – Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 4, n° 7, novembro de 2011 ABRIL LÍNGUA, COLONIZAÇÃO E REVO- LUÇÃO: DISCURSO POLÍTICO SOBRE AS LÍNGUAS EM MOÇAMBQUE 1 Bethania Mariani (Universidade Federal Fluminense) À Rita Chaves e ao Antonio Sopa RESUMO Neste artigo discute-se o importante tema das línguas no histórico pro- cesso revolucionário moçambicano. Para tanto, e com base no aporte teórico-metodológico da Análise do Discurso e nas reflexões do projeto História das ideias linguísticas: ética e política das línguas, estabelecemos uma comparação entre o discurso colonizador, que, como se verá ao longo do artigo, estabeleceu políticas de línguas que produziram uma submissão ideológica à língua portuguesa e o discurso revolucionário, o qual, por sua vez, estabeleceu políticas de língua com o objetivo de construir um homem novo em uma nova sociedade moçambicana unificada, e, para tanto, sem desprestigiar as línguas autóctones, estabeleceu a língua portuguesa como língua oficial. PALAVRAS-CHAVE: colonização linguística; revolução; políticas de lín- gua; análise do discurso; ideias linguísticas. ABSTRACT is article was written to address the important issue of languages in the historical revolutionary process in Mozambique. In order to accomplish that, based on theoretical and methodological approach of Discourse Analysis and on the reflections of the project History of linguistic ideas: ethics and politics of languages, we have established a comparison between colonial discourse, which, as presented in the paper, instituted language politics that produced ideological submission to the Portuguese language, and revolutionary discourse, which, in turn, established language politics aimed at building a new man in a new unified Mozambican society, and, for that purpose, without discrediting the indigenous languages, establi- shed Portuguese as the official language. KEYWORDS: linguistic colonization, revolution, language politics, dis- course analysis, linguistic ideas.

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Page 1: LÍNGUA, COLONIZAÇÃO E REVO- LUÇÃOEu procurava falar as duas línguas. Hoje ainda percebo perfeitamente. Falo o que for preciso falar, mas não correntemente. E eu sinto isso como

105– Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 4, n° 7, novembro de 2011ABRIL

LÍNGUA, COLONIZAÇÃO E REVO-LUÇÃO: DISCURSO POLÍTICO SOBRE AS

LÍNGUAS EM MOÇAMBQUE1

Bethania Mariani (Universidade Federal Fluminense)

À Rita Chaves e ao Antonio Sopa

RESUMO

Neste artigo discute-se o importante tema das línguas no histórico pro-cesso revolucionário moçambicano. Para tanto, e com base no aporte teórico-metodológico da Análise do Discurso e nas reflexões do projeto História das ideias linguísticas: ética e política das línguas, estabelecemos uma comparação entre o discurso colonizador, que, como se verá ao longo do artigo, estabeleceu políticas de línguas que produziram uma submissão ideológica à língua portuguesa e o discurso revolucionário, o qual, por sua vez, estabeleceu políticas de língua com o objetivo de construir um homem novo em uma nova sociedade moçambicana unificada, e, para tanto, sem desprestigiar as línguas autóctones, estabeleceu a língua portuguesa como língua oficial.

PALAVRAS-CHAVE: colonização linguística; revolução; políticas de lín-gua; análise do discurso; ideias linguísticas.

ABSTRACT

This article was written to address the important issue of languages in the historical revolutionary process in Mozambique. In order to accomplish that, based on theoretical and methodological approach of Discourse Analysis and on the reflections of the project History of linguistic ideas: ethics and politics of languages, we have established a comparison between colonial discourse, which, as presented in the paper, instituted language politics that produced ideological submission to the Portuguese language, and revolutionary discourse, which, in turn, established language politics aimed at building a new man in a new unified Mozambican society, and, for that purpose, without discrediting the indigenous languages, establi-shed Portuguese as the official language.

KEYWORDS: linguistic colonization, revolution, language politics, dis-course analysis, linguistic ideas.

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“Sim, tinha de falar português e a minha madrasta não admitia que falássemos na nossa língua africana. Até mesmo os empregados domésticos estavam proibidos de falar conosco em ronga. Eu procurava falar as duas línguas. Hoje ainda percebo perfeitamente. Falo o que for preciso falar, mas não correntemente. E eu sinto isso como uma perda, como se fosse aleijado, se me faltasse um braço, uma perna. Mas sinto também que comigo não acontece como com muitos outros, outros mulatos que nem uma palavra sequer sabem falar. De fato havia uma proibição, mas as pessoas reagiam de diferentes formas. (...) Devíamos ser bilíngües, mas os portugueses não aceitavam isso.”

José Craveirinha2

O poeta moçambicano Craveirinha, na epígrafe acima, descre-ve os sentidos da interdição de falar o ronga, língua materna de sua mãe, como se lhe faltasse um braço, uma perna. Metáfora bastante contundente essa que mostra a proibição do uso da língua materna como uma perda inscrita no próprio corpo, um corpo social atravessado pela colonização linguística e pela guerra revolucionária. “Devíamos ser bilíngües, mas os portugueses não aceitavam isso.”

O discurso colonizador, como se verá ao longo do artigo, estabe-leceu políticas de línguas que produziram uma censura, um silenciamento local (ORLANDI, 1984), uma submissão ideológica à língua portuguesa, como menciona Craveirinha. O discurso revolucionário, por sua vez, esta-beleceu políticas de língua com o objetivo de construir um homem novo em uma nova sociedade moçambicana unificada, e, para tanto, sem des-prestigiar as línguas autóctones, estabeleceu a língua portuguesa como lín-gua oficial.

Este é um texto difícil e delicado de ser escrito, pois trata dos efeitos linguísticos resultantes da colonização portuguesa, que durou mais de quatro séculos, e trata também da revolução moçambicana que ocorre nos anos 70 da década passada. Até o momento, o interesse das pesquisas que tenho realizado sobre a história das línguas em países colonizados tem sido o de formular uma discussão sobre o político na organização de polí-ticas de língua e vice-versa: de que forma o movimento linguageiro incide na vida do político, produzindo ‘necessidade’ de regulamentação? Lembre-mos, aqui, que o político é da ordem do conflito (ORLANDI, 2007) e “é próprio da divisão que afeta materialmente a linguagem”. (GUIMARÃES, 2002) O exercício da política, por sua vez, é o exercício jurídico e adminis-trativo de regulação do conflito.

Trago uma reflexão sobre o acontecimento histórico e político do processo revolucionário de instituição do estado moçambicano, um pro-cesso histórico realizado durante mais de uma década e meia por um grupo de moçambicanos que mesclava políticos, intelectuais e a população em geral, sem distinção de raça e de língua, o qual tem várias faces, passa por várias fases, traz várias posições de sujeito.

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MOÇAMBIQUE: OPRESSÃO E RESISTÊNCIA LINGUÍSTICA

Nos dias atuais, das dez mais importantes línguas da África sub-saariana, cada uma com mais de três milhões de falantes, quatro são bantos: “o kirwanda, o zulu, o xhosa e o emakhwa (macua), esta última falada só em Moçambique.” (ROCHA, 2006, p. 14) Para muitos historiadores e lin-guistas, e de acordo com o Censo Populacional Moçambicano de 1997, há algo em torno de 60 línguas da família Banto, com suas variantes dialetais, faladas em Moçambique, sendo que mais de seis milhões de moçambicanos (40% da população) são falantes de Makua-Lomwe (ROCHA, 2006, p. 19) De um modo geral, conforme Firmino (2006), as línguas autóctones são usadas no meio familiar na região rural. Essas línguas também são usadas no rádio e na televisão3 em programas de entrevistas, comunicados oficiais, músicas, noticiários. Há, também, casos de bilinguismo em várias regiões do país. O meio religioso protestante se vale do uso de línguas autóctones; já na igreja católica, seguindo a ideologia colonizadora, usa-se menos as línguas da terra e mais a portuguesa. (FIRMINO, 2006, p. 63-65) Essa com-plexa situação linguística de Moçambique, porém, não se inaugura agora.

Mas retornemos ao processo de colonização linguística (MARIA-NI, 2004) e suas políticas de silenciamento. Quando recuamos para o sécu-lo XIX, vemos que a futura questão da descolonização da África portugue-sa se inicia no final do século, com as Conferências de Berlim (1885) e de Bruxelas (1887) que determinaram a partilha da África pelas potências eu-ropeias a partir de regras internacionais uniformes para ocupação do terri-tório. A posse da terra não dependia mais apenas dos direitos decorrentes das descobertas, mas principalmente da efetiva ocupação territorial. Nesse período, pondo fim à hegemonia da igreja católica, procedeu-se à aprova-ção da prática missionária de quaisquer credos, em quaisquer territórios. Em virtude desse reposicionamento político internacional, Portugal passa a administrar seu território de Ultramar com medidas socioeducativas que objetivavam efetivamente a ocupação e a civilização dos povos africanos pela introdução da língua e dos costumes portugueses.

Como já tive oportunidade de dizer (MARIANI, 2005), decretos promulgados em 1845 e em 1869 organizaram um novo sistema educacio-nal, o qual “definia os diferentes tipos de educação a serem ministrados a africanos e europeus” (E. Ferreira, 1977, p. 63). Mais para o final do século, novas missões católicas portuguesas se dirigem à África e instituem esco-las missionárias voltadas para os portugueses que lá se encontravam, mas sobretudo para os africanos. Em se tratando de política religiosa, o modo de trabalho em nada diferia dos séculos anteriores: “Os encarregados das escolas das missões estavam sobretudo preocupados em obter conversões. (...) O ensino era geralmente ministrado na língua africana local, e por vezes em português” (idem, p. 65). É, portanto, a partir do final do século XIX que Portugal começa, de fato, a implementar uma política linguística de tornar a língua portuguesa a língua hegemônica e civilizatória.

Nas palavras de Firmino (2006)

com a consolidação do domínio colonial em Moçambique, o Português tornou-se a língua oficial através da qual as políticas coloniais eram implementadas. O português foi

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imposto como o símbolo da identidade cultural portuguesa e tornou-se um dos mais importantes instrumentos da política assimilacionista promovida pelas autoridades portuguesas. No contexto da ideologia colonial, os nativos só podiam tornar-se “civilizados” depois de demonstrarem o domínio da língua portuguesa. (FIRMINO, 2006, p. 69)4

A imposição do português como língua de civilização durante a colonização se realizou com uma política de silenciamento das línguas africanas autóctones, como nos contou o poeta Craveirinha na epígrafe deste trabalho. As línguas autóctones não podiam ser usadas no âmbito institucional e o uso da língua portuguesa tornou-se obrigatório nas es-colas no início do século. No entanto, apenas uma pequena parcela da população africana tinha acesso à escolarização. Assim, a língua portu-guesa significa a língua da elite, meio de expressão de uma classe social mais elevada, que ocupa postos mais relevantes no governo colonial em todos os centros urbanos.

Havia um gesto duplo de dominação e de exclusão: através de uma pretensa democratização no acesso à escola e da imposição de uma língua com o silenciamento das demais (como demonstram, por exemplo, o de-creto 6322, de 24/12/1919, o Ato Colonial, de 1930, ou ainda, o decreto-lei 31207, de 05/04/1941)5. Esse discurso jurídico refere-se aos habitantes das colônias africanas, afirmando sua “mentalidade de primitivos” e a neces-sidade de diminuir a distância “de estado civilizatório” entre eles e os por-tugueses. Falar, ler e escrever em português era uma forma de demonstrar uma possível inclusão no mundo civilizado, legitimando uma mudança na posição social. Foi se estreitando uma relação entre domínio da língua por-tuguesa, sobretudo na sua modalidade escrita transmitida pela escola, e po-sição social de prestígio, porém não para todos, como relata Firmino:

Uma vez que a educação era o factor-chave para obter as necessárias credenciais para a mobilidade social, o requisito do uso do Português como o único meio de ensino garantia que só os que dominassem esta língua podiam ter a oportunidade de ascender na sociedade. (...) O conhecimento do Português não era apenas um investimento compensador do ponto de vista econômico e social, mas também um capital social distintivo... (FIRMINO, 2006, p. 70)

Nesse período, inventa-se juridicamente a categoria de “assimi-lado”, ou seja, ganharia o estatuto de “assimilado”, com um “alvará de ci-dadania”, aquele africano que incorporasse as práticas culturais, sociais e linguísticas de Portugal. A sociedade moçambicana fica assim dividida em três categorias:

os brancos (“não indígenas”) portugueses e seus descendentes, gozando de plenos direitos de cidadania; os “assimilados”, negros que sabiam ler e escrever português e gozavam, ao menos teoricamente, dos mesmos direitos dos brancos; e os negros (“indígenas”) que não possuíam direitos de qualquer espécie face à lei portuguesa. (ROCHA, 2006, p. 47)

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Mas, como afirmamos repetidas vezes, não há colonização lin-guística sem a resistência linguística (MARIANI, 2004). À resistência que se fazia na forma revoltas na zona rural, de greves na zona urbana e de ações culturais, como a fundação do Grêmio Africano de Lourenço Mar-ques (ROCHA, 2006, p. 47) – formas de contradizer essa ideologia polí-tica civilizatória, vinculada a uma visível política de línguas – associa-se o fato de que as línguas africanas permaneceram sendo faladas, cantadas e transmitidas através de gerações com base em narrativas orais. A resis-tência fazia-se em termos do uso efetivo e da valorização dessas línguas sem escrita e, também, por meio de discussões entre intelectuais “misto de jornalistas-literatos e funcionários” (ROCHA, 2006, p. 47) sobre a identi-dade africana, em geral, e a moçambicana em particular.

Aos poucos, nas décadas iniciais do século XX, um acontecimento linguístico modifica o espaço de comunicação moçambicano (AUROUX, 1992), qual seja, as línguas africanas faladas em Moçambique começam a ganhar forma escrita, instaurando um uma circulação de sentidos opacos aos portugueses. Essa escrita, uma das formas de resistência ao coloniza-dor, instalou-se na imprensa, uma imprensa dirigida por uma elite moçam-bicana insatisfeita “que fazia circular artigos redigidos nas línguas da terra. (...) Essa presença das referências africanas, no entanto, não chega a reduzir a importância da língua portuguesa como instrumento de afirmação dos excluídos” (CHAVES, 2005, p. 235, 236).

Assim, a resistência ao opressor colonial materializa-se linguisti-camente tanto nas línguas africanas, seja na modalidade oral, seja na mo-dalidade escrita, como na língua portuguesa. Em consequência, o espaço de comunicação da resistência moçambicana, constitutivamente marcado por uma heterogeneidade linguística (ORLANDI, 2002), fica contraditoriamen-te marcado por mais de uma língua de resistência com forma escrita.

Retomando o depoimento de Craveirinha (apud CHAVES, 2005), ficamos sabendo que, no movimento de resistência e de busca de afirmação de identidade nacional, discutia-se a africanidade e a moçambicanidade, não importando em que língua. Diz o poeta, referindo-se ao período pré--revolucionário:

Era uma fase de grande inquietação. Estávamos ligados pela vontade de mudar. Tínhamos consciência da injustiça que dividia essa sociedade. (...) A Associação [Associação Africana] era um lugar onde se discutia o que era ser africano, o que era ser moçambicano. (In CHAVES, 2005, p. 238)

Por outro lado, a historicização da língua portuguesa, nesse mo-mento em que a luta pela descolonização se inicia, ganha um outro contor-no: à imagem de língua do colonizador agrega-se a imagem de língua pela independência. Ou seja, dois sentidos para língua portuguesa entram em circulação: de um lado, mantém-se a memória língua do colonizador como língua da opressão; de outro, o acontecimento (futuro) da revolução apon-ta para uma língua portuguesa como língua da revolução, que não se reali-za sem as demais línguas da terra. Assim, o acontecimento da colonização

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linguística portuguesa, enquanto memória-e-esquecimento, não perde seu vigor, mas é absorvido e ressignificado pela elite e pelos revolucionários, provocando uma virada nos modos de a língua portuguesa, como objeto simbólico, fazer sentido. Mas isso não se fará sem tensões, pois as relações de poder funcionam contraditoriamente e as contradições se inscrevem na língua. É o que nos permite ler, na história das sociedades, a história das línguas e vice-versa, conforme já sinalizou Orlandi (2002).

INDEPENDÊNCIA E DESCOLONIZAÇÃO: UMA QUESTÃO DE LÍNGUA E DE ESTADO

A língua do colonizador é uma marca indelével nas línguas que resultam da história das colonizações, é uma marca indelével tanto quanto o silenciamento das línguas da terra. Em termos de Brasil, a questão da lín-gua nacional provoca desconforto nos discursos pós-independência, bem como nos de instauração da república. A língua nacional será significa-da como continuidade ou como ruptura? Como saudosismo da língua do colonizador ou como instauração do novo? (BOUCHARD, 2003) Nesses discursos de independência e pós-independência, intelectuais, gramáti-cos e literatos, quando oriundos das elites, constroem sentidos para fazer emergir um nacionalismo que para se constituir é significado naquela que foi a língua do colonizador. Uso o verbo no passado – “foi a língua do co-lonizador” – porque de fato, para além de alterações vocabulares e morfo-fonológicas, para além do desconforto que sua utilização pode causar nos discursos dos ideólogos6, há que se considerar que ocorre um processo de ressignificação da língua do colonizador como língua nacional enquanto objeto simbólico.

Podemos pensar, ainda em termos de Brasil, na tensão presente nos discursos políticos que visavam conferir essa qualidade de pertenci-mento à terra: de um lado, a dispersão dos falares do português-brasileiro somada às inúmeras línguas indígenas; de outro, a persistência de uma von-tade político-ideológica de unificação que passava, necessariamente, pela constituição de uma língua nacional homogênea. Podemos, então, supor que entra em jogo nesse momento histórico brasileiro uma outra concepção da noção de território e, portanto, da ocupação discursiva desse território.

Administrar o território brasileiro como Império ou como Repú-blica foi um processo político e também linguístico que se realizou com o de-senvolvimento de saberes linguísticos sobre uma língua nacional almejada.

No movimento de independência do Brasil, na história da for-mação social e linguística brasileira como estado-nação, memória e esque-cimento são constitutivos da contradição instalada entre o lembrar e o es-quecer tais marcas constitutivas da língua nacional. (ORLANDI, 2002) A visibilidade do que é chamado como língua nacional (compreendida como objeto simbólico) porta essa contradição: ao mesmo tempo em que o Esta-do investe nos efeitos de homogeneidade e unidade linguística, buscando legitimar a língua, a memória de uma herança linguística permanece, bem como o desejo, para muitos, do reconhecimento definitivo das diferenças.

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A função do Estado, através de mecanismos jurídicos, administrativos e educacionais é provocar um efeito “universalizante” de reconhecimento da unidade linguística da nação: em uma dada formação social, os sujeitos fa-lantes de uma da língua nacional e oficial sabem, e, se não sabem, deveriam saber, como é essa língua, qual é a sua norma escrita etc. Como afirma Or-landi, “a construção da unidade da língua, de um saber sobre ela e os meios de seu ensino (criação de escolas e programas) ocupam um lugar primor-dial na construção dessa unidade.” (ORLANDI, 2009, p. 175) Assim, há todo um investimento do Estado no sentido de anular as diferenças, sejam elas entre a língua nacional e a do colonizador, sejam elas internas, em termos das variações diastráticas, diatópicas e diafásicas. Um investimento que se materializa na alfabetização, na elaboração de instrumentos linguís-ticos, no uso dessa língua nacional na literatura, na imprensa e, sobretudo, como instrumento jurídico.

Guardadas as devidas diferenças, a questão linguística, tanto no movimento de independência quanto no movimento republicano brasilei-ro, ambos do século XIX, pode ser pensada analogamente à questão lin-guística das chamadas “revoluções burguesas” europeias7. Ou seja, à consti-tuição e institucionalização do estado nacional brasileiro soma-se o projeto político de constituição e institucionalização da unidade da língua nacional em sua realização concreta como língua materna dos cidadãos (que vão à escola para aprender sua modalidade escrita, que vão ler jornais e que terão suas vidas reguladas juridicamente por esta mesma e única língua). Como nos lembra Auroux,

a velha correspondência uma língua, uma nação, tomando valor não mais pelo passado, mas pelo futuro, adquire um novo sentido: as nações transformadas, quando puderam, em Estados, estes vão fazer da aprendizagem e do uso de uma língua oficial uma obrigação para os cidadãos. (AUROUX, 1992, p. 49, grifos do autor)

Essa descrição da situação das línguas em relação às revoluções europeias ocorridas em séculos passados e a descrição sucinta que trouxe-mos do movimento de independência e da revolução brasileira apontam para processos históricos que se constituíram durante séculos, nos quais uma relação língua nacional, nação e formação social está de alguma forma imbricada em relações de imposição, dominação e resistência com outras línguas. A língua colonizadora, com o passar do tempo, se modifica não apenas pelo contato com outras línguas, não apenas porque se encontra deslocada da metrópole de origem, mas também em função dos proces-sos de ressignificação que entram em jogo em função da colonização. Nas Américas, no Brasil, em especial, os processos de independência do século XIX se realizam com uma língua de colonização já de alguma maneira mo-dificada. As línguas indígenas, faladas apenas nas comunidades dos povos indígenas (com exceção do Paraguai), tornam-se objeto literário ou uma lista de palavras em gramáticas. Elas não ameaçam a idealização e a cons-trução de uma unidade linguística nacional.

Em Moçambique, porém, a ideologia do movimento de indepen-dência e a revolução se realizaram de outro modo: luta armada, luta pelo

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sonho de uma sociedade socialista. Luta que busca uma ruptura política e ideológica com o modelo social e político anterior. Para além do rompi-mento com o sistema colonial, a revolução em Moçambique propõe um outro modo de sistema político, baseado em outro modo de produção.

Retomando a descrição que Firmino (2006) formula sobre a situ-ação linguística atual em Moçambique, lemos que

as línguas usadas em Moçambique podem ser divididas em dois grupos, cada um com sua história, implantação social e usos específicos: o das línguas autóctones e o das línguas de origem estrangeira. O português, devido à sua história, papéis e estatuto peculiares, deve ser demarcado das outras línguas de origem estrangeira, tais como o inglês e algumas línguas asiáticas. (FIRMINO, 2006, p. 47)

O português tem um lugar demarcado dentre as “outras línguas estrangeiras”, sua inscrição na historicidade da sociedade moçambicana é diferenciada.

Considerando esse mapeamento apresentado por Firmino, quan-do nos situamos na revolução moçambicana ocorrida na década de 70, no século XX, à questão da língua do colonizador soma-se o fato linguísti-co da presença efetiva das línguas da terra, ou autóctones, sendo usadas pela maioria da população. A colonização linguística de Moçambique não se efetuou como a colonização linguística no Brasil: não houve um inves-timento na gramatização das línguas banto, nem um investimento, até o século XX, no incremento do português para a população em geral. No momento da revolução e no pós-revolucionário, a densidade da questão linguística se constitui: Como falar-se no e para o mundo moderno?

Para os dirigentes revolucionários, coube a difícil escolha e justi-ficativa política da imposição do português como língua oficial, uma língua que não só permitisse um reconhecimento externo – reconhecimento neces-sário às relações internacionais – mas também produzisse uma integração interna, ou seja, uma só língua, unificada, fundamental para um equilíbrio institucional interno. E a escolha recai sobre a língua do ex-colonizador.

Mas cabe a pergunta: enquanto língua oficial, essa língua do ex--colonizador pode ser considerada língua nacional? (FIRMINO, 2006, p. 45) Afinal, se é uma língua escolhida para a integração nacional, seria o português uma língua que habitaria a subjetividade de todos os moçam-bicanos? Afinal, é possível ponderar: a língua portuguesa nunca chegou a ser uma língua nacional em Moçambique, ou melhor, uma língua materna com sentimento de nacionalidade. A língua portuguesa era uma língua es-trangeira, falada por uma elite reduzida, e tornou-se elemento de barganha na política assimilacionista portuguesa, como já foi dito.

A FRELIMO e o discurso político sobre as línguas

Para apresentar as linhas gerais do movimento revolucionário moçambicano e a política de línguas proposta pelo governo moçambica-no pós-independência, vamos nos ater à leitura da terceira edição do livro Datas e documentos da história da FRELIMO, escrito por Armando Pedro Muiuane (2006). Vamos articular esse livro com a compilação dos Docu-

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mentos do 1o seminário nacional da informação, realizado em Maputo dois anos após a independência, em 1977. Este é o material básico que constitui o arquivo8 desta discussão sobre a língua em Moçambique e o discurso político que dá direções de sentidos a tal discussão. Um discurso políti-co construído em nome da coletividade, visando a um futuro para essa coletividade, veiculado pelos líderes moçambicanos e produzido em dois momentos relevantes: durante os dezesseis anos da guerra revolucionária e após a declaração de independência, em 1975.

Entre 1850 e 1930 ocorre a efetiva demarcação, dominação e ad-ministração das terras moçambicanas, em meio a muitas guerras. A con-quista do estado de Gaza, em 1897, maior ponto de resistência aos portu-gueses, com a deportação do rei Gungunhana e de seu filho Godido, bem como a conquista da parte central e do norte do território dá início a uma exploração mais sistemática da terra. Ao lado dessa exploração interna, realiza-se também uma exploração dos moçambicanos como mão-de-obra em um sistema de trabalho forçado nas minas da África do Sul. (ROCHA, 2006, 45) Com o final da segunda guerra mundial, o governo português incrementou e promoveu uma imigração branca, ao mesmo tempo em que começa a ocorrer uma imigração de trabalhadores em busca de oportuni-dades. Nesse meio tempo, uma “pequena elite de assimilados”, com acesso à formulação de ideias nacionalistas em circulação, põe em andamento o projeto de independência e descolonização. A repressão portuguesa, orga-nizada na PIDE, a polícia política, prende, deporta e mata, mas não impede a produção e circulação de manifestações literárias e jornalísticas nas vozes de João Dias, Marcelino dos Santos, Bertina Lopes e Malangatana Ngwenya (escritores), Noêmia de Sousa (poeta), José Craveirinha (jornalista e poeta) e Fany Mpfumo (música). (ROCHA, 2006, p. 50 e 59)

Na tentativa de assegurar o território de ultramar, a partir de 1961, Portugal altera sua política colonial, abolindo o Estatuto do Indige-nato9 (decreto-lei 43.983), o trabalho forçado, o ensino obrigatório de cul-turas, e passa a incrementar a escolaridade, chegando mesmo a criar uma instituição de nível superior. (ROCHA, 2006, p. 50) Se, com a abolição do Estatuto do Indigenato, do dia para noite os “indígenas” e os assimilados se tornam cidadãos, isso não significa que o acesso à educação e às oportuni-dades oferecidas para a elite branca passou a ser idêntica para todos. Isso não significa, também, a possibilidade de ter na língua portuguesa uma língua materna.

Em 1968, em entrevista ao historiador Basil Davidson, Samora Machel, presidente da Frente de Libertação Nacional após o assassinato de Eduardo Mondlane, e Sebastião Mabote, outro líder revolucionário, falam sobre o engodo e a revolta que a política de assimilação produzia:

Consegui obter alguma instrução, e, eventualmente, acabei um curso técnico de enfermagens (um dos melhores empregos abertos aos assimilados na África Portuguesa). Durante a nossa prática, convivíamos com brancos, e foi só depois de receber o diploma que descobrimos o diferente tratamento, as atitudes diferentes, que nos davam e lhes davam. Descobrimos também o nível diferente de ordenados. (MACHEL apud MUIUANE, 2006, p. 92)

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(...) Mesmo assim quiseram que eu aceitasse o estatuto de assimilado. Meu pai era contra isso e eu também. Porquê? Porque eu sabia qual era a situação real dos assimilados, era a mesma dos indígenas. Mais tarde tive de ser assimilado para obter melhor colocação, mas nunca pude encontrá-la. (MABOTE apud MUIUANE, 2006, p. 93)

Desde 1960, conforme Muiuane (2006, p. 5), as revoltas começam a se manifestar mais frequência. A Frente de Libertação de Moçambique – FRELIMO – é fundada em 25 de junho de 1962, período em que Angola e Guiné-Bissau já estavam com movimentos revolucionários mais organi-zados. A FRELIMO era um movimento político que reunia em um movi-mento unitário diferentes grupos que se encontravam no país e fora dele10; era um movimento responsável pela organização da luta armada contra o conquistador português, era “uma organização política nacionalista, com-posta de elementos provenientes de todas as partes...”. (MUIUANE, 2006, p. 85) Durante o congresso de fundação, em 1962, Eduardo Mondlane foi eleito presidente da FRELIMO, que reunia nomes como Marcelino dos Santos, Samora Machel, Joaquim Chissano e Armando Guebuza.

Mas interessa observar, aqui, que os líderes revolucionários tanto se utilizam da língua portuguesa quanto de suas próprias línguas maternas africanas, e isso é registrado em atas e documentos. Eduardo Mondlane, por exemplo, a pedido de um pastor, escreve sua biografia em “idioma Chan-gane”. (MUIUANE, 2006, p. 7) Em outro período, durante o congresso de 1962, dentre as resoluções tomadas para o momento pós-independência, destaca-se a de número 07: “Promover imediatamente alfabetização do Povo Moçambicano, criando escolas onde for possível”. (MUIUANE, 2006, p. 43)

A questão linguística está presente nos gestos interpretativos dos líderes frente à diversidade de línguas, inscreve-se nos discursos políticos da FRELIMO, e se encontra vinculada a uma discussão mais ampla, que é a da diversidade de tribos e costumes em relação ao projeto de unidade nacio-nal presente nos discursos políticos do movimento. Como organizar esses discursos de unidade política nacional sem apagar as diferenças existentes?

No congresso de 1967, se autodefinindo como uma “organiza-ção política nacionalista, composta de elementos provenientes de todas as partes, de tribos ou grupos étnicos nacionais” (MUIUANE, 2006, p. 85), a FRELIMO busca definir e depreender, no âmbito moçambicano, os traços culturais que permitiriam mapear as tribos ou etnias, e seu significado na luta de libertação nacional, afirmando que

uma tribo ou etnia é um agrupamento populacional cujos membros partilham da mesma expressão linguística e inclui o uso de certos dialectos que muitas vezes servem como linha de diferenciação entre populações que realmente pertencem ao mesmo grupo. (MUIUANE, 2006, p. 79)

Observando o conjunto da população de Moçambique e com base em critérios linguísticos, durante esse congresso da FRELIMO de 67, depreendem-se sete grupos étnicos ou tribais. No entanto, a diversidade linguística não

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significa que as manifestações culturais de uma tribo sejam completamente estranhas às de outras tribos. (...) todos nós pertencemos à nossa família lingüística Banto, caracterizada pela mesma forma gramatical, mesma origem de palavras, mesma estrutura de frases e períodos. (MUIUANE, 2006, p. 81, grifos nossos)

A designação de pertencimento é feita de maneira inclusiva e ge-neralizante, marcada pelo uso da primeira pessoa do plural “todos nós”, “nossa família lingüística Banto”. As sete etnias ou tribos, todas são reme-tidas a uma “mesma origem” de “forma gramatical”, “palavras” e “estrutura de frases e períodos.” As diferenças entre os grupos étnicos são colocadas no plano econômico, ou seja, são diferenças que dependem das condições materiais de vida, de subsistência, conforme a região que cada tribo habita.

De acordo com os registros de Muiuane, o maior vetor das dife-renças foi o colonialismo, que “impôs uma separação geográfica forçada”. Sem o colonialismo, afirma o autor da compilação de documentos da FRE-LIMO, “não parece exagerado afirmar”, teria ocorrido um “processo natu-ral de assimilação social e cultural (...) e depois de alguns séculos, as dife-rentes etnias teriam se fundido em uma só” (MUIUANE, 2006, p. 82) em função do processo histórico resultante de guerras intertribais que foram produzindo uma mescla de usos e costumes. Enfatiza-se nesse narrar uma mesma origem, sobretudo no âmbito das línguas faladas pelos diferentes grupos étnicos. Assim, nesse narrar depreende-se um processo de recontar a história, agora sob a ótica do africano revolucionário, que traz os sentidos de um passado irrealizado, e apresenta possibilidades históricas de sentidos outros, caso não tivesse ocorrido a colonização. Eduardo Mondlane, em discurso reproduzido por Muiuane, afirma: “Os portugueses, cientes das contradições culturais e históricas entre nós, utilizaram-nas, manobrando uma tribo contra a outra. (...) faltava-nos, ainda, a consciência nacional...” (MONDLANE, apud MUIUANE, 2006, p. 152, grifos nossos e do autor)

Do ponto de vista da Análise do Discurso, a memória é consti-tuída por lembrança e esquecimento, ela é não linear, é lacunar, é móvel. Nesse relato de um passado histórico que poderia ter sido outro, o discurso político da FRELIMO constrói um elo entre a necessidade de união como resistência e forma de luta contra o colonizador e um passado interrompi-do. O irrealizado histórico, nesses discursos, é evocado como a possibili-dade de transformação de um passado de diferenças em um futuro de uni-dade. O fio discursivo construído no discurso político de Mondlane tece uma genealogia para um processo de produção de sentidos entre aquela atualidade da luta de independência, o que poderia estar esquecido na his-tória da moçambicanidade e um futuro a ser realizado.

Em outras palavras, o acontecimento histórico da colonização e, posteriormente, os acontecimentos que dividiram o território africano entre os europeus (as Conferências de Berlim, em 1885, e de Bruxelas, em 1887), de acordo com o discurso político revolucionário moçambicano, in-viabilizaram um processo social, cultural e linguístico que teria produzido uma África Austral unificada. A construção desse discurso político unifi-cador, que remonta (a) uma memória escrita com um “não parece exage-rado afirmar” (MUIUANE, 2006, p. 81), postulando a possível presença de uma unidade, é um discurso que funciona como um aglutinador político nesse momento de guerra de independência.

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Deste modo, se as inter-relações intertribais foram interrompidas por colonialistas que “nos exploravam a todos sem distinção”, europeus que “nos escravizavam a todos”, só “na unidade dos vários grupos tri-bais é que nosso povo teria conseguido resistir contra o invasor europeu.” (MUIUANE, 2006, p. 82, grifos nossos) A forma verbal colocada no futuro anterior – “teria conseguido” – formula a condição de ficção do irrealizado da temporalidade histórica, ao mesmo tempo em que expressa a possibili-dade desse irrealizado vir a se concretizar com a revolução socialista.

A Luta de Libertação Nacional é em si própria um processo de criação de uma nova realidade. Enquanto o nosso passado era caracterizado pelas divisões lingüísticas, culturais e históricas, o nosso futuro está sendo estabe-lecido numa base de unidade. (MUIUANE, 2006, p. 85, grifos nossos)

A Unidade nacional é a arma fundamental na nossa luta contra o Colonialismo e na construção do nosso país. (MONDLANE, apud MUIUANE, 2006, p. 151)

Ora, nós sabemos que a organização tribal é uma forma caduca de organização social que no momento em que vivemos impede o progresso porque impede a expansão das relações humanas por todo o país. (Documento sobre Qualidades de um membro do Comitê Central, apud MUIUANE, 2006 p. 148)

Naquele momento revolucionário, o discurso político cons-trói elos entre um passado interrompido e dividido – as relações intertri-bais poderiam ter caminhado para uma formação social menos fragmen-tada se o colonizador português não tivesse interrompido o processo – e um futuro sócio-histórico que quer construir uma “nova realidade” “numa base de unidade” necessária à fundação de uma nação independente. Ao mesmo tempo, preserva-se uma concepção de unidade na qual há o reco-nhecimento da existência de tribos e de grupos étnicos diferenciados entre si. Assim, defende-se o “não antagonismo entre os vários grupos étnicos e a Unidade nacional”. A unidade da luta contra o opressor não inviabiliza a preservação das “formas de expressão lingüística”, nem as “peculiaridades regionais, as músicas e danças.” (MUIUANE, 2006, p. 87)

Retomando o discurso de Eduardo Mondlane, observa-se a cons-trução de um sentido para nação que inclui Moçambique na “maior parte das nações do mundo”. Nesses discursos políticos revolucionários, a diver-sidade étnica não é exclusiva dos povos africanos e não impede uma união nacional. Mas o racismo impede. Assim, uma política de combate ao explo-rador português, e de construção de unidade nacional com a preservação das diferenças tribais, é também uma forma de combater o racismo.

A Nação Moçambicana, como a maior parte das nações do mundo, é composta de gentes com diferentes tradições e culturas, mas unidas pela mesma experiência histórica e os mesmos fins políticos, econômicos e sociais, empenhados na mesma tarefa sagrada: lutar pela sua libertação.” (MUIUANE, 2006, p. 153, grifos nossos e do autor)

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“O militante combate o racismo. O racismo é uma política de negação do direito de igualdade econômica, social e política de uma raça por parte de outra. Seja ela de que direção for: DO BRANCO PARA O NEGRO OU DO NEGRO PARA O BRANCO, O RACISMO É UMA POLÍTICA REACCIONÁRIA, DE OPRESSÃO E EXPLORAÇÃO DO HOMEM PELO HOMEM.” (Documento sobre Qualidades de um membro do Comitê Central, apud MUIUANE, 2006, p. 154, grifos do autor)

Em 1970, com a morte de Eduardo Mondlane, é eleito Samora Machel para o cargo de Presidente da FRELIMO. Em 1974, cai o governo de Salazar em Portugal e em 07 de setembro de 1974 é assinado um acordo entre a FRELIMO e o governo português, após doze anos de guerra. Em 25 de junho de 1975, dia de aniversário da fundação da FRELIMO, é procla-mada a independência de Moçambique e tem início, de fato, o projeto de reconstrução nacional.

OS DISCURSOS SOBRE AS LÍNGUAS APÓS A INDE-PENDÊNCIA11

Em 20 de setembro de 1974, o governo de transição dirigido pela FRELIMO, promovendo a saída de uma forma de governo colonial, e pas-sando para um regime socialista de Estado, divulga um longo comunicado dirigido aos moçambicanos, no qual pontua as tarefas a serem desenvolvi-das, bem como as principais questões políticas, econômicas e financeiras da nação prestes a se tornar independente. Nesse comunicado, educação e cultura são apresentadas como prioridade. O combate ao analfabetismo é colocado lado a lado à luta contra “a ignorância, o obscurantismo, a su-perstição, o individualismo, o egoísmo, o elitismo, a ambição, a discrimi-nação racial, e a social com base no sexo.” (MUIUANE, 2006, p. 217) Essas são as bases de um movimento revolucionário que pretende a “criação de um homem novo com uma mentalidade nova.” (MUIUANE, 2006, p. 217) Enfatiza-se, nesse documento, a necessidade de retomada das manifesta-ções culturais moçambicanas, o trabalho coletivo, o clima de confiança, a camaradagem, a valorização dos talentos. E, num contexto desses, busca-se uma escola de tipo novo, que valorize a cultura moçambicana.

No congresso de Mocuba, ocorrido em fevereiro de 1975, reafir-ma-se o conjunto de diretrizes já formuladas e retoma-se o tema da uni-dade nacional, com o entrelaçamento de uma política educacional e uma política de línguas. Dentre as diretrizes formuladas, o tema de uma política de alfabetização é vinculado, dessa vez, à explicitação de uma política de línguas voltada para a maioria da população não falante de português. Se a alfabetização é significada como condição necessária para o estabeleci-mento de um Poder Popular com acesso à divulgação científica mundial, à língua portuguesa cabe o papel de ser um “veículo de comunicação”, como se pode ler abaixo:

Impõe-se assim o estudo a nível provincial das palavras geradoras em português, dado que é o veículo de comunicação de acordo com as realidades locais. (MUIUANE, 2006, p. 301)

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A língua portuguesa é o meio de comunicação entre todos os moçambicanos que permite quebrar as barreiras criadas pelas línguas maternas. Através dela, a ideologia do partido FRELIMO, que encarna os interesses das massas trabalhadoras e exprime os seus valores revolucionários, é difundida e estudada para ser aplicada,orientando o nosso povo na luta pela criação de uma sociedade mais justa, próspera e feliz, a sociedade socialista. A língua portuguesa é também a língua veicular do conhecimento científico e técnico. (...) É ainda utilizando a língua portuguesa que comunicamos com outros povos do mundo, transmitindo a rica experiência do nosso povo e recebendo a contribuição do patrimônio cultural mundial.” (discurso da Ministra da Educação e Cultura, 1975, apud FIRMINO, 2006, p. 141)

Com a independência propriamente dita, o Estado formaliza uma política de línguas na qual o português torna-se língua oficial e se espera que passe a funcionar, simbolicamente, como elemento de unidade nacio-nal. Com essa institucionalização (formalizada na Constituição de 1990) o discurso político produz uma disjunção entre língua nacional e língua oficial. Não se trata do estabelecimento de uma língua nacional a partir da qual se regulam as relações com outras línguas (GUIMARÃES, 2005); essa regulação é dada a partir da institucionalização de uma língua oficial que não é nacional, que é considerada para a maioria da população como uma língua estrangeira.

Através da língua portuguesa, o governo da revolução pode re-alizar seu ideal de unidade jurídica e linguística, homogeneizando os ci-dadãos. Firmino (2006) menciona que o português aparece, então, “como um instrumento adequado” para ir além das diferenças linguísticas, assim como para estimular a ideia de nação una e igualitária. Porém, desse ponto de vista, apesar de a política de línguas do Estado revolucionário institucio-nalizar a língua portuguesa como oficial, não há explicitamente um gesto de silenciamento das demais línguas faladas no país.

Depreende-se na diretriz política formulada no congresso, tanto uma retomada quanto um deslocamento da “velha correspondência uma língua, uma nação” (AUROUX, 1992, já citado anteriormente), pois essa tomada de decisão política quer tanto posicionar Moçambique em rela-ção a um futuro ainda por vir, postulando a alfabetização com uma língua oficial, quanto deslocar a relação dessa língua oficial como uma obrigação única para os cidadãos, o que negaria e silenciaria o uso das demais línguas em circulação no território nacional.

Lembremos que, durante o processo da guerra revolucionária, as diferenças linguísticas eram tanto minimizadas e valorizadas (conside-rando-se a “nossa origem Banto comum”), quanto defendidas como par-te integrante da nação a ser construída. Com o fim da revolução e com a constituição do Estado-nação moçambicano, a questão de uma língua que promovesse uma unidade nacional era uma necessidade do Estado; e a questão da defesa das demais línguas tribais (ou autóctones, como no-meia Firmino) também. A decisão política recai sobre o português, já que

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era uma língua com “uso institucional (...) de prestígio, funcionando como marca distintiva da identidade das pessoas” (FIRMINO, 2006, p. 164), en-quanto que as línguas africanas não tinham sido gramatizadas e não havia nenhuma que fosse comum em todo o território. Firmino ainda acrescenta que a escolha do português tinha a ver com o fato de “as elites integradas nas instituições do Estado (...) não conhecerem bem as línguas autóctones a ponto de as usarem como línguas de trabalho em actividades oficiais” (FIRMINO, 2006, p. 164), em outras palavras, as línguas africanas nunca tinham sido utilizadas em situações oficiais e de prestígio institucional.

O Estado, porém, reconhecia a necessidade política de usar as lín-guas autóctones como forma de aproximação dos moçambicanos que não falavam português, sem deixar de impor a necessidade do seu aprendizado. No I congresso nacional da informação, realizado em Maputo, 1977,

decide-se pela utilização das línguas moçambicanas nos meios de comunicação de massa, sobretudo nas emissões de rádio, (...) como meio insubstituível de tornar a sua acção efectiva junto das largas massas. É necessário eliminar qualquer vestígio de conteúdo regionalista e tribalista. (...) Os programas, em línguas e dialectos moçambicanos deverão ter a preocupação de incentivar a aprendizagem da língua portuguesa .” (Atas do I congresso nacional da informação, 1977, p. 73)

Nos anos iniciais do pós-independência, o discurso político ofi-cial encaminha o processo de descolonização com a língua portuguesa e, ao mesmo tempo, mantém aceso o prestígio das demais línguas autócto-nes: elas são um “riquíssimo depositário”, nelas “residem e se preservam os principais elementos constitutivos da nossa singularidade cultural.” (Dis-curso de abertura do Ministro da Educação no seminário de padronização das ortografias das línguas moçambicanas, em 1988, organizado pelo NE-LIMO, apud FIRMINO, 2006, p. 164) No entanto, sem promover um inves-timento no sentido de estudar e gramatizar essas línguas, ou seja, provê-las com gramáticas e dicionários, instrumentos linguísticos necessários para sua difusão e institucionalização, sobretudo no meio educacional, o “ri-quíssimo depositário” se encontrava restrito a representar, quase como no discurso dos românticos do século XIX, as raízes da identidade, as origens, as tradições genuínas e verdadeiras.

Aí se encontra, para Firmino e outros intelectuais, uma forte con-tradição no discurso político moçambicano oficial: de um lado, as línguas tribais eram consideradas a expressão da moçambicanidade12, objetos sim-bólicos de identidade nacional, mas nada se fazia no sentido de colocá--las em um patamar de prestígio semelhante ao do português; de outro, o português, que era a língua oficial da unidade nacional, não era uma língua que funcionasse de fato como objeto simbólico da nação. Firmino chama a atenção para essa contradição, afirmando:

Uma ilustração viva desta contradição é visível nas expressões usadas para referir tanto as línguas autóctones como o português. Frequentemente, o discurso oficial designa as línguas autóctones como línguas moçambicanas ou línguas nacionais, mas nunca como línguas étnicas.

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Em contraste, o português é referido como língua oficial ou língua da unidade nacional, mas nunca como língua moçambicana ou mesmo língua nacional. A expressão línguas indígenas nunca foi usada para referir as línguas autóctones devido às suas conotações coloniais. O discurso colonial usava a palavra indígena para designar a população africana vista como “incivilizada”e não assimilada à cultura portuguesa (...). (FIRMINO, 2006, p.166, grifos do autor)

Ainda sobre estes anos iniciais de descolonização, é interessante observar que nada se diz sobre as diferenças sociais produzidas com o uso do próprio português como língua oficial não nacional. Também nada se diz sobre suas possíveis modificações em território africano. Ela é mencio-nada não como uma herança, mas como um instrumento que se pretende neutro, um meio acadêmico, escolarizado, um canal político para políticos. Seu uso, no entanto, demarca posições na sociedade, traçando fronteiras entre quem pode enunciar adequadamente valendo-se da língua de desco-lonização13.

Assim, paradoxalmente, ao invés de promover a unidade nacio-nal, a língua portuguesa excluía, segmentava, promovia diferenças inter-nas entre o meio rural e o meio urbano, entre os escolarizados e os não escolarizados, os alfabetizados e os não alfabetizados. (FIRMINO, 2006, p. 166). Ou seja, no discurso político da escolha da língua portuguesa como língua oficial, mantiveram-se traços de memória, mesmo que indesejados, do funcionamento ideológico do português como língua de colonização. Se a língua portuguesa funcionou como uma língua franca durante a guer-ra revolucionária, por outro lado, sua institucionalização como língua ofi-cial não estabeleceu processos identificatórios com a maioria da população moçambicana.

Apenas na década de 80, após a resistência de intelectuais, de es-critores e de membros do próprio Estado, é que se inaugura uma nova fase, na qual teve início um mapeamento da diversidade linguística moçambi-cana, com um investimento no sentido de promover algumas línguas ao estatuto de línguas nacionais, buscando incentivar o bilinguismo e o uso do português, bem como o dessas línguas nas escolas e em atividades cul-turais. (FIRMINO, 2006, p. 168)

Nessa época, é o início também de discussões sobre o sentido de língua portuguesa no Estado moçambicano. E começa a circular a ideia de que institucionalizar o português não representa a preservação de uma língua estrangeira na qual os moçambicanos estariam alienados, mas sim que estaria em curso uma apropriação da língua, ou seja, uma moçambi-canização do português. Isso implica um redirecionamento na produção de sentidos para língua portuguesa. (FIRMINO, 2006, p. 143) É o que diz um documento da Secretaria de Cultura, escrito em 1983 e reproduzido por Firmino: “O português falado em Moçambique há-de necessariamente transformar-se e distanciar-se do português de Portugal porque a realidade moçambicana, à partida diferente da de Portugal, tem o seu próprio curso de desenvolvimento.” (FIRMINO, 2006, p. 169)

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É muito importante observar que, pejorativamente, essa apro-priação e modificação do português em função de sua historicização en-quanto língua de colonização era chamada de “pretoguês”. “Pretoguês”, conforme Firmino, era o nome dado ao uso de “formas incorrectas” (FIR-MINO, 2006, p. 146) tradicionalmente associada aos falantes africanos.

A oposição português/pretoguês demarca um modo de signifi-car a língua através da tradição de uma língua gramatizada, com escrita estabilizada, com instrumentos linguísticos que tentam assegurar a forma imaginária dessa língua. E, nesse sentido, é um uso asséptico da dela, em detrimento da língua que foi se historicizando, se modificando e incorpo-rando traços da cultura do outro. Ou seja, a língua imaginária se aprende na escola, mas a maior parte da população moçambicana, como vimos, dela estava ausente, em função do modo como se processou a colonização linguística.

A oposição português/pretoguês valoriza ideologicamente o co-nhecimento escolarizado de quem aprende o português europeu. Essa opo-sição pode ser compreendida como a expressão da diferença entre a língua imaginária – aquela organizada e sistematizada nas gramáticas e ensinada nas escolas – e a língua fluida, onde práticas linguísticas sócio-historica-mente configuradas, produzindo movimento nas estruturas, circulam nas ruas. (ORLANDI, 2009, p. 18) Talvez na expressão “pretoguês” esteja ma-terizalizado o sintoma do processo de historicização do português nesse tempo-espaço outros, algo que o governo revolucionário só tenha de fato começado a valorizar e incorporar nos anos 80.

Admitir que a língua portuguesa não é um bem a ser preservado, mas que como objeto simbólico é uma língua perpassada por um processo histórico no qual outras línguas nela interferiram é algo que já está em cur-so em Moçambique. O trabalho da língua sobre si mesma não se interrom-pe. Na materialidade de seu funcionamento histórico e ideológico, a língua portuguesa em Moçambique vem se transformando: alterações fonético--fonológicas, alterações lexicais e morfossintáticas bem como neologismos tem sido observados e começam a ser analisados como a presença de um português-moçambicano. (FIRMINO, 2006, p. 146-150)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, segundo Firmino (2006, p. 171), na revisão da polí-tica de línguas que ora se efetua, vários planos e propostas vêm sendo de-batidos a fim de serem implementados. Defende-se a manutenção do por-tuguês como língua oficial e sua promoção a língua nacional; além disso, pretende-se dar a algumas línguas autóctones o estatuto de língua nacional. Defende-se o bilinguismo – língua portuguesa/línguas moçambicanas – com a gramatização das línguas nacionais, a escolarização dessas mesmas línguas e seu uso efetivo na administração pública.

Da colonização aos dias de hoje, muito há ainda a ser discutido sobre o discurso político e a questão linguística em Moçambique. Em um texto em que discuti as relações político-linguísticas entre linguística e eco-

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nomia (MARIANI, 2008), observei que, nos dias atuais, há que se prestar atenção crítica a outros discursos políticos que vêm sendo produzidos com a incorporação de ideias que significam a língua como variável econômica. Alguns linguistas, por sua vez, em seus comentários, afirmam que um dado precisa ser acrescentado pelos políticos e pelos economistas ao observarem as relações entre as línguas e o mercado de trabalho: a relação custo-bene-fício na aquisição de uma segunda língua por parte do trabalhador, afinal trata-se de um projeto custoso e de médio prazo de aquisição de um bem com uma finalidade específica. A não ser que haja um incentivo governa-mental, ou a perspectiva de um incremento pecuniário, os trabalhadores tendem a permanecer apenas com sua própria língua materna. Mas seria esse, realmente, o ponto principal? A questão seria a de aprendizagem de uma nova língua ou a de abrir mão de uma língua materna em nome de vantagens financeiras?

Chamei a atenção também para um outro discurso político-eco-nômico o qual proclama os benefícios e a inevitabilidade da globalização enquanto formação de um mercado mundial único, com uma moeda co-mum e uma língua comum. Nesses discursos, afirma-se: “a multiplicidade de línguas é um obstáculo ao comércio e à mobilidade do trabalho e da tecnologia”. (O’BRIEN apud COULMAS, 1992., p. 121)

Assim, fronteiras linguísticas seriam elementos que impediriam uma integração econômica, sendo que o problema se acentuaria sobretudo para os países mais pobres, onde para muitos, a existência e a permanên-cia do multilinguismo pode desacelerar a modernização. Para este tipo de discurso, uma economia “ideal” supõe uma única língua.

Torno a perguntar: mas seria esse, realmente, o ponto principal? A questão seria abrir mão das línguas maternas, autóctones, em nome de um crescimento econômico nacional?

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NOTAS1 Este texto não seria possível sem a ajuda e o apoio de muitos pesquisadores brasileiros e moçambicanos. Agradeço, especialmente, a Rita Chaves (USP) que, com infinita paciên-cia, me abriu espaço para que eu pudesse contactar pesquisadores, políticos e intelectuais quando chegasse em Maputo, capital de Moçambique, para fazer esta pesquisa. Fica re-gistrado, igualmente, meu agradecimento a Laura Padilha (UFF), por seu estímulo cons-tante que incluiu o empréstimo de livros preciosos. Em Maputo, fica aqui meu enorme agradecimento à generosidade do historiador Antonio Sopa, diretor do Arquivo Histórico, que foi incansável na busca de materiais para meu trabalho. Também agradeço a Matheus Ângelus, diretor da biblioteca da embaixada de Portugal em Maputo, pela confiança no empréstimo de material de pesquisa. Para a linguista Perpétua Gonçalves, fica meu agra-decimento pela esclarecedora conversa no jardim do hotel. Da mesma forma, com José Luiz Cabaço, a conversa sobre a história e os rumos econômicos e políticos de uma revolução foi fundamental para compreender a complexa historicidade que perpassa a questão linguística em Moçambique. Quero mencionar, também, a relevância da intensa e extensa produção teórico-analítica de meus colegas pesquisadores integrantes do projeto História das Ideias Lingüísticas, cuja contribuição está registrada nessas páginas. Por fim, sem o apoio da bolsa de produtividade do CNPq não teria sido viável viajar para Maputo e retornar com o material que alimenta o texto em tela.

Page 20: LÍNGUA, COLONIZAÇÃO E REVO- LUÇÃOEu procurava falar as duas línguas. Hoje ainda percebo perfeitamente. Falo o que for preciso falar, mas não correntemente. E eu sinto isso como

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2 Parte da entrevista concedida pelo poeta moçambicano José Craveirinha à professora e pesquisadora Rita Chaves (2005).

3 Firmino menciona que a televisão em Moçambique não tem uma transmissão para todo o pais, atingindo sobretudo regiões urbanas, onde há uma concentração de falantes de língua portuguesa. A rede RTK, porém, apresenta seu noticiário em Xichangana. (FIR-MINO, 2006, p. 66, nota 60)

4 Firmino baseia-se em Mondlane, 1976 [1969] e em Newitt, 1995.

5 Conforme Firmino, citando Isaacman & Isaacman (1983) “As possibilidades de um negro africano ir à escola eram muito fracas (...). Por volta de 1960, apenas 400.000 crianças de um universo de aproximadamente 3 milhões da população em idade escolar freqüentavam a escola; mais de 90% destas estavam inscritas nas três primeiras classes e apenas 1% freqüentava o liceu.” (Firmino, nota 71, pg. 69) Esses decretos, e outros, estão relacionados em Mariani 2005.

6 Veja-se, por exemplo, os dizeres dos constituintes de 1823, a disputa quanto ao nome da língua nacional, as querelas travadas no âmbito literário no final do século XIX, etc.

7 Cf. Pêcheux, quando trata das revoluções burguesas européias ([1981], 2004, p. 37). Podemos ter em mente que, já no século XVIII, Marquês de Pombal dá início ao projeto de unificação lingüística, quando impõe a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa em todo o território da colônia, banindo o uso do tupi jesuítico, a língua geral até então amplamente falada.

8 A categoria ‘arquivo’ é compreendida aqui como um conjunto heterogêneo de monu-mentos textuais que dizem respeito a uma determinada temática, conjunto considerado em termos do seu funcionamento discursivo. Dito de outra maneira, em tal conjunto é possível depreender a discursividade (ou seja, a inscrição de efeitos linguísticos materiais na história) que rege as configurações de enunciados múltiplos e dispersos que podem ser depreendidos em tal conjunto heterogêneo. Criticamente, essa discussão foi realiza-da levando em consideração que em qualquer monumento textual se produz um “poli-ciamento dos enunciados”, uma “normalização asséptica” dos sentidos produzidos, um “apagamento seletivo da memória histórica” que organiza os arquivos e que está também constituindo a discursividade em torno da língua como objeto simbólico. (PÊCHEUX, 1994) Ler o arquivo hoje, desse ponto de vista proposto, é fazer trabalhar “a discursivi-dade como inscrição de efeitos lingüísticos materiais na história”. (PÊCHEUX, 1994,58) Ou, como afirmam Guilhaumou e Maldidier (1989, 1984), “o arquivo não é o reflexo passivo de uma realidade institucional, ele é, dentro de sua materialidade e diversidade, ordenado por sua abrangência social; ele permite uma leitura que traz à tona dispositivos e configurações significantes...” (Guilhaumou e Maldidier, 1994, pg. 164)

9 Desde o início da colonização da África, os termos “indígena” e “indigenato” figuram no discurso da colonização portuguesa como forma de fazer referência aos povos africanos.

10 A UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), a UNANI (União Na-cional para Moçambique Independente) e a MANU (União Africana Nacional de Mo-çambique) . (Muiuane, 2006, p. 20)

11 Em outro artigo discuto os primeiros textos publicados em jornais moçambicanos sobre a questão linguística. Cf. Mariani, 2011, Revista Letras da Universidade Federal de Santa Maria.

12 Vale a pena citar o comentário de Firmino: “De facto, já ouvi muitas pessoas ques-tionarem a moçambicanidade de alguém da seguinte forma: ‘Que tipo de moçambicano é este que não conhece uma língua moçambicana?’” (FIRMINO, 2006, p. 66, nota 64)

13 Novamente, outro comentário de Firmino: “em Maputo, dirigir-se a uma pessoa des-conhecida em língua autóctone pode ser encarado como uma ofensa e um sinal de ‘triba-lismo’”. (FIRMINO, 2006, p. 144) Firmino chama essa apropriação do portugu6es pelo moçambicano como “nativização”.