livro_pensando uma agenda para o brasil: desafios e perspectivas

132

Upload: inesc-crianca-adolecente-no-parlamento

Post on 22-Mar-2016

215 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

TRANSCRIPT

Page 1: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas
Page 2: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 1

Pensando uma agenda para o Brasildesafi os e perspectivas

liv_inesc_01h.indd 1liv_inesc_01h.indd 1 21/12/2007 13:48:5721/12/2007 13:48:57

Page 3: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS2

Seminário “Pensando uma agenda para o Brasil: desafi os e perspectivas”Brasília, 26 e 27 de junho de 2007

Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Atila RoqueLuciana Costa

REVISÃO E EDIÇÃO

Ana Cris Bittencourt

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Guto Miranda

FOTOGRAFIAS (GENTILMENTE CEDIDAS)

Agência Brasil – RadiobrásMarcus Vini

TIRAGEM

2.500 exemplares

IMPRESSÃO

Gráfi ca Athalaia

COLEGIADO DE GESTÃO

Atila RoqueIara PietricovskyJosé Antônio Moroni

CONSELHO DIRETOR

Armando RaggioCaetano Araújo Fernando PaulinoGuacira CésarJean Pierre LeroyJurema WerneckLuiz Gonzaga de AraújoNeide CastanhaPastor Ervino Schmidt

EQUIPE

Alessandra CardosoAlexandre CiconelloAna Paula FelipeEdélcio VignaEliana GraçaJair Barbosa Jr.Luciana CostaLucídio BicalhoRicardo Verdum

INSTITUIÇÕES QUE APÓIAM O INESC

ActionAid; Charles Stewart Mott Foundation; Christian Aid; EED; Fastenopfer; Fundação Avina; Fundação Ford; Instituto Heinrich Böll; KNH; Norwegian Church Aid; Oxfam Novib; Oxfam GB

Instituto de Estudos Socioeconômicos/INESC. Pensando uma agenda para o Brasil: desafi os e perspectivas._ Brasília, 2007

132 p.:ilInclui referências bibliográfi casISBN 978-85-87386-09-0

1. Brasil, políticas públicas. 2. Brasil, política e governo. I Título.

CDU: 364(81)

© 2007, INESC

Realização Apoio

liv_inesc_01h.indd 2liv_inesc_01h.indd 2 21/12/2007 13:49:4921/12/2007 13:49:49

Page 4: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 3

Sumário

Apresentação 4 A T I L A R O Q U E , I A R A P I E T R I C O V S K Y E J O S É A N T Ô N I O M O R O N I

Sinais opostos e dúvidas: a marca do início do segundo governo Lula 6 J O Ã O S I C S Ú

Desenvolvimento como liberdade: quais caminhos? 20 C E L I A L E S S A K E R S T E N E T Z K Y

Controle cidadão, ferramenta contra a corrupção política 34 L Ú C I A A V E L A R

Lula, o PT e a política: a danação de Fausto 46 F R A N C I S C O D E O L I V E I R A

Discriminação e violência – obstáculos na conquista dos direitos 52

S U E L I C A R N E I R O

Direito à segurança, um desafi o para o Brasil 68 S I LV I A R A M O S

Direitos humanos, desigualdades e contradições 86 P A U L O C É S A R C A R B O N A R I

Ousadia com doses de ponderação, receita da política externa de Lula 104 M A R I A R E G I N A S O A R E S D E L I M A

Ambigüidade acompanha negociações comerciais brasileiras 116 A D H E M A R S . M I N E I R O

Programação do seminário 128

liv_inesc_01h.indd 3liv_inesc_01h.indd 3 21/12/2007 13:49:4921/12/2007 13:49:49

Page 5: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS4

ApresentaçãoUm outro Brasil é possível

É com enorme prazer que o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) traz a pú-blico esta coletânea, resultado do seminário Pensando uma agenda para o Brasil: desafi os e perspectivas, concebido com os objetivos de provocar discussão e gerar subsídios para a refl exão sobre os caminhos alternativos de desenvolvimento que representem um contraponto ao modelo atualmente hegemônico.

O seminário, realizado em Brasília nos dias 26 e 27 de junho de 2007, foi dividi-do em quatro blocos: modelos de desenvolvimento; participação e controle social; direitos humanos e desigualdades; e política internacional. Contou com a partici-pação de estudiosos(as) e representantes de organizações da sociedade civil.

Em grande medida, esta publicação é parte de um esforço empreendido des-de longa data pelo Inesc, juntamente com um conjunto de organizações e redes da sociedade civil brasileira, de ampliação do marco das discussões sobre de-senvolvimento e democracia. Acreditamos, como sempre, que é preciso romper os limites do possível e não perder o impulso utópico que desde sempre emba-lou as lutas sociais no Brasil. A ladainha da falta de alternativas e o conformis-mo diante das tragédias sociais evitáveis não podem mais continuar.

Reinventar o desenvolvimento à luz da democracia, da sustentabilidade e dos direitos humanos é, provavelmente, o principal desafi o do século XXI. Essa é uma tarefa de muitos e exige disposição para o diálogo e para o debate que contemplem a diversidade das relações sociais em nossas sociedades, em parti-cular na sociedade brasileira.

Os artigos reunidos neste livro formam não apenas um diagnóstico inquie-tante dos problemas com os quais a sociedade brasileira se debate, mas, sobretu-do, abrem um leque de questões e desafi os, rompendo com as falsas dicotomias que têm pautado as políticas econômicas e sociais governamentais, ancoradas há pelo menos duas décadas nos paradigmas neoliberais.

liv_inesc_01h.indd 4liv_inesc_01h.indd 4 21/12/2007 13:49:4921/12/2007 13:49:49

Page 6: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 5

Sem a pretensão de erigir modelos, os trabalhos apresentados no seminário deixam claro que o país que temos – e as políticas públicas, sejam elas econô-micas ou sociais – são o resultado de escolhas conscientes, ou inconscientes, em benefício de uns e em detrimento de outros. As desigualdades persistentes, a violência seletiva e a concentração de riquezas nas mãos de poucos não são dados inevitáveis da realidade. E, sobretudo, evidenciam a urgência de superar um modelo que separa em mundos diferentes o econômico do social, com graves conseqüências para a democracia e os direitos humanos.

O Inesc espera, dessa forma, fomentar o debate, cada vez mais urgente, so-bre a questão do desenvolvimento democrático em um contexto de rápidas mu-danças e desafi os para o Brasil.

Colegiado Diretor do Inesc Atila RoqueIara Pietricovsky José Antônio Moroni

liv_inesc_01h.indd 5liv_inesc_01h.indd 5 21/12/2007 13:49:4921/12/2007 13:49:49

Page 7: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS6

6

FOTO ROOSEWELT PINHEIRO/ABR

liv_inesc_01h.indd 6liv_inesc_01h.indd 6 21/12/2007 13:49:4921/12/2007 13:49:49

Page 8: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 7

Sinais opostos e dúvidas: a marca do início do segundo governo LulaA primeira versão deste capítulo foi escrita em abril de 2007

J O Ã O S I C S Ú

Professor-doutor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)www.ie.ufrj.br/moeda/sicsu – [email protected]

O primeiro mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2006) foi mar-cado por uma política econômica conservadora, que privilegiou o controle da infl a-ção. Manter a infl ação sob controle é fundamental. Contudo, há diversas formas de fazer esse controle. O governo Lula optou por tocar o “samba de uma nota só”: elevar a taxa de juros básica da economia. Esse é um instrumento efi caz: funciona! Se a taxa de juros de curto prazo é alta e é esperado que seja mantida nesses pata-mares, haverá uma forte propensão ao investimento fi nanceiro em detrimento do investimento produtivo – o que causa redução do ritmo de crescimento econômico e desemprego. Sentindo a falta de procura por seus produtos, o empresariado se inibe para reajustar preços. O “samba de uma nota só” é funcional, mas perverso, causa desemprego. Nesse “samba”, sem perversidade, não haveria funcionalidade.

Em grande medida, a infl ação brasileira dos últimos anos foi impulsionada pe-los chamados preços administrados. São preços insensíveis a variações da oferta e da demanda, tais como: energia elétrica, telefonia, transporte urbano, pedágio, planos de saúde, etc. Tais preços têm variado, em média, a uma velocidade signifi -cativa – o dobro dos chamados preços livres, como mostra a Tabela 1. Portanto, o que o Banco Central do Brasil fez foi manter sob forte pressão baixista os preços livres – sensíveis a variações da taxa de juros e à oferta/demanda – para que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geogra-fi a e Estatística (IBGE) e considerado o índice ofi cial da infl ação brasileira porque é adotado pelo regime de metas de infl ação, fosse mantido em patamares aceitáveis.

Alternativamente, caso o governo federal, em conjunto com os governos es-taduais e municipais, tivesse uma política de administração dos preços admi-nistrados, a infl ação brasileira e a taxa de juros determinada pelo Banco Cen-tral do Brasil – que ainda é muito alta, como mostra a Tabela 2 – seriam menores. Mas, para tanto, seria necessário abandonar o “samba de uma nota só”.

liv_inesc_01h.indd 7liv_inesc_01h.indd 7 21/12/2007 13:49:5021/12/2007 13:49:50

Page 9: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS8

Tabela 1 – Variação do IPCA, preços livres e administrados no período 2000–2006 (em %)

IPCA 64.62

Preços livres 50.67

Preços administrados 103.20

Óleo diesel 207.17

Passagem de avião 205.00

Correio 150.00

Gás de botijão 146.51

Pedágio 133.74

Energia elétrica residencial 129.70

Ônibus interestadual 111.67

Ônibus urbano 111.16

Taxa de água e esgoto 109.98

Gás encanado 107.55

Ônibus intermunicipal 105.03

Gasolina 102.26

Óleo 101.67

Álcool 98.66

Telefone fi xo 97.74

Navio 81.38

Plano de saúde 80.04

Telefone público 78.53

Metrô 74.88

Tabela 2 – Taxa de juros básica média no ano (em %)

2000 17,59

2001 17,48

2002 19,10

2003 23,29

2004 16,25

2005 19,13

2006 15,29

2007 12,68 (até 21/6)

Fonte: IBGE.

Fonte: Banco Central do Brasil.

liv_inesc_01h.indd 8liv_inesc_01h.indd 8 21/12/2007 13:49:5021/12/2007 13:49:50

Page 10: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 9

PERDAS E DANOSAlém da política monetária de elevadas taxas de juros, o primeiro mandato do governo Lula caracterizou-se por ampliar a abertura fi nanceira da economia brasileira – iniciada na primeira parte da década de 1990 e aprofundada duran-te os governos de Fernando Henrique Cardoso (1994–1998/ 1999–2002). Embora essas medidas não tenham tanta visibilidade quanto as elevadas taxas de juros, são danosas à economia. São danosas porque, cada vez mais, deixam a determi-nação da taxa de câmbio (um preço estratégico) submetida ao humor e às expec-tativas das grandes instituições fi nanceiras internacionais e nacionais.

O fl uxo livre de entrada e saída de capitais – convertidos de dólares em reais no movimento de entrada e de reais em dólares no movimento de saída – valoriza ou desvaloriza a taxa de câmbio de acordo com o humor de 30, 40 ou, no máximo, 50 fi nancistas instalados em São Paulo, Nova York, Londres e Frankfurt. Tais movimentos enfraquecem, portanto, o poder público, no caso o Banco Central do Brasil, como instituição capaz de fazer uma política cam-bial compatível com a defesa do balanço de pagamentos e com a exportação de produtos manufaturados.

Durante o primeiro mandato do governo Lula, várias medidas foram adota-das para ampliar a fi nanceirização internacional da economia brasileira. Duas dessas merecem destaque. A primeira foi a isenção para estrangeiros de im-postos sobre ganhos fi nanceiros obtidos com a aquisição de títulos públicos – o que, obviamente, aumenta a atratividade dos títulos públicos federais, traz capitais estrangeiros para o país e valoriza a taxa de câmbio.

A segunda medida foi o fi m da cobertura cambial integral1 sobre as expor-tações. Agora, o empresariado exportador pode deixar até 30% das receitas das suas vendas aplicadas no exterior. Essa medida, no momento, tem sido inócua porque, obviamente, os empresários exportadores estão internalizando as suas receitas integralmente com o objetivo de valorizar o seu capital, aplicando-o tanto na bolsa de valores como em títulos públicos.

Os efeitos danosos da fl exibilização da cobertura cambial sobre as exporta-ções serão sentidos exatamente no momento em que houver uma nova fuga de ca-pitais para o exterior – cujas conseqüências são conhecidas: desvalorização cam-bial abrupta, infl ação, elevação da taxa de juros, corte de gastos públicos e pedido de socorro/submissão às condicionalidades do Fundo Monetário Internacional (FMI). Nesse momento, os fi nancistas estarão retirando do país os recursos que comandam e o empresariado exportador exercerá o seu direito de manter 30% das receitas de suas vendas no exterior: se experts em fi nanças estão retirando seus recursos, por que o empresariado exportador faria o contrário?

1 Cobertura cambial é a obrigação de internalização de dólares resultantes de vendas no exterior (exportações).

liv_inesc_01h.indd 9liv_inesc_01h.indd 9 21/12/2007 13:49:5121/12/2007 13:49:51

Page 11: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS10

Em resumo, essa medida impôs a mesma lógica de movimento do capital fi nanceiro a 30% do capital comercial referentes às exportações. Cabe mencio-nar que diversos países em desenvolvimento pesquisados possuem cobertura cambial integral sobre as exportações: Tailândia, Venezuela, Malásia, África do Sul, Índia, Chile, Colômbia, Argentina, Coréia do Sul e Marrocos.

A administração fi scal brasileira durante o primeiro mandato do governo Lula também contribuiu para manter a economia semi-estagnada e para perpe-tuar as características e limitações dos direitos sociais nos modelos focaliza-dos. As altas taxas de juros e a formação de elevados superávits primários com-binados com o baixo crescimento econômico geraram distorções alarmantes na distribuição orçamentária realizada pelo governo federal. O que foi gasto, em média, em um ano para pagar o serviço da dívida demoraria 10 anos para ser gasto em educação; oito anos na rubrica assistência social; e cinco anos na ru-brica saúde. Essa análise é confi rmada por fonte ofi ciais:

... os dados relativos ao desempenho corrente das fi nanças sociais federais demonstram que o movimento de disputa distributiva no interior do orçamento público federal se dá a favor dos juros e encargos da dívida pública, em detrimento de todas as demais categorias de gasto. (Ipea,2007, p.12)

Se, por um lado, o esforço de geração de superávits fi scais primários limi-tava os gastos em saúde e educação, por exemplo; por outro, as elevadas taxas de juros impunham gastos fi nanceiros ao governo superiores aos superávits primários, aumentando a dívida pública. Resumindo: a política fi scal foi inca-paz de impedir o aumento da dívida pública e foi concentradora de renda, como mostra a Tabela 3. Gastos públicos nas rubricas saúde, educação, assistência social e organização agrária tendem a ser distribuidores de renda enquanto gastos com despesas fi nanceiras são concentradores de renda.

Tabela 3 – Evolução dos gastos do governo federal (em bilhões de R$ correntes)

2003 2004 2005 2006

Assistencia social 8,4 13,9 15,8 21,5

Saúde 27,2 32,9 36,5 39,7

Educação 14,2 14,5 16,2 17,3

Segurança pública 2,4 2,8 3,0 3,4

Organização agrária 1,4 2,6 3,6 4,2

Despesas com pagamento de juros 145,2 128,3 157,2 163,5

Superávit primário 66,17 81,11 93,5 90,11

Estoque da dívida 913,14 956,99 1002,48 1067,36

Dívida/PIB 53,72% 49,29% 46,67% 45,95%

Fonte: Siafi – STN/CCONT/Geinc e Banco Central do Brasil.

liv_inesc_01h.indd 10liv_inesc_01h.indd 10 21/12/2007 13:49:5121/12/2007 13:49:51

Page 12: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 11

Esse programa orçamentário é muito limitado para reduzir as desigualda-des de renda e patrimoniais existentes no país, que são socialmente inaceitá-veis. É muito limitado também para promover um amplo programa social de equalização de oportunidades e acessos a direitos básicos, tais como: saúde, educação, segurança pública, moradia, cultura e lazer.

As melhoras somente são sentidas pelos analistas que valorizam, exces-sivamente, casas decimais, como mostra a Tabela 4, segunda coluna. Embora a desigualdade tenha se reduzido (redução do índice de Gini) no Brasil, esta se refere basicamente às rendas do trabalho. As remunerações decorrentes do trabalho estão menos desiguais porque houve elevação real do salário mínimo e redução do desemprego. Mas os salários ocupam uma parcela cada vez menor do PIB. Em 2000, representavam 32,1%; em 2004, caíram para 30,8%, segundo dados do IBGE.

Tabela 4 – Coefi ciente de Gini no Brasil e em países selecionados

Ano Coefi ciente Gini – Brasil

Coefi ciente de Gini de alguns países selecionados em anos recentes

Comentário

1995 0.600 Dinamarca 0,25

1996 0.602 Suécia 0,25

1997 0.602 Noruega 0,26

1998 0.600 Alemanha 0,28

1999 0.593 Canadá 0,33

2000 n.d. França 0,33

2001 0.596 Bélgica 0,33

2002 0.589 Suíça 0,34

2003 0.583 Espanha 0,35

2004 0.572 Reuno Unido 0,36

2005 0.569 Estados Unidos 0,41

Mede o grau de desigualdade exis-tente na distribuição de indivíduos, segundo a renda advinda do trabalho, de benefícios previdenciários e de ou-tras transferências públicas. Seu valor varia de 0, quando não há desigualda-de – as rendas de todos os indivíduos têm o mesmo valor – a 1, quando a desigualdade é máxima – apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade e as rendas de todos os outros indivíduos são nulas.

Fonte: Siafi – IpeaData e Relatório do Desenvolvimento Humano da ONU, 2006.

liv_inesc_01h.indd 11liv_inesc_01h.indd 11 21/12/2007 13:49:5121/12/2007 13:49:51

Page 13: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS12

NOVOS RUMOSO Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo federal no início do ano, é um importante sinal e, talvez, o início de uma mudança de rota, ainda que muito tênue. Há no PAC uma novidade importante de concepção, que representa um rompimento com a era Malan–Palocci: o Estado e ações de governo passaram a ser vistas como necessárias e efi cazes para promover o crescimento econômico. O PAC é um programa que apenas visa ao crescimento, nada mais – é uma mera constatação, e não uma crítica.

Crescer é fundamental para que sejam destravadas as portas da redução das desigualdades e da promoção da justiça social. Com crescimento econômico, aumentam a arrecadação do governo e sua autoridade política que auxiliam na tomada de decisões mais ousadas e verdadeiramente redistributivas, tais como aumentar, vigorosamente, os gastos nas rubricas saúde, educação, previdência social etc.

O PAC representa uma mudança de concepção do governo Lula em seu segundo mandato: expressa uma nova forma de pensar a relação entre duas instituições essenciais para o desenvolvimento social de um país: o Estado e o mercado. Tais instituições devem interagir por meio de ações de governo para estimular o crescimento econômico e promover justiça e segurança social. Com o PAC, o governo tenta reequilibrar a disputa sobre os rumos da economia bra-sileira, que estava comandada, exclusivamente, por idéias estagnacionistas e concentradoras de renda.

O programa descarta a idéia de que o Estado ocupa o lugar da iniciava privada, de que o investimento público expulsa o investimento privado da economia – fenô-meno conhecido na academia como crowding-out2. Pelo contrário. O PAC adota a concepção do crowding-in:3 o investimento público atrai o investimento privado real para a economia Na concepção do crowding-out, o investimento público ex-pulsa o investimento privado e/ou causa infl ação pelo excesso de demanda. Na al-ternativa crowding-in, não haverá excesso de demanda porque a taxa potencial de crescimento anual do PIB da economia brasileira será superior a 5% se o conjunto de investimentos públicos proposto no programa for realizado.

Um ponto crucial do programa foi a ampliação do escopo da política fi scal que, até então, tinha objetivo restrito: tão-somente reduzir a relação dívida/PIB, como mostra a Tabela 3. A política fi scal do PAC objetiva também promover o cresci-mento – objetivo consagrado pelas políticas fi scais keynesianas nos anos de ouro

2 Na concepção do crowding-out, a economia somente pode crescer a uma determinada taxa considerada natural dada uma série de condições estruturais e legais, que não podem ser alteradas no curto prazo. Signifi ca que a taxa potencial de crescimento do PIB está dada pelas condições passadas, tratadas como perenes.3 O crowding-in baseia-se na possibilidade de alteração da taxa de crescimento potencial do PIB. Assim, o investi-mento público não expulsaria o investimento privado; ao contrário, abriria espaço para sua expansão.

liv_inesc_01h.indd 12liv_inesc_01h.indd 12 21/12/2007 13:49:5321/12/2007 13:49:53

Page 14: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 13

do capitalismo durante o século passado. Nesse quesito, é fundamental (tal como foi proposto no PAC) que o investimento público seja fi nanciado pela redução do superávit primário e/ou pela redução das despesas fi nanceiras do governo.

A redução de gastos correntes como fonte de fi nanciamento dos gastos com investimentos públicos poderia ser uma medida inócua. Por exemplo, uma pes-soa empregada que recebe, de forma indevida, um benefício do programa Bolsa Família, realiza gastos, gera empregos nas fábricas de bens de consumo. Cortar esse benefício (uma medida correta) para transformá-lo em gasto de investi-mento é o mesmo que desempregar nas fábricas de bens de consumo para em-pregar na construção de estradas, por exemplo.

A regra de contenção dos gastos públicos com pessoal contida no PAC foi uma concessão (in)devida às pressões de cunho liberal, que desejam restringir o tamanho do serviço público, como mostra o Quadro 1. Tal medida não repre-senta garantia de ausência de descontrole fi scal. Porém, limita a capacidade de o governo fortalecer o Estado, contratando pessoal qualifi cado que poderia receber remunerações adequadas. Limita a capacidade de conceder reajustes ao funcionalismo público para que o Estado possa manter em seus quadros pes-soal de primeira linha.

O PAC é, fundamentalmente, um programa de gastos de investimento públi-co para estimular o crescimento. A regra estabelecida para conter gastos com pessoal não tem qualquer conexão técnica com seu objetivo, é tão-somente uma concessão (in)devida às pressões do pensamento conservador, muito presente na mídia que deseja o Estado mínimo. Um país em processo de crescimento vigoroso e continuado precisará contratar para o serviço público mais e melhores engenhei-ros, fi scais, policiais, professores, médicos... que devem ser muito bem pagos.

Quadro 1 – Controle da expansão da despesa de pessoal da União

Descrição: limitação do crescimento anual da folha de pessoal (incluindo inativos) à taxa de infl ação (IPCA), acrescida de um índice real de 1,5% ao ano, resguardados os acordos consolidados na legislação até o fi m de 2006. Medida a ser implementada a partir de 2007, por 10 anos.

Fonte: Ministério da Fazenda, Programa de Aceleração do Crescimento, p.12. Disponível em www.fazenda.gov.br

ESTAGNACIONISTAS NA FRENTEBasicamente, há uma clara disputa por dois modelos econômico-sociais dentro e fora do governo. De um lado, um modelo desenvolvimentista-distributivista; de outro, um modelo estagnacionista-concentrador – este último formado por duas vertentes: (i) muitas instituições do sistema fi nanceiro nacional e inter-nacional e (ii) aquela que atua na economia real, cujos atores são as empresas agrominerais exportadoras.

liv_inesc_01h.indd 13liv_inesc_01h.indd 13 21/12/2007 13:49:5321/12/2007 13:49:53

Page 15: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS14

O segundo modelo tem sido hegemônico. Suas “verdades” são repetidas nos jornais (sofi sticados e de massa), nas revistas (semanais ou de fofocas te-levisas), nas rádios (AM e FM) e nas emissoras de televisão (de canal aberto ou fechado). São repetidas também nas universidades, nos cursos de graduação e pós-graduação. É um movimento coordenado que exerce infl uência em diver-sas frentes, seja na intelectualidade, seja no modo de pensar da pessoa comum, pouco informada. É um movimento volumoso e persistente. Seu método prin-cipal é o da repetição: idéias são repetidas de forma incessante até que sejam transformadas em pensamentos que são deglutidos com sabor.

Esse movimento orquestrado pelos estagnacionistas é tão vigoroso que faz com que grande parte de trabalhadores(as) se sinta culpada pelo seu desemprego, já que não foi capaz de se qualifi car. Esse movimento também faz com que muitas pessoas acreditem que para acabar com a pobreza bastaria esterilizar as mulheres pobres. Difi cultar a procriação das pessoas pobres seria a solução e não, como é o correto, construir mecanismos de ascendência e estabilidade de renda e social.

Os fi nancistas mantêm elevadas taxas de juros; seja a taxa de juros básica defi nida pelo Banco Central do Brasil, seja o spread cobrado pelas instituições fi nanceiras privadas, mesmo em operações de baixíssimo risco, como o crédito consignado. Tal modelo é estagnacionista porque:

(i) mantém a atratividade dos ativos fi nanceiros vis-à-vis o investimento produtivo;

(ii) não reduz, de forma signifi cativa, as despesas fi nanceiras do governo fe-deral que devem fi nanciar o investimento público e programas sociais;

(iii) gera um clima de desânimo generalizado; (iv) atrai para o país recursos fi nanceiros em quantidade tão volumosa que,

apesar de o Banco Central estar comprando dólares em quantidade que jamais comprou, o câmbio se valoriza a tal ponto que estimula uma ver-dadeira reestruturação produtiva da economia brasileira rumo ao pas-sado da primarização.

Mesmo com a valorização do câmbio, grandes empresas do segmento agro-mineral exportador fortalecem-se e têm ocupado o lugar de proeminência da indústria (cujo pecado original é agregar valor). Apesar da valorização cambial, tem sido possível exportar produtos básicos porque, como é sabido, os preços das commodities subiram muito nos últimos anos em conseqüência da deman-da decorrente do crescimento mundial contínuo e elevado.

Em termos de valor, a pauta de exportações brasileira já é principalmen-te constituída por produtos primários ou semi-elaborados. O Brasil é um dos maiores exportadores de carnes do mundo (bovina, suína e de frango). E tam-bém de café verde, açúcar, álcool, milho, algodão, couro bruto, fumo, soja, suco de laranja, toras de madeira, amêndoa, minério de ferro etc. Em grande medida, a exportação desses produtos é responsável pelos elevados saldos comerciais do país no exterior.

liv_inesc_01h.indd 14liv_inesc_01h.indd 14 21/12/2007 13:49:5321/12/2007 13:49:53

Page 16: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 15

A serviço do modelo estagnacionista-concentrador, os fi nancistas utilizam o argumento da suposta produtividade, advinda de uma vocação natural do Brasil para a produção de produtos básicos ou semi-elaborados, para explicar o elevado saldo comercial brasileiro. Isso explicaria a valorização cambial (dólar barato) – e não a elevada taxa de juros, cujos responsáveis são esses fi nancistas e que, ao fi m e ao cabo, acaba por benefi ciar as suas instituições. O modelo estagnacionista é concentrador de renda porque faz uma enorme transferência via orçamento: cerca de R$ 150 bilhões por ano são pagos a título de serviço da dívida pública – dados confi rmados pela seguinte análise de órgão governamental:

... observa-se que se cresce a carga tributária em relação ao PIB, crescem bem menos que proporcionalmente os aportes fi scais para o gasto social e para investimentos diretos. A diferença de cres-cimento dessas variáveis pode ser explicada pelo peso crescente dos juros sobre a dívida. Com isso, tem-se uma situação explícita de transferência de renda do lado real da economia para o lado fi nanceiro... . (Ipea, 2007, p.12)

E, ademais, tal modelo é concentrador porque estimula a constituição de um sistema produtivo de ricos (donos dos grandes negócios agrominerado-res) e classe trabalhadora desqualifi cada com baixa renda. No fi nal de tudo, é o modelo das ricas instituições fi nanceiras, dos usineiros e bóias-frias cortadores(as) de cana.

POR UM OUTRO MODELOO modelo desenvolvimentista é distributivista. Busca estimular tanto o mer-cado interno como as exportações de produtos manufaturados. Apoiar o cres-cimento econômico no mercado interno é fundamental porque a demanda do-méstica pode ser, em grande medida, controlada pelo governo, por meio de seus gastos.

liv_inesc_01h.indd 15liv_inesc_01h.indd 15 21/12/2007 13:49:5321/12/2007 13:49:53

Page 17: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS16

Apoiar o crescimento exclusivamente nas exportações é deixar o emprego doméstico fl utuando ao sabor de ciclos da economia internacional. Além disso, a ampliação do mercado doméstico possibilita a universalização do acesso a bens de consumo à sociedade brasileira.

O crescimento apoiado na industrialização – que tende a ser intensiva em trabalho, possibilita a formalização das relações trabalhistas, o aumento da ar-recadação de impostos, gera empregos mais qualifi cados e com remunerações mais elevadas, desenvolvimento tecnológico e necessidade de inovação – é o único caminho rumo à redução das desigualdades e elevação da renda do tra-balho. Assim como o bóia-fria necessita do usineiro para sobreviver, a classe média precisa da indústria para emergir, existir e crescer.

Além de ser concentrador de renda, o modelo estagnacionista tem se mos-trado bastante nocivo ao meio-ambiente. Tem-se devastado natureza para se obter pastos. Tem-se devastado natureza para se obter plantação de soja. Não há a menor dúvida que, por vezes, a natureza deve ser substituída. Tratam-se de escolhas. Portanto, projetos e critérios devem ser elaborados para que custos e benefícios possam ser medidos. Se, por um lado, a natureza não pode ser con-siderada um santuário intocável, podendo ser substituída; por outro, não pode ser substituída sem que custos sejam inferiores aos benefícios que possam ser distribuídos à sociedade no curto e no longo prazos.

Além do sacrifício não planejado do meio-ambiente, as exportações brasi-leiras são muito pesadas e valem pouquíssimo. Exportar peso sacrifi ca, dema-siadamente, estradas e portos. Uma tonelada de soja custa apenas U$ 200; de milho custa U$ 75; e de algodão, U$ 50. Para se fazer uma comparação com pro-dutos elaborados brasileiros, a tonelada do carro popular custa U$ 5.500 .

Segundo o presidente Lula, em discurso em outubro de 2006, para trabalhado-res (as) da Zona Franca de Manaus, “um chip vale mais que uma tonelada de minério de ferro ou um caminhão de soja” . As operações tapa-buraco de estradas do governo são necessárias, mas serão sempre insufi cientes. As exportações brasileiras têm crescido de forma demasiada nos últimos anos. Signifi ca que mais e mais cami-nhões supercarregados vão trafegar em nossas estradas a cada ano e engarrafar os portos brasileiros. Portos e estradas estarão sempre com fi las de caminhões. O ponto fundamental a ser discutido não é somente a precariedade da infra-estrutura brasileira, mas qual a infra-estrutura adequada àquele modelo de crescimento eco-nômico e desenvolvimento social escolhido (o estagnacionista-concentrador ou o desenvolvimentista-distributivista ?).

ESPERANÇA E DESÂNIMOA tensão nas camadas mais bem informadas da sociedade e no governo resi-de na dúvida, nos sinais nebulosos emitidos. Se, por um lado, o governo man-tém desenvolvimentistas em postos-chave da administração pública; mantém também estagnacionistas em outros tantos. Se, por um lado, apresenta um

liv_inesc_01h.indd 16liv_inesc_01h.indd 16 21/12/2007 13:49:5421/12/2007 13:49:54

Page 18: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 17

programa de aceleração do crescimento com uma nova visão fi scal, desenvolvi-mentista; mantém uma política estagnacionista de juros elevados, câmbio su-pervalorizado e gastos sociais limitados. Os próprios discursos do presidente nos meses de janeiro e fevereiro de 2007 permitiam variadas interpretações e dúvidas; e geram, simultaneamente, esperança e desânimo.

O modelo de crescimento econômico, com taxas elevadas e repetidas, mais bem-sucedido entre os países em desenvolvimento tem sido o asiático. Grosso modo, é um modelo de reduzidas taxas de juros, de câmbio fl utuante, administrado de for-ma que suas exportações sejam bastante competitivas e seus gastos públicos con-centrados em educação, infra-estrutura e absorção/geração de tecnologia.

Os asiáticos têm obtido sucesso: os dez países que mais cresceram nos últi-mos 20 anos são todos asiáticos. A Argentina tem tentado adotar o mesmo mo-delo desde 2003, seu sucesso é indiscutível, tem crescido a uma taxa superior a 8% nesses últimos quatro anos. E, em 2007, está crescendo a esse mesmo ritmo. Porém, o Brasil precisa mais do que crescimento econômico, esse é apenas o ponto de partida para o objetivo fi nal que deve ser o desenvolvimento social. Devemos copiar o modelo de crescimento econômico asiático para alcançar o desenvolvimento social dos países nórdicos.

Idealmente, o crescimento econômico proposto no PAC deve ser impulsio-nado pelo conjunto de políticas macroeconômicas: fi scal, monetária e cambial. Um crescimento impulsionado por essas políticas, acionadas de forma coorde-nada, aumenta a probabilidade de se tornar sustentável, duradouro. A política monetária deve se tornar compatível com o PAC. A política cambial também. O governo está diante de um signifi cativo problema. Será preciso iniciar, des-de já, um processo de compatibilização das políticas macroeconômicas. Será necessário iniciar um processo complexo e difícil. Complexo porque requer en-frentamento com os setores estagnacionistas, e difícil do ponto de vista ope-racional, porque uma desvalorização cambial sempre poderá causar pressões infl acionárias que, por vezes, cobram elevados dividendos políticos.

Será necessário iniciar uma política de desvalorização cambial que, a médio prazo, recupere uma taxa compatível com as exportações de manufaturados. Uma política agressiva de aquisição de reservas por parte do Banco Central associada a uma política de esterilização é o caminho, e já foi iniciado – mas ainda se mos-tra insufi ciente. Ademais, há uma barreira que deve ser observada. O custo para o carregamento de reservas por parte do setor público é a diferença entre a taxa de juros doméstica e a internacional – muito alta no Brasil – e isto reforça a neces-sidade de uma redução mais acelerada da taxa de juros básica, a taxa Selic.

As medidas tributárias adotadas recentemente pelo Ministério da Fazenda, au-mentando as alíquotas de tributação sobre os importados, são corretas, mas insufi -cientes. O problema central é, de fato, a taxa de câmbio. A valorização cambial tem sido defendida pelos estagnacionistas até como uma forma de “higienizar” a eco-nomia: retirará da economia os empresários improdutivos. Argumento lamentável (porque despreza os empresários falidos e as pessoas desempregadas).

liv_inesc_01h.indd 17liv_inesc_01h.indd 17 21/12/2007 13:49:5421/12/2007 13:49:54

Page 19: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS18

A realidade já destruiu este argumento: o Brasil é extremamente produtivo no setor de calçados, produz a baixo custo produto de boa qualidade. Mas as fábricas calçadistas exportadoras fecharam as portas desde que a taxa de câmbio era de R$ 2,10. Um alerta importante – se as taxas de crescimento prometidas pelo PAC forem alcançadas e a taxa de câmbio se mantiver extremamente valorizada, o re-sultado já é conhecido. Haverá, inicialmente, redução do saldo comercial com o exterior (o que já está acontecendo) e, posteriormente, perda de saldo em transa-ções correntes e início de um novo período de fragilidade cambial.

Enfi m, o PAC é um ponto de infl exão na trajetória das políticas econômicas do governo Lula. Contudo, é necessário adequar as demais políticas monetária e cambial ao objetivo do crescimento, que tem que se tornar uma obsessão na-cional. Afi nal, um país que verdadeiramente quer se desenvolver, deve pensar grande e, portanto, buscar compatibilizar objetivos múltiplos: estabilidade mo-netária, crescimento econômico, equilíbrio do balanço de pagamentos, equilí-brio das contas públicas e justiça e segurança social. O crescimento econômico e a conseqüente solidez orçamentária da União são as condições básicas e ne-cessárias para a viabilização da transformação social de que o Brasil precisa. Sem crescimento econômico, não há espaço para a viabilização de programas sociais de profundidade e abrangência capazes de promover justiça e seguran-ça social para todas as pessoas.

O projeto desenvolvimentista-distributivista visa estabelecer uma rota de crescimento econômico a taxas elevadas e continuadas em condições de mane-jamento ambiental adequado e aprofundamento do desenvolvimento social. Por desenvolvimento social deve ser entendido:

(i) o pleno emprego; (ii) a universalização do assalariamento formal; (iii) a proteção social para o(a) cidadão(ã) – criança, dona-de-casa, estudan-

te, desempregado, empregado, formal ou informal, urbano ou rural, apo-sentado, inválido, portador de necessidades específi cas etc.

A proteção social inclui o acesso irrestrito e de qualidade aos sistemas for-mais de educação e de saúde, aos benefícios previdenciários tradicionais, ao seguro-desemprego e aos programas de assistência social (que devem ser con-formados para atender às camadas sociais mais vulneráveis e, portanto, pro-pensas à miserabilidade).

Esse projeto de desenvolvimento social vem sendo prejudicado e atacado pe-los estagnacionistas com a seguinte argumentação: o gasto social imposto no orçamento desde a Constituição de 1988 é responsável pelo aumento da carga tributária, de défi cits públicos, da incapacidade de o governo realizar investi-mentos, do elevado custo-Brasil e, ainda, da estagnação brasileira dos últimos anos. As palavras a seguir são ilustrativas do viés estagnacionista:

liv_inesc_01h.indd 18liv_inesc_01h.indd 18 21/12/2007 13:49:5421/12/2007 13:49:54

Page 20: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 19

REFERÊNCIAS INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Políticas sociais:

acompanhamento e análise, 1995-2005. Edição especial. Brasília: Ipea, 2007.GOVERNO FEDERAL. Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Brasí-

lia: Ministério da Fazenda, 2007. Disponível em <www.receita.fazenda.gov.br>, acesso em 19 de setembro 2007.

TAFNER, P.; GIAMBIAGI, F. (Orgs.) Previdência no Brasil: debates, dilemas e escolhas. Rio de Janeiro: Ipea, 2007.

Muito embora já tenha passado por duas reformas desde a Cons-tituição de 1988, o sistema [previdenciário] brasileiro continua com graves desequilíbrios fi nanceiros, mesmo tendo ainda par-cela reduzida de população idosa. Essa limitação vem se agra-vando continuamente e representa, hoje, verdadeiro sorvedouro de recursos públicos, limitando a capacidade de investimento do Estado brasileiro e exigindo elevada carga tributária. (Proença Soares, L.H., IN: Tafner, P.; Giambiagi, F., 2007)

liv_inesc_01h.indd 19liv_inesc_01h.indd 19 21/12/2007 13:49:5421/12/2007 13:49:54

Page 21: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS20

20

FOTO AGÊNCIA BRASIL

liv_inesc_01h.indd 20liv_inesc_01h.indd 20 21/12/2007 13:49:5421/12/2007 13:49:54

Page 22: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 21

Desenvolvimento como liberdade: quais caminhos?

C E L I A L E S S A K E R S T E N E T Z K Y

Professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq)

A gestão macroeconômica levada a cabo pelos últimos governos brasileiros1 produziu a almejada estabilidade econômica. Porém, além de não se coadunar com uma estratégia de crescimento econômico, representou uma pesada restri-ção ao desenvolvimento social brasileiro. Sob certos e importantes aspectos, essa gestão agravou nossa questão social.

A manutenção de juros elevados – importante coadjuvante da estabilização da moeda – apresentou-se como um dos fatores que contiveram o crescimento econômico. Por outro lado, foi também responsável pela elevação do serviço da dívida pública, tornando-se, portanto, um importante condicionante da política fi scal, que persegue superávits primários para fi nanciá-lo.

Superávits primários têm representado cortes em investimentos públicos e restrições à expansão dos gastos sociais. Dadas as fortes restrições sobre o orça-mento social, a estabelecida prioridade na expansão da cobertura da assistência a famílias em condição de pobreza e pobreza extrema tem requerido realoca-ções dos gastos sociais em favor de programas de garantia de renda, como o Bolsa Família.

Pateticamente, o reforço ao principal programa de transferência de renda do governo federal – sem dúvida, importante e justifi cável – não tem, contudo, ren-dido o alcance pleno de seus objetivos. Parte não desprezível da população elegí-vel ainda não foi atingida e o valor do benefício está congelado desde 2003. Ao mesmo tempo, tem deixado defi citárias outras áreas sociais importantes, como a educação, a saúde e a questão fundiária – as assim chamadas “portas de saída”.

1 Refi ro-me aos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995–2002) e aos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2010)

liv_inesc_01h.indd 21liv_inesc_01h.indd 21 21/12/2007 13:49:5521/12/2007 13:49:55

Page 23: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS22

De fato, a anunciada expansão dos gastos em educação no bojo do Programa de Desenvolvimento Educacional do atual governo projeta essa mesma expan-são em um horizonte temporal demasiadamente longo. Isso porque está amar-rada, de um lado, pelo foco nos programas de transferência de renda, e de outro, pela gestão macroeconômica. Desse modo, a expansão de gastos projetada não é proporcional à penúria de nossa performance educacional, seja medida em anos médios de escolaridade, seja em termos do tamanho da jornada escolar, seja ainda em termos da qualidade dessa educação – desempenho pífi o que mui-to afeta, e seguirá afetando, qualquer projeto de desenvolvimento.

Certamente, o crescimento econômico poderia trazer alívio a essas pesa-das restrições. Entretanto, uma estratégia de desenvolvimento que se con-tente com uma bem-defi nida e bem-sucedida estratégia de crescimento eco-nômico é claramente insufi ciente. Dão testemunho disso os vários períodos de crescimento econômico que não se fi zeram acompanhar por melhoras dis-tributivas, seja da renda, seja de indicadores de condição de vida – os quais melhoraram apenas muito lentamente nos períodos de franco crescimento econômico. É preciso, pois, pensar a questão do crescimento econômico em concomitância com seu objetivo último, o desenvolvimento social, e explorar as conexões e interações.

Adicionalmente, se ampliarmos o foco da análise para o âmbito global, nota-remos que a descrição da gestão macroeconômica na qual estamos enredados e que trava o crescimento econômico poderia servir para narrar experiências de países tão dissímiles sob outros aspectos quanto o Brasil e a Namíbia. Tal simili-tude pode, em parte, ser explicada pelo fato de o crescimento de países em desen-volvimento estar fortemente regulado por regras do jogo ditadas por organismos internacionais e, em última instância, pela atenção ao fl uxo global de capitais.

De fato, as regras do jogo ditadas por organismos transnacionais vão na direção de uma crescente liberalização dos mercados – de maior liberdade para os fl uxos de bens, serviços e capitais. A liberalização dos mercados solicita uma gestão monetária-fi scal ortodoxa, que acaba por ser adotada pelos países em desenvolvimento, de modo mais ou menos voluntário – quer como contrapar-tida à assistência por eles requerida da parte dos organismos transnacionais, quer, simplesmente, como um conjunto de princípios irretorquíveis da boa ges-tão pública, necessários para angariar a confi ança dos mercados. Sendo assim, pensar o desenvolvimento requer não apenas problematizar a relação entre po-lítica macroeconômica e desenvolvimento social no âmbito de sociedades par-ticulares. Mas também a questão de política global referente à concepção de regras do jogo que abram oportunidades para o desenho local de um modelo de desenvolvimento.

No que se segue, serão apresentados alguns cenários possíveis de relação cooperativa entre política econômica e desenvolvimento social, e uma concep-ção de desenvolvimento mais abrangente do que a baseada na renda ou em in-dicadores sociais, apontando algumas vantagens relacionadas à sua adoção, ao

liv_inesc_01h.indd 22liv_inesc_01h.indd 22 21/12/2007 13:49:5521/12/2007 13:49:55

Page 24: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 23

fornecer a perspectiva de uma integração sem mediação entre desenvolvimento e desenvolvimento social. Ainda neste artigo, algumas idéias serão esboçadas no que diz respeito ao espaço global como crucial – facilitador ou obstaculizan-te – ao processo de desenvolvimento dos países não-desenvolvidos.

ESPAÇOS LOCAISA relação entre política econômica e desenvolvimento social pode ser pensada em várias dimensões. Um cenário possível situa a relação entre política eco-nômica e desenvolvimento social em uma dimensão que poderíamos chamar de longo prazo, para sublinhar o fato de estarmos pensando em um modelo de desenvolvimento.

No interior de um modelo de desenvolvimento, as políticas sociais podem ser pensadas como intimamente articuladas com as políticas econômicas, se-jam macro ou microeconômicas. Seu caráter e função seriam determinados por um modelo mais amplo, dentro do qual estariam também assinaladas funções específi cas para as políticas econômicas.

Um dos estudiosos mais importantes dos estados de bem-estar social con-temporâneos, Gosta Esping-Andersen (1990), argumenta que tal conceito tem de ser compreendido e avaliado a partir do tipo de integração existente entre política econômica e política social. Isso é, em vez de pensarmos em políticas sociais que, de algum modo, compensam ex-post os resultados do mercado, a sugestão é analisar as combinações ex-ante possíveis de políticas sociais e eco-nômicas na produção agregada de bem-estar.

Na verdade, Esping-Andersen observa que a provisão de bem-estar nas socieda-des contemporâneas é compartilhada por diferentes instituições, tais como a famí-lia, o mercado (via consumo) e o Estado. Se adotarmos essa perspectiva, sugere ele, poderemos classifi car as sociedades em termos das diferentes combinações dessas instituições nelas existentes. De tal visão origina-se sua idéia de que há, contempo-raneamente, no mundo ocidental três regimes de estados do bem-estar social, que enfatizam, respectivamente, o mercado, a família e o mundo do trabalho, e o Estado, como as instituições principais na provisão de bem-estar para suas populações.

Um exemplo de articulação não meramente compensatória entre políticas econômicas e políticas sociais – reveladora de um regime de bem-estar social cen-trado em políticas públicas – é a integração entre políticas ativas de mercado de trabalho e políticas de desemprego que ocorre em países escandinavos. Nesses países, a reinserção de trabalhadores e trabalhadoras no mercado de trabalho é combinada com programas de qualifi cação e requalifi cação profi ssional e um ge-neroso seguro-desemprego, com alta taxa de reposição e longa duração.

A dinâmica é a seguinte: pessoas desempregadas qualifi cam-se a receber um seguro-desemprego e também a ingressar em programas públicos de trei-namento da força de trabalho; a intervenção pública, entretanto, não se limita a garantir sua renda e qualifi cação. Também se faz presente na coordenação do

liv_inesc_01h.indd 23liv_inesc_01h.indd 23 21/12/2007 13:49:5521/12/2007 13:49:55

Page 25: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS24

mercado de trabalho, unindo as duas pontas, a oferta e a demanda, a partir da informação sobre as necessidades de qualifi cação por parte de potenciais em-pregadores. Claramente, elementos de políticas sociais tradicionais e de políti-cas microeconômicas (de mercado de trabalho) estão aqui combinados de modo a promover bem-estar.

Outro exemplo, da mesma Escandinávia, é a política de ampliação da taxa de participação feminina no mercado de trabalho acoplada a políticas públicas de care – creches públicas em tempo integral com profi ssionais qualifi cados e assistência pública às pessoas idosas. Com a expansão desses serviços pú-blicos, as mulheres intensifi caram sua participação no mercado de trabalho e também sua qualifi cação, revelando uma modalidade de entrosamento entre políticas de assistência e mercado de trabalho, de modo a aumentar o bem-estar de importantes segmentos da sociedade.

Ainda outro exemplo, mais importante no caso sueco, é o da expansão do emprego público no setor de provisão de bem-estar social – care, educação, saú-de etc. Atualmente, cerca de 20% do emprego na Suécia é público e localizado, principalmente, na provisão de serviços relacionados ao bem-estar social. Parte da sustentação fi nanceira do estado do bem-estar advém, portanto, de impostos pagos por seus próprios empregados – sem mencionar, naturalmente, os efeitos multiplicadores de renda e emprego e da própria base fi scal gerados por esses empregos públicos.

Adicionalmente, é importante notar que a adoção desse modelo de desen-volvimento pela Suécia não a fez menos “efi ciente”, se a julgarmos, a partir dos cânones de mercado, em termos de crescimento econômico, da taxa de parti-cipação da força de trabalho e da produtividade do trabalho: tais indicadores suecos são comparáveis aos indicadores americanos. Porém, em contraste com o modelo americano, o bom desempenho econômico sueco tem sido compatível com baixos patamares de desigualdade de renda (os mais baixos do mundo), revelando um modelo solidarístico de bem-estar social.

Na verdade, se levarmos em conta exclusivamente a distribuição da renda inicial, os rendimentos brutos dos indivíduos, a desigualdade de renda sueca é semelhante à americana. Porém, se observarmos a distribuição da renda dis-ponível desses indivíduos, seus rendimentos brutos menos os impostos pagos e mais as transferências recebidas, concluiremos que a baixa desigualdade de renda sueca deve-se, fundamentalmente, à ação redistributiva do Estado, por meio de suas políticas públicas e da forma como as fi nancia.

Além de oferecer uma orientação geral em termos do modo de integração entre políticas econômicas e aquelas mais diretamente sociais, de algum modo, o modelo de desenvolvimento escolhido poderia também estabelecer baliza-mentos gerais para a política macroeconômica quanto a limites para a taxa de juros, para a apreciação do câmbio e para a taxa de infl ação que fossem compa-tíveis com objetivos de curto prazo de redução de pobreza e de desigualdades; ou, alternativamente, estabelecer mecanismos compensatórios para políticas

liv_inesc_01h.indd 24liv_inesc_01h.indd 24 21/12/2007 13:49:5521/12/2007 13:49:55

Page 26: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 25

de juros e de câmbio que exercessem efeitos indesejáveis do ponto de vista des-ses objetivos. Nesse último caso, essas políticas seriam adotadas apenas se não inviabilizassem a possibilidade de adoção de mecanismos compensatórios.

Conceito de desenvolvimento

É possível conceber ainda um segundo cenário para a relação entre política econô-mica e desenvolvimento social. O propósito de adotarmos essa perspectiva seria a possibilidade de pensar um conceito de desenvolvimento mais direto, não neces-sária ou exclusivamente aferido por meio da variável renda e, portanto, pelo acesso ao consumo de bens e serviços, dentre estes os serviços públicos. Um conceito com tais características foi defendido por Amartya Sen (1999), é o conceito de desenvol-vimento como liberdade.2 A ênfase na liberdade humana real corresponde à ênfase não exatamente nos meios para a realização humana, mas nas próprias realizações e na liberdade para realizar (Kerstenetzky, 2000).

Inicialmente, Sen foi levado a desenvolver essa idéia a partir da observação de que a dimensão convencional de aferição do desenvolvimento, a renda per capita dos países, é opaca quanto às realizações efetivas das pessoas, quanto à quali-dade da vida efetivamente vivida. Ainda que certamente importante como meio de realizações, a renda não passa de um veículo possibilitador. Além disso, nem todas as realizações são adquiríveis no mercado: por exemplo, estar livre de doen-ças preveníveis ou de mortalidade precoce depende de controles de saúde pública e de saneamento básico; estar adequadamente alimentado pode depender de pro-visão pública quando há uma situação de carência de alimentos.

Observando, a propósito, as diferentes realizações de moradores e morado-ras do Harlem e de Bangladesh, Sen conclui que, embora os primeiros tenham uma renda per capita muito mais elevada, possuem uma expectativa de vida signifi cativamente inferior à dos últimos, justamente por não terem acesso ga-rantido a serviços públicos de saúde. Finalmente, condições individuais ou so-ciais podem fazer com que diferentes indivíduos convertam a mesma renda em realizações díspares. Por exemplo, a mesma renda à disposição de jovens e de pessoas idosas é convertida em realizações muito diferentes, em função das ne-cessidades especiais do segundo grupo, em particular seus gastos com saúde.

O espaço avaliatório do desenvolvimento e da pobreza deveria ser o espaço das realizações, segundo Sen. Dois aspectos passam a interessar na análise do desenvolvimento: o que de fato as pessoas conseguem realizar com os recursos a que têm acesso, e se elas tiveram liberdade para escolher suas realizações.

2 O que se segue nesta seção é parcialmente uma reprodução dos argumentos de Sen e parcialmente um desdo-bramento desses argumentos segundo minha elaboração pessoal sobre eles, em particular, a refl exão sobre o papel da cultura pública.

liv_inesc_01h.indd 25liv_inesc_01h.indd 25 21/12/2007 13:49:5621/12/2007 13:49:56

Page 27: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS26

Nessa concepção alternativa, as pessoas são mais ou menos pobres e desi-guais em termos de suas realizações, os seres ou fazeres que alcançam. O que elas são ou o modo como estão – se bem-alimentadas e adequadamente abrigadas e protegidas, se livres de doenças preveníveis, se bem-informadas, se não se en-vergonham de se apresentar em público são alguns exemplos de “estados” – e as atividades que desenvolvem – se participam da vida da comunidade, se realizam um trabalho gratifi cante. Além disso, essa concepção quer captar se esses esta-dos de coisas e atividades resultam de uma real liberdade de escolha ou se foram as únicas opções que as pessoas de fato tinham, se são realizações que as pessoas têm razão para valorizar ou se foram as únicas realizações disponíveis.

Dessa forma, a realização humana estaria sendo captada diretamente em sua extensão e também por meio da aferição da liberdade de escolher entre ser diferentes pessoas ou estar em diferentes condições e fazer diferentes ativida-des. Nesse sentido, quanto mais livres, cidadãos e cidadãs de um país, mais de-senvolvido esse país pode se considerar.

É interessante observar que a ênfase no ser/fazer em contraste, por exem-plo, com o ter, revela uma ampliação da idéia de realização humana em relação a quando tal realização é traduzida exclusivamente em termos de padrões de consumo ou padrões de vida. Esse aspecto é importante também quando obser-vamos a atenção que a liberdade de ser e fazer recebe, quando entra em foco o aspecto da expectativa de realizações, dos direitos.

Nesse sentido, Sen nota que somos mais livres mesmo quando não “reali-zamos” nossa liberdade: uma pessoa saber que não será impedida de se loco-mover, de sair e de voltar para sua casa, sua cidade, seu país, ou que pode se candidatar a um cargo eletivo, torna-a mais livre do que quando não tem essas opções, mesmo que jamais as realize. Na verdade, ela será tanto mais livre quan-to mais opções tiver e sua realização, ou não, depender de seu livre-arbítrio.

Porém, a ênfase no ser/fazer em detrimento do ter é importante, sobretudo, quando consideramos a pluralidade de traduções que a noção de desenvolvi-mento pode acomodar, como desenvolvido a seguir.

Escolhas sociais plurais

De fato, a concepção do desenvolvimento com liberdade pode acomodar distin-tas escolhas sociais, compatíveis com valorações igualmente distintas da di-mensão consumo, uma vez que questiona a equivalência automática entre bem-estar e consumo. Esse tema tem merecido a atenção de organizações que se ocupam de questões ambientais e que enfatizam o problema da insustentabili-dade ambiental de uma alternativa de bem-estar que se proponha a generalizar para todo o planeta os padrões de consumo alcançados pelos países desenvolvi-dos – em particular, pelos grupos sociais mais aquinhoados nesses países.

Ao preservar uma sensibilidade com relação à pluralidade de escolhas so-ciais possíveis, tal abordagem permite entender opções feitas por sociedades particulares, que podem ser consideradas não-desenvolvidas do ponto de vista

liv_inesc_01h.indd 26liv_inesc_01h.indd 26 21/12/2007 13:49:5621/12/2007 13:49:56

Page 28: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 27

dos indicadores tradicionais de renda e realização econômica, mas não sob ou-tros aspectos, capturáveis nessa abordagem sob a etiqueta dos direitos e da li-berdade real de escolha. Observar o que essas sociedades estão fazendo e como de fato caminharam na direção da liberdade pode ser revelador de caminhos a serem perseguidos e idéias a serem difundidas.

Por exemplo, a experiência de escolha social sobre desenvolvimento leva-da a cabo pelo estado de Kerala, na Índia. Trata-se de um estado de cerca de 32 milhões de habitantes, que alcançou realizações importantes do ponto de vista da abordagem da liberdade, ainda que seja considerado “não desenvol-vido” na perspectiva da renda. Kerala é uma das regiões do mundo não eco-nomicamente desenvolvido onde as pessoas vivem mais, são mais saudáveis, têm as mais baixas taxas de analfabetismo e possuem as mais eqüitativas relações de gênero, sendo o estado menos corrupto da Índia. Além de muito populoso, o estado de Kerala é também diverso em termos étnicos e culturais, e está imerso em um país onde os indicadores sociais são muito ruins. Essas características revelam a fragilidade de argumentos que sustentam a noção de que estados do bem-estar social avançados seriam unicamente possíveis em sociedades não apenas ricas e pequenas como também com populações étnico-religiosamente homogêneas.

Além do pluralismo potencial da concepção de desenvolvimento como li-berdade para lidar com diferentes escolhas sociais quanto a valores, há outras vantagens a serem apontadas. Essas dizem respeito à sensibilidade dessa no-ção para lidar com outras fontes de variação entre pessoas e grupos. São as variações físicas, sociais, étnicas, culturais e locacionais.

Ao enfatizar a extensão da liberdade no lugar dos meios para a liberdade (recursos vários, entre os quais a renda), Sen revela uma preocupação particu-lar com a variabilidade inter-individual e entre grupos sociais, e com a infl uên-cia dessa variabilidade sobre realizações e liberdades para realizar. Diferentes pessoas, por conta de suas diferentes condições físicas, convertem os mesmos recursos, os meios para a liberdade, em realizações diferentes, as extensões da liberdade: pessoas idosas, de posse da mesma renda que pessoas jovens, reali-zam menos que estas, por conta de suas relativamente mais frágeis condições de saúde; mulheres grávidas, em contraste com as demais, têm exigências maiores para atingir graus de realização equivalentes; pessoas com metabolis-mos diferentes vão requerer diferentes quantidades de alimentos para estarem igualmente bem-nutridas, e assim por diante.

liv_inesc_01h.indd 27liv_inesc_01h.indd 27 21/12/2007 13:49:5621/12/2007 13:49:56

Page 29: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS28

1. O lugar onde vivem: no meio rural ou no meio urbano; em uma determinada região e não em outra; na periferia da cidade ou no centro da cidade; na favela ou no bairro; em locais com epidemias; em climas áridos. Desenvolvimento como liberdade e pobreza como privação de liberdade podem captar diferenças de desenvolvimento/privação decorrentes não apenas do acesso diferen-ciado a recursos relacionados à localização. Mas também aspectos menos diretamente observáveis relacionados a formas de dis-criminação que restringem a liberdade de realização de grupos e pessoas em locais específi cos. Morar em favela no Rio de Ja-neiro é um fator de empobrecimento, não apenas porque moradores e moradoras não têm acesso a serviços públicos de qualidade e estão sujeitos a várias formas de violência. Também pelo preconceito com que essas pessoas são vistas e se vêem, o que diminui sua liberdade de ser e fazer. Por exemplo, a liberdade de circular em qualquer lugar da cidade, não sofrer discriminação no merca-do de trabalho e em qualquer outra situação quando revelar seu endereço – ainda que essas liberdades estejam formalmente as-seguradas. O insulamento resultante do estereótipo e do estereótipo internalizado pode reforçar outras formas de privação, ao desconectar o morador de laços sociais e re-des que poderiam ampliar sua liberdade de realizar, e mesmo alterar, sua concepção do que pode signifi car “realização humana”.

2. O grupo socioeconômico a que perten-cem: diferentes classes sociais, ocupações, condição de cidadania não apenas infl uen-ciam o acesso a recursos. Também fazem com que recursos iguais se convertam em realizações desiguais, uma vez que essas são infl uenciadas por normas e costumes compartilhados em cada grupo e também pelas percepções recíprocas de diferentes grupos. Dentre essas normas, lembra Sen, estão as relacionadas à igualdade entre os sexos, a natureza dos cuidados dispensa-dos às crianças, o tamanho da família, os padrões de fecundidade etc.3. O sexo, o grupo etário, racial, étnico, cultural ou religioso: há formas de reali-zação/privação associadas a esses dife-rentes pertencimentos, sobretudo as as-sociadas a estereótipos e internalização de estereótipos. Por exemplo, no caso de crianças negras, o acesso a recursos educacionais iguais pode não garantir a igualdade de realização educacional se levarmos em consideração os efeitos de estereótipo que afetam negativamente a sua performance, na presença e na au-sência de discriminação direta.4. As perspectivas relativas: privação em meio à abundância, acrescentando à priva-ção material o sentimento de vergonha e, às vezes, de redundância, e mesmo, inuti-lidade do ponto de vista social, como pos-sivelmente ocorra com desempregados crô-nicos em pujantes economias de mercado.

Luz nas variáveis Do ponto de vista de variações mais propriamente sociais, a idéia de desenvolvimento como liberdade pode iluminar distintas formas de privação de liberdade a que estão submetidos diferentes grupos em sociedades particulares. É um fenômeno geralmente reconhecido que as desigualdades socioeconômicas assumem, em diferentes sociedades, feições diferentes, atingindo, em cada lugar, grupos específi cos, transformando características adscritícias des-ses grupos em “ativos” (fontes de valor) ou “passivos” (fontes de desvalorização). Dentre as variáveis que singularizam grupos e os distinguem dos demais, são destacadas quatro a seguir.

liv_inesc_01h.indd 28liv_inesc_01h.indd 28 21/12/2007 13:49:5621/12/2007 13:49:56

Page 30: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 29

Enfi m, o potencial da abordagem da liberdade para lidar com essas varia-ções parece signifi cativo. Um aspecto interessante diz respeito a poder conside-rar a liberdade um valor não apenas do ponto de vista instrumental – ao permi-tir a realização de um conjunto abrangente de seres e fazeres – como também intrinsecamente – visto que liberdade é um bem em si mesma e deve contar entre as “realizações humanas”.

Esse aspecto parece singularmente importante por sua atenção ao valor in-trínseco dos direitos, que se relacionam também a questões de identidade. Fi-nalmente, entre as liberdades valiosas, Sen conta a liberdade de agir e de mudar as condições nas quais se vive, aquelas que representam não apenas o nosso de-sejo de realizar estados e coisas e termos a liberdade para isso, como também o quanto valorizamos o próprio agir para provocar mudança social, que preserva nossa condição de agentes.

Conhecimento local

A abordagem do desenvolvimento como liberdade, com sua sensibilidade parti-cular para a heterogeneidade humana e para as formas de associação humanas, atribui especial importância ao conhecimento local das realidades de pessoas, grupos e sociedades específi cas, sobre o qual as organizações da sociedade civil possuem notável vantagem comparativa, justamente porque atuam diretamen-te a esses indivíduos e grupamentos. É importante que desenvolvam metodo-logias adequadas para captar as experiências variadas das quais participam privilegiadamente – a abordagem da liberdade pode oferecer o quadro conceitual geral para que essas organizações, então, refi nem indicadores de privações de realizações e de liberdades para realizar, e identifi quem quais privações de di-reitos são especialmente relevantes para quais grupos.

Nesse sentido, algumas experiências foram levadas a cabo recentemente na di-reção de operacionalizar a abordagem e de desenvolver uma metodologia que permi-ta a estimação da privação de liberdade. São análises preliminares que, entretanto, revelam vantagens e desafi os do uso dessa nova forma de aferição de desenvol-vimento, pobreza e desigualdade (Balestrino, 1996; Santos e Kerstenetzky, 2007).

Cultura pública

A abordagem da liberdade parece, pois, singularmente adequada para captar desenvolvimento/privação de pessoas, grupos sociais e sociedades. Entretanto, é inegável a importância da dimensão da cultura pública na determinação das diferenças entre pessoas e grupos, em termos de “ativos” – aspectos que geram valor – ou “passivos” – aspectos que desvalorizam. Essa dimensão relaciona-se, fundamentalmente, ao aspecto subjetivo das realizações, o qual, para o seu al-cance, requer a mobilização de recursos objetivos.

Desse modo, emerge uma questão crucial para a concepção de políticas pú-blicas desenvolvimentistas ou redutoras de privações. Qual o plano adequado de intervenção para a correção da situação: redistribuição de recursos para

liv_inesc_01h.indd 29liv_inesc_01h.indd 29 21/12/2007 13:49:5621/12/2007 13:49:56

Page 31: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS30

compensar défi cits de realização decorrentes de privações “objetivas” (recur-sos) e “subjetivas” (percepções e autopercepções); promoção de refl exão pública sobre o que deve ou não ter valor, portanto sobre a própria atribuição de valor?

Possivelmente, a resposta é “os dois planos”. Porém, o segundo plano, da atribuição de valor, tem merecido pouca atenção na discussão sobre desenvol-vimento: trata-se de pensar, criticamente, a cultura pública – as normas e cren-ças compartilhadas na sociedade, responsáveis pelas percepções recíprocas e autopercepções, negativas e positivas – como algo passível de questionamento, sobretudo em sua capacidade de criar e destruir ativos (como o “passivo” “ser favelado”, “ser negro”; os “ativos” “ser branco”, “ser morador de bairro”).

Por exemplo, a questão racial na abordagem da liberdade seria enfrenta-da via: miscigenação?, valorização do atributo “ser negro”?, não atribuição de valor à dimensão cor? É verdade que a questão é bem complexa, pois há uma questão racial-social (pobreza é negra) e uma questão racial-identitária (identi-dade étnico-cultural negra, ligada a uma reconstruída origem comum). Porém, é atravessada também pelo problema da cultura pública e sua peculiar maneira de “atribuir valor”.

ESPAÇOS GLOBAISRegras do jogo importantes são estabelecidas no âmbito global, não no local. Se um país não se ajusta a essas regras, além de não aceder a empréstimos ou a garantias de credibilidade – concedidas por organismos de fi nanciamento e “credenciamen-to”, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial – vê-se diante da contingência de ser excluído como roteiro de destinação de capitais e de mingua-rem suas chances de fi nanciamento ao processo de desenvolvimento.

Nesse ambiente, políticas de controle de capitais são percebidas como op-ções arriscadas, resultando em perdas adicionais de autonomia de projetos na-cionais de desenvolvimento – perdas maiores ainda que normalmente associa-das à falta de liberdade de controlar. Realidade ou fi cção, poucos se atrevem a tentar, e mesmo quando tentativas ousadas são bem-sucedidas (casos recentes da Malásia, da China e do Chile), permanece o receio de que há algo peculiar a essas experiências que não asseguraria sua replicabilidade.

É necessário mudar a convenção. Entretanto, a mudança de convenção re-quer uma reforma precedente, em profundidade, nas instituições de fi nancia-mento transnacionais. Em primeiro lugar, na direção de uma maior democrati-zação dessas instituições, para que os pontos de vista das populações de países em desenvolvimento sejam também considerados na concepção da agenda des-ses organismos e do marco regulatório que propõem para o sistema econômico global (Stiglitz, 2002).

Em segundo lugar, o que vem a ser um corolário da condição anterior, a mu-dança de convenção requer a concepção de políticas públicas globais que, de fato, aumentem a liberdade dos países e de suas populações para empreender

liv_inesc_01h.indd 30liv_inesc_01h.indd 30 21/12/2007 13:49:5621/12/2007 13:49:56

Page 32: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 31

e implementar as escolhas sociais que julguem adequadas. Uma política com tais características seria uma regulação transnacional do movimento de capi-tais que impusesse uma taxa a movimentos especulativos de capitais, como a taxa Tobin. Uma vez imposta transnacionalmente, essa regulação aumentaria a margem de manobra dos países para implementar suas escolhas sociais. Essa mesma taxa poderia, ainda, fi nanciar um fundo público global para prover uma renda básica de cidadania global (Dymski; Kerstenetzky, 2007).

Pensar a questão do desenvolvimento requer, antes de mais nada, selecio-nar o plano de análise e, portanto, os elementos que serão tomados como consti-tutivos do desenvolvimento: renda per capita, desenvolvimento social ou, mais amplamente, liberdade para realizar e para exercer a humana condição de agen-te. Requer ainda uma defi nição espacial – local, nacional ou global –, observan-do-se, contudo, que a dimensão global se constitui hoje em importante injunção para projetos locais e nacionais de desenvolvimento.

Do modo como integramos esses elementos, notamos que a expansão da liberdade de realização de indivíduos e grupos em sociedades específi cas de-pende, em parte, do grau de liberdade de estados nacionais para implementar políticas públicas expansivas dessa liberdade. Estas, por sua vez, dependem, em parte, da existência de um ambiente de cooperação global que, por meio de um sistema regulatório global, democratize os benefícios da crescente inte-gração econômica entre os países. A política democrática em todos esses pla-nos é essencial para garantir que a liberdade de realização respeite, de fato, as escolhas sociais.

liv_inesc_01h.indd 31liv_inesc_01h.indd 31 21/12/2007 13:49:5621/12/2007 13:49:56

Page 33: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS32

liv_inesc_01h.indd 32liv_inesc_01h.indd 32 21/12/2007 13:49:5621/12/2007 13:49:56

Page 34: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 33

REFERÊNCIAS

BALESTRINO, Alessandro. “A note on functioning-poverty in affl uent socie-ties”. In: POLITEIA, 1996.

DYMSKI, G.; KERSTENETZKY, C. Lessa. The ethnics of fi nancial globaliza-tion. Mimeo, 2007.

ESPING-ANDERSEN, G. The three worlds of welfare capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1990.

KERSTENETZKY, C. Lessa. “Desigualdade e pobreza: lições de Sen”. In: RE-VISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 2000, p. 15-42.

SANTOS, L.; KERSTENETZKY, C. Lessa. Pobreza como privação de liberdade: o caso da favela do Vidigal no Rio de Janeiro. Mimeo, 2007.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

STIGLITZ, J. Globalization and its discontents. New York and London: W.W. Norton & Company, 2002.

liv_inesc_01h.indd 33liv_inesc_01h.indd 33 21/12/2007 13:49:5721/12/2007 13:49:57

Page 35: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS34

34

FOTO AGÊNCIA BRASIL

liv_inesc_01h.indd 34liv_inesc_01h.indd 34 21/12/2007 13:49:5721/12/2007 13:49:57

Page 36: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 35

Controle cidadão, ferramenta contra a corrupção política

L Ú C I A A V E L A R

Professora titular de Ciência Política do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília; ex-professora da Unicamp; pesquisadora do CNPq

Quando Putnam escreveu sobre capital social relacionando a ele bom desempe-nho governamental, profetizou: países de tradição ibérica não alcançarão bons governos porque não têm (e nem terão) sociedade organizada densa e compro-metida com a coisa pública e com a cobrança do bom desempenho de governan-tes. Para ele, esse é um legado de países cujos sistemas representativos carregam estreitos vínculos entre representantes e pessoas representadas. Nesses países, antigas formas de organização do mundo do trabalho (as guildas), a era pré-ca-pitalista, sem ethos de competitividade e de mobilidade social, forjaram relações horizontais de natureza muito mais solidária do que no mundo capitalista.

A hipótese de Putnam é que a confi ança mútua, gérmen por excelência de grupos solidários, estaria presente nessas sociedades, desdobrando-se em uma sociedade civil forte e comprometida com os negócios públicos. Tal profecia acabou gerando críticas contundentes, em vista do determinismo histórico nela contido. A organização da sociedade em grupos voltados para a política pode ser inventada e reinventada, desde que haja liberdade de reunião, associa-ção e conscientização política, por meio de inúmeros instrumentos pedagógi-cos plantados nessa sociedade (Avritzer, 2004; Abers, 2000).

Mas quanto à outra hipótese de Putnam, há relativo consenso entre especialis-tas: quanto mais a sociedade se organiza, mais cobra dos governos e governantes. Em contextos de relações verticais, como o do clientelismo autoritário, difi cilmente haverá accountability.1 As evidências mostram que, embora recente, a sociedade ci-vil dos países latino-americanos experimenta formas vibrantes de organização, com clara emergência do controle cidadão, como no caso brasileiro (Ciconello, 2006).

1 NE: expressão utilizada pela sociedade civil organizada equivalente a controle cidadão ou controle social.

liv_inesc_01h.indd 35liv_inesc_01h.indd 35 21/12/2007 13:49:5921/12/2007 13:49:59

Page 37: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS36

Há que se levar em conta que nem todas as correntes da teoria democrática apostam no papel central da sociedade civil em relação ao aperfeiçoamento democrático. Algumas delas acreditam que as mudanças políticas só ocorrem quando as confrontações dos interesses diversos se dão no plano das institui-ções. Outras, adeptas da democracia participativa e deliberativa, centram aí suas esperanças, ampliando, ao máximo, o arco de participantes. Se esses não se conscientizam por meio dos recursos que a maior escolaridade lhes oferece, resta-lhes o aprendizado pela dinâmica da participação. Afi nal, uma das hipó-teses centrais nos estudos da participação política é: “quanto mais se partici-pa, maior a consciência política; e, quanto maior a consciência política, mais se participa” (Pizzorno, 1966). Os exemplos históricos estão aí para confi rmar o pressuposto: unir ciência e consciência não é apenas uma receita do marxis-mo; há também os agentes pedagógicos – partidos, sindicatos, movimentos, ONGs etc. – no trabalho de ensinar, divulgar a importância da política na vida cotidiana, desde o início do século XIX, no mundo ocidental e, em particular, na Europa ocidental.

Partindo do pressuposto que a sociedade brasileira já vem se organizando há algumas décadas, nosso objetivo é discutir como os grupos da sociedade ci-vil vêm praticando a accountability vertical – aquela que cobra dos governos que façam o que deveriam fazer. A tarefa do controle cidadão não é fácil dian-te do Estado patrimonial brasileiro que, segundo uma feliz expressão de Mino Carta, relembrando Faoro, é “um sol que nunca se põe”. Conceber o modo de operacionalizar o controle sobre esse Estado, com suas relações particularís-ticas e clientelistas, capturado pelos políticos, grupos corporativos e lobbies empresariais – não seria esse o grande desafi o para os grupos interessados no exercício da accountability?

Para apresentar nossa discussão, em primeiro, lugar trataremos de defi nir “controle cidadão” ou “controle social”. Em seguida, apresentaremos alguns pressupostos de natureza conceitual, de modo a contextualizar o problema em tela. Mais adiante, teceremos considerações sobre o papel da sociedade organi-zada na sua relação com o Estado.

DEFINIÇÕESO’Donnell (1999) ofereceu em numerosas publicações defi nições de accounta-bility, enfatizando a importância de mecanismos institucionalizados para li-mitar o abuso de poder em todas as áreas da vida política. Por exemplo, entre a sociedade e o Estado – controle cidadão vertical – ou entre poderes do Estado – em ações de controle horizontal. Ao defi nir o controle social ou accountabi-lity nos países chamados de “novas democracias”, esse autor refere-se ao fato que, neles, embora as eleições devessem funcionar como um instrumento de controle vertical, nem sempre isso ocorre. E questiona: as eleições punem os maus políticos? Há nesses países liberdade de opinião e de associação, acesso

liv_inesc_01h.indd 36liv_inesc_01h.indd 36 21/12/2007 13:50:0021/12/2007 13:50:00

Page 38: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 37

amplo a diferentes fontes de informação, de modo a articular demandas e, even-tualmente, denunciar mal-feitos de autoridades públicas? Há mídias livres que funcionam como instrumentos de controle social?

Esse conjunto de questões nos inspira a refl etir sobre uma realidade crítica quanto à efetividade de tais instrumentos de controle. As mídias são comprome-tidas em um país onde as elites tradicionais encontram instrumentos para seu controle, de modo que há sérias dúvidas quanto à sua imparcialidade. O direito de opinião está efetivamente assegurado? Quem não conhece as difi culdades para se publicarem matérias com temas avessos à linha editorial e política da maioria de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, entre outras? Mais ainda, se há o direito de associação, uma realidade que cresceu enormemente no Brasil nos últimos 40 ou 50 anos, qual a visibilidade alcançada por esses atores? Ao contrário, os movimentos sociais são mal-vistos. O “poder popular” é tido como obscuro, vestígios de “marxismo atrasado”; as ONGs ganharam es-paço quando se tornaram foco de corrupção política de alguns governos que, inadequadamente, transferiram recursos para seus grupos preferidos.

Para quem, então, a accountability vertical é bem-vinda? Os partidos políticos, jamais acostumados com quaisquer tipos de cobrança, fogem desses grupos. A clas-se política goza de total independência em seus mandatos. Mesmo o governo fede-ral – eleito em 2002 e reeleito em 2006, ao se distanciar de suas raízes na sociedade, obstrui o controle cidadão. Os grupos organizados têm, sim, uma entrada maior, mas ainda rarefeita em termos de controle social. Os governos estaduais não são exem-plo de porosidade em relação aos grupos organizados da sociedade. Algumas pre-feituras, onde a sociedade é mais organizada, começam a responder ao eleitorado.

A impunidade talvez seja o lado óbvio da ausência do controle cidadão. Há muito a fazer para que se cobre um mínimo de punição para políticos, funcio-nários, juízes e assessores corruptos. As vias de acesso são fechadas e há uma hierarquia que obstrui o julgamento imparcial. Os que chegam a ser punidos são políticos laterais, que não têm centralidade nacional. São punidos os recém-che-gados, como se pertencessem à outra casta. E, de certo modo, pertencem. A mobi-lidade social e política no Brasil é recente. Martins (2002) mostra em seu estudo que entre os recém-chegados estão professores(as) e lideranças de movimentos sindicais, diferentes de empresários, profi ssionais liberais e fazendeiros, que constituem o grupo de políticos tradicionais. Há mesmo uma realidade social e política em mudança, na qual se misturam políticos de origem social distinta ou de classe social distinta. Como sabemos, a distância social é um abismo quase intransponível e as instituições sabem como punir esses “outros”.

Ao apresentar defi nições, encontramos campos nos quais a accountability deve ser construída. Fox (2001) oferece proposições conceituais que nos ajudam a precisar ainda mais o universo de signifi cados relacionado à defi nição de accoun-tability: 1) a relação entre processo democrático e accountability é politicamente contingente; 2) a transparência é necessária, mas não sufi ciente para que ocorra accountability; 3) além disso, ela é eminentemente relacional e relativa.

liv_inesc_01h.indd 37liv_inesc_01h.indd 37 21/12/2007 13:50:0021/12/2007 13:50:00

Page 39: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS38

Sem controle

Seguindo esse caminho, analisemos situações nas quais a democracia e o con-trole cidadão nem sempre ocorrem.

1. Um dos aspectos que refutam tal proposição e tornam problemático esse caminho analítico é o seguinte: nas sociedades onde o poder político foi cons-truído sob a lógica do poder tradicional e de natureza patrimonial, as institui-ções do Estado são controladas por representantes que, embora eleitos, não governam necessariamente para a população que representam, mas para a re-produção de seu próprio poder. Assim, é restrito o acesso da população, dada a feição hierárquica dos poderes do Estado.2 As práticas de corrupção impedem que governos democráticos façam o que deveriam fazer. Ao contrário, distri-buem vantagens, ou, por que não, prebendas aos grupos aliados, redistribuin-do-os de maneira particularística. “Quando o Estado não redistribui, a popu-lação responde com violência”, dizia Linz. A violência difusa é uma resposta da sociedade, diante da impunidade dos atores políticos e do não-atendimento aos direitos sociais. A sociedade organizada ainda é impotente para reverter esse quadro? É melhor manter essa pergunta em aberto, em vez de apresentá-la como uma afi rmação.

Sob esse Estado, a democracia convive com milhões de pessoas que não têm direito à participação simplesmente porque não têm condições de compreender o signifi cado da política em sua vida. Esse é um dos maiores desafi os para os grupos que praticam accountability. Segundo Linz, a democracia fracassará se não houver tal compreensão por parte da população. Confl itos redistributivos podem até ocorrer ao se apreender que igualdade e justiça são inerentes à de-mocracia. Mas sem tal conhecimento, o que se tem é a violência difusa, imobi-lizadora do Estado.

2. Embora necessária, transparência não é suficiente para que ocorra accountability. Samuels (2004) compara o Brasil com os Estados Unidos e con-clui que a accountability entre nós é quase inexistente. Contudo, é evidente que hoje se exige mais transparência nas ações políticas, sem que haja correspon-dente punição para corrupção, acordos e negociações suspeitas no âmbito das burocracias públicas entre classe política, grupos lobistas e outros. Há que se aprofundar o controle da sociedade sobre o Estado para que a lei seja cumprida e as sanções sejam efetivamente aplicadas.

2 Recentemente, um senador da República de vários mandatos procurou um grupo de especialistas da política para discutir se não haveria algum modo de garantir que as pessoas eleitas prestassem contas de seus atos ao eleitorado. Segundo ele, alcançado o mandato, o representante pode fazer tudo o que quiser, sem que ninguém proteste. Desolador, segundo ele.

liv_inesc_01h.indd 38liv_inesc_01h.indd 38 21/12/2007 13:50:0021/12/2007 13:50:00

Page 40: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 39

As raízes da impunidade e das ações políticas nebulosas remontam às insti-tuições fundadoras do nosso poder político. Em um país de grande extensão ter-ritorial, dividido em propriedades latifundiárias, onde o dono da terra exercia inúmeros papéis – como produtor da riqueza material para a sobrevivência de todas as pessoas, empregador, juiz que fazia a lei e a exercia com suas milícias particulares –, quem teria o poder de punição para esse indivíduo que chamava a si todas as instituições (Cintra, 1971 e 1974)? Difícil discordar de quem afi rma ainda estarmos em vias de “construção institucional”. Por exemplo, uma das ta-refas é a independência dos tribunais em relação à classe política, de modo que a lei seja aplicada e a punição aos atos ilegais tenha o destino que se espera em um país democrático. É nesse campo que o controle social deve ser aprofunda-do: que não haja conluio entre a classe política e quem aplica a lei, de modo que os poderes funcionem independentes uns dos outros e o verdadeiro controle horizontal se torne uma realidade.

3. O controle social é relacional entre atores e instituições (Fox, 2001). Esse é um dos aspectos menos presentes nos países de baixa accountability. Se alguns aspectos da vida política vão se tornando objeto de controle cidadão, outros são mantidos insulados e apresentam opacidade. São os casos dos bancos centrais, ministérios como os das Finanças e as Supremas Cortes. Nas relações das insti-tuições governamentais com bancos multilaterais, no gerenciamento das dívidas externas, nos empréstimos e na prestação de contas com, por exemplo, o Banco In-teramericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial, como saber se os resultados correspondem às dívidas contraídas? A corrupção nesse âmbito também é grande, indo para cofres particulares o que deveria ser aplicado em políticas sociais.

liv_inesc_01h.indd 39liv_inesc_01h.indd 39 21/12/2007 13:50:0121/12/2007 13:50:01

Page 41: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS40

O que surpreende é que mesmo parlamentares eleitos não têm acesso a es-ses enclaves governamentais insulados. Um estudioso da dívida externa brasi-leira teve de valer-se de sua condição de parlamentar na Câmara Federal para obter dados sobre a dívida externa. Conseguiu trazer dados de Washington para realizar seu trabalho, já que esses não estavam disponíveis à população brasi-leira (Arantes, 2002).

Os exemplos se sucedem. Vários ministérios do Executivo federal, além de secretarias de estados ou de municípios, contemplam organizações da socie-dade com verbas para trabalhos em parceria. É o caso das ONGs. Essas, algu-mas cívicas, outras nem tanto, recebem enormes parcelas dos cofres públicos, sem auditorias para cobrar o bom serviço contratado. À semelhança do Estado patrimonial, os mesmos valores e práticas são reproduzidos nessas operações pouco transparentes nas quais, em geral, os receptores são membros dos par-tidos, companheiros, parentes ou compadres. Nada que se distancie muito das imagens do clientelismo e do corporativismo estatal.

Portanto, o controle social é relativo, podendo ser observado em maior ou menor grau, e espera-se que seja ampliado até instâncias ainda não tocadas, e que exigem muito mais organização da sociedade para que se limite o uso do poder. Se compararmos Brasil e Argentina, veremos que esta apresenta uma sociedade muito mais exigente e que cobra mais dos seus governantes. No en-tanto, a ausência de transparência das ações políticas impediu que ali se redu-zissem os índices de corrupção. Os resultados sobre os direitos sociais foram devastadores. No Brasil ocorreu o mesmo, mas aqui o controle cidadão é muito menor, com conseqüências semelhantes no âmbito dos direitos humanos e das privações sociais.

SOCIEDADE CIVIL E ESTADOFocalizando esta discussão, nosso objetivo é problematizar o controle da socie-dade civil em relação às instituições do Estado, como os Legislativos, os Judici-ários e os Executivos, considerando, ainda, o controle que deveria ser exercido em um sistema federativo.3

Particularmente nas décadas recentes, os Legislativos têm merecido baixa credibilidade da população brasileira. Ações de controle, julgamentos e divulga-ções de comportamentos espúrios raramente resultam em punições. Porém, é rarefeita a cobrança sobre os mandatos, quase sempre sem divulgação sistemá-tica para que a sociedade avalie a qualidade da representação. Os escândalos de corrupção não resultam em punição, como já dissemos.

3 Creditamos a Jonathan Fox suas “Proposições para discussão”, no texto a que temos nos referido (2001).

liv_inesc_01h.indd 40liv_inesc_01h.indd 40 21/12/2007 13:50:0121/12/2007 13:50:01

Page 42: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 41

Uma das explicações possíveis é apresentada por Rouquié (1984): integran-tes da classe política, do Estado e do setor público vêm, no geral, das classes mé-dias, com aspirações sociais elevadas, e nem sempre defendem as instituições representativas e o setor público. A porta de entrada para os cargos públicos é o diploma de ensino superior, verdadeiro passaporte para tais funções. Rouquié indaga: trata-se de pilhagem dos cofres públicos ou é um meio de dividir benefí-cios do crescimento da riqueza do país com os novos segmentos recém-integra-dos às camadas superiores da sociedade?

Na mesma direção, O’Donnell questiona se não é por ocasião das crises econômicas por que passaram os países em desenvolvimento que esses repre-sentantes propuseram como alternativa comer até a medula o que havia nos cofres públicos, sem a menor sensibilidade com a questão social. Não estaria aqui um dos núcleos de ação da sociedade civil, o monitoramento dos mandatos dos legislativos? Veja-se o caso do orçamento da União. Há ações em andamen-to durante a sua elaboração, mas essas permanecem na sua execução? Se todo orçamento público refl ete uma intenção política, é tarefa inadiável pressionar no sentido social.

Com todas as falhas, sabe-se hoje que podemos celebrar avanços muito maiores que no passado, principalmente em relação aos Legislativos. Mas e quanto aos Executivos?

Em estudo recente sobre as auditorias de municípios realizadas pela Con-troladoria Geral da União (CGU) – órgão do governo central para monitorar a aplicação de recursos transferidos aos municípios com menos de 450 mil habi-tantes –, encontrou-se que a densidade de organização da sociedade civil é in-versamente proporcional aos índices de corrupção. Já que os recursos transferi-dos são os das áreas de Educação e Saúde, tal estudo conclui que “quanto maior o desenvolvimento socioeconômico e a intensidade associativa, menor o índice de corrupção nos municípios, quando considerados os programas de Educação e Saúde” (Weber, 2006). Nos municípios menores e piores, de baixa qualidade de vida, com lideranças políticas clientelísticas e baixa densidade associativa, o desvio de recursos públicos chega à totalidade dos casos.

Nos municípios em que o Orçamento Participativo tornou-se um instrumen-to real de controle orçamentário, os avanços foram evidentes. Mas na maioria grassa o clientelismo autoritário que, freqüentemente, resiste a pressões da so-ciedade organizada. O que dizer, então, de municípios onde os votos são com-prados e a população é dependente?

Os executivos estaduais e o federal seguem a mesma lógica da opacidade. Raramente, tem-se conhecimento de como as secretarias estaduais e os minis-térios aplicam seus recursos. Sim, não há tradição nesse tipo de ação, mas ain-da pode ser criada.

Talvez, os judiciários sejam uma das instâncias de maior insufi ciência do controle social. De todos os poderes, eles são os de maior opacidade. Freqüente-mente, a ascensão na carreira deve-se a critérios políticos e personalistas. Não

liv_inesc_01h.indd 41liv_inesc_01h.indd 41 21/12/2007 13:50:0121/12/2007 13:50:01

Page 43: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS42

seria demais afi rmar que neles há nepotismo, uma espécie de estirpe real, aris-tocrática, na própria autodefi nição de alguns de seus membros. Na sua maioria, resistem ao controle externo. A própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) rejeita o controle externo.

Mendez (2000) aponta que – em alguns estágios da transição para a democracia – as Cortes obtiveram a confi ança da sociedade em razão do papel desempenhado no julgamento de violações dos direitos humanos durante os períodos ditatoriais. Mas esses momentos não são freqüentes, em grande medida em virtude da pouca independência dessas Cortes em relação aos governos eleitos. No caso brasileiro, é comum a repercussão obtida pelos processos levados às Supremas Cortes contra políticos acusados de corrupção – entretanto, até hoje não houve uma condenação sequer. Nesse, como em outros casos, o Judiciário age contra a população.

Quanto ao meio-ambiente, um estudo sobre redes internacionais de advocacy (Keck e Sikkink, 1998) afi rma que, no Brasil, há mecanismos legais e organi-zações da sociedade que impediriam, por exemplo, a devastação de fl orestas. Contudo, a morosidade do Judiciário torna-os largamente inefi cazes. De todo modo, os grupos ambientalistas de proteção aos direitos do uso da terra ganha-ram aliados internacionais e puderam projetar a luta em um patamar de muito maior visibilidade, nacional e internacional.

Por mais que se discuta a reforma do Judiciário, esse ainda parece um obje-tivo muito distante. Além disso, não há representações na sociedade civil com força corporativa sufi ciente para seu controle. Mas há pressões de entidades in-ternacionais de direitos humanos exigindo ações efetivas contra a violação de direitos, a corrupção, a violência policial, as execuções em presídios, em morros e em movimentos agrários.

Quando algumas vozes se levantam contra a dependência do Judiciário em relação à classe política e aos governos, esse se fecha ainda mais no controle de nomeações, promoções e remoções. É largamente conhecido o caso de um mem-bro do Ministério Público, Luís Francisco: perseguido e ameaçado no estado de Tocantins, só foi removido para Brasília porque houve interferência de sua fa-mília na Comissão de Direitos Humanos diante da possibilidade de ele vir a ser assassinado. São casos de exceção, porque, no geral, o que se tem são remoções favoráveis a cargos mais prestigiosos, em lugares de vida menos árida.

Uma iniciativa do deputado Paulo Renato Souza (PSDB/SP) merece ser men-cionada. Em 2007, ele apresentou à Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional (PEC) para a criação do Tribunal Superior da Probidade Administrativa. Um tribunal exclusivo para julgar crimes contra a administração pública, constituído por autoridades como ministros, parlamentares, governado-res, desembargadores, prefeitos de capitais e de grandes cidades. Seria um tribu-nal com 11 membros indicados(as) pelo Superior Tribunal Federal (STF). Inspirado na “Audiência Nacional” da Espanha, seria um órgão de accountability horizon-tal, pois serviria para auxiliar o Supremo no julgamento de causas como crimes de terrorismo e corrupção. Se iniciativas desse teor são muito bem-vindas, por

liv_inesc_01h.indd 42liv_inesc_01h.indd 42 21/12/2007 13:50:0121/12/2007 13:50:01

Page 44: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 43

que não considerar a presença de membros da sociedade civil que expressariam posições da população, que não tem meios para expor sua indignação diante de atos corruptos impunes das “altas rodas”? Como aponta Barber (2005), nas demo-cracias robustas,há civilidade – respeito e empatia – por pessoas envolvidas em grupos cívicos, mesmo em ações relacionadas com controle social horizontal.

Originalmente, o sistema federativo foi concebido para o exercício do con-trole horizontal. No entanto, dado o grau de autonomia dos estados federados, mesmo após a centralização estatal promovida por Vargas, a partir de 1930, ra-ramente isso acontece. Fox (2001) lembra que organizações transnacionais no campo de direitos humanos, meio-ambiente, direitos de minorias e direitos das mulheres são exemplos de bons aliados no exercício do controle social.

ACCOUNTABILITY E DEMOCRACIASe os processos democráticos estão sempre em construção, o mesmo ocorre com a accountability. Sabemos dos aspectos problemáticos das democracias nos países de grande desigualdade social, cujos desafi os são, precisamente, aqueles pertinentes também à construção progressiva do controle da sociedade em relação aos governos e governantes.

Podemos perguntar: em quais áreas o controle das organizações cívicas deveria se concentrar? Poderíamos pensar em estratégias práticas de controle cidadão sobre as instituições públicas para que respondam às necessidades de suas respectivas populações?

Não há receituário possível, mas diante do que foi aqui considerado, pode-ríamos cogitar possibilidades de tornar a sociedade civil real e efetivamente cívica. E as possibilidades são infi nitas!

Uma primeira questão poderia ser: quão efetivo tem sido o controle social sobre os orçamentos municipais, estaduais e federais, particularmente no que se refere aos investimentos sociais, como as políticas de educação e de saúde? Nenhum candidato às eleições deixa de prometer prioridade sobre tais políti-cas. Mas qual tem sido a prioridade real dos investimentos nessas áreas? Por acaso, os respectivos executivos não continuam tendo o monopólio de decisão sobre tais políticas? Se os legislativos desempenham um papel de infl uência relativa, como tem sido tal relação?

Construir o controle cidadão nessa instância seria também cobrar transpa-rência das ações governamentais e, nesse caso, há pouquíssimo trabalho acu-mulado (Fox, 2001). Alguns grupos organizados e ONGs em reduzido número de municípios acompanham a execução orçamentária como um modo de contri-buir para a democratização. Não são muitos, mas são exemplares. Tal acompa-nhamento acaba provocando um aumento da transparência do poder público, e construindo, pedagogicamente, a cultura da accountability. Se há grupos que iniciaram esse trabalho, por que não divulgar sua ação? Por que não trabalhar com a repercussão dos bons exemplos?

liv_inesc_01h.indd 43liv_inesc_01h.indd 43 21/12/2007 13:50:0121/12/2007 13:50:01

Page 45: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS44

Outra questão: por que não reunir esforços entre organizações diferentes para debater dados produzidos no campo da implementação das políticas pú-blicas? E por que não fazer parcerias entre grupos da sociedade organizada, grupos de pesquisa e fundações interessados em avaliar o que se tem feito nas várias esferas da administração pública? Levando em conta a natureza desse trabalho, que exige colaboração de muitos(as) especialistas, a idéia é a coope-ração de esforços – por exemplo, linhas de pesquisa de cursos de pós-graduação que contemplassem avaliações de políticas públicas e posterior divulgação aos grupos e mídias interessados. Parece absurda a pergunta, mas o quanto sabe-mos sobre os investimentos públicos? O controle cidadão, construído nessa di-reção, pode proporcionar a mais essencial das tarefas de cobrança, porque to-dos os investimentos ganhariam mais transparência e, além disso, saberíamos, afi nal, quais são as reais preferências de governantes e da classe política.

REFERÊNCIAS

ABERS, R. N. Inventing local democracy: grassroots politics in Brazil. London: Lynne Rienner, 2000.

ARANTES, Aldo. Dívida externa brasileira. Brasília, 2002. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília.

AVRITZER, L. A participação em São Paulo. São Paulo: Ed. Unesp, 2004.BARBER, Benjamin. A place for us: how to make civil society and demo-

cracy strong. New York: Hill and Wang. 1998.CICONELLO, A. Associativismo no Brasil: características e limites para a

construção de uma nova institucionalidade democrática participativa. Brasí-lia, 2006. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília.

CINTRA, Antônio Octávio. A integração do processo político no Brasil: al-gumas hipóteses inspiradas na literatura. In: REVISTA BRASILEIRA DE AD-MINISTRAÇÃO PÚBLICA. Rio de Janeiro: FGV, 1971.

_______. A política tradicional brasileira: uma interpretação das relações entre o centro e a periferia. In: CADERNOS DE CIÊNCIA POLÍTICA. Belo Ho-rizonte, 1974.

FOX, Jonathan. Civil society and political accountability: propositions for discussion. In: INSTITUTIONS, ACCOUNTABILITY, AND DEMOCRATIC GO-VERNANCE IN LATIN AMERICA (Conference). Notre Dame: The Helen Kellogg Institute for International Studies, University of Notre Dame, Indiana. May, 2000.

_______. Vertically integrated policy monitoring: a tool for civil society po-licy advocacy. In: NONPROFIT AND VOLUNTARY SECTOR QUARTERLY. Sage Publications, v.30, p.616-27, Sept. 2001.

liv_inesc_01h.indd 44liv_inesc_01h.indd 44 21/12/2007 13:50:0221/12/2007 13:50:02

Page 46: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 45

KECK, M.; SIKKINK, K. Activists beyond borders. Advocacy networks in international politics. London: Cornell University Press, 1998.

LINZ, Juan. Entrevista concedida à autora, New Haven, 1994.MARTINS, L. M. Partidos, ideologia e composição social. São Paulo: Edusp,

2002.MENDEZ, Juan. Legislatures, judiciaries and innovations in horizontal ac-

countability. Notre Dame: The Helen Kellogg Institute for International Stu-dies, University of Notre Dame, Indiana. May, 2000.

O’DONNELL, Guillermo. Horizontal accountability in new democracies. In: Conceptual and normative issues, 1999.

PIZZORNO, A. Introducción al estudio de la participación política. In: PI-ZZORNO; KAPLAN; CASTELLS. Participación y cambio social en la problemá-tica contemporánea. s.l.: Siap-Planteos, 1975. (O texto foi inicialmente publi-cado em Quaderni di Sociologia, v.15, n.3-4, jul.-dez., 1966.)

ROUQUIÉ, Alain. El Estado militar en America Latina. Buenos Aires: EMCE, 1984.

SAMUELS, D. Democratic regimes and accountability for the economy in comparative perspective. Chicago: APSA, 2004.

SCHERER-WARREN, I.; LUCHMAN, L. H. H. (Coord.). Política & sociedade. In: REVISTA DE SOCIOLOGIA POLÍTICA. Dossiê Movimentos Sociais, Partici-pação e Democracia, n.5, out. 2004.

WEBER, Luis Alberto. Participação política e corrupção no Brasil. Brasí-lia, 2006. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília.

liv_inesc_01h.indd 45liv_inesc_01h.indd 45 21/12/2007 13:50:0221/12/2007 13:50:02

Page 47: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS46

46

FOTOS STOCK.XCHNG

liv_inesc_01h.indd 46liv_inesc_01h.indd 46 21/12/2007 13:50:0221/12/2007 13:50:02

Page 48: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 47

Lula, o PT e a política: a danação de Fausto

F R A N C I S C O D E O L I V E I R A

Professor titular (aposentado) de Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas e coordenador-executivo do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Universidade de São Paulo

Examinar uma agenda para o Brasil exige, antes de tudo, fi xar os contornos , as dimensões e os limites da conjuntura em sentido amplo, e não na caricatura em que economistas enquadraram o conceito. Essa conjuntura ampla responde a se já saímos das encruzilhadas abertas pela indeterminação, resultado das políti-cas desde Collor de Mello, enfaticamente levadas a cabo por Fernando Henrique Cardoso e mantidas por Luiz Inácio Lula no primeiro mandato. As encruzilhadas sugeriam que algumas possibilidades estavam abertas, mas não determinadas.

O primeiro mandato de Lula e o segundo, que já tem dez meses, sugere que a indeterminação foi superada pela escolha de um dos caminhos que se ofereciam; a sobredeterminação mais geral – para recuperar uma sugestão do fi lósofo francês Louis Althusser –, é dada pela mundialização/globalização, que propiciou a desnacionalização da política e a despolitização da econo-mia, o declínio dos estados nacionais e sua perda de autonomia, o feroz ata-que aos direitos trabalhistas.

Desde a ditadura militar, contrario sensu, movimentos populares-políti-cos que culminaram na Constituinte, passando antes pela formação de um partido de massas de orientação socialista e de centrais sindicais amplas, e do ressurgimento do movimento camponês – com vigor inusitado para um país que havia realizado uma ampla reforma agrícola ersatz da reforma agrá-ria –, uma espécie de “direção moral” gramsciana ditava a agenda política, incluindo-se aí a enorme abertura para o social, a mudança da economia e um novo papel para o Judiciário e o Ministério Público

De novo em termos do cientista político Antonio Gramsci, uma socialização da política talvez sem paralelo na história brasileira. O Fausto brasileiro ganhava mús-culos, em uma rara combinação na história nacional de movimentos democráticos e populares, equação nem sempre bem realizada no passado, da qual resultou sem-pre a longa “revolução passiva” brasileira.

Esse Fausto ancorou primordialmente no Partido dos Trabalhadores (PT) e personifi cou-se em Lula. Nosso próprio obreirismo viu nisso o cumprimento das promessas da História.1

liv_inesc_01h.indd 47liv_inesc_01h.indd 47 21/12/2007 13:50:0321/12/2007 13:50:03

Page 49: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS48

BRASIL, MOSTRA SUA CARAO Rubicão estava ali para ser atravessado não por um César ávido de poder, mas pelas forças fáusticas que domaram e derrotaram a ditadura militar, como sugerido no artigo O momento Lênin (Oliveira; Rezek, 2007), na brecha da inde-terminação. O falso Fausto atravessou-o, não para conquistar Roma, mas para entregar-se a ela; em vez dos cavalos de fogo da transformação, uma capitula-ção camufl ada pela esmola às pessoas pobres. O que signifi cam R$ 160 bilhões de pagamento de juros da dívida pública interna perante os R$ 8 bilhões do Bol-sa Família no ano da des-graça de 2006 ? E um tucano na presidência do Banco Central, blindado como “ministro” para estar acima das pessoas comuns? E dois grãos-duques do empresariado nas pastas da Agricultura e do Desenvolvimen-to? E a demissão de Carlos Lessa do BNDES por ser desenvolvimentista? E os escândalos que envolvem fi guras importantes do PT ? E o presidente transfor-mado em general do etanol e vendedor-mór do Brasil ? Ari Barroso responderia na década de 1940: tudo isto quer dizer Brasil!

A sobredeterminação globalizadora/mundializadora responde pela colo-nização da política pela economia, mas não carece das escolhas internas que aplainarão o caminho para a completa desnacionalização da política e despoli-tização da economia. O PT mesmo formou a maior resistência ao avassalamen-to cardosiano, impedindo a total privatização das empresas estatais, das quais Petrobras e Banco do Brasil eram as “bolas da vez”, da Previdência Social e o achaque aos direitos trabalhistas.

Cardoso não pôde mexer na Previdência do servidor público, enquanto Lula o fez sem quase nenhuma resistência. Um Rubicão atravessado, agora sim, por um César, pequeno decerto, ávido de poder, e transformista, pois utilizou as forças fáusticas para anulá-las – em fenômeno previsto por Max Weber no es-tudo do carisma – anulou a política, abrindo caminho para completar a obra de erosão das forças do trabalho, vergastadas pela poderosa revolução técnico-científi ca, que banalizou o trabalho e recuperou as frações expulsas da força de trabalho para a acumulação de capital, na forma, evidentemente, de acumula-ção primitiva, ou de espoliação, ou ainda de mercadoria sem equivalência. Na forma das cooperativas de catadores de lixo que, em tucanês, diz-se “resíduos sólidos recicláveis”.

Falto das forças fáusticas, agora reviradas sobre elas mesmas, na forma de uma “hegemonia às avessas”, a política – a pequena política de Gramsci ou a polí-tica policial do fi lósofo francês Jacques Rancière – derivou para o biopoder do fi -lósofo francês Michael Foucault. A hegemonia às avessas é a utilização do Fausto para derrotar as forças que o elegeram, derrotar a “direção moral” imprimida pe-

1 Lembro, só para recordar, que à saída da reunião de formação do PT no Colégio Sion, em São Paulo – e parece que faz um século! – , Leôncio Martins Rodrigues, um dos raros ativistas trotskistas in altri tempi, vibrava, contami-nando a mim próprio e ao fi lósofo José Arthur Giannotti: fi nalmente, a realização dos sonhos dos trotskistas: um poderoso movimento de trabalhadores em associação com os intelectuais!

liv_inesc_01h.indd 48liv_inesc_01h.indd 48 21/12/2007 13:50:0421/12/2007 13:50:04

Page 50: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 49

los movimentos democrático-populares da era das invenções políticas, pagar os R$ 160 bilhões de serviço da dívida pública interna em 2006; deixar a política para as pessoas pobres, dada sua irrelevância; eleger usineiros de açúcar como “heróis” da sociedade brasileira; realizar os objetivos das classes dominantes conduzidas, agora, pelos dominados; uma economia de política, não uma eco-nomia política, que se resume na frase do próprio pequeno César: “governar para os pobres é fácil, porque eles pedem muito pouco”.2

Todas as ações sociais são biopolíticas, são emergenciais, e daí se caminha para um permanente estado de exceção e, na velha defi nição de Carl Schmitt, o soberano é quem defi ne a exceção: Lula é esse soberano. É ele quem diz se o presidente do Senado, Renan Calheiros ( PMDB–AL), deve ser salvo. É ele quem retira suas próprias medidas provisórias, que já são excepcionais, para limpar a pauta do Congresso e avançar na votação da prorrogação da Contribuição Provi-sória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) – que, de provisória, virou permanente. Ações sociais para recortar a sociedade em carentes, defi cientes, sem-teto, sem-renda, sem-terra, sem-comida: para anular a potência da reivindicação da parcela de pessoas que não têm direito, nos termos de Rancière.

Não é o enfrentamento da pobreza: é sua funcionalização, é sua gestão. Nada mais neoliberal: não se deve esquecer que foi o Milton Friedman, um dos mais or-todoxos monetaristas de Chicago, quem inventou a renda-família, quando asses-sorava a ditadura de Augusto Pinochet, no Chile. Tratava-se de um expediente para exatamente desuniverlizar as reivindicações, logo depois de um governo como o de Salvador Allende – que se tinha erguido justamente sobre o oposto. Mas como todo governo tem por obrigação manter o monopólio da violência legal, as ações sociais focadas tentam satisfazer demandas sociais como elemento de controle político.

DOSES HOMEOPÁTICAS DE CONSENSOIsto nos aproxima de outro tema: participação e controle. Mesmo nas formas extremas ditatoriais, o Estado necessita legitimar-se diante da população do-minada. O exemplo de Pinochet e sua “bolsa-família” deveria bastar, mas não custa insistir no ponto. Como nos ensinou o “pequeno grande sardo”, de Grams-ci, nenhuma dominação se mantém por longo tempo apelando apenas para a violência e a coerção. Uma mínima dose de consenso é requerida , e há sempre formas muito variadas de obtê-lo.

As ações sociais são uma dessas formas, talvez a mais efi caz, exatamente porque atende a situações de exceção, e, portanto, tornam-se unívocas, um ter-reno para o consenso negativo. Ninguém negará que o confl ito de classes no

2 Discurso do presidente Luiz Inácio Lula em junho de 2006, em Contagem, Minas Gerais, em palestra para a classe trabalhadora da região, em plena campanha pela reeleição.

liv_inesc_01h.indd 49liv_inesc_01h.indd 49 21/12/2007 13:50:0421/12/2007 13:50:04

Page 51: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS50

Brasil – como nos Estados Unidos (EUA), que são os inspiradores das ações afi r-mativas – passa pela cor–etnia, assim como nos ensinou a saudosa Beth Lobo, que “classe tem sexo”, que a dominação de classe ganha mais efi cácia quando se realiza aproveitando a discriminação de sexo – ou de gênero, como se diz hoje em sociologuês politicamente correto.

Assim, a discriminação é que se ergue em estatuto da política, para reafi r-má-la e não para negá-la. Quem pode ser contra as políticas afi rmativas, como cotas para pessoas negras nas universidades ou as políticas do Bolsa Família, quando é evidente que o sistema brasileiro jamais dará conta de aumentos do salário real que dispensem a caridade governamental e que as pessoas negras são quase impedidas de entrar nas universidades públicas?

Curioso é que as pessoas pobres sabem disto: ninguém se fi a mais em que as oportunidades estão abertas: as letras politizadas das músicas dos guetos pobres falam disso abertamente. Um aviso às organizações não-governamen-tais (ONGs): entidades que nasceram como vocalizações do que o sistema inter-ditava, até porque o léxico político não as alcançava, estão se transformando em produtoras de um consenso negativo na forma da institucionalização das políticas sociais ditas afi rmativas.

No Brasil, como na África do Sul – que, aliás, são os lugares de ensaio de uma nova forma de dominação, a “hegemonia às avessas” –, etnia se confunde com a classe, mas o combate às diferenças étnicas não tem efi cácia. Em primeiro lugar, porque a pobreza é negra, ou mulata, ou parda, como dizia a antiga classifi cação do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE). Logo, combatendo-se a pobreza de classe, combate-se a discriminação étnica, como de novo a África do Sul nos mostra e mesmo a chamada “burguesia negra” dos EUA.

Quando a política se dirige por estatutos do biopoder, não se anula a pobreza de classe, apenas se faz um novo recorte entre pessoas negras e mulatas. O fi l-me “Infância roubada”, que se passa na África do Sul, em Johannesburgo, mos-tra um seqüestro realizado por uma gangue de pobres, negros, evidentemente, em uma família rica...negra ! A discriminação não desapareceu, apenas mudou de classifi cação: agora, a classe determina a hierarquia, e não mais a cor!

No Brasil, está acontecendo o mesmo. A discriminação de classe se apre-senta revestida de preconceito de cor e de região: então, ser nordestina, negra e mulher é a suma teológica brasileira! Mas vejamos a ação do Bolsa Família: estudos recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e de seus ideólogos – liderados por Paes de Barros – mostram uma diminuição da desi-gualdade. Loas à política do Bolsa Familia!

Mas o que essa diminuição não diz é que se trata de diminuição nas remu-nerações do trabalho, e que essas vêm perdendo para as rendas do capital na distribuição funcional da renda ! Então, de qual diminuição da desigualdade está se falando ? Qualquer estatístico sabe que o decil mais alto é sempre aber-to, pois apenas se pode fechá-lo por critérios convencionais. Em uma sociedade

liv_inesc_01h.indd 50liv_inesc_01h.indd 50 21/12/2007 13:50:0421/12/2007 13:50:04

Page 52: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 51

tão desigual como a brasileira, o decil superior aberto esconde qualquer possi-bilidade de mensurar-se a efetiva desigualdade. Isto é a América Latina, Brasil y compris, pois se sabe hoje, graças à revista Forbes – deletéria publicação gringa para louvar a ideologia burguesa mais rasteira –, que o homem mais rico do mundo é um mexicano.

Toda essa contrafacção se dá sem nenhuma base social ? Seria ingênuo pen-sar que a política policial ou a pequena política tem esse poder. De fato, há uma mudança na sociedade brasileira que autoriza e cauciona a política das diferen-ças – nosso Flávio Pierucci tem um artigo clássico em que já chamava a atenção para o problema, Armadilhas da diferença – assim chamada em bom sociolo-guês: a intensa urbanização posicionou, lado a lado, no espaço metropolitano, pessoas ricas e pobres.

A antiga discriminação espacial, de que são exemplos acabados os bairros da City em São Paulo, já não segrega, pois a força de trabalho é requerida em todos os lugares do espaço urbano. Então, como nos mostra Mariana Fix (2007), a nova discriminação não busca, utopicamente, separar pessoas ricas e pobres. Busca aproximá-las espacial e socialmente separá-las. Até porque empregadas domésticas, garçons, motoristas, motoqueiros são necessários e devem morar perto – e a própria população pobre quer morar perto do trabalho – mas social-mente separados.

Assim, “cidade global” são os novos edifícios auto-sufi cientes, inteligentes, onde somente se entra pelas garagens, mediante total identifi cação: “sorria, você está sendo fi lmado”. Com agências bancárias em seu interior, até agência dos Correios. Um ícone da “cidade global” é um edifício na zona da Berrini, em São Paulo, que tem não apenas um heliponto, mas um verdadeiro aeroporto de helicópteros, que faz ali mesmo o check in de executivos que vão ao exterior ou a outros estados, sem necessidade de passar pelo check in das empresas nos aeroportos de uso comum.

Em poucas palavras, para terminar, a intensa mudança na estrutura de classes, a erosão da classe trabalhadora formal, a informalização em larga es-cala, a formidável concentração da renda, a escandalosa ostentação de riqueza, criou uma vitória do capitalismo de graves conseqüências. O “levar vantagem em tudo” do gênio canhoto da seleção de 70 transformou-se no bordão de uma parte considerável da sociedade. É isso que cauciona a danação do Fausto.

REFERÊNCIASFIX, Mariana. São Paulo, cidade global. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lênin. In: OLIVEIRA, Francisco de; RE-

ZEK, Cibele Saliba (Orgs.) A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo Edito-rial, 2007.

liv_inesc_01h.indd 51liv_inesc_01h.indd 51 21/12/2007 13:50:0421/12/2007 13:50:04

Page 53: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS52

52

FOTOS VALTER CAMPANATO/ABR

liv_inesc_01h.indd 52liv_inesc_01h.indd 52 21/12/2007 13:50:0421/12/2007 13:50:04

Page 54: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 53

Discriminação e violência – obstáculos na conquista dos direitos

S U E L I C A R N E I R O

Doutora em Filosofi a da Educação, diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra

É de Joaquim Nabuco a compreensão de que a escravidão marcaria, por longo tempo, a sociedade brasileira porque ela não teria sido seguida de “medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de qualquer impulso interior, de renovação da consciência pública.” Na base dessa contradição, per-dura uma questão essencial acerca dos direitos humanos: a prevalência de uma concepção de que certos humanos são mais ou menos humanos do que outros e, por conseqüência, a naturalização da desigualdade de direitos.

Se algumas pessoas estão consolidadas no imaginário social como portado-ras de uma humanidade incompleta, torna-se natural que não participem, iguali-tariamente, do gozo pleno dos direitos humanos. Uma das heranças da escravidão com a qual contribuiu, posteriormente, o racismo científi co do século XIX – que dotou de suposta cientifi cidade a divisão da humanidade em raças, estabelecendo hierarquia entre elas e conferindo-lhes estatuto de superioridade ou inferioridade naturais. Dessas idéias decorreram e se reproduzem as conhecidas desigualdades sociais que vêm sendo amplamente divulgadas nos últimos anos no Brasil.

O pensamento social brasileiro tem longa tradição no estudo da problemáti-ca racial e, no entanto, na maior parte de sua história, as perspectivas teóricas que o recortaram respondem, grandemente, pela postergação do reconhecimen-to da persistência de práticas discriminatórias em nossa sociedade.

Nadya Castro Araújo inventaria o percurso por onde o pensamento social brasileiro sobre as relações raciais foi se transformando a partir das diferentes óticas pelas quais foi abordado, iniciando-se pelo pessimismo em relação à con-fi guração racial miscigenada da sociedade brasileira, corrente no fi m do século XIX até as primeiras década do século XX – como atestam pensadores como Sílvio Romero, Paulo Prado, Nina Rodrigues, entre outros –, passando pela visão idílica sobre a natureza das relações raciais constituídas no período colonial

liv_inesc_01h.indd 53liv_inesc_01h.indd 53 21/12/2007 13:50:0521/12/2007 13:50:05

Page 55: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS54

e determinantes na predisposição racialmente democrática da sociedade bra-sileira – que tem em Gilberto Freyre sua expressão maior e mais duradoura. Comparecem, ainda, visões que situam a questão racial como reminiscências da escravidão, fadadas a desaparecer tanto mais se distancie no tempo daquela experiência histórica, ou ela é situada como subproduto de contradições sociais maiores, ditadas pela análise materialista dialética que as informava, como ex-plica Florestan Fernandes. Para Castro, nessa leitura :

a desigualdade racial era descrita como um epifenômeno da de-sigualdade de classe. Mesmo ali onde estereótipos e preconceitos contra negros eram expressamente manifestos, eles eram analisa-dos antes como atos verbais que como comportamentos verdadei-ramente discriminatórios. (1998)

O novo ponto de infl exão nessa análise emerge na obra do sociólogo Carlos Hasenbalg. Pela primeira vez, as desigualdades raciais são realçadas a partir de uma perspectiva em que discriminação e racismo são tomados como variáveis independentes e explicativas de tais desigualdades.

Essas concepções conformam as duas matrizes teóricas e/ou ideológicas em disputa na sociedade. De um lado, o mito da democracia racial, ao desracializar a sociedade por meio da apologética da miscigenação, presta-se, historicamente, ao ocultamento das desigualdades raciais. Como afi rma o Hasenbalg, esse mito resulta em “uma poderosa construção ideológica, cujo principal efeito tem sido manter as diferenças inter-raciais fora da arena política, criando severos limites às demandas do negro por igualdade racial” (Hasenbalg, 2002).

De outro lado, a força do pensamento de esquerda que, ao privilegiar a pers-pectiva analítica da luta de classes para a compreensão de nossas contradições sociais, tornam secundárias as desigualdades raciais, obscurecendo o fato da raça social e culturalmente construída ser determinante na confi guração da es-trutura de classes em nosso país. Essa inscrição e subordinação da racialidade no interior da luta de classes foi iniciada inspirando perspectivas militantes que buscam articular raça e classe como elementos estruturantes das desigual-dades sociais no país.

Mais recentemente, economistas vêm qualifi cando a magnitude dessas desi-gualdades a ponto de, neste momento, podermos afi rmar que vivemos em um país apartado racialmente. De fato, as disparidades nos Índices de Desenvolvimento Hu-mano (IDHs) encontradas para pessoas brancas e negras indicam que o segmento da população brasileira autodeclarado branco apresenta em seus indicadores so-cioeconômicos (renda, expectativa de vida e educação) padrões de desenvolvimento humano compatíveis com os de países como a Bélgica; que o segmento da popula-ção brasileira autodeclarado negro – pessoas pretas e pardas, segundo classifi cação do Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE) – apresenta um IDH infe-rior ao de inúmeros países em desenvolvimento como a África do Sul que, há menos de duas décadas, erradicou o regime de apartheid.

liv_inesc_01h.indd 54liv_inesc_01h.indd 54 21/12/2007 13:50:0621/12/2007 13:50:06

Page 56: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 55

Sociologia e economia são áreas que vêm consolidando uma nova percepção sobre a importância da racialidade na confi guração das desigualdades sociais no Brasil, tornando-a variável estrutural para a compreensão e superação do problema social.

Apesar disso, as duas ideologias, o mito da democracia racial e a perspecti-va da luta de classes têm, portanto, em comum a minimização ou o não-reco-nhecimento e/ou a invisibilização da intersecção de raça para as questões dos direitos humanos, da justiça social e da consolidação democrática, permane-cendo atuantes como elementos que difi cultam a inscrição da erradicação das desigualdades raciais nas políticas públicas.

GOVERNO LULA E QUESTÃO RACIALReconheça-se, a bem da verdade histórica, que Fernando Henrique Cardoso – em coerência com sua produção acadêmica sobre a pessoa negra – foi o primeiro pre-sidente na história da República brasileira a declarar, em seu discurso de posse, que havia um problema racial no Brasil e que era necessário enfrentá-lo com au-dácia política. Em conseqüência, foi em seu governo que as primeiras políticas de inclusão racial foram gestadas e implementadas, sendo grandemente impul-sionadas pelo processo de construção da participação do Brasil na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Corre-latas de Intolerância – realizada em Durban, África do Sul, em 2001.

Em linha de continuidade e acrescido das propostas organizadas no documento Brasil sem Racismo, o presidente Lula aprofunda esse compromisso com a erradi-cação das desigualdades raciais. Pode-se dizer, no entanto, que o primeiro mandato do governo Lula caracterizou-se por gestos simbólicos de grande envergadura e ti-bieza na implementação das medidas concretas de promoção da igualdade racial.

Dentre os gestos simbólicos, destacam-se: a presença de Matilde Ribeiro na equipe de transição de governo; a presença de Paulo Paim na primeira vice-presi-dência do Senado Federal; as nomeações de Benedita da Silva na pasta de Assis-tência Social; Gilberto Gil na de Cultura; e Marina Silva, na do Meio-ambiente; a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, com status de Ministério, sob a liderança de Matilde Ribeiro; as presenças de Muniz Sodré e de represen-tante da Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES); e a indicação do ministro Joaquim Benedito Barbosa Gomes para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Inegavelmente, em nenhum outro governo houve a presença desse número de pessoas negras ocupando postos de primeiro escalão, em franca sinalização para a sociedade de uma política de reconhecimento e inclusão das pessoas ne-gras em instâncias de poder. Se, historicamente, as ações de governo sempre são consideradas demasiadamente tímidas perante as expectativas dos movi-mentos sociais, nesse caso, há decisões importantes sobre o tema que avançam em relação ao que já foi realizado anteriormente.

liv_inesc_01h.indd 55liv_inesc_01h.indd 55 21/12/2007 13:50:0621/12/2007 13:50:06

Page 57: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS56

AVANÇOS, FRACASSOS E RECUOS O exemplo mais emblemático das ambigüidades do governo no trato da questão ra-cial está no seu tratamento no Plano Plurianual (PPA) .No artigo “O recorte de raça no Plano Plurianual 2004–2007 com transversalidade de gênero e geração”, de Iradj Egrare, a primeira constatação do autor é a “ausência generalizada da transversali-dade de raça nas políticas públicas brasileiras.” Ele observa que o PPA 2000–2003 incluiu dentre os seus 28 macro-objetivos apenas um defi nido como cultura afro-brasileira. Para o autor, isso refl ete a visão governamental de tratar “as característi-cas da população afrodescendente como mera peculiaridade cultural”, ressaltando que a “promoção da cidadania dos afrodescendentes extrapola qualquer valorização restrita ao campo da cultura, permeando os campos da segurança pública, preven-ção e superação da violência, acesso a serviços de educação, saúde, lazer, esporte, transporte, moradia, dentre outros” (Egrare, 2007, p.3).

O trabalho de Egrare busca identifi car as tendências expressas no processo de elaboração do PPA 2004–2007. Nesse sentido, ressente-se da análise da forma fi nal adquirida pelo PPA. Aponta o confi namento ou restrição do tema das desigualda-des raciais ao item 9 (desafi o) das 12 diretrizes do Mega-objetivo I: Inclusão social e redução das desigualdades sociais. Tal confi namento traduz-se, para o autor, em inexistência de perspectiva transversal no tratamento do tema. Egrare evidencia, ainda, as disparidades entre o PPA e o documento Plano Brasil de Todos.

O silenciamento e ocultamento das variáveis de raça e gênero no Plano Plu-rianual contraria a suposta vontade política expressa no documento. No artigo “Os dois níveis do racismo institucional”, de Mário Theodoro, esse aparente pa-radoxo identifi cado por Egrari alcança explicação. Como o título do artigo já anuncia, Theodoro identifi ca o próprio Estado brasileiro como agente reprodu-tor das desigualdades raciais em dois aspectos: pela ação e pelo funcionamento da máquina estatal.

No plano da ação, apesar da conquista dos movimentos negros de consegui-rem inscrever a redução das desigualdades raciais entre os grandes desafi os do PPA 2004–2007, adverte o autor que, ao contrário do que ocorre com outros desafi os, esse “não se traduziu em programas fi nalísticos e ações específi cas. Manteve-se como Programa de Gestão, o que, na prática, o engessa como in-tenção e inação.” Theodoro analisa, ainda, contradições semelhantes presen-tes em outros instrumentos da ação governamental, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) e no eixo relativo ao funcionamento da máquina para concluir que: para alterar a lógica que orienta o Estado brasileiro no trato da questão racial é mister:

refundar a questão racial no Brasil; resgatar o aparato legal e institucional vigente; introduzir a transversalidade e a idéia da promoção da igualdade racial como vetor básico da ação dos ministérios e demais órgãos do Poder Executivo; introduzir ações de formação do corpo técnico federal para a problemática da desigualdade racial.

liv_inesc_01h.indd 56liv_inesc_01h.indd 56 21/12/2007 13:50:0621/12/2007 13:50:06

Page 58: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 57

A visão de Theodoro, bem como os desafi os por ele arrolados, dão uma di-mensão dos desafi os que emergem para os movimentos negros para realizar uma ação política efi caz no campo das políticas públicas de corte racial. O gesto concreto de vontade política em relação a um problema social envolve, além do reconhecimento do problema, a alocação de recursos para a viabi-lização dessas políticas, pois, tal como conclui Theodoro, o que temos até o momento é:

um desafi o norteador da ação do governo. Falta-lhe no entanto conteúdo. Deveria se desdobrar em diferentes programas fi nalísti-cos com indicadores fi xados, e esses programas devem ser des-membrados em ações setoriais com metas especifi cadas. Metas e indicadores que tenham uma dimensão maior, do tamanho do desafi o. Propor programas e ações – indicadores e metas – implica em direcionamento de recursos para o desafi o já existente. (2004)

Dentre os principais avanços está a promulgação da Lei 10.639/03, em 9 de janeiro de 2003, que alterando a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e passou a instituir no currículo ofi cial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cul-tura Afro-brasileira. Um marco no sentido de introduzir na educação brasilei-ra uma forma de valorizar a participação de afro-brasileiros(as) na história do país, bem como de resgatar os valores culturais africanos.

Além da instituição da temática no currículo, o decreto também inclui no calendário escolar, conforme o artigo 79-B, o 20 de novembro como Dia Nacio-nal da Consciência Negra. Porém, o presidente Lula vetou artigo da lei segundo o qual as disciplinas História do Brasil e Educação Artística deveriam dedicar pelo menos 10% do seu conteúdo programático à temática negra. Esse artigo foi considerado inconstitucional por não observar os valores sociais e culturais das diversas regiões do país.

Também foi vetado artigo que determinava que os cursos de capacitação do professorado contassem com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, de universidades e de outras instituições de pesquisa pertinente à matéria. Esse artigo foi considerado ilegal por incluir na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional assunto estranho a essa lei que, em nenhum dos seus artigos, faz menção a esses cursos.

Segundo o Ministério da Educação, os parâmetros curriculares nacionais do ensino fundamental e médio já orientam que a diversidade cultural, étnica e religiosa esteja nos currículos. No entanto, os avanços na implantação dessa lei vêm dependendo dos mesmos atores de sempre, os movimentos sociais – é o caso da representação do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) e de outras entidades ao Ministério Público Federal para a implementação da Lei 10.639 em todo o país. Uma das vitórias dessa iniciativa é o fato de o juiz da infância do Rio de Janeiro, Guaraci Viana, ter intimado:

liv_inesc_01h.indd 57liv_inesc_01h.indd 57 21/12/2007 13:50:0621/12/2007 13:50:06

Page 59: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS58

o MEC e demais órgãos competentes da capital a cumprirem já a lei federal que manda ensinar história africana e cultura afro-brasileira nos colégios.Viana acatou ação movida por entidades do movimento negro, liderada pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA). (O Globo, 2007)

Na área da saúde, celebra-se a aprovação, por unanimidade, pelo Conselho Nacional de Saúde da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Tal decisão representa o reconhecimento, pelo governo brasileiro, das iniqüi-dades raciais presentes no acesso à saúde que expõem, desproporcionalmente, pessoas negras à mortalidade e à morbidade por causas preveníveis e evitáveis. Dentre elas, destacam-se: a mortalidade infantil de crianças até 1 ano de idade; o descaso com a prevenção e atenção em relação às doenças prevalentes entre a população negra, como diabetes, hipertensão arterial, anemia falciforme e miomatoses; os números superiores de mortalidade materna entre mulheres negras resultantes das diferenças percebidas pelos estudiosos do tema, para pior, na assistência à gravidez, ao parto e ao puerpério.

Esse conjunto de fatores está enquadrado pelos especialistas da área de saúde no conceito de racismo institucional que se refere à:

incapacidade coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado ou profi ssional às pessoas devido à sua cor, cultura ou origem racial/étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos que contribuem para a discriminação por meio de preconceito não intencional, ignorância, desatenção e estereótipos racistas que prejudicam determinados grupos raciais/étnicos, sejam eles minorias ou não. (CRE/UK, 1999, p. 2 apud Werneck, 2004)

Como no caso da Lei 10.639/03, a implementação dessa política, onde ocor-re, deve-se à ação de sensibilização de profi ssionais de saúde pelas organiza-ções dos movimentos sociais, em especial, de mulheres negras.

O reconhecimento do racismo institucional pelo governo como uma questão estratégica no combate ao racismo e na reprodução das desigualdades raciais tem sua expressão também no Projeto Combate ao Racismo Institucional – uma parceria entre Ministério do Governo Britânico para o Desenvolvimento Inter-nacional (DFID) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em cooperação com prefeituras municipais e organizações da sociedade civil da região Nordeste. Por meio desse programa, as instituições públicas poderiam se capacitar para superar os entraves ideológicos, técnicos e de natureza admi-nistrativa, que difi cultam o enfrentamento dos efeitos combinados do racismo e do sexismo, poderosos obstáculos ao acesso ao desenvolvimento. Infelizmen-te, esse convênio acaba de ser encerrado.

liv_inesc_01h.indd 58liv_inesc_01h.indd 58 21/12/2007 13:50:0621/12/2007 13:50:06

Page 60: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 59

Porém, até o momento, outros programas governamentais de signifi cativa importância para a população negra fracassaram. Foi o caso do Primeiro Em-prego, que previa o incentivo às empresas como um mecanismo de combate à discriminação de jovens pertencentes a grupos discriminados, como negros, mulheres e defi cientes. Contudo, é na área da segurança pública que os jovens negros encontram-se mais expostos a uma matança que se assemelha ao geno-cídio, com absoluta inação por parte do governo.

Percebe-se, por fi m, o recuo do governo em relação aos projetos de lei que prevêem a reserva de cotas para pessoas negras, índigenas e estudantes oriundos(as) de escolas públicas e ao Estatuto da Igualdade Racial – que desen-cadearam uma ofensiva conservadora jamais vista na sociedade brasileira.

REAÇÃO CONSERVADORA

Não obstante, o dilema social representado pelo negro liga-se à violência dos que cultivaram a repetição do passado no presente. (Fernandes, 1988)

A possibilidade de aprovação de dispositivos legais que institucionaliza-riam a política de cotas e de promoção da igualdade racial motivou o mani-festo assinado por parcela da intelligensia nacional endereçado ao Congres-so Nacional, “pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do Estatuto da Igualdade Racial)”. Alegam que o Estatuto e as cotas raciais rompem com o princípio da igualdade e ameaçam a República e a democracia.

Como vimos apontando em diferentes artigos – e aqui cabe novamente rei-terar –, as políticas de ação afi rmativas têm sido implementadas em uma diver-sidade de países. Têm sido praticadas para atender a diferentes segmentos da população que, por razões históricas, culturais ou de racismo e discriminação, foram prejudicados em sua inserção social e participação igualitária no desen-volvimento desses países.

liv_inesc_01h.indd 59liv_inesc_01h.indd 59 21/12/2007 13:50:0621/12/2007 13:50:06

Page 61: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS60

Além dos EUA, temos exemplos na Inglaterra; Canadá (indígenas, mulheres e negros); Índia (a Constituição de 1948 previu medidas especiais de promoção dos dalits, os intocáveis); Colômbia (indígenas); Malásia (o grupo étnico majo-ritário, buniputra); União Soviética (4% das vagas da Universidade de Moscou para habitantes da Sibéria); Israel (falashas, judeus de origem etíope); Alema-nha (mulheres); Nigéria (mulheres); Sri Lanka; África do Sul; Austrália; Nova Zelândia; Noruega; Bélgica (imigrantes); Líbano (participação política das di-ferentes seitas religiosas); China; e Peru.

Recentemente, foi anunciada a proposta de um projeto de lei ao Parla-mento indiano para duplicar o número de vagas para minorias no siste-ma de cotas em universidades federais. Segundo o projeto, quase metade das vagas nas faculdades profissionalizantes públicas serão destinadas às castas mais baixas e às classes chamadas de “tradicionalmente desfavo-recidas”. Atualmente, 22,5% das vagas nas faculdades são reservadas para dalits e estudantes tribais. Segundo o novo projeto, o número de vagas re-servadas vai passar para 49,5%. A Índia é um dos países que mais nos causa inveja em termos de crescimento econômico e desenvolvimento científico e tecnológico. Provavelmente, parte essencial dessa performance se deva ao investimento efetivo feito no desenvolvimento de seus recursos humanos, por meio da educação.

Enquanto essas medidas especiais para a promoção de grupos “desfavoreci-dos” existem como política de Estado na Índia, desde 1948; no Brasil, as ações afi rmativas patinam em um debate escapista, fundado na defesa de suposta meritocracia, escondendo o desejo de permanência de um status quo que, his-toricamente, produz privilégios, reproduz e amplia as desigualdades raciais e retarda o desenvolvimento.

No entanto, essas iniciativas são ocultadas pelos grupos contrários às cotas. Mais que isso, ao focarem sua crítica tomando por referência exclu-siva a experiência estadunidense, buscam angariar para suas teses o bene-fício indireto do suposto ou latente sentimento antiamericano, tão em voga no mundo. Forçam, assim, a associação de dependência da população negra brasileira às teses dos movimentos negros afro-americanos como expressão de imperialismo cultural de segunda linha e construção de uma problemática inexistente no Brasil.

Em nenhum país onde as cotas foram aplicadas tem-se notícia de a medida ter sido capaz de provocar tamanha hecatombe. Mas, curiosamente, esses in-telectuais temem que isso possa ocorrer precisamente no país da “democracia e cordialidade racial”. Os intelectuais contemporâneos contrários ao Estatuto consideram que: “Se [o Estatuto] entrar em vigor, representará uma mudança essencial nos fundamentos políticos e jurídicos que sustentam a nação brasi-leira” (Folha de S. Paulo, 2006). Como apontamos, as cotas foram adotadas em países desenvolvidos e em desenvolvimento, sem que, em nenhum deles, fos-sem abalados os seus fundamentos políticos e jurídicos.

liv_inesc_01h.indd 60liv_inesc_01h.indd 60 21/12/2007 13:50:0621/12/2007 13:50:06

Page 62: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 61

Esses intelectuais aferram-se ao princípio universalista liberal vigente no início do século XX, escamoteando a contribuição de pensadores contemporâ-neos – tais como Norberto Bobbio, John Rawls, Charles Taylor, entre outros – , que alargaram as noções de democracia e igualdade e deram sustentação te-órica para muitas das experiências de ações afi rmativas adotadas no mundo. Intencionalmente, esse artifício oculta as ressignifi cações empreendidas pela ciência política, as defi nições substantivas que elas adquiriram na formulação daqueles que buscam teórica e politicamente a equalização de direitos.

Norberto Bobbio nos mostra sob quais condições é possível assegurar a efe-tivação dos valores republicanos e democráticos. Para ele, impõe-se a noção de igualdade substantiva, um princípio igualitário porque ‘‘elimina uma discrimina-ção precedente.’’ Bobbio compreende a igualdade formal entre os seres humanos como uma exigência da razão que não tem correspondência com a experiência histórica ou com uma dada realidade social. Signifi ca que “na afi rmação e no reconhecimento dos direitos políticos, não se pode deixar de levar em conta determinadas diferenças, que justifi cam um tratamento não igual. Do mesmo modo, e com maior evidência, isso ocorre no campo dos direitos sociais.” (Bob-bio, 1992, p. 71).

Em Rawls, a noção de diferença irá sustentar tanto o reconhecimento da desigualdade como seu reconhecimento como fundamento da realização da igualdade entre desiguais. Conforme ele: “o princípio [da diferença] determi-na que a fi m de tratar as pessoas igualitariamente, de proporcionar uma ge-nuína igualdade de oportunidades, a sociedade deve dar mais atenção àqueles com menos dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A idéia é de reparar o desvio das contingências na direção da igualdade.” (Ralws, 2002, p. 107).

Para além das contribuições da ciência política, a jurisprudência nacional tem dado sustentação às teses defendidas por ativistas anti-racistas. O caso de Siegfried Ellwanger, condenado pelo crime de racismo por edição de obra anti-semita, é emblemático nessa direção. Em primeiro lugar no acórdão desse caso, o ministro Gilmar Mendes defende que a Constituição compartilha o sentido de que “o racismo confi gura conceito histórico e cultural assente em referências supostamente raciais, aqui incluído o anti-semitismo.”

O ministro da Defesa, Nelson Jobin, recusou o argumento da defesa, segun-do o qual judeus seriam um povo e não raça e, por isso, não estariam ao abrigo do crime de racismo como disposto na Constituição. Entendeu o ministro que essa visão “parte do pressuposto de que a expressão racismo usada na Consti-tuição teria conotação e um conceito antropológico que não existe.” A ministra Ellen Gracie, por sua vez, resolveu – ao contrário do que professam cientistas nacionais empenhados em desconstituir as pessoas negras de sua racialidade histórica – apoiar as teses dos que consideram que “não somos racistas”, que “É impossível, assim me parece, admitir-se a argumentação segundo a qual se não há raças, não é possível o delito de racismo”.

liv_inesc_01h.indd 61liv_inesc_01h.indd 61 21/12/2007 13:50:0721/12/2007 13:50:07

Page 63: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS62

E, por fi m, o ministro do STF, Marco Aurélio Mello, indica que construir a igualdade requer, em princípio, reconhecer a desigualdade historicamente construída: “Temos o dever cívico de buscar tratamento igualitário a todos os cidadãos, e isso diz respeito a dívidas históricas. O setor público deve, desde já, independentemente da vinda de qualquer diploma legal, dar à prestação de serviços uma outra conotação, lançando em editais a imposição em si de cotas, que visem contemplar as minorias” (Correio Braziliense, 2001, p.5), alertando ainda que as chamadas minorias não dizem respeito à questão numérica, mas à questão de acesso às oportunidades.

Mas intelectuais empenhados no combate às cotas e ao Estatuto passam, intencionalmente, ao largo de todo esse acúmulo democrático – qual sejam, os novos direitos conquistados por novos sujeitos políticos em diferentes arenas – que teve como palco privilegiado a agenda social das Nações Unidas cumprida durante a década de 1990. Esta se concluiu com a Conferência contra o Racismo, realizada em Durban, em setembro de 2001, da qual emergem os compromissos assumidos pelo Brasil, como país-membro das Nações Unidas, de avançar em uma agenda de promoção da igualdade racial, da qual o Estatuto seria marco legal. O Plano de Ação da Conferência de Durban insta os Estados a elaborarem “programas destinados aos afrodescendentes e destinem recursos adicionais a sistemas de saúde, educação, habitação, eletricidade, água potável e medidas de controle do meio ambiente, e que promovam a igualdade de oportunidades no emprego bem como outras iniciativas de ação afi rmativa ou positiva.”

Porém, se o alvo prioritário dessa ofensiva conservadora são as cotas para pessoas negras, em particular, e as políticas de promoção da igualdade, em ge-ral, essa investida e a retórica que a acompanha ameaçam, indiretamente, os novos direitos que vêm sendo conquistados pelos novos sujeitos políticos no processo de consolidação e expansão da experiência democrática – na qual se empenham há décadas os movimentos sociais e as organizações não-governa-mentais – dentre esses, o direito à diferença.

Vale lembrar que muitas dessas conquistas foram consagradas em instru-mentos internacionais que obrigam os Estados-membros das Nações Unidas, ou lhes recomendam, a implementar políticas públicas corretoras das desigual-dades, prevendo, até mesmo, tratamento diferenciado a grupos vulnerabiliza-dos como forma de promoção da igualdade de oportunidades.

Nesse sentido, no plano dos compromissos internacionais assumidos pelo governo brasileiro, exigiria a aceitação da concepção clássica de igualdade de-fendida por esses intelectuais, que ignora os pactos, tratados e convenções assi-nados pela ONU, como, entre outros, a Convenção Internacional sobre Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965; a Conferência de Beijing, 1995; o Plano de Ação da Conferência Regional das Américas, em Santiago do Chile, 2000; a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul, 2001. De todos, o Brasil é sig-natário e deve prestar contas dos avanços alcançados em cada caso.

liv_inesc_01h.indd 62liv_inesc_01h.indd 62 21/12/2007 13:50:0721/12/2007 13:50:07

Page 64: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 63

No plano nacional, no limite, a se levar às últimas conseqüências as posi-ções por eles defendidas, estariam em questão também vários dispositivos constitucionais ou infraconstitucionais, tais como o que institui tempo dife-renciado de aposentadoria para as mulheres; o artigo 93 da Lei 8.213/91, que de-termina a contratação de pessoas com defi ências físicas por empresas com 100 ou mais empregados(as); a lei de cotas para mulheres nos partidos políticos; e rever o Título II – Dos direitos e garantias fundamentais, Capítulo II – Dos di-reitos sociais, artigo 7°, inciso 20, “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específi cos, nos termos da lei.”

Sim, pessoas negras não necessariamente são defi cientes físicas e nem mu-lheres em sua totalidade, mas a discriminação racial funciona como um freio a uma competição igualitária, fazendo com que a competição entre pessoas ne-gras e brancas pelas oportunidades sociais se processe como na imagem larga-mente utilizada pelos movimentos negros nacionais para descrever esta situa-ção: em que se tem dois competidores em largada em que um se acha engessado e outro livre e bem-condicionado. Essa é uma das funções da discriminação de base racial, assegurar essa vantagem competitiva a membros do grupo racial tratado como superior. Atuando em larga escala e impunemente, como se as-siste no Brasil, produz como efeito de poder os padrões de desigualdade que conhecemos entre pessoas negras e brancas. É essa trava que os instrumentos internacionais reconhecem e, a partir deles, recomendam políticas específi cas aos Estados, bem como os dispositivos nacionais mencionados.

Papel da mídia

O livro Não somos racistas, de Ali Kamel, coroa a saga heróica que o diretor executivo do jornalismo da Rede Globo vem empreendendo contra as cotas e demais políticas específi cas para pessoas negras nos editorias do jornal O Globo. Acompanham-no nessa jornada outros veículos de grande porte, como os jor-nais O Estado de São e Folha de São Paulo, que, em um de seus editoriais, po-sicionou-se contra as cotas “por princípios fi losófi cos”, sem precisar de qual fi losofi a ou de quais princípios tal posicionamento devesse o seu fundamento.

Quando é um diretor executivo do maior veículo de comunicação que tenta estabelecer o “discurso competente” sobre a identidade nacional e suas contra-dições, este ato opera como uma senha perfeitamente compreendida no país em que “quem pode, manda e quem tem juízo, obedece”. Na esteira do ativismo racial de Ali Kamel passam a se manifestar, em uníssono, diferentes vozes, sa-turando a esfera pública com o seu mantra, uma locução amplamente garantida pelos principais veículos de comunicação e informação.

O ataque que começou contra o Estatuto e as políticas de cotas para pessoas negras e índigenas nas universidades expandiu-se para todas as políticas de pro-moção da igualdade racial, tendo por alvo fundamental a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, liderada pela ministra Matilde Ribeiro. No âmbito da violação dos direitos culturais da população negra, sobrou até para o ministro Gilberto Gil:

liv_inesc_01h.indd 63liv_inesc_01h.indd 63 21/12/2007 13:50:0721/12/2007 13:50:07

Page 65: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS64

no artigo “Cultura de bacilos”, de Bárbara Gancia, no qual a colunista critica a de-cisão do ministro Gilberto Gil de apoiar grupos comunitários envolvidos com o mo-vimento hip hop como forma de promover, segundo o ministro, “novas formas de expressão da latente criatividade dos pobres do país” (Folha de S. Paulo, 2007).

A proposta do ministro não é inédita, consiste apenas em elevar ao patamar de política pública federal experiências exitosas que vêm sendo desenvolvidas por bandas de rap, grafi teiros e dançarinos do movimento hip hop, em parce-ria com organizações da sociedade civil ou poderes públicos locais, que vêm fazendo a diferença para a inclusão social de muitos(as) jovens das periferias. Do interior do movimento hip hop, emergiram expressões musicais hoje consa-gradas, caso dos Racionais MCs, um fenômeno de vendagem no Brasil; MV Bill, Thaíde e DJ Hum, entre outros.

Para além do impacto na cena musical do país, o movimento hip hop fez emergir lideranças juvenis que têm no rap, no grafi te e no break – tripé que estrutura a cultura hip hop – os veículos para a mobilização de jovens para a refl exão sobre os temas que mais afl igem o seu cotidiano, como a violência, as drogas, a exclusão social, o exercício protegido da sexualidade, paternida-de e maternidade responsáveis, a discriminação racial. Atuam em escolas da rede pública e privada, em faculdades e presídios. Alguns se tornaram gestores de políticas públicas inclusivas para a juventude; outros estão fazendo carrei-ras universitárias ou mantêm-se no protagonismo juvenil, aprofundando o seu compromisso com os direitos humanos e a inclusão social. Para muitos, a parti-cipação no movimento hip hop funcionou como um antídoto que lhes permitiu escapar do caminho mais fácil da marginalidade social.

No entanto, no artigo citado de Gancia, a colunista considera desperdício de dinheiro público investir nesse protagonismo por entender que hip hop não é cultura, que o rap é lixo musical, sugerindo, como ela diz, que “tais gênios musicais” seriam ligados ao tráfi co de drogas. O que lhe dá autoridade para defi nir o que seja ou não cultura? De onde ela extrai o direito de desqualifi car, de uma penada, uma expressão cultural forjada na resistência de jovens à ex-clusão social, por meio da qual eles se afi rmam como produtores culturais e agentes de cidadania?

O segundo caso é a entrevista do cartunista Jaguar, que, a pretexto de criti-car a idéia de “politicamente correto”, diz que os humoristas hoje estão muito certinhos porque com “essa coisa de não poder chamar crioulo de crioulo, (...) criou-se um limite e, se a gente passa um pouco, leva pito. Eu não levo mais porque sou velho e sou o Jaguar. Aí as pessoas dizem: “Ah, é o Jaguar, deixa ele” (Folha de S. Paulo, 2007).

Jaguar é o mesmo que declarou orgulhar-se de ter destruído a carreira de Wilson Simonal, acusado por ele e pela turma do Pasquim de ser dedo-duro do regime militar – o que determinou o ostracismo a que Simonal foi submetido até o fi m de sua vida. Por iniciativa da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB–SP), foi promovida, tardiamente, a sua reabilitação moral, quando foi provado

liv_inesc_01h.indd 64liv_inesc_01h.indd 64 21/12/2007 13:50:0721/12/2007 13:50:07

Page 66: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 65

não haver nenhum indício que sustentasse aquela acusação. No entanto, diante dessa evidência, a reação de Jaguar foi: “Ele era tido como dedo-duro. Não fui investigar nem vou fazer pesquisa para livrar a barra dele. Não tenho arrepen-dimento nenhum” (Revista Bundas, 2002). O choque de tal declaração provocou a seguinte pergunta do jornalista Giulio Sanmartini: “(...) onde ele [Jaguar] bus-cou o direito de ser acusador e juiz e destruir um homem?”.

Bárbara Gancia e Jaguar são exemplos de pessoas públicas que se compra-zem em exercitar um poder de nomear e julgar, derivado exclusivamente de uma posição de hegemonia de classe e de raça, que lhes assegura a circulação privilegiada de suas idéias e posições, que dispensam a si mesmos o conheci-mento efetivo sobre o que opinam, sentindo-se garantidos por imunidade ou complacência em caso de erros de avaliação. É daí que advém o seu poder de acusar, julgar e destruir. Para rappers, breaks, grafi teiros, considerados “baci-los” e pessoas negras tratadas como objeto preferencial do deboche de humoris-tas, resta indignarem-se na página de leitores(as) dos jornais ou exigirem um direito de resposta, que raramente é ofertado.

Desqualifi cação da luta

No combate que parcelas das elites nacionais travam contra as políticas de promoção da igualdade racial, elas se servem da desqualifi cação pública dos movimentos negros e seus parceiros e aliados, da negação do racismo e da dis-criminação racial, da deslegitimação acadêmica de estudos e pesquisas que, há décadas, vêm demonstrando a magnitude das desigualdades raciais e a utiliza-ção de experiências genéticas para consubstanciar a miscigenação e a negação da pessoa negra como sujeito social demandador de políticas específi cas e seu direito democrático de reinvindicá-las.

Estamos diante de velhas teses a serviço de novas estratégias que preten-dem nos levar de volta à edílica democracia racial. Hoje, como ontem, as estra-tégias são as mesmas. Como nos mostrou Florestan Fernandes, “A resistência negra nas décadas de 1930, 1940 e parte de 1950 suscitou o reacionarismo das classes dominantes, que logo denunciaram o “racismo negro”! (1988).

Disse Marx que a história só se repete como farsa. A originalidade do Brasil está em repetir a farsa. Como na década de 1930, parcelas das elites, dentre elas intelectuais conhecidos, organizam-se novamente para orquestrar uma reação branca a um suposto “racismo negro”, que é o sentido dado a eles às reivindica-ções dos movimentos negros por inclusão social mediante políticas específi cas que atuem na correção das desigualdades raciais.

A desqualifi cação ou criminalização dos movimentos sociais é uma prá-tica autoritária consagrada na nossa tradição política. Causa espanto que seja utilizada sem cerimônia por aqueles que se manifestam em defesa dos princípios da igualdade, da democracia e do pacto republicano. Diz Demétrio Magnoli: “A Secretaria é um órgão conservador, de direita. O Estatuto cria uma vasta burocracia: eis a fonte do “otimismo” de diversas ONGs negras que

liv_inesc_01h.indd 65liv_inesc_01h.indd 65 21/12/2007 13:50:0721/12/2007 13:50:07

Page 67: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS66

se autodenominam movimentos sociais. Eles estão defendendo as suas car-reiras e o seu futuro político e pecuniário, às custas dos negros” (Rets, 2007). A propagação de um suposto racismo negro foi nomeada pelo sociólogo e ati-vista Carlos Medeiros de técnica de “fabricação do medo”. Com esta, ele ilumina o posicionamento público de certos intelectuais repentinamente atacados pela “síndrome de Regina Duarte”. Eles estão com medo: de militantes negros, da racialização da sociedade, das políticas públicas e, fi nalmente, da possibilidade da queda da República em função das políticas raciais.

Diante do exposto, a “síndrome de Regina Duarte” de certos intelectuais re-quer que se busquem explicações em outros lugares. O que há a temer nesse medo é: que haja alguma disposição “escondida” em segmentos da população branca – e que somente esses intelectuais percebem ou conhecem – de defender seus privilégios, como reagiram setores da elite nacional ao projeto de Joaquim Nabuco de “emancipação dos escravos”. Proposta tímida, que ainda evitava fa-lar em abolição. No entanto, “Apesar da moderação, o projeto foi derrotado. Não sem antes Nabuco ser sutilmente ameaçado pelos líderes escravistas. “Na nos-sa província, resistiremos até às armas”, afi rmou o deputado Martim Francis-co, de São Paulo, acrescentando que propostas como aquela podiam “concorrer para alterar e prejudicar a paz do país”.

BALANÇO Os avanços alcançados principalmente no reconhecimento da problemática da desigualdade racial ensejam a atual reação conservadora que busca, com monu-mental aparato, deter esse processo e, sobretudo, restabelecer os velhos mitos que nos levaram à situação atual. São neo-gilbertofreireanos, que entram em ação em ativismo de novo tipo sobre a questão racial. Na guerra que combatem contra as medidas de promoção da igualdade de oportunidades segundo a raça ou a cor, vale tudo. Na revista Veja foi publicado que: “Após a abolição da escra-vatura, em 1888, nunca houve barreiras institucionais aos negros no país. O racismo não conta com o aval de nenhum órgão público. Pelo contrário, as even-tuais manifestações racistas são punidas na letra da lei” (Revista Veja, 2007). Alguém reconhece que é do Brasil que a revista fala?

Assiste-se, portanto, neste momento, a um ativismo de novo tipo: um su-posto anti-racismo que se afi rma pela negação do racismo existente. Conver-gem nessa estratégia posições de direita e de esquerda, em que classe social ou cordialidade racial retornam aos discursos para nublar as contradições raciais. Um classismo de direita, como o defendido por Ali Kamel, insurge-se contra as evidências de discriminação racial, insistindo que pessoas negras e brancas são igualmente pobres, por isso, discriminadas igualmente. Soma-se a ele um classismo supostamente de esquerda, que o consubstancia, como na fala de De-métrio Magnoli, para quem a pauta de reivindicações dos movimentos negros é conservadora e de direita.

liv_inesc_01h.indd 66liv_inesc_01h.indd 66 21/12/2007 13:50:0721/12/2007 13:50:07

Page 68: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 67

Essa estratégia se benefi cia também de um contexto de refração dos movi-mentos sociais em geral, e em particular dos movimentos negros, criando con-dições positivas para prosperarem velhas ideologias a serviço de novas estraté-gias de retorno ao passado. Essa ofensiva traz em seu bojo uma convocação à sociedade para um enfrentamento das políticas raciais.

Teme-se que essa avalanche conservadora seja sufi ciente para amedrontar os setores governamentais alinhados com a promoção da igualdade racial e ali-mentar e potencializar os antagonistas, promovendo o retrocesso das políticas raciais no segundo mandato do governo Lula.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CASTRO, Nadya Araújo. Trabalho e Desigualdades Raciais: hipóteses desa-fi antes e realidades por interpretar. In: CASTRO, Nadya Araújo; BARRETO, Van-da de Sá (Orgs.). Trabalho e desigualdades raciais. São Paulo: Annablume, A cor da Bahia, 1998, p. 25.

EGRARE, Iradj. O recorte de raça no Plano Plurianual 2004-2007 com trans-versalidade de gênero e geração, 2007.

FERNANDES, Florestan. Luta de raças e classes. In: FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. São Paulo: Revista Teoria e Debate, n. 2, março de 1988.

GANCIA, Bárbara. Cultura de bacilos. In: FOLHA DE S. PAULO, edição de 16 mar 2007.

HASENBALG, Carlos. Democracia racial, uma hipótese. In: TRABALHOS PARA DISCUSSÃO, n. 128, ago 2002.

KAMEL, Ali. Não somos racistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.MAGNOLI, Demétrio. In: FOLHA DE S. PAULO, edição de 12 jan 2006.MELLO, Marco Aurélio. A igualdade e as ações afi rmativas. In: CORREIO

BRAZILIENSE, edição de 20 dez. 2001, p. 5.MOTTA, Nelson. Entrevista com cartunista Jaguar. In: REVISTA BUNDAS,

edição de 2002.O GLOBO. Coluna do Ancelmo Góes, edição de 15 jun 2007.RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 107. REVISTA VEJA, edição n. 2011, de 6 jun 2007.REVISTA RETS. Entrevista com Demétrio Magnoli, edição de 24 mar. 2006.

Disponível em: http://arruda.rits.org.br/rets/servlet/newstorm.notitia.apre-sentacao.ServletDeSecao?codigoDaSecao=10&dataDoJornal=1143223056000. Acesso em 20 out 2007.

THEODORO, Mário. Os dois níveis do racismo institucional. In: JORNAL IROHIN, Brasília, ano IX, n.6, agosto/setembro 2004, p. 15-16.

liv_inesc_01h.indd 67liv_inesc_01h.indd 67 21/12/2007 13:50:0721/12/2007 13:50:07

Page 69: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS68

68

FOTOS MARCUS VINI (AFROREGAEE– CANTAGALO/RJ )

liv_inesc_01h.indd 68liv_inesc_01h.indd 68 21/12/2007 13:50:0821/12/2007 13:50:08

Page 70: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 69

Direito à segurança, um desafi o para o Brasil

S I L V I A R A M O S

Cientista social e pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC/Ucam)

Neste artigo, será apresentado um panorama geral da violência no Brasil, es-pecialmente da violência letal, e indicadas as principais características de sua distribuição, focalizando faixa etária, gênero, cor, classe e, principalmente, ter-ritório. Serão analisadas as principais respostas da sociedade civil brasileira a esse fenômeno e indicadas quais linhas de força explicam a baixa presença de participação de organizações não-governamentais e movimentos sociais em re-lação às políticas de segurança e às polícias. Finalmente, serão identifi cadas as maiores lacunas e as experiências mais inovadoras e criativas nesse campo.

No Brasil, 50 mil pessoas são assassinadas por ano. Nossas taxas de mortes vio-lentas estão entre as mais altas do mundo há mais de duas décadas. Passamos de 11,7 homicídios por 100 mil habitantes, em 1980, para 26,9, em 2004, como mostra o Grá-fi co 1. Países da Europa Ocidental têm taxas inferiores a três mortes intencionais por 100 mil habitantes e os Estados Unidos encontram-se na faixa de cinco a seis mortes.

Gráfi co 1 – Homicídios no Brasil: números absolutos e taxas por 100 mil habitantes de 1980 a 2004

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.

liv_inesc_01h.indd 69liv_inesc_01h.indd 69 21/12/2007 13:50:0821/12/2007 13:50:08

Page 71: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS70

IDADE, GÊNERO, COR E CLASSE: INDICADORES DE RISCOUma característica marcante no panorama brasileiro é a concentração dos ho-micídios na população jovem. Na faixa etária de 15 a 24 anos, as taxas são ex-traordinariamente mais altas do que as verifi cadas para a população como um todo. A tendência, como se observa no Gráfi co 2, é nacional, ocorrendo mesmo nos estados com taxas de violência letal mais baixas. Entre pessoas não-jovens, 9,6% do total de óbitos são relacionados a causas externas. Entre pessoas jo-vens, as causas externas são responsáveis por 72,1% das mortes. Os homicídios respondem por 39,7% das mortes de jovens de 15 a 24 anos; os acidentes de transporte respondem por 17,1%; e os suicídios por 3,6% (Wiselfi sz, 2006). Em alguns estados, a taxa de homicídios de jovens ultrapassa os 100 por 100 mil habitantes jovens. Quando examinamos algumas áreas urbanas pobres, foca-lizando jovens, encontramos taxas de mais de 200 homicídios dolosos por 100 mil habitantes.

Gráfi co 2 – Taxa de homicídios por 100 mil habitantes em diferentes estados brasileiros em 2004: jovens e população total

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.

Sexo também é um fator explicativo importante para compreender carac-terísticas do fenômeno. Seguindo um padrão predominante no cenário inter-nacional, não só as mulheres, como mostra o Gráfi co 3, mas as jovens repre-sentam uma proporção pequena das vítimas de violência letal. Como se sabe, mulheres são as vítimas mais freqüentes de violências interpessoais (domés-ticas e conjugais) e são as principais vítimas de lesões corporais. Uma cultura machista contribuiria, portanto, não só para a quantidade assombrosa de mor-tes violentas entre jovens do sexo masculino, mas também para explicar o perfi l da vitimização feminina.

liv_inesc_01h.indd 70liv_inesc_01h.indd 70 21/12/2007 13:50:0821/12/2007 13:50:08

Page 72: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 71

Gráfi co 3 – Percentual de homicídios por sexo no Brasil em 2004: jovens e população total

Paralelamente à idade e ao gênero, estudos têm identifi cado a existência de uma dramática concentração de mortes violentas na população negra (soma-tório das pessoas classifi cadas como pretas e pardas), indicando que a distri-buição desigual de riquezas e recursos sociais (educação, saúde, saneamento) entre pessoas brancas e negras no Brasil acaba por provocar outro tipo de de-sigualdade, aquela na distribuição da morte violenta. Assim, são os negros e, entre estes, os mais jovens, as vítimas preferenciais da violência letal.

As taxas de homicídios para homens negros são signifi cativamente mais al-tas em todas as idades, a partir de 11 anos, embora muito mais acentuadas de 18 a 26 anos, como apontado no Gráfi co 4. A taxa para jovens brancos de 24 anos, por exemplo, é muito alta, quase 50 por 100 mil habitantes. Porém, a taxa para jovens negros da mesma idade é ainda mais alta, chegando quase ao dobro: 90 por 100 mil habitantes, evidenciando um forte fator racial nessas dinâmicas. Signifi ca que classe social e escolaridade também são fortes fatores explicativos para risco de morte violenta intencional de jovens do sexo masculino no Brasil.

Gráfi co 4 – Taxa de homicídios (por 100 mil habitantes) de homens segundo cor/raça e idade no Brasil em 2004

Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.

liv_inesc_01h.indd 71liv_inesc_01h.indd 71 21/12/2007 13:50:0921/12/2007 13:50:09

Page 73: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS72

Combinadas, as variáveis idade, gênero, cor e classe social também são um fator de risco para ser considerado suspeito pela polícia. Os jovens pobres, predo-minantemente negros, moradores de favelas e das periferias dos grandes centros são os suspeitos preferenciais da polícia. Pesquisa realizada pelo CESeC/Ucam, na cidade do Rio de Janeiro, em 2002, revelou que 57,9% das pessoas paradas pela polícia, andando a pé na rua, têm de 15 a 29 anos. Por sua vez, considerando pessoas paradas em todas as abordagens policiais, os negros sofrem revista cor-poral em 55% das vezes em que são abordados contra 32,6% das vezes quando os brancos são abordados (Ramos; Musumeci, 2005). A distribuição das próprias operações policiais são variáveis por bairro, predominando as abordagens a pé na rua, com revistas corporais, nas áreas pobres e blitz de automóveis, quase sempre sem revistas corporais, nas áreas mais ricas.

GEOGRAFIA DA MORTEComo se sabe, nas regiões metropolitanas do país, a criminalidade violenta cresceu predominantemente em favelas e bairros pobres das periferias ur-banas. Nessas áreas, especialmente a partir da década de 1980, instalou-se o tráfi co de drogas e os confl itos entre facções rivais que disputam o controle de um mercado altamente lucrativo. Também ao longo dos anos, cresceram a violência e a corrupção policiais, umbilicalmente ligadas ao tráfi co de drogas. Nesses territórios, pobres e carentes de serviços públicos, registram-se os mais altos índices de violência letal. Nas cidades brasileiras mais violentas é possí-vel identifi car uma geografi a da morte, onde as principais vítimas são jovens negros e pobres.

A desigualdade na distribuição da violência letal entre os diversos bairros do município do Rio de Janeiro é expressiva. Os bairros da zona sul da cidade (Co-pacabana, Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico e Barra da Tijuca), onde vi-vem pessoas com maior poder aquisitivo, apresentam as mais baixas taxas de homicídios. Ali são comuns taxas que variam de 4,7 a 10 homicídios por 100 mil habitantes, próximas dos padrões norte-americanos. Já os bairros da zona oeste e do subúrbio, que reúnem regiões pobres repletas de favelas (Acari e Santa Cruz, Complexo do Alemão, Vigário Geral e Parada de Lucas, por exemplo), chegam a registrar taxas de até 84 homicídios por 100 mil habitantes.

Essa distribuição confi gura a presença de dois padrões radicalmente dife-rentes na mesma cidade: a uma distância de 40 minutos entre os bairros mais pobres e os mais ricos, entre as pessoas mais bem-servidas pela presença do Estado e onde este se ausentou por longos anos, a ponto de grupos armados manterem controle total sobre territórios inteiros de áreas de favelas. Na prá-tica, são dois países convivendo na mesma cidade. Também são duas polícias e duas políticas de segurança.

liv_inesc_01h.indd 72liv_inesc_01h.indd 72 21/12/2007 13:50:0921/12/2007 13:50:09

Page 74: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 73

Manchas territoriais de concentração de mortes violentas nos bairros pobres e nos aglomerados de favelas igualmente se evidenciam em cidades onde estudos sistemáticos têm sido desenvolvidos, como os do Centro de Estudos de Criminali-dade e Segurança Pública (Crisp) sobre a violência letal em Belo Horizonte.

JUSTIÇA CRIMINAL, POLÍTICAS DE SEGURANÇA E POLÍCIACom quais políticas públicas de segurança o país tem respondido ao fenômeno da crescente violência urbana? Nos mais de 20 anos desde que o processo de transição da ditadura militar teve início (1985), o setor que menos progrediu em relação à mo-dernização e à democratização foi o de Justiça Criminal, em particular o das insti-tuições policiais (Leeds, 2005). Apenas na segunda metade da década de 1990 come-çaram a se registrar os primeiros esforços sistemáticos de elaboração de políticas públicas de segurança, baseados em uma perspectiva contemporânea identifi cada com a combinação efi ciência/direitos humanos. Até então, a maioria dos governos relegava o tema às esferas corporativas das próprias polícias (Soares, 2000).

O silêncio em relação à escalada de violência letal predominou também em amplos setores intelectuais, na mídia e mesmo nas organizações não-governa-mentais, durante a década de 1980 e parte da década de 1990. Efetivamente, nos contextos acadêmico e universitário, salvo raras exceções, é relativamente recente a criação de centros de pesquisa voltados para os temas da violência com foco em segurança pública.

O perfi l socioeconômico das principais vítimas da violência letal e sua baixa capacidade de pressão política podem ajudar a explicar o despertar tardio dos go-vernos, da mídia e da sociedade civil brasileira para o tema da segurança pública e para a necessidade de se investir em modernização, controle e democratização das instituições de polícia. A maioria das polícias civis e militares nos estados da federação foi se degradando e algumas se tornaram violentas e inefi cientes.

liv_inesc_01h.indd 73liv_inesc_01h.indd 73 21/12/2007 13:50:0921/12/2007 13:50:09

Page 75: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS74

O crime organizado – que se estrutura em torno do tráfi co de armas e dro-gas por meio de mecanismos em diversas esferas – corrompeu amplos seg-mentos das corporações policiais, em certos casos atingindo desde as bases às chefi as (Lemgruber; Musumeci; Cano, 2003). Há estados onde a violência policial afeta as corporações e vitimiza as populações pobres, que se vêem en-curraladas entre a violência dos grupos armados de trafi cantes e a violência e a corrupção policiais.

Segundo dados de 2006 da Secretaria de Segurança Pública, no estado do Rio de Janeiro, a polícia é responsável por 14% das mortes violentas intencio-nais. Os “autos de resistência” – as mortes registradas como decorrentes de con-frontos com a polícia – aumentaram 280% em seis anos (de 289 em 1999 para 1.063 em 2006), denotando um crescimento extraordinário do uso da força letal pela polícia.

Tal como as taxas de homicídios na cidade, a violência policial também as-sume uma geografi a específi ca: concentra-se fortemente na zona oeste e no su-búrbio, nas áreas mais pobres da cidade. Em 2006, os batalhões dos subúrbios do Rio (3o, 9o, 16o e 22o BPMs) mataram 357 civis enquanto os batalhões da zona sul (2o, 19o, 23o e 31o BPMs) mataram 34. A mesma desproporção havia ocorrido em 2003 (Ramos; Musumeci, 2005). A baixa presença de organizações de direi-tos civis nessas áreas alia-se a uma “naturalização” da idéia que confl itos em favelas com vítimas civis podem ajudar a compreender porque esses números são espantosamente elevados em algumas regiões.

O fenômeno do uso excessivo de força letal pela polícia é um problema grave em vários estados da federação. Muitas polícias estaduais nem mesmo divul-gam estatísticas sobre mortes ocorridas em ação. Em São Paulo e em Minas Gerais, onde há dados, políticas de redução da violência policial letal vêm sendo implementadas. Em São Paulo, as mortes em confronto com policiais caíram signifi cativamente: de 573 em 2004 para 300 em 2005 <www.ssp.sp.gov.br>. Em Minas, tiveram pequena redução: de 103 em 2004, para 99 em 2005 (dados do Comando de Policiamento da Capital). Nesses dois estados, os governos têm igualmente desenvolvido esforços para diminuir progressivamente a violência letal em geral.

As características das mortes em confronto são indicadoras das suas di-nâmicas. Estudo minucioso dos autos de resistência (Cano, 1997), focalizando os anos de 1993 a 1996, na cidade do Rio de Janeiro, revelou que as vítimas são majoritariamente jovens do sexo masculino (de 15 a 29 anos, com ênfase na faixa de 20 a 24 anos) e que 64% são negros (pretos e pardos), contrastando com a presença de 39% de negros na população carioca. O estudo também mostrou que as mortes decorrentes das ações policiais concentram-se em fa-velas, que quase a metade dos corpos recebeu quatro disparos ou mais e que 65% dos cadáveres apresentavam pelo menos um tiro nas costas ou na cabeça – confi gurando casos de execuções sumárias. O fato é que, no Rio de Janei-ro, a violência policial encontra-se fora de controle dos comandos superiores.

liv_inesc_01h.indd 74liv_inesc_01h.indd 74 21/12/2007 13:50:0921/12/2007 13:50:09

Page 76: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 75

À proporção que a “licença para matar” foi concedida aos policiais que atuam nas favelas e bairros pobres, abriu-se um amplo terreno para o crescimento da corrupção e para os chamados “acertos” ou “arregos” entre trafi cantes e agentes policiais (Soares; Bill; Athayde, 2005).

Em relação às políticas de segurança, têm havido experiências impor-tantes no Brasil. Recentemente, alguns municípios passaram a incorporar pesquisadores e organizações da sociedade civil na elaboração e execução de políticas públicas (Sento-Sé, 2005). O caso de Diadema (SP) – que reduziu as taxas de homicídio, roubo e furto a partir de uma política integrada de ação policial, controle de bares e programas dirigidos a jovens – é o mais emblemá-tico, por ter tornado uma área estigmatizada da região metropolitana de São Paulo em um caso-modelo, que vem sendo copiado por muitos municípios do país (Guindani, 2005).

No âmbito dos governos estaduais, ainda que as ações de redução da violên-cia sejam fortemente concentradas nos esforços de repressão, algumas inicia-tivas importantes de modernização das polícias têm acontecido. O caso mais bem-sucedido é o de Minas Gerais: há alguns anos, a Polícia Militar mantém convênio com o Crisp para monitoramento da criminalidade. Em 2005, a Secre-taria de Defesa Social criou o Instituto de Gestão em Segurança Pública (Igesp), que integra as polícias com órgãos do sistema de justiça criminal (Ministério Público, varas da infância, sistema penitenciário etc.). Em reuniões mensais, comandantes responsáveis pelas áreas prestam contas de metas estabelecidas e defi nem novos objetivos a serem cumpridos, nos moldes do CompStat, de Nova York <www.nypd.gov>.

O governo de Minas implantou, também, em 16 favelas de Belo Horizon-te e região metropolitana um programa integrado de policiamento e ações de prevenção focalizadas em jovens de 15 a 24 anos, chamado Fica Vivo. Graças a essas ações, as taxas de homicídio começaram a declinar em 2005, em movi-mento contrário ao de 13 anos anteriores, quando essas taxas só cresciam. Em São Paulo, desde 2000, os homicídios mostram um declínio signifi cativo, tendo ocorrido, até o fi m de 2006, uma redução da ordem de 50%. As razões para es-sas quedas têm sido muito debatidas, mas pouco consenso foi obtido até este momento. Entre as principais ações, mencionam-se: forte redução de armas em circulação, graças à campanha do desarmamento e às apreensões feitas pela polícia; investimentos contínuos, nesses cinco anos, de modernização e trei-namento da polícia, em especial na delegacia de homicídios; investimentos em segurança pública; aumento da taxa de encarceramento; programas de redução de homicídios por grandes municípios.

Em âmbito nacional, em 2002, durante o processo das eleições presiden-ciais, o Partido dos Trabalhadores (PT) apoiou a elaboração do Programa Nacio-nal de Segurança, com amplo processo de consultas e a participação de espe-cialistas de vários estados. Pela primeira vez, o país contou com um programa que propunha combinar políticas sociais e preventivas com políticas policiais

liv_inesc_01h.indd 75liv_inesc_01h.indd 75 21/12/2007 13:50:1021/12/2007 13:50:10

Page 77: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS76

e repressivas e controle e modernização das polícias, com o desenho do Siste-ma Único de Segurança Pública. Contudo, passado o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, uma parte ínfi ma das propostas foi cumprida e o programa foi virtualmente abandonado. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Se-nasp), criada na gestão de Fernando Henrique Cardoso, operou recursos ainda menores que os do governo anterior. O Fundo Nacional de Segurança Pública, para investimentos em todo o país, contou, em 2006, com aproximadamente R$ 170 milhões. Em contraste, apenas no estado de São Paulo, o orçamento da segurança pública correspondeu a R$ 6 bilhões.

Se planejamentos e ações integradas de segurança pública em âmbito na-cional ocorrerão ou não, em grande medida, isto dependerá da capacidade de pressão que a sociedade for capaz de exercer para que os governos, nas três esferas, reconheçam a urgência dos temas da violência e da segurança pública. Com raras exceções, as respostas governamentais ao fenômeno da violência – independentemente de orientação partidária – parecem ser, ainda nesses pri-meiros anos do novo século, a lentidão e baixa qualifi cação. Em larga medida, prevalece a naturalização da violência, favorecida pela quase incapacidade de vocalização de suas principais vítimas, as populações marginalizadas. A despeito de experiências importantes em alguns estados, predominam, como padrão em todo o Brasil, instituições policiais que não fi zeram a transição da proteção do Estado, como era seu papel na ditadura militar, à proteção de ci-dadãs e cidadãos, especialmente as pessoas pobres, que, muitas vezes, são tra-tadas como inimigas (Leeds, 2006). Em termos nacionais, inexiste qualquer diretriz que possa ser chamada de política nacional de segurança pública.

ESTATUTO DO DESARMAMENTO E MÍDIA Em 2003, entre as respostas da sociedade civil, um importante passo foi dado para reduzir as mortes por armas de fogo. Sob a liderança de organiza-ções não-governamentais – que mobilizaram grandes manifestações públi-cas, a articulação com parlamentares comprometidos com políticas de paz e o apoio de parte importante da mídia – foi aprovado no Congresso Nacional o Estatuto do Desarmamento. Este prevê dispositivos para controlar a ven-da e a posse de armas de fogo e proibir o porte. Milhares de armas foram recolhidas (segundo o Instituto Sou da Paz, 430 mil armas de fogo foram entregues até o fim de 2005), em uma inédita campanha nacional em favor da paz. Em outubro de 2005, um plebiscito nacional perguntou se a popu-lação concordava com a proibição da venda de armas de fogo em território nacional, a maioria disse “não”.

A despeito do resultado negativo dessa etapa da implementação do estatuto, o fato de uma “política de segurança” ter se iniciado em organizações da sociedade civil, ter recebido a atenção dos meios de comunicação, ter saído vitoriosa em vo-tação no Congresso e se tornado política de Estado pode ser considerado um caso

liv_inesc_01h.indd 76liv_inesc_01h.indd 76 21/12/2007 13:50:1021/12/2007 13:50:10

Page 78: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 77

paradigmático na área de controle da violência no Brasil. Contudo, certamente, ainda falta um balanço sobre quais foram os principais erros dos proponentes do desarmamento, e as principais linhas de força em jogo, nessa campanha em que uma vitória fácil que se previa tornou-se uma derrota retumbante.

É digno de nota o importante papel que os meios de comunicação têm de-sempenhado no agendamento de políticas públicas de segurança e no controle externo das polícias (Ramos; Paiva, 2005). A despeito dos problemas que ainda persistem na cobertura sobre criminalidade e violência, os principais jornais do país fi zeram profundas mudanças nos últimos anos, alterando, signifi cati-vamente, o estereótipo do “repórter policial”. Nos grandes jornais, os repórte-res que cobrem a área de criminalidade e segurança pública não são exclusivos da área de “polícia” e buscam, crescentemente, ouvir fontes não-policiais nas matérias investigativas. Além disso, diversos jornais se tornaram verdadeiras ouvidorias de polícia, sendo as únicas fontes de denúncia da violência ou cor-rupção policiais. Os jornais têm sido muito importantes também para pres-sionar governos a agendarem políticas de segurança na pauta prioritária das políticas governamentais.

NOVOS MEDIADORESNo contexto das respostas civis à violência, pode-se vislumbrar um importante e recente processo de mobilização de jovens de favelas e bairros de periferia. São projetos ou programas locais baseados em ações culturais e artísticas, freqüente-mente desenvolvidos e coordenados pelos próprios jovens. Exemplos dessas ini-ciativas são os grupos Olodum e Timbalada, em Salvador; o AfroReggae, o Nós do Morro, a Cia. Étnica de Dança e a Central Única de Favelas (Cufa), no Rio de Janeiro – além de centenas de agrupamentos mobilizados em torno da cultura hip hop nas periferias de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Bra-sília e São Luís.

Por meio de diferentes linguagens, como música, teatro, dança e cinema, esses grupos expressam idéias e perspectivas da juventude das favelas. Ao mes-mo tempo, buscam produzir imagens alternativas aos estereótipos da crimina-lidade associados a esse segmento da sociedade e “disputam” os jovens dessas áreas com o tráfi co de drogas, exercendo uma sedução ligada ao glamour da arte, à visibilidade e ao sucesso.

No que diz respeito à violência e à criminalidade, a maioria dessas iniciativas se equilibra entre a denúncia da violência policial, de um lado, e a busca de autono-mia em relação ao despotismo dos grupos armados de trafi cantes, de outro. Alguns desses grupos procuram exercer papéis de mediadores na guerra entre facções do tráfi co de drogas e assumem, abertamente, a missão de “tirar jovens do tráfi co” (Neat; Platt, 2006; Soares; Bill; Athayde, 2005; Bill; Athayde, 2006). Mas essa não é, necessariamente, uma regra comum a todos. Por exemplo, o grupo Nós do Morro, do Rio de Janeiro, recusa a discussão sobre o tráfi co de drogas e não aponta qualquer

liv_inesc_01h.indd 77liv_inesc_01h.indd 77 21/12/2007 13:50:1021/12/2007 13:50:10

Page 79: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS78

compromisso associado à criação de alternativas à criminalidade entre seus objeti-vos <www.nosdomorro.com.br>. Outras iniciativas, por sua vez, assumem posições até mesmo ambígüas em relação ao mundo do crime. É o caso de grupos de hip hop que se identifi cam com os manos presos e se concentram na denúncia de que a cri-minalidade é associada, como estereótipo, aos jovens negros das periferias.

Tais iniciativas – aqui identifi cadas como novas mediações nas respostas à violência – não são, fi que claro, as únicas nem, necessariamente, as mais efi cientes para tirar jovens do tráfi co. Hoje, um número incontável de grupos religiosos, especialmente de orientação pentecostal, dedica-se à conversão re-ligiosa de jovens que ingressaram no crime. Além disso, em favelas e bairros pobres proliferam escolinhas de futebol e programas esportivos voltados para combater o ócio, descobrir talentos e criar alternativas profi ssionais.

Mesmo no campo da cultura desenvolvem-se inúmeros projetos de dança, circo, música e teatro, tanto governamentais como privados, voltados para o lazer e a profi ssionalização de adolescentes. As marcas específi cas dos novos mediadores são: a liderança dos grupos pelos próprios jovens oriundos das fa-velas e a produção de um discurso na primeira pessoa; a capacidade de expres-sar signos com os quais os jovens das favelas se identifi cam e, ao mesmo tempo, de criar modelos que recusem as imagens tradicionais dos jovens das favelas; a criação de novas metáforas por força das histórias de vida; a capacidade de transitar na grande mídia e na comunidade, entre diferentes classes socais, fac-ções e governos – transitar entre o local e o universal.

Por último, os(as) jovens mediadores não podem ser tomados como exem-plos de espíritos contemporâneos sintonizados com os valores da modernidade. Formam grupos heterogêneos, mas, predominantemente, masculinos. Eviden-tes traços de misoginia ou de homofobia podem ser observados nas práticas e nas construções discursivas de vários desses grupos, assim como na cultura hip hop (Júnior, 2003; Soares; Bill; Athayde, 2005).

A despeito de todos os problemas, os grupos de jovens de favelas têm sido a principal fonte de denúncia, refl exão e discussão, em âmbito nacional, sobre as relações de jovens com a polícia, o racismo policial e a discriminação que jovens das favelas e das periferias sofrem diariamente – não só nas relações com a polícia, mas com empregadores, a grande mídia e todos que se baseiam nos estereótipos de jovens da periferia como associados à criminalidade e à desonestidade.

O projeto Juventude e Polícia, desenvolvido pelo AfroReggae, em Minas Gerais, em parceria com o CESeC/Ucam, é o exemplo mais expressivo das pos-sibilidades abertas pelas intervenções diretas de movimentos socais em pro-cesso de adoção de políticas de segurança democráticas e contemporâneas e em processos de reforma da polícia (Ramos, 2006). Em 2002, a Banda AfroReg-gae produziu um videoclipe para a música “Tô Bolado” (que conta a história da chacina de Vigário Geral), com sucessivas imagens de violência policial, confi -gurando uma franca oposição do AfroReggae à polícia). No mesmo ano, um dos

liv_inesc_01h.indd 78liv_inesc_01h.indd 78 21/12/2007 13:50:1021/12/2007 13:50:10

Page 80: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 79

membros-fundadores do grupo foi alvejado por um tiro de fuzil, em operação policial comandada pelo Batalhão de Operações Especiais da PM (Bope), do Rio de Janeiro, dentro de Vigário Geral. Quase todos os jovens ligados ao AfroReggae tinham experimentado situações de violência, corrupção e humilhação por par-te de policiais, compondo um vasto repertório de ódios e ressentimentos que constituía uma caudalosa cultura antipolícia no grupo.

Surpreendentemente, no fi nal daquele ano, a coordenação da entidade procurou o CESeC/Ucam, e disse que gostaria de elaborar um projeto com a polícia (e não contra a polícia, como seria de se esperar). Um projeto de in-vasões culturais nos batalhões foi apresentado à Fundação Ford, que o apro-vou imediatamente. As negociações com a Polícia Militar do Rio de Janeiro se frustraram após meses de tentativas e não foi possível desenvolver a proposta naquele estado. Em 2004, a Secretaria de Defesa Social e a Polícia Militar de Minas Gerais convidaram o AfroReggae e o CESeC para desenvolverem o proje-to nos batalhões de Belo Horizonte. O projeto foi desenvolvido durante todos os anos subseqüentes e, em 2007, encontra-se em processo de institucionalização pela PMMG, que o transformará em um programa regular de polícia.

liv_inesc_01h.indd 79liv_inesc_01h.indd 79 21/12/2007 13:50:1021/12/2007 13:50:10

Page 81: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS80

Aspectos inovadores

Em geral, esses grupos e projetos caracte-rizam-se por quatro aspectos inovadores no repertório de princípios das entidades de direitos humanos, das ONGs e do campo da esquerda, na qual as iniciativas da so-ciedade civil brasileira tradicionalmente se inscrevem, descritos a seguir.1. Estão interessados no mercado e, ao contrário das ONGs tradicionais, buscam alternativas de renda e emprego para seus(suas) integrantes, além de inserção no mercado e profi ssionalização. Nesse sentido, criam uma cultura oposta à do “sem fi ns lucrativos”, que caracteriza as ONGs brasileiras (Landim, 1988). Alguns grupos operam com duas identidades jurí-dicas simultâneas: uma como ONG (a par-tir da qual recebem doações de fundações internacionais e nacionais) e outra como empresa cultural (para contratos de sho-ws, discos ou fi lmes). Embora reafi rmem o pertencimento ao campo do trabalho social, alguns grupos procuram depender cada vez menos das doações internacio-nais, buscando sustentação como empre-sas culturais que disputam o mercado. 2. Têm um forte componente de inves-timento nas trajetórias individuais e nas histórias de vida. Valorizam o campo sim-bólico da subjetividade e investem na formação de artistas e líderes, cuja fama passa a servir como modelo. Em uma contra-operação de criação de estereóti-pos, procuram construir imagens fortes de jovens favelados que, contrariando a profecia, tornaram-se cineastas, artistas de teatro ou músicos. Em outras palavras, nesses grupos, as estratégias de mídia, o

liv_inesc_01h.indd 80liv_inesc_01h.indd 80 21/12/2007 13:50:1121/12/2007 13:50:11

Page 82: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 81

sucesso e a fama são entendidos como ingredientes políticos de ativismo. Usam, insistentemente, a grande mídia e bus-cam parcerias com grandes conglomera-dos de comunicação, aparecendo não só como artistas, mas como lideranças que falam em nome de jovens das favelas. Sendo assim, eles se afastam do mode-lo sindical e associativo de esquerda, no qual a cultura do coletivo impera sobre os desvios individualistas. 3. Têm um forte componente de afi rma-ção territorial, sendo freqüente que os nomes dos grupos, as letras das músi-cas, as camisetas e as roupas reafi rmem, permanentemente, os nomes das comu-nidades de origem (Vigário Geral, Vidigal, Cidade de Deus, Pelourinho, Candeal, Alto Vera Cruz, Alto do Pina etc.). Curio-samente, a intensa e reiterada afi rmação de compromisso territorial não se traduz em bairrismo ou nacionalismo. Combi-nam o amor à comunidade com a adesão aberta a signos da globalização (Coca-Cola, Nike etc.) e produzem conexões entre o local e o universal via internet, sites e revistas. Atribuem alta prioridade aos intercâmbios com outras comunida-des (incluindo jovens de classe média), às viagens nacionais e internacionais. 4. Assumem um forte componente de de-núncia do racismo e de afi rmação racial negra, seja nas letras das músicas, nas indumentárias ou nos nomes (AfroReggae, Cia. Étnica, Negros da Unidade Conscien-te, Mano Brown, Zé Brown etc.). Sem ne-cessariamente pertencerem ao movimento negro, esses jovens se referem, permanen-temente, em músicas ou entrevistas, ao fato de serem negros e favelados. A negri-

tude e o pertencimento à periferia encon-tram uma fórmula curiosa que combina denúncia com orgulho (racial e territorial), muitas vezes cantada e dançada em uma explosão de alegria, como ocorre com o Olodum, a Timbalada e o AfroReggae. Isso os situa em posição oposta à do silêncio sobre a problemática da desigualdade ra-cial (que predomina nas expressões cul-turais tradicionais, como o samba, e nas expressões culturais jovens) e, ao mesmo tempo, em uma posição diferente da tra-dicional denúncia do racismo usada pelo movimento negro, baseada na idéia de vi-timização. As expressões “auto-estima” e “atitude” são as que melhor defi nem, em linguagem nativa, a idéia que se pretende forjar novas imagens associadas a jovens negros(as) das favelas.

Juntamente com o fenômeno de criação das ONGs locais, identifi cado por analistas das favelas (Pandolfi ; Grynzspan, 2003), esses projetos e iniciativas – heterogêneos e não articulados entre si, mas que cres-cem, consistentemente, em várias cidades – vêm se tornando importantes, não só como pólos de construção de uma cultura alternativa ao tráfi co, mas como media-dores, como tradutores entre a juventude das favelas, de um lado, e governos, mídia, universidades e, muitas vezes, atores inter-nacionais, como fundações e agências de cooperação, de outro. Estabelecem pontes entre os mundos fraturados representados pela cidade formal e pela favela. Freqüen-temente, são os únicos pontos de conta-to para quem pretende entender o que se passa com jovens moradores(as) de bairros pobres das cidades.

liv_inesc_01h.indd 81liv_inesc_01h.indd 81 21/12/2007 13:50:1121/12/2007 13:50:11

Page 83: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS82

RESPOSTAS E PERSPECTIVAS Organizações da sociedade civil brasileira, especialmente aquelas associadas a movimentos sociais, foram decisivas para a construção de políticas públicas de respostas à Aids, à saúde da mulher e à reforma psiquiátrica, para dar exem-plos no campo da saúde. Também em relação às políticas ambientais, ONGs e ativistas socais foram e têm sido importantes na construção de respostas brasileiras no setor.

No entanto, no campo da segurança pública, ainda predomina a pequena participação por parte da maioria dos atores da sociedade civil organizada nas discussões sobre reforma das polícias, desarmamento, políticas de segurança e outros temas centrais para a democracia brasileira. Provavelmente, a tradição de esquerda desses atores, combinada com heranças da luta contra a ditadura, quando a polícia era vista como parte do aparelho repressivo do Estado, têm sido infl uências que ajudam a explicar essa omissão ou desinteresse.

Além das organizações de jovens de favelas, alguns segmentos dos movi-mentos sociais, como o movimento homossexual, têm feito importantes avan-ços, como a exigência de policiamento e proteção respeitosa e adequada às especifi cidades da homofobia. Em abril de 2007, entidades do movimento ho-mossexual, com apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh) e da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), realizaram, no Rio de Ja-neiro, o primeiro Seminário Nacional de Segurança Pública e Combate à Homo-fobia. Nesse encontro, reuniram policiais das 27 unidades da federação, gesto-res de segurança pública, especialistas, parceiros acadêmicos e ativistas gays, lésbicas e transgêneros de todo o país. Tendo sido um primeiro passo no sentido de aproximar a agenda do movimento homossexual à agenda de reformas da polícia, o encontro foi extremamente positivo e signifi cou um passo histórico.

Tudo indica que o movimento homossexual desenhou uma espécie de mé-todo que pode ser usado por outros movimentos no futuro. O movimento de mulheres, que teve ativa participação na adoção de um modelo considerado de vanguarda internacional em reformas de polícia, as Delegacias de Aten-dimento à Mulher, concentrou seus esforços na aprovação da Lei Maria da Penha – que altera as bases de funcionamento não só da polícia, mas de todo o sistema de justiça criminal (polícias, MP, justiça e sistema penitenciário). Contudo, várias questões não relacionadas especifi camente à violência con-tra a mulher têm fi cado de fora das agendas feministas, principalmente as da violência letal – que atinge, preferencialmente, pessoas do sexo masculino – e as da reforma da polícia.

O movimento negro também deveria estar diretamente implicado no tema da violência, considerando que as variáveis raciais estão fortemente presentes na identifi cação dos jovens negros moradores da periferia como as principais víti-mas e os principais autores de violência. Da mesma forma, o contingente policial brasileiro é predominantemente negro, sendo o racismo institucional um pro-blema ainda mais complexo entre policiais negros (Ramos; Musumeci, 2005).

liv_inesc_01h.indd 82liv_inesc_01h.indd 82 21/12/2007 13:50:1221/12/2007 13:50:12

Page 84: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 83

Mas, nos últimos anos, pouco tem sido agregado de participação de organiza-ções comprometidas com a luta contra as desigualdades raciais no campo de democratização das polícias.

As grandes ONGs, que no Brasil foram decisivas para criar agendas na vida política brasileira, como a luta contra a fome, a ética na política ou a responsa-bilidade social de empresas, permanecem, em grande medida, defensivas em relação aos temas da segurança pública e da polícia. Implicados na tragédia da violência como principais vítimas e como principais autores, jovens das peri-ferias terão, necessariamente, um papel decisivo nas respostas para reduzi-la. Alguns grupos, na condição de novos mediadores, parecem demonstrar, ainda que localizadamente, ser possível oferecer respostas criativas em um campo com pequena tradição participativa de entidades civis. Tais novidades não de-veriam ser desprezadas por quem pretende acompanhar as saídas que a socie-dade brasileira vai produzir nos próximos anos para enfrentar a violência e construir caminhos para a segurança e a justiça.

REFERÊNCIAS

BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Falcão: meninos do tráfi co. Rio de Janeiro: Ob-jetiva, 2006.

CANO, Ignácio. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Iser, 1997.

GUIDANI, Miriam. A criação de um novo paradigma em Diadema. In: SEN-TO-SÉ, João Trajano (Org.). Prevenção da violência: o papel das cidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.117-145, 2005.

JÚNIOR, José. Da favela para o mundo: a história do Grupo Cultural AfroReg-gae. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003.

LANDIM, Leilah. (Org.). Sem fi ns lucrativos: as organizações não-governa-mentais no Brasil. Rio de Janeiro: Iser, 1988.

LEEDS, Elizabeth. Rio de Janeiro. In: K KOONINGS & K DIRK (Orgs.). Fractu-red Cities: social exclusion, urban violence and contested spaces in Latin Ame-rica. London: Verso, 2006.

LEMGRUBER, Julita; MUSUMECI, Leonarda; CANO, Ignácio. Quem vigia os vigias? Rio de Janeiro: Record, 2003.

MINAYO, Maria Cecília de Souza; SOUZA, Ednilsa Ramos (Orgs.). Missão inves-tigar: entre o ideal e a realidade de ser policial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.

NEAT, Patrick; PLATT, Damian. Culture is our weapon: AfroReggae in the favelas of Rio. London: Latin America Bureau, 2006.

OCHOA, Ana Maria. Entre los deseos y los derechos: un ensaio crítico sobre polí-ticas culturales. Bogotá: Instituto Colombiano de Antropología e Historia, 2003.

PANDOLFI, Dulce; GRYNZSPAN, Mario (Orgs.). A favela fala. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

liv_inesc_01h.indd 83liv_inesc_01h.indd 83 21/12/2007 13:50:1221/12/2007 13:50:12

Page 85: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS84

liv_inesc_01h.indd 84liv_inesc_01h.indd 84 21/12/2007 13:50:1221/12/2007 13:50:12

Page 86: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 85

RAMOS, Silvia; PAIVA, Anabela. Mídia e violência: como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil. In: Boletim Segurança e Cidadania. Rio de Janeiro: CESeC/Ucam, v. 9, p. 1-16, 2005.

RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem po-licial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

RAMOS, Silvia. Juventude e polícia. In: Boletim Segurança e Cidadania. Rio de Janeiro: CESeC/Ucam, v. 5, n. 12, 2006.

SENTO-SÉ, João Trajano. Prevenção da violência: o papel das cidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

SOARES, Luiz Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: quinhentos dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2006: os jovens do Brasil. Brasília: Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciên-cia e a Cultura, 2006.

liv_inesc_01h.indd 85liv_inesc_01h.indd 85 21/12/2007 13:50:1321/12/2007 13:50:13

Page 87: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS86

86

FOTOS MARCUS VINI

liv_inesc_01h.indd 86liv_inesc_01h.indd 86 21/12/2007 13:50:1321/12/2007 13:50:13

Page 88: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 87

Direitos humanos, desigualdades e contradições

P A U L O C É S A R C A R B O N A R I

Coordenador nacional de Formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), mestre e professor de Filosofi a

A compreensão da desigualdade que marca profundamente a sociedade brasi-leira é um exercício difícil, sobretudo se nos propusermos a uma abordagem que exceda à descrição factual e caminhe na direção de refl etir sobre as motivações fundamentais. O exercício fi ca ainda mais difícil se nos propusermos a fazer a leitura sob a ótica dos direitos humanos.

A difi culdade se nos confi gura como desafi o de ensaiar uma leitura, dando por conhecidas diversas realidades subjacentes. Por dever metodológico, lembramos que uma leitura é sempre e somente uma leitura e não a leitura. É sempre em perspectiva, interessada, ideológica (no bom sentido). É sempre, e nunca além disso, mais uma pa-lavra. Sendo assim, desde sua origem, está aberta ao diálogo, à crítica. Este é o espí-rito que nos move a tomar parte do diálogo proposto sobre uma agenda para o Brasil.

A construção da refl exão se socorre em vários subsídios. Por isso, para al-gumas pessoas pode parecer repetitiva e até remissiva. Mesmo assim, optamos por fazê-la desta forma, uma espécie de reforço à memória em uma abordagem diferente para as mesmas questões. O tema que nos foi proposto será refl etido nos seguintes pontos: o primeiro se dedica a elucidar o enfoque da leitura; o segundo se dedica a apresentar, ironicamente, algumas questões, que são mais contradições da situação; o terceiro se dedica a identifi car o que entendemos como desafi os programáticos para subsidiar a luta pelos direitos humanos.

A leitura da relação entre desigualdade e direitos humanos toma como obje-to histórico a desigualdade e os direitos humanos como um enfoque de leitura. Por isso, antes de mais nada, convém que coordenemos o foco de nossa leitura, expondo elementos que balizarão a atenção que daremos à desigualdade.

E aprendi que se depende sempreDe tanta, muita, diferente genteToda pessoa sempre é as marcasDas lições diárias de outras tantas pessoas.(Gonzaguinha, “Caminhos do Coração”)

liv_inesc_01h.indd 87liv_inesc_01h.indd 87 21/12/2007 13:50:1421/12/2007 13:50:14

Page 89: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS88

INTERAÇÃO MULTIDIMENSIONALO núcleo dos direitos humanos radica-se na construção de reconhecimento. Dizer isso signifi ca posicionar os direitos humanos como relação – antes de posicioná-los como faculdade dos indivíduos. Signifi ca dizer que mais do que prerrogativa disponível, direitos humanos constituem-se em construção que se traduz em processo de criação de condições de interação multidimensio-nal. Esquematicamente, a interação dá-se em planos ou dimensões diversas e múltiplas: interpessoal (singular), grupal-comunitária (particular), genérico-planetária (universal), conjugando cotidiano e utopia, cultura e natureza, ação e refl exão, entre outras. Em outras palavras, os direitos humanos nascem da alteridade, nunca da mesmice ou da mesmidade.

Em termos históricos, os direitos humanos afi rmam-se pela luta permanen-te contra a exploração, o domínio, a vitimização, a exclusão e todas as formas de apequenamento do humano. Constituem a base das lutas pela emancipação e pela construção de relações solidárias e justas. Por isso, o processo de afi rma-ção dos direitos humanos sempre esteve, e continua, profundamente imbricado às lutas libertárias construídas ao longo dos séculos pelas pessoas oprimidas e vitimadas para abrir caminhos e construir pontes de maior humanidade. Isto porque, a realização dos direitos humanos é um processo histórico, assim como é histórico seu conteúdo (Carbonari; Kujawa, 2004).

O conteúdo dos direitos humanos pode ser circunscrito sob dois domínios, ambos como racionalidade prática (embora não exclua aspectos de natureza te-órica): um normativo (ético e jurídico), outro político.

O conteúdo normativo contribui para determinar o agir. Quando dizemos que o normativo se desdobra em ético e jurídico, pretendemos localizar os direi-tos humanos em um intervalo – como reserva (Apel, 2004) – crítico entre a Ética e o Direito –, mesmo que muitas posições insistam em tê-los como éticos ou polí-ticos. Em nosso entendimento, localizá-los em um ou outro destes extremos sig-nifi ca reduzir seu conteúdo. Comumente, encontram-se posições que insistem em advogar a centralidade do aspecto jurídico (Habermas, 1997). Todavia, todo o processo de positivação de direitos é também de seu estreitamento. Contradi-toriamente, toda institucionalização dos direitos gera condições, instrumentos e mecanismos para que possam ser exigidos publicamente, mas também tende a enfraquecer a força constitutiva e instituinte, como processo permanente de geração de novos conteúdos, de novos direitos e de alargamento permanente do seu sentido.

Ademais, a positivação dos direitos não signifi ca, por si só, garantia de sua efetivação; por outro lado, se não fossem positivados, haveria ainda maior difi -culdade, já que a sociedade não disporia de condições públicas de ação. No sen-tido ético, direitos humanos constituem-se em exigências basilares referencia-das na dignidade humana dos sujeitos de direitos. Signifi ca dizer que não são transacionáveis em quaisquer circunstâncias e, ao mesmo tempo, condições

liv_inesc_01h.indd 88liv_inesc_01h.indd 88 21/12/2007 13:50:1521/12/2007 13:50:15

Page 90: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 89

postas a toda efetivação histórica (PUC/RS, 2007). Por isso, insistimos em dizer que direitos humanos, sob o ponto de vista normativo, estão num intervalo crí-tico entre Ética e Direito.

O aspecto político dos direitos humanos nos remete para dois desdobramen-tos: o primeiro contempla os aspectos necessários a sua realização; o segundo denota uma carga de escolhas necessárias.

No primeiro sentido, os direitos humanos são entendidos como parâmetro dos arranjos sociais e políticos, visto que sua realização (ou não) é indicativa da quali-dade política e social da vida de um povo. A realização dos direitos humanos, como responsabilidade fundamental do Estado – que deve garantir, respeitar, promover e proteger todos os direitos, além de reparar as violações – põe-se como tarefa polí-tica – neste sentido, concreta, cotidiana e, ao mesmo tempo, utópica.

Assim, o Estado passa a se constituir no espaço público por excelência, a quem cabe desenvolver ações (políticas públicas, com o perdão da redundância, já que seria impossível qualquer política que não fosse pública) pautadas pelos direitos humanos: os direitos humanos, por um lado, ao limitarem o poder do Estado, exi-gem que supere a posição de soberano plenipotenciário que dirige a cidadania (ou a não-cidadania) e seja entendido como dirigido pela cidadania e para a cidadania; por outro, exigem do Estado que seja agente realizador (nunca violador, como é co-mum em nossas plagas) dos direitos – é seu dever fundamental realizar direitos.

Em matéria de direitos humanos, a ação política estaria centrada na presença de todos os agentes, tanto na deliberação como na implementação, como sujeitos (autores, portanto, nunca somente atores). Signifi ca que a cidadania em geral, e especialmente a cidadania ativa e organizada, ganha centralidade fundamen-tal no processo político. É ela instituinte de forma permanente. Note-se que é da constituição fundamental da cidadania ser plural. Há uma diversidade constitu-tiva da cidadania que não a deixa ser enquadrada em modelos simplifi cadores e negadores; antes, exige a visibilidade e a presença dos diversos no espaço co-mum. Os direitos e a participação da cidadania no processo político, antes de ser uma concessão, são direitos – para lembrar da já clássica expressão de Hannah Arendt da cidadania como direito a ter direitos. A dimensão política dos direitos humanos convoca todos os agentes à ação.

No segundo sentido, a realização dos direitos humanos exige escolhas po-líticas. O primeiro aspecto da escolha remete para a dimensão da garantia e da promoção dos direitos humanos. A base da escolha remete para a decisão que dá primazia às pessoas, em detrimento das coisas, dos bens, do patrimô-nio (Herrera Flores, 2000; Lima Jr., 2001). Em termos concretos, signifi ca vo-cacionar o processo de desenvolvimento da sociedade, centrando-o na pessoa, o que torna secundárias as relações privadas, de mercado, de propriedade e de patrimônio a serviço das pessoas – os modelos capitalistas de desenvolvimento em geral modelam as vontades para que entendam a escolha pelas coisas como uma escolha pelos direitos humanos.

liv_inesc_01h.indd 89liv_inesc_01h.indd 89 21/12/2007 13:50:1521/12/2007 13:50:15

Page 91: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS90

O segundo aspecto da escolha remete para a dimensão da proteção e da repa-ração dos direitos humanos. A base da escolha remete para o reconhecimento da existência de seres humanos em situação de maior vulnerabilidade (o que já é, de alguma forma, indicação de desigualdade), além do reconhecimento de que existem violações dos direitos que geram vítimas – sejam as vítimas sistêmicas da histórica exploração e expropriação, sejam as vítimas, hoje banalizadas, da violência.

Vítimas existem em conseqüência da negação de direitos, de sua não-realiza-ção. Vítimas são todos os seres humanos que estão numa situação na qual é invia-bilizada a possibilidade de produção e reprodução de sua vida material, de sua cor-poreidade, de sua identidade cultural e social, de sua participação política e de sua expressão como pessoa, enfi m, de seu ser sujeito de direitos (Dussel, 1998; Dussel, 2001; Ifi be, 2006). Vítimas e grupos vulneráveis existem porque a reprodução da vida (humana e em geral) está interditada pela postura predatória, patrimonialista, privatista e individualista; porque vale mais o “poder de compra” – capacidade de consumo – do que a pessoa (às vezes, tão ou mais descartável que as coisas); por-que a racionalidade hegemônica é cínica e ignora as vítimas e as alteridades, é a racionalidade calculista e instrumental, essencialmente concorrencial – o outro é “inimigo”; porque o crescimento das “burocracias privadas e privatistas” constran-ge os Estados (e a cidadania) e inviabiliza a atenção aos direitos, pondo-os a servi-ço da segurança da reprodução do próprio capital e da manutenção dos interesses privados – sobretudo das transnacionais – em detrimento das demandas públicas e universais por direitos, que passam a ser entendidas puramente como serviços. E, fi nalmente, porque as posições contestatórias ou mesmo os problemas graves e comuns a todos (como a questão ambiental) são entendidos como desajustes sistê-micos a serem absorvidos (como controle de risco) ou simplesmente eliminados, combatidos (vide a criminalização da luta social). Reconhecer a existência de ví-timas e de grupos vulneráveis exige posicionar a ação no sentido de protegê-los e repará-los. Todavia, isso, de longe, pode ser pautado por posturas que se traduzem em clientelismos e paternalismos de todo o tipo.

O BRASIL E SUAS “OPÇÕES”A segunda parte da refl exão dedica-se à identifi cação das contradições fundamen-tais que ainda aguardam respostas. Diríamos que são aqueles pontos cruciais da agenda de direitos humanos que persistem. As transições vividas pela sociedade brasileira nos últimos anos se confi guram quase que como partidas de um lugar para um não-lugar, ou para lugar algum, que seja efetivamente novo e que abra espaço para a justiça social e a efetivação dos direitos humanos. Nesse sentido, a problemática brasileira dos direitos humanos é mais persistente do que emergente – mesmo sabendo que sua persistência se apresenta como emergência e indica a urgência de seu enfrentamento, sobretudo se a pretensão estiver calcada na busca efetiva de sua realização na vida de cada uma e de cada um dos brasileiros(as).

liv_inesc_01h.indd 90liv_inesc_01h.indd 90 21/12/2007 13:50:1521/12/2007 13:50:15

Page 92: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 91

Mais do que descrever as questões – o que já fi zemos em outras oportunida-des (Ceris, Mauad, 2007; Misereor et al, no polo) –, vamos nos ater a enunciar questões que ajudem a refl etir sobre a situação. O alerta sobre a desigualda-de estruturante, que constitui um fosso que cinde a sociedade brasileira, já é antigo e foi diagnosticado por Machado de Assis, no início do século passado, quando dizia que um é o Brasil ofi cial e outro é o Brasil real. Abordaremos as questões com uma carga, talvez exagerada, de ironia, recurso clássico – Sócra-tes é um bom exemplo – para “desnudar” e abrir o diálogo.

Pela desigualdade

A desigualdade não é um fenômeno circunstancial no Brasil, seja sob o aspecto da organização social, econômica, política ou cultural. Parece ser uma opção es-truturante da vida brasileira, que se reproduz como estratégia de integração (ou de desintegração) social. Dois exemplos são plásticos para tal compreensão.

A colonização eliminou indígenas – processo ainda comum em nossos dias – por terem sido considerados inaptos e renitentes à submissão às formas de trabalho. Em troca destes, foi-se à África. A escravidão separou os “bem-nascidos” do traba-lho e submeteu ao trabalho, à força, milhões de expatriados, comercializados como “peças” (coisas). A herança da Casa Grande e Senzala, como diagnosticou Sérgio Buarque de Hollanda, não foi resolvida como integração social e cooperação, com o advento da abolição – aliás, uma das últimas no continente. Pelo contrário, a estra-tégia do branqueamento novamente optou por manter as elites apartadas do traba-lho e por atrair milhões de imigrantes europeus (depois, asiáticos) para substituir a mão-de-obra negra nas lavouras, depois convocada massiçamente às cidades.

Os milhares de negros africanos e seus descendentes foram, literalmente, des-cartados. O mito da democracia racial contribuiu para amalgamar o fosso, cons-truindo a idéia de que a cordialidade é característica das relações: racismo: isto não existe, é conversa de negros desajustados – o discurso é exatamente o mesmo hoje, quando entra em pauta o Estatuto da Igualdade Racial ou as cotas para o ingresso de afrodescendentes nas universidades, por exemplo. O Brasil optou por (não) inte-grar negros e indígenas. Aqui está uma das raízes da desigualdade.

O sexismo se reproduziu de forma aviltante para as mulheres, consideradas “necessárias” à reprodução biológica, não mais do que isso. A mesma separação que reduziu o espaço de vida das mulheres ao privado, enquanto homens (brancos e “bem-nascidos”) faziam a vida pública, mantém-se como diferença crassa de re-muneração entre mulheres e homens no trabalho, na baixíssima presença de mu-lheres em postos de direção da política e da economia, por exemplo. Do mundo da casa, as mulheres, aceitas no trabalho, foram confi nadas a tarefas extensivas às do lar, como o cuidado da casa dos outros (trabalho doméstico), de crianças, pes-soas idosas e com defi ciência (serviços sociais em geral), para fi car em tipos em-blemáticos. A força da violência doméstica e sexual, a qual milhões de mulheres são diariamente submetidas, é não mais do que uma versão perversa do sexismo machista que separa as mulheres da integração cooperativa da sociedade.

liv_inesc_01h.indd 91liv_inesc_01h.indd 91 21/12/2007 13:50:1521/12/2007 13:50:15

Page 93: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS92

Portanto, não é de estranhar que a pobreza e a miséria, manifestações genera-lizadas da desigualdade – e da violação sistemática dos direitos humanos – nunca podem ser tomadas apenas de forma genérica. No Brasil, têm cor e sexo. Ademais, tentativas de sua superação – e nos últimos anos o esforço para tal tem sido ób-vio – redundam insufi cientes, visto que, em geral, parecem chegar a resultados positivos na redução da desigualdade nos indicadores gerais, porém, mantêm-se praticamente inalteradas quando lidas com cor e sexo.

Honestamente, é difícil de acreditar que o Brasil já fez uma opção fundamen-tal pela superação da desigualdade – mantendo-se vazia a consagrada expressão liberal da igualdade de todas as pessoas perante a lei. Um olhar macro-histórico (e também micro-histórico) evidencia exatamente o contrário. O problema da desigualdade continua sendo um problema para pessoas mais fracas, que nun-ca saíram do lugar onde nasceram (nem mesmo para registrar-se ou para serem registradas), que ainda não conhecem os Estados Unidos ou a Europa. Problema delas! Afi nal, é patente sua falta de iniciativa, sua preguiça congênita. Parecem vocacionadas à pobreza. Quando se levantam para exigir lugar na sociedade, fazem-no de forma equivocada – usam a força, ocupam a propriedade privada, querem fi car em lugares que atrapalham grandes e necessários projetos de de-senvolvimento, querem cotas, reparação, cadeia para maridos e companheiros – daí ser legítima a repressão, a criminalização... a eliminação.

É incrível como se arranjam motivos para que a sociedade as mantenha (ou as elimine), de forma legítima, fora da sociedade como um problema social (Ribeiro, 2000; Locke, 1978; Kant, 1995; Dussel, 1993). A minoridade das minorias, a rigor, é obra delas mesmas, visto ainda não terem tomado em suas próprias mãos a tare-fa da maioridade. Cinismo crasso, hipocrisia pura, nomes que traduzem posturas e leituras deste tipo. Cinismo e hipocrisia estão na base da opção pela desigualda-de, que é também uma opção contra os direitos humanos, como universais – eles até existem, mas não para certos tipos, que só supostamente são humanos – este discurso é tão signifi cativo que é exatamente o mesmo que esteve na base das justifi cativas de Auschwitz.

Pela violência

A violência também não é um fenômeno social contemporâneo – por mais que agregue facetas e crueldades particulares em nossos tempos. É marca estru-turante das relações sociais, políticas, econômicas e culturais brasileiras. Os mesmos aspectos apontados como bases da desigualdade são mostras da recor-rência histórica da violência. O Brasil foi constituído na base da violência – da cruz e da espada (Vieira, 1975; Suess, 1992). A violência, assim como a desigual-dade, tem cor, idade, sexo e classe. São os homens negros, jovens e pobres as maiores vítimas da violência atual e também o maior contingente da população carcerária – mesmo nas instituições socioeducativas para adolescentes (Koino-nia, 2005).

liv_inesc_01h.indd 92liv_inesc_01h.indd 92 21/12/2007 13:50:1521/12/2007 13:50:15

Page 94: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 93

A tortura e a impunidade estão disseminadas na cultura e constituem um círculo vicioso que alimenta a violência. A presença da tortura, de forma sis-temática, nas delegacias e nas casas de detenção é prova da forma arcaica de abordagem da segurança. Associados a elas estão os grupos de extermínio e as execuções sumárias e extrajudiciais patrocinadas tanto por civis como por po-liciais. A impunidade se alastra em função da baixa resolutividade do sistema de Justiça e Segurança e, sobretudo, quando atinge as pessoas mais pobres, com baixa escolaridade, negras, gerando a sensação de que basta ter dinheiro para não ser pego. Casos emblemáticos de chacinas, quando não resolvidos satisfa-toriamente, geram, em escala, a idéia de que há tolerância para certos crimes, sobretudo os cometidos contra as pessoas mais pobres, de um lado, ou as patro-cinadas pelos mais ricos, por outro.

A resposta à violência, em geral é tão ou mais violenta, além de espasmódica. Sempre que um fato grave e amplamente divulgado ocorrer, as instituições apa-recem com o mesmo discurso: endurecimento das penas, ampliação do encarce-ramento, redução da maioridade penal. Passado o espasmo, tudo continua como dantes. Por isso, é deveras estranho dizer que a violência é uma opção. Sim, é uma opção quando a sociedade não resolve o mais fundamental da violência, suas raízes. Sim, é uma opção quando a sociedade não dota o Estado de uma políti-ca consistente, permanente e pautada pelos direitos humanos. Sim, é uma opção quando os dirigentes do país parecem não encontrar outra solução para o proble-ma que não seja a repressão – necessária para certos tipos de violência, sobretu-do a organizada; insufi ciente para boa parte da chamada, eufemisticamente, de violência miúda. Dessa forma, a violência segue como uma forma contraditória de (des)integração social, que, funcionalmente, colabora para resolver (pela con-tenção) as mazelas da desigualdade.

liv_inesc_01h.indd 93liv_inesc_01h.indd 93 21/12/2007 13:50:1521/12/2007 13:50:15

Page 95: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS94

Pelo conservadorismo recessivo

Há uma compreensão recorrente e disseminada de que defender direitos huma-nos é fazer a defesa de “bandidos e marginais” – discurso que está na base da criminalização da luta social e que se amplia em momentos de crise. A tendência da opinião pública, patrocinada, em grande medida, por setores da mídia e por lideranças políticas, é de reagir com propostas que advogam o endurecimento das medidas penais e a tolerância com o recrudescimento da ação policial – é o velho hábito de tratar questão social como caso de polícia.

As posturas autoritárias e conservadoras que marcam as relações sociais e institucionais insistem em educar a cidadania para que não seja cidadã. Re-nova o discurso do soberano auto-instituído (ou posto como representante de alguma divindade) como detentor exclusivo dos direitos a quem a cidadania (ou a não-cidadania) deve obrigações. Daí a palavra fácil, em oposição aos direitos, de que somente há direitos em conseqüência de deveres, sendo os deveres iden-tifi cados à sujeição, ao tributo, à submissão; e os direitos às concessões, benes-ses, dádivas. É deste tipo de consciência que nascem expressões como: direitos humanos sim, mas somente para os humanos direitos. Em outras palavras, di-reitos humanos somente para quem cumpre bem seus deveres e se adequam à ordem estabelecida. Defi nitivamente, será possível querer direitos assim? Ora, querer direitos desta forma é não querê-los.

Rigorosamente, posturas desse tipo são refratárias aos direitos humanos. Insistem em rejeitar a idéia de que o advento dos direitos humanos abriu uma nova perspectiva para a compreensão de tudo isso. Ignoram que os direitos nas-ceram da rebeldia, da insurreição, da luta contra a ordem que não abria espaço para o cidadão e a cidadã. Sem muito esforço de memória, basta lembrar que foi num contexto deste tipo que foram proclamados em uma de suas primeiras ver-sões, pela Assembléia Nacional francesa pós-revolucionária. Mais recentemen-te, foi contra o arbítrio da ordem autoritária que gerou a Segunda Guerra Mun-dial, que foram invocados e reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). No Brasil, foi contra a ditadura (eufemisticamente autopro-clamada de revolução) que foram invocados e semearam germens de liberdade e de igualdade. Hoje, é contra os arbítrios, as exclusões, as opressões e os apeque-namentos de todo tipo que são exigidos. Mas para posturas conservadoras, esta não é uma leitura aceitável, é acusada de ser uma leitura “ideológica”. Impede o reconhecimento de que, em termos históricos, desejar direitos é, acima de tudo, não querer só deveres, ou melhor, que deveres têm deveres como contrapresta-ção a direitos. Isto talvez explique porque direitos humanos são tão incômodos aos que, supostamente, entendem-se humanos direitos, portadores quase ex-clusivos da humanidade que distribuem a quem concordar com eles. É como se houvesse uma “reserva” privada e privativa de direitos humanos.

Na tentativa de escapar dos conservadorismos, e de seu cinismo dogmático, até como forma de advogar outras maneiras de enfrentar os dilemas da desi-gualdade e da violência, ensaiamos três argumentos a seguir.

liv_inesc_01h.indd 94liv_inesc_01h.indd 94 21/12/2007 13:50:1621/12/2007 13:50:16

Page 96: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 95

Primeiro: direitos humanos correlacionam direitos e deveres de uma nova maneira, dando ao dever um sentido que se sustenta como contrapartida dos direitos: é porque há direitos, pessoas, sujeitos, cidadãos, com direitos que tem sentido os deveres (de quem tem a responsabilidade para garantir e realizar os direitos e de todas as pessoas que têm direitos como devidos às demais). Sig-nifi ca que, no plano institucional, para garantir direitos, exige-se que o agente público por excelência, o Estado, cumpra deveres – é o soberano que está sub-metido ao dever, não a cidadania; no plano interpessoal, os direitos de uns têm sentido como direitos dos outros, como direitos de todas as pessoas.

Segundo: querer direitos como um dever traduz o móbile básico da ação prática (ética e política). Querer direitos não é uma escolha que se faz pautando-se pela cir-cunstância. Somente um querer que pauta seu agir pela dignidade humana sempre como fi m é um querer direitos como um dever. Se na base do agir está a preserva-ção e a promoção da dignidade, resulta necessário (um dever) que toda ação este-ja orientada pelo dever de preservar e promover a dignidade humana em todas as circunstâncias. Querer direitos como um dever limita, portanto, a liberdade como querer qualquer coisa e a qualquer custo. A rigor, é a raiz da liberdade, porque a faz emergir da relação com o outro, que também é ser de dignidade e direitos. A liberdade deixa de ser exercida como faculdade do indivíduo isolado e passa a ser exercida como construção em relação com outra pessoa – supera-se a idéia de que minha liberdade vai até onde começa a da outra pessoa, ambas, se começam, é no mesmo lugar.

Terceiro: direitos humanos exigem pautar a atuação mais como instituinte do que como instituído. Querer direitos é mais do que pretender que normas ou padrões sejam efetivados – por mais que isso seja necessário – e mantidos (o instituído); é agir para que todo o processo seja permanentemente instituinte. Nesse sentido, querer direitos é estabelecer relações práticas (institucionais e interpessoais) que mobilizem, permanentemente, todos os quereres e todos os sujeitos dos quereres para manter aberto e em construção o processo de alar-gamento do sentido de ter direitos e o sentido dos direitos. Na dimensão institu-cional signifi ca pôr a lei e a ordem a serviço da justiça e da paz; na interpessoal signifi ca agir sempre pautado pelo reconhecimento, cooperação e solidariedade.

Ora, se os argumentos que aduzimos à complexidade da refl exão que abri-mos têm algum sentido, então fi ca compreensível porque é tão difícil aos hu-manos direitos entender que direitos humanos não são um privilégio, uma con-cessão. Por outro lado, torna-se também muito difícil aos que são entendidos por aqueles como tortos aceitar que direitos humanos são privilégio, concessão. Sociedades democráticas ao menos garantem a uns e a outros que, sem querer direitos como dever, seria impossível sequer divergir. Isto remete para o querer direitos como base, até para quem defende que isto é um privilégio. Em suma, parece não ser possível um querer diferente do querer direitos para todas as pessoas, indistintamente.

liv_inesc_01h.indd 95liv_inesc_01h.indd 95 21/12/2007 13:50:1621/12/2007 13:50:16

Page 97: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS96

IDENTIFICANDO DESAFIOSOs desafi os que apontamos nascem do esforço de fazer convergir o enfoque e a leitura da situação e os consideramos fundamentais para fortalecer a luta pelos direitos humanos no Brasil – sem prejuízo de outras lutas. É mais uma refl exão programática do que a apresentação de uma pauta para a ação imediata. Nova-mente, recolhemos as propostas do mesmo texto que serviu de referência para o ponto anterior, atendo-nos a um breve enunciado do sentido de cada desafi o, sem reapresentar, novamente, os argumentos que os justifi cam – remetemos ao texto já referido para o conhecimento desses aspectos.

Fortalecimento da organização popular

A organização popular é uma das expressões mais fortes da luta por reconheci-mento da dignidade e pela realização dos direitos humanos, para além da luta por interesses corporativos específi cos. São as organizações populares que mantêm vivo o processo de resistência ao modelo de desenvolvimento que ex-clui e propõe o alargamento do conteúdo dos direitos humanos e a ampliação dos espaços de participação, dando visibilidade a sujeitos de direitos ignora-dos e vulnerabilizados pela sociedade. Daí que, fortalecer a organização popu-lar é, sobretudo, ampliar as condições para a realização dos direitos humanos. Signifi ca dar vazão e expressão às contradições estruturais que marcam so-ciedades profundamente desiguais e assimétricas. Signifi ca gerar condições para lidar com a mediação de confl itos de forma participativa e programática. Signifi ca, sobretudo, acreditar que os sujeitos de direitos são todos os seres humanos e que somente eles poderão saber qual é a melhor maneira para efe-tivamente realizá-los.

Novas estratégias de luta

A organização popular de luta pelos direitos humanos tem presença signifi ca-tiva na sociedade brasileira. Nas últimas décadas, têm se diversifi cado em for-mas e em estratégias de luta. Entre as organizações que atuam especifi camente em direitos humanos, surgem novos atores (ONGs e movimentos sociais), que passam a incorporar a agenda dos direitos humanos, além de organizações que tematizam e especifi cam os direitos humanos de forma consistente, sobretudo abrindo a exigência para o diálogo com o tema da igualdade racial, de gênero, de orientação sexual, de geração. Ademais, ampliam-se os espaços de articulação (redes, fóruns, e outros). Por outro lado, há segmentos da organização social que ainda estão mais distantes da incorporação da agenda de direitos humanos – o movimento sindical em geral, por exemplo.

Compreender o sentido e a diversidade das formas organizativas e das estra-tégias de luta é tarefa fundamental para fazer avançar a luta pelos direitos. Talvez o maior desafi o na construção de novas estratégias de luta esteja na ampliação da capacidade de mobilização social em torno da agenda de direitos humanos, enfrentando as travas culturais conservadoras consistentes na opinião pública.

liv_inesc_01h.indd 96liv_inesc_01h.indd 96 21/12/2007 13:50:1621/12/2007 13:50:16

Page 98: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 97

liv_inesc_01h.indd 97liv_inesc_01h.indd 97 21/12/2007 13:50:1621/12/2007 13:50:16

Page 99: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS98

Ampliar as fendas e, sobretudo, popularizar a adesão positiva e o reconhecimento amplo da população com os direitos humanos impõe-se como desafi o estratégico, seja para ampliar a base de apoio da luta, seja, principalmente, para gerar con-dições de ampliar a efetivação dos direitos. As novas estratégias de luta pelos direitos humanos exigem a construção de uma agenda diferenciada, que passa pela refl exão sobre o sentido dos direitos humanos – as concepções que são cons-truídas a partir delas – e, sobretudo, pela explicitação de novos conteúdos e de novas estratégias. Signifi ca que a tarefa somente poderá ser cumprida se forem ampliadas a capacidade de diálogo e a construção conjunta desses diversos agen-tes e processos organizativos. Apostar no sombreamento ou na fragmentação só contribuiria para desmobilizar e abrir espaço para o oportunismo do retrocesso.

Nova institucionalidade de proteção

A construção de uma institucionalidade pública de proteção dos direitos huma-nos exige enfrentar desafi os de fundo. Estes se desdobram no sentido da orga-nização da forma de ação do Estado, quando da efetivação de espaços públicos (não-estatais). O Brasil já deu passos signifi cativos na direção de dotar a socie-dade e o Estado de condições para lidar com os direitos humanos, assumindo a responsabilidade com a sua realização, bem como com a reparação de violações. Todavia, é preciso reconhecer que ainda está longe de, efetivamente, dar conta do conjunto das demandas do tema.

Nessa direção, assumir com força e conseqüência as deliberações da IX Con-ferência Nacional de Direitos Humanos (de 2004), que acumulou um conjunto de propostas concretas para a efetivação do Sistema Nacional de Direitos Hu-manos, é o primeiro grande desafi o. Tal proposta, além de fazer um diagnóstico dos problemas institucionais de fundo, apresenta um conjunto de medidas para enfrentar a situação, seja aprimorando instrumentos, mecanismos, órgãos e ações que já existem, seja para efetivar outros.

Outro desafi o é o de incorporação efetiva dos direitos humanos no conjunto das políticas públicas – junto com o aprimoramento e a ampliação de ações de políticas públicas específi cas de direitos humanos. A construção de uma polí-tica nacional de direitos humanos exige, entre outras medidas, a atualização do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Mas vai além dela, o esforço maior está em, efetivamente, compreender e implementar ações e direitos hu-manos em todos os espaços de ação pública, superando a idéia de que o órgão de governo (federal) de direitos humanos (a Sedh) é que, sozinha deverá fazê-lo. Ou o processo resulta de um esforço do conjunto do governo e do poder público, ou permanecerá como ação importante, mas à margem, pontual, residual e isolada. Entender que entre as tarefas primeiras do Estado está o compromisso com os direitos humanos é um dos maiores esforços políticos da agenda pública. Fazer esse exercício com ampla e qualifi cada participação das organizações da socie-dade civil é mediação essencial para que os sujeitos de direitos humanos sejam os autores das medidas que serão implementadas para atender seus direitos.

liv_inesc_01h.indd 98liv_inesc_01h.indd 98 21/12/2007 13:50:1721/12/2007 13:50:17

Page 100: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 99

Enfrentamento do modelo excludente de desenvolvimento

A exclusão social é marca histórica do processo de desenvolvimento implementado no Brasil. Em geral, as estratégias para enfrentá-la têm proposto para a sociedade que a saída é o crescimento econômico. Todavia, mesmo com crescimento econômico po-sitivo, ainda que baixo, o que se tem visto é que, sozinho, esse não dá conta de enfren-tar a desigualdade. Até porque, resulta no seu contrário, o aumento da concentração de renda e da exclusão social. Sem uma ampla e forte ação de distribuição da renda e da riqueza – o que não se faz somente com políticas de transferência de renda como programa público –, difi cilmente se poderá reverter o processo e garantir um desen-volvimento sustentável e solidário, capaz de abrigar toda a população brasileira.

O aprofundamento do modelo neoliberal de organização do Estado e da econo-mia e de inserção do país no processo de globalização tem contribuído mais para agravar a situação do que para enfrentá-la. O cumprimento dos compromissos com o ajuste estrutural já não depende de acordos com instituições internacio-nais (FMI, por exemplo), visto que parece ter sido incorporado à prática política. O Brasil ainda não foi capaz de construir uma alternativa de desenvolvimento própria, feita a partir da autodeterminação do seu povo e como um direito – mais que uma ação unicamente da iniciativa livre do mercado, como preceituam os ins-trumentos internacionais de direitos humanos. Pensá-lo com esses pressupostos e no contexto da integração regional e de cada vez maior globalização, com pos-tura soberana, é a questão que se impõe. Construir um amplo processo capaz de gerar novas bases para o desenvolvimento, entendido como um direito humano e como uma mediação para a realização de todos os direitos humanos de todas as pessoas é a urgência que se apresenta e que precisa se traduzir em compromisso dos agentes sociais, políticos, econômicos e culturais.

Segurança como direito

O enfrentamento da violência que marca, profundamente, as relações sociais exi-ge construir políticas de segurança pública pautadas centralmente pelos direitos humanos. Mais do que isso, exige o desafi o de encontrar estratégias e alternati-vas para enfrentar a violência com práticas de mediação de confl itos, a exemplo de iniciativas que já existem em alguns lugares do país; com abordagem integra-da de políticas de diversas ordens; com a ampliação da oferta de serviços públi-cos fundamentais (presença do Estado); todas completadas com o incentivo ao processo de organização social e comunitária em iniciativas diversas.

A reconstrução do tecido social, dilacerado pela pobreza, pela desigualda-de e pela violência, exige mais do que atuações de detenção ou de contenção – necessárias para o combate ao crime organizado, entre outras formas, mas insufi ciente diante da violência cotidiana, maior causadora de sofrimento e morte. A implementação de programas de capacitação de agentes públicos e das organizações da sociedade civil para atuar na mediação de confl itos mostra-se como alternativa consistente e que ajuda a construir processos de promoção da organização comunitária e de proteção social.

liv_inesc_01h.indd 99liv_inesc_01h.indd 99 21/12/2007 13:50:1721/12/2007 13:50:17

Page 101: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS100

Obviamente, essas medidas não são sufi cientes diante da violência, sobretudo àquela patrocinada pelo crime organizado – para a qual deverão ser construídas alternativas de abordagem baseadas na inteligência policial, associadas à capa-citação dos agentes de segurança. Todavia, poderão abrir caminhos para que as próprias comunidades encontrem meios adequados e que redirecionem a própria ação dos agentes públicos de segurança a seu favor. O enfrentamento da violência exige mais do que força. Requer inteligência (policial), organização comunitária e políticas públicas adequadas e de ampla cobertura social, pelo menos.

Promoção da igualdade e da justiça social

Esta emerge como grande desafi o da sociedade brasileira. São pressupostos fun-damentais desta tarefa: a compreensão de que a diversidade é marca da dinâmica social e há que ser valorizada; de que o confl ito é salutar e positivo como elemento de explicitação das diferenças de toda ordem e de busca de construção de consen-sos; de que a participação de todos os agentes sociais é exigência; de que o enfren-tamento dos entraves estruturais que reproduzem a desigualdade é urgência; e da necessidade de buscar alianças estratégicas para a transformação.

Enfrentar a agenda da desigualdade exige conjugar, de forma consistente e profunda, os aspectos que transversalizam o debate, sobretudo questões de gêne-ro, étnico-raciais, geracionais e de classe, entre outras. As medidas a serem ado-tadas não podem confrontar esses aspectos, forçando a sociedade a ter que optar por um deles. Signifi ca encontrar medidas de integração social que ultrapassem a simples acomodação de interesses e o recorrente escamoteamento do debate.

Nesse sentido, à luz dos direitos humanos, a inclusão social – sinônimo de enfren-tamento das desigualdades – exige uma abordagem que preserve a diversidade e a pro-mova, gerando espaço para que a criatividade popular se desenvolva e ganhe lugar. Mas isso implica enfrentar, de forma consistente, o tema da concentração da proprie-dade e da riqueza (rural e urbana); da ampliação da oferta de trabalho – em diversas for-mas; e, sobretudo, da ampliação da oferta e do acesso a serviços públicos universais e de qualidade que sejam efetivados como políticas públicas de direitos humanos.

Mais ação e menos retórica

Direitos humanos podem se tornar um conteúdo retórico e facilmente ouvido das mais diversas bocas – seja para promovê-los, seja para criticá-los. Os diversos agen-tes têm discursos diferentes. Nem todos os que falam de direitos humanos referem-se ao mesmo conteúdo. A prática é o campo da política e é nela que se pode identi-fi car sua verdade. Neste sentido, é exatamente agindo que se poderão superar as contradições. A política não se esgota na técnica de compor interesses, é bem mais do que isso: é a prática de enfrentar de frente os confl itos e de construir os consen-sos baseados em argumentos. Por isso, mais do que retórica, precisa-se de ação polí-tica. Essas idéias gerais valem sobejamente para os direitos humanos. Nos últimos anos, têm-se acumulado muitas propostas, sugestões, análises. Falta a coragem so-lidária para fazer com que as intenções se transformem em ações.

liv_inesc_01h.indd 100liv_inesc_01h.indd 100 21/12/2007 13:50:1721/12/2007 13:50:17

Page 102: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 101

Por uma nova cultura de direitos

A idéia que resume o conjunto dos desa-fi os sugeridos para o enfrentamento da situação à luz de uma compreensão dos direitos humanos traduz-se na construção de uma nova cultura dos direitos humanos. Falar de cultura é falar de construção de um modo de ser, no sentido clássico de um ethos, de uma nova ética, uma ética dos direitos humanos. É dessa forma que se poderão reforçar, em termos de direitos hu-manos, atitudes básicas que caracterizam a humanidade: a indignação e a solidarie-dade. A primeira mobiliza para a reação; a segunda para a ação. Juntas, põem em marcha a geração de condições para que a sociedade encontre caminhos até a digni-dade de cada uma e de todas as pessoas.

Se isso não passa de uma crença, como preferem os céticos e os cínicos, sempre de plantão na exigência de objeti-vidade e de respostas prontas para tudo, que assim seja. Afi nal, que seria do tópos, sem u-tópos – o que seria do lugar atual, sem uma utopia – um ainda-sem-lugar! Aliás, em matéria de direitos humanos, talvez esta seja a maior aposta: acreditar sempre e de novo que a humanidade vale mais, muito mais do que qualquer preço – melhor, vale exatamente por não ser possível atribuir-lhe qualquer preço.

Até porque, construir uma cultura dos direitos humanos é reconstruir re-lações – superar a indiferença – e abrir espaços de diálogo em vista de maior humanização. Acreditar é condição para agir. Agir é a mediação para transformar. Transformar tem sentido como constru-ção do novo, sempre, de novo.

liv_inesc_01h.indd 101liv_inesc_01h.indd 101 21/12/2007 13:50:1721/12/2007 13:50:17

Page 103: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS102

REFERÊNCIAS

APEL, Karl-Otto. Dissolução da ética do discurso? In: Com Habermas, contra Habermas. Direito, discurso e democracia. Trad. Claudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, p. 201-321.

______________. Ética e direitos humanos. In: CARBONARI, Paulo César (Org). Sentido fi losófi co dos direitos humanos. Passo Fundo: Ifi be, 2006.

CARBONARI, Paulo César. Direitos Humanos: uma refl exão acerca da justi-fi cação e da realização. In: CARBONARI, Paulo César ; KUJAWA, Henrique Ani-ceto. Direitos Humanos desde Passo Fundo. Passo Fundo: CDHPF/Ifi be, 2004, p. 89-109.

_____________________. A construção de um Sistema Nacional de Direitos Hu-manos. In: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA GAÚCHA. Comissão de Cidadania e Di-reitos Humanos. Relatório Azul 2004: garantias e violações dos direitos huma-nos. Edição Comemorativa de 10 anos. Porto Alegre: Corag, 2004, p. 344-369.

__________________. Realização dos Direitos Humanos. Coletânea de referên-cias. Passo Fundo: Ifi be, 2006.

_____________________. Sujeito de direitos humanos: questões abertas e em construção. In: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL. Anais do VII Simpósio Sul Brasileiro sobre Ensino da Filosofi a. Porto Ale-gre:PUC, 2007 [disponível em formato eletrônico].

______________________. Globalização e Direitos Humanos: identifcando desa-fi os. In: LIMA Jr, Jayme Benvenuto. Direitos Humanos Internacionais: avanços e desafi os no início do século XXI. Recife: Gajop, MNDH, 2001, p. 95-109.

________________. Ética, violência e memória das vítimas: um olhar à luz dos direitos humanos. In: INSTITUTO SUPERIOR DE FILOSOFIA BERTHIER. Re-vista Filosofazer. Passo Fundo: IFIBE, ano XV, nº 29, jul-dez 2006, p. 75-89.

_____________. Raízes da Violência: uma abordagem com pistas programáti-cas. In: KOINONIA. Revista Tempo e Presença. Rio de Janeiro: Koinonia, ano 27, nº 339, jan/fev 2005, p. 7-17.

DUSSEL, Enrique D. Ética de la liberación en la edad de la globalización y de la exclusión. Madrid: Trotta, 1998 [Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Trad. Jaime A. Clasen et al. Petrópolis: Vozes, 2000].

_______________. Derechos humanos y ética de la liberación. In: DUSSEL, En-rique. Hacia una fi losofi a política crítica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001, p.145-157.

______________. 1492: o encobrimento do outro. A origem do mito da moderni-dade. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993.

GUTIERREZ, Germán. Globalización y Liberación de los Derechos Huma-nos. In: HERRERA FLORES, Joaquín (Org.). El vuelo del Anteo: derechos huma-nos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p.173-174.

HABERMAS, J. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Fla-vio B. Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v.2

liv_inesc_01h.indd 102liv_inesc_01h.indd 102 21/12/2007 13:50:1821/12/2007 13:50:18

Page 104: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 103

HINKELAMMERT, Franz. El proceso actual de globalización y los derechos humanos. In: HERRERA FLORES, Joaquín (Org.). El vuelo del Anteo: derechos hu-manos y crítica de la razón liberal. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000, p. 117-127.

KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é o iluminismo? In: A paz per-pétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 11-19.

MISEREOR et al. Direitos Humanos no Brasil: uma leitura da situação em perspectiva. In: CERIS, MAUAD. Relatório Direitos Humanos no Brasil 2: diag-nóstico e perspectivas. Rio de Janeiro: Ceris/Mauad, 2007, p.19-66.

____________. Contra-informe da sociedade civil brasileira sobre o cumprimen-to do Pidesc pelo Estado brasileiro. Brasília: Comitê DESC/ONU, no prelo.

RIBEIRO, Renato Janine. A Sociedade Contra o Social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

SUESS, Paulo (Coord). A conquista da América espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992.

VIEIRA, Padre. Sermões.Rio de Janeiro: Agir, 1975, 7ª ed.

liv_inesc_01h.indd 103liv_inesc_01h.indd 103 21/12/2007 13:50:1821/12/2007 13:50:18

Page 105: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS104

104

FOTOS STOCK.XCHNG

liv_inesc_01h.indd 104liv_inesc_01h.indd 104 21/12/2007 13:50:1821/12/2007 13:50:18

Page 106: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 105

Ousadia com doses de ponderação, receita da política externa de Lula

M A R I A R E G I N A S O A R E S D E L I M A

Professora e pesquisadora do Laboratório de Pesquisas em Comunicação Política e Opinião Pública (Iuperj); coordenadora acadêmica do Observatório Político Sul-americano (Opsa); e professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da [email protected]

A estabilidade da política externa brasileira faz parte daquele conjunto de mitos que, de tão repetidos, acabam se tornando verdadeiros, validados por um com-petente discurso diplomático que nunca deixou de vincular à tradição eventuais inovações conceituais e de posicionamento da política internacional do país. Até que ponto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva inovou na política externa?

Uma resposta a essa pergunta exige examinar, em linhas gerais, quais fo-ram os seus principais eixos no passado recente e até que ponto esses continu-am balizando as orientações da política externa no presente. Durante a Guerra Fria, a política internacional do país posicionou-se sobre dois eixos: a dimen-são Leste-Oeste e a Norte-Sul, conforme examinado a seguir.

GUERRA FRIANo eixo Leste-Oeste, referido basicamente ao maior ou menor alinhamento aos Esta-dos Unidos (EUA), quando as orientações do país estavam mais claramente condicio-nadas à dinâmica política e às orientações ideológicas das coalizões internas, o Bra-sil conheceu três posições (tais categorias foram elaboradas por Fonseca JR., 1998):

Ocidental puro: adesão irrestrita aos valores do Ocidente e aliança estraté-gica com os EUA (período Dutra, no imediato pós-guerra, quando uma ativa política de exclusão e supressão das forças políticas de esquerda combinou-se com um alinhamento incondicional a Washington);Ocidental qualifi cado: adesão política ao Ocidente, defesa da democra-cia representativa liberal, mas exercícios de diferenciação com relação ao alinhamento com os EUA (segundo mandato de Vargas, governo Juscelino Kubitschek e governo Jânio Quadros, quando se constitui a coalizão desen-volvimentista, que combinava ativismo econômico estatal, protecionismo comercial e abertura ao capital estrangeiro);

liv_inesc_01h.indd 105liv_inesc_01h.indd 105 21/12/2007 13:50:1921/12/2007 13:50:19

Page 107: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS106

Ocidental autônomo: desenho de uma identidade internacional própria para o país, com diversifi cação das relações exteriores e exercício de posições pró-prias com relação aos EUA. O modelo foi experimentado em duas situações políticas distintas. Por um lado, quando se combinou a vigência da democra-cia com o desenvolvimento da identidade de Terceiro Mundo – caso da Políti-ca Externa Independente do governo Goulart. Por outro, quando à diversifi ca-ção de parceiros foi adicionado um projeto de potência na vigência do regime militar – caso do Pragmatismo Responsável do governo Geisel.

No eixo Norte-Sul, referido às relações centro-periferia, as posições brasi-leiras oscilaram em função da variação da inserção econômica internacional, em especial a comercial, bem como das mudanças nas agendas e arenas multi-laterais de negociação confi guradas basicamente pelos países centrais. Grosso modo, no período que vai da constituição do sistema multilateral de comércio à criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil encenou três repertórios de atuação, descritos a seguir.

1. Demanda pela reforma da ordem liberal de comércio com base no princí-pio de que é injusto tratar desiguais como iguais. Como uma das lideranças do Terceiro Mundo, no G-77, o Brasil destacou-se na luta pela atenuação da cláusula de Nação mais Favorecida (regra da não-discriminação) para fazer face à condição adversa daqueles países no regime comercial e pelo trata-mento diferenciado e não-recíproco (criação da Conferência das Nações Uni-das sobre Comércio e Desenvolvimento/Unctad e introdução do Sistema de Preferências Generalizado).

2. Limitação de danos, em que o Brasil buscou como estratégia negocia-dora retardar medidas que diferenciassem os países em desenvolvimento (graduação) e introduzissem cláusulas de condicionalidade no tratamento de Nação mais Favorecida nas negociações de barreiras não-tarifárias e códigos de acesso: subsídios, salvaguardas; anti-dumping. A oposição à introdução dos novos temas e disciplinas, em campos como propriedade intelectual, investimento e serviços, também fez parte da estratégia de-fensiva de países como Índia e Brasil. A posição brasileira refl etiu a dife-renciação entre os países da periferia e a perda de coesão do G-77 (Rodada de Tóquio, no Acordo Geral de Tarifas e Comércio/Gatt).

3. Na década de 1990, com a crise da dívida e a adesão dos países da periferia ao Consenso de Washington, a coalizão terceiro-mundista se fragmentou. O governo Collor encenou um repertório distinto, caracterizado como de ade-são incondicional às regras comerciais emergentes e abertura unilateral do comércio (Rodada Uruguai e adesão à OMC).

liv_inesc_01h.indd 106liv_inesc_01h.indd 106 21/12/2007 13:50:1921/12/2007 13:50:19

Page 108: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 107

PÓS-GUERRA FRIAAs transformações da macro-estrutura de poder nas décadas de 1980 e 1990 são cruciais para se entender a mudança de paradigma internacional do Brasil nesse período. Os múltiplos efeitos daquela transformação sistêmica até hoje se fazem sentir. Mas cabe assinalar duas conseqüências por seu impacto na inserção inter-nacional de países intermediários, como o nosso. Por um lado, a remoção de obs-táculos políticos e territoriais à expansão global do capitalismo como conseqüên-cia da eliminação da oposição na política internacional, do desaparecimento do contra-modelo do socialismo – fenômeno expresso pelo conceito de globalização. Por outro, a crise do Terceiro Mundo, resultado de uma combinação de fatores, dos quais os mais relevantes foram: crise da dívida externa, crise fi scal e exaus-tão do modelo prévio de crescimento voltado para o mercado interno, com base na estratégia de substituição de importações. A conseqüência política dessas mu-danças foi erodir a coalizão terceiro-mundista – uma das principais balizadoras da diplomacia econômica do Brasil desde a década de 1970.

O efeito combinado da globalização do capitalismo e da crise do Terceiro Mundo sobre a periferia capitalista foi provocar uma diferenciação estrutural. Isso porque alguns daqueles países passam a se integrar mais fortemente à economia internacional, por meio da participação nas novas cadeias produti-vas que impulsionam a expansão do capitalismo na periferia, e a formação de economias emergentes, os assim chamados Brics (grupo de países emergentes, como Brasil, Índia e África do Sul, entre outros, que devem superar as maiores nações até 2050). Por outro lado, assiste-se à fragmentação e à involução políti-ca e econômica de outros Estados, que passaram a integrar aquele conjunto de “Estados falidos”, assim denominados pela política externa norte-americana.

No plano global, o fi m do socialismo não se seguiu à vitória da ordem liberal, mas de um capitalismo mercantilista, em que o exemplo mais expressivo foi a transformação do Gatt/OMC de uma instância de liberalização multilateral no pós-Segunda Guerra – a partir da difusão de princípios de não-discriminação –, em uma arena de regulação da competição entre os países capitalistas, de im-posição de disciplinas em uma série de áreas de interesse daqueles países e de proteção dos seus interesses agrícolas.

Na atualidade, são os emergentes como Índia e Brasil, com interesses ofen-sivos na liberalização comercial agrícola, os principais defensores do regime multilateral de comércio. Também mercantilistas são os tratados bilaterais de livre-comércio, capitaneados pelos EUA que, ao criarem áreas preferenciais, ga-rantem uma reserva de mercado aos produtos de origem daquele país.

Nos planos regional e doméstico também se observaram transformações relevantes nas décadas de 1980 e 1990. Uma das mais signifi cativas foi a rede-mocratização política, que permitiu ao Brasil universalizar suas relações inter-nacionais, simbólica e materialmente representada, seja pelo reconhecimento de Cuba, seja pela aproximação inédita com Argentina e a criação do Mercosul.

liv_inesc_01h.indd 107liv_inesc_01h.indd 107 21/12/2007 13:50:1921/12/2007 13:50:19

Page 109: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS108

Todas essas transformações internacionais e domésticas tornaram sem efeito um dos parâmetros centrais na defi nição de sua identidade internacio-nal: qual seja, o eixo Leste-Oeste referido ao alinhamento à política externa dos EUA. Com relação à dimensão Norte-Sul, a mudança na estratégia de inserção internacional e a reestruturação e diferenciação da periferia modifi caram o pa-tamar de inserção do Brasil nas arenas de negociação econômica multilateral.

ALIANÇA DE CONVENIÊNCIANo plano regional, a democratização e a exaustão da estratégia de substituição de importações e do modelo prévio de desenvolvimento de economia fechada le-varam à adoção de um modelo de regionalismo aberto, que se tornaria dominan-te na década de 1990. A confi guração de relações cooperativas com a Argentina e a consolidação dos processos de abertura econômica – que então se iniciavam na região – estão na origem desse movimento e são sua principal motivação.

O caso específi co do Mercosul representou uma aliança de conveniência entre os setores favoráveis à abertura econômica. O acordo funcionaria como uma solda para consolidar as iniciativas de abertura comercial. Os setores desenvolvimentis-tas, apesar de bastante enfraquecidos pelo fortalecimento das políticas orientadas pelo mercado, viam no Mercosul um instrumento importante para aumentar o po-der de barganha do Brasil e da Argentina nas negociações internacionais.

Dessa forma, o novo regionalismo da década de 1990, cujo paradigma foram os acordos de livre-comércio, surgiu de duas motivações convergentes naquele momento: uma reação defensiva à globalização produtiva e fi nanceira e a in-tenção deliberada de demonstrar à comunidade de negócios a credibilidade dos programas de estabilização econômica e das reformas de mercado então adota-das pelos países periféricos.

Na América Latina, tal movimento representou uma mudança do modelo de desenvolvimento prévio, voltado para o mercado interno, e a adoção de uma estra-tégia de inserção “competitiva” na economia globalizada. Não é mera coincidên-cia que o Chile, o país sul-americano com o maior grau de abertura econômica, seja também aquele que exibe o maior número de acordos daquela natureza.

Ainda que o Brasil tenha também aderido à onda das reformas pró-mercado dessa década, sua implementação não foi tão generalizada nem tão profunda como ocorreu em outros países, como a Argentina. Em um contexto de hegemo-nia neoliberal na América Latina, o Brasil foi retardatário e não implementou o pacote completo das reformas, em vista de ter sido um dos casos mais bem-sucedidos da estratégia de crescimento anterior.

Esse legado desenvolvimentista persistiu nas práticas e nas visões de al-guns segmentos relevantes políticos, burocráticos, econômicos e sociais. Uma vez que os paradigmas anteriores de política externa perderam muito de sua funcionalidade, duas visões do papel do Brasil no plano externo podem ser de-tectadas no âmbito da comunidade de política externa.

liv_inesc_01h.indd 108liv_inesc_01h.indd 108 21/12/2007 13:50:2021/12/2007 13:50:20

Page 110: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 109

Em estudo realizado no início de 2000, sobre a visão de diversos setores de elite, observou-se um relativo consenso com relação à valorização de um papel protagônico para o Brasil (Souza, 2002). Mas tal como no passado, as elites se dividiam quando se tratava de apontar estratégias concretas de inserção inter-nacional. Nesse particular, dois modelos apareciam, confi gurando-se alternati-vas distintas de política externa (Lima, 2005).

A primeira delas tem por objetivo a busca da credibilidade internacional, visto que o foco é de fora para dentro. A globalização é considerada o principal parâmetro para a ação externa, mas seus benefícios dependem da implementação de reformas internas que expandam a economia de mercado e promovam a concorrência inter-nacional. Tal estratégia parte da constatação que o país não possui “excedentes de poder” e, portanto, só o fortalecimento dos mecanismos multilaterais serão capa-zes de atenuar eventuais condutas unilaterais. No que se pode denominar de uma estratégia da credibilidade, a autonomia nacional é vista como conseqüência da colaboração do país na governabilidade internacional por via da sua cooperação na criação de normas e instituições internacionais. Nessa percepção, o país deve ajus-tar suas expectativas e compromissos internacionais às suas capacidades reais.

A estratégia oposta, que pode ser denominada de autonomista, combina o objetivo de projeção internacional com a garantia de maior grau de fl exibilida-de e liberdade para a política externa. Critica a avaliação positiva dos frutos da liberalização comercial e os resultados benéfi cos da adesão aos regimes inter-nacionais. Essa visão preconiza uma política ativa de desenvolvimento e a ne-cessidade de articulação de um projeto nacional capaz de superar as desigual-dades e os desequilíbrios internos. Preconiza uma inserção ativa com base na aliança com países cujos interesses sejam semelhantes e que estejam dispostos a resistir às imposições das potências dominantes. E vai contra a tese da “insu-fi ciência de poder” e da “postura defensiva” daí decorrente.

Uma preocupação entre os defensores de uma estratégia autonomista é que o Brasil não dispõe de elementos de dissuasão militar nem poder de veto no Conselho de Segurança da ONU que possam respaldar negociações comerciais com parceiros mais poderosos. Como a dimensão soberanista é marcante nessa visão, prevalece certa relutância em aceitar arranjos multilaterais que impli-quem delegação de autoridade a instâncias supranacionais.

As duas estratégias de inserção internacional do Brasil apontam para mo-delos alternativos de potência média que o país poderia encenar no cenário de pós-Guerra Fria, segundo setores das elites. Por um lado, aquele calcado no con-ceito de “autonomia pela participação”, cuja ênfase recai no desempenho de um papel clássico de potência média no sentido de adesão e colaboração às institui-ções e normas multilaterais que se desenham na atualidade e o exercício de um papel construtivo na governabilidade internacional (Fonseca Jr., 1998).

O outro modelo tem por inspiração os paradigmas autonomistas prévios, mas deles se diferencia pelo componente ofensivo, e não defensivo, no ordena-mento mundial. Em especial, pela afi rmação da necessidade de articulação da

liv_inesc_01h.indd 109liv_inesc_01h.indd 109 21/12/2007 13:50:2021/12/2007 13:50:20

Page 111: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS110

ação coletiva de países intermediários, como o Brasil, com vistas à transforma-ção dessa ordem pela mudança das normas internacionais vigentes, combinada à construção de pólos regionais de poder. Contribui, assim, para atenuar a ex-cessiva unipolaridade do sistema internacional do pós-Guerra Fria.

Com alguma simplifi cação, poder-se-ia dizer que essas duas visões de “potên-cia média” guardam semelhança com as orientações da política externa no pe-ríodo pós-Guerra Fria. A gestão externa do governo Fernando Henrique Cardoso estaria mais próxima do modelo da “credibilidade pela participação na ordem” e a de Luiz Inácio Lula da Silva do modelo da “autonomia pela mudança da ordem”.

INOVAÇÕES1 A principal infl uência intelectual na concepção da política externa do pri-meiro governo do PT são as idéias contidas no modelo da “autonomia pela mudança da ordem”. Naturalmente, a origem intelectual da política externa não garante sua completa implementação. Na prática, a política externa não apenas tem que fazer face aos legados existentes, mas também às restrições advindas do comportamento dos demais países. O governo Lula deu continui-dade à política restritiva macroeconômica de seu antecessor. Mas inovou tan-to na política social como na política externa. Nesta última, contudo, também se observou relativa continuidade em vista de sua natureza como questão de Estado e por envolver longos processos de negociação, que podem perdurar por mais de uma década.

Nas eleições presidenciais de 2006, porém, a política externa foi alçada, pela oposição, à condição de tema político-partidário. De modo geral, as críticas se concentraram na necessidade de se abandonar os arroubos terceiro-mundis-tas do governo Lula e se retornar às relações com os países desenvolvidos, em particular os EUA e a União Européia.

O curioso é que na orientação externa do governo Lula não se encontra in-dícios de um afastamento com relação nem a uns nem as outras. Até porque, a estrutura diversifi cada do relacionamento econômico externo não aconselha-ria uma concentração em qualquer um dos grandes parceiros. A verdade é que o atual governo, tal como sucedera no anterior, não se mobilizou com relação à constituição da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), no que, de resto, foi acompanhado pelos EUA – nem conseguiu fechar um acordo Mercosul/União Européia, novamente por difi culdades de ambos os lados.

Que inovações podem ser apontadas na política externa do governo Lula? Talvez um traço distintivo seja uma maior assertividade no plano internacio-nal, que se manifestou na quebra de certos dogmas da diplomacia brasileira

1 Algumas das idéias aqui apresentadas foram desenvolvidas em trabalhos anteriores de minha autoria. Sobre isso, ver: Observatório da Cidadania, 2003 e Carta Capital, 27 de dezembro de 2006.

liv_inesc_01h.indd 110liv_inesc_01h.indd 110 21/12/2007 13:50:2021/12/2007 13:50:20

Page 112: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 111

– como a disposição ao ativismo na região sul-americana, transpondo a fron-teira convencional entre assuntos domésticos e internacionais. Ao ousar mais, naturalmente se expôs mais.

Foi o caso da candidatura a um assento permanente no Conselho de Segurança, que fi gurou como prioridade estratégica da política externa e motivou uma ampla investida rumo aos países do Sul. Mas acabou tendo impacto negativo sobre a capa-cidade de coordenação regional. Faltou apoio às postulações brasileiras a cargos de direção na OMC e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

A chegada ao poder de governos de esquerda na América do Sul não gerou, necessariamente, alinhamentos automáticos. Na verdade, as difi culdades de cooperação regional foram ampliadas, visto que esses governos, ao contrário dos governos conservadores, tendem a ser mais sensíveis ao atendimento das demandas de suas respectivas sociedades – independentemente do efeito que suas ações possam ter sobre a cooperação regional.

O caso mais emblemático foi a eleição de Evo Morales na Bolívia e a nacio-nalização dos hidrocarbonetos, em maio de 2006, atingindo diretamente os in-teresses da Petrobras naquele país. Contudo, a resposta brasileira de procurar o diálogo, e não a confrontação, como queriam setores ponderáveis da opinião pública, representou um dos pontos altos da política externa do governo Lula ao preservar um relacionamento estratégico para o país.

Nesse episódio, evidenciou-se o descompasso entre o peso regional do país e sua infl uência de fato, agravado pela própria assimetria estrutural que reacendeu antigos temores de hegemonia na América do Sul. Outros fatores também devem ser arrolados no diagnóstico das difi culdades de coordenação regional enfrenta-das pelo Brasil: a falta de articulação de uma posição comum com a Argentina na questão da reforma do Conselho de Segurança da ONU – ainda que os dois países tenham reconhecido a legitimidade das postulações recíprocas; a nova ordem geo-política sul-americana com o crescente protagonismo de Hugo Chávez – em par-ticular, após sua vitória no plebiscito revogatório de 2002; a oferta, pelos EUA, de acordos bilaterais, no formato de Acordos de Livre Comércio, aos países menores da região; o descompasso entre as altas expectativas dos vizinhos e as ofertas cooperativas brasileiras; a percepção generalizada na região do enfraquecimento político do governo Lula; e a autoproclamada liderança regional brasileira.

Contudo, em alguns casos, os problemas de coordenação foram gerados pela falta de ações mais ousadas. A política externa custou a reconhecer a necessidade de medidas atenuantes da assimetria estrutural entre os sócios menores no Merco-sul (Uruguai e Paraguai) e os maiores (Brasil e Argentina). A instituição do Fundo de Convergência Estrutural, em 2006, teve esse objetivo, em uma situação de quase implosão do bloco.

A ausência brasileira na crise entre Uruguai e Argentina, para preservar o re-lacionamento estratégico com a última, no contencioso originado pela instalação das processadoras de celulose perto da fronteira uruguaia, também integra esse conjunto de ausência de decisões da política externa. Da mesma forma, o governo

liv_inesc_01h.indd 111liv_inesc_01h.indd 111 21/12/2007 13:50:2021/12/2007 13:50:20

Page 113: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS112

Lula manteve um certo legado soberanista de pouca disposição à delegação e à criação de instituições e normas com características de supranacionalidade. A criação da Comunidade Sul-americana de Nações, posteriormente denominada Unasur, não preencheu esse vácuo institucional – ainda que tenha criado uma es-trutura propícia a iniciativas nas áreas de energia e infra-estrutura, campos com grande potencial de cooperação regional.

HIPOCRISIA E ALTO PREÇOGrande parte da energia negociadora brasileira esteve voltada para a mudan-ça de regras seja no campo comercial, seja no âmbito do Conselho de Segu-rança das Nações Unidas. A criação do G-20 – na reunião de Cancún, México, em 2003 – representou o renascimento da coalizão terceiro-mundista. Agora, porém, centrada nos interesses agrícolas dos países em desenvolvimento e na explicitação da hipocrisia da posição negociadora dos países desenvolvidos. Sua criação recuperou o papel já desempenhado anteriormente de “interme-diário” entre os “fracos” e os “fortes”. Por outro lado, a novidade na negocia-ção de Doha foi o papel demandante da liberalização dos mercados agrícolas dos EUA e da Europa, em função da alta competitividade das exportações bra-sileiras, além da manutenção da agenda negociadora tradicional de acesso a mercados e fortalecimento das normas multilaterais. Contudo, o preço da liderança da coalizão do Sul foi abrir mão das demandas máximas em prol da coesão, em vista da diferenciação estrutural entre os parceiros.

Na postulação a um assento permanente no Conselho de Segurança, a po-lítica externa reiterou aspiração histórica da comunidade de política externa nacional. A inovação, em parte motivada pelo conjunto de obrigações que tal postulação implica, materializou-se no comando brasileiro de uma força de paz no Haiti. Nesse caso, o país se dispôs ao exercício de um papel mais intervencio-nista, em face de uma situação de instabilidade crônica que poderia reverberar sobre seu perímetro de segurança. Não foi assim na década de 1990, quando nos abstivemos de apoiar, no âmbito do Conselho de Segurança, o envio de uma missão multinacional àquele país. Contudo, tal inovação foi pouco discutida no âmbito doméstico, ainda que com dose razoável de incerteza com relação ao histórico de sucesso de operações desse tipo.

Nas relações com os EUA e a União Européia, prevaleceu a continuidade: forte conteúdo econômico e orientação pragmática, em vista de evidente im-portância dessas duas áreas para as exportações brasileiras e para os investi-mentos no país. As difi culdades de se obter um acordo Alca–Mercosul e União Européia–Mercosul derivam, do lado brasileiro, da complexidade e custos difusos que tais acordos envolvem por conta do impacto das eventuais obri-gações assumidas em diversas áreas e temas de política doméstica. Os TLCs negociados com os EUA são acordos de livre-comércio apenas no papel e na retórica liberal. A rigidez das regras de origem e as concessões em diversas

liv_inesc_01h.indd 112liv_inesc_01h.indd 112 21/12/2007 13:50:2021/12/2007 13:50:20

Page 114: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 113

disciplinas e temas, como compras governamentais, regras de investimento e propriedade intelectual, incidem diretamente na capacidade de os parceiros desenvolverem políticas industriais. É de causar surpresa que o Brasil não tenha uma política industrial ativa. Com a União Européia, as obrigações fu-turas são de tal ordem que implicariam não apenas legislação específi ca, mas também mudança constitucional.

Já no segundo mandato do governo Lula, a aproximação com os EUA, na cooperação em programas de biocombustíveis e energias alternativas, gerou relativo estranhamento em alguns parceiros sul-americanos – em especial, Ve-nezuela e Argentina. Mas foi acompanhada de gestos positivos de reforço da aliança com os dois países. Uma vez mais, manifestou-se o estilo conciliador de política externa do governo atual, na direção de não aprofundar contenciosos com os vizinhos sul-americanos.

liv_inesc_01h.indd 113liv_inesc_01h.indd 113 21/12/2007 13:50:2021/12/2007 13:50:20

Page 115: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS114

Dimensões político-eleitorais

Da mesma perspectiva, a polêmica eleitoral em torno da direção da política externa es-teve fora do lugar. As relações com o mun-do desenvolvido não foram abandonadas em função da ênfase conferida aos países do Sul. O que não se observou de fato foi a busca de exclusividade ou aliança prefe-rencial com um lado ou com o outro. Até porque, há muito a política externa aban-donou a idéia de alianças preferenciais ou automáticas, exatamente pelas caracte-rísticas estruturais da distribuição equili-brada do comércio do país com as quatro macrorregiões: União Européia, América do Norte, Ásia e América do Sul. O que, sim, ocorreu foi um esforço em estabele-cer parcerias estratégicas com países do Sul, como foi o caso da iniciativa Fórum de Diálogo Brasil, Índia e África do Sul (Ibas), reunindo, além do Brasil, África do Sul e Índia; em retomar relações tra-dicionais, praticamente abandonadas no governo anterior, como com a África; e em estimular novos relacionamentos como ocorreu com os países do Golfo.

Finalmente, o debate eleitoral em 2006, coincidindo com a crise do Mer-cosul, revelou duas dimensões novas que têm mais a ver com a sociedade e a política doméstica do que propriamen-te com a política externa. A primeira, e quase óbvia, está no fato de que a diver-sifi cação e a complexidade de nosso re-lacionamento internacional demandam o respaldo de atores privados e públicos no mundo da política, da economia, da mídia, da academia e dos movimentos sociais em geral – se é que as ações da diplomacia devem produzir os melhores

efeitos. A diplomacia é instrumento de indução e apoio, mas são as ações dessa pluralidade de atores que conferem den-sidade à iniciativa diplomática. A plura-lidade de atores envolvidos na política externa naturalmente aumenta as difi cul-dades de sua coordenação doméstica.

Cabe ressaltar que a inclusão da po-lítica externa no ciclo político-eleitoral não necessariamente ampliou seu grau de prestação de contas à sociedade. Nesse particular, mesmo que tenha diminuído o tradicional insulamento na formulação da política externa do governo Lula, a con-dição atual do Partido dos Trabalhadores (PT), de partido do governo, retirou do Le-gislativo um dos principais mecanismos de seu controle político.

Ao contrário da política externa do go-verno de Fernando Henrique Cardoso, que teve na oposição liderada pelo PT um va-lioso instrumento de controle legislativo, a fragmentação da oposição no governo atual e sua pouca qualifi cação nos assuntos inter-nacionais não têm contribuído para aumen-tar o grau de prestação de contas da políti-ca externa. Por outro lado, a maior abertura da política externa desse governo aos mo-vimentos sociais e organizações da socie-dade civil pode gerar o risco de cooptação, caso tal participação não esteja, de algum modo, articulada às forças político-partidá-rias e sua atuação no Congresso Nacional.

A segunda dimensão é mais problemá-tica. Revela erosão da coalizão doméstica responsável por um dos patrimônios da política externa contemporânea: a apro-ximação com a Argentina e a criação do Mercosul. Em um movimento virtuoso,

liv_inesc_01h.indd 114liv_inesc_01h.indd 114 21/12/2007 13:50:2121/12/2007 13:50:21

Page 116: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 115

aquela iniciativa reuniu, em uma aliança heterodoxa, segmentos favoráveis à aber-tura econômica e aos setores desenvolvi-mentistas. A erosão dessa coalizão original explica a fragilidade do consenso na socie-dade com relação aos rumos da política de comércio exterior, e mesmo da integração regional. As conseqüências são: integração rasa; aparente abandono de uma estratégia de aprofundamento da integração; falta de instituições supranacionais; protecionismo difuso enfrentado pelos produtos de nos-sos parceiros comerciais; e saldos quase mercantilistas da balança comercial com nossos principais parceiros.

Talvez, um dos principais desafi os da política externa do governo Lula neste segundo mandato seja recriar a ampla coalizão que sustentou a inserção inter-nacional do país na fase de substituição de importações. Nesse particular, alguns passos já foram dados pelo governo, seja para destravar o acesso de nossos par-ceiros ao mercado brasileiro, seja para criar oportunidades e garantias aos in-vestimentos de longo prazo na região. Medidas que, aliás, vêm acompanhadas de um saudável pluralismo da política externa – marca de nossa atuação inter-nacional ao longo da história.

REFERÊNCIAS

FONSECA JR., Gelson. A legitimidade e outras questões internacionais; po-der e ética entre as nações. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1998.

LIMA DE, Maria Regina Soares. “Aspiração internacional e política exter-na”. In: Revista Brasileira de Comércio Exterior, nº 82, janeiro/março de 2005.

_________. “Na trilha de uma política externa afi rmativa”. In: IBASE, Observa-tório da Cidadania, Relatório nº. 7. Rio de Janeiro: Ibase, 2003.

__________. “Decisões e indecisões: um balanço da política externa no primeiro governo do presidente Lula”. In: Carta Capital. São Paulo: 27 de dezembro de 2006.

SOUZA DE, Amaury. A agenda internacional do Brasil: um estudo sobre a comunidade brasileira de política externa. Rio de Janeiro: Cebri, 2002.

liv_inesc_01h.indd 115liv_inesc_01h.indd 115 21/12/2007 13:50:2121/12/2007 13:50:21

Page 117: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS116

116

FOTOS AGÊNCIA BRASIL

liv_inesc_01h.indd 116liv_inesc_01h.indd 116 21/12/2007 13:50:2121/12/2007 13:50:21

Page 118: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 117

Ambigüidade acompanha negociações comerciais brasileiras

A D H E M A R S . M I N E I R O

Economista, técnico do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e assessor da Secretaria Executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip)

Desde o fi m do ano passado, vimos uma forte movimentação do governo brasi-leiro em geral, e do Ministério das Relações Exteriores em particular, na tenta-tiva de retomada das negociações da Rodada de Doha, negociações comerciais na Organização Mundial do Comércio (OMC). O impasse central, como é sabido, dá-se em torno da tentativa de abertura de mercados e redução de subsídios, em produtos agrícolas, dos países de maiores mercados, particularmente os EUA e a União Européia, em troca da abertura do mercado de produtos industriais e serviços dos países em desenvolvimento.

Na verdade, essa equação não é nova, já se deu antes, nas negociações, hoje sus-pensas, tentando criar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), e nas conge-ladas negociações entre o Mercosul e a União Européia. Em todos esses casos, a posição central brasileira foi uma busca fi rme pela expansão das possibilidades de negócios para a grande agricultura comercial de exportação brasileira – com limites para proteger elementos que permitissem políticas de desenvolvimento industrial e a capacidade de regulação interna nos setores de serviços e nos temas ligados à propriedade industrial, à defesa da concorrência e aos investimentos que, embora não muito fi rmes e/ou extensos, foram questionados pelos negociadores.

Essa contradição é interessante, especialmente no momento em que as dis-cussões internas no Brasil apontam para a questão do crescimento econômico, em especial pelo lançamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). De um lado, existe o objetivo do crescimento econômico e, de outro, a idéia de priorizar a ampliação da opção preferencial pelo mercado externo, pelos saldos comerciais, que não podem garantir o crescimento acelerado, como mostrado nos últimos quatro anos. Por maior que seja o dinamismo do setor exporta-dor nesse período, foi limitado para alavancar o crescimento econômico, como mostra a Tabela 1.

liv_inesc_01h.indd 117liv_inesc_01h.indd 117 21/12/2007 13:50:2221/12/2007 13:50:22

Page 119: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS118

Tabela 1

Ano Exportação(em US$ milhões)

Importação(em US$ milhões)

Saldocomercial(em US$ milhões)

Exportações + importações(em US$ milhões)

Cresc. das exportações(anual, em %)

Cresc.do saldo comercial(anual, em %)

Cresc. de exportações

+importações(anual, em %)

Cresc.do PIB(anual,em %)

2002 60.362 47.237 13.125 107.599 1,9

2003 73.084 48.305 24.780 121.389 21,1 88,8 12,8 0,5

2004 96.475 62.813 33.662 159.288 32,0 35,8 31,2 4,9

2005 118.308 73.606 44.703 191.914 22,6 32,8 20,5 2,3

2006 137.470 91.396 46.074 228.865 16,2 3,1 19,3 2,9

Tais limitações refl etem, nas negociações comerciais, uma ambigüidade que tem marcado o governo atual desde seu início: entre a manutenção da or-todoxia monetária e fi nanceira na gestão da política macroeconômica – o que implica juros altos, câmbio apreciado e enorme esforço exportador para tentar minimizar a fragilidade das contas externas, gerada pela liberalização fi nan-ceira, e dos movimentos de capital; e os sonhos de um crescimento econômico mais acelerado e a redução das taxas de desemprego – o que implicaria políticas industriais ativas e ênfase no mercado interno. Esse é o ponto central das bre-ves idéias que aqui se tentará desenvolver.

Uma das principais novidades relativas ao governo eleito em 2002, e reelei-to no ano passado, foi uma maior abertura no que diz respeito às informações e a momentos de participação na formação da posição negociadora brasileira em vários processos nos quais o país se envolveu.

Assim, foram abertos espaços de integração e diálogo – algumas vezes, for-mais; outras, ainda informais – com organizações da sociedade e com o setor empresarial. Foram criados também espaços formais de participação no inte-rior das delegações negociadoras, em particular no processo de negociação re-lativo à tentativa de criação da Alca.

Entretanto, vale aqui o registro de que o grau de formalização e de transpa-rência parece ter sido, o tempo todo, inversamente proporcional aos interesses dos negociadores brasileiros, capitaneados pelo Ministério das Relações Exte-riores, de caminhar rapidamente para um acordo. Comparando os processos, a transparência e a formalização foram bastante amplas no processo de discus-são para a criação da Alca, com a participação formalizada em delegações nego-ciadoras, a partir da reunião do Comitê de Negociações Comerciais da Alca, em Trinidad e Tobago, no fi nalzinho de setembro de 2003.

A transparência foi ampla, mas os mecanismos de participação informal no processo negociador entre o Mercosul e a União Européia foram acelerados ao longo de 2004. No que diz respeito às negociações no interior da OMC, da Roda-da de Doha, em geral, houve razoável informação e transparência. Mas, a partir do travamento do processo negociador em meados de 2006, e do papel ativo do

liv_inesc_01h.indd 118liv_inesc_01h.indd 118 21/12/2007 13:50:2221/12/2007 13:50:22

Page 120: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 119

Brasil em tentar a retomada das negociações e a chegada a um eventual acordo – a partir do envolvimento direto e ativo do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim –, as informações tornadas públicas sobre o que efetivamente se estava negociando foram se tornando escassas, e a participação, mesmo infor-mal, inviabilizada.

Outra novidade, não menos importante – mas esperada em relação a este governo e ao conjunto de forças que o compõe –, foi não assumir diretamente os dogmas liberais, e se mover com razoável pragmatismo nos processos nego-ciadores em que esteve envolvido. O mesmo pensamento econômico liberal he-gemônico (que levou à constituição da agenda da OMC na década de 1990 e aos processos de negociação para a criação da Alca ou entre o Mercosul e a União Européia), reafi rmava, permanentemente, a convicção de que o livre-comércio e o livre fl uxo de capitais podem, juntos, gerar um ambiente econômico capaz de estimular o desenvolvimento e responder às demandas sociais. Em geral, a pressão sobre os países menos desenvolvidos dá-se no sentido de que se inte-grem mais no fl uxo internacional de comércio e tornem possíveis as transfe-rências fi nanceiras relacionadas aos pagamentos de dívidas e outros passivos externos, e ao fl uxo e refl uxo internacional dos capitais fi nanceiros.

Nesse modelo geral, a opção dada a esses países é a integração nos fl uxos do comércio internacional pela produção de commodities. Podem ser commodities industriais, mas, principalmente, produtos primários agrícolas e minerais, com a exceção, no primeiro caso, daqueles produtos que podem afetar interesses de produtores em economias hegemônicas, como o algodão nos EUA ou o açúcar na Europa.

Normalmente, a produção dessas mercadorias é intensiva em utilização de área e recursos naturais, e especialmente agressiva ao ambiente. Além disso, a defesa da concentração de países mais pobres nessas produções representa um retorno de quase 50 anos no debate econômico – uma volta à velha discussão sobre os termos de troca. As commodities têm seus preços determinados pelo chamado mercado internacional, pelos grandes consumidores e pelos contro-ladores do circuito de comercialização – a maioria dos quais são corporações transnacionais, com a exceção de uma ou outra commodity, como o petróleo. Por outro lado, a concentração de sua produção nesses bens faz com que tais países se tornem importadores de outros bens industriais, e os serviços a eles associados (assistência, desenvolvimento tecnológico, design, propaganda e outros), fornecidos por empresas (de novo, corporações transnacionais), que podem fi xar seus preços – dado o controle que têm sobre a tecnologia, a mídia, o poder fi nanceiro e outras vantagens. Trata-se de uma velha e bem conhecida discussão, com uma roupagem nova.

Aparentemente, o governo brasileiro não aceitou passivamente como cená-rio da negociação que o modelo liberal se cumpriria automaticamente, como se supunha anteriormente – que, em um momento mais ou menos próximo, os frutos do processo de liberalização comercial apareceriam, com ganhos de

liv_inesc_01h.indd 119liv_inesc_01h.indd 119 21/12/2007 13:50:2221/12/2007 13:50:22

Page 121: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS120

efi ciência e de uma inserção positiva para todos. Ao contrário, aceitando a posição imposta pelo modelo, de um exportador de commodities, quis nego-ciar exatamente os ganhos dessa posição, evidenciando uma postura muito mais pragmática do que a reles concordância ideológica com os supostos e conseqüências do modelo, como orientação geral para sua participação nos processos negociadores nos quais o país esteve ou está envolvido.

POLÊMICA ESTRATÉGIA EXPORTADORA A ênfase no comércio internacional, e mais que isso, em áreas nas quais é apa-rentemente possível seguir obtendo ganhos no curto prazo – como o mercado de commodities, pode determinar um desenho de projeto de desenvolvimento econômico, mesmo que este não esteja claramente esboçado.

A partir dessa percepção, surgem três grandes perguntas: qual a nature-za de um processo de funcionamento da economia derivado desse tipo de ala-vancagem? Quais os efeitos desse processo no longo prazo sobre a sociedade brasileira? Qual o fôlego que pode ter tal processo em um país como o Brasil? Provavelmente, não há uma resposta segura às indagações. Entretanto, cabe considerar alguns elementos que podem ajudar nessa refl exão, especialmente sobre os efeitos sociais.

O primeiro, e importante, é a contradição entre a produção de um saldo ex-portável de produtos de consumo alimentar e uma população com carências alimentares. Não estamos aqui falando de uma cesta de produtos exportáveis composta de frutas exóticas, vinhos ou carnes suntuosas. Mas de produtos bá-sicos de alimentação, como soja, milho, carne bovina, aves, cítricos e outros.

Existe algum grau de contradição entre a expansão da exportação dessa ces-ta de produtos básicos de alimentação e a expansão da renda da população mais pobre, seja pelo crescimento econômico puro e simples, seja pela redistribuição de renda. No curto prazo, políticas de crescimento que acelerassem o incremen-to da renda da população de mais baixa renda, permitindo a elevação de seus padrões alimentares, poderiam ter como conseqüência a redução de excedentes exportáveis para atender a esse aumento da demanda interna.

Além disso, a transformação da quase totalidade da grande produção agrí-cola comercial em commodities exportáveis provoca uma vinculação entre pre-ços (em moeda nacional) no mercado interno e preços (em divisas) no mercado internacional. Tal transformação faz com que variações positivas de preços no mercado internacional, com impacto positivo sobre a receita das importações, tenham impacto negativo sobre a renda real da população mais pobre, que vê seu poder de consumo diminuir nesses casos. No momento atual, fala-se até em uma “globalização da infl ação”, exatamente pelos efeitos da liberalização comercial e das baixas infl ações nacionais – que fazem com que os refl exos das altas de preços motivadas pelo comércio internacional sejam mais visíveis in-ternamente nos vários países.

liv_inesc_01h.indd 120liv_inesc_01h.indd 120 21/12/2007 13:50:2321/12/2007 13:50:23

Page 122: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 121

Classe trabalhadora prejudicada

Outro efeito que decorre da inserção internacional baseada em produtos de bai-xo conteúdo tecnológico é a pressão por uma “espiral” de redução dos custos da mão-de-obra, seja remuneração, sejam outras conquistas e/ou direitos legais da classe trabalhadora, vistos apenas como custo. Se em uma economia menos dependente da dinâmica do comércio internacional e menos exposta aos movi-mentos desse comércio, incrementos de renda de assalariados(as) são transfor-mados dinamicamente em aumento do volume de vendas – gerando aumento da produção em uma trajetória virtuosa: em uma economia exposta às expor-tações de outros países e dependente de uma dinâmica exportadora, aumentos de renda da classe trabalhadora e/ou de seus direitos e conquistas passam a ser vistos, principalmente, como novos aumentos de custos, que difi cultam a capacidade de competição das empresas.

O que pode parecer uma complicada discussão de economistas é traduzida na linguagem empresarial sobre o aumento do “custo Brasil” como mais um argumento contra as conquistas trabalhistas. Em um país com os padrões de-sastrosos de concentração da renda nacional, como o nosso, curiosamente, a inserção internacional pela via da ampliação dos fl uxos de comércio introduz mais um elemento contrário à melhoria da remuneração da população traba-lhadora em geral e à obtenção de conquistas nos setores mais organizados, que têm poder de negociação – a redução da chamada competitividade de nossos produtos, especialmente aqueles de mais baixo conteúdo tecnológico, pelo im-pacto do custo da mão-de-obra no valor fi nal dos produtos.

Meio-ambiente em risco

É preciso considerar ainda a questão ambiental, e os efeitos da estratégia ex-portadora sobre os recursos naturais. Parte dessa estratégia está baseada na possibilidade de uso intensivo dos recursos naturais do país. Grande extensão de terras potencialmente agricultáveis, disponibilidade de extensões territoriais a baixo custo, abundância de água em grande parte do território, sol durante todo o ano, e pouca ou nenhuma ocorrência de catástrofes naturais são uma inegá-vel vantagem competitiva brasileira, além da ocorrência de recursos minerais que a própria extensão territorial torna possível.

Porém, o uso intensivo visando ao comércio internacional de parte importan-te dessa potencialidade competitiva implica degradar, em curto espaço de tempo, uma situação peculiar que poderia permitir tranqüilidade às gerações futuras em um mundo onde esses recursos terão cada vez mais valor. Ao exportar recursos minerais ou produtos agrícolas, estamos exportando recursos naturais, já que muito dessa produção exportável embute água, terra, recursos energéticos forne-cidos a preços baixos para viabilizar a capacidade dinâmica das exportações.

Os efeitos destrutivos da construção de barragens para a produção de energia mais barata; da exploração mineral em grandes extensões territoriais do Brasil são apenas exemplos. Talvez o mais gritante no período recente seja

liv_inesc_01h.indd 121liv_inesc_01h.indd 121 21/12/2007 13:50:2321/12/2007 13:50:23

Page 123: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS122

a expansão da grande agricultura comercial sobre as áreas de parques e fl o-restas, sobre as formas de produção e de viver mais tradicionais no interior brasileiro. Essa é impulsionada pelo dinamismo do padrão de inserção comer-cial internacional do país, especialmente em produtos como soja, algodão e bovinocultura, que provocam aspectos negativos do ponto de vista ambiental e da segurança pública – como o aumento da violência causado pela expansão dessas culturas na fronteira agrícola no Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Sem contar o efeito de longo prazo que a expansão da grande agricultura comer-cial tem sobre a concentração de terra e o agravamento dos problemas sociais e de violência no campo brasileiro.

Natureza perversa

A tentativa ofi cial de coordenar, em um projeto de desenvolvimento, os interes-ses expansivos e ofensivos da grande agricultura comercial de exportação com um modelo que torne a agricultura familiar, ao mesmo tempo, viável e dinâmi-ca é, muitas vezes, inviabilizada pelo próprio dinamismo econômico da grande agricultura comercial voltada às exportações – tão importante para a estratégia de geração de grandes superávits comerciais de curto prazo no país.

A insistência em uma inserção exportadora de baixo conteúdo tecnológi-co deve ser vista também pelos efeitos que pode ter sobre as prioridades da educação e do impulso ao desenvolvimento de geração de tecnologia e conhe-cimentos no país.

Efetivamente, se pode ser vista como uma estratégia, é de natureza abso-lutamente perversa do ponto de vista das prioridades e da defi nição de uma estratégia de educação para o país. Não apenas porque esse tipo de opção de crescimento depende pouco da população com maior escolaridade – porque não se pretende desenvolver uma capacidade própria intensiva de geração de co-nhecimento e tecnologia, já que esse tipo de estratégia demanda pouco nessa área e parte dos “pacotes” tecnológicos são importados. Mas também porque sua própria dinâmica tem baixa capacidade de inclusão da população nacional no sistema educacional formal – mas nada impede que isso seja feito, basta uma decisão política.

Para além dessa questão, a baixa prioridade à pesquisa e ao desenvolvimen-to de tecnologia nesse padrão de inserção internacional requer poucos inves-timentos nessas áreas e gerar poucas oportunidades de trabalho em uma área potencialmente nobre – a de desenvolvimento de tecnologia e ciência.

A insistência em uma estratégia comercial internacional ofensiva nos fó-runs internacionais de discussão, a exemplo da OMC, como parte da estratégia de ajuste do setor externo nacional e de contornar os estrangulamentos da vul-nerabilidade externa da economia brasileira, se, de um lado, confi gura a defi ni-ção de uma estratégia de desenvolvimento, por outro, baseia-se em elementos do que poderíamos chamar de uma competitividade perversa pelos seus efeitos sociais, ambientais e no mundo do trabalho no país.

liv_inesc_01h.indd 122liv_inesc_01h.indd 122 21/12/2007 13:50:2321/12/2007 13:50:23

Page 124: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 123

MODELO DE DESENVOLVIMENTO IMPLÍCITO?As opções tomadas nos processos de negociação nos quais o Brasil está ou esteve envolvido (tendo sido a Alca um dos mais importantes), e que privilegiam os inte-resses da grande agricultura comercial de exportação, vinculam-se, ao menos pas-sivamente, a uma estratégia possível de integração. Esta reforça a manutenção da subordinação aos centros econômicos hegemônicos e às empresas a eles vincula-das. Tais opções inviabilizam, ou no mínimo difi cultam, estratégias alternativas de desenvolvimento, que têm como objetivo ou motor o combate à exclusão social e o atendimento de demandas da maior parte da sociedade: a população trabalhadora.

Entretanto, a partir do governo Lula, essa estratégia que mantém o privilégio dos interesses da grande agricultura comercial exportadora não ocorre sem confl itos. No conjunto de interesses a serem considerados no processo negociador, também faz parte da estratégia do novo governo contemplar as possibilidades de obter mar-gem de manobra para maior autonomia da estratégia nacional de desenvolvimen-to e incorporação de alguns dos interesses da agricultura familiar na estratégia de integração internacional. A incorporação desses novos elementos às preocupações dos negociadores brasileiros amplia as contradições da estratégia negociadora bra-sileira; ao mesmo tempo, permite a ampliação de argumentos e maior mobilidade em um cenário de múltiplos e simultâneos processos negociadores.

A escolha da estratégia exportadora como opção para contornar as restri-ções externas pode não ser defi nitivamente uma estratégia de desenvolvimen-to. Mas, efetivamente, vai esboçando um desenho de política de crescimento, que pode ter fôlego curto em um país das dimensões do Brasil. Porém, quando levada adiante, tal estratégia tem importante infl uência nas defi nições das po-sições negociadoras brasileiras nos processos nos quais o país está envolvido, particularmente no âmbito da OMC. Cristalizadas na forma de acordos, podem ter efeitos de longo prazo sobre os desenhos da economia e da sociedade brasileira.

As conseqüências podem ser bastante complicadas do ponto de vista de pensar uma sociedade e uma economia menos desigual e mais justa. O mesmo ocorreria em relação aos efeitos que podem ser imaginados sobre o futuro de indicadores ambientais, educacionais, de padrões de remuneração e relações de trabalho e de saúde no país, entre outros.

liv_inesc_01h.indd 123liv_inesc_01h.indd 123 21/12/2007 13:50:2321/12/2007 13:50:23

Page 125: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS124

O dinamismo de uma inserção comercial internacional baseada em produ-tos de baixo conteúdo tecnológico e intensivos em recursos naturais e ambien-tais é contraditório com a defi nição de um projeto de desenvolvimento que se queira capaz de gerar um dinamismo próprio, baseado na expansão do mercado interno e na ampliação da inclusão social. Esses são elementos fundamentais sobre os quais deveríamos nos debruçar, pois nem sempre fi cam claros, quer para uma sociedade que, às vezes, parece ansiosa por uma busca de dinamismo econômico a qualquer preço, quer para um bloco de forças políticas que chega ao poder e tem de governar com estratégias de desenvolvimento em disputa.

Exatamente neste último ponto reside o perigo de, pelo pragmatismo de de-cisões tomadas por um elemento que deveria ser apenas um dos componentes da estratégia geral de desenvolvimento, possa-se desenhar a estratégia geral com todos os riscos embutidos. A parte defi nindo o todo, e condicionando, a partir da estratégia de inserção comercial, todos os elementos de mudança de uma sociedade, teria domadas as forças que buscam a transformação social e econômica pela imposição de supostas necessidades pragmáticas.

Apontar esse perigo permite recompor a capacidade de pôr na ordem do dia, novamente, a discussão clara e explícita de qual projeto de desenvolvimento se quer construir. Permite retomar a disputa dos projetos e, ainda, pôr a questão do comércio internacional – e as defi nições macroeconômicas ou diplomáticas que sobre ele são feitas – dentro dos marcos de um projeto mais geral de país, do qual a estratégia exportada é apenas parte, e como tal deve ser pensada em relação ao conjunto da estratégia de desenvolvimento.

Pensar dessa forma permite identifi car graves problemas potenciais nas de-fi nições feitas hoje nos processos negociadores nos quais o país está envolvido, particularmente a OMC, e nas suas dramáticas conseqüências sobre o futuro do país e seus indicadores de desenvolvimento.

Essa estratégia, se é para ser vista como tal, aparenta conter fortíssimas contradições com uma agenda social explícita do novo governo, e também, a partir do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com a agenda econômica. Por isso, é necessário reposicionar as questões dessa agenda como centro das preocupações – e a inserção comercial internacional como uma componente a tornar possível efetivar essa agenda social no futu-ro, e não inviabilizá-la.

LIMITES E DESAFIOSA defi nição implícita de um modelo de desenvolvimento a partir da inserção exportadora parece defi nir os rumos gerais da política de comércio exterior do país. O que acaba defi nindo também as políticas referentes às negociações co-merciais nas quais o país vai se envolvendo, individualmente ou como parte de blocos – como o Mercosul – e coalizões, como o G-20 (bloco de países envolvido nas negociações da OMC, liderado pelo Brasil).

liv_inesc_01h.indd 124liv_inesc_01h.indd 124 21/12/2007 13:50:2321/12/2007 13:50:23

Page 126: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 125

Isso é bastante complicado, pois, em vários processos de negociação comer-cial, acaba vinculando diretamente a participação do Brasil, e dos seus negociado-res, aos interesses dos principais exportadores, especialmente a grande agricul-tura comercial de exportação, os produtores de produtos agrícolas processados e as mineradoras e indústrias associadas ao processamento de minérios. Portanto, há interesses restritos dentro da complicada estrutura social brasileira, mas, evi-dentemente, poderosos do ponto de vista exclusivamente econômico.

Entretanto, existem, ao menos, quatro elementos importantes que operam no sentido de contra-restar, de alguma forma, esse tipo de posicionamento da diplomacia comercial brasileira.

O primeiro, que deveria ser levado em consideração, especialmente neste momento, é que existe uma demanda de longo tempo na sociedade brasileira pelo crescimento econômico. Para vários setores, são demandas pela “qualida-de” do crescimento, isto é, a velha discussão sobre o desenvolvimento, o cresci-mento como forma de viabilizar o atendimento dos direitos da população, com ênfase na população mais pobre e excluída. Como adiantado, o modelo exporta-dor tem limitada capacidade de transmitir dinamismo para o restante da eco-nomia, de alavancar crescimento acelerado. E, neste momento, isto parece que não é somente expressão de desejo do governo. Foi materializado como política de governo no PAC. Assim, passa a existir uma contradição entre dois distintos objetivos de governo, e isso dá margem ao debate.

O segundo elemento é que as conseqüências das posições tomadas nas nego-ciações comerciais não se materializaram. Nenhuma das principais negociações nas quais o país está envolvido chegaram a seu término. Mas vale observar que alguns setores importantes de apoio ao atual governo ou, pelo menos, fundamen-tais para sua vitória eleitoral no ano passado – como a agricultura familiar e o movimento sindical ligado ao setor industrial – poderiam ser fortemente preju-dicados: por difi culdades crescentes para funcionar; pela redução da atividade e conseqüente desemprego; pelo “sucesso” de algum desses processos de nego-ciação, caso levado a termo. Assim, essa outra oposição prática aos resultados de uma negociação levada adiante e concluída com os parâmetros atuais não pode ser desprezada pelos seus eventuais impactos políticos e sociais.

O terceiro elemento diz respeito à política de transparência em relação às organizações da sociedade brasileira sobre os conteúdos e as formas dos proces-sos negociadores nos quais o Brasil se vê envolvido. Desde sua primeira posse, em 2003, o atual governo se comprometeu com a transparência nas ações. Essa transparência, ao menos nos casos das negociações comerciais, muitas vezes se confrontou com a pressa ou a estratégia de tentar concluir alguns dos proces-sos negociadores. As tentativas de reanimar e fechar as negociações da Rodada de Doha da OMC são o melhor exemplo nesse sentido, posto que capitaneados pelo próprio ministro das Relações Exteriores. Mais uma vez, as tentativas de chegar a um termo nos processos negociadores parecem se confrontar com os compromissos de transparência. Talvez porque, de alguma forma, o fechamento

liv_inesc_01h.indd 125liv_inesc_01h.indd 125 21/12/2007 13:50:2321/12/2007 13:50:23

Page 127: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS126

dos processos negociadores, nos termos impostos, implica perdas para vários setores que, se não têm capacidade para defi nir uma agenda dos conteúdos da negociação, podem ter forças para formar coalizões que possam resistir ao fe-chamento de negociações que indiquem prejudicá-los de alguma forma. Esse é mais um elemento importante a ser levado em consideração, especialmente por defi nir, mais claramente, as relações entre governo e organizações da socieda-de, que, se já existem, precisam ser mais formalmente estabelecidas.

Finalmente, existe um componente que, por vezes, confronta as estratégias específi cas voltadas às negociações comerciais no sentido estrito e as estratégias de integração regional em uma escala mais aprofundada. O discurso de setores do empresariado confrontando uma estrutura em construção e ainda frágil, como o Mercosul, e a possibilidade de conclusão de processos negociadores nos quais o Brasil se encontra envolvido é só um exemplo desse tipo de contradição.

Assim, é preciso considerar que os processos de integração regional (e aqui se deve fazer referência mais diretamente a agenda de relações e integração Sul-Sul da diplomacia brasileira) envolvem não só interesses políticos nacionais estra-tégicos, quando e onde existam. Envolvem, também, interesses importantes de setores do empresariado nacional, voltados estrategicamente para os ganhos que esses processos de integração regionais podem resultar e que não devem ser des-prezados– como integração de cadeias de produção e fornecimento de insumos importantes, aproveitamento de extensão territorial e recursos naturais, etc. E não devem ser desprezados exatamente pelo confronto com negociações comer-ciais, cuja perspectiva está mais voltada à obtenção ampliada de acesso a mer-cados. Portanto, esse elemento que diz respeito ao processo de integração pode ser, em parte, acoplado ao plano das negociações comerciais, mas pode, também, entrar em confl ito com esses mesmos processos, a depender de seus conteúdos.

Tais análises permitem uma noção importante de elementos que podem ser-vir para contrabalançar a estratégia negociadora adotada até aqui nas negocia-ções comerciais nas quais o país se achou envolvido neste último período. Essa estratégia pode não ser facilmente compreendida e, por vezes, parecer sinuosa – apesar da explicitação de objetivos razoavelmente claros. Embora direcionada e assentada em interesses econômicos e objetivos macroeconômicos poderosos, com os refl exos de sustentação política que dela resulta, não está livre de for-ças que podem funcionar como vetores em outros sentidos. Por isso mesmo, a resultante da ação nem sempre parece tão evidente, especialmente ao fi nal dos processos, quando talvez as perdas eventuais com a conclusão dos processos negociadores comecem a fi car tão ou mais claras quanto os ganhos alardeados no seu início pelos setores mais diretamente interessados/envolvidos no tema.

liv_inesc_01h.indd 126liv_inesc_01h.indd 126 21/12/2007 13:50:2321/12/2007 13:50:23

Page 128: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 127

liv_inesc_01h.indd 127liv_inesc_01h.indd 127 21/12/2007 13:50:2421/12/2007 13:50:24

Page 129: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS128

128

FOTOS MARCUS VINI

liv_inesc_01h.indd 128liv_inesc_01h.indd 128 21/12/2007 13:50:2421/12/2007 13:50:24

Page 130: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 129

PRIMEIRO DIA: 26/6/2007

ManhãTema: modelos de desenvolvimento Objetivo do painel: discutir as características e problemas do modelo de desen-volvimento que tem orientado as políticas econômicas e sociais do governo bra-sileiro nos últimos anos e quais seriam as alternativas. Conferencistas: João Sicsú – UFRJ e Célia Lessa – UFF Moderadora: Eliana Magalhães – Inesc

TardeTema: participação e controle socialObjetivo do painel: fazer um balanço do estado atual dos mecanismos institu-cionais e processos de participação e controle social utilizados ao longo dos últimos anos, buscando refl etir sobre as possibilidades de ampliação da demo-cracia participativa na elaboração, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas. Conferencistas: Lucia Avelar – UnB e Chico de Oliveira – USP Moderador: José Antônio Moroni – Inesc

Programação do seminárioPensando uma agenda para o Brasil: desafi os e perspectivas

liv_inesc_01h.indd 129liv_inesc_01h.indd 129 21/12/2007 13:50:2421/12/2007 13:50:24

Page 131: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

INST IT UTO DE E ST UD OS SOCIOECONÔMICOS130

SEGUNDO DIA: 27/6/2007

ManhãTema: direitos humanos e desigualdades Objetivo do painel: ao longo das últimas décadas, verifi camos um claro avanço nas políticas de direitos humanos, agora visto à luz do conceito ampliado dos Dhes-cas. Várias políticas públicas foram criadas dando institucionalidade a direitos, como o da alimentação adequada, da defesa da agricultura familiar, da segurança alimentar, entre outras. Assim, os Dhescas foram incorporados no debate sobre o modelo de desenvolvimento, mas, embora sua força simbólica seja signifi cativa, a sua força política segue sendo relativamente frágil. O painel vai discutir essas premissas, identifi car avanços e retrocessos recentes no debate sobre direitos e avaliar os desafi os para as organizações sociais, movimentos e ONGs para avan-çar nessa agenda e aproveitar as oportunidades conquistadas. Conferencistas: Sueli Carneiro – Geledés, Sílvia Ramos – CESeC/Ucam e Paulo Carbonari – MNDH Moderador: Atila Roque – Inesc

TardeTema: Política InternacionalObjetivo do painel: analisar o contexto da política externa brasileira diante das propostas de integração nos âmbitos regional e global, e o papel da sociedade civil. Conferencistas: Maria Regina Soares – Iuperj e Adhemar Mineiro – Rebrip Moderadora: Iara Pietricovsky de Oliveira – Inesc

liv_inesc_01h.indd 130liv_inesc_01h.indd 130 21/12/2007 13:50:2521/12/2007 13:50:25

Page 132: Livro_Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas

PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SAFIOS E PERSPECTIVAS 131

liv_inesc_01h.indd 131liv_inesc_01h.indd 131 21/12/2007 13:50:2621/12/2007 13:50:26