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ARTE INDÍGENA NO BRASIL: agência, alteridade e relação

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ARTE INDÍGENA NO BRASIL:agência, alteridade e relação

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ARTE INDÍGENA NO BRASIL:agência, alteridade e relação

Els Lagrou

Belo Horizonte - 2009

Historiando a Arte Brasileira

Orientações Pedagógicas

Lucia Gouvêa Pimentel e William Resende Quintal

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L138a Lagrou, Els, 1963 - Arte indígena no Brasil: agência, alteridade e relação. / Els Lagrou. [Editor: Fernando Pedro da Silva; Coordenação: Fernando Pedro da Silva e Marília Andrés Ribeiro; Orientações Pedagógicas: Lucia Gouvêa Pimentel e William Resende Quintal]. Belo Horizonte: C / Arte, 2009. 128 p.; 16x24 cm: il. (Historiando a Arte Brasileira – Didática) ISBN: 978-85-7654-086-1

1. Arte Indígena - Brasil 2. Arte Plumária. 3. Desenho e Pintura Corporal I. II. Silva, Fernando Pedro da. III. Ribeiro, Marília Andrés. IV. Pimentel, Lucia Gouvêa. V. Quintal, William Resend. VI. Título. VII. Série. CDD (21): 704.0398

Editora C/Arte

EditorFernando Pedro da Silva

Coordenação EditorialFernando Pedro da SilvaMarília Andrés Ribeiro

Conselho EditorialEliana Regina de Freitas DutraJoão DinizLígia Maria Leite Pereira Lucia Gouvêa PimentelMaria Auxiliadora de FariaMarília Andrés RibeiroMarília Novaes da Mata MachadoOtávio Soares DulciVera Casa Nova

Orientações PedagógicasLucia Gouvêa Pimentel e William Resende Quintal

Assistente de ProduçãoAlessandra Andrade

RevisãoConsuelo Salomé

Projeto gráfico e capaPoliana Perazzoli

Imagem da capaPintura em guache. Arlindo Daureano Kaxinawa (Alto Rio Purus). Coleção particular da autora.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito.

Direitos exclusivos desta edição:Editora C/ArteAv. Guarapari, 464Cep 31560-300 - Belo Horizonte - MGPabx: (31) [email protected]

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AGRADEcImENTOS

Um livro que contém imagens requer a colaboração de muitas pes-soas, tornando-se um verdadeiro esforço coletivo. Primeiramente, as pessoas fotografadas tiveram que, gentilmente, permitir que suas ima-gens fossem capturadas e multiplicadas. Agradeço especialmente aos Kaxinawa e Kayapó que fotografei pessoalmente, assim como às pesso-as de outras etnias que se deixaram fotografar por meus colegas. Depois foi indispensável a colaboração dos antropólogos e fotógrafos que pron-tamente me enviaram suas fotos e me permitiram sua utilização e divul-gação, Aristóteles Barcelos, Lucia Van Velthem, Sonja Ferson e Marco Antonio Gonçalves.

O trabalho com objetos indígenas, por sua vez, seria impossível sem a ajuda dos museólogos. No Museu do Índio do Rio de Janeiro tive o indispensável apoio de seu diretor, José Carlos Levinho, e a efi-ciente e amável ajuda de Maria José Novelino, Fabiana e Ione Couto na localização e manipulação das peças, assim como do fotógrafo Márcio Ferreira que fotografou parte delas e me deu valiosas dicas sobre o métier. Agradeço igualmente a Flávio e Rodrigo da equipe de audiovi-sual do Museu, que me deram acesso aos desenhos e fotos kadiwéu e asurini, que já se encontravam digitalizadas.

No Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE) em São Paulo, fui recebida por Fabíola Silva que me introduziu de modo supe-reficiente ao acervo. Aí também fui ajudada pelo técnico Luis e pela assistente de fotografia Cida. A amável colaboração de Cida permitiu que fosse possível fotografar em uma tarde todas as peças de que precisava para o livro. As fotos aí tiradas são de sua coautoria.

Por fim, agradeço a Diego Madih, pela produção do mapa.

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SumáRIO

ARTE INDÍGENA NO BRASIL

Introdução 9

Capítulo 1 Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas 11

capítulo 2 corpos e artefatos 39

capítulo 3 As artes ligando mundos: alteridade e autenticidade no mundo das artes 65

capítulo 4 Desenho e pintura corporal 77

conclusão 104

Orientações Pedagógicas 107

Glossário 115

Referências 120

mapa das diferentes etnias 127

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INTRODuçãO

Este texto sobre a arte indígena brasileira não visa a dar um panorama das artes indígenas existentes no Brasil. Esta tarefa se-ria, aliás, impossível de ser realizada no espaço curto que este li-vro nos reserva por causa da grande variedade de etnias e de suas artes, e também por causa do pequeno número de artes estudadas até o momento. Optei, por esta razão, por outra estra-tégia de construção de texto que é a de produzir um ensaio teóri-co que visa a realçar o que a arte indígena possui de específico e de fascinante. Convidei como interlocutores exemplos etnográfi-cos que foram explorados em profundidade e que ilustram as di-ferentes maneiras através das quais a arte indígena opera. Espero que o sacrifício quantitativo tenha resultado em um aumento qua-litativo e evocativo do texto. Pois a diminuição dos exemplos me permitiu aprofundar a exploração das problemáticas focalizadas. Este ensaio visa a ensinar um modo de entender e olhar para as artes indígenas que – espero – influenciará o olhar lançado não somente sobre os exemplos presentes neste livro, mas sobre to-das as artes indígenas já produzidas ou que algum dia o serão.

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cAPÍTuLO 1: ARTE Ou ARTEfATO? AGêNcIA E SIGNIfIcADO NAS ARTES INDÍGENAS

Um texto que busca esboçar o quadro da arte indígena brasi-leira não pode senão começar com um paradoxo: trata-se de po-vos que não partilham nossa noção de arte. Não somente não têm palavra ou conceito equivalente aos de arte e estética de nossa tradição ocidental, como parecem representar, no que fazem e va-lorizam, o pólo contrário do fazer e pensar do Ocidente neste cam-po. Dois problemas centrais e interligados ressaltam desde o co-meço da discussão: a tradicional distinção entre arte e artefato e o papel da inovação na produção selecionada como ‘artística’.

Estas questões, no entanto, dizem muito mais respeito a discussões internas à recente história, filosofia e crítica da arte e da estética de tradição ocidental do que a uma hipotética ausên-cia de sensibilidade, em outras sociedades, para a possibilidade de a percepção sensorial produzir apreciações qualitativas pare-cidas com o que vem a ser chamado de ‘fruição estética’ entre nós. Ou seja, não é porque inexistem o conceito de estética e os valores, que o campo das artes agrega na tradição ocidental, que outros povos não teriam formulado seus próprios termos e critérios para distinguir e produzir beleza. Nossa seleção de pro-duções artísticas indígenas brasileiras não deixará dúvidas quan-to à vontade de beleza destes povos.

Por outro lado é importante frisar que toda sociedade pro-duz um estilo de ser que vai acompanhado de um estilo de gos-tar e, pelo fato de o ser humano se realizar enquanto ser social, através de objetos, imagens, palavras e gestos, os mesmos se tornam vetores da sua ação e pensamento sobre seu mundo.

[p. 10] Menina ashaninka com pintura facial de urucum com o motivo de kempiro (foto Sonja Ferson).

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Desta maneira, a importância dada à busca da beleza pode va-riar enormemente e pode não adquirir a aura de ‘veneração qua-se religiosa’ que adquiriu no Ocidente pós-iluminista1. Visto que as razões que levaram a tal culto são historicamente específicas, fica difícil saber onde está o perigo do etno- ou eurocentrismo: na posição que defende a universalidade da sensibilidade estéti-ca como apanágio da humanidade, ou na posição contrária que denuncia o ‘esteticismo’ como atitude etnocêntrica por ser es-sencialmente valorativa, apreciadora e, portanto, discriminató-ria; é impossível gostar sem desgostar2.

É também sabido que, há várias décadas, a parcela mais sig-nificativa da produção artística nos centros metropolitanos e legiti-madores do mercado de arte erudita pouco tem a ver com a procu-ra e apreciação do ‘Belo’ que marcou a origem da filosofia moderna sobre arte e estética no século XVIII. Muito do que é produzido na vertente, hoje em dia dominante, da arte conceitual tem mais a ver com o questionamento de tal definição do que com sua afirmação. O que estes artistas visam com sua obra é provocar um processo cognitivo no espectador que se torna, desta maneira, participante ativo na construção da obra, à procura de possíveis chaves de lei-tura. Quanto mais complexas e menos evidentes as alusões pre-sentes na obra, mais esta será conceituada.

A obra de arte, portanto, não serve somente para ser con-templada na pura beleza e harmonia das suas formas, ela age sobre as pessoas, produzindo reações cognitivas diversas. Se fossemos comparar as artes produzidas pelos indígenas com

1 GELL, 1998; BOURDIEU, 1979; OVERING, 1991, 1996. 2 Com relação à definição da arte em termos estéticos Gell afirma: “Acredito que o de-sejo de ver a arte de outras culturas esteticamente nos diz mais sobre nossa própria ideologia e sua veneração quase religiosa de objetos de arte como talismãs estéticos, do que diz sobre estas outras culturas. O projeto de ‘estética indígena’ é essencialmente equipado para refinar e expandir as sensibilidades estéticas do público de arte ocidental produzindo um contexto cultural no qual artes de outras culturas podem ser incorpora-das”. (GELL, 1998, p. 3). Severi, por outro lado, considera etnocêntrica a atribuição res-tritiva do conceito ao mundo ocidental moderno: “O ponto de vista etnocêntrico reserva o termo “arte” somente para a tradição ocidental e nega que as produções plásticas e figurativas das chamadas sociedades primitivas possam refletir uma atitude compará-vel a do artista europeu” (SEVERI, 1992: 82) e Murphy afirma: “Assim como arte podia ser usada no século dezenove para distanciar ‘outros’ povos dos Europeus civilizados, ela pode hoje também ser usada como instrumento retórico para incluí-los numa cultu-ra mundial de povos igualmente civilizados.” (MURPHY, 1997, p. 648).

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as obras conceituais dos artistas contemporâneos, encontrarí-amos muito mais semelhanças do que à primeira vista suspei-taríamos3. Pois muitos artefatos e grafismos que marcam o es-tilo de diferentes grupos indígenas são materializações densas de complexas redes de interações que supõem conjuntos de significados, ou, como diria Gell, que levam a abduções, infe-rências com relação a intenções e ações de outros agentes4. São objetos que condensam ações, relações, emoções e senti-dos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem, se relacionam, se produzem e existem no mundo5.

Se objetos indígenas cristalizam ações, valores e ideias, como na arte conceitual, ou provocam apreciações valorativas da categoria dos tradicionais conceitos de beleza e perfeição for-mal como entre nós, por que sustentar que conceitualmente es-ses povos desconhecem o que nós conhecemos como ‘arte’? É preciso enfatizar este ponto para melhor entender o que exata-mente as produções artísticas provindas de contextos original-mente autônomos de produção têm a nos oferecer e por que sua tradução para o contexto metropolitano tem provocado

3 GELL, 1996. 4 GELL, 1998, p. 13-16. 5 A inferência abductiva de Gell, ou, em outras palavras, a abdução da agência de al-guém a partir de um índice, refere a muitos tipos de processos cognitivos que podem fazer com que o objeto aja sobre a pessoa. Os índices são artefatos, objetos, ou obras de arte que estão inseridos numa cadeia interativa que alterna a posição de agente-pa-ciente. O art nexus, o nó canônico de relações na vizinhança de objetos de arte, prevê quatro posições:a do artista, a do índice, a do protótipo e a do recipiente. Cada um destes pode se encontrar em posição de agente ou paciente. Da combinação destas relações surgem todas as situações possíveis de se pensar relações em que coisas me-deiam relações entre pessoas. A semiótica de Peirce (1977) prevê três tipos de relações entre o signo e o objeto ao qual o signo se refere: a relação entre o referente e o símbo-lo é da ordem da convenção; assim a relação entre o símbolo linguístico e o objeto significado é totalmente arbitrário. A relação entre o referente e o ícone supõe alguma relação de semelhança; já a relação entre o objeto e seu índice é uma relação de conti-guidade em que o índice participa da natureza do objeto ao qual se refere. Gell decide na sua abordagem agentiva eliminar os dois outros termos do sistema, o ícone e o sím-bolo, para ficar somente com o índice. Na verdade o que o autor quer enfatizar é que na relação pragmática e interacionista do seu modelo, não é preciso distinguir índice de ícone. Todo ícone já é na verdade um índice. Tendo em vista que a imagem age sobre a pessoa, ela partilha nas qualidades daquilo de que é imagem. Aqui Gell segue Taussig em Mimesis and Alterity (1993) que mostra como o envolvimento sensorial com o per-cebido estabelece um contato entre o percepto e aquele que percebe, uma copresença, por esta razão ver e tocar são experiências muito próximas.

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tanta discussão entre connaisseurs e críticos de arte de um lado e antropólogos de outro.

Como salientado acima, a grande diferença reside na inexis-tência entre os povos indígenas de uma distinção entre artefato e arte, ou seja, entre objetos produzidos para serem usados e outros para serem somente contemplados, distinção esta que nem a arte conceitual chegou a questionar entre nós, por ser tão crucial à de-finição do próprio campo. Somente quando o design vier a suplan-tar as ‘artes puras’ ou ‘belas artes’ teremos nas metrópoles um quadro similar ao das sociedades indígenas6.

A inexistência da figura do artista enquanto indivíduo criador – cujo compromisso com a invenção do novo é maior que sua von-tade de dar continuidade a uma tradição ou estilo artístico conside-rado ancestral – é outra diferença crucial. Não que artistas contem-porâneos metropolitanos não trabalhem dentro de tradições estilísticas bem definidas. Vale lembrar que o fundador da arte con-ceitual, Marcel Duchamp, instalou seu urinol há praticamente um século, em 1917, e desde então o paradigma do fazer artístico não mudou, mas ideologicamente a figura do artista se projeta como inventor do seu próprio estilo, como inovador incessante, ao modo de um Picasso – emblema do Modernismo na arte. A fonte de ins-piração e legitimação se encontra no gênio do artista que é visto como agente principal no processo de relações e interações que envolvem a produção de sua obra, uma obra produzida com o úni-co fim de ser uma obra de arte.

Por mais que a arte moderna sempre se constitua como lugar de reflexão sobre a sociedade, ela tem sido enfática na defesa de sua independência de outros domínios da vida social. “A arte pela arte” é um credo tanto de artistas quanto dos que pretendem levar a arte a sério, e reflete, segundo Overing7, nos-sa dificuldade ocidental de pensar a criatividade individual e a

6 Uma polêmica surgida em torno de uma das instalações do Arte-Cidade em São Paulo (1994-2002) ajuda a esclarecer a questão. O artista estrangeiro Acconci construiu um confortável abrigo para os moradores de rua. Quando a exposição terminou a prefeitura retirou o abrigo do lugar sob intensos protestos dos moradores e simpatizantes (DICKSTEIN, 2006, p. 127). Ou seja, caso tivesse sido permitido à obra concretizar de forma permanente sua utilidade para os moradores, ela deixaria de ser obra de arte e se tornaria projeto urbanístico. 7 OVERING, 1991.

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autonomia pessoal juntas com a vida em sociedade. Em nossa tradição pós-iluminista o artista assume a imagem do indivíduo desprendido, livre das limitações do “senso comum” sociocên-trico. O pensamento ocidental associa coletividade com coerção e se vê desta maneira obrigado a projetar o poder de criativida-de para fora da sociedade.

Segundo Lévi-Strauss, um resultado deste estatuto solitário de gênio é que o artista moderno teria perdido, através de um uso idiossincrático de signos e símbolos, sua capacidade de comunica-ção: não há linguagem fora da sociedade. Em entrevista cedida a Charbonnier no começo dos anos sessenta8, Lévi-Strauss propõe uma interpretação antropológica da diferença entre arte moderna e “primitiva”. Nossa tradição intelectual ocidental seria responsável por três diferenças entre arte “acadêmica” e arte “primitiva”; dife-renças que a arte moderna tenta superar desde o começo do sécu-lo vinte. A primeira diferença diz respeito à individualização da arte ocidental, especialmente no que diz respeito a sua clientela, o que provoca e reflete uma ruptura entre o indivíduo e a sociedade em nossa cultura - um problema inexistente para o pensamento indí-gena sobre socialidade. A segunda se refere ao fato de a arte oci-dental ser representativa e possessiva, enquanto a arte “primitiva” somente pretenderia significar. A terceira reside na tendência na arte ocidental de se fechar sobre si mesma: “peindre après les maîtres” (pintar seguindo os mestres). Os impressionistas ataca-ram o terceiro problema através da “pesquisa de campo” e os cubistas o segundo, recriando e significando em vez de tentar imi-tar de maneira realista – aprenderam das soluções estruturais ofe-recidas pela arte africana. Mas a primeira e crucial diferença, a da arte divorciada do seu público, não pôde ser superada e resultou segundo Lévi-Strauss num “academicismo de linguagens”: cada artista inventando seus próprios estilos e linguagens ininteligíveis.

Nos anos oitenta, a situação do estudo da arte de outros po-vos ainda enfrentava sérios entraves teóricos, como podemos constatar na afirmação de Overing: “a visão contrastante da estéti-ca como domínio autônomo (mais um, ao lado da religião, ciência, economia e política) tende a ser nossa herança nas ciências so-

8 CHARBONNIER,1989, p. 63-91.

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ciais; apesar de termos na antropologia uma fraca “antropologia da arte” que diz timidamente que outros povos, diferentemente de nós não separam a arte, sua atividade e seu julgamento, do seu uso”.9 Esta visão da arte e da estética teve duas consequências: Se a arte era um campo de experiência tão específico, do qual se po-dia falar somente em termos técnicos, intraestéticos, não era nem a tarefa nem a competência do antropólogo de fazê-lo. E deste modo a maioria dos antropólogos deixou o tema de lado. Por outro lado, se antropólogos decidiam dizer algo sobre o assunto, o risco de um viés sociocêntrico era grande. Neste caso a arte era vista como reflexo e confirmação da estrutura social, algo sensível sem sentido e estrutura próprios, um código visual confirmando o que pode ser melhor ou igualmente dito em palavras. Os sistemas dos objetos eram deste modo lidos como códigos que ajudavam na classificação de fenômenos extraestéticos.

Esta visão “representativista” da arte obscurecia a maneira dinâmica de a arte agir sobre e dentro da sociedade, sendo um discurso silencioso sobre a condição humana e sua relação com os mundos naturais e sobrenaturais, ou sobre a própria socieda-

9 OVERING, 1989, p. 159.

Figura 1 – Pintura facial kadiwéu (foto Darcy Ribeiro, 1948). Fonte – Acervo Museu do Índio.

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de. Um exemplo da arte como reflexão sobre em vez de reflexo da sociedade pode ser encontrado na análise de Lévi-Strauss da “representação desdobrada” nas pinturas faciais kadiwéu10 que será retomada adiante. Em vez de refletir uma estrutura social de metades, este estilo imaginaria uma possibilidade cognitiva de organização social não realizada na vida cotidiana. O estilo desdobrado nos informaria sobre o desejo dos Kadiwéu de su-perar a tensão social inerente ao seu sistema de três castas, uma tensão temporariamente dissolvida pela imaginação artística.

Na maior parte das sociedades indígenas brasileiras o pa-pel de artesão/artista não constitui uma especialização. Se a técnica em questão compete às pessoas de seu gênero, cada membro da sociedade pode se tornar um especialista na sua realização. Porém, sempre há os que se sobressaem, estes são considerados ‘mestres’. Assim, entre os Kaxinawa (grupo pano, Acre), a mestre na arte da tecelagem é chamada de ainbu keneya, ‘mulher com desenho’ ou ainda de txana ibu ainbu, ‘dona dos ja-pins’, ou seja, liderança ritual feminina da aldeia, responsável pela organização do trabalho coletivo do preparo do algodão. Este

10 LEVÍ-STRAUSS, 1973.

Figura 2 – Tecelã kaxinawa (foto Els Lagrou, 1995).

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mesmo título, ‘dona dos japins’, é dado às mulheres que lideram o canto feminino durante a performance ritual. O japim é um pássaro que tece elaborados ninhos alongados, pendurados nos galhos das árvores. Em cantos rituais seu ninho é chamado de txana disi, ‘rede do japim’ e assim o pássaro serve de metáfora para indicar a excelência na tecelagem.

O líder de canto masculino é igualmente chamado de txana ibu, ‘dono dos japins’. O japim, além de ser um pássaro tecelão, é também aquele que imita o maior número de cantos de outros pássaros e animais. Mulheres aprendem cantos que ajudam-nas a aprender a tecer com desenho, e também a desenvolver outras atividades produtivas da vida em comunidade, enquanto homens aprendem cantos ligados a sua esfera específica de produtivida-de. A capacidade mimética musical, procurada e emulada pelos cantores da aldeia, que absorvem as qualidades desse pássaro no rito de consagração do novo líder de canto11, importa antes por causa do seu valor ‘produtivo’ do que ‘representativo’. O canto masculino torna possível a caça: ao imitar o canto dos animais, o caçador os chama para perto de si, os seduz para poder capturá-los. O canto feminino torna presente ao ritual as entidades donas das substâncias utilizadas para ‘refazer’ o corpo da criança, indo do milho e da água utilizados para produzir a caiçuma às plantas medicinais e tintas utilizadas na sua decoração.

Tecer e cantar são duas atividades produtivas, constituti-vas do cotidiano kaxinawa, cuja estética consiste em uma arte de produzir a vida de modo próprio, kuin, ao modo dos Kaxina-wa. O japim seria o modelo de artista a emular pelos humanos, pois além das capacidades de tecelão e cantor, o japim com-partilha com os humanos o hábito e o conhecimento de viver em comunidade, um conhecimento considerado condição para qualquer outra habilidade.

11 Ao chegar ao fim de um longo processo de aprendizado, o aspirante ao status de dono de canto captura um japim, come seu miolo cru e leva o crânio com o bico para a aldeia. Ao chegar na aldeia, o mestre pega o bico do pássaro e o molha com pimenta malagueta, depois toca repetidamente a língua de seu discípulo com o bico. Enquanto procede deste modo, o líder canta para seu discípulo, cuja língua saliva abundantemen-te. O mestre e o japim fortalecem a saliva e a voz do novo líder de canto, transferindo para este seu próprio conhecimento e memória.

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Figura 3(b) – Augusto Feitosa Kaxinawa, iniciando o canto (foto Els Lagrou).

Figura 3(a) – Augusto Feitosa Kaxinawa, txana ibu de Moema, com esposa e netos,ouvindo sua própria gravação (foto Els Lagrou).

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Entre os Wayana encontramos a mesma associação entre conhecer e saber fazer, expressa na figura do txana ibu dos Kaxinawa:

O conhecimento técnico da produção de objetos é referido como tuwaré, “saber”, conhecer, e assim um cesteiro habilidoso é um wama tuwaron. O saber humano é adquirido com a socialização e representa o resultado de uma transmissão social, sexualmente diferenciada, cuja base pedagógica é a visualização de um modelo e o contínuo exercício de tentativa e erro. A visão é o sentido que fornece a chave para a compreensão das concepções relacionadas ao conhecimento, porque representa o principal meio de percepção de um artefato.12

Existem também grupos, como os Bororo, grupo de língua Jê do Brasil Central, cuja produção artística não deriva do aper-feiçoamento das capacidades produtivas acessíveis a cada gê-nero respectivamente. Entre os Bororo a fabricação dos diferen-tes enfeites plumários, das braçadeiras aos cocares, se organiza de acordo com uma lógica clânica, reservando a utilização de determinados ingredientes (tipos de penas de aves específicas e de determinadas cores) e a produção de certos objetos a deter-minados grupos rituais.13

12 VAN VELTHEM, 2009, p. 213-236. 13 DORTA, 1986; CAUBY NOVAES, 2006.

Figura 4 – Cesto wayana com moti-vo de gavião / ente sobrenatural (foto Márcio Ferreira). Fonte – Acer-vo do Museu do Índio.

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Figura 6 - Brinco bororo (foto Els Lagrou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

Figura 8 – Akiaboro, chefe kayapó-gorotire demonstra e explica o uso dos enfeites (foto Els Lagrou, visita dos Kayapó-Gorotire ao Museu do Índio).

Figura 7 – Brinco kayapó-goro-tire (foto Els Lagrou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

Figura 5 – Enfeite cabelo bororo (foto Els La-grou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

Entre os Kayapó-gorotire, por outro lado, o direito de uso de certos enfeites é condicionado pelo nome da pessoa. Essa divisão de privilégios e tarefas de acordo com o pertencimento a grupos sociais dentro de uma comunidade, entretanto, não corresponde ao que se entende comumente entre nós por es-

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pecialização artesanal ou profissional, visto que todos os mem-bros de todos os grupos têm o direito de produzir algum tipo de enfeite ou artefato.

O fator considerado responsável pelo êxito de um artefato depende do tipo de arte em questão: pintura corporal, tecelagem, trançado, cerâmica, escultura, produção de máscaras ou arte plu-mária. Quando predomina a dificuldade técnica, serão prezadas a concentração, habilidade, perfeição formal e disciplina do mestre. Mas quando predomina a expressividade da forma, a fonte de inspiração é quase sempre atribuída a seres não humanos ou di-vindades que aparecem em sonhos e/ou visões. Dificilmente se responsabilizará a ‘criatividade’ do artista pela produção de novas formas de expressão. O artista é antes aquele que capta e trans-mite ao modo de um rádio transistor do que um criador. Preza-se mais sua capacidade de diálogo, percepção e interação com se-res não humanos, cuja presença se faz sentir na maior parte das obras de aspecto figurativo, do que a capacidade de criação ex nihilo, criação do nada. Esta ideia de ser mais receptor, tradutor e transmissor que criador vale para a música, a performance e a fabricação de imagens visuais e palpáveis. O complexo processo

Figura 9 – Dançarino kayapó-gorotire com brinco (foto Els Lagrou).

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de criação artística e performance do xamã entre os Araweté é descrito por Viveiros de Castro nos seguintes termos:

O xamã é como um rádio’, dizem. Com isto querem dizer que ele é um veículo, e que o corpo-sujeito da voz está alhures, que não está dentro do xamã. O xamã não incorpora as divindades e os mortos, ele conta-canta o que vê e ouve: os deuses não estão “dentro de sua carne”, nem ocu-pam o seu hiro (corpo). Excorporado pelo sonho, o xamã ou seu “ex-corpo” (hiro pe) fica na rede, enquanto sua i~ – aquela que será do céu – sai e viaja. Mas é quando ele volta que o xamã canta. E, quando os deuses descem à terra com ele – que é quem “faz descer” (...) os deuses -, des-cem em corpo, não em seu corpo... Um xamã encena ou representa os deuses e mortos, ele torna visíveis e audíveis suas ações, mas não os encarna em sentido ontológico.14

Tradutor dos mundos dos seres invisíveis, a figura do xamã muitas vezes coincide com a do artista entre os ameríndios. En-tre os Araweté, a arte do xamã reside na evocação de imagens mentais através do canto: “Como um todo, os cantos xamanísticos são uma fanopeia – projeção de imagens visuais sobre a mente, para usarmos uma definição de Pound –, evocações vívidas mas elípticas de situações visuais ou sensoriais” (id: 548). Teremos a oportunidade de voltar ao tema da tradução artística de outros mundos, importa notar aqui que esta atividade prevê a possibilida-de de diferentes ênfases e processos de transposição: em alguns casos, como no exemplo citado acima, o meio privilegiado de ex-pressão das imagens em movimento é o canto, em outros os seres invisíveis ganham existência material através da fabricação de ima-gens, ‘roupas’ e instrumentos.

Entre os Wayana o peso do ‘modelo’ tem sentido cosmológi-co. Inovar é perigoso, porque o modo certo de se produzir corpos e artefatos foi estabelecido pelos demiurgos dos tempos de cria-ção. O conservadorismo estilístico deste grupo de língua karib lembra o dos Wauja (autodenominação dos Waura, grupo ara-wak, Alto Xingu), produtores de máscaras rituais, no sentido de que ambos acreditam que a relação intrínseca entre o modelo e sua cópia torna a produção artesanal uma empreitada arriscada. No caso wauja, o ser parcialmente reproduzido no artefato pode se vingar se a confecção for artisticamente mal feita, enquanto

14 VIVEIROS DE CASTRO, 1986, p. 543.

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Figura 10 – Máscaras wauja, apapaatai atujuwa (foto Aristoteles Barcelos Neto)

Figura 11 – Cesto wayana com motivo palapi “espécie de andorinha” (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção Museu do Índio, identificação de peça em: Van Vel-them, 1995: 248.

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entre os Wayana existe o risco de a tradução do ser em artefato ser tão completa que ele ganhe agência e vida próprias.15

Também entre os Ashaninka (grupo de língua arawak, Acre e Peru) retorna a mesma ideia:

Jomanoria, Ashaninka do rio En-vira, desenhou para mim a cobra kempiro, a mais venenosa que existe, como uma sucessão de vários “x”. Sua representação da cobra parecia, a princípio, a mais minimalista possível e a mais fácil de ser realizada. Mesmo assim, ele passou praticamente o dia in-teiro a desenhar aquele “x”, re-presentando kempiro. Sua demo-ra em produzir o desenho não advinha do fato de não estar acostumado a desenhar em pa-pel, mas porque se cometesse um erro ao desenhá-la ele pode-ria morrer. A cobra kempiro viria mordê-lo. O mesmo desenho, por exemplo, gravado num recipiente de xiko (cal para mascar coca) te-ria levado o mesmo tempo.16

Da mesma forma que os Pirahã,17 os Wayana se referem à produção artesanal como um “fa-zer, experimentar”: ukuktop,18 que tem como modelo a perfeição tec-nológica dos deuses criadores ou demiurgos. No caso Pirahã, somen-te Igagai, o deus criador, saberia criar todas as coisas, enquanto os humanos não fariam outra coisa

15 VAN VELTHEM, 2003. 16 BEYSEN, 2008, p. 40. 17 GONÇALVES, 2001. 18 VAN VELTHEM, 2008.

Figura 12 – Menina ashaninka com pintura facial de urucum com o motivo de kempiro (foto Sonja Ferson).

Figura 13 - Menina ashaninka com kitarentse com o motivo de atxama, lagarto (foto Sonja Ferson).

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que tentar imitá-lo através do experimento. É o experimento que produz o evento e assim o mundo é feito de semelhanças que produzem diferenças.

O “experimento” (...) é um conceito importante na forma de os pirahã apresentarem sua cosmologia. Nada é feito de uma só vez: tudo passa por etapas, testes e experimentações. Faz-se sempre algo pequeno, um modelo em miniatura, e, se der certo, concretiza-se o que se tencionava executar. O “experimento”, ao mesmo tempo em que indica o modo de criação, explicita o risco de não dar certo e permite a criação de novas coisas. A quase totalidade das coisas e dos seres do Cosmos é percebida como resultado de atos, de processos: as nuvens são produtos da inter-ferência dos humanos ao usarem fogo; o vento, os raios, a lua, o sol, as estrelas, os animais e os vegetais foram e continuam sendo produzidos pelos seres abaisi (deuses) a partir da lógica do “experimento”, modo de fabricação que utiliza distintos materiais como areia, terra e vegetais – dos quais são extraídas as tinturas e madeiras -, os quais, misturados, possibi-litam a emergência da diferença”.19

19 GONÇALVES, 2001, p. 33.

Figua 14 – Animais de diferentes patamares, desenho pirahã (Marco Antonio Gonçalves, 2001).

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A partir de diferentes experimentos que produzem efeitos sempre novos de seres que se parecem, mas nunca são iguais, os Pirahã constroem uma imagética altamente estética, precisa e de-talhada dos diferentes corpos de seres que habitam os vários pa-tamares que compõem seu cosmos. A importância do ato e do evento é responsável pelo fato de o mundo nunca estar acabado, estando em constante processo de fabricação e transformação por causa dos atos que produzem efeitos e novos seres. Elemen-to especialmente marcante desta cosmologia é o fato de serem os acidentes que acontecem com os seres humanos os responsá-veis pelo surgimento dos deuses imperfeitos que povoam o cos-mos e vivem a lamentar suas imperfeições nos cantos xamanísti-cos. Se os Pirahã tendem a enfatizar a imperfeição tanto da criação quanto da imitação, entre os Wayana:

Os objetos são (...) compreendidos enquanto cópias dos elementos existentes nos tempos primevos porque os substituem, porque tomam o lugar, no presente, daqueles seres e elementos do passado. Assim, a rede de dormir, ëtat reproduz/constitui a teia da aranha primordial, um determinado banco muierê, encarna o urubu rei, a peneira circular pomkari, tem exatamente o mesmo aspecto do corpo de uma serpente constritora enrolada. Os objetos, tanto os de uso cotidiano como os empregados em rituais apresentam, portanto, as características formais de seus modelos, seres corporificados.20

A ênfase wayana é, portanto, na reprodução fiel de um conhecimento ancestral, tanto no que diz respeito às técnicas de produção de artefatos e pessoas, quanto aos mi-tos que são compreendi-dos como pertencentes aos demiurgos e que ex-plicam as afinidades exis-tentes entre determinados artefatos e animais ou se-

20 VAN VELTHEM, 2009, p. 213-236.

Figura 15 – Panela wayana, motivo do cen-tro: matawat atanta, larva de borboleta / serpente sobrenatural (foto Lucia Van Vel-them). Fonte – Coleção Museu do Índio.

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res sobrenaturais. A afinidade entre um artefato, sua forma, a técnica de produção e sua decoração, de um lado, e o ser vivo que lhe serve de modelo, de outro, remete à capacidade agenti-va de ambos, artefato e modelo. “Eficácia e utilidade constituem o objetivo primeiro de toda e qualquer criação, uma vez que coisas inúteis não são produzidas”.21

Como os cantores araweté, os artistas wauja, autores de máscaras, panelas e, também de desenhos em papel de grande apelo plástico22 lo-calizam em sonhos sua inspiração para a representação, no caso wau-ja, dos apapaatai, seres sobrenatu-rais causadores de doenças e passí-veis de serem apaziguados através da promoção de grandes festas em sua homenagem. Neste caso são fa-bricadas suas ‘roupas’ que serão encenadas na forma de máscaras de grandes proporções. Os dese-nhistas wauja são os xamãs ou pa-jés da aldeia, os que sabem sonhar com estes seres sobrenaturais. Des-te modo os xamãs tornam-se os maiores artistas desta sociedade, pois ao sonharem com os apapaa-

tai, seres invisíveis a olho nu, criam novas imagens destes seres que serão materializadas na forma de máscaras rituais. Esses mesmos seres são visualizados pelo pajé, em miniatura, dentro do paciente onde agem como agentes patogênicos e precisam ser retirados como parte do processo de cura.

Desde Kant, o Ocidente tem associado o fenômeno artístico ao ‘extraordinário’ e ao ‘sublime’, além de dar grande ênfase à mo-dalidade representativa e figurativa das expressões plásticas. Não é de se estranhar que este ‘olhar educado’, um olhar marcado por

21 Ibidem. 22 BARCELOS, 1999.

Figura 16 - Desenho de apapaatai (autor Kamo Wauja), (foto Barce-los). Fonte – Coleção Barcelos.

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uma cultura visual específica, foi procurar a arte dos outros em lu-gares que apresentavam características afins aos objetos de arte conhecidos no Ocidente ou descobertos pelos arqueólogos nas ‘altas culturas’ antigas. Essas culturas arqueológicas, produtores do que eram consideradas produções artísticas ‘mais sofisticadas’, eram na sua maior parte marcadas pelo desenvolvimento de apa-ratos estatais mais ou menos absolutistas como a China, Índia, Mesopotâmia, e, nas Américas, o Império incaico e asteca.

Dessa forma, os colecionadores de arte ‘primitiva’ muitas ve-zes só reconheciam peças incomuns, ‘espetaculares’ e de uso não cotidiano como candidatas a serem incluídas nas coleções de arte não ocidental, desconhecendo o fato de a maior parte da produção artística indígena se encontrar no campo da chamada ‘arte decora-tiva’ de uso cotidiano,23 assim como desconsiderando a realidade da avaliação nativa da qualidade das peças, que nem sempre se-gue a lógica da valorização do incomum.24

Assim, por exemplo, o que caracteriza a pintura corporal e facial ritualmen-te mais eficaz e, portanto, mais apreciada no ritual de passagem de meninos e meninas kaxinawa é sua qualidade de ser mal em vez de bem feita: as linhas grossas aplicadas com os dedos ou sabugos de mi-lho, com rapidez e pouca precisão, permitem uma permeabilidade maior da pele à ação ritual quando comparadas com as pintu-ras delicadas aplicadas com finos palitos enrola-dos em algodão, pinturas

23 GELL, 1998, p. 73. 24 OVERING, 1996; LAGROU, 1998, 2007.

Figura 17 – Menino com “desenho grosso” (huku kene) ou “desenho mal feito” (tube kene) de uso ritual, motivo nawan kene, desenho do estrangeiro/inimigo (foto Els Lagrou).

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Figura 18 - Jovem adulto com kene kuin desenho ‘verdadeiro’, motivo no quei-xo: txede bedu, olho de periquito, e no nariz isu meken, mão de macaco- -prego (foto Els Lagrou).

Figura 19 (a) – Menina sendo pintada com kene kuin, no estilo pua kene, desenho cruzado, com o motivo nawan kene, dese-nho do estrangeiro/inimigo (foto Els Lagrou).

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estas que são consideradas bem feitas e esteticamente mais agra-dáveis e que são usadas pelos adultos nessa e em outras ocasiões. Estas representariam a roupa do cotidiano ou das festas e contras-tam com a ‘roupagem’ liminar dos neófitos por causa de sua menor suscetibilidade a processos de transformação.

A apreciação valorativa não está, assim, necessariamente nos aspectos comumente considerados como padrões estéti-cos nativos; pode estar condensada, pelo contrário, na sua temporária distorção. A lição metodológica tirada desta cons-tatação é a impossibilidade de isolar a forma do sentido e o sentido da capacidade agentiva; o sentido e efeito de imagens e artefatos mudam conforme o contexto em que estes se inse-rem. Constatamos a partir deste exemplo que a ‘eficácia da arte’ reside na capacidade agentiva da forma, das imagens e dos objetos. A forma não precisa ser bela, nem precisa repre-sentar uma realidade além dela mesma, ela age sobre o mundo a sua maneira e surte efeitos. Deste modo ela ajuda a fabricar o mundo no qual vivemos.

Figura 19 (b) – Recém-nascido sendo tingido por Augusto, dauya, especia-lista ritual, com jenipapo para “fechar o corpo”, torná-lo invisível aos yuxin (espíritos) e protegê-lo dos insetos (foto Els Lagrou)

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Esta nova ênfase na agência de imagens e artefatos e no processo cognitivo de abdução de agência e intencionalidade que provoca nas pessoas que com eles interagem expressa a grande influência exercida pelo trabalho póstumo de Alfred Gell, Art and Agency,25 que veio coroar um processo de quinze anos de críticas ao modelo representacionalista nas ciências humanas e sociais. O deslocamento da atenção do significado para a eficácia do artefa-to tem um rendimento particularmente interessante no contexto da análise de artefatos e imagens ameríndias porque permite fu-gir do segundo dos pressupostos que definem a discussão no campo das artes no Ocidente.

Se como afirmamos acima, a própria história de arte no Oci-dente se incumbiu de questionar o critério de beleza como defini-dor do estatuto de obra de arte, o peso do critério interpretativo não diminuiu. Assim, na definição do importante filosofo de arte, Arthur Danto, pode ser considerado arte aquele objeto que foi pro-duzido em diálogo com a história da arte. No caso das artes produ-zidas fora do contexto metropolitano, este contexto seria substituí-do, em termos claramente hegelianos, pelo discurso religioso ou cosmológico do lugar.26 A arte, portanto, para se distinguir do ‘mero’ artefato de uso cotidiano e utilitário deve ser obra de reflexão, ex-pressando o ‘Espírito do seu Tempo’ (Zeit Geist), ou, no caso, o ‘Espírito do seu povo’ (Kultur Geist).

Reconhecendo que, no contexto nativo, todos os objetos po-dem possuir várias funções, inclusive utilitárias, Danto afirma que mesmo assim é preciso e possível distinguir entre ‘meros obje-tos utilitários’, os artefatos, e ‘objetos especiais’, candidatos ao estatuto de obra de arte. Para deixar claro como se pode fazer esta distinção, o autor propõe um exemplo imaginário para o qual procurou inspiração na etnografia africana. Ou seja, em vez de procurar exemplos na etnologia existente, o filósofo produz uma hipótese plausível sobre dois povos de uma mesma região que poderiam existir em termos lógicos. Os dois povos produzi-riam cestos e panelas de barro que em termos formais seriam in-distinguíveis para um observador externo.

25 GELL, 1998. 26 DANTO, 1989, p.18-32.

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Um dos povos, o povo cesteiro, teria uma relação privilegia-da com seus cestos que seriam considerados como possuindo um significado e poder especial. Segundo os sábios da tribo o próprio mundo é (como) um cesto, tecido de grama, ar e água pela deusa criadora do povo, uma tecelã. As pessoas ao produzi-rem cestos “estariam imitando a criatividade divina, assim como escultores e pintores imitam Deus na Sua Criatividade, segundo Giorgio Vasari” (Danto, 1989: 23). Para o povo oleiro, as panelas é que são “densas em significados”. “Os sábios do povo oleiro di-zem que deus é oleiro, por ele ter moldado o universo a partir do barro informe, e os oleiros, que são artistas, são agentes inspira-dos que re-encenam na sua arte o processo primevo através do qual a simples desordem de mera sujeira recebe graça, significa-do, beleza e até uso”.27 Deste modo, “encontrando-se na encruzi-lhada entre arte, filosofia e religião, as panelas do povo oleiro pertencem ao Espírito Absoluto. Seus cestos, bem tecidos para garantir utilidade duradoura, são insípidos componentes na prosa do mundo” (ibid.). Com o povo cesteiro acontece o contrário. En-tre eles são os cestos que ganham em valor, enquanto as panelas são meros objetos utilitários. Vemos neste exemplo que Danto permite que os artefatos tenham utilidade, mas esta utilidade nada tem a ver com o valor e o significado do objeto.

Gell critica de forma contundente a definição interpretativa da arte defendida por Danto.28 O que produziu a reflexão, tanto de Danto quanto de Gell, foi uma exposição onde Suzan Vogel, his-toriadora de arte e curadora de uma exposição chamada Art/Arti-fact no Center for African Art em Nova Iorque, expunha uma rede de caça amarrada dos Zande como se fosse uma obra de arte conceitual. A curadora plantou, desta maneira, uma verdadeira armadilha para o público, que se equivocou totalmente acerca do que viu, sem saber se o exposto era para ser visto como uma obra de arte conceitual ou não. Defendendo a distinção conceitu-al entre arte e artefato, Danto argumenta que a rede não pode ser uma obra de arte porque ela foi feita meramente para um uso instrumental, não possuindo o poder de invocar um significado

27 DANTO, 1989, p. 23-24. 28 GELL: 2001.

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mais elevado ou transcendental. Os critérios que justificam a in-clusão de certas panelas e cestos no ‘Museu de arte’ e a exclusão de outras panelas e cestos, aparentemente iguais a estas em for-ma e execução, são segundo Danto unicamente interpretativos. As panelas do povo oleiro e os cestos do povo tecelão ganhavam estatuto de obra do espírito graças a sua associação com a criati-vidade divina e apesar da sua utilidade.

Argumentando contra Danto, Gell vai mostrar, a partir da ideia da armadilha (e a rede Zande colocada na exposição é um exemplo singular do tipo de lógica operante nessa ideia), que ins-trumentalidade e arte não necessariamente precisam ser mutua-mente exclusivas.29 Muito pelo contrário, se reforçam mutuamen-te. Assim, uma armadilha feita especialmente para capturar enguias, por exemplo, poderia muito melhor representar o ances-tral, dono das enguias, do que sua máscara, visto que não repre-senta somente sua imagem, mas presentifica, antes de mais nada, a ação do ancestral: sua eficácia é tanto instrumental quanto so-brenatural e reside na relação complexa entre intencionalidades diversas postas em relação através do artefato, como aquelas da enguia, do pescador e do ancestral. Desta maneira, Gell supera a clássica oposição entre artefato e arte, introduzindo agência e efi-cácia onde a definição clássica só permite contemplação.

Gell sempre se interessou pela ‘arte conceitual’ e era assíduo visitante das galerias Londrinas. Este envolvimento com o mundo da arte conceitual o fez propor uma mudança de perspectiva to-talmente bem-vinda e ao mesmo tempo surpreendente para a antropologia da arte: se no mundo da arte contemporânea a arte não se define mais pelo critério do belo e sim pela lógica do tro-cadilho ou da armadilha conceitual, pelo complexo entrelaçamen-to de intencionalidades sociais, porque continuar avaliando a arte de outros povos com critérios que não valem mais no nosso mun-do artístico? Porque achar que são as máscaras africanas as peças que mais se aproximam da nossa noção de arte? É neste momen-to que Gell propõe associar, numa exposição imaginária, obras conceituais ocidentais com armadilhas de povos sem tradição ar-tística institucionalizada como é comum entre nós. As armadilhas

29 Ibidem.

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africanas, oceânicas e amazônicas se aproximariam mais da arte conceitual contemporânea do que as máscaras ou esculturas por causa da complexidade cognitiva envolvida na montagem das ar-madilhas; por causa da maneira como agem sobre a mente do receptor, sugerindo uma complexa rede de intencionalidades, onde o caçador mostra conhecer bem os hábitos da sua presa através da própria estrutura da armadilha.30

É exatamente esta distinção entre arte e artefato que a maioria das etnografias sobre a produção de artefatos e artes indígenas vem negando há mais de dez anos: não há distinção entre a beleza produtiva de uma panela para cozinhar alimentos, uma criança bem cuidada e decorada e um banco esculpido com esmero. Como afirmam os Piaroa (Venezuela) todos estes itens, desde pessoas a objetos, são frutos dos pensamentos (a’kwa) do seu produtor, além de terem capacidades agentivas próprias: são belas porque funcio-nam, não porque comunicam, mas porque agem.31

Na classificação piaroa, toda criação pela qual um indivíduo é responsável é considerada seu a’kwa (pensamento). Portanto, os produtos do trabalho de uma pessoa, o filho do mesmo e uma transformação xamanística, como a transformação do xamã em jaguar ou anaconda, são todos consi-derados os “pensamentos” desta pessoa. Os produtos do roçado de uma mulher são seu a’kwa, assim como a zarabatana feita por um homem é seu a’kwa, e um ralador feito por uma mulher é seu a’kwa.32

Tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de manei-ras muito específicas que precisam ser analisadas em seu contex-to. No caso do grafismo na pele dos jovens kaxinawa, a qualidade das linhas, sua grossura, era o que interessava às pintoras, mais que os nomes dos motivos. O grafismo que cobria os corpos das crianças não servia de sistema de comunicação, a informar por meios visuais sobre o pertencimento desta pessoa a determina-das metades ou seções, visava pelo contrário unificar os corpos e cobrir as peles. Sua função era performativa e produtiva, dizia respeito à dinâmica relação entre grafismo e suporte. O desenho cobrindo a pele agia como filtro a deixar penetrar na pele e no

30 GELL, 2001. 31 OVERING, 1991. 32 OVERING, 1986, p. 148-149.

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corpo os cantos e os banhos medicinais sobre este proferidos. O desenho abria a pele para uma intervenção ritual e coletiva sobre o corpo da criança, que estava sendo moldado, fabrica-do, transformado. Como a maioria dos ritos de passagem ame-ríndios, as intervenções sobre o corpo visam a moldar tanto a pessoa quanto o corpo do futuro adulto. A reclusão, dieta, o uso de eméticos e banhos medicinais, os testes de resistência, todo um conjunto de intervenções visa a moldar um corpo for-te, um ‘corpo pensante’, como dizem os Kaxinawa, ‘com coração forte’ implicando a simultaneidade dos processos de modulação física, mental e emocional.

Figura 20 – Menina kaxinawa sendo pintada du-rante o ritual nixpupima (foto Els Lagrou).

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A imagem tem sentido porque funciona, e não apesar do fato de ter utilidade. A imagem sintetiza os elementos mínimos que caracterizam o modo como o modelo opera e é por esta ra-zão que uma imagem é um índice e não um símbolo ou um ícone do seu modelo. Deste modo, entre os Wayana o tipiti, prensa de mandioca, é uma cobra constritora, pois constringe que nem a cobra. Ela não possui cabeça nem rabo no entanto, para não se tornar o ser independente que devora humanos. O tipiti é um ar-tefato que compartilha com a cobra a capacidade agentiva de constringir e é isto que se quer fazer com a mandioca.33 O tipiti wayana evoca deste modo a lógica da armadilha de enguia invo-cada por Gell. O que os artefatos imitam é muito mais a capacida-de dos ancestrais ou outros seres de produzir efeitos no mundo do que sua imagem. Podemos entender, deste modo, porque a separação entre capacidade produtiva e reflexão, proposta por Danto para salvar a noção de arte e protegê-la da contaminação pelo conceito de artefato, não procede no mundo indígena.

33 VAN VELTHEM, 2003, p. 130.

Figura 21 – Tipiti wayana (foto Els Lagrou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

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cAPÍTuLO 2: cORPOS E ARTEfATOS

Na tradição pictórica ocidental temos que a copia tende a ser de outra natureza que o modelo. A pintura na tela é feita de outros materiais que o modelo e, na sua confecção, são utilizadas técni-cas próprias à pintura, fazendo com que as técnicas de produção de um quadro difiram das técnicas de produção de, por exemplo, o corpo humano ou o vaso com flores representadas no quadro. Uma escultura de um torso humano também não visa reproduzir o corpo, sua estrutura, ou seu modo de funcionar, somente visa invocá-lo, representá-lo. No universo artefatual ameríndio, no en-tanto, a cópia é muitas vezes considerada como sendo da mesma natureza que o modelo, e tende a ser produzida através das mes-mas técnicas que o original.

Por essa razão podemos afirmar que entre os ameríndios artefatos são como corpos e corpos são como artefatos. Na me-dida em que a etnologia começa a dar mais atenção ao mundo artefatual que acompanha a fabricação do corpo ameríndio, a própria noção de corpo pode ser redefinida. Um dos aspectos principais da concepção ameríndia sobre a corporalidade, que concebe o corpo como fabricado pelos pais e pela comunidade e não como uma entidade biológica que cresce automaticamen-te seguindo uma forma predefinida pela herança genética, ga-nha deste modo um relevo todo especial.

Segundo os Wayana, humanos são fabricados através das mesmas técnicas que artefatos:

Essa tecnologia é capaz de produzir coisas e pessoas e está intima-mente conectada à noção de que se exerce a partir de modelos cria-dos nos tempos primevos pelos demiurgos. Segundo estes parâmetros,

[p. 38] Jovem kayapó-gorotire com colar de miçanga vermelho (foto Els Lagrou).

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indivíduos e bens manufaturados compartilham de mesmos referentes primordiais, o que permite articulá-los num mesmo quadro simbólico de “fabricação” (...) Um mesmo verbo, tihé, “fazer” ou “produzir” des-creve como a ação humana, ao ser exercida sobre materiais corporais como sangue e sêmen, vai produzir filhos e atuando sobre matérias naturais como penas, pêlos, caniços, folhas, cipós, argila, madeiras, vai resultar em objetos. Especificamente, a procriação humana é associada simbolicamente à tecnologia da arte plumária, a qual, por ser paradig-mática é igualmente referida como tïhé. Consequentemente, as crianças são “feitas” de forma semelhante à produção de uma fieira de penas, pois a concepção é descrita como uma justaposição de partículas de sêmen que, pouco a pouco, através de múltiplas relações sexuais, se amalgamam e tecem a pele do recém-nascido, assim como na arte plu-mária, uma pena é acostada à outra para conformar a fieira.1

1 VAN VELTHEM, 2003, p.119-120.

Figura 22 – Adorno dorsal wayana com fieira de penas que acompanha a máscara Olok (foto Els Lagrou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

Figura 23 – Verso do adorno, com motivo de larva de borboleta / ser-pente sobrenatural (foto Els Lagrou). Fonte – Acervo do Museu do Índio

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O corpo wayana não é, no entanto, concebido como tendo sido fabricado segundo uma só técnica. “Os Wayana se dizem wama ïhem, “possuindo arumã”, pois, como descendem da mu-lher primordial, compartilham com ela de atributos físicos, tais como a estrutura da pele, que vem a ser o resultado do entran-çamento de tiras de arumã” (ibid.). O mito de origem da criação da primeira mulher narra como tentativas anteriores de fabricar a mulher em cera ou em barro não tinham dado certo. A primeira derreteu ao sol quando foi buscar mandioca, a segunda era pesa-da demais para se locomover. A terceira, feita de arumã com den-tes de amendoim, é que deu certo: sabia tanto carregar a mandio-ca quanto macerá-la com os dentes para produzir a bebida de mandioca fermentada (cachiri), ingrediente indispensável na vida ritual dos Wayana como de grande parte dos povos da região.2 Interessante notar aqui que o que importa na produção da primei-ra mulher é sua capacidade agentiva, o corpo carregando na sua constituição a potencialidade de desenvolver as atividades pro-dutivas que caracterizam o papel feminino na sociedade waya-na: o de produzir o alimento, item de troca e de socialização por excelência, a partir da mandioca brava.

Na decoração do corpo são utilizadas as mesmas técnicas que as usadas para decorar os artefatos.

As técnicas decorativas compreendem a amarração, tipumuhé, “provi-do de fios”, que corresponde ao envolvimento dos membros com fios de miçanga ou sementes, o entalhe, denominado pahié, “dente de ro-edor”, que faz referência às escarificações produzidas no corpo com esse instrumental, e a mais importante técnica decorativa, a pintura, designada como tonophé, “está com urucum”, e que se inspira no ato de untar o corpo com tinta à base deste vegetal.3

A técnica da amarração é usada pelos homens na cestaria e nos arcos e flechas, enquanto as mulheres a empregam “na tecedura de redes e tipoias, confundindo-se assim com a tecelagem”.4 “A modalidade técnica do entalhe é igualmente de uso compartilhado. Caracteriza-se por apresentar aspecto de

2 Idem, p. 397. 3 Idem, p. 243. 4 Idem, p. 245

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Figura 24 – Mulher wayana traçando motivos no beiju (foto Lucia Van Velthem).

Figura 25 - Aruana, roda de teto wayana. A roda pintada “repre-senta o próprio Maruanãimë”, arraia-anaconda. Os seres sobrena-turais pintados sobre a roda são os ancestrais dos sobrenaturais: anacondas / lagartas e o mulokot, um peixe dotado de elementos anatômicos dos mamíferos e das aves (foto Lucia Van Velthem). Fonte – Van Velthem, 1995: 209.

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gravura, os grafismos sobressaindo-se em baixo-relevo numa superfície”.5 Os homens usam esta técnica na decoração de ban-cos, flechas, bordunas e flautas. As mulheres entalham cuias, tortuais de fuso e vasos cerâmicos. Os beijus são igualmente ‘entalhados’, através da “impressão digital de motivos durante o cozimento da massa de mandioca”.6

A pintura é uma técnica empregada por homens e mulheres e se defi-ne basicamente pela ausência de relevo, o resultado de sua aplicação podendo ter aspecto uniforme ou conformar padrões iconográficos ou listrados pelo contraste cromático, que tanto pode ser simultâneo, de cores apostas lado a lado, como tonal, de gradações de uma mesma cor. Com pintura os homens decoram as rodas de teto, as flechas, o arumã a ser trabalhado na cestaria, os bancos e bordunas cerimoniais, os saiotes para máscaras. As mulheres a aplicam no corpo humano, na cerâmica e em utensílios de cabaça.7

Os exemplos acima revelam o caráter artefatual das pessoas wayana. Este aspecto é complementado pela concepção wayana dos objetos cotidianos enquanto “corpos despedaçados”.8 Como relatado nos mitos, o processo de metamorfose sofrido pelos arte-fatos nos tempos primevos,

[...] vem a ser justamente o seu parcelamento, o desmembramento de seus corpos, suprimindo-lhes assim as características originais, caóti-cas e descontroladas. Para a viabilidade das lides cotidianas o parcela-mento dos seres e elementos primordiais transformou-os em coisas que podem ser dominadas pelos humanos, permitindo, entre outros, que as mulheres empreguem a prensa de mandioca no seu processa-mento e não se atemorizem diante de uma serpente sobrenatural que está prestes a engoli-las; da mesma forma, essa opção permite ao ho-mem atirar uma flecha, um corpo sem membros e sem visão, sem se debater com um intrépido guerreiro que essa arma encarnou nos tem-pos primordiais. (...) Os artefatos de uso cerimonial e ritual compreen-dem a outra materialização possível, a qual se caracteriza por ser deta-lhista e anexar, no resultado final, elementos não visuais como movimentos, sons, fragrâncias. Nessa fabricação, a experiência criati-va se revela tão profunda e perfeita que acarreta metamorfoses ou, em outras palavras, os objetos se transformam em seus modelos, trazen-do a si e sua realidade para o seio da sociedade wayana.9

5 VAN VELTHEM, 2003, p. 245. 6 Ibidem. 7 Idem, p. 246.8 Idem, p. 124. 9 Idem, p. 125.

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Como os Wayana, os Kaxinawa se interessam muito pelo modo como as coisas foram produzidas, quem é seu dono, quem plantou as árvores que produzem determinadas sementes. Todas as substâncias que entram, saem ou se encontram na proximida-de do corpo parecem ser imbuídos de agência, além de possuí-rem ‘donos’, como em muitas cosmologias ameríndias. ‘Donos’ são chamados de ibu pelos Kaxinawa e são responsáveis pela existência de animais, plantas, pessoas. Os ibu, donos, mantêm uma relação de pai(mãe)-filho com aquilo que produzem. Este produto de sua agência, sua ‘cria’, pode ter sido esculpido da ma-deira como as mulheres primordiais da área xinguana (Barcelos, 2005), ou tecido de arumã como a primeira mulher dos Wayana.

Na concepção kaxinawa, cada parte do corpo de uma crian-ça foi fabricada a partir de uma técnica diferente. Durante a ges-tação, o pai talha o feto por meio de uma sequência de relações sexuais no útero da mãe que cozinha as substâncias, o sêmen e

o sangue na forma de um tunku, bola de sangue coagulado que lentamente ganha a forma hu-mana. Esta modelagem da for-ma humana depende do pen-samento e agência masculina humana. O risco da interferên-cia de outras agências não hu-manas na produção do feto é a produção de uma criança não totalmente humana, um yuxin bake, filho de ‘espírito’, repre-sentando formas corporais ex-cepcionais, como um dedo a mais ou uma orelha fechada. Os yuxin e yuxibu, ‘espíritos’, são seres que não possuem uma relação fixa com um cor-po, eles podem se transformar à vontade, assim como podem induzir transformações nos cor-pos com os quais entram em

Figura 26 - Bancos recém-esculpidos pendurados nas vigas da casa (foto Els Lagrou).

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contato; ao terem relações com mulheres grávidas, eles podem induzir alterações na forma desejada. Este exemplo demonstra claramente o poder das imagens entre os Kaxinawa e a impor-tância de uma técnica artesanal do controle e fixação da forma em um corpo sólido e saudável.

O mito e o ritual situam a origem dos primeiros humanos no tronco oco de uma árvore. O imaginário da árvore como pro-tótipo para o corpo humano é recuperado pela ontologia kaxina-wa de múltiplas maneiras. Primeiramente, durante o rito de pas-sagem, um banco é esculpido, pelos pais, das raízes tubulares da samaúma à imagem da criança: “duas pernas com um bura-co no meio”, como diz o canto. Vida é insuflada no banco atra-vés de um canto ritual e um banho no rio, onde os homens tingem o banco de vermelho, levando-o para casa onde as mães o pintam com o xunu kene, o motivo da samaúma. O desenho da samaúma é redon-do e bem-feito e visa a passar para a criança o conhecimento da samaúma. O banco é chama-do de: árvore do japim (o txana dos donos do canto, vide aci-ma), árvore de Yube (a boa/ana-conda/lua), árvore do pensa-mento, árvore do desenho e árvore do trabalho.

O canto se dirige ao banco como a uma criança, para que passe suas qualidades para a criança: a vida longa de uma sa-maúma com raízes firmemente plantadas (“que não anda por todo canto”), um “coração forte”, que não sente medo à toa, e um conhecimento sobre os segre-dos da vida e da morte atribuídos em mito a essa árvore. O banco, usado pelas crianças para des-cansar durante as intervenções

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rituais, é produzido pelas mesmas téc-nicas que produziram a estrutura da criança no ventre e recebe a mesma decoração que receberá a pele da criança depois do rito de passagem.

A pele é concebida como tendo sido tecido. A identidade original en-tre pele e tecido é estabelecida pelo mito do grande dilúvio quando um casal deitado na rede se transformou na jiboia-anaconda. A pele da jiboia é a rede ancestral tecida pela primeira mulher, e será esta mesma jiboia que ensinará às mulheres, depois do dilú-vio, a arte da tecelagem. Esta mesma pele da jiboia se tornará a fonte ines-gotável de inspiração do sistema grá-fico kaxinawa, pois contém todos os desenhos que existem, uma ideia muito difundida na Amazônia indíge-na. Entre os Kaxinawa, o desenho, tecido, assim como desenhado, é uma prerrogativa feminina.

A mesma jiboia/anaconda é res-ponsável pelo controle do fluxo san-guíneo, tanto pelos homens (na caça e na guerra) quanto pelas mulheres. No caso das mulheres o controle do fluxo de sangue significa o controle sobre sua própria fertilidade. Vemos assim que a jiboia, originalmente an-drógina, distribui o controle das ativi-dades ligadas à produção do dese-nho, da imagem e dos fluidos produtores de novos corpos segundo uma especialização de gênero: mu-lheres controlam o desenho, kene, aplicado na pele, nas redes, roupas,

Figuras 27-32 - Bancos kaxinawa pintados com xunu kene, dese-nho da samauma. No primeiro banco vemos o motivo de nawan kene, desenho do estrangeiro / inimigo, no centro, txede bedu, olho do periquito, nas extremida-des e kape hina, rabo de jacaré, na parte de baixo do banco. No segundo banco o desenho que engloba o interior é o xamanti kene. Nenhuma parte do banco é deixada sem desenho (fotos Els Lagrou). Fonte - Coleção Harald Schultz, 1950-51, MAE.

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cestaria e cerâmica, enquanto os homens – em visões xamanís-ticas - controlam a experiência de imagens em movimento, dami, a transformação da forma controlada pelo canto. Esta ex-periência de dami é na maior parte dos casos tridimensional.

Os ossos por sua vez foram feitos do sêmen paterno e conti-nuarão sendo produzidos pelo leite materno. Leite e sêmen são o que sobrou da caiçuma, tipo de sopa de milho oferecida pelas mulheres aos homens e entre si. O que fica na barriga do homem, depois de tomar caiçuma, são as ‘sementes’, o sê-men do milho. Estes ficam lá “porque o milho quer se tornar pessoa”. Como ou-tros objetos rituais, as es-pigas de milho enfeixadas não podem tocar a terra e são penduradas no traves-são da casa. O mesmo cui-dado é tomado no armaze-namento de amendoim, algodão, tabaco e penas, assim como do banco ritu-al antes de este ser usado pelos iniciandos. No seu lugar de armazenamento, o amendoim e o milho são vistos como vivendo em famílias, e os diferentes ti-pos de milho e amendoim são como pessoas diferen-tes com nomes pertencendo a metades. Quando um feixe de amendoim é pendurado no travessão, entoa-se um canto que diz “Inkan tsauxun” (o Inka está sentado).

Entre os Wayana um tratamento similar é dado aos artefatos: Van Velthem descreve como os artefatos têm um tempo e um ritmo de vida igual ao de uma pessoa, com direito a descanso nas vigas das casas durante a vida, e com a morte anunciada quando perdem a sua funcionalidade e razão de ser, e são abandonados no

Figura 33 – O cesto cargueiro kankan é a ca-beça da cobra e porta o dunu kene, motivo da cobra (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção Schultz, MAE.

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chão para apodrecer.10 Diferentemente dos artefatos, no entanto, as sementes morrem para renascer: quando consumidas, estas sementes são plantadas no corpo onde produzem os fluidos cor-porais responsáveis pela fabricação de um novo ser.

As sementes de milho produzirão os ossos, olhos e dentes da criança e pertencem ao reino do Inka. Os Inka são os deuses kaxinawa e representam o destino póstumo da alma do morto. Os Inka figuram igualmente nos mitos sobre os tempos primordiais quando eram os possuidores ciumentos de bens e conhecimen-tos cobiçados pelos primeiros humanos, além de serem poderosos canibais. Assim como o milho que endurece rapidamente como uma miçanga, o canto ritual evoca a miçanga como qualidade de durabilidade e dureza que se quer passar para o corpo da criança. A onipresença das contas de vidro, a miçanga, nos cantos rituais dos Kaxinawa é significativa. As contas estão em toda parte:

10 VAN VELTHEM, 2003.

Figura 34 – Tecelagem kaxinawa. Rede com motivo de anaconda, dunuan kene (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção particular da Autora.

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constituem a própria estrutura que sustenta o corpo, assim como o decoram. O tema da miçanga na decoração do corpo, no canto ritual e na teoria da constituição do corpo kaxinawa ilustra clara-mente o credo ameríndio de que a identidade é constituída a par-tir da tradução e incorporação estética da alteridade, das forças e características do Outro, que é muitas vezes o inimigo.

No caso dos Kaxinawa a agência desta alteridade não é con-trolada ou domesticada, mas capturada através da sedução esté-tica. Os donos de todas as substâncias usadas no ritual são cha-mados por seu canto, nome e desenho, são convidados para a festa e a recepção visa a alegrá-los (benimai) para que tornem presente sua agência yuxin nas substâncias que produziram: tin-tas, comidas, penas, perfumes etc. É yuxin que dá forma e consis-tência à matéria e que faz com que seres vivos cresçam. A tinta, usada para enegrecer os dentes das crianças durante o rito de passagem, produzirá apenas uma leve coloração cinza se os can-tos não foram fortes o suficiente para chamar seu dono e o poder agentivo da tinta nixpu. E uma pena de um pássaro caçado, se cair no chão, perderá sua vitalidade e se tornará quebradiça.

Figura 35 – Tiara de miçanga usada por Leôncio Kaxinawa durante o ritu-al do nixi pae (cipó forte), durante sua visita ao Rio de Janeiro. O motivo txe-de bedu (olho do periquito, espírito do olho) se transforma no motivo de nawan kene, desenho do inimigo / estrangeiro (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção particular da Autora.

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A miçanga se liga a tudo que é imperecível dentro e fora do corpo, e para obter esta qualidade o povo do Inka é invocado. Cantos rituais dizem que os ossos são feitos de Inkan mane (miçan-ga ou metal do Inka), assim como de xeki bedu (olhos, sementes de milho), o milho é o alimento ritual por excelência e prototípico do Inka. O milho vem do Inka, e o sêmen é feito de caiçuma de milho. Do sêmen são feitos os ossos da criança. O primeiro desenho feito na testa de bebês masculinos, quando saem da reclusão pós-parto, é o xeki xau, sabugo de milho, referindo-se a esta substância im-portante usada na fabricação dos corpos.

Assim como os ossos, olhos e dentes são chamados de ‘miçanga’, mane, visando passar as qualidades de dureza, brilho e durabilidade das contas para estas partes do corpo. No rito de passagem, um canto para meninas pede: ‘Tia façamos pulsei-ras, braçadeiras, tornozeleiras e joelheiras para mim (yaya huxe waxunuuun) (3x); Esprema remédio para desenho, remédio para desenho nos meus olhos’ (ea kene daun kene, dau betxeswe) (2x) e concluindo ‘faça meus olhos como miçanga, meus olhos como miçanga’ (ea mane beduwa mane, beduwawee) (2x).

Figura 36 – Mestre em desenho, ainbu keneya, espreme remédio, para sonhar com desenho, nos olhos de sua cunhada (foto Els Lagrou).

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O rito de passagem ocorre depois da troca dos dentes de leite por dentes permanentes que são tingidos de preto com nix-pu para torná-los fortes. O fortalecer dos dentes é o motivo prin-cipal do ritual, o nome do ritual é nixpupima: “fazê-los comer nix-pu”. O canto compara os dentes ao milho, que endurece rapidamente, e se torna resistente como uma miçanga. Muitos povos indígenas consideram os dentes a sede da força vital. É por esta razão que dentes são frequentemente usados como orna-mento. Os Yagua usavam os dentes de inimigos mortos na guerra ao redor do pescoço, e possuem um mito sobre a primeira huma-nidade que era frágil e mole por não possuir dentes11. Os Kaxina-wa costumavam se adornar com adereços ricamente decorados com dentes de macaco. Em uma coleção produzida no começo dos anos cinquenta entre os Kaxinawa do rio Curanja, então re-cém-(re)contatados, encontra-se grande quantidade de cintos e colares decorados com dentes de macaco (MAE - Museu de Ar-queologia e Antropologia da Universidade de São Paulo).

11 CHAUMEIL, 1983, p. 215; 2002.

Figura 37 – Colar de dentes de macaco (foto Els Lagrou). Fonte - Coleção Schultz, MAE.

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A estrutura interior e invisível que sustenta o corpo, parte mais duradoura da pessoa, é relacionada ao bedu yuxin, ‘espírito do olho’. O espírito do olho, um de vários espíritos que animam a pes-soa, é a parte da pessoa que retornará ao mundo dos Inka depois da morte. No canto ritual ossos, olhos e dentes são considerados como sendo feitos de contas de vidro que foram plantadas no corpo, como sementes que precisam criar raízes e crescer como uma árvo-re. O mesmo acontece com o espírito do olho que cria raízes no coração e a partir do coração se presentifica pelo corpo inteiro12.

12 Ver BELAUNDE (2005 e 2006) para um estudo comparativo da ‘hematologia ameríndia’, ou seja, das concepções ameríndias sobre o papel do sangue no transporte dos pensamen-tos. A compreensão de que o pensamento é transportado pelo sangue explica muitas prá-ticas particulares largamente difundidas entre os Ameríndios como o resguardo e dieta de pessoas próximas a pessoas doentes ou recém-nascidos como a couvade (o resguardo) do pai. O sangue continua ligado às pessoas de onde provém e tanto o que as pessoas inge-rem quanto o que fazem atinge pessoas ligadas pelo sangue, não somente por nascimento mas também através da convivência, pela partilha de substâncias. A afirmação que o san-gue transporta pensamentos e emoções ajuda igualmente a entender frases como as dos Kaxinawa que sustentam que ‘é o corpo que pensa’ e que um ‘coração forte’ caracteriza uma pessoa que sabe controlar suas emoções e seus pensamentos.

Figura 38 – Colar de dentes de macaco e de onça (foto Els Lagrou). Fonte – Co-leção Schultz, MAE.

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Essas contas do Inka são contas do inimigo; as mesmas ou similares às miçangas obtidas dos brancos, nawa. Essa incorpo-ração de substâncias e suas qualidades agentivas associadas ao Outro poderoso, o inimigo, aponta para o bem conhecido modelo ameríndio da predação em que o Eu se constitui a partir de capa-cidades agentivas conquistadas sobre as forças exteriores de pro-dução. Para os Kaxinawa a quase totalidade do conhecimento das técnicas e substâncias produtivas da vida cotidiana, pessoas, cor-pos e artefatos foram em tempos míticos conquistados dos imi-migos, apesar de alguns terem sido dados voluntariamente, como aqueles relacionados ao complexo da jiboia e relacionados à fa-bricação da pele e ao controle do fluxo do sangue. Até mesmo as contas e o desenho do Inka foram doados, pelo menos em uma das versões do mito que apresentaremos a seguir.

A importância da sistemática sobreposição de discursos re-lacionados à produção de artefatos e à produção de corpos não pode ser subestimada e explica muito da peculiaridade do fazer artístico ameríndio. Do mesmo modo que a pintura corporal e a roupa, a decoração do corpo com miçangas, dentes e sementes aponta para o mesmo entrelaçamento de artefato e corpo, da fabricação interior de um corpo vivo e pensante e sua decoração exterior. Quem primeiro estabeleceu a ligação entre decoração interna e externa, por um lado, e entre decoração corporal e ca-pacidades agentivas e de pensamento, por outro, foi Joanna Overing para os Piaroa (1991). Uma crescente evidência etnográ-fica vem recentemente confirmar esta relação entre a constituição interna do corpo e sua aparência exterior, tanto com relação à maneira como artefatos e corpos são fabricados,13 quanto no modo de decorá-los para os Shipibo e Piro do Peru, e os Maru-bo, Nambikwara e Kaxinawa no Brasil14. No caso dos três primei-ros exemplos esta ideia se refere à presença de desenhos tanto dentro quanto fora do corpo da pessoa, assim como à possibili-dade do xamã visualizar desenhos invisíveis na pessoa, que re-metem a sua situação de saúde. No último caso o xamã é capaz de visualizar enfeites internos, vistos por ele como colares de

13 VAN VELTHEM, 2003; GUSS, 1989; LAGROU, 1998. 14 Ver respectivamente para os Kaxinawa, LAGROU, 1998; para os Shipibo, GEBHARD-SAYER, 1986; para os Piro, GOW, 2001; para os Nambikwara, MILLER, 2007.

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contas pretas dentro do corpo do paciente. O exame do colar informa o xamã sobre o estado de saúde do paciente.15

Assim como para os outros grupos citados, para os Kaxina-wa a relação entre capacidades interiores e decoração exterior não é de reflexão, mas de interação. Em uma das versões do mito de Bixku txamiya, “Bixku com chagas”, o herói, que foi abandona-do pelos parentes porque estes não aguentavam mais o fedor das suas chagas incuráveis, é curado ao se adornar com os enfeites do urubu-rei: O urubu-rei chegou belamente ornamentado. Vendo o homem convalescente, decidiu tirar sua roupa bonita (seu dau: ornamento, remédio, veneno) para poder comê-lo sem sujá-la. Neste momento, Bixku o atingiu com um pedaço de madeira, e todos os urubus, o urubu-rei na frente, fugiram com pressa. Bixku se cobre nos ornamentos-encantos, colares e cocares do urubu e se torna irreconhecivelmente esplêndido, curado.

Outra ocasião na qual pude observar a sobreposição entre as categorias enfeite e remédio, ambos chamados de dau, foi o caso de uma menina que sofria de frequentes ataques epilépticos e que recebia os cuidados permanentes de sua avó e xará. Todas as miçangas que a avó ganhava eram imediatamente passadas para a menina, pois esta precisava dos colares de contas multico-lores como proteção; eram seu dau, seu remédio. Por esta razão a menina usava mais colares que qualquer criança na aldeia. Seu rosto era também permanentemente tingido de vermelho com urucum. Essas medidas, aliadas aos constantes banhos medici-nais, tinham a intenção de manter à distância o duplo do animal vingador que estava tentando capturá-la através dos ataques fre-quentes, durante os quais o corpo da menina mimetizava nos seus espasmos as expressões faciais do duplo do animal que es-tava tentando impor sua forma sobre seu corpo.

É revelador que se utilizassem, nesse contexto, de contas de vidro, miçangas, provenientes do inimigo prototípico, o Inka que veio a ser suplantado mais tarde pelo branco. Para encontrar as contas as pessoas tinham que viajar para longe. Em um dos mitos sobre o tema, as pessoas viajavam pela floresta à procura de uma árvore gigante, “parecida com a samaúma” (xunu keska), carrega-

15 MILLER, 2007.

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da de belas miçangas coloridas. Esta árvore tinha sido plantada pelo Inka, que a guardava zelosamente. Interessante notar a asso-ciação sistemática entre contas e sementes. Em outro mito, os de-sejos conflitantes de um casal, o dele por dentes e o dela por con-tas de vidro, provoca sua separação. Ao andar pela floresta, ela na frente, ele atrás, ela sobe o barranco com a ajuda de um pau com-prido. O marido ao tentar segui-la, não consegue. Em outra versão ele escolhe outro caminho e, ao se dar conta de que perdeu a mu-lher, põe-se a chorar desesperadamente. O caminho escolhido pela mulher é o ‘caminho da miçanga’ (manendabanã), o caminho se-guido pelo marido é o ‘caminho dos dentes’ (xetadabanã).

A mulher, ao chegar à terra dos Inka, encontra grande quan-tidade de contas. A chegada é descrita nos seguintes termos:

Quando procurou e achou miçanga, foi enfiando a miçanga (em longas fileiras). Depois de enfiar a miçanga, dizem que colocou os enfeites de miçanga, se pintou com miçanga. Aí pendurou no corpo todo. Amar-rou o corpo com miçanga. Aí se pintou toda com miçanga (com listras na vertical). O nome dela é Mane tsauani (colocou a miçanga para sen-tar), mane betxia (encontrou miçanga), mane uinyani (foi procurar mi-çanga). (O canto) canta que encontrou miçanga, tudo isso é nome de-la.16

O amor dos Kaxinawa pela miçanga pode ser associado à sua fascinação com a beleza perigosamente atraente dos seus ‘outros’ poderosos. Enquanto algumas sociedades indígenas ma-nifestam sua repulsa pelo poder excessivo, pelo horror ao exagero ostensivo que recai, sobretudo, sobre as manifestações materiais17, os Kaxinawa cultivam uma admiração e desejo de fusão com seus emblemas de alteridade e de poder. A mitologia sobre o mais belo dos seres, o Inka (Inka hawendua) não se caracteriza pela rejeição, mas pela projeção de uma reunião final com esta divin-dade celeste, depois da morte. Sua beleza é o reflexo do seu po-

16 Leôncio Kaxinawa, Rio, 2008. (Tradução da Autora) 17 Este é o caso para os Piaroa (OVERING, 1985). A estética Piaroa parece ser uma afir-mação explícita sobre os perigos do poder cultural não controlado. Poder, quando fora do controle, se torna repulsivo em comportamento e forma. A beleza é associada com o moralmente correto e socialmente domesticado. O poderoso nunca é bonito em si; para tornar-se bonito, precisa ser constantemente limpo no luar pelos cantos do xamã. Este entendimento, de uma estética ligada de perto a uma ética e à vida social, é elabo-rado na mitologia Piaroa. Assim, seu Deus mais criativo e poderoso Kuemoi, era tam-bém o mais repulsivo de todos. (Ver LAGROU, 1997)

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der, conhecimento e saúde, e é expressa no uso da decoração corporal (especialmente na plumária, na pintura e nos colares). Sua aparência é tida como colorida e luminosa, uma energia visu-al que deriva do dua, brilho destes seres.

Os grupos de língua pano, como os Kaxinawa, são famosos pela abertura com relação à alteridade, constituindo um exem-plo eloquente da ideia de que o eu ameríndio é constituído pela incorporação do outro. Deste modo a maior parte das sociedades ameríndias situa no exterior a fonte de inspiração artística e cultu-ral. A obtenção e elaboração dos materiais vindos do exterior em materiais constitutivos da própria identidade grupal segue uma mesma lógica, quer se trate da incorporação de pessoas, qualida-des ou capacidades agentivas de pessoas (alma, canto, nome), ou de objetos. Estes elementos conquistados sobre – ou negociados com – o exterior precisam ser pacificados, familiarizados. Este pro-cesso de transformação do que é exterior em algo interior tem ca-racterísticas eminentemente estéticas.

O tratamento dado pelas diferentes sociedades indígenas à miçanga constitui uma manifestação específica da estética da pa-cificação do inimigo. A grande maioria das populações indígenas usa miçanga e a incorpora nas suas manifestações estéticas e ri-tuais mais significativas. Contra uma abordagem purista que vê na miçanga um sinal de poluição estética, resultante da substitui-ção de matéria-prima extraída do ambiente natural por materiais industrializados, partimos da própria concepção estética amerín-dia alheia a este purismo, para ver como objetos, matéria-prima e pessoas são por eles domesticados e incorporados através do processo da tradução e ressignificação estética. Objetos rituais e enfeites que contêm miçanga não devem, portanto, ser analisa-dos como hibridismos, mas como manifestações legítimas de modos específicos de se produzir e utilizar substâncias, matérias- -primas e objetos segundo lógicas de classificação e transforma-ção específicas. Porque assim como o conceito de incorporação da alteridade, enquanto processo de construção da identidade, o conceito de transformação tem grande centralidade na visão de mundo e práxis ameríndia: coisas e pessoas podem ser transfor-madas, domesticadas, pacificadas e incorporadas.

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O tema foi muito pouco estudado, apesar da presença os-tentativa da miçanga na decoração dos corpos no cotidiano e no ritual de muitos grupos indígenas, como no Xingu, nas Guianas, entre os Karajá, Kayapó etc. Mas assim como existe uma grande variedade de maneiras de conceituar, capturar, pacificar ou rejei-tar a pessoa do Outro, existem maneiras diferentes de incorpo-rar, rejeitar ou domesticar os objetos associados a este outro. É importante notar que não existe necessariamente uma corres-pondência automática entre a conceituação e o tratamento do Estrangeiro e o tratamento dos objetos a ele associados, no caso específico, da miçanga. Ao refletir sobre a elaboração, transfor-mação e ‘pacificação’ artística e semântica pelos ameríndios dos materiais obtidos através do contato com os brancos, podemos lançar uma nova luz sobre a temática da presença do branco e suas coisas no imaginário indígena.

Figura 39 – Tanga de miçanga carib, provavelmente tiriyó (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção particular da Autora (coletada por Galvão nos anos 40).

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Figura 40 a 44 – Braçadeiras kayapó-gorotire de miçanga usadas em evento no Museu do Índio (foto Els Lagrou).

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Esse tratamento pode ser lido, desta forma, como uma mani-festação específica da estética de pacificação do inimigo. Como disse Taussig,18 uma das maneiras de se obter poder sobre o inimi-go opera-se através da mimese da sua imagem. A incorporação da miçanga, matéria preciosa, não perecível e com cores vibrantes que nunca perdem seu brilho, e que representa capacidades técni-cas de produção que os indígenas não dominavam, pode seguir lógica similar. Adquire-se poder sobre o outro ao incorporar e do-mesticar esteticamente a matéria-prima por ele produzida.

Podemos dividir o tratamento da miçanga pelos indígenas ameríndios em duas categorias. Temos por um lado os grupos que incorporaram a miçanga de tal maneira na sua mitologia, ritual e arte, que ela, que precisa ser obtida através da troca com estrangei-ros, vem a significar o que existe de mais interior e mais valioso em uma sociedade: como a força vital, a percepção aguda, a durabilida-de dos ossos etc. Estes exemplos de qualidades atribuídas à miçan-ga, especialmente as de cor branca, podem ser encontrados ente os Kaxinawa, assim como entre os Huichol do México.19 As contas pro-tegem. Os poderes dos brancos encapsulados nos objetos que pro-duzem não são considerados patogênicos em si mesmos. Ganha-se poder sobre o outro ao imitá-lo, incorporando seus poderes.

Os grupos que incorporam a miçanga ao ritual e a sua esté-tica cotidiana, submetem esta matéria-prima a algum tipo de transformação. Em vez da transformação ritual, como acontece no Candomblé, onde a miçanga precisa ser ritualmente prepara-da, lavada e banhada (em sangue) para ser utilizada,20 vemos ope-rar entre os ameríndios uma pacificação estética: Usa-se a miçan-ga para tecer motivos próprios dos grupos em questão, como o fazem os Kaxinawa, Yawanawa e Ashaninka do Acre e os Shipibo do Peru, os Tirijó da região das Guianas, os Krahó do Pará e os Huichol do México. Em outros contextos, a miçanga é usada em grandes quantidades de acordo com a lógica cromática valoriza-da para o contexto. Exemplos são o uso em abundância de pesa-dos colares monocromáticos no ritual xinguano, azuis, vermelhos ou amarelos pelos Kayapó, vermelhos pelos Waiãpi.

18 TAUSSIG, 1993. 19 KINDL, 2005.20 GOLDMAN, 2008.

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Figura 45 – Pulseira krahó (foto Els Lagrou). Fonte - Coleção particular da Autora.

Figura 46 – Moça wauja com colar de miçanga azul (foto Aristoteles Barcelos).

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A outra possibilidade é a de associar os objetos do branco ao próprio poder de contágio do bran-co. Assim Dominique Buchillet21 analisa, entre os Desana, os mitos de origem da varíola e do sarampo como sendo a manifestação exte-rior das miçangas que, ao terem sido dadas às mulheres indígenas por mulheres brancas, penetraram sua pele e se exteriorizaram na for-ma de bolhas vermelhas na pele. O poder contagioso do branco acom-panha deste modo os objetos que emanam da sua ação.

Outro exemplo que trabalha o sentido da relação de contiguidade entre o branco e seus objetos, atra-vés do exemplo da miçanga, são os Wayana que representam, nos objetos feitos com miçanga, os próprios donos da matéria-prima usada: os predadores e inimigos, figuras que remetem ao mundo dos brancos. Deste modo os cintos dos homens, feitos com miçanga, representam um motivo listrado que remete tanto à sobrenatural cobra-arco-iris, quanto à bandeira do Suriname. Van Velthem fala de ‘objetos cativos’ e da necessidade de domesticação dos objetos in-dustriais. A miçanga, por outro lado, seria o único objeto de ori-gem ocidental que recebeu um mito de origem entre os Wayana.

21 BUCHILLET, 2000, p. 113-142.

Figura 47 – Jovem kayapó-gorotire com colar de miçanga vermelho (foto Els Lagrou).

Figura 48 – Wauja com cinto de mi-çanga (foto Aristoteles Barcelos).

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Não obstante esta incorporação, os Wayana compram livros ilustrados com motivos das mais variadas origens para obter inspiração para seu trabalho com miçanga, nos quais os motivos tradicionais não são utilizados. A matéria do outro remete ao uni-verso iconográfico do outro.22 No Xingu e entre os Kayapó-Goro-tire encontramos igualmente a presença de bandeiras e símbolos de times de futebol nos cintos tecidos com miçanga, o que parece sugerir uma lógica similar à praticada pelos Wayana.

22 VAN VELTHEM, 2000.

Figura 49 – Wauja com cinto representando a bandeira do Brasil (foto Aristote-les Barcelos).

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Figura 50 – Cinto kayapó-gorotire com bandeira do Brasil e cocar kayapó (foto Els Lagrou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

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cAPÍTuLO 3: AS ARTES LIGANDO muNDOS: ALTERIDADE E AuTENTIcIDADE NO muNDO DAS ARTES

A maioria dos povos ameríndios não guarda as peças, más-caras, adornos confeccionados de palha ou de penas, depois de tê-las usado nos rituais. Fora do contexto da encenação, elas perdem sua eficácia e seu valor, representam perigo, precisam morrer e são destruídas, desmontadas ou penduradas nas vigas das casas cerimoniais onde ‘morrem lentamente’. Entre os Wayana “máscaras, flautas e outros artefatos, após uso ritual, são amarrados e pendurados nas vigas da casa cerimonial para se desintegrarem lentamente sob os olhares da comunidade. Esses objetos são referidos especificamente como tukussipan-tak tagramai, ‘apodrecem pendurados na casa cerimonial’.”1

Grupos que possuem casas cerimoniais e participam do cha-mado ‘complexo das flautas’, como os Pareci do Mato Grosso, no entanto, guardam lá seus instrumentos musicais que devem ser diariamente alimentados com cerveja de mandioca. O hábito de fazer peças para a exposição e contemplação, sem usá-las ou alimentá-las, não existe em nenhum grupo indígena. Entre os Wauja o destino das máscaras difere do das flautas:

No caso das máscaras, passados alguns anos, elas são queimadas, cessando completamente as obrigações do “dono” do ritual de ofere-cer comida aos seus kawoká-mona e destes de retribuírem a comida com trabalho e/ou artefatos. Idealmente, o fogo não é o destino das flautas de madeira e dos clarinetes, uma vez que a imagem de durabi-lidade a eles associada concorre para a permanência de sua forma ri-tual. Os apapaatai mascarados pertencentes a um “dono” específico

1 VAN VELTHEM, 2003, p. 181.

[p. 64] Flechas kaxinawa com desenho (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção Schultz, MAE.

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terão a sua performance ritual realizada apenas uma única vez, en-quanto que as performances das flautas Kawoká e/ou dos clarinetes Tankwara de um “dono” específico poderão ser várias vezes repetidas até o fim da sua vida, ou ainda seguir sob os cuidados de seu(sua) herdeiro(a), caso este seja o seu desejo. A ideia de durabilidade repre-sentada pelas flautas Kawoká é de fato profunda. O caso dos buracos subaquáticos (memulu) feitos para guardar as Kawoká e máscaras de madeira (Yakui), por períodos de luto ou outra razão de suspensão temporária do ritual, é um exemplo interessante. O uso desses bura-cos vigorou até antes da segunda grande epidemia de sarampo, ocor-rida em meados da década de 1950. Meus informantes dizem que há muitas Kawoká e Yakui abandonadas em memulu, porém esses obje-tos rituais não podem mais ser resgatados, pois eles se tornaram “ob-jetos” perigosíssimos, capazes de matar quem os tocar. Sua letalidade surgiu em virtude do longo tempo em que permaneceram sem alimen-tos e cuidados. Eles se transformaram definitivamente em apapaatai-iyajo (monstros). Assim, o traço de familiaridade que havia neles foi inevitavelmente suplantado pelo retorno desses apapaatai à sua antiga alimentação de carnes e vegetais crus e/ou de sangue. Se um “dono” não quer mais alimentar os seus apapaatai, ele deve destruir seus ob-jetos rituais, sobretudo se estes forem flautas. Muitas vezes, quando alguém herda do pai ou da mãe um trio de Kawoká, preocupa-se ime-diatamente em consolidar as condições de alimentar os seus kawoká-mona. Caso o herdeiro pressinta que não terá sucesso em satisfazer as demandas alimentares de Kawoká, ele decidirá pela queima das flau-tas, oferecendo um último ritual, no qual receberá o último pagamento de seus kawoká-mona, sinal da dissolução completa da sua relação produtiva com esses mesmos kawoká-mona.2

Os contextos de uso e circulação das peças mudam de for-ma significativa quando objetos e artefatos entram no circuito comercial inter-étnico: tornam-se emblemas de identidade étni-ca, peças de museus ou ‘obras de arte’. Neste caso seu modo de agir sobre o mundo muda radicalmente e surge a questão da aplicabilidade de nossos valores com relação à importância da criatividade e da individualidade na produção artística, enquanto uma grande variedade de concepções nativas existe a este res-peito. Será que impacto estético e capacidade de inovação sem-pre andam de mãos dadas, ou pode nosso fascínio por artes que se desenvolveram fora da tradição erudita se explicar exatamen-te pela coerência do estilo como consequência da resistência à inovação excessivamente modificadora? E o que fazer com o ‘autor’ que vê o valor da sua obra na superação da criatividade individual em favor de outras entidades consideradas cultural-mente mais legítimas, entidades estas que lembram as musas

2 BARCELOS NETO, 2005, p. 220.

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da Grécia antiga? A construção da pessoa do artista é tão espe-cífica quanto a própria estética que produz.

Vários autores enfatizam a valorização indígena da manu-tenção sobre a acumulação como estando na base de uma filo-sofia política específica. Assim Clastres defende, em A Socieda-de contra o Estado, que a introdução da história e da mudança como valor, anda de mãos dadas com a produção de exceden-tes que visam à acumulação que, por sua vez, supõe uma divi-são de trabalho onde poucos se apropriam do trabalho de mui-tos.3 A produção de excedentes, além do necessário para consumo próprio da comunidade, é considerada consequência da introdução do Estado como instituição monopolizadora do exercício legítimo do poder e o fim da autonomia da sociedade indígena (comunidades por definição de pequena escala).

Na mesma linha de raciocínio, Overing mostra como a mito-logia Piaroa, com seus deuses criadores envenenados e enlou-quecidos pelo excesso de conhecimento e poder, constitui um discurso político que defende a manutenção de uma história não cumulativa entre os humanos, para garantir a harmonia social e impedir a volta da tirania dos tempos míticos, caracterizados por uma história cumulativa de grandes invenções e caos social. Esta valorização de uma história da conservação e da continuidade, em contraste com nossa valorização de uma história da ruptura e da descontinuidade com o passado, pode ser responsável por uma correspondente valorização de uma arte não cumulativa, uma arte da continuidade, a serviço de um determinado estilo de vida. Daí a recorrente resposta à pergunta sobre o significado de determinado motivo ou forma: ‘assim é nosso costume’.

A reflexão filosófica sobre a possibilidade de existirem so-ciedades que lutam contra o surgimento do Estado (assim como contra a razão econômica e contra a estética como locus privile-giado do surgimento do indivíduo) se insere numa tradição euro-peia de valorização da diferença. Na Europa, o debate sobre a aplicabilidade dos conceitos de arte e estética gira em torno da questão conceitual e diz respeito a nossa capacidade de conhecer o ‘outro’ e suas produções, chegando-se a defender inclusive o

3 CLASTRES, 2003.

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abandono do conceito ‘estética’ como conceito transcultural, por este ser demasiadamente específico.4

Assim, Overing5 toma como exemplo a sociedade piaroa e demonstra como para este povo a apreciação do belo e da criati-vidade não recai sobre uma área específica da atividade humana, mas engloba todas as áreas de produção da sociabilidade, desde a procriação, o filho sendo o ‘produto dos pensamentos da mu-lher’, aos processos produtivos da vida cotidiana. Por estética, ética e instrumentalidade não constituírem campos separados, a autora propõe chamar tudo ou nada de estética. Assim, o uso de colares e pinturas faciais com a tinta vermelha do urucum não visaria somente ao embelezamento, mas seria uma manifestação externa dos conhecimentos internos; conhecimentos estes que são guardados na forma de contas coloridas dentro do corpo. Estes conhecimentos são originalmente perigosos e venenosos e só se tornam bonitos pela moderação e autocontrole do indiví-duo. A beleza exterior e o cuidado com os ornamentos expressa-riam assim sabedoria e experiência. Somente um xamã poderoso e uma mulher com muitos filhos usam muitos colares entre os Piaroa. O argumento da presença de preocupações estéticas se encontrarem tanto na maneira de agir socialmente quanto na pro-dução de qualquer artefato – especialmente quando se trata do ‘artefato’ mais valorizado de todos: o corpo humano – vale para a quase totalidade dos povos ameríndios atuais, em geral, e para os indígenas brasileiros, em particular.

Mas, em vez de concluir que por esta razão não existe estéti-ca nem arte, poderíamos também dizer que, se todos os mem-bros ativos têm acesso ao processo de produção de objetos e à beleza resultante deste saber fazer, impregnando o cotidiano de uma comunidade com um estilo particular, todo membro desta sociedade é artista. Neste caso estaríamos usando uma defini-ção mais ampla de ‘arte’, derivada da palavra ars em Latim e anterior à especialização que a palavra sofreu durante o Iluminis-mo. Esse conceito se refere à capacidade consciente e intencio-nal do homem de produzir objetos e ao conjunto de regras e

4 INGOLD, 1996; GELL, 1996, 1998; BOURDIEU, 1979. 5 OVERING, 1991; 1996.

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técnicas que o pensamento usa para re-presentar a realidade e agir sobre ela.6 E, seguindo Boas,7 poderíamos dizer que todo controle de uma técnica traz consigo a fruição do aperfeiçoamento da forma, em termos funcionais, orna-mentais ou expressivos.

Podemos valorizar a elegância da forma que seduz pela economia e so-briedade com que assinala a função a ser desempenhada pelo objeto, dispen-sando qualquer detalhe supérfluo, como no design modernista. Como podemos, pelo contrário, achar que um objeto sem decoração não é um objeto completo e que é o desenho que o transformará em artefato capaz de agir com eficácia: como a flecha para matar um inimigo entre os Kaxinawa ou o banco do xamã para estabelecer contato com os seres sobrena-turais entre os Tukano.

6 SEVERI, C. 1991. 7 BOAS, 1955.

Figura 51 – Flechas kaxina-wa com desenho (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção Schultz, MAE.

Figura 52 – Banco tukano com porta-charuto (foto Márcio Ferreira). Fonte – Coleção do Museu do Índio.

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No contexto brasileiro, um grupo de antropólogos chamou a atenção, já em 1979, para a centralidade da corporalidade e da pessoa para as sociedades indígenas e notou a existência de uma complexa linguagem simbólica em torno da sua ‘fabricação’.8 O corpo e a pessoa não são concebidos como entidades bioló-gicas que crescem e adquirem suas características automatica-mente, por determinação biológica e genética, mas como verda-deiros artefatos, moldados e esculpidos ao modo e no estilo da comunidade. Daí a crucial importância dos ritos de passagem e dos períodos de reclusão para jovens em muitas destas socieda-des, especialmente rigorosos e longos no Xingu, pois é nestas ocasiões que a sociedade fabrica corpo e pessoa simultanea-mente. É por esta razão que praticamente toda a produção artís-tica dos indígenas brasileiros gira em torno da produção e deco-ração do corpo humano, de onde ressaltam especialmente a arte plumária, as pinturas corporais e as máscaras rituais, mas também os instrumentos para alimentar e hospedar este corpo, assim como os utensílios de obtenção dos alimentos.

Em congresso organizado em 1979 em torno deste mesmo tema da pessoa e do corpo, Lux Vidal apresentou os resultados da primeira pesquisa a decodificar de forma sistemática a ‘gra-mática’ da pintura corporal em um grupo indígena específico.9 A pintura corporal dos Kayapó-Xikrin (grupo Jê, Pará) é de fato um verdadeiro código visual a ser decifrado em todos seus deta-lhes, pois cada mudança no padrão da pintura assinala, além do sexo da pessoa, as fases percorridas em determinados estágios da vida, como na transição de um casal que teve seu primeiro filho: o padrão corporal muda, acompanhando a passagem do casal desde o período de reclusão até sua reintegração progres-siva nas atividades sociais da aldeia. Assinala igualmente, a par-tir ainda de outros padrões de pintura, as relações de proximida-de de outros parentes com relação ao casal e o recém-nascido.

Outros períodos de transição na vida, como a morte de um parente próximo, são igualmente assinalados através da mudan-ça da ‘segunda pele’, a pintura que cobre a pele como uma roupa,

8 SEEGER; DA MATTA; e VIVEIROS DE CASTRO, 1979. 9 Publicado depois em formato integral em Vidal, 1992, p. 143-189.

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todos os dias. Aqui também parece valer a regra de que as pinturas mais elaboradas são as de uso cotidiano, não as que marcam fases de liminaridade ou transição. As mulheres xi-krin passam horas por dia pin-tando seus filhos, parentes e amigos de ambos os sexos, le-vando a marca indelével de sua condição de artista na ‘mão palheta’ que está sempre pre-ta, tingida de jenipapo (maté-ria-prima usada na pintura cor-poral pela maior parte dos grupos indígenas brasileiros e ameríndios em geral).

Figura 53 (a) – A “mão palheta” das mulheres kayapó-gorotire em evento no Museu do Índio (foto Els Lagrou).

Figura 53 (b) – Pintura facial kayapó-gorotire em evento no Museu do Índio (foto Els Lagrou).

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Figura 53 (c) – Pintura na perna de Akiaboro em evento no Mu-seu do Índio (foto Els Lagrou).

Figura 53 (d) – Pintura corporal em Akiaboro em evento no Mu-seu do Índio (foto Els Lagrou).

A situação entre os Kayapó-Xikrin se assemelha à encontra-da entre os Kaxinawa, em que a pintura também desempenha o papel de segunda pele, usada no cotidiano assim como em fes-tas. Em rituais, no entanto, nos quais outros seres são presentifi-cados, como no katxanawa (ritual que visa à abundância dos ro-çados e à fertilidade do grupo), usam-se manchas, traços e pintas de urucum, aplicados em cima dos delicados labirintos pintados

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com jenipapo. Essas manchas remetem à pele dos animais da floresta ligados à metade das pessoas em questão. Folhas de pal-meira e máscaras de cuia para disfarçar as pessoas também são usadas. Aqui a pintura e os adornos servem para mascarar e transformar, não para adornar e embelezar. No Xingu, por outro lado, a pintura corporal somente é empregada em contexto ritual e representa, em contraste com os Xikrin e Kaxinawa, uma arte masculina em vez de feminina (veja fotos acima).

Figura 54 - Moça kaxinawa mascarada e tingida de urucum (foto Els Lagrou).

Figura 55 – Dança mascarada de mulheres kaxinawa – ni yuxin, espíritos da floresta (foto Els Lagrou).

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Mas concluiremos primeiro a discussão em torno da defini-ção do que se pode chamar de ‘arte indígena’. No debate em solo americano vemos surgir preocupações de natureza mais prática e política do que as constatadas no debate europeu, ou seja, a questão aqui se torna eminentemente relacional em vez de conceitual, pensa-se a relação ‘nós/outros’ e seus efeitos: como incorporar objetos provindos de outros contextos de pro-dução, apropriação e avaliação no campo específico da aprecia-ção estética metropolitana? A questão é muito atual, visto que a afirmação identitária de populações nativas no mundo inteiro tende a passar cada vez mais pela visibilização de sua cultura, de sua ‘autenticidade’ e vitalidade. Assim, se a discussão europeia concentra-se sobre o direito à diferença, veremos que o debate americano reclama o direito à igualdade na diferença.

Autores como Clifford, Marcus e Myers10 chamam a aten-ção para a simultaneidade e interdependência do nascimento da arte moderna e da antropologia enquanto disciplina. A antropo-logia teria dado aos artistas a alteridade que procuravam para se oporem ao establishment. A inspiração exercida pela arte escul-tórica africana, polinésia e ameríndia sobre os maiores artistas do movimento modernista, desde Picasso a Bracque e Max Ernst, é bem conhecida.11 Tendo em conta esta estreita relação histórica – quando Lévi-Strauss colecionava arte nativa nos anos quarenta em Nova York, ele estava acompanhado dos seus ami-gos surrealistas - Marcus e Myers afirmam que o dever da antro-pologia não seria o de se abster de qualquer julgamento, mas o de se unir à vocação da arte moderna e contemporânea de ser o motor de uma permanente ‘crítica cultural’.

Estas discussões têm influenciado curadores de museus e até hoje permanece uma tensão entre dois caminhos possíveis: o da inclusão da arte não ocidental em exposições de arte contem-porânea, ou seja, a exposição das peças como obras de arte úni-cas e não como objetos etnográficos, ou uma exibição mais con-textualizada que tente dar conta da especificidade dos critérios dos próprios produtores e receptores originais da estética local

10 CLIFFORD, 1988; MARCUS; MYERS, 1995. 11 LAGROU, 2008.

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em questão, que não necessariamente seguem os critérios dos críticos de arte para avaliar suas peças12.

Como vimos, o lugar que os objetos poderiam ocupar na escala valorativa instaurada pelo mercado das artes e pelos mu-seus não, necessariamente, pertence ao universo das intenções e valores nativos que podem visar a objetivos muito diferentes dos ligados à conquista de visibilidade ou afirmação de identida-de e ‘autenticidade’. Assim, a fonte de inspiração criadora ou a legitimidade de motivos e formas estilísticas costuma, no pensa-mento ameríndio, ser visto como originalmente exterior ao mun-do humano ou étnico, remetendo a conquistas sobre o mundo desconhecido, de vizinhos inimigos a seres naturais e sobrena-turais hostis e ameaçadores. Ao acompanhar a produção de uma coleção de máscaras para serem usadas em uma perfor-mance fora da aldeia e depois vendidas para uma coleção de museu, Barcelos Neto observa, no entanto, que a lógica das máscaras que funcionam como máquinas ou extensões do po-der de agência dos apapaatai, seus donos sobrenaturais, não é em nada afetada. O sentido da transação cosmológica, política e econômica presente nos rituais xinguanos, tanto com relação ao mundo político intra- quanto extraxinguano, não é abandonado, somente renegociado, e envolve o mesmo processo de paga-mento e de “desubjectivação” das máscaras depois do uso. Se depois do uso as máscaras seriam queimadas na aldeia, aqui elas serão guardadas em seu estado semimorto. Assim as más-caras ao chegarem à exposição não mais tinham seus dentes, e uma chegava até sem olhos. A máscara tinha, portanto, perdido grande parte do seu poder de agência.

12 Veja por exemplo os textos dos curadores Nelson Aguilar e José Antônio Braga Fer-nandes Dias no catálogo da Mostra do Redescobrimento, Artes indígenas, 2000.

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cAPÍTuLO 4: DESENhO E PINTuRA cORPORAL

No universo ameríndio res-salta a onipresença da figura da anaconda ou jiboia primordial ou sobrenatural como dono/a origi-nal de todos os motivos decorati-vos usados na pintura corporal, na pintura das panelas, no tran-çado dos cestos e na tecelagem de tecidos. Os diferentes mitos de origem do desenho relatam de modo diferente as estratégias de obtenção desta riqueza usa-das pelos primeiros humanos.1 O fato de existir, em todas estas cul-turas, uma associação entre de-senho e a sucuri, mostra que se trata de algo mais do que uma simbologia idiossincrática de uma cultura particular, trata-se de um dado transcultural amazôni-co, um símbolo-chave da região.

1 Kaxinawa (LAGROU 1991, 1996, 1997, 1998, 2007); Wayana-Apalai (VAN VELTHEM, 1998, 2003); Waiãpi (GALLOIS 1988, e 2002); Waurá (BARCELOS, 1999, p. 61); Desana (Tukano) (REICHEL-DOLMATOFF, 1978); Shipibo (ROE, 1982 e ILLIUS, 1987); Piro (GOW, 1988) etc.

Figura 56 – Os txoxiki, colares asha-ninka, representam a cobra (foto Sonja Ferson).

[p. 76] Desenho do cosmos: os caminhos são rios que rodeiam e ligam mun-dos ou ilhas diferentes (Arlindo Daureano Kaxinawa, 10/06/1991).

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Podemos contar, como exemplo, o mito de Tulupe-rê dos Wayana.2 Para os Wayana, Tuluperê – a cobra-grande – é o paradigma da predação. Em tempos pri-mordiais este ‘bicho’ sobre-natural impedia que os Wayana fossem visitar seus parentes, os Aparai que moravam do outro lado do rio. Cada vez que uma ca-noa ia visitar o pessoal do

outro lado, a cobra-grande vinha para virar a canoa. Quando mata-ram o inimigo tiveram tempo para observar os belos motivos em sua pele, que imitaram na manufatura do trançado em arumã. O Tuluperê na verdade tem uma dupla identidade, uma aquática, onde é a cobra-grande, e outra terrestre onde é a larva de borbole-ta, animal voraz que estraga os roçados e que representa a essên-cia predatória com igual virulência que a da cobra (veja figuras 15 e

23). Devoradores, predado-res, depois da transforma-ção, essas larvas assumem belas cores e voam. Beleza e perigo andam juntos, para os Wayana, e quanto mais monstruoso o ser mais este será decorado e belo. A arte é a reprodução controlada da imagem desses seres cujo poder de transforma-ção se captura através da sua imagem.

Entre os Wauja, por sua vez, a cobra-grande aparece na forma de cobra-

2 VAN VELTHEM, 1998, p. 119-127.

Figura 57 – Panela wauja com motivos de sucuri e dente de piranha (foto Aristoteles Barcelos).

Figura 58 - Cesto wayana com motivo da serpente sobrenatural dew duas cabeças (foto Márcio Ferreira). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

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canoa carregando panelas cantantes.3 Estas panelas tinham todos os motivos possíveis, que por sua vez foram derivados da pele da anaconda. O aspecto monstruoso da cobra está nas panelas, pois esses seres são os mais temidos monstros devoradores. Seu pe-rigo reside na transformação irreversível que impõem ao corpo. Uma vez devorado por um monstro-panela o ser não poderá ter vida post-mortem, visto que sua imagem também foi aniquilada.

A imagem está no âmago da relação dos Wauja com o além, para os quais a presentificação visual dos seres invisíveis asse-gura o bem-estar do indivíduo e da coletividade. Mas a imagem não veicula somente mensagens do além, ela está também co-lada aos corpos. Tudo que acontece com o corpo acontece com a alma e vice-versa. Desta maneira vemos surgir uma ideologia da ‘bela morte’ que não deixa de evocar os Gregos4 e a Europa do início da Idade Média5 para quem, como para os Wauja, um corpo mutilado condena a alma a um destino post-mortem de forma mutilada ou aniquilada.

Esta mesma distinção entre uma vida post-mortem ou a to-tal aniquilação é também responsável pela distinção entre dois tipos de seres sobrenaturais: aqueles que usam as máscaras como roupa podendo, também, assumir a forma humana, rou-bam almas que podem ser devolvidas através dos rituais estéti-cos apropriados; e os outros que, por não poderem mudar de corpo e nunca assumirem a forma humana, devoram sem mais nem menos, e estão acima de qualquer possibilidade de nego-

3 BARCELOS, 1999, p. 59.4 VERNANT, 1991. 5 RODRIGUES, 1979.

Figura 59 - Desenho da cobra kamalu hai com panelas cantantes nas costas. Fonte – Coleção Aristoteles Barcelos.

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ciação. Mais uma vez, capacidade de transformação, predação e beleza encontram-se ligados no universo indígena, conferindo um sentido todo particular à fabricação de artefatos e pinturas.

Continua, portanto, relevante voltar nossa atenção para con-textos nativos cuja produção ‘artística’ não segue as mesmas leis que as do Ocidente, não entra na lógica do mercado, e, às vezes, nem na da troca, e não funciona a partir da separação entre a vida cotidiana e a arte. Estudos sobre a relação entre a produção artís-tica e o quadro conceitual da sociedade ressaltaram particularida-des que contrastam com os cânones tradicionais da arte ociden-tal, exemplos, aliás, que são encontráveis também em manifestações da arte conceitual, com obras feitas para não se-rem vistas ou ouvidas ou ainda outras, produzidas para desapare-cerem ao final do processo de sua fabricação ou performance.6

Entre os povos ameríndios temos vários exemplos deste tipo de arte. Para a música podemos mencionar o uso do arco musical pelos Kaxinawa, Culina, Ashaninka e outros povos da região, onde a caixa de ressonância é a própria boca do tocador, o que faz com que a música seja quase imperceptível para pessoas que se encon-tram a mais de um metro de distância. Esta música é tocada para ser ouvida ou pelos espíritos ou somente pelo próprio tocador.

Muito da beleza que mora numa aldeia kaxinawa não é visí-vel a olho nu. No dia a dia só se veem fragmentos do seu caracte-rístico desenho labiríntico, cobrindo alguns rostos, faixas de redes e cestos. Algumas pessoas, principalmente crianças, usam tam-bém colares coloridos de miçanga e as mulheres braçadeiras, tor-nozeleiras e pulseiras de miçanga branca. Os corpos são cobertos por roupas marcadas pelo uso. Somente nas festas usam-se ou-tros adornos como cocares relativamente modestos, enquanto em algumas ocasiões, o líder de canto veste uma roupa ritual te-cida com os mesmos motivos geométricos da pintura corporal, roupa esta chamada de ‘vestido do Inka’.

Instrumento importante de acesso à visualização da beleza (propositalmente) oculta do mundo kaxinawa é a escuta atenta, uma escuta que supõe uma lenta familiarização com a língua e

6 GELL, 1998; CARPENTER, 1978; WITHERSPOON, 1977.

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com o rico imaginário que surge nas narrações míticas e espe-cialmente nos cantos rituais. A performance ritual dos Kaxinawa não é marcada pela exuberância visual dos adornos que carac-terizam muitos grupos indígenas do Brasil Central como os Kayapó ou os povos xinguanos, mas pela exuberância imagéti-ca, não representável, mas sistematicamente invocada nos poe-mas cantados em diversos contextos rituais. A realização estéti-ca kaxinawa não termina no lento cantar de um grupinho de pessoas num final de tarde observado pelo visitante, mas se re-vela nas imagens que surgem das palavras cantadas sobre um mundo habitado por seres imagéticos, ‘deuses’ ou ‘donos’ que povoam um mundo aquático e celeste, onde todos os seres são pintados e belamente ornamentados, onde todos são ‘gente de verdade’, ou seja, seres humanos perfeitos, belamente enfeita-dos. Estes mundos são celebrados em rituais coletivos e visita-dos em sonho ou em visões, não somente pelos xamãs, mas por todas as pessoas em potencial.

Um ritual específico, que implica a ingestão em grupo do alu-cinógeno chamado “cipó” ou nixi pae (cipó forte, ayahuasca) por homens e jovens adultos (raramente por mulheres por causa da sua susceptibilidade na idade reprodutiva), visa ao treinamento da visão que prescinde dos olhos e da luz do dia. Novamente, para o

Figura 60 – Jovem kaxinawa preparando o cipó (foto Els Lagrou).

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visitante desavisado, nada de muito visível acontece. As pessoas tomam um copo e se retiram para suas redes, onde começam a cantar de maneira cada vez mais candente, até que o canto se silen-cia. Através dos cantos e da visão provocada pela bebida cujo dono é a grande cobra mítica, Yube, a pessoa aprende através do yuxin, ou alma do olho, a ver o mundo que a luz do sol esconde: a outra face da floresta com seus animais, uma face onde ‘todos são gen-te’, onde os yuxin são belamente pintados, paramentados ou onde os duplos dos animais consumidos ressurgem para tentar cobrir com suas roupas os corpos dos humanos.

Os desenhos traçados pelas mulheres na pintura facial e os motivos tecidos nas redes são caminhos a serem visualizados pe-los homens ao entrarem em transe e ao escutarem o canto que delineia os passos a seguir, descrevendo a geografia cósmica que se desenrola frente aos olhos fechados do iniciado. A arte de ver beleza neste mundo não encontra, portanto, seu equivalente na expressão figurativa ou representativa kaxinawa. Trata-se por de-finição de uma visão do ausente, daquilo que foge da luz do dia e do peso de uma existência incorporada. É por esta razão que só existe um meio de expressão para esta experiência eminente-mente visual: o poema cantado que traça um caminho de pala-vras e sons para uma consciência ou alma que é considerada como tendo sua sede nos olhos e no coração. O desenho gráfico não representa os seres vistos em sonhos mas os caminhos que ligam e filtram o acesso a mundos diferentes.

Com relação às artes visuais surge a questão da percepção nativa que somente pode ser entendida se captarmos a maneira como o pensamento nativo concebe a realidade. Levando em conta a ênfase ontológica fundamental da concepção amazôni-ca do mundo, na constante transformação de um ser em outro, somos obrigados a reinterpretar a relação entre, por um lado, percepção e criação (com a percepção sendo, de alguma manei-ra, uma criação) e, por outro, entre aparência, ilusão e realidade. Encontramos nas reflexões de Schweder7 sobre estados da mente indicações que estão relacionadas a questões próximas a nossa problemática:

7 SCHWEDER, 1991, p. 37.

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Alguns argumentam, por exemplo, que a imaginação é oposta à per-cepção… Outros sustentam que percepção é uma forma de imagina-ção (como a afirmação de que a percepção visual é uma “construção”), enquanto outros argumentam que imaginação é uma forma de per-cepção (por ex., que o sonho é o testemunho de outro nível de realida-de). Outros ainda argumentam em ambas as direções, e de forma dia-lética, a favor da percepção imaginativa e da imaginação perceptiva.8

Um exemplo da relação entre percepção imaginativa e imaginação perceptiva pode ser encontrado em uma das características esti-lísticas mais marcantes do tecido desenhado, feito pe-las Kaxinawa: considerando que os padrões são inter-rompidos imediatamente depois de terem começado a ser reconhecíveis no pano tecido, precisa-se da capaci-dade imaginativa para per-ceber a continuação do pa-drão através de uma visão mental. A técnica sugere que a beleza a ser percebida no exterior está tanto, ou até mais presente no mundo in-visível ou no mundo das imagens a serem visualizadas pela criatividade perceptiva, do que na beleza externalizada pela produção artística.

A qualidade do desenho, através de um recorte arbitrário, su-gerir sua continuação ilimitada além do suporte foi notada também por Müller (1990: 232) na pintura corporal dos Asurini (grupo tupi do Pará). A autora usa o conceito “efeito-janela” (também usado por Dawson)9 para designar a impressão de um recorte em um desenho infinito. O estilo de pintura corporal dos Asurini lembra as

8 As traduções das citações são minhas. Ver Lagrou, 1998.9 DAWSON, 1975, p. 142-145.

Figura 61 – Saia kaxinawa (foto Els La-grou). Fonte – Coleção Schultz, MAE.

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gregas labirínticas da pintura kaxinawa e parece seguir princípios de significação cosmológica igualmente semelhantes. Entre os Asurini, Müller isolou um padrão de base (unidade mínima de sig-nificação), o tayngava (um ângulo de 90 graus), presente na maio-ria dos desenhos. Este padrão se refere ao boneco antropomorfo usado em ritos xamanísticos. A autora mostra como alma e ima-gem estão intimamente ligados na cosmovisão asurini.

Na mitologia, os heróis criadores são humanos; os animais têm forma humana e os espíritos atuais são antropomórficos. Dizem os Asurini, a respeito destes seres, que todos eram avá (gente, humano) no passa-do mítico. O homem, portanto, está no centro do pensamento asurini; o homem é a imagem do ser. Tayngava.10

10 MÜLLER, 1990, p. 250.

Figura 62 – Rede kaxinawa (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção particular da Autora.

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Os Kaxinawa não têm um padrão que iconicamente repre-senta formas ou elementos do corpo humano. O que o padrão representa é a relação: A necessidade de as linhas se tocarem para fazerem a união produz motivos recorrentes usados em redes e na cerâmica, como o xamanti kene. O verbo xaman significa

Figura 63, 64, 65, 66 – Quatro estampas, com motivo tayngava, desenhadas com jenipapo no papel. Fonte – Acervo do Museu do Índio.

Figuras 67, 68 – Duas panelas com desenhos tayngava. Fonte – Coleção Regina Müller. Acervo do Museu do Índio.

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“passar a mão na virilha”.11 Esta tradução encontra confirmação na tradução de xamanti que me foi dada por Paulo Lopes, pro-fessor kaxinawa de Moema: “colocar as coxas na pessoa; quan-do coloca, já está juntado”. Paulo fez um gesto que cruzava as mãos na altura do púbis, indicando que o local da junção das coxas com o tronco representava a junção ou continuidade das linhas no desenho. Estes verbos descrevem o ato de juntar e de envolver: o desenho une as linhas (a região da virilha une tronco e pernas), englobando outro desenho em seu interior. Paulo me explicou que “colocar as coxas na pessoa; quando coloca, já está juntado”, é um modo de se referir à união dos opostos. In-teressante notar que o próprio nome do desenho e a descrição do estilo, quando se diz que “tem que juntar as linhas senão o desenho não fica bom” remetem a esta união, a mesma imagem à qual remete o próprio corpo da jiboia: sua pele sendo a rede na qual o casal estava deitado na hora do dilúvio.

O motivo mais recorrente do seu estilo se chama nawan kene, desenho do estrangeiro, nome indicando que a inspiração

11 CAMARGO, 1995, p. 109.

Figura 69 (a) – Desenho em papel por Marlene Kaxinawa. Motivo xamanti kene. Fonte – Coleção particular da Autora.

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estética e a origem do desenho se encontram na relação com a alteri-dade (ver ilustrações acima). Um mito conta como ao namorar uma mulher Inka e vencer o marido desta numa luta, o herói foi pintado pela amante com belos desenhos em jenipapo. O mito de origem da bebida alucinógena nixi pae assinala novamen-te a fonte do desenho e da beleza no mundo de relações amorosas com estrangeiras. Desta vez o caçador se apaixona pela mulher-anaconda ao vê-la fazer amor com uma anta. O ho-mem, no entanto, não vê uma cobra, mas a percebe na forma de uma bela mulher toda desenhada com belos desenhos em jenipa-po. O mito de origem do desenho, por outro lado, conta como foi que uma velha ensinou à primeira mulher os desenhos da tecela-gem. Uma outra versão do mesmo mito, no entanto, invoca nova-mente a imagem do namoro com um belo estrangeiro todo pinta-do, para dar início ao aprendizado de uma arte que vai constituir o traço mais marcante do estilo kaxinawa.

O que vale frisar na arte gráfica dos Asurini e dos Kaxinawa é que ela serve para assinalar uma ligação e continuidade com o mundo de seres não humanos: o mesmo desenho cobre seres humanos e ‘espíritos’. Assim como acontece entre os Wayana-Apalai e os Waiãpi, a arte gráfica destes povos fala mais sobre a cosmologia que sobre as diferenças internas à comunidade en-tre diferentes grupos rituais. Se a pintura corporal e a utilização dos adornos dos grupos Jê12 funciona como um código de leitu-

12 Como os Bororo, Xikrin e Xavante; VIDAL, 1992.

Figura 69 (b) – Panela kaxinawa com o moti-vo xamanti kene (foto Els Lagrou). Fonte – Coleção Schultz, MAE.

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ra de distinções sociais, em grupos amazônicos, os mesmos materiais tendem a servir de ligação com o mundo dos seres invisíveis. Vale lembrar, por outro lado, que a origem dos nomes e enfeites entre os Kayapó aponta igualmente para o mundo ex-terior. Uma nova leitura desse material pode, portanto, mostrar que os Jê, apesar de sua comprovada espeficidade, são mais amazônicos do que se pensa.13

A pintura facial e corporal dos Kadiwéu, índios cavaleiros do Mato Grosso na fronteira com o Paraguai, segue ainda outra lógi-ca. A análise feita por Lévi-Strauss14 desta pintura muito original mostra como a regra de composição do desenho no rosto, divi-dindo a área desenhada em dois (split representation), seria um comentário visual sobre a tensão inerente à divisão social da so-ciedade kadiwéu em três clãs endogâmicos, relacionada à alter-nativa observada entre os Bororo de uma divisão em metades. As metades dos Bororo permitiriam uma maior reciprocidade entre os grupos, enquanto a divisão em três que excluía a possibilidade

13 GORDON, 2006.14 LEVI-STRAUSS, 1955, p. 205-227.

Figura 70 – Desenho facial kadiwéu (foto Darcy Ribeiro). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

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de casamento entre os grupos produzia uma clivagem na socie-dade hierárquica dos Kadiwéu. Assim a arte criaria uma solução imaginária, desempenhando uma função social compensadora. A composição complexa do desenho com seus arabescos desi-guais, por outro lado, refletiria a característica essencialmente aristocrata da sociedade. Refletiria, em outras palavras, a maneira como os Kadiwéu sentiam e percebiam seu mundo.

Outra característica desta arte seria sua função ‘civilizadora’. As ‘aristocráticas’ kadiwéu teriam tal resistência aos processos naturais que preferiam adotar os filhos de suas servas a ter que pari-los e alimentá-los por si mesmas,15 preferindo passar os dias embelezando seus rostos e corpos com elaborados arabescos. Quem não tivesse seu rosto pintado com estes desenhos se en-contraria mais do lado da natureza do que da cultura. Segundo Lévi-Strauss, o desenho ocultava os traços naturais do rosto em vez de realçá-los pela mesma razão: a intenção era a de aplicar um padrão cultural tão poderoso sobre a superfície natural que a transformaria de tal maneira que se tornaria irreconhecível. Esta era a função civilizadora do desenho kadiwéu, uma ‘segunda pele’

15 LEVI-STRAUSS, 1955; RIBEIRO, D. 1980.

Figuras 71, 72, 73 – Desenho de Solange Kadiwéu, padrão de desenho facial em jenipapo sobre papel. Fonte – Acervo do Museu do Índio (coleção Darcy Ribeiro).

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como entre os Kayapó-Xikrin, Kaxinawa e tantos outros, por ser-vir mais como roupa do que como máscara, apesar de Lévi-Strauss chamar toda pintura facial indígena de máscara por causa da sua função transformadora em relação ao rosto.

Para os Kaxinawa e para a maior parte dos grupos amerín-dios, no entanto, a função do desenho não é a de dis-tinguir humanos de ani-mais e sim o de marcar a especificidade da produ-ção estética e corporal ka-xinawa, diferente de todos seus vizinhos. O que, por outro lado, é interessante notar é que nenhuma das pinturas segue a lógica da nossa cosmética: não real-ça os olhos ou a boca, sua-vizando ou realçando tra-ços naturais do rosto, mas impõe outro padrão, pro-duzindo desta maneira uma relação muito dinâmi-ca entre o elemento plásti-co e o gráfico. Ambos os elementos são ativos e o efeito estético se deve a esta tensão: a desigualda-de da superfície à qual o motivo é aplicado e o desafio de manter a coerência do motivo, não permitindo que se perca a ideal distância entre as linhas. Por isso a técnica da pintura facial ou corporal não tem nada a ver com o desenho em papel ou o mecanismo da projeção de um slide sobre um corpo. Um slide distorceria a relação interna entre as linhas do padrão e é disso que trata a pintura indígena; é uma pintura elaborada na sua relação com os corpos aos quais será aplicada e que desta maneira ajudará a completar.

Figura 74 – Desenho de Solange Kadiwéu, padrão de pintura corporal em jenipapo so-bre papel. Fonte Acervo do Museu do Índio (coleção Darcy Ribeiro).

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Figura 75 – Padrão de pintura corporal kadiwéu na cerâmica (foto Már-cio Ferreira). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

Figura 76 – Padrão de pintura corporal kadiwéu no couro (foto Els La-grou). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

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Para os indígenas, povos tradicionalmente ágrafos, a arte segue a lógica do aprendizado em geral. Mais importante que a maneira como o conhecimento é estocado em objetos externos é o modo como as pessoas o incorporam, tanto o conhecimento social quanto a arte de viver bem e sem doença. Assim, para os Kaxinanwa, arte é, como memória e conhecimento, incorporada, e objetos não são senão extensões do corpo, ou melhor, são no-vos quase-corpos resultando do encontro de diferentes agências responsáveis por sua produção. Esta prioridade explica porque as expressões estéticas mais elaboradas dos grupos indígenas são ligadas à decoração corporal: pintura corporal, arte plumária, colares e enfeites de miçanga, roupas e redes tecidas com elabo-rados motivos decorativos. Os Kaxinawa não estocam a maior parte de suas produções artísticas. Como muitos outros grupos indígenas, estão convictos de que objetos rituais perdem seu sen-tido e sua beleza, sua ‘vida’, depois de terem sido usados. Um exemplo é o banco ritual usado pelos iniciantes kaxinawa durante o rito de passagem. Se durante o ritual o banco é belamente pin-tado e pode somente ser usado pelo(a) iniciando(a), depois ele se torna um simples banco, com a decoração desaparecendo lenta-mente, podendo ser usado por qualquer homem (no cotidiano mulheres não sentam em bancos, mas em esteiras).

Entre os Tukano, por outro lado, o banco, usado pelo xamã, nunca deixará de ser um banco com fins exclusivos de uso ritual. É nele que o xamã senta para fumar seu charuto, que não segura com as mãos, mas com um ‘porta-charuto’, belamente esculpido em madeira16 (veja figura 52). Esta é a posição propícia para ele se comunicar com os seres não humanos que habitam os patamares acima da terra. A fumaça do cigarro ajuda seus pensamentos a subirem e alcançarem os deuses. Ao se sentar no banco, fuman-do, o xamã repete o gesto criador da mãe do mundo – Yebá Bëló criou o mundo pensando e fumando.

Voltando ao significado da decoração de objetos e corpos, vale ressaltar ainda outro aspecto igualmente recorrente nas artes decorativas da Amazônia, além da dinâmica relação entre o ele-mento plástico e o gráfico. Tanto na cestaria quanto na pintura cor-

16 MURRAY VINCENT, 1986.

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poral – e, entre os Kaxinawa, na tecelagem – nota-se uma dinâmica relação entre figura e fundo, uma qualidade cinética da imagem que não permite ao olho decidir sobre qual perspectiva adotar. A troca de perspectiva entre fundo e figura, ao se observarem os pa-drões labirínticos típicos da cestaria de muitas sociedades amazô-nicas, foi percebida na análise da “arte abstrata” shipibo (grupo pano, Peru) por Roe, e entre os Yekuana (grupo Karib, Venezuela, região das Guianas) por Guss. Peter Roe chamou atenção para a correspondência entre este estilo artístico e um estilo de pensa-mento.17 Para Roe a significação da ambiguidade perspectiva na arte indígena “abstrata” repousa no que ela nos fala sobre a atitude cognitiva do artista e do público pretendido. Para os ameríndios o universo é transformativo. Isso significa que a visão pode, repenti-namente, mudar diante de nossos olhos. O mundo é composto por muitas camadas, os diversos mundos são pensados enquanto si-multâneos, presentes e em contato, embora nem sempre perceptí-veis. O papel da arte é o de comunicar uma percepção sintética desta simultaneidade das diferentes realidades.

17 ROE 1987, p. 5-6.

Figura 77 – Cesto kaxinawa com desenho em relevo (foto Els Lagrou). Fonte - Acervo da Autora.

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Figura 78, 79 – Tecidos shipibo (fotos Els Lagrou). Fonte - Acervo da Autora.

O estilo geral de desenho kaxinawa, designado kene kuin (desenho real ou ‘de verdade’) é similar ao estilo do trançado yekuana. O jogo entre imagem e contraimagem expressa a ideia de duplicidade e copresença das imagens reveladas e não revela-das no mundo. Neste sentido, a ontologia kaxinawa é totalmente dependente e ligada ao real processo perceptivo em que um agente particular esteja engajado. Uma característica propriamen-te kaxinawa, no entanto, é o de inserir, num padrão aparentemen-te simétrico, um elemento assimétrico que propicia unicidade e movimento à peça, além de em alguns casos levar à transforma-ção de um padrão em outro. O dinamismo da imagem leva a

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constatações sobre o esta-tuto da imagem entre os Kaxinawa. O quadro de re-ferência conceitual kaxina-wa gira em torno de três categorias diferentes de imagem: o grafismo (kene), concebido como um traça-do de caminhos; a figura (dami), essencialmente tri-dimensional, e a imagem/espírito da coisa (yuxin), uma foto, uma sombra ou uma aparição. Estes três termos podem se transfor-mar uns nos outros, e man-têm relações específicas com artefatos e pessoas, ressaltando mais uma vez a importância da transformabilidade do mundo nesta cosmologia ameríndia.

Figura 80 – Vaso shipibo (foto Els Lagrou). Fonte - Acervo da Autora.

Figura 81 – Munti deteya, máscara dentada ka-xinawa, figura dami (foto Els Lagrou). Fonte – Acervo da Autora.

Figura 82 - Boneco (brinquedo) kaxinawa, dami. Fonte – Acervo da Autora.

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Figura 83 – Panela kaxinawa com desenho, kene, em negativo (foto Els Lagrou). Fonte - Coleção Schultz, MAE.

Figura 84 (a, b, c, d) - Sequência de pintura facial kaxinawa (foto Els Lagrou).

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Peter Gow foi o primeiro a chamar atenção para a recorrên-cia da oposição entre desenho e imagem na arte da Amazônia ocidental, e associou a importância do desenho nestas culturas, onde “desenhos são visualmente compulsivos, no sentido de fo-calizar a atenção sobre a superfície contínua da forma corporal”18 à importância que nelas se dá aos processos corporais. Vale lem-brar que a oposição entre imagem e desenho não é nova nem específica para a Amazônia, sendo que grande parte da obra de Boas19 discorre sobre a diferença entre estes dois tipos de grafis-mos por ele chamados de ‘arte ornamental’ versus ‘arte expressi-va, representativa ou simbólica’.

Mas mesmo aqui não é possível generalizar. Se os Kaxinawa e outros grupos pano, além dos Piro e Wauja, ambos arawak, usam termos diferentes para conceitualmente distinguir grafismo de fi-gura, enfatizando desta maneira o caráter não representacional do primeiro e comparando-o com a escrita dos brancos, outros

18 GOW, 1988, p. 19.19 BOAS, 1955.

Figura 85 – Siã Osair Kaxinawa filmando (a filmadora é chamada de yuxinbiti, cap-turador de yuxin) Pancho, liderança de Cana Recreio, que se prepara para cobrir o kene kuin (desenho verdadeiro) com pintas de urucum (aplicando o padrão da onça, dami) no ritual do katxanawa (foto Els Lagrou, 1989). Note-se a presença si-multânea de três tipos de imagem: kene, dami e yuxin.

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grupos só conhecem um conceito para designar desenho. Este é o caso dos Wayana, dos Waiãpi e Asurini.20 No caso destes grupos, percebemos uma maior continuidade conceitual entre decoração ‘abstrata’, onde o nome do motivo não é mais que um nome, ou seja, um termo técnico para se referir a um padrão, e de-coração figurativa cujo referente tem uma importância semântica. Assim o elemen-to mais básico e abstrato da arte Asurini, o motivo tayngava, um ângulo de noven-ta graus, ainda manteria a referência icô-nica ao corpo de um ser antropomorfo. Já entre os Kaxinawa, as referências são de natureza mais abstrata: não somente todos os motivos gráficos se encontram na pele da anaconda primordial, mas es-sas marcas representariam também en-tradas ou portas para a visualização de todas as possíveis figuras que finalmente levariam à revelação dos seres sobrena-turais. Os desenhos são caminhos, tra-ços, indícios desse poder imagético do qual a cobra primordial é dona, através dos desenhos ou das visões.

Na região das Guianas, assim como no Alto Rio Negro , a arte de trançar cestos é uma atividade masculina. Ao se sentar com os mais velhos e aprender a arte de trançar cestos, Guss21 descobriu que a vida para os Yekuana é como o trançado, ou, em outras palavras, que o trançar era a metáfora chave da vida para este povo e que fragmentos e partes do mito de ori-

20 Wayana (grupo Karib, VAN VELTHEM, 1998: 119); Waiãpi (grupo tupi, GALLOIS, 2002); Asurini (grupo tupi, MÜLLER, 1990). 21 GUSS, 1989.

Figuras 86 e 87 - Pinturas em gua-che sobre papel, por Arlindo Dau-reano Kaxinawa, demonstrando a relação transformacional entre kene, grafismo e dami, figura na experiência visionária com cipó. Na primeira, desenho do cos-mos: os caminhos são rios que rodeiam e ligam mundos ou ilhas diferentes (10/06/1991). Na se-gunda, mundos diferentes são pintados como casas com portas de entrada e saída, interligadas por caminhos. Arlindo chamou seu desenho de nawan kene pua (desenho de estrangeiro / inimi-go, cruzado). Coleção particular da autora.

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gem eram trançados, proferidos e cantados pelos velhos todos dias, no crepúsculo, quando sentavam juntos num círculo. Por cau-sa de sua estreita ligação com a mitologia, os motivos trançados nos cestos pelos homens wayana-apalai (Pará), contêm muitos ele-mentos figurativos, representando seres sobrenaturais, animais e seus alimentos, permitindo assim uma leitura iconográfica rica e precisa. Assim, por exemplo, se representa a larva de borboleta/serpente sobrenatural através da duplicação da sua cabeça, en-quanto a diferença entre o quatipuru sobrenatural e a onça pintada sobrenatural é assinalada pela inversão da posição da cauda.22

22 VAN VELTHEM, 1998, p. 142-143.

Figura 88 – Cesto wayana com padrão merí, quatipuru sobrenatural (foto Márcio Ferreira). Fonte – Acervo do Museu do Índio).

Figura 89 – Cesto wayana com padrão kai-kui, jaguar, onça sobrenatural, na faixa de baixo; e a serpente sobrenatural de duas cabeças na faixa de cima (foto Márcio Fer-reira). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

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Os Wayana afirmam que “na vida cotidiana só se reproduz os tempos primevos em parcialidade” porque “a reprodução inte-gral de um artefato representa uma possibilidade de irrupção da sobrenaturalidade na vida humana, o que é desejável unicamente durante os rituais”.23 Assim a produção da máscara Olok24 é con-siderada muito perigosa e é cercada de cuidados. Olok representa Olokoimë, o senhor das águas, ente sobrenatural que reúne em si todas as doenças conhecidas aos Wayana, por esta razão é chama-do de “o monstruoso dos monstruosos”. Ele é profusamente ador-nado e dança em ritual sem fim na sua morada no lago. O excesso, também em termos estéticos, é o sinal da sua importância sobre-natural. Esta máscara desempenha papel importante no rito de passagem dos meninos que ‘trocam de pele’ através do uso da máscara assim como da aplicação do vesicatório, uma luva com tocandiras, vespas e abelhas, representando a síntese predatória da ação dos inimigos e sobrenaturais25.

23 VAN VELTHEM, 1995, p. 63. 24 Idem, 1998, p. 121. 25 VAN VELTHEM, 1995, p. 108.

Figura 90 – Cesto wayana com padrão merí, quatipuru sobrenatural (foto Márcio Ferreira). Fonte – Acervo do Museu do Índio.

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Percebe-se que qualquer abordagem mais conceitual do sig-nificado do estilo decorativo nos leva a discussões cosmológicas sobre a concepção e organização do mundo nativo. Assim como entre os Wayana, as imagens para os Kaxinawa não somente fa-lam, mas também agem. Visto que o principal espírito (yuxin) do ser humano é o bedu yuxin (espírito do olho) e que os desenhos tecidos nas redes funcionam para este como caminhos (bai), o desenho pode acabar interagindo com o estado de agonia de um doente, levando-o para o ‘caminho dos mortos’.26

É, portanto, importante frisar a qualidade de agência atribu-ída, não somente aos adornos gráficos, pintados e tecidos nos objetos e corpos, mas aos próprios artefatos, cestos, panelas ou máscaras. Assim, a arte de produzir máscaras assume, entre os Wauja, o caráter de uma atividade que, no caso da manipulação de desenhos pelo xamã shipibo, já foi chamada de ‘terapia estética’.27 Mais do que equivalentes indígenas ao campo da moda e do estilo, onde a pintura corporal surge como substituto da roupa,28 a pintura corporal wauja e as ‘roupas’-máscaras sur-gem aqui no contexto do ritual e da cura; são, portanto, másca-ras que modificam a identidade de seu portador e presentificam outros seres, como a máscara Olok entre os Wayana.

A cultura xinguana, da qual os Wauja fazem parte, ressalta como uma das mais estetizadas das culturas indígenas do Brasil contemporâneo. A uma configuração pluriétnica que há muito substituiu a guerra por um complexo sistema de troca ritual, co-mercial e matrimonial se juntou uma conjuntura histórica que per-mitiu aos povos do Alto Xingu uma dedicação quase exclusiva à ‘política imagética’, tanto nas suas intensas relações intertribais encenadas numa vida ritual profusa, quanto nas suas relações com a sociedade nacional, onde a importância da visibilidade es-tética da identidade étnica foi entendida muito antes desta estra-tégia se tornar moda29. E assim o Alto Xingu se tornou o cartão postal da indianidade autêntica brasileira.

26 Veja também KEIFENHEIM, 1998. 27 GEBHARD-SAYER, 1986 28 VIDAL, 1992; MÜLLER, 1991. 29 BASTOS, 1989.

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Não somente estão as imagens dos rituais xinguanos entre as mais conhecidas dos indígenas brasileiros na mídia nacional e internacional, também sua produção artesanal está entre as mais representadas em coleções museológicas e comerciais. A esta hipervisibilidade, entretanto, não corresponde uma possível fol-clorização ou perda de significado. Pelo contrário, a análise destes mesmos rituais filmados por equipes de televisão nacionais e in-ternacionais, mostra o quanto sua eficácia permanece ativa. A criatividade imaginativa é atribuída aos xamãs que sabem visuali-zar em seus sonhos os seres invisíveis, apapaatai, donos dos mo-tivos decorativos e das doenças, e que, por esta razão, funcionam como fontes de novas expressões visuais. É a própria etiologia e cura das doenças que impele os Wauja à atividade artística, pois sua cultura imagética não visa somente a visualização, mas tam-bém a expressão e confecção dos apapaatai. Num primeiro mo-mento o xamã identifica o causador da doença através da sua imagem em miniatura no corpo do doente, enquanto num segun-do a cura consiste na fabricação da sua ‘roupa’, a máscara através da qual será oferecida uma festa pelo próprio doente, visando apaziguar o causador da doença que roubou sua alma. Ao dar-lhe a chance de se visualizar com toda presença teatral que uma per-formance ritual xinguana permite, o apapaatai causador da doen-ça torna-se o aliado de sua vítima e anfitrião.

Tivemos a oportunidade de frisar no decorrer deste texto o quanto, no universo indígena brasileiro, a fabricação de artefa-tos, grafismos e pinturas está ligada à fabricação de corpos e pessoas. Para concluir, vale a pena realçar um último paralelo entre ambos, que diz respeito ao estatuto do objeto para além da função para a qual foi criado ou do destino do seu dono. As-sim como pessoas, objetos têm seu tempo certo de vida que varia segundo a sociedade e o objeto em questão. Assim exis-tem artefatos que não sobrevivem ao seu uso durante o ritual e outros que são usados pelo dono até morrer para serem destru-ídos depois ou enterrados com o dono.

Assim, a vida dos artefatos tende a seguir na Amazônia um ritmo diferente do que ocorre, por exemplo, na Melanésia onde os colares e braceletes do kula sobrevivem por muito tempo à morte biológica dos seus donos, tornando-se extensões de sua

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pessoa que mantêm sua lembrança viva e que vêm a esta jun-tando outras lembranças de uma rede de relações e interações, gravadas na superfície patinada e polida do objeto, que quanto mais velho, mais valioso se torna30. Na Amazônia, a lógica da relação entre os objetos e seus falecidos donos é, geralmente, outra. O destino dos objetos segue o do seu dono: quando o corpo se desintegra e as almas têm que partir, tudo que lembra o dono, e que pode provocar seu apego, precisa se dissolver ou ser destruído (com exceção de alguns objetos e bens de origem branca como espingardas, que podem receber destinos varia-dos dependendo do grupo, mas que serão preferencialmente passados adiante antes da morte)31. Existem, entretanto, exce-ções; assim, as flautas pareci funcionam mais como estátuas africanas, que através da sua sobrevivência garantem a continui-dade do laço com seu antigo dono, do que como partes da pes-soa que precisam desaparecer junto com o defunto que ao mor-rer se torna uma ameaça à vida na aldeia. A imagem da flauta, mesmo se for preciso refazê-la periodicamente, não pode nunca abandonar os descendentes dos donos e precisa ser continua-mente alimentada como se fosse uma criança, senão se vingará, causando morte na família de seu dono.32

30 MALINOWSKI, 1976; GELL, 1998.31 Referência clássica nesta discussão é Os mortos e os Outros, de Carneiro da Cunha, M. (1978). Muitos outros trabalhos seguiram que confirmam o mesmo padrão para ou-tros povos ameríndios.32 Minhas observações sobre as flautas pareci derivam de curta exploração de campo (na aldeia e durante a visita dos Pareci a minha casa), à comunicação pessoal de Marco Antonio Gonçalves, que trabalhou com os Pareci, e ao trabalho de Romana Costa. Com relação à durabilidade da flauta, lemos em Costa que “Quando os instrumentos enve-lhecem devem ser trocados, isto é, seus donos deverão ir até um local, designado “ta-quaral sagrado”, situado nas proximidades do Rio Juruena e do paralelo 14, para coletar novas taquaras. Antes de retirá-las, deverão fazer uma oferenda para “acalmar” os guar-diões” (Costa,1985, p.117; apud Aroni, Bruno, 2009, ms ).

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cONcLuSãO

Propomos neste livro a exploração das consequências teó-ricas de um olhar etnológico para as artes indígenas. A especifi-cidade deste olhar reside em não tomar como referência nenhu-ma definição de arte previamente dada, seja ela estética, interpretativa ou institucional. Visamos deste modo a uma revo-lução copernicana para a arte, equivalente àquela operada por Pierre Clastres para a política. Em A Sociedade contra o Estado, Clastres mostra que poderemos entender as estruturas políticas do igualitarismo ameríndio apenas se invertemos a perspectiva através da qual olhamos para as políticas ameríndias. Ao tentar entendê-las a partir da nossa política centrada na figura do Esta-do e da coerção, somente poderemos vê-las sob a ótica da falta: sua política não (ainda não) é como a nossa. Se, no entanto, in-vertermos a perspectiva, podemos ver as nossas sociedades de Estado como especificidades históricas e, portanto, passíveis de desaparecer. Ao olhar para nossa sociedade, tendo as socieda-des ameríndias como referência, os critérios de avaliação neces-sariamente mudam.

O mesmo pode ser feito com a Arte. Se olharmos para a Arte como uma arte de construir mundos, e não mais como um fenô-meno a ser distinguido do artefato – uma esfera do fazer associa-da ao extraordinário, que para manter sua sacralidade precisa ser separada do cotidiano – a relação cognitiva é invertida. Ao inver-ter figura e fundo revela-se outra figura, outro fundo. Nada na forma nem no sentido ou contexto das coisas as predispõe a uma classificação como arte ou não. Deste modo podem ser obras de arte corpos humanos esculpidos pela intervenção ritual, cuja for-

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ma é esculpida tanto pelo canto, quanto pelo banho medicinal, a dieta e a modelagem mais propriamente física (que pode consistir em diferentes técnicas de produção de um corpo/pessoa consi-derado belo; ética e esteticamente correto).

O resultado é que o corpo se torna artefato conceitual e o artefato um quase corpo e que os caminhos seguidos por cor-pos e artefatos nas sociedades vão se assemelhando cada vez mais. Outro resultado é que funcionalidade e contemplação se tornam inseparáveis, resultando a eficácia estética da capacida-de de uma imagem agir sobre e, deste modo, criar e transformar o mundo.Se a arte, a nossa e a dos outros, fascina é porque não podemos nunca parar de sonhar a possibilidade de criar novos mundos. Esta possibilidade da coexistência e sobreposição de diferentes mundos que não se excluem mutuamente é a lição ainda a ser aprendida com a arte dos ameríndios.

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ORIENTAçÕES PEDAGÓGIcAS

Lucia Gouvêa Pimentel e William Resende Quintal

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Atualmente, segundo o ISA (Instituto Socioambiental), exis-tem no Brasil 227 povos indígenas somando 600.000 pessoas falantes de mais de 180 línguas e dialetos.1 Cada povo tem sua cultura, tradição, cosmologia e sua arte.

No livro Arte Indígena no Brasil, Els Lagrou começa abordan-do a importância do movimento da arte moderna e do pensamen-to etnológico para o reconhecimento, por parte das culturas oci-dentalizadas, da riqueza e autonomia de formas de arte que não necessariamente obedecem ao mesmo recorte conceitual das modalidades artísticas das tradições ocidentais. Isso não quer di-zer que nas culturas indígenas brasileiras não haja separação ou limites entre os saberes, mas que nesses grupos as classificações e modalidades seguem ordens de classificação que diferem inclu-sive de uma cultura indígena para outra.

Seguindo uma pista sugerida por Alfred Gell, Els Lagrou res-salta as propostas de Duchamp, ao citar a importância da sua obra na expansão do conceito de arte como era ocidentalmente pensado até meados do século XX. Em sua abordagem, aponta para uma das questões mais significativas da obra de Duchamp (p.4), que, segundo o historiador da arte Thierry De Duve, é o pa-pel do observador na atribuição de sentido artístico aos objetos. Em termos breves, De Duve propõe que a obra de Duchamp abre, para a cultura ocidental, a possibilidade de se etnodescentralizar ao identificar a mutabilidade e mobilidade do conceito de arte ao longo da chamada história da arte, ou mesmo, na dimensão espa-cial ao longo da própria superfície do planeta. De Duve, afirman-do que “arte é o que os seres humanos chamam de arte”2, reafir-ma a proposta duchampiana de deslocar para o observador o critério para o estabelecimento do estatuto da obra de arte.

Assim, ao revisar conceitos tradicionais e locais que expli-cam o lugar e o que caracteriza o fazer artístico em várias culturas indígenas amazônicas, Els apresenta um quadro multifacetado de possibilidades poéticas de originalidade e sofisticação tal, que de certa forma explicam a impropriedade com a qual muitas dessas

1 http://www.socioambiental.org/pib/portugues/quonqua/quantossao/indexqua.shtm Acesso em 11 de agosto de 2008. 2 DE DUVE, Thierry: Kant after Duchamp. NY, October Books, 1995, p.5.

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formas de fazer arte foram e têm sido tratadas desde os primeiros contatos com pesquisadores ocidentais.

A apresentação de dados etnográficos riquíssimos dá uma pequena amostra da variedade e riqueza de algumas dessas cul-turas, reforçando a necessidade de um olhar contemporâneo na tentativa de se estabelecerem pontes, ou pontos de contatos in-terculturais para uma aproximação mais consciente, o que se da-ria a partir de um raciocínio etnodescentralizado.

Els também deixa claro, pela proliferação de exemplos, que, no estudo da arte indígena brasileira, o caráter específico da produ-ção de cada etnia deve ser observado, e a generalização evitada a todo custo. Os estudantes devem entender que cada povo e tradi-ção desenvolve conhecimentos complexos acerca do mundo, da natureza e de sua relação com tudo isso. É importante também caracterizar quais modalidades artísticas são as mais proeminentes na concepção de cada povo e por quê.

Hoje, graças aos movimentos em defesa dos direitos indíge-nas no Brasil, livros e vídeos escritos e dirigidos por indígenas podem ser obtidos com relativa facilidade. Um dos primeiros do-cumentários em vídeo sobre a realidade indígena brasileira – pro-duzido e editado em estreita colaboração com indígenas –, Índios no Brasil, está disponível para downloads na internet no www.dominiopublico.gov.br e pode ser um apoio numa primeira apro-ximação dos estudantes com o tema.

Além disso, OnGs (Organizações não Governamentais) in-digenistas como o CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Fer-reira da Silva) e o ISA (Instituto Socioambiental) mantêm sites infor-mativos sobre as questões sociais que envolvem a realidade atual dos povos indígenas brasileiros, tornando possível que professo-res das áreas de História, Geografia e Sociologia trabalhem conjun-tamente com a área de Arte. É importante que qualquer atividade proposta não deixe de ser desenvolvida numa relação em que as disciplinas, de forma igualitária, forneçam aos estudantes possibili-dades de aprofundamento que sejam significativas, através das abordagens específicas de cada área do conhecimento.

Geralmente ao se visitar uma exposição de arte indígena, ao se ouvir uma apresentação musical ou mesmo se presenciar

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uma performance de dança típica, esse aspecto da cultura da-quele povo está deslocado de seu contexto original e provavel-mente a partir de um recorte que obedece a um critério não in-dígena. Por exemplo, a dança desvinculada do ritual, da caça ou daqueles a quem faz referência; os objetos ritualísticos aparta-dos daqueles que os guardam, ou em situações estáticas, quan-do seu uso seria constante etc.

Por isso, o estudo do livro permite a compreensão da ne-cessidade fundamental de se contextualizar toda produção artís-tica indígena antes de uma aproximação, qualquer que seja, mesmo que – assim como fizeram os modernistas – desse con-tato advenha uma produção que se aproprie de um ou outro aspecto da experiência.

Na busca de pontos de contato com a natureza das produ-ções, com as quais os estudantes podem se deparar numa ex-posição, a diversidade e o caráter altamente relacional das cultu-ras ameríndias podem ser aspectos interessantes a serem abordados, uma vez que, para muitos povos, o ambiente social não se limita apenas ao convívio humano, mas se estende aos animais, plantas e até mesmo rochas. Nesse ambiente altamen-te relacional, muitas das composições artísticas são atribuídas a entidades não humanas, como no caso dos inhamis – cantos sagrados dos Maxakalis do Estado de Minas Gerais – que são dados pelos espíritos dos animais, o que não tira seu caráter artístico pelas atribuições que esses cantos recebem de suas comunidades e participantes.

O caráter resistente dessas culturas a todo apelo assimila-cionista das culturas ocidentais envolventes é outra faceta inte-ressante para o trabalho em história e sociologia, ao passo que a ressignificação de elementos da cultura industrial dentro das culturas tradicionais é relevante para o estudo das propostas de Duchamp. Pode-se correlacionar o comportamento de grupos descritos no livro – como no exemplo das miçangas (p.28 – 34) – e registros fotográficos de artistas como: Milton Guran, José Medeiros, Claudia Andujar, Miguel Rio Branco, Assis Hoffann, Rosa Gauditano e Antônio Gaudério.

Do contato com as obras desses artistas é possível extrair debates sobre o antigo conceito de aculturamento em contrapo-

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sição à ideia de uma negociação cultural, que pode se dar esté-tica ou socialmente e, mesmo que agressiva, nunca de forma plenamente passiva pelos indígenas.

Caso seja possível o acesso a vídeos, é importante privile-giar aqueles de autoria indígena, e procurar acompanhar o re-corte temático do vídeo na proposta de atividades e no debate com os estudantes, estabelecendo pontos de contato. A produ-ção de trabalhos deve acompanhar a proposta conceitual e de forma alguma ser uma reprodução estereotipada de ornamen-tos tradicionais. Ao se deparar com o tema pinturas corporais e utensílios de uso pessoal, é indicado explorar com os estudan-tes de ensino fundamental os paralelos existentes em sua cultu-ra, quais são as pinturas corporais socialmente aceitas no seu grupo, quem as usa, quais as cores mais significativas para seu grupo, quem as usa e quando etc.

É interessante que o professor crie atividades de acordo com as demandas dos estudantes, de forma a possibilitar a ex-ploração de um aspecto da produção do grupo escolhido para estudo. Assim, o trabalho terá a possibilidade de se desenvolver de forma mais aprofundada, evitando a generalização de grupos étnicos, muitas das vezes, bem diferentes.

Para muitos dos povos apresentados no livro, o resultado fi-nal se resume ao evento para o qual o objeto artístico foi propos-to, no caso, o processo ritualístico é mais importante que a obra acabada, que é “meio morta”. Essa valorização do processo em detrimento do objeto tem sua raiz na importância da performance para as culturas ameríndias, o que remete a uma certa prodiga-lidade3 com relação a bens manufaturados, que é contrastante com o desejo de acúmulo de culturas não indígenas. Dessa for-ma, igualmente, o registro do processo tem sido um ponto de contato crucial, uma vez que a arte contemporânea, cada vez mais, retira o foco do objeto e passa ao processo o status de obra, vide happenings, performances, instalações, vídeoinstala-ções, web art etc., espaços em que, não surpreendentemente, artistas indígenas com propostas multimeios têm se destacado.

3 VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma do selvagem. São Paulo, CosacNaify, 2002.

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Sugestões de Atividades

Els Lagrou nos indica alguns aspectos importantes para es-boçarmos um recorte para as estratégias de criação artística de povos ameríndios. Esses aspectos podem ser caminhos para possíveis abordagens com os estudantes.

1) Arte é conhecimento

1.1. Fazer um inventário de imagens esquemáticas de ani-mais e plantas do seu relacionamento, tanto daqueles com os quais convive quanto daqueles dos quais se alimenta.

1.2. Fazer um inventário de imagens esquemáticas de al-guns dos instrumentos necessários para acessar essas plantas e animais.

1.3. Fotografar e/ou escanear a produção, e tentar criar composições que sintetizem essa relação. Comentar sobre a in-trincada rede que conecta todos esses elementos.

1.4. Criar estampas com os signos criados e com o mapa conceitual que conecta esses elementos.

1.5. Propor um mapeamento de elementos da sua própria cultura que não são originários do seu próprio grupo.

1.6. Procurar uma pessoa mais velha que possa contar como foi o seu contato com alguns desses elementos exógenos e quando foram incorporados à sua cultura.

1.7. Tentar descobrir se existe algum aspecto original da sua cultura que foi incorporado por uma outra.

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2) Experimentação X excelência

2.1. Tentar estabelecer as formas de arte da sua cultura que demandam o exercício e a experimentação.

2.2. Procurar artistas que trabalham baseando seu proces-so criativo na experimentação e outros que se baseiam no aper-feiçoamento de técnicas tradicionais. Busque ressaltar o valor criativo na pesquisa poética de cada um deles e, se possível, visite exposições.

2.3. Conversar com os estudantes sobre o lugar do mestre numa cultura tradicional e perguntar quem seriam chamados mes-tres em alguma modalidade artística do seu grupo e por quê.

3) Roupa do dia a dia e roupa de festa

3.1. Fazendo uma analogia entre as pinturas corporais e as roupas das culturas ocidentalizadas, promover uma discussão sobre os aspectos utilitário e artístico no vestuário.

3.2. Depois de estabelecer o cotidiano dos vestuários no dia a dia dos estudantes, promover uma produção de desenhos ou pin-turas com novas propostas de vestuário para os usos relacionados pelos próprios estudantes. Esses projetos podem incluir propostas de acessórios como piercings ou outras formas de pinturas corpo-rais diferentes das maquiagens ocidentais. Contrastar roupa de uso cotidiano e diferentes usos rituais de roupa e explorar a ideia da roupa como instrumento, extensão do corpo, em contraste com a ideia da roupa como representação do grupo social.

3.3. Discutir sobre a importância da aparência e da função das indumentárias no seu grupo cultural e avaliar as propostas dos desenhos da turma a partir das conclusões. Perguntar se a

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roupa é uma segunda pele e propor novos trabalhos a partir desse conceito.

4) Mitos fundadores

4.1. Definir mitos fundadores (contar com a ajuda do pro-fessor de Filosofia), e pedir aos estudantes para descreverem os mitos fundadores dos grupos aos quais pertencem.

4.2. Propor que, individualmente ou em grupos, os estu-dantes apresentem um mito fundador que seja importante para seu grupo. Caso a turma seja homogênea, dividir em grupos com partes do mito.

5) Relações

5.1. Fazer uma pesquisa na internet sobre a arte indígena e localizar, próximo à sua cidade, um Museu referente aos índios. Se for possível, programar uma visita a esse Museu. Registrar as infor-mações sobre a cultura dos diferentes grupos indígenas.

5.2. Propor à turma desenhos que estabeleçam pontos de contato e divergência entre suas culturas e aquela apresentada.

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GLOSSáRIO

Abduções - Abdução é um termo derivado da semiótica e se refere a uma operação cognitiva particular. A abdução é um tipo de inferência, uma hipótese que se formula a partir de uma per-cepção que comporta certo grau de incerteza. Quando vejo fu-maça, posso abduzir a existência de fogo. A fumaça, no entanto pode possuir outras causas. A abdução comporta portanto uma área cinza de incerteza, diferentemente da língua falada ou da matemática. A inferência abductiva de Gell parte de um objeto que é interpretado como um índice da agência de alguém. O modo de a arte agir sobre a pessoa se situa, segundo Gell, no campo da experiência intersubjetiva em que uma imagem sem-pre remete a um artista que a fez com determinadas intenções, ou a alguém que a encomendou ou ainda à pessoa representada na imagem. A obra age na vizinhança de pessoas e será lida como índice da complexa rede de agências à sua volta.

Agência - Veja capacidade agentiva.

Arte conceitual - A Arte Conceitual significa o deslocamento da obra de arte enquanto objeto físico para o conceito, visando o estudo da linguagem artística, sua natureza e sua função no cir-cuito mercadológico. Distinguimos duas vertentes da Arte Con-ceitual: aquela que se identifica com os projetos, os processos, os jogos mentais e as associações, denominada de Arte Projeto; e aquela que se volta para a sua própria auto-reflexão, desven-dando a estrutura específica da arte, ou seja, a sua natureza e a sua função. O exemplo dessa segunda vertente é o trabalho pio-neiro de Kosuth, que desde 1966, refletiu sobre a questão da arte enquanto ideia, estabelecendo uma dicotomia entre percepção e

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concepção. Kosuth é o representante mais significativo da re-vista inglesa, Art & Language, veiculo de divulgação da Arte Conceitual. Mas o precursor da Arte Conceitual foi Marcel Du-champ, considerado o primeiro artista contemporâneo a ques-tionar o formalismo e a colocar a importância do conceito nas artes visuais. Segundo Kosuth: “A partir dos ready-mades de Duchamp a arte deixou de enfocar a forma da linguagem para preocupar-se com o que estava sendo dito, o que, em outras palavras, significa a mudança da natureza da arte de uma ques-tão de morfologia para uma questão de função”.1

Capacidade agentiva - A capacidade do objeto agir sobre o mundo à sua volta. Conceito introduzido por Alfred Gell em seu livro chamado Arte e agência (Art and Agency, 1998).

Connaisseur - O connaisseur é o ‘Conhecedor de arte’, uma pa-lavra de origem francesa que se refere a um especialista que pos-suiria o ‘dom’ do bom gosto que lhe permitiria distinguir entre obras medíocres e artisticamente poderosas. Os connaisseurs pertencem geralmente à alta elite cultural e foram expostos desde jovem a obras e discursos sobre arte, tendo deste modo adquiri-do um habitus, um costume tão enraizado que se tornou como uma segunda natureza, que consiste em saber avaliar intuitiva-mente o valor artístico de uma obra com alto grau de segurança (vide Price, Sally, 2000). Esta categoria de especialista ganha um valor especial no campo constituído em torno da chamada Arte Primitiva, tendo em vista que neste caso se trata da avaliação do valor artístico de peças de origem étnica cuja procedência é pre-ferencialmente anônima. Ou seja no caso da chamada ‘Arte Primi-tiva’ o dom do connaisseur substitui o do artista anônimo na sua capacidade de intuição estética. Em meio a um amontoado de peças étnicas de autoria desconhecida o connaisseur escolherá aquelas que possuem valor artístico e lhes atribuirá um alto valor monetário. (Para uma discussão pormenorizada da instituição do connaisseur de Arte Primitiva na França ver Price, 2000).

1 KOSUTH, Joseph. Arte depois da filosofia. In: Malasartes, Rio de Janeiro, n.1, set./out./nov. 1975, p.11.

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Eméticos - compostos de plantas que provocam o vômito. O uso de eméticos como método de purificação corporal é muito difundido entre os indígenas brasileiros.

Etiologia - teoria sobre a causação das doenças.

Etnocentrismo e eurocentrismo - Etnocentrismo se refere à ten-dência de um povo de considerar seus próprios valores melhores e mais defensáveis que os de outro povo. Alguns autores consi-deram um certo grau de etnocentrismo uma característica univer-sal de todas as culturas. Se duvidássemos de tudo que fazemos não seria possível sobreviver. O conceito etnocentrismo, no en-tanto, é mais comumente usado para se referir às atitudes negati-vas frente a toda diferença cultural, e essas atitudes podem variar enormemente. Algumas culturas têm se mostrado muito mais re-ceptivas que outras a ideias e valores vindos de outros lugares. As culturas Ocidentais têm sido caracterizadas por um marcado grau de etnocentrismo, atitude esta que tem motivado sua rela-ção com os ‘novos’ mundos descobertos e conquistados. Se em um primeiro momento houve maravilhamento e surpresa por parte dos descobridores, as atitudes de abertura foram rapida-mente substituídas por empreitadas proselitistas e anexionistas. A conversão de outros povos à religião professada pelo conquis-tador constituía parte integrante da política de conquista. O Euro-centrismo é uma versão do etnocentrismo, significando uma vi-são que considera a civilização europeia como superior a outras culturas.

Etnografia - A etnografia é a escrita de uma monografia sobre um grupo estudado tomando como base dados obtidos a partir do método da ‘pesquisa de campo’. (Ver pesquisa de campo).

Etnologia - A etnologia é a elaboração teórica e comparativa de dados obtidos a partir da pesquisa etnográfica. Ultimamente a etnologia veio a significar uma subárea de especialização dentro da antropologia que se dedica ao estudo de grupos étnicos (mi-norias que se encontram dentro de nações estados). Os grupos estudados pela etnologia tendem a ser grupos de pequena esca-la, vivendo em aldeias e falantes de língua minoritária. No Brasil o campo de estudo da etnologia diz respeito às populações indí-genas. Se os conceitos de etnografia e pesquisa de campo ga-

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nharam uma aplicação e acepção bem maior que aquele que originalmente descrevia a pesquisa com grupos étnicos de pe-quena escala, o conceito etnologia continua se aplicando so-mente a esta subárea da pesquisa antropológica.

Inter-étnico - referente ao contato entre diferentes etnias.

Pesquisa de campo - A pesquisa de campo é o método de pes-quisa que caracteriza a antropologia enquanto disciplina e con-siste na vivência do antropólogo no lugar de sua pesquisa. A pesquisa de campo se diferencia da pesquisa baseada em entre-vistas e questionários, porque alia a observação prolongada à participação e ao diálogo, visando deste modo uma apreensão global e em profundidade do local sob estudo. O método cons-titui de certo modo um antimétodo na medida em que o objetivo é o de superar sistematicamente todas as ideias, questões e hi-póteses preconcebidas antes da pesquisa e exploração do cam-po, no intuito de apreender do modo mais fiel possível ‘o ponto de vista do nativo’ sobre as questões abordadas pela pesquisa. O uso do conceito ‘pesquisa de campo’ para os pintores impres-sionistas é no sentido metafórico, para chamar a atenção para a semelhança entre os antropólogos que faziam pesquisa de cam-po e os pintores que saíram para a rua para pintar, por um lado, e entre os pintores de cavalete e os antropólogos de gabinete, por outro. Se o primeiro grupo ia à procura de um conhecimen-to novo sobre o mundo, deixando para tras seus gabinetes e ateliers, os primeiros abordavam o mundo a partir dos escritos e das imagens produzidos por seus predecessores.

Representação desdobrada - Fenômeno encontrado em várias artes étnicas e conceituado primeiramente por Franz Boas (em Primitive Art, 1927) e depois por Lévi-Strauss (1955, 1958) e que consiste em motivos constituídos de metades que se espelham mutuamente.

Sociocêntrico - Termo sociológico que designa uma das duas orientações possíveis nas ações dos indivíduos: a sociocêntrica e a egocêntrica. A orientação ou escolha sociocêntrica é guiada por fatores sociais, enquanto a escolha egocêntrica é centrada em valores e motivações que dizem respeito ao indivíduo.

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Termos intraestéticos - Uso de linguagem técnica que visa a explicar as características das obras de arte a partir de uma lógica interna ao campo da arte, sem relacioná-la ao campo extra-artístico.

Valor produtivo - Ver ‘capacidade agentiva’.

Valor representativo - o valor iconográfico de uma imagem que representa algo exterior a si mesmo.

Visão “representativista” - Vertente que valoriza a representa-ção, a reprodução realista daquilo que é representado, nas artes plásticas.

Zarabatana - Arma de caça cujo uso é difundido entre os indíge-nas da região amazônica e que consiste em um longo tubo atra-vés do qual flechas venenosas são propulsadas.

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arte Indígena no Brasil · 127

AS DIfERENTES ETNIAS ESTãO INSERIDAS NO mAPA

1. Araweté2. Ashaninka3. Bororo4. Culina5. Kadiwéu 6. Kaxinawa7. Kayapó-Gorotire8. Kayapó-Xikrin9. Krahó10. Marubo11. Nambikwara

12. Paresi13. Piaroa14. Pirahã15. Piro16. Shipibo17. Tirijó18. Waiãpi19. Wauja20. Wayana21. Yawanawa22. Yekuana

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A presente edição foi composta pela Editora C/Arte com tipologia Zurich BT. Im-pressão realizada pela Gráfica e Editora O Lutador.