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TICA & SUSTENTABILIDADE

Minas Gerais 2012

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UNIDADE 1 TICA .............................................................................................................................. 4 Introduo ........................................................................................................................................... 4 Exerccio para reflexo ............................................................................................................................ 7 tica Relatividade versus Universalidade .......................................................................................... 8 tica na Modernidade ........................................................................................................................ 10 Concluso .......................................................................................................................................... 14 Exerccios resolvidos .............................................................................................................................. 15 REFERNCIAS ..................................................................................................................................... 17 UNIDADE 2 TICA EMPRESARIAL ..................................................................................................... 19 Introduo ......................................................................................................................................... 19 tica empresarial na prtica ............................................................................................................... 21 Exerccio tcnico digressivo ................................................................................................................... 27 Concluso .......................................................................................................................................... 29 Exerccios resolvidos .............................................................................................................................. 31 REFERNCIAS ..................................................................................................................................... 33 UNIDADE 3 SUSTENTABILIDADE ...................................................................................................... 34 Introduo ......................................................................................................................................... 34 Pilares da Sustentabilidade (Triple Bottom Line) ................................................................................ 37 Pegada Ecolgica ............................................................................................................................... 38 Exerccio tcnico de aprendizado .......................................................................................................... 40 Capitalismo Natural e o Paradoxo de Jevons ...................................................................................... 40 Complexidade e Ciberntica ............................................................................................................... 42 Economia tradicional x FIB ................................................................................................................. 44 Do bero ao bero .............................................................................................................................. 46 Concluso .......................................................................................................................................... 48 Exerccios resolvidos .............................................................................................................................. 49

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REFERNCIAS ..................................................................................................................................... 51 UNIDADE 4 SUSTENTABILIDADE CORPORATIVA ............................................................................... 53 Introduo ......................................................................................................................................... 53 Cadeia de valor e Ray Anderson ......................................................................................................... 54 Exerccio de imaginao ........................................................................................................................ 56 Ferramentas de Gesto ...................................................................................................................... 57 Greenwashing tudo ou nada?! ........................................................................................................ 62 Negcios inovadores rumo a uma economia na sustentabilidade ...................................................... 65 . Concluso .......................................................................................................................................... 66 Exerccios resolvidos .............................................................................................................................. 67 REFERNCIAS ..................................................................................................................................... 69 UNIDADE 5 TICA E SUSTENTABILIDADE .......................................................................................... 70 O encontro da tica com a sustentabilidade ....................................................................................... 70 O Paradoxo de Gramsci ...................................................................................................................... 71 Controle versus vulnerabilidade ........................................................................................................ 72 Sistemas Cardicos ............................................................................................................................ 73 Resumo da unidade 5 ......................................................................................................................... 76 REFERNCIAS ..................................................................................................................................... 77

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UNIDADE 1 TICA A tica a esttica de dentro. (REVERDY, 1948) Introduo Antes de iniciar nossa conversa sobre tica, preciso definir o termo e, na medida do possvel, contextualizar seu uso. So feitos diversos usos do termo tica, dos mais populares aos mais acadmicos. No preciso ir longe para encontr-lo em diversas notcias do dia a dia, como mostram os exemplos abaixo, que resultaram de uma rpida busca pelo termo na Internet. Fidel Castro acusa EUA de falta de tica por corte de recursos da Unesco. Conselho de tica decide se deputado pode ser cassado por ato anterior ao mandato. Comit de tica da FIFA investiga mais dez dirigentes. Muitos fatores nos direcionam necessidade de tica empresarial, no apenas como estratgia de marketing, mas tambm como necessidade social. Popularmente, tica, moral, carter, honestidade, decoro, entre outras tantas palavras, tm sido utilizadas como sinnimos. No bastasse essa miscelnea, a prpria definio da palavra tica parece depender de contextos histricos e da capacidade de filosofar dos que a utilizam. Como afirma Valls (1994, p. 7), "a tica uma daquelas coisas que todo mundo sabe o que so, mas que no so fceis de explicar, quando algum pergunta." Entre as diversas definies de tica, uma parece figurar fora do mbito das contradies, a de que a tica viabilizaria ao ser humano realizar o bem. O filsofo Scrates, considerado o pai da tica, entendia que bastava ao ser humano compreender o que bondade para que viesse a pratic-la (PLATO, 2008). Aristteles, por outro lado, acreditava que a bondade deveria ser praticada para que a virtude pudesse ser alcanada (ARISTTELES, 2006). De uma forma ou de outra, ambos (e no apenas eles) concordavam que a bondade seria um caminho para a felicidade. Scrates, Plato e Aristteles tinham algo em comum quanto aos temas que se relacionavam tica acreditavam que a felicidade residia na bondade (GOMES, 2000). Para Kant (1827, p. 90), a

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moral, propriamente dita, no a doutrina que nos ensina como sermos felizes, mas como devemos tornar-nos dignos da felicidade. Ora, sendo a felicidade a busca de todo ser humano, como postula Fbio Konder Comparato (2006, p. 17), j que (...) nunca se ouviu falar de algum que tivesse a infelicidade por propsito ou programa de vida, ento a tica constituir-se-ia na ferramenta ideal para indicar, atravs da bondade, o caminho para a felicidade. Modernamente e de maneira mais simples, a tica tem sido definida como o estudo do comportamento moral dos humanos em sociedade (CHAU, 2000). Dessa forma, a tica localizar-se-ia no campo da teoria, enquanto a moral estaria presente no campo da prtica (COSTA et al., 1997). Alguns autores, como Singer (1993), optam por considerar tica e moral como sinnimos. Neste curso, no entanto, consideraremos a tica como o campo de estudos que tem por objeto a moral, concordando, assim, com a ltima definio citada, a de Marilena Chau. Pois bem. Para ns, ento, a tica ser entendida como um campo de estudos que estuda a moral e que, de certa forma, delimita o campo da bondade e, consequentemente, o da maldade. Fonte: Mixagem grfica do autor. Mas como fazer para saber o que uma atitude moral? Bem, de maneira prtica, costuma-se dizer que uma atitude condiz com a moral quando no nos sentimos culpados ao relat-la a outra pessoa. Voc no sentiria culpa, por exemplo, ao contar a um amigo que beijou uma amiga dele, no entanto o mesmo no aconteceria caso a pessoa beijada fosse a namorada desse amigo. Como ento so formados os valores morais e como eles se relacionam com a tica? A moral tende a se formar na prtica, no realizar dos atores sociais e na consequente aprovao ou desaprovao dos atos realizados. No final do sculo XX, por exemplo, era possvel fumar dentro de um avio (isso era totalmente legtimo para os valores morais da poca); hoje, contudo, com as

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descobertas da medicina e os avanos nos direitos humanos, esse comportamento vai de encontro aos valores morais que preconizam a sade e o respeito ao prximo. Tal atitude, portanto, tornou-se imoral. Ento, os valores morais se desenvolvem atravs da legitimao de comportamentos, atitudes e experincias por determinados grupos sociais, e tais valores podem se diferenciar entre os grupos. Assim, inquestionvel a afirmao de que a moral relativa (CORTELLA, 2010). Conforme so definidos os valores morais, possvel dizer que eles influenciam na construo da tica, que, por sua vez, ao estudar a moral, acaba por se basear na prtica (moral) para criar sua teoria. Portanto, a tica tambm influencia a moral, uma vez que a partir dos princpios ticos que, na prtica, fazem-se escolhas morais ou imorais. A tica cede os princpios tericos que fornecem os bons valores do ser humano para a ao em sociedade. MORAL TICA Temos ento uma relao de mo dupla entre moral e tica, sendo a primeira dotada de maior permeabilidade e mutabilidade que a segunda, visto que ocorre no campo da prtica, mesmo que no seja pensada. J a tica tende a ser um pouco mais estanque, sem tanta permeabilidade, por ser mais cognitiva, depender de reflexo, de autoconstatao, e intentar ser universal (SILVANO, 2007; CORTELLA, 2010).

Texto complementar 1: Quando falamos em valores, imediatamente pensamos em moral e tica, geralmente confundindo estes conceitos que, no entanto, tem diferenas significativas. Por moral, nos referimos aos cdigos de conduta regras que permitem ou desincentivam certos comportamentos de um grupo, sociedade, povo. Por tica, designamos um mbito maior da experincia dos valores; com este termo nos referimos quilo que visto por uma pessoa, grupo ou povo como valores indispensveis na sua busca por realizao e felicidade. No mbito da tica, portanto, falamos dos mais importantes valores que orientam uma pessoa, grupo ou povo; so exatamente estes valores que determinam o que ser considerado moral ou amoral. Simplificando, podemos dizer que a moral diz respeito a regras de conduta e que a tica diz respeito a valores. Exemplos de regras morais so: demonstrar gratido por um favor, no GUIMARES, Lvia; MEDRADO, Alice Parrela. Relatividade e universalidade dos valores. 29 nov. 2010. Disponvel em: . Acesso em: 18 nov. 2011.1

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manter dvidas, usar as roupas exigidas por diferentes situaes. Exemplos de valores ticos so: solidariedade, honestidade, sociabilidade, produtividade, realizao profissional, etc. Esta distino entre moral e tica nos ajuda a compreender melhor o pensamento de diferentes filsofos e tambm a analisar melhor acontecimentos cotidianos. Por exemplo, muito se fala sobre tica na poltica ou moralizao da poltica, sem distinguir bem estes conceitos; a rigor, quando exigimos que na poltica se cumpram as regras que evitam a corrupo, o nepotismo, a venda de votos, etc., falamos em moralizao da poltica, isto , exigimos que a poltica cumpra melhor algumas regras de nossa sociedade. Por outro lado, para falarmos em tica na poltica, devemos nos voltar a questes sobre os valores que orientam a prtica poltica, por exemplo questes como a poltica deve cuidar prioritariamente da criao de justia social ou da fomentao da economia?. (...) Exerccio para reflexo Reflita sobre o que refletir!!! O aprendizado no ocorre instantaneamente. O conhecimento amadurece em seu crebro quando voc pensa e repensa sobre algum tema. Ao repensar algo, procure faz-lo por diferentes perspectivas, isto , imagine qual seria a opinio de outras pessoas sobre o tema que est sendo pensado (por exemplo, qual seria opinio sobre um assassinato da perspectiva do assassino, da vtima, da polcia, de um poltico etc.?).

Por fim, a tica estaria ento num mbito maior, que compreende o mbito da moral. Alguns autores, como Silvano (2007), afirmam que a moral sempre existiu entre os seres humanos, enquanto a tica teria nascido ao se refletir e filosofar sobre a moral.

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Imagine, ento, o que a sua tica e o que a sua moral e imagine se elas so as mesmas para outros atores da sociedade. Tente, nesse exerccio de imaginao, definir o mximo possvel o que delimita sua tica, o que delimita sua moral e em que medida elas se misturam. Faa o mesmo para diferentes atores sociais, isto , sob diferentes perspectivas. Imagine circunstncias reais ou prximas realidade Neste exerccio voc est livre para fazer o que quiser: imaginar, escrever, desenhar, enfim, tudo aquilo que facilitar o seu exerccio de reflexo. Boa jornada! tica Relatividade versus Universalidade Como j foi dito, no h dvida de que a moral relativa. Mas e a tica, ela ou no relativa? Dependeria a tica de um contexto social, histrico e cultural, ou seria ela a emanao de conceitos relacionados a uma bondade universal? A dualidade surge na prpria origem da tica. Scrates buscava uma universalidade, uma verdade maior e incondicional, enquanto era caracterstica dos sofistas a relatividade. Os sofistas argumentavam (...) que as prticas culturais existiam em funo de convenes ou "nomos", e que a moralidade ou imoralidade de um ato no poderia ser julgada fora do contexto cultural em que aquele ocorreu (ESCOLA sofstica, 2011). Aqui, o conceito de moralidade se estende ao de tica, visto que leva em considerao o julgamento da moral, portanto a reflexo e o estudo dessa moralidade so inevitveis, o que, por definio, diz respeito prpria tica. A princpio, pode parecer que o universalismo sempre carrega consigo algo de absolutista ou religioso. Essa constatao parece fazer sentido, pois as religies e os regimes absolutistas defendem realmente uma ordem universal e um sentido nico de certo e errado. Contudo, tal constatao est grandemente equivocada, pois existem correntes universalistas que no so absolutistas e que, pelo contrrio, caracterizam-se por serem democrticas e buscarem o bem e a felicidade de todos. o caso do utilitarismo, que acredita que as aes humanas sejam balizadas pela maximizao da felicidade, entendida como objetivo comum a todos os seres humanos. As atitudes seriam consideradas, a partir da tica, como morais ou imorais, apenas aps se conseguir entender todas as consequncias dessa atitude, quando seria possvel ento avaliar se elas realmente levam ou no felicidade.

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A universalidade no utilitarismo vem da concepo de que todos os seres humanos buscariam uma felicidade universal, de maneira que, aps entenderem todas as consequncias de determinado ato, universalmente fariam a escolha que privilegiasse a felicidade, e as escolhas viriam a ser sempre as mesmas. Peter Singer, autor j citado, um exemplo de utilitarista. Para embasar o universalismo, Singer (1993) argumenta que o relativismo ganhou fora pelo movimento de esquerda, que viu na relatividade uma oportunidade de questionar o estamento. Assim, o relativismo teria intenes polticas de desconstruo que o afastariam da profundidade filosfica do utilitarismo e, consequentemente, do universalismo. Ao mesmo tempo e ironicamente, Comparato (2006) tambm utiliza o conceito de busca pela felicidade para explicar a tica, sem, contudo, defender a universalidade. Pelo contrrio, ele utiliza o conceito de felicidade como busca comum para explicar por que a tica intenta ser universal. Apesar disso, o autor afirma, atravs de uma justificativa sistmica, que a tica relativa, tal qual a moral que lhe serve de material de estudos. Assim, o prprio conceito de felicidade parece estar merc da dualidade entre universalidade e relatividade. O ponto fraco da relatividade a sua aparente impossibilidade de postular. Se tudo relativo, ento como se poderiam generalizar regras, criar conceitos ou at mesmo questionar atitudes? Fato que a relatividade ganhou fora de tempos pra c, com os estudos de complexidade e com o princpio da incerteza de Heisenberg2. Contudo, tal alargamento de conceitos no tem bases cientficas. De qualquer maneira, posicionar-se com certeza acerca de uma ou outra caracterstica da tica parece ser abandonar uma riqueza imensa de pensamentos desenvolvidos por grandes pensadores de diferentes pocas. Ao mesmo tempo, a no tomada de posio j em si uma atitude que privilegia o relativismo. Da mesma forma, ao se tomar uma posio objetiva, seja qual for, ela tambm uma atitude pr-universalismo. Os sistemas cardicos (ver Unidade 5) talvez possam ajudar a abordar essa dualidade. O fluxo entre caos e ordem parece se encaixar bem nas flutuaes entre relativismo e universalismo.

O princpio da incerteza diz que ... no podemos determinar com preciso e simultaneamente a posio e o momento de uma partcula. (CAVALCANTE, Klber. Princpio da incerteza. Disponvel em: . Acesso em: 22 nov. 2011.

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A comparao inevitvel. A relatividade, sua ausncia de objetividade e certezas condiz com, ou tende ao caos, enquanto que a universalidade e sua busca pelo bem universal, capaz de guiar a deciso de todos condiz com, ou tende ordem. O trafegar do caos ordem e da ordem ao caos parece ser cada vez mais inevitvel num mundo de cleres transformaes, assim como a necessidade de lidar com a universalidade e a relatividade ao mesmo tempo parece fazer parte das competncias bem-vindas a qualquer gestor moderno. Para este estudo, importa destacar que a tica, sendo ou no universal, sempre intencionar s- lo. Isso fica claro quando observamos na prtica a tentativa infinita dos seres humanos de encontrar uma tica que sirva para todos. Isso pode ser constatado, por exemplo, na Declarao Universal dos Direitos Humanos. Ento, at agora se ressaltou que a tica se caracteriza como o estudo do comportamento moral em sociedade, capaz de viabilizar o bem, rumo ao atingimento da felicidade, alm de intentar ser universal. Fonte: foto tirada pela embaixada americana em Kabul (alteraes realizadas pelo autor). tica na Modernidade Em A tica Possvel num Mundo de Consumidores? (2011), Zygmunt Bauman estabelece um belssimo contexto da natureza humana antes de chegar concluso de que a dualidade entre

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universalismo e relativismo atropelada por consumidores desvairados que promoveram o desmantelamento do sistema de regulao normativa rumo liberdade e suas peculiaridades. O autor no chega a citar os termos universalismo e relativismo propriamente ditos, nem parece crer na fenomenologia da dualidade entre eles. Atravs dos estudos de Emmanuel Lvinas3, ele explica de maneira brilhante, e at embaraosa, como surge a concepo universalista e como essa sucedida pela concepo relativista. Mas, antes de desenvolver essa explicao, vale discorrer acerca da contextualizao feita pelo autor em estudo. Apesar de no tratar da dualidade aqui referida, Bauman cita outra dualidade, ou melhor, ambivalncia: liberdade versus segurana4. Inerente ao processo da vida, tal ambivalncia desafia o ser humano desde a sua origem. Alcanar a maior liberdade possvel impe obrigatoriamente ao ser liberto a exposio a todos os tipos de riscos, isto , a uma maior vulnerabilidade. Por outro lado, a segurana conquistada atravs do controle inviabiliza a liberdade total, uma vez que o ser em segurana precisa abrir mo de sua liberdade para que possa, em conjunto, mitigar as agruras da vida. Bauman acredita fortemente que a modernidade seja marcada pelo fato de os seres humanos terem aberto mo de sua segurana em prol da liberdade. O autor ainda enxerga indcios de que a humanidade esteja a iniciar o caminho de volta, num movimento pendular, ou seja, haveria uma tendncia de volta busca por segurana. Independentemente do momento em que se encontra na trajetria pendular, a ambivalncia emerge da inquietao dos seres humanos, que vivero sempre a buscar a frmula de ouro para alcanar a maior liberdade e a maior segurana possveis. Outra contextualizao importante no livro diz respeito s fronteiras lquidas advindas do processo de globalizao e do processo de comunicao rpido e abundante. O ps-Guerra Fria marcado pela queda de barreiras, no s as fsicas, mas especialmente as barreiras sociais, que so invisveis. Vivemos em tempos de fronteiras lquidas, extremamente permeveis diversidade.

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Bauman acolhe os pensamentos do filsofo francs Emmanuel Lvinas, para quem a tica antecede a ontologia.

Apenas para constar, o dilema entre liberdade e segurana, assim como a dualidade entre relativismo e universalismo, tambm remete aos sistemas cardicos (ver unidade 5), sendo a liberdade total a manifestao do caos, enquanto a segurana a prpria manifestao da ordem.

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Em decorrncia dessas fronteiras lquidas e tambm a favor delas, no mais possvel fazer a analogia entre o ser humano contemporneo e a rvore. Segundo essa analogia, todo ser humano seria uma rvore, com uma histria um solo para fincar razes. Agora outra analogia figura no horizonte da humanidade, a do navio. Nela, cada ser humano seria um navio a jogar ncoras em diferentes portos. No existe mais o para sempre. Cada atracao antecedida e sucedida de uma viagem. Os seres humanos se reinventam a cada viagem, pertencendo a grupos diferentes a cada ancoragem. O tempo se tornou curto demais para a infinita oferta de portos. A ambivalncia entre liberdade e segurana, da qual emerge a inquietao, somada s fronteiras lquidas, produz um ser humano voltado a si mesmo. O egosmo a caracterstica marcante do ser humano moderno, que vive num contexto de liberdade e com uma infinidade de possibilidades (portos a se atracar). Esse ser humano vive em constante terror, o terror de no ser mais aceito, de no mais conseguir pertencer. como se o ressentimento das sociedades hierarquizadas e de rgido estamento migrasse para o ressentimento do ser humano consigo mesmo pela falha em pertencer. Antes o culpado era aquele que estava acima do sujeito na hierarquia, agora o culpado o prprio sujeito. Na sociedade de fronteiras lquidas, o ser humano se torna o responsvel por sua falha. Essa a situao ideal para a instaurao e o crescimento de um mercado totalmente voltado ao consumo e focado no lucro. A necessidade de pertencimento se associa ao mercado, vido por ganhos infindveis e, juntos, fazem surgir o consumismo desvairado. S quem tem pertence; se no tem, excludo falhou no ato de pertencimento ao grupo que tem. E isso causa grandes implicaes morais e ticas. Eis o momento certo de se resgatar a tica para Bauman. Para o autor, a tica universal parece existir at o limite da alteridade5 e, a partir da, se dissolve numa sucesso de desencontros que incomodam de forma indefinvel, incmodo esse que remete ao medo primordial proveniente da ambivalncia entre liberdade e segurana. A tica para Bauman, semelhana de Lvinas, tem origem no na necessidade de controlar a besta humana, mas, pelo contrrio, na capacidade humana de admitir e demandar o bem do outro, atravs da percepo de si mesmo na sociedade (alteridade). Contudo, apenas at a secundidade do outro, isto , a alteridade, que a tica pode existir de forma universal. Assim que ganha o mundo, ou a A alteridade a percepo de si mesmo atravs do outro do outro. entendida como a entidade em contraste com a qual uma identidade construda, e isso implica a capacidade de distinguir entre o eu e o no-eu e, consequentemente, assumir a existncia de um ponto de vista alternativo.5

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partir de uma terceiridade, quando confrontada com a diversidade de outros, a tica desprovida de universalidade, restando apenas a possibilidade de sua existncia relativa. Numa dade no possvel haver maioria alguma que vena... numa trade no entanto sempre possvel haver um derrotado, acontecimento que desvaloriza a individualidade e com ela a singularidade, a proximidade privilegiada, as prioridades incontestadas e as responsabilidade incondicionais tudo isso, pedras fundamentais de uma relao moral (SIMMEL apud BAUMAN, 2011, p. 52). Assim, a tica teria um nascimento universalista, mas um amadurecimento relativista. Unindo-se a contextualizao (de uma sociedade de fronteiras lquidas, com seres humanos livres, egostas, vidos por pertencimento e extremamente consumistas) noo de tica inerente natureza humana, tem-se a tica como possvel produto que cada ser humano customiza e desenvolve conforme sua prpria necessidade. No que diz respeito ao argumento composto e promovido por Lvinas e Logstrup, a tarefa de reduzir a falta de limites supra-humana da responsabilidade tica pela capacidade de uma sensibilidade humana comum, um poder humano de julgamento e habilidade de agir comuns, tende agora (menos em algumas reas seletas) a ser subdiarizada individualmente a homens e mulheres. Na ausncia de uma traduo oficial da demanda no dita num inventrio finito de prescries e proscries, depende agora de cada indivduo fixar os limites de sua prpria responsabilidade com os outros, e traar a linha divisria entre plausvel e improvvel, dentre as intervenes morais; e tambm decidir quo distante ele ou ela esto dispostos a ir, ao sacrificar seu bem-estar pessoal para cumprir a responsabilidade moral pelos outros (BAUMAN, 2011, p. 57). Assim, para concluir esta unidade, na modernidade, a tica pode ser definida e caracterizada como o estudo do comportamento moral em sociedade, capaz de viabilizar o bem rumo ao atingimento da felicidade, alm de ser inerente natureza humana e sua alteridade, da qual nasce com intenes de universalidade e em seguida, ao transpassar do mbito do outro (dade) para o mbito dos outros (trade), torna-se relativa. De forma simplificada, a tica num mundo de consumidores est tendendo muito mais a um produto a ser customizado e uma ferramenta mutvel de adequao que viabiliza o pertencimento do que a um notrio conjunto de valores e princpios capazes de ordenar a sociedade e tornar possvel a civilizao.

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Fonte: foto de Robert Kirrily (alteraes realizadas pelo autor). Concluso impossvel deixar de notar que a tica parece caminhar sobre novos trilhos. Apesar de possivelmente continuar tendo sua origem na alteridade, a tica de antes, independentemente de seu carter universal ou relativo, buscava o bem de todos (ou pelo menos de uma grande maioria); a de hoje prima pelo bem individual e gera incmodo. A primeira se pretendia singular, cristalizada e abrangente, enquanto a de agora tende a se apresentar cada vez mais diversa, mutvel e individual. As caractersticas dessa tica sobre novos trilhos no teriam tanta relevncia no fosse o contexto de economia da escassez voltada ao lucro, que se aproveita dessas caractersticas para, na criao de um mundo de eterna insatisfao organizado atravs da excluso e da escassez , empurrar, cada dia mais, a tica para a desarticulao com o compartilhamento. Essa situao acaba por fortalecer e impulsionar um mercado baseado na desigualdade e que, por sua vez, serve de estrutura para a j citada economia da escassez voltada ao lucro.

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No entanto, essa tendncia ao individual no necessariamente quer dizer uma tendncia ao foco no capital, e novos tipos de organizao podem e parecem surgir num sentido de maior representatividade dessa tica sobre novos trilhos. Bauman (2011) astuto ao utilizar o comportamento dos insetos para exemplificar uma sociedade lquida. Vespas do Panam que entram e saem de diferentes colnias ao longo da vida so utilizadas para ilustrar algo que o ser humano est pronto para entender a vida em enxames e sem razes. A vida em enxames se difere da vida em grupos hierrquicos por no possuir um lder, nem a necessidade de longa permanncia de seus integrantes. Pelo contrrio, os enxames so dirigidos pelo indivduo mais propenso a guiar em determinados momentos e tm durao curta, suficiente apenas para que cumpram determinados objetivos. As vespas so guiadas por sua prpria vontade e se unem umas s outras para satisfazer sua necessidade de pertencimento. A sociedade auto-organizada e aumenta e diminui de forma sincrnica com o aumento e a diminuio de recursos. Todos trabalham, todos tm os mesmos direitos e capacidade de ir e vir. Nessa sociedade lquida de vespas, a tica compartilhada parece vir do amadurecimento da regra de ouro, do melhor balano entre liberdade e segurana. Talvez uma vespa no se preocupe com o bem das outras, mas acaba cuidando delas ao se preocupar com o seu prprio bem. No entanto, no nos esqueamos de que isso apenas uma analogia, j que no se pode dizer que vespas tm tica. Exerccios resolvidos 1. Julgue cada item a seguir como verdadeiro ou falso. a) A tica um campo do conhecimento que estuda a moral e que, de certa forma, delimita o campo da bondade e, consequentemente, o da maldade. (Verdadeiro) b) a partir dos princpios ticos que se fazem, na prtica, escolhas morais ou imorais. (Verdadeiro) c) A tica se caracteriza como o estudo do comportamento moral em sociedade, capaz de viabilizar o bem rumo ao atingimento da felicidade, alm de intentar ser sempre relativa. (Falso Intenta ser UNIVERSAL.) d) Pode-se dizer tranquilamente que a tica influencia a moral, contudo seria um grande equvoco afirmar o contrrio, que a moral influencia a tica. (Falso A moral o material de estudos da tica, portanto influencia, sim, a tica.)

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e) A tica universal. (Falso A tica se pretende universal.) f) A tica relativa. (Falso A tica intenta ser universal.) g) A tica parece nascer universal e permanece como tal no mbito da alteridade, contudo tende relatividade no mbito das relaes sociais propriamente ditas. (Verdadeiro) h) A tica se tornou um produto a ser comercializado. As pessoas criam ticas de forma dissimulada para interagir com diferentes grupos. (Falso Cuidado! Comparar a tica a um produto no significa que ela tenha se desprendido de seu carter inerente ao ser humano. A tica parece nascer na alteridade e, por isso, o fato de ela TENDER a se assemelhar a um produto no quer dizer que ela o seja. Pelo contrrio, tal tendncia de emancipao da tica causa incmodo e a privatizao da responsabilidade de formulao da tica s existe pela ausncia de rgo unificador.) i) Vespas tm tica. (Falso At onde se sabe, a tica um conceito humano, para humanos.) 2. Aps a leitura da unidade 1 e baseando-se apenas na leitura deste material, elabore uma definio de tica o mais completa possvel. R: A tica pode ser definida e caracterizada como o estudo do comportamento moral em sociedade, capaz de viabilizar o bem rumo ao atingimento da felicidade, alm de ser inerente natureza humana e sua alteridade, da qual nasce com intenes de universalidade e em seguida, ao transpassar do mbito do outro (dade) para o mbito dos outros (trade), torna-se relativa. De forma simplificada, a tica num mundo de consumidores est TENDENDO muito mais a um produto a ser customizado e uma ferramenta mutvel de adequao que viabiliza o pertencimento do que a um notrio conjunto de valores e princpios capazes de ordenar a sociedade e tornar possvel a civilizao. Essa situao causa um constante incmodo no existir humano e isso deve perdurar at que se criem novas ferramentas que facilitem o compartilhamento da tica por um grande nmero de indivduos. semelhana das organizaes sem hierarquia (enxames de vespas do Panam), parece ser possvel haver uma tica compartilhada capaz de trabalhar junto tica individual (uma situao tima para o surgimento da regra de ouro, na qual se atinge o mximo de liberdade com o mximo de segurana).

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REFERNCIAS ARISTTELES. tica a Nicmaco. So Paulo: Martin Claret, 2006. BAUMAN, Z. A tica possvel num mundo de consumidores? Rio de Janeiro: Zahar, 2011. CAVALCANTE, Klber. Princpio da incerteza. Disponvel em: . Acesso em: 22 nov. 2011. CHAU, M. Convite filosofia. So Paulo: tica, 2000. COMPARATO, F. K. tica - direito , moral e religio no mundo moderno. So Paulo: Cia das Letras, 2006. CORTELLA, M. S. Filosofia explica o que a tica. 7 mar. 2010. Disponvel em: . Acesso em: 18 nov. 2011. COSTA, Denise Silva; GAMA, Janana Diniz da et al. tica, Moral e Biotica. Jus Navigandi, Teresina, ano 2, n. 21, 19 nov. 1997. Disponvel em: . Acesso em: 18 mar. 2012. ESCOLA sofstica. Wikipdia, 4 set. 2011. Disponvel em: . Acesso em: 20 de nov. de 2011. GOMES, A. O Ideal e o Possvel - o conceito de tica em Scrates, Plato e Aristteles. So Carlos: Jornal Primeira Pgina (So Carlos), 2000. GUIMARES, Lvia; MEDRADO, Alice Parrela. Relatividade e universalidade dos valores. 29 nov. 2010. Disponvel em: . Acesso em 18 nov. 2011. KANT, I. (1827). Kritik der Praktischen Vernunft (trad. Crtica da Razo Pura). (H. D. Klemme, Ed.) Hamburg: Philosophische Bibliotheck, 2003. PLATO. Apologia de Scrates. Porto Alegre: L&PM, 2008. REVERDY, P. Le livre de mon bord: notes 1930-1936. Paris: Mercure de France, 1948. SILVANO, T. F. Moral e tica: dois conceitos de uma mesma realidade. 15 jan. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 16 nov. 2011. SINGER, P. Practical Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

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VALLS, A. L. O que tica. So Paulo: Brasiliense, 1994.

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UNIDADE 2 TICA EMPRESARIAL Ser sincero impede a bajulao, a adulao ou a falsa tolerncia com vistas a obtermos vantagens pessoais. (GAARDER, 1995) Introduo Na unidade 1, a tica foi abordada teoricamente. A unidade 2 ser mais pragmtica, j que o tema tica ser estudado de forma aplicada. Para o mbito da tica empresarial, importaremos o conceito simplificado de tica segundo o qual tica a busca pelo bem comum (MOTOMURA, 2009). Assim, subentende-se que a tica, mesmo que relativa em algumas situaes, um objetivo comum de um determinado grupo de seres humanos. O cdigo de tica de uma determinada empresa, por exemplo, pode ser entendido como os princpios que essa empresa, constituda por pessoas, escolhe seguir em seu dia a dia. Assim, tal cdigo de tica seria um objetivo comum do grupo de seres humanos que a constituem. Mais do que isso, a tica, definida como a busca pelo bem comum, tambm remete ao fato de ela intentar ser universal. Ao se utilizar a expresso bem comum, subentende-se tambm que haja a busca pela bondade e/ou pela felicidade para todos. E essa bondade e/ou felicidade justamente o complemento do objetivo comum do grupo de seres humanos que faz parte de uma empresa. Vale destacar o fato de a tica empresarial ser inevitvel: A tica no um valor acrescentado, mas intrnseco da atividade econmica e empresarial, pois esta atrai para si uma grande quantidade de fatores humanos e os seres humanos conferem ao que realizam, inevitavelmente, uma dimenso tica. A empresa, enquanto instituio capaz de tomar decises e como conjunto de relaes humanas com uma finalidade determinada, j tem desde seu incio uma dimenso tica (ZOBOLI, 2001). Alm disso, a tica empresarial necessariamente um ambiente tico, pois os seres humanos a vivenciam tal qual vivenciam as caractersticas de um lugar. Assim, a tica empresarial facilita aos indivduos a elaborao de suas ticas pessoais, o que, por si s, pode gerar enormes faanhas em tempos de sociedade lquida, mas tambm acaba por gerar uma enorme responsabilidade.

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As empresas so formadas por seres humanos que j vm de suas casas com uma tica prpria. A assimilao de uma nova tica pode ser mais harmoniosa ou dificultosa, conforme as semelhanas ou diferenas entre a tica empresarial e a tica pessoal. Outro fator importante de assimilao da tica empresarial a maneira como esta apresentada e experimentada pelos integrantes da empresa. As empresas carregam sua tica por todos os processos e relacionamentos, adotando ou no uma postura formal quanto a ela. Existem dois grandes mbitos de existncia da tica empresarial o interno (para o pblico interno) e o externo (para o restante dos stakeholders ou partes interessadas), e apenas uma tica a ser dividida nesses dois mbitos ao menos isso que se espera. Assim, podemos resumir o que foi dito nos pargrafos anteriores nos seguintes itens (o 3 item o que contm os maiores desafios para a construo de uma tica empresarial duradoura e funcional): 1 Nasce uma empresa e um cdigo de tica empresarial implantado. 2 Tal cdigo fornece princpios para a atuao dos funcionrios. 3 Tal cdigo se estende para alm da empresa, no sentido de ser o que a empresa entende por fazer o bem. Portanto, ele est diretamente implicado na relao da empresa com os stakeholders e com o meio ambiente. . importante que se inicie um dilogo seguido de aes entre os lderes de negcios e os novos humanistas, aqueles que tm conhecimento e compreenso da mudana de paradigma que est ocorrendo na cincia. No antigo paradigma do materialismo cientfico, a tica no tem tanta importncia. As pessoas do velho paradigma lidam com a tica somente da boca pra fora. No novo paradigma, que reconhece explicitamente que estamos interconectados por meio de nossa conscincia coletiva no local, a tica parte integrante da viso de mundo. Quando os lderes de negcios passarem a compreender e a apreciar esse pensamento, as coisas vo mudar. Na economia baseada no materialismo cientfico, em que o princpio bsico o crescimento econmico, a sustentabilidade impossvel. Na nova viso, as pessoas tornam- se mais ticas e espiritualizadas atravs do consumo de produtos que tm esses valores. Isso reduz a necessidade de consumo de bens materiais e podemos passar a falar seriamente de sustentabilidade (GOSWAMI, 2011).

Texto complementar6 6

Disponvel em: . Acesso em: 1 dez. 2011.

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tica e Deontologia (...) O termo Deontologia surge das palavras gregas don, dontos, que significam dever, e lgos, que se traduz por discurso ou tratado. Sendo assim, a deontologia seria o tratado do dever ou o conjunto de deveres, princpios e normas adotadas por um determinado grupo profissional. A deontologia uma disciplina da tica especial adaptada ao exerccio da uma profisso. Existem inmeros cdigos de deontologia, sendo esta codificao da responsabilidade de associaes ou ordens profissionais. Regra geral, os cdigos deontolgicos tm por base as grandes declaraes universais e esforam-se por traduzir o sentimento tico expresso nestas, adaptando-o, no entanto, s particularidades de cada pas e de cada grupo profissional. Para alm disso, estes cdigos propem sanes, segundo princpios e procedimentos explcitos, para os infratores do mesmo. Alguns cdigos no apresentam funes normativas e vinculativas, oferecendo apenas uma funo reguladora. A declarao dos princpios ticos dos psiclogos da Associao dos Psiclogos Portugueses, por exemplo, exclusivamente um instrumento consultivo. Embora os cdigos pretendam oferecer uma reserva moral ou uma garantia de conformidade com os Direitos Humanos, estes podem, por vezes, constituir um perigo de monopolizao de uma determinada rea ou grupo de questes, relativas a toda a sociedade, por um conjunto de profissionais. tica empresarial na prtica Para que a tica empresarial trabalhe em favor da empresa, da sociedade e do meio ambiente, preciso que ela ganhe o status de oficialidade, isto , que sua implementao ocorra com visibilidade, transparncia e legitimao por parte de todos os envolvidos. O ato de definir a tica de uma empresa implica necessariamente que os seres humanos que a integram, mais do que simplesmente percebam sua existncia, reflitam sobre essa tica. Alm disso, s atravs da oficialidade que a tica pode criar o j citado ambiente tico, no qual as pessoas tm a chance de vivenciar a tica da empresa e sintonizar suas prprias ticas de seus companheiros, manifestando e concretizando a tica empresarial. Mas como iniciar um processo de implantao oficial da tica empresarial? Antes de tudo, preciso considerar o contexto em que se vai trabalhar. Algumas caractersticas so fundamentais para o sucesso da implantao.

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Segundo Zoboli (2001), para se desenhar uma tica nas empresas, preciso cumprir os seguintes requisitos: - Determinar o fim especfico da empresa, aquilo que a legitima na sociedade. - Averiguar os meios adequados e os princpios ticos a serem incorporados. - Elencar os hbitos a serem adquiridos. - Ir forjando um ambiente que permita dialogar e tomar decises quanto s metas. - Reconhecer a relao que deve acontecer entre os processos da empresa e a empresa. - Identificar as caractersticas da tica da sociedade na qual est inserida a empresa e os direitos que essa sociedade confere s pessoas. Alm disso, a diversidade de pessoas que compem a empresa faz surgir a necessidade da tolerncia e do dilogo, itens indispensveis para que se compartilhe uma mesma tica. Outras variveis tambm precisam estar presentes nos processos de gesto da empresa, para que os valores a serem compartilhados atravs dos princpios ticos possam efetivamente tomar seu lugar. Num estudo de 1984 realizado nos Estados Unidos, empresas bem-sucedidas foram perscrutadas a fim de se descobrir quais variveis consideradas pelas suas administraes eram fatores diferenciais em relao concorrncia (PETERS & WATERMAN, 1984, apud ZOBOLI, 2001). O resultado indica que uma abordagem inteligente por parte das empresas deve contemplar, obrigatoriamente, pelo menos sete variveis interdependentes. Com o intuito de facilitar sua explicao, compreenso e incorporao, essas variveis foram chamadas de 7S, pelo fato de o nome de todas elas, em ingls, se iniciar com a letra s.

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Para que os valores decorrentes dos princpios ticos possam permear a empresa, serem difundidos e se estabelecerem, preciso levar em conta a estrutura, a estratgia, os sistemas e processos, as habilidades, a equipe e o estilo de direo que a empresa carrega. Outras caractersticas das empresas pesquisadas que apareceram como atributos da excelncia foram: Preferncia pela ao. Proximidade com o consumidor. Autonomia e esprito empreendedor. Produtividade atravs das pessoas. Orientao pelos valores. Circunscrio ao negcio que a organizao conhece melhor. Forma simples e staff enxuto. Clima, no qual h dedicao aos valores centrais da companhia, combinado com a tolerncia para com os empregados que os aceitam. Delimitado o contexto e estando ele favorvel implantao oficial da tica empresarial, chegada a hora de escolher alguma estratgia de implantao. Existe uma enorme variedade de estratgias, estrategistas e opes no mercado. Contudo, parece evidente que o sucesso ou o insucesso de uma operao, seja ela qual for, est diretamente ligado aos seguintes fatores, ainda no citados: Clareza de objetivos (o que se espera com a implantao). Grau de comprometimento, principalmente por parte dos dirigentes da empresa. Escolha apropriada da estratgia levando em conta as caractersticas de gesto. Capacidade de transformao da empresa para tornar efetivas as mudanas. No possvel, portanto, traar uma estratgia eficaz sem que se tenha um diagnstico claro do que a empresa, de como ela est e aonde quer chegar. A seguir, e a ttulo de exemplificao, ser apresentada uma possibilidade de implantao7 de um projeto de tica empresarial que se associa anlise de stakeholders, que so os atores (pessoas ou

Tal apresentao foi embasada e inspirada nos artigos Business Ethics and Stakeholder Analysis (GOODPASTER, 1991) e The Politics of Stakeholder Theory: Some Future Directions (FREEMAN, 1994),

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empresas) interessados na poltica ou no programa que determinada empresa promove. Em portugus, esse termo pode ser traduzido como partes interessadas (acionistas, empregados, proprietrios, clientes, concorrentes etc.). importante ressaltar que essa uma possibilidade entre diversas outras e que apenas atravs do conhecimento da empresa e de uma pesquisa focada nas necessidades dela que se pode encontrar ou adaptar e aplicar uma estratgia eficiente e eficaz. justamente com esse paradigma em mente que a anlise de stakeholders serve implantao de um projeto de tica empresarial. A prpria escolha por uma anlise de stakeholders j uma escolha tcnica, visto demonstrar o interesse da empresa em conhecer mais as necessidades e aspiraes das pessoas, pois esse tipo de anlise justamente o processo de juntar e analisar informaes qualitativas provenientes das partes interessadas, a fim de determinar os principais interesses que devem ser considerados no momento de elaborao das polticas e programas da empresa. A partir da anlise de stakeholders e de mais algumas pesquisas, pode-se construir uma matriz de materialidade (como ilustra a figura), que demonstra para onde apontam os interesses das partes interessadas (mais informaes na unidade 4). alm de manuais tcnicos sobre a anlise de stakeholders disponveis em lngua inglesa e facilmente encontrveis numa busca pelo termo stakeholder analysis na Internet.

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(Fonte: Relatrio anual Natura 2008, p. 89. Disponvel em: . Acesso em: 1 dez. 2011. Alm disso, a anlise de stakeholders tambm traz ao conhecimento da empresa o nvel de compreenso das partes interessadas acerca da poltica ou projeto da instituio, o tipo de interesse se favorvel ou contrrio , a capacidade de interferir no projeto ou poltica e o potencial de alianas que pode existir entre as partes interessadas. Dessa forma, j possvel entender a ideia de aliar a anlise de stakeholders com a implantao de um projeto de tica empresarial. Essa anlise, mais do que um material sobre o qual se pode elaborar um cdigo de tica, a prpria manifestao das ticas das partes interessadas. Ora, se a tica empresarial entende a tica como a busca pelo bem comum, ento a anlise de stakeholders serve de bssola para orientar a busca de tal bem. A seguir um exemplo de matriz a ser preenchida para iniciar a anlise de stakeholders:

Matriz para anlise de stakeholders (Cdigo de tica) Stakeholder Tipo Marg. Interesse Base Recursos Papel Ajuda Stakeholders Definir quem so atravs de brainstorm e pesquisas. Tipo Definir quais so os stakeholders primrios (interesse direto) e secundrios (interesse indireto) e se eles so favorveis ou contrrios aos valores da empresa. Marginalizao H stakeholders marginalizados na sociedade (por exemplo, ndios)? Interesse Qual o interesse especfico de cada stakeholder? Pode haver a pergunta Que tema indispensvel num cdigo de tica?. Base rea de atuao que se relaciona com o intentado pelo Cdigo de tica. 26

Recursos Ideias e experincias que os stakeholders possuem e que podem trazer iniciativa. Papel Qual o papel do stakeholder na construo e manuteno de um Cdigo de tica? Ajuda O que o stakeholder precisa, se que precisa, para conseguir se engajar?

Para comear a preencher essa matriz, importante que se tenha em mente o objetivo da poltica ou projeto a ser implantado, que, nesse caso, um cdigo de tica. Ele ser ento a referncia para se elencarem os stakeholders e suas caractersticas. A participao dos stakeholders na fase de planejamento pode ser tambm uma grande aliada na construo de um cdigo de tica eficaz, pois o engajamento deles que ir legitimar ou no o cdigo a ser implantado, j que os prepara para receb-lo, facilita-lhes o entendimento, gera o sentimento de pertencimento, permite que se apoderem do cdigo e o aprendam, e constri os valores da capacidade e da responsabilidade. Enfim, aplicar a anlise de stakeholders e, de forma concomitante, redigir o cdigo de tica uma estratgia de implantao. A divulgao das informaes, necessria para cumprir o carter de transparncia do processo de anlise, pode culminar no lanamento do cdigo de tica da empresa, e este poder ser celebrado, legitimado e incorporado por todos, tornando efetiva a sua implantao. Exerccio tcnico digressivo Utilizando tudo o que foi aprendido at aqui, elabore mentalmente os passos para a construo de uma estratgia de implantao de um cdigo de tica. A ideia no que voc necessariamente escreva um longo texto, ou sequer uma planilha. Faa-o s se quiser. A ideia voc descobrir que as ferramentas de gesto so criadas conforme as necessidades do dia a dia e que sua implantao s funcional quando as pessoas envolvidas realmente se apoderam dessas ferramentas ou se deixam tocar por elas. Assim, recorra a seu repertrio de memrias, ou a sua situao atual, para idealizar um projeto de implantao de um cdigo de tica. O exerccio de projeo mental, hologramando o que se pretende fazer, o primeiro grande passo de qualquer empreendimento.

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Voc pode utilizar a anlise de stakeholders ou qualquer outra ferramenta que conhea ou que imagine. O importante se deter nos detalhes (por exemplo, como engajar as pessoas). Concentre-se e use todo o tempo de que precisar. Afinal, o aprendizado s ocorre com a reflexo. Boa jornada!

Texto complementar Caso Enron Para refletir mais a respeito do tema tica empresarial, assista ao documentrio Enron os mais espertos da sala8, que conta a histria da derrocada de uma gigantesca companhia texana de revenda de energia e gs. Esquemas fraudulentos na contabilidade da instituio que era considerada a mais promissora nas bolsas de valores dos EUA, devido alta lucratividade levaram-na a protagonizar um dos maiores escndalos corporativos dos EUA. O texto a seguir a traduo de um trecho de artigo de Manuel Velasquez (2002), professor de Business Ethics, ligado ao departamento de Management da Universidade de Dirksen. O que deu errado na Enron? Na tica, explicaes tendem a cair em trs categorias: pessoal, organizacional e sistmica. Explicaes baseadas no mbito do pessoal procuram respostas no mau carter dos indivduos envolvidos. Por exemplo, a quebra da companhia aconteceu porque os personagens envolvidos eram corruptos e malvolos? Eles foram gananciosos? Eram estpidos? Eram frios e insensveis? Eram loucos? No tinham compaixo? Explicaes baseadas no mbito organizacional procuram por causas nos grupos de influncia. Levam-se a srio as maneiras como ns influenciamos uns aos outros quando fazemos as coisas em grupo. Essas influncias incluem as crenas compartilhadas que os grupos desenvolvem a respeito de quem importante, o que permitido, e como as coisas so feitas dentro desse grupo. Incluem-se tambm os valores compartilhados que chamamos de cultura de grupo e as regras e polticas desenvolvidas pelos grupos para governar as interaes entre si e com o resto do mundo. Finalmente, explicaes sistmicas procuram as causas fora do grupo, por exemplo, as foras do ambiente que conduzem e dirigem grupos ou indivduos a fazer uma coisa em detrimento de outra. Essas foras incluem as leis e os regulamentos que constituem o contexto situacional em que as pessoas agem, as instituies econmicas e sociais que do sentido e direo s nossas vidas, e a cultura que molda os valores e percepes das pessoas e grupos. 8

Direo: Alex Gibney. EUA, 2005 (109 min.)

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Concentrar-me-ei no terceiro mbito o das explicaes sistmicas para avaliar o que deu de errado com a Enron. Eu acho que uma das causas sistmicas bvias do escndalo da Enron a estrutura legal e regulatria dos Estados Unidos. Primeiro, as leis atuais e os regulamentos permitem que empresas como a Arthur Andersen forneam servios de consultoria a uma companhia e, logo em seguida, voltem mesma companhia para fornecer o relatrio de auditoria sobre o resultados financeiros dessa mesma consultoria. Isso obviamente um conflito de interesses que est constitudo na estrutura legal dos Estados Unidos. Segundo, atualmente uma empresa privada como a Enron contrata e paga os seus prprios auditores. Isso tambm um conflito de interesses constitudo no sistema legal americano, porque o auditor tem um incentivo para no emitir um relatrio desfavorvel sobre a empresa que est lhe pagando. Terceiro, a maioria das grandes empresas como a Enron esto autorizadas a gerir os seus prprios fundos de penso. Novamente, isso um conflito de interesses constitudo no sistema legal americano, porque a empresa incentivada a usar esses fundos de maneira vantajosa a si mesma, mesmo que isso gere desvantagem aos empregados. E quarto, a maioria das empresas como a Enron tm cdigos de tica que probem os gerentes e os executivos de se envolverem com outra entidade de negcio que faa negcios com a sua prpria empresa. Mas esses cdigos de tica tm aderncia voluntria e podem ser colocados de lado pelo conselho de diretores. A atual estrutura legal dos Estados Unidos permite aos gerentes entrar nesses tipos de arranjo, o que constitui um conflito de interesses. Os gerentes e os executivos, claro, tm um dever fiducirio de agir de acordo com o interesse da companhia e de seus acionistas, mas a lei deixa muita margem de manobra para os gerentes e executivos exercerem o seu prprio juzo sobre o que seria o melhor interesse da companhia. Uma boa parte da histria da Enron se desenvolveu na expanso econmica dos anos 90. O mercado de aes estava num momento de grande efervescncia. Startups estavam crescendo por meio de capital de risco, empresas estabelecidas estavam se expandindo, consumidores estavam gastando, e parecia que todo mundo estava ganhando muito dinheiro. Gostaria de sugerir que, em perodos como esse, nossos padres morais tendem a se corromper. Ao perceber a facilidade de ganhar dinheiro, somos levados a aparar arestas, pegar atalhos, focamo-nos em pegar o nosso prprio pedao da pizza, no importando mais nada, porque est todo mundo pegando o seu. A expanso dessa cultura, eu acredito, foi parte do que afetou a Enron e levou seus gerentes e executivos a pensar que tudo estava bem, desde que o dinheiro continuasse entrando (VELASQUEZ, 2002, traduo minha). Concluso

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A tica empresarial inevitvel; ela existe estando organizada (de forma oficial) ou no. Existem diversas maneiras de se criar um cdigo de tica. Os desafios de manter uma tica viva num sistema que no a privilegia so enormes. Manter claros os objetivos aos stakeholders (transparncia) ajuda na definio, formatao e manuteno da tica empresarial. Uma aparente armadilha da deontologia a de tentar dar respostas sem esclarecer os objetivos. Dessa forma, cria-se muita margem de manobra, o que pode provocar desvios de tica. Uma tica empresarial eficiente acaba por intervir na tica da sociedade como um todo. HONESTIDADE...

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Fonte: Wikimedia (alteraes realizadas pelo autor). Exerccios resolvidos 1. Julgue os itens a seguir como verdadeiros ou falsos. a) Para a tica empresarial, o conceito de tica pode ser entendido como a busca pelo bem comum. (Verdadeiro) b) A tica empresarial pode intervir na tica da sociedade como um todo. (Verdadeiro) c) Existe apenas uma estratgia eficiente de implantao de um cdigo de tica empresarial a anlise de stakeholders. (Falso Existem diversas estratgias.) d) A participao dos stakeholders legitima o cdigo de tica. (Verdadeiro) e) Manter os objetivos claros aos stakeholders (transparncia) ajuda na definio e formatao da tica empresarial. (Verdadeiro) f) Um cdigo de tica que traz as respostas sem dizer os porqus cria margem de manobra que facilita a ocorrncia de desvios de tica. (Verdadeiro) g) Para implantar um cdigo de tica numa empresa, preciso contratar consultorias especializadas em tica, que traro todas as respostas para as demandas da empresa. No preciso se preocupar com a situao anterior implantao do cdigo de tica, visto que ele ir transformar radicalmente a tudo e a todos. (Falso Mais importante do que se preocupar com consultorias entender que um cdigo de tica s eficiente se for legitimado pelos stakeholders. Alm disso, as condies prvias de implantao interferem completamente no sucesso ou insucesso de um cdigo de tica empresarial, sendo o diagnstico o primeiro passo a ser realizado.) h) Tolerncia e dilogo so imprescindveis ao sucesso da instaurao da tica empresarial. (Verdadeiro) i) A tica empresarial no existe em algumas empresas. (Falso A tica empresarial inevitvel e existe em qualquer atividade econmica e empresarial.) 2. Qual seria o contexto ideal para implantao de um cdigo de tica empresarial?

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R: Para se desenhar uma tica nas empresas, preciso cumprir os seguintes requisitos: - Determinar o fim especfico da empresa, aquilo que a legitima na sociedade. - Averiguar os meios adequados e os princpios ticos a serem incorporados. - Elencar os hbitos a serem adquiridos. - Ir forjando um ambiente que permita dialogar e tomar decises quanto s metas. - Reconhecer que relao deve acontecer entre os processos da empresa e a empresa. - Identificar as caractersticas da tica da sociedade na qual est inserida a empresa e os direitos que essa sociedade reconhece s pessoas. Alm disso, a diversidade entre as pessoas da empresa faz surgir a necessidade da tolerncia e do dilogo, itens indispensveis para que se compartilhe uma mesma tica. Outras variveis tambm precisam estar presentes nos processos de gesto da empresa para que os valores a serem compartilhados atravs dos princpios ticos possam efetivamente tomar seu lugar. Estas variveis so: a estrutura, a estratgia, os sistemas e processos, as habilidades, a equipe e o estilo de direo que tal empresa carrega. 3. Por que a transparncia nos objetivos de implantao de um cdigo de tica ajuda a diminuir a margem de manobra e a consequente possibilidade de desvio de tica? R: Ao se implantar um cdigo de tica como algo alm das regras e muito mais como valores para se alcanar determinados objetivos, amplia-se a legitimidade dos atores envolvidos de forma que estes tendero a escolher pelo bem comum quando houver situaes complexas que clamem por decises de carter tico, diminuindo assim a oportunidade dos desvios de tica a chamada margem de manobra.

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REFERNCIAS FREEMAN, R. E. (1994). The Politics of Stakeholder Theory: Some Future Directions. Business Ethics Quarterly, 4(4), 1994, p. 409-421. GAARDER, J. O Mundo de Sofia: romance da histria da filosofia. So Paulo: Cia das Letras, 1995. GOODPASTER, K. Business Ethics and Stakeholder Analysys. Business Ethics Quarterly, 1(1), 1991, p. 53- 73. GOSWAMI, A. 34 Prmio Frum de Lderes Empresariais. Palestra realizada em 28 de novembro de 2011, em So Paulo. MOTOMURA, O. Soluo pela tica. poca Negcios, n. 23, p. 1, jan. 2009. PETERS, T. J.; WATERMAN, R. H. In search of excellence. Lessons from Americas best-run companies. New York: Warner, 1984. VELASQUEZ, M. What Really Went Wrong With Enron? A Culture of Evil? Santa Clara University, 5 mar. 2002. Disponvel em: . Acesso em 2 de dez. 2011. ZOBOLI, E. L. A tica nas Organizaes. So Paulo: Instituto Ethos, 2001.

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UNIDADE 3 SUSTENTABILIDADE Introduo A relao dos seres humanos entre si e com a natureza tem sido objeto de estudos h muito tempo. Tanto na civilizao ocidental como na oriental tais temas parecem se misturar com a prpria origem da construo do conhecimento. No de se admirar que o ser humano tenha se detido nas relaes mais prximas e intrnsecas a ele a dele mesmo com seus semelhantes e a dele com a natureza. Desde a filosofia, passando pelas religies, at o princpio das cincias humanas e naturais, abundante o material que tem como tema os humanos ou a humanidade e a natureza que os cerca (por exemplo, nas civilizaes mesopotmicas, nas civilizaes pr-colombianas, na filosofia pr-socrtica, na filosofia grega, no hindusmo, no budismo, no islamismo etc.). Um enfoque mais prximo sustentabilidade pode ser encontrado nos estudos de Malthus (1798) e sua teoria populacional, ou princpio do crescimento humano. Esta desigualdade natural entre dois poderes, o da populao e o da produo da terra, e a grande lei da nossa natureza que precisa constantemente manter seus efeitos iguais, formam a grande dificuldade que me parece intransponvel no caminho para a perfeio da sociedade. Malthus propunha que os problemas sociais eram advindos do crescimento populacional, em proporo geomtrica, enquanto a produo de alimentos crescia em proporo aritmtica. Sendo assim, a escassez seria inevitvel. Aparentemente, o desenvolvimento tecnolgico mecanizao da agricultura e uso do petrleo, no apenas como combustvel para potencializar as atividades de arado, plantio e colheita, mas principalmente como fonte de nitrognio fixado artificialmente para propiciar o aumento da produo de alimentos (MORTON, 2011) no deixaram que o cenrio de calamidade proposto por Malthus ocorresse. Mais recentemente, inicia-se o movimento em prol do desenvolvimento sustentvel propriamente dito com o Relatrio Brundtland (BRUNDTLAND, 1987) ou, mais propriamente, o

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relatrio intitulado Nosso Futuro Comum, produzido pela Comisso Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, liderada pela mdica e poltica Gro Harlem Brundtland. O relatrio, publicado em 1987, traz consideraes importantes sobre a utilizao exacerbada dos recursos naturais sem respeitar a capacidade de ciclagem dos ecossistemas. tambm desse relatrio que sai a definio mais difundida de desenvolvimento sustentvel, segundo a qual ele o desenvolvimento que supre as necessidades do presente, sem comprometer a capacidade das futuras geraes de suprir as suas prprias necessidades. Desde ento o movimento em torno da sustentabilidade ganhou fora e importantes documentos foram somados ao Relatrio Brundtland, sendo impossvel deixar de citar a Agenda 21 (1992) e a Carta da Terra (2000). A Agenda 21 o documento que resultou da Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, popularmente conhecida como Eco 92. Cada pas desenvolve sua prpria Agenda 21 de acordo com o iderio de pensar globalmente e agir localmente. A Carta da Terra o resultado de um processo de consulta global que durou seis anos. Sua necessidade foi aventada ainda em 1987 como resultado do Relatrio Brundtland, pois percebeu-se a ausncia de um documento que facilitasse a transio rumo a uma sociedade sustentvel. A Carta da Terra o documento internacional que traz valores e princpios fundamentais para o sculo XXI, a fim de se alcanar a to almejada sustentabilidade. Ela composta de um prembulo e quatro pilares, que contm 16 princpios principais, os quais, por sua vez, contm mais 61 princpios que fundamentam a tambm conhecida como Carta dos Povos. Fonte: Wikimedia. A Carta da Terra possui o seguinte prembulo:

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Estamos diante de um momento crtico na histria da Terra, numa poca em que a humanidade deve escolher o seu futuro. medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frgil, o futuro reserva, ao mesmo tempo, grande perigo e grande esperana. Para seguir adiante, devemos reconhecer que, no meio de uma magnfica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma famlia humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos nos juntar para gerar uma sociedade sustentvel global fundada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justia econmica e numa cultura da paz. Para chegar a este propsito, imperativo que ns, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade de vida e com as futuras geraes (CARTA DA TERRA, 2000). So estes os quatro pilares principais da Carta da Terra: 1. Respeitar e cuidar da comunidade de vida. 2. Integridade ecolgica. 3. Justia social e econmica. 4. Democracia, no violncia e paz. Para os profissionais que se aventuraro na seara da sustentabilidade, fortemente recomendada a leitura integral do texto da Carta da Terra, que pode ser facilmente encontrada numa busca na Internet9. Cabe dizer que a sustentabilidade e o conceito de desenvolvimento sustentvel no passam sem crticas. A maioria delas diz respeito impossibilidade de tal feito, chegando alguns a considerar um oximoro10 a expresso desenvolvimento sustentvel. Invivel ou no, fato que o problema por trs do conceito existe e tende a perdurar, para no dizer aumentar, enquanto as respostas a ele ainda se detiverem na dialtica do acredito ou no acredito. A prtica do desenvolvimento sustentvel parece ser um daqueles casos em que se aprende fazendo, no apenas pela urgncia do tema, mas tambm por sua complexidade.

Sugesto: Website do Ministrio do Meio Ambiente: . 10 Oximoro uma figura de linguagem que consiste em reunir dois conceitos opostos numa s expresso.

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Pilares da Sustentabilidade (Triple Bottom Line) O termo Pilares da Sustentabilidade a traduo do termo Triple Bottom Line, ou TBL, conceito criado por John Elkington em 1995 para relacionar as trs principais frentes de ao da sustentabilidade: a econmica, a social e a ambiental. (ELKINGTON, 1997). Os termos originais em ingls criados por Elkington foram profit (lucro), people (pessoas) e planet (planeta), de onde decorre a denominao 3Ps. Por isso, no jargo tcnico, possvel ouvir que a expresso TBL composta pelos 3Ps. Atualmente possvel encontrar tambm a seguinte representao grfica do TBL: Essa representao agrega uma nova

Econmica (Prot)

Sociedade (People)

Ambiental (Planet)

Ambiental

perspectiva ao conceito. O fato de deixar a economia contida num crculo menor, seguida pelo crculo da sociedade, e ambas contidas no crculo do

Social

meio ambiente, cria o sentido de que a economia existe num contexto social e que sociedade e economia existem num contexto ambiental. Assim, a economia nunca poderia sobrepujar a sociedade e

econmica

nem as duas, o meio ambiente. Imagine como seria uma economia maior que a sociedade que a contm. Ou ento uma

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sociedade maior que o planeta que a contm. Nada sustentvel, no mesmo? Pegada Ecolgica O conceito de pegada ecolgica foi criado por William Rees e nada mais do que uma maneira de medir a demanda humana pelos recursos da natureza. Trata-se de uma medida padronizada da demanda por capital natural comparada com a capacidade ecolgica de regenerao dos ecossistemas. A pegada ecolgica representa a produtividade biolgica de um ecossistema necessria para suprir o consumo humano e para reabsorver os resduos associados a esse consumo. Assim, possvel estimar quanto do planeta Terra, ou quantos planetas Terras seriam necessrios para suportar um determinado estilo de vida (REES, 1992). Dados da Global Footprint Network organizao independente fundada em 2003, com sede nos Estados Unidos, Blgica e Sua, que trabalha para promover a sustentabilidade dizem que hoje estamos a utilizar 1,5 planeta.

Texto complementar11 O texto a seguir a traduo da notcia World Footprint, 2011, publicada em 02 de julho de 2011 no website da Global Footprint Network. Pegada Ecolgica Mundial A gente se encaixa no planeta? Hoje a humanidade utiliza o equivalente a um planeta e meio (1,5), que serve para nos abastecer de recursos e para reabsorver nossos resduos. Isso significa que o que usamos em um ano tem custado ao planeta Terra um ano e seis meses para ser reabsorvido. Cenrios moderados projetados pelas Naes Unidas sugerem que, se o crescimento populacional e o comportamento de consumo continuarem os mesmos, em 2030 ns precisaremos do equivalente a dois planetas para nos suportar. E obviamente ns s temos um. Transformar recursos naturais em resduos mais rpido do que os resduos se transformam novamente em recursos nos coloca em uma situao perigosa de excesso de consumo, que acabar por esgotar os to importantes recursos dos quais dependem a vida dos Disponvel em: . Acesso em: 5 dez. 2011 traduo minha.11

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seres humanos e toda a biodiversidade. O resultado o colapso dos recursos pesqueiros, a diminuio da cobertura florestal, o esgotamento dos sistemas de gua doce e o aumento das emisses de dixido de carbono, o que cria problemas como o das mudanas climticas globais. Esses so apenas alguns dos mais notrios efeitos do excesso de consumo. O excesso de consumo tambm contribui para conflitos por recursos e guerras, migraes em massa, fome, doenas e outras tragdias humanas e tende a ter um impacto desproporcional sobre os mais pobres, que no tm como comprar o seu caminho para fora do problema, arrumando recursos de algum outro lugar.

Acabando com o excesso de consumo A Terra fornece tudo o que precisamos para viver e nos desenvolver. Ento o que preciso para a humanidade viver dentro dos limites de nosso planeta? Indivduos e instituies pelo mundo precisam comear a reconhecer os limites ecolgicos. Ns precisamos comear a fazer dos limites ecolgicos o fator central de nossas tomadas de deciso. Alm disso, precisamos utilizar a engenhosidade humana para encontrar novas maneiras de viver, dentro da capacidade da Terra. Isto significa investimento em tecnologia e infraestrutura, que nos permitir operar num mundo de recursos escassos. Significa tomar decises individuais a ponto de criar uma demanda 39

para que as empresas e as organizaes sociopolticas sejam compelidas a participar. Utilizar ferramentas como a pegada ecolgica para gerenciar nossos ativos naturais essencial para a sobrevivncia e sucesso da humanidade. Saber o quanto ns temos de natureza, o quanto ns usamos e quem usa o primeiro grande passo, e nos permitir rastrear nosso progresso conforme trabalhamos rumo ao nosso objetivo - um planeta vivo e sustentvel. Exerccio tcnico de aprendizado Pesquise na internet uma maneira de calcular sua pegada ecolgica. Existem diversos sites que ensinam como fazer isso. Perceba que possvel calcul-la de diversas maneiras diferentes (pegada ecolgica da emisso de carbono, pegada ecolgica dos recursos pesqueiros, pegada ecolgica de planetas Terra etc.). Seja fiel em suas informaes e anote todas elas. Reflita sobre o resultado obtido e procure descobrir a pegada ecolgica de outras pessoas. Inclua, em sua busca por pegadas ecolgicas alheias, as de outros pases, como Estados Unidos, China, Inglaterra, entre outros. Independentemente de qual for o resultado obtido, reinicie o processo de input de dados de forma que, brincando, voc descubra como aumentar e diminuir, de diferentes formas, a sua pegada ecolgica. Tendo ideia de sua pegada ecolgica e da pegada ecolgica de outras pessoas e de outros pases, e j sabendo como fazer para aument-la e diminu-la, imagine, num exerccio de criatividade, as medidas necessrias para alcanar a meta de um planeta Terra. Boa jornada! Capitalismo Natural e o Paradoxo de Jevons Em Capitalismo Natural (1999), Paul Hawken, Hunter Lovins e Amory Lovins propem que, para a construo da humanidade sustentvel, preciso investir em quatro principais frentes: 1 Eficincia:

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Atravs da eficincia se consegue um uso mais efetivo dos recursos naturais, aumentando-se tambm o seu rendimento. Alm disso, processos eficientes geram menos resduos e menos poluio. 2 Biomimtica: Imitar a natureza desenhando processos industriais circulares e sem desperdcio. Ciclos fechados no geram detritos, nem poluio (leia adiante o item Do bero ao bero). 3 Uma economia de servios: Substituir a economia baseada em produtos por uma economia baseada em servios. Ao invs de se criar cada vez mais produtos e de se estimular o consumismo e a obsolescncia programada, a economia baseada em servios aproxima o cliente da empresa e oferece aquilo de que o cliente precisa (por exemplo, talvez ele no precise de uma furadeira, mas apenas de um buraco na parede). 4 Investimento no capital natural: Incluindo-se o valor das externalidades e dos servios da natureza, seria possvel restaurar o capital natural e mant-lo por longo tempo. Aumentar a eficincia dos processos tem sido a estratgia mais bem aceita pelo mundo corporativo, visto que o ganho com tal escolha imediato. Contudo, o paradoxo de Jevons, tambm conhecido como efeito Jevons, prope que o aumento da eficincia no necessariamente incorre na diminuio do consumo de recursos, pelo contrrio, pode incorrer em aumento. O efeito Jevons foi descrito em 1865 pelo economista ingls William Stanley Jevons, que observou que o aumento da eficincia das mquinas movidas a vapor abaixou o preo do carvo de forma que mais mquinas puderam ser construdas, aumentando o consumo do carvo. Ento, apesar da eficincia ter aumentado, o consumo do recurso tambm aumentou (JEVONS paradox, 2011). Essa constatao tambm ocorre hoje em dia em diversas empresas empresas que

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diminuem a quantidade de gua utilizada para fazer um litro de refrigerante, mas que em nmeros absolutos triplicam suas vendas pelo mundo e acabam por aumentar o consumo de gua; bancos que implantam programas de corte de custos, e que conseguem uma grande economia de energia, por exemplo, mas que, ao se expandirem para outros pases, aumentam o consumo absoluto de energia. Fonte: Wikimedia (mixagem grfica do autor). Assim, parece que a estratgia mais bem-vista pelas corporaes tem pouca ou nenhuma efetividade, podendo, muitas vezes, levar a um resultado oposto ao esperado. A eficincia bem-vinda se for para preservar os recursos, contudo, quando ela acaba por estimular o efeito contrrio, preciso reconsiderar todo o processo e suas motivaes. A questo que a sustentabilidade est assentada sobre problemas complexos, para os quais respostas simples e genricas no funcionam. preciso uma associao de medidas para que se consigam resultados satisfatrios. No basta a eficincia. preciso investimento no capital natural, uma economia de servios que leve em conta tambm as externalidades12 e, acima de tudo, preciso aprender com a natureza (populaes que crescem infinitamente acabam se extinguindo). Complexidade e Ciberntica A complexidade aqui referida contempla a linearidade e os sistemas. E os conceitos aqui discutidos so baseados no livro As Paixes do Ego Complexidade, Poltica e Solidariedade (2000), de Humberto Mariotti.

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Externalidades so valores no computados na economia tradicional, mas que causam efeitos sociais e ambientais.

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Um problema complexo tem tantas variveis que chega a permitir infinitas, ou incontveis, probabilidades de arranjos, sendo impossvel determinar com certeza o resultado de algum acontecimento. Um exemplo da complexidade na sustentabilidade vem da pergunta: O que melhor para o meio ambiente, utilizar toalha de papel para enxugar as mos ou utilizar toalha de pano? A melhor resposta a se dar : Depende... . Porque realmente depende de uma poro enorme de variveis, por exemplo, o local em que essa deciso ter de ser tomada. Se na localidade houver um rio eutrofizado (com excesso de matria orgnica), pode no ser bom jogar mais fsforo dos detergentes e saponceos oriundos da lavagem das toalhas. Ao mesmo tempo, se a toalha de papel for produzida num processo de eficincia energtica e sem desmatar nenhuma rea nova a fim de se conseguir a celulose, pode ser que o impacto ambiental seja mnimo. O que importa deixar claro que, em assuntos de sustentabilidade, sempre bom exercitar a mudana de ponto de vista e deixar a dvida na frente da resoluo. A complexidade no seria de modo algum um problema, visto que problemas complexos sempre existiram e permearam a histria dos seres humanos. Contudo, a sociedade em que vivemos se acostumou ao processo racional de anlise / sntese e parece ter restries em aceitar os problemas complexos. Tal qual aquele que nunca havia visto algo inusitado, o ser humano atual fica paralisado frente aos problemas complexos. Sua nica e imprestvel atitude, quando existe, tentar entender o problema como o faria com um problema simples (sndrome de uma sociedade controladora acostumada a quebrar em partes, entender e resolver). Ora, se no se pode controlar a situao, tambm no resposta deix-la para l como se no existisse. Mas como abordar um problema complexo? Primeiro preciso aceitar a vulnerabilidade humana perante a natureza. Depois preciso encarar a questo com coragem e respeito, tal qual o nativo que explorava as florestas em busca de seu alimento. A ciberntica fornece o conceito necessrio para se entender esse movimento. Ela estuda a forma como qualquer coisa processa uma informao, reage a essa informao e muda ou mudada, para melhor cumprir os seus objetivos (PANGARO). Assim, a ciberntica se atenta ao fluxo de transformaes existentes no decorrer de um processo de comunicao (entendendo-se comunicao por qualquer processo em que haja troca de informaes).

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A ideia que, aps um objetivo ser traado e se iniciar o movimento em direo a ele, mudanas no ambiente iro desviar o agente de seu objetivo, mas, atravs de constante feedback, o agente ir corrigir sua rota at que o objetivo seja alcanado. Assim, em temas complexos, a melhor soluo parece ser colocar logo em prtica o movimento, tendo sempre em mente os objetivos, antes que se trave frente ao monstro da complexidade e nem se arrisque um primeiro passo. Fonte: PANGARO, P. Master Class Workshop - Designing for Conversation (slide 10). Disponvel em: . Acesso em: 6 dez. 2011 Mas preciso ser cuidadoso e estudar bastante, pois os conhecimentos sero as ferramentas durante o percurso. A ideia caminhar sim, mas nem por isso preciso se abster de suas armas, afinal no h nativo que entre na floresta sem sua lana (ou similar). Economia tradicional x FIB John Elkington, ao ser arguido sobre a possibilidade de alterao do termo profit (lucro) pelo termo prosperity (prosperidade) nos 3Ps, respondeu: Tendo surgido com a ideia dos 3Ps em 1995, desde 1996 eu ofereo prosperity (prosperidade) como uma opo.

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Essa resposta merece uma reflexo. Tendo o inventor dos 3Ps, no ano subsequente a sua inveno, ofertado a possibilidade de se utilizar a palavra prosperidade e at hoje ela no ter sido assimilada, indica que a palavra antes em seu lugar profit (lucro) tem um grande apelo. E bvio o porqu. No atual sistema econmico, no h como uma empresa existir se no for para gerar lucro. Contudo, a crtica ao sistema financeiro-monetrio atual bastante incisiva e muitos acreditam ser impossvel alcanar a sustentabilidade dentro de tal sistema13. A razo para a sustentabilidade se tornar impossvel no atual sistema econmico que a economia da escassez instaurada privilegia o jogo ganha-perde e o crescimento a qualquer custo. Mais do que isso, o crescimento se torna necessrio para a manuteno de um sistema que depende da promessa de incluso para se manter funcionando e mitigando as excluses econmica e social dele decorrentes. O jogo ganha-perde incentivado por essa economia vai de encontro aos preceitos de unio e cooperao descritos na Carta da Terra e propostos pelo movimento em prol da sustentabilidade. Dessa forma, parece que o desafio da sustentabilidade est muito alm da troca de lmpadas e torneiras. preciso um novo paradigma econmico para que o desenvolvimento sustentvel seja vivel. Felizmente, j existem diversas iniciativas que esto buscando a transio para esse novo paradigma, uma delas o movimento intitulado Transition Towns, criado no Reino Unido e espalhado rapidamente pelo mundo. Vale pesquisar sobre esse movimento. Fica a sugesto. Em 1972, o ento rei do Buto, Jigme Singye Wangchuck, cunhou o termo Felicidade Interna Bruta (FIB), para expressar seu compromisso de construir uma economia que servisse ao povo butans. Nessa poca, o centro de estudos do Buto, sob a liderana de Karma Ura, desenvolveu uma ferramenta sofisticada de pesquisa para medir o bem-estar da populao, e da surgiu o FIB, como uma proposta para se medir riqueza. O FIB serve ao Buto como balizador das polticas pblicas. Qualquer nova poltica deve passar por uma reviso baseada num documento intitulado Declarao de Impactos no FIB, que tem sido proposto como substituto do PIB (Produto Interno Bruto) para medio da riqueza de um pas. O PIB criticado por no levar em considerao a diviso dos numerrios na sociedade e a qualidade de vida dos indivduos que, em ltima instncia, formam o pas. Alm disso, ele no leva em Para saber mais, assista ao vdeo Funcionamento do sistema financeiro e monetrio (Zeitgeist), disponvel em: , pesquise sobre o Movimento Occupy Wall Street e leia o material disponvel no site de Ladislau Dowbor (http://dowbor.org/).13

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conta os valores dos servios prestados pela natureza, que so responsveis tambm pela qualidade de vida. Como propugna Paul Hawken, ns estaramos a roubar nosso futuro, vendendo nosso presente, e chamando isso de PIB. O FIB baseado em quatro pilares principais: o desenvolvimento sustentvel, a preservao e a promoo dos valores culturais, a conservao do meio ambiente e o estabelecimento de uma boa governana. No ano de 2011, o FIB entrou para a agenda das Naes Unidas, que estuda formas de medir a felicidade semelhana do Buto. O conceito de FIB tem se difundido pelo mundo e existem diversas iniciativas baseadas nele mundo afora14. Do bero ao bero interessante reparar que quase tudo ao nosso redor est repleto de intoxicantes para o planeta e que, para chegar at ns, essas coisas percorreram um longo caminho, muitas vezes com uma cadeia de valor por ns desconhecida. O conceito do bero ao bero (do ingls cradle to cradle, ou C2C) prope que imitemos a natureza (biomimtica). Para isso preciso redesenhar os processos industriais de forma que o ciclo de materiais dentro da esfera tcnica no gere resduos para a esfera da natureza (MCDONOUGH e BRAUNGART, 2002).

Para saber mais, assista ao vdeo O que Felicidade Interna Bruta (FIB), disponvel em: .

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Fonte: Desenho adaptado e traduzido pelo autor. O modelo do bero ao bero avisa que muitas vezes o processo de reciclagem tal qual o conhecemos apenas um retardador do fim poluidor de um resduo. A esse processo dado o nome de downcycling (ciclo abaixo). Segundo a ideia de respeitar os ciclos e de no gerar resduos, o objetivo ento seria o upcycling (ciclo acima), no qual em todo o processo de reciclagem seriam sempre obtidos materiais que retornariam cadeia industrial sem maiores problemas e deixando para trs nenhum resduo. Na proposta do C2C existem apenas duas categorias de materiais: a dos tcnicos e a dos biolgicos. Na categoria de materiais tcnicos poderiam existir apenas materiais no txicos e no perigosos, que seriam incapazes de causar dano natureza. Esses materiais deveriam poder ser utilizados continuamente no ciclo industrial sem nunca perder sua integridade e qualidade, viabilizando o upcycling. Na categoria de materiais biolgicos existiriam