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  • Srgio Pereira Couto

    Os Arquivos Secretos do VATICANO

    GUTENBERG

    2013

    Sumrio Introduo Captulo 1 - A criao dos Arquivos Secretos Indexao das informaes A abertura dos Arquivos Lendas e especulaes Captulo 2 - A Santa Inquisio As heresias As acusaes Condenaes e punies As heresias em outras religies A Inquisio medieval Outra viso da Inquisio

  • Poder e f Captulo 3 - Os ctaros e segredo do Santo Graal Quem eram os ctaros Organizao da Igreja ctara As lendas do Santo Graal A Cruzada Albigense Os tesouros e os neoctaros Captulo 4 - Os evangelhos proibidos Cannicos x apcrifos O Conclio de Niceia A escolha dos evangelhos cannicos Os critrios de escolha Verses diferentes Os manuscritos de Nag-Hammadi Captulo 5 - O Evangelho de Judas Contedo polmico Quem foi Judas Iscariotes? Trazendo um manuscrito de volta vida A redeno de Judas? Variaes sobre o mesmo tema O que a gnose Judas e os essnios Evangelhos essnios Os essnios Semelhanas com o cristianismo O estudo do Evangelho de Judas Captulo 6 - O Evangelho de Maria Madalena O contedo A identidade de Madalena Venerao Madalena e Pedro: a controvrsia Sophia no judasmo e no cristianismo

  • Competio O milagre de Madalena O outro lado da moeda Pedro segundo o gnosticismo Captulo 7 - As alteraes feitas na Bblia Interveno humana As alteraes nos textos sagrados Em busca da verdade As revises dos evangelhos Correes e mudanas Captulo 8 - A Tor: a Bblia original As divises e origens A Tor oral Captulo 9 - O cdigo da Bblia Seqncia alfabtica equidistante As pesquisas A pesquisa automtica O mentor do cdigo O resultado de probabilidades Captulo 10 - Gematria: o cdigo oculto da Bblia A gematria Os clculos A gematria revelada e mstica Talisms Identificando o mal em textos Captulo 11 - Teomtica: O cdigo da Bblia original O que teomtica? O nascimento de Jesus A polmica da teomtica O cdigo de Bullinger Os padres numricos na teomtica Captulo 12 - Os Arquivos Secretos e o Apocalipse

  • Gog e Magog Gog e Magog para o Isl Captulo 13 - Bibliolatria A autoridade das escrituras De onde vem a bibliolatria? Captulo 14 - Cincia versus Religio Suposies A briga pelo sudrio de Turim O criacionismo e o evolucionismo Captulo 15 - As informaes polmicas e proibidas O Vaticano e os Beatles Missas pagas Falncia contnua Os locais cristos O holocausto e a omisso do papa A reconciliao das Igrejas catlica e anglicana A condenao e a reabilitao de Galileu Galilei A ligao com o Brasil Captulo 16 - Os maiores segredos dos Arquivos Secretos Os maiores segredos Milhes de livros Informaes bombsticas O espiritismo A paranormalidade OVNIs e ufologia Captulo 17 - Os escndalos e a renncia do papa Vatileaks O mordomo e o escndalo financeiro Bento XVI, o nazismo e os Arquivos Secretos Pedofilia A renncia do papa A abdicao aceita

  • Introduo Tudo o que oculto, secreto, proibido parece chamar mais nossa ateno. E, de fato, uma aura de mistrio envolve os Arquivos Secretos do Vaticano. Localizados na Cidade de Vaticano, compreendem um local que rene documentos relativos a todos os atos promulgados pela Santa S. So, na verdade, um imenso repositrio central de informaes, que abrange livros, documentos, correspondncias, dirios de papas, processos da Inquisio, papis confidenciais, imagens, fac-smiles e milhares de outros registros que a Igreja Catlica vem acumulando ao longo dos sculos. Seu tamanho e extenso impressionam. Estima-se que contenham 85 quilmetros de prateleiras e que existam 35 mil volumes apenas no catlogo seletivo. No total so cerca de 2 milhes de documentos que relatam cerca de 800 anos de histria guardados hermeticamente. Os arquivos foram criados para ser consultados principalmente pelo papa e pela cria romana. Com o passar do tempo, os Arquivos Secretos do Vaticano se tornaram um verdadeiro depsito de documentos ligados aos mais variados processos que envolviam a participao da Igreja Catlica na defesa da f crist. Ali h seis grupos de documentos: cria, delegaes papais singulares ou familiares, conclios, ordens religiosas, mosteiros e confrarias, e outros. O complexo est dividido em dois recintos, que possuem a capacidade de receber a visita de at 1.500 pessoas. H tambm um aposento com os arquivos de ndices, uma biblioteca, uma sala de restaurao, um laboratrio de fotografias digitais e outro de informtica, alm do espao administrativo. Mas o que h de "secreto" em tudo isso? Em latim, Arquivos Secretos do Vaticano so Archivum Secretum Vaticanum. Nesse idioma, secretum tem o significado de segredo, mas tambm de secretrio, ou seja, a pessoa de confiana de algum. Assim, os Arquivos Secretos poderiam ser traduzidos como "arquivos de confiana". Isso porque, quando alguma dvida surge em assuntos relacionados Igreja, a eles que os padres recorrem para esclarecimentos. Entretanto, h sim um cunho de segredo por trs deles. Na verdade, nada do que possa sair de suas paredes blindadas passvel de ser tomado apenas como um

  • simples documento. Os "conspirlogos" (ou seja, os adeptos das teorias de conspirao) gostam de insinuar que o local no um simples depsito de dados dos governos papais, mas uma espcie de rea proibida, que guarda detalhes que mudariam a histria no apenas do cristianismo mas tambm da humanidade como a conhecemos. E o que de fato acontece que apenas uma parte do que h ali hoje de acesso pblico, e por alguns motivos. Primeiro porque os papis que ali existem so muito antigos e, a exemplo de museus, que no permitem flashes das mquinas fotogrficas para no danificar as obras, tambm os Arquivos Secretos protegem seu acervo, de valor incalculvel, j que o simples ato de respirar prximo a um pergaminho antigo poderia levar sua irreparvel perda. E isso acontece mesmo hoje em dia, com a tecnologia de que dispomos. Em segundo lugar, nem tudo est autorizado a ser divulgado. A publicao dos ndices dos documentos, por exemplo, em parte ou como um todo, proibida, de acordo com os regulamentos atuais estabelecidos em 2005. E, em geral, somente depois de pelo menos 75 anos de sua publicao que uma parte do acervo se torna acessvel. Essa abertura comeou no papado de Leo XIII (1810-1903). Desde 1881, o papa que est na direo da Igreja Catlica tem tomado a iniciativa de abrir o acesso a papis de seus antecessores. A partir de 1924, uma quantidade maior de textos foi aberta ao pblico, incluindo aqueles do perodo que vai at o fim do apostolado do papa Gregrio XVI (1765-1846). O fato de existir esse lapso de tempo para que determinados documentos dessa vasta coleo possam ser consultados deixa as pessoas desconfiadas. Os arquivos ganharam a alcunha de "secretos" no apenas por seu acesso restrito para a maioria das pessoas mas tambm por seu contedo proibido. Isso porque muitos livros, documentos, epstolas, entre outros, traziam idias de vrias das correntes consideradas herticas. Nos Arquivos do Vaticano possvel encontrar, alm dos citados documentos, livros confiscados e classificados como "perigosos". Entre eles, h at mesmo antigas edies da Bblia e cpias dos chamados Evangelhos Apcrifos, alm de

  • dados sobre o cdigo da Bblia e suas verses mais antigas, denominadas gematria e teomtica. Segundo dizem alguns especialistas, a parte sobre o terceiro segredo de Ftima, que era somente de conhecimento dos papas (e que teria feito um deles desmaiar ao saber de seu teor), s foi revelada por iniciativa de Joo Paulo II. E, mesmo assim, os conspirlogos afirmam que as verdades divulgadas so falsas e que as legtimas ainda estariam guardadas sob as sete chaves atribudas a Pedro. Os arquivos foram institudos em uma poca em que a Igreja Catlica era praticamente soberana no mundo e se tornou depositria do conhecimento humano desde a poca da Inquisio, em torno de 1184. Os livros considerados perigosos por ameaarem os dogmas estabelecidos pela Igreja eram recolhidos e destrudos, mas no antes de terem um exemplar l colocado para consultas futuras, por parte daqueles que se lanavam na defesa da "pureza eclesistica". At a, eles poderiam compor uma simples biblioteca, que guarda obras que, por serem consideradas herticas, no mereceriam tanto destaque, j que a prpria heresia discutvel do ponto de vista tanto religioso quanto do fdosfico. Mas, em uma poca de pensamento e regncia absolutistas, tudo era imposto. Na verdade, dos evangelhos apcrifos aos textos escritos por aqueles considerados herticos e perigosos, o fato que, at hoje, no se teve uma explicao satisfatria por parte dos clrigos do motivo pelo qual esses livros foram guardados nessa biblioteca. E do porqu, ainda hoje, de alguns desses escritos ainda no serem de consulta pblica. O que se sabe que tais escritos eram guardados para um suposto estudo por parte dos doutores da Igreja para entender melhor a mentalidade hertica e os motivos que os levavam a combater idias diferentes das deles. Com certeza, houve casos de clrigos que, aps lerem tais textos, resolveram trocar de lado, mas seus nomes ou so pouco conhecidos, ou simplesmente se perderam na histria. Por tudo isso, reunimos neste livro um apanhado de estudos, pesquisas, informaes e fatos sobre esse fascinante assunto. Discorreremos sobre a histria do lugar, os detalhes de sua criao e formao, informaes sobre a Inquisio e as heresias, cujos processos lotaram as enormes prateleiras de registros e dados

  • sobre alguns grupos que, na Idade Mdia e em outras eras, se atreveram a levantar a voz contra o domnio da Igreja Catlica, alm dos evangelhos proibidos, mistrios, polmicas e segredos, inclusive relacionados renncia do agora papa emrito Bento XVI. Tudo o que foi aqui colocado foi feito sob um ponto de vista analtico, pois no pretendemos dar a resposta definitiva a indagaes, mistrios e dvidas, mas sim fazer com que o leitor tenha subsdios para tirar concluses por si. Na busca da verdade, uma ressalva necessria: para que as informaes obtidas dos Arquivos Secretos no exprimam apenas o ponto de vista da Igreja Catlica e de seus inquisidores sobre os diversos assuntos l tratados, preciso cruzar dados entre os documentos do Vaticano e o que mais possa ser encontrado em outras bibliotecas e centros documentais do mundo, o que buscamos, pelo menos em parte, fazer. De qualquer maneira, se h algo que fascina as pessoas poder ter acesso a dados tirados de circulao e a outros assuntos considerados "proibidos" e que desafiam a realidade como conhecemos e provocam nosso imaginrio a conjecturar qual , afinal, a verdade. Vamos, ento, a eles.

    Captulo 1 A Criao dos Arquivos Secretos

    Os Arquivos Secretos do Vaticano surgiram oficialmente em 1610 e foram sancionados pelo papa Paulo V (1552-1621) com a inteno oficial de "resguardar o legado de Jesus Cristo, herdado por seus seguidores". Assim, todo documento classificado como de interesse eclesistico est guardado no acervo, que inclui decretos, cartas, processos inquisitrios e, claro, os livros proibidos que tanto atraem a ateno do pblico. L tambm esto catalogados vrios documentos que revelam a histria de vrios pases, alm de documentos administrativos relativos ao prprio Vaticano e livros de papas, entre outras raridades.

  • Os clrigos que zelam por seu acervo afirmam que cuidam para que os ensinamentos de Jesus sejam passados de maneira correta entre as geraes sem que sofram alteraes. Ao longo do tempo, vrios textos evanglicos, correspondncias apostlicas e outros tipos de documentos estiveram bem longe da curiosidade pblica. Segundo o site oficial do Vaticano, as razes para o estabelecimento desse depositrio incrvel remontam prpria origem, natureza, atividades e desenvolvimento da Igreja Catlica. Diz a pgina: Desde os tempos apostlicos, os papas preservaram cuidadosamente os manuscritos relativos aos exerccios de suas atividades. Essa coleo de manuscritos foi mantida no Scriniutn Sanctae Romanae Ecclesiae, que geralmente segue os papas em suas vrias residncias, mas a fragilidade dos papiros, normalmente usados pela chancelaria papal at o sculo XI, as transferncias e as mudanas polticas quase causaram a perda total do material arquivado anterior a Inocncio III. A partir do sculo XI, quando o papa e seus seguidores ganharam os papis de destaque que mantm at hoje, o nmero de escritrios da cria cresceu. No sculo XV, os documentos considerados os mais preciosos foram levados para o Castelo de Sant'ngelo. Aps vrios projetos para a criao de um arquivo principal, Paulo V finalmente deu a ordem para a transferncia dos registros das bulas papais, comunicados, livros da cmara e as colees de documentos anteriores poca de Pio V (1504-1572) para cerca de trs sales prximos Sala Paoline, que j era uma espcie de biblioteca secreta de uso exclusivo. Foram cerca de 300 documentos classificados da seguinte maneira: "Para uso privado dos pontfices romanos". Durante o sculo XVII, os arquivos cresceram de maneira considervel, especialmente sob o pontificado de Urbano VIII (1568-1644), quando foram acrescentados documentos, como as bulas de Sisto IV e Pio V, e os documentos dos secretrios de Alexandre VI a Pio V. Os livros foram ento transferidos para

  • a cmara apostlica de Avignon, juntando-se aos do perodo do Cisma e aos documentos sobre o Conclio de Trento. Os arquivos sofreram nova ampliao de contedo sob o pontificado de Alexandre VII (1599-1667), que escolheu concentrar a correspondncia diplomtica da secretaria de estado em um andar especfico dos palcios vaticanos. Na primeira metade do sculo XIII, durante as administraes de Pietro Donnino de Pretis e Filippo Ronconi, os documentos mantidos nos arquivos foram postos em ordem pela primeira vez, e muitos achados mantm a ordem original at hoje. Indexao das informaes Entre 1781 e 1782, a histria dos Arquivos foi dominada por Giuseppe Garampi, o principal criador, entre outras coisas, do famoso sistema de ndice que leva seu nome. Ele manteve muitas aquisies, depsitos e conseguiu muitas transferncias de material, inclusive cerca de 1.300 livros da cmara. Em 1783, tudo o que ainda restava em Avignon foi levado para o Vaticano, incluindo uma srie de registros chamados de Registra Avenionensia. Em 1798, os registros que estavam no Castelo Sant'Angelo tambm foram transferidos para l, e Garampi j havia assumido como arquivista do Vaticano e do castelo. Assim, o acervo foi acrescido de 81 documentos com selos de ouro, entre os quais constava um diploma de Friedrich Barbarossa ou Frederico I, sacro imperador romano-germnico (1122-1190), que datava de 1164. Em 1810, por ordem de Napoleo Bonaparte, quando de sua invaso Itlia, os arquivos foram levados para Paris e apenas voltaram para seu local original entre 1815 e 1817, o que causou a perda de vrios documentos. Quando as tropas italianas conquistaram Roma, em 1870, os arquivos encontrados fora dos muros vaticanos foram confiscados pelo ento recm-nascido estado italiano, que assim formou o ncleo dos arquivos de estados de Roma. No sculo XVII os arquivos foram retirados da biblioteca do Vaticano, at ento seu local sede, e permaneceram fechados para pessoas no autorizadas at o fim

  • do sculo XIX, quando passaram a ser abertos parcialmente pelo papa Leo XIII. Desde ento, o acervo se tornou um dos mais importantes do mundo. Em 1892, uma parte enorme da Dataria Apostolica, um dos cinco Ufficii di Curia, rgo da cria romana anexo chancelaria apostlica, foi criada no sculo XII e extinta no sculo XX durante o pontificado de Pio X. Durante o sculo passado, bem como em partes modernas dos arquivos da secretaria do estado, apareceram tambm arquivos da secretaria de comunicados da rota romana, tribunal com lei prpria, tambm chamado de tribunal da rota romana ou tribunal rotae romanae, que funciona como instncia superior no grau de apelo junto s apostlica para tutelar os direitos na Igreja de vrias congregaes, do palcio apostlico, do primeiro Conclio do Vaticano e at de famlias ligadas histria da cria, incluindo Borghese, Boncompagni, Rospigliosi, Ruspoli, Marescotti, Montoro, entre outras. No ano 2000, o arquivo completo sobre o segundo Concilio do Vaticano foi transferido pelo papa Paulo VI (1897-1978), que liberou o acesso de pesquisadores em um limite alm do normalmente imposto para consultas. Hoje em dia, a documentao mantida nos Arquivos Secretos est em constante crescimento e cobre cerca de 800 anos de histria, de 1198 em diante, com alguns documentos isolados pertencentes aos sculos X e XI. O item mais antigo conservado por l o Liber Diurnus Romanorum Pontificum, um antigo livro com as declaraes da chancelaria papal que remontam ao sculo VIII. A abertura dos Arquivos Talvez no haja um anncio de maior expectativa, principalmente para o mundo dos pesquisadores, que a abertura total ou parcial dos Arquivos Secretos do Vaticano ao pblico. Imagine-se ter acesso a milhares de documentos histricos, em um acervo que comparvel ao de grandes museus do mundo, como o Museu Britnico ou o Louvre, mas composto apenas e to-somente por papis inditos, que no veem a luz do dia h sculos. No toa que, a cada anncio de abertura de uma parte dos Arquivos Secretos do Vaticano, o mundo noticia esse fato com destaque. O Vaticano conhece o

  • fascnio que seus arquivos exercem nas pessoas. Os ltimos perodos de abertura foram: Em 1966: textos do perodo do pontificado de Pio XI, de 1846 a 1878. Em 1978: textos do perodo do pontificado de Leo XIII, de 1878 a 1903. Em 1985: textos do perodo dos pontificados de Pio X, de 1903 a 1914, e de Bento XV, de 1914 a 1922. Em 2003, o papa Joo Paulo II abriu a documentao referente ao arquivo histrico da secretaria de estado (segunda seo), que possui textos que narram as perigosas interaes do Vaticano com a Alemanha durante o nazismo. O meio acadmico sempre se interessou, motivo pelo qual Pio XI se manteve de certa maneira inerte perseguio realizada contra os judeus, o que levou especulao de que o papa teria alguma espcie de acordo secreto com Hitler. A abertura total dos Arquivos Secretos do Vaticano seria um acontecimento mpar. Primeiro, por ter um dos acervos mais antigos e em excelente estado de conservao, graas aos esforos dos especialistas que l trabalham, em geral ligados Igreja ou ao prprio clero. Depois pela prpria importncia histrica dos documentos l guardados. Afinal, onde mais h ainda conservada uma cpia da carta de Henrique VIII ao papa Clemente VII, de 1530, pedindo a anulao de seu casamento com Catarina de Arago? Ou uma cpia do famoso Pergaminho de Chinon, documento que prova que o papa Clemente V absolveu secretamente o ltimo gro-mestre, Jacques de Molay, e os demais lderes dos Templrios, em 1308, das acusaes feitas pela Santa Inquisio de heresia e que levou ao fim da Ordem dos Templrios? claro que, justamente por seu alto valor histrico, o Vaticano aproveita para levantar recursos custa dos interessados em manter esses documentos em colees particulares ou mesmo em acervos de bibliotecas e museus espalhados por vrios pases. Por exemplo, a carta de Henrique VIII teve 200 cpias produzidas e vendidas pela "mdica" quantia de 50 mil euros, o que significou uma soma considervel para os cofres do Vaticano. O anncio da venda das cpias da carta ganhou a

  • mdia internacional. Abaixo a reproduo da notcia publicada em 2009 pela BBC Brasil: O Arquivo Secreto do Vaticano anunciou que ir publicar cpias da carta de 1530 em que nobres e religiosos ingleses pedem ao papa para anular o casamento do rei ingls Henrique VIII com Catarina de Arago para que ele pudesse se casar com Ana Bolena. O documento original, arquivado no Vaticano com o nome de "Causa Anglica - O atribulado caso matrimonial de Henrique VIII", contribuiu para desencadear o cisma entre a Igreja Anglicana e a Igreja Catlica. O original e um fac-smile, a partir do qual sero feitas outras cpias, foram apresentados para a imprensa na ltima tera-feira, na sede do Arquivo Secreto do Vaticano. O lanamento oficial das cpias do documento est marcado para o dia 24 de junho, durante as comemoraes dos 500 anos da ascenso de Henrique VIII ao trono da Inglaterra. O texto considerado uma das pginas fundamentais da histria inglesa. Nele, 85 nobres e religiosos ingleses se dirigem ao papa Clemente VII pedindo a anulao do casamento do rei com Catarina de Arago, a primeira das seis esposas de Henrique 8o. Para se casar com Catarina, o rei da Inglaterra, que subiu ao trono em 1509, j tinha pedido uma autorizao especial do pontfice, porque ela era viva de seu irmo. A primeira cpia da carta vai ser dada ao papa Bento 16, que deve visitar a Inglaterra at o final do ano. As demais publicaes sero vendidas a museus, institutos de cultura e colecionadores privados. Os interessados devero desembolsar cerca de 130 mil reais para comprar uma das cpias e, provavelmente, comprometer-se a exp-la a um pblico mais amplo. At agora, o documento podia ser visto apenas por chefes de Estado, ou outras autoridades, em visita oficial ao Vaticano. Segundo o diretor do Arquivo Secreto do Vaticano, monsenhor Srgio Pagano, o dinheiro arrecadado com as vendas vai ser usado para restaurar parte do acervo da instituio, um dos mais ricos do mundo. O imaginrio popular pensa que se documentos histricos to importantes encontraram um lar em meio sede mundial da Igreja Catlica, o que mais poder haver l para precisar ser to bem guardado?

  • Claro que os "conspirlogos" fazem a festa e deliram em cima do que possa haver por l, que iria desde algum texto assinado pelo prprio Jesus Cristo, at relquias de santos medievais preservadas por motivos escusos. O fato que a conservao que os especialistas dos arquivos realizam parece dar o efeito necessrio. A editora que cuidou da reproduo da carta de Henrique VIII afirmou, na poca do lanamento das cpias, que "no pergaminho (do Vaticano) esto pendurados lacres magnificamente conservados, enquanto o documento que ficou na Inglaterra est em estado de conservao precrio. Em algumas partes chega a ser ilegvel e no h nenhum lacre". Se a Inglaterra, que deveria ter sua cpia bem-conservada, a tem em estado precrio, imagine s como estaria a do Vaticano, com seus 85 lacres, emoldurados em metal e unidos por uma fita de algodo e seda de 40 metros de comprimento. Somente esse documento pesa por volta de 2,5 quilos. Existem atualmente pelo menos dois cargos de destaque na hierarquia ligada aos Arquivos Secretos: o de prefeito dos arquivos, que cuida da administrao desse rgo, e o de arquivista, que cuida do acervo em si. Lendas e especulaes Por vezes, claro, as pessoas se deparam com algumas informaes inusitadas nos Arquivos. Por exemplo, vejamos a notcia abaixo, divulgada pela agncia Acclesia, a agncia de notcias da Igreja Catlica em Portugal, em setembro de 2006: A Santa S procede, a partir de hoje, abertura da totalidade dos arquivos do pontificado do papa Pio XI (1922-1939). At agora, apenas uma parte destes arquivos est disponvel para consulta aos investigadores. A abertura destas fontes histricas refere-se, nomeadamente, a toda a atividade diplomtica da Santa S, no perodo que antecedeu a II Guerra Mundial, e foi decidida por Bento XVI, seguindo um desejo j antes manifestado pelo seu antecessor Joo Paulo II. Assim, passaro a estar disponveis investigao histrica, nos limites

  • dos regulamentos, todos os fundos documentais at a fevereiro de 1939 [...] nomeadamente os Arquivos Secretos do Vaticano e os arquivos da segunda seco da Secretaria de Estado responsvel pelos negcios diplomticos, concretiza o comunicado. O trabalho de cerca de 20 pessoas, nos ltimos quatro anos, torna possvel a abertura dos Arquivos Vaticanos relativos ao Pontificado de Pio XI (1922-1939) e, com isso, o acesso a um enorme campo de pesquisa histrica. O perodo abarca as trgicas conseqncias da I Guerra Mundial, o percurso que levou II Guerra Mundial; a chegada ao poder de Mussolini, Hitler ou Estaline; a crise de 1929, as guerras coloniais e civis, e as leis raciais alems e italianas, entre outros acontecimentos. Pio XI foi uma presena notvel, nesta altura: resolveu a questo romana com os Pactos Lateranenses (1929), protegeu e aumentou a Ao Catlica, celebrou o Jubileu de 1925 e o extraordinrio em 1933-1934, planeou um enorme projeto missionrio que chegou China, desenvolveu sua ao para o Oriente, olhou com olhos novos a cincia, estabeleceu relaes diplomticas entre a Santa S e vrios pases do mundo. O prefeito do Arquivo Secreto Vaticano, o padre Srgio Pagano, anunciou oficialmente j em 2002 que, aps a abertura do Pontificado de Pio XI, tudo se far para disponibilizar as fontes documentais vaticano-alems relativas ao pontificado de Pio XII (1939-1958), em parte j publicadas por vontade de Paulo VI nos 12 volumes (1965-1981) dos Actes et documents du Saint-Sige relatifs a la seconda guerra mondiale. H algum tempo est tambm disponvel o fundo do "departamento de informaes vaticano para os prisioneiros de guerra", que compreende documentos de 1939 a 1947. Alm disso, foram tambm abertos os arquivos das nunciaturas de Munique e de Berlim at 1939. Em julho de 2010, a editora belga VdH Books anunciou o lanamento do livro The Vatican secret Archives, com nada menos que 252 pginas cheias de fotografias do complexo e reprodues de documentos restritos. Auxiliada pelo cardeal Raeffaele Farina, o atual arquivista do local, a equipe do livro teve autorizao para apresentar algumas reprodues dos arquivos, com comentrios histricos detalhados do religioso.

  • O volume traz textos sobre nomes histricos que esto presentes no acervo, com um ou outro documento, como o do pintor e escultor Michelangelo, o do escritor Voltaire, da Rainha Elizabeth I, do Dalai Lama e at o presidente norte-americano Abraham Lincoln. Tambm traz detalhes sobre figuras polmicas, como os Cavaleiros Templrios e o fsico e astrnomo Galileu Galilei. Aborda ainda a tentativa de Henrique VIII de se divorciar de Catarina de Arago para casar com Ana Bolena e uma carta revoltada do papa Pio XI para Hitler, datada de 1934. Somente por esses exemplos podemos ver o quanto a instituio e seu acervo so polmicos. No para menos que suscitam tantas lendas e teorias de conspirao. E o fato de que, para visitar os quase 85 quilmetros de prateleiras, necessrio passar por um longo processo de aplicao, a fim de ser um dos 1.500 estudiosos selecionados para ter acesso ao local, no ajuda muito a acabar com os boatos. De fato, a melhor chance que uma pessoa comum tem de conhecer o interior dos arquivos e de ler alguns documentos mesmo pelo livro, uma vez que nem o site oficial (http://asv.vatican.va) traz informaes to precisas sobre os documentos l contidos. Os interessados brasileiros, para terem acesso a alguns destaques de l, devem procurar o site em ingls, j que a pgina em portugus no possui tantas informaes assim. Quanto ao livro belga, quem quiser obter uma cpia precisa se apressar e correr at a livraria mais prxima que trabalhe com importaes e reservar o seu, pois cada edio limitada a 50 cpias apenas.

    Captulo 2 A Santa Inquisio

    Passamos agora a tratar da conturbada histria daquela que seria uma das principais fontes de documentos dos Arquivos Secretos do Vaticano: a Santa Inquisio, o terror que condenou milhares de pessoas morte em nome da preservao do catolicismo. A imagem que ficou popularizada a dos inquisidores com longas vestes escuras que apontavam o dedo para o acusado de algum delito, em geral bruxaria ou

  • heresia, considerada mais grave, e que agia muitas vezes ao mesmo tempo como juiz, jri e executor. A primeira coisa que vem mente das pessoas saber como uma instituio de carter religioso acumulou tanto poder a ponto de desafiar at mesmo os reis, em uma poca em que aqueles governantes se achavam com direito divino e absoluto de governar. Para tanto, necessrio entender o papel da Inquisio desde sua concepo. Segundo o historiador Gilberto Coltrim, a Santa Inquisio foi criada para combater o sincretismo, definido como "fuso de diferentes cultos ou doutrinas religiosas, com reinterpretao de seus elementos", entre certos grupos religiosos que se valiam da adorao de plantas e animais e praticavam mancias, adivinhaes por meio de algo designado pelo precedente. Essa era sua funo original, j que a Inquisio, como a conhecemos, derivada da verso medieval, mas, na verdade, existiram instituies anteriores dedicadas a tais combates. Um fator importante entender que, embora o termo heresia seja utilizado at hoje, ele ficou ligado Idade Mdia e s aes da atual "Congregao para a doutrina da f", o novo nome sob o qual a Santa Inquisio sobrevive at hoje. A cada dia que passa, os doutores da igreja reveem os atos de seus antepassados e admitem que "a prtica inquisitorial estava errada ao punir com violncia e morte de indivduos hereges", como foi declarado pelo papa Joo Paulo II no artigo "Perdoai as nossas ofensas", na revista Veja Especial, de 6 de abril de 2005. O que no se pode deixar de admitir o fato de que a Inquisio foi e considerada ainda como uma das instituies humanas que mais feriu os direitos humanos, principalmente o da livre escolha religiosa. As heresias A palavra heresia vem do latim haeresis, que, por sua vez, deriva de um termo grego que significa basicamente escolha ou opo. Trata-se, portanto, de uma linha de pensamento diferente ou contrria a um credo j estabelecido por meios ortodoxos.

  • O termo tambm usado para definir qualquer tipo de deturpao de sistemas filosficos institudos, bem como alteraes observadas em ideologias polticas ou at mesmo em movimentos artsticos. O fundador de uma heresia, mesmo que no a considere como tal, passa a ser conhecido como heresiarca. O historiador Jos D'Assuno Barros, que tambm musiclogo, coloca o termo herege como "algum, investido de poder eclesistico e institucional que classificou sua prtica ou suas idias como destoantes e contrrias a uma ortodoxia oficial que se autopostula como o caminho correto". claro que, para quem no conhece, a associao entre heresia e religio, principalmente com a catlica, quase imediata. A prpria ortodoxia religiosa define a heresia como "desvio da verdade universal, de modo que mesmo se todos os seres humanos acreditarem em um erro, ele no passar, por isso, a ser verdade", segundo Barros. Mas como surgiu esse termo? Pelos registros histricos, foi com os cristos, que o usavam para nomear idias que vinham de encontro s suas crenas, que eram catalogadas como "falsas doutrinas". Assim, terminou por ser adotado tanto pela Igreja Catlica quanto pelas denominaes protestantes, j que ambas afirmam que heresia uma doutrina contrria verdade que teria sido revelada por Jesus Cristo, ou seja, seria uma m interpretao da Bblia, dos profetas e at do prprio Cristo, sem falar de uma deturpao dos conceitos aplicados quando uma pessoa se torna sacerdote, o que representaria risco para o prprio magistrio. Isso tudo calcado na prpria Bblia, que alerta em Glatas 5:20 sobre os perigos da existncia de "idolatria, feitiaria, inimizades, porfias, emulaes, iras, pelejas, dissenses, heresias".

    A inquisio em O nome da rosa No livro O nome da rosa, de Umberto Eco, o personagem principal, o monge franciscano Guilherme (ou William) de Baskerville um ex-inquisidor que, cansado de pactuar com as atrocidades da Inquisio, deixa o cargo. A ao se passa durante uma srie de assassinatos que acontecem na abadia onde ocorrer um debate sobre uma questo teolgica ligada filosofia da Igreja, um inquisidor

  • real chamado Bernardo Gui (1261/1262-1331) chega para analisar a srie de assassinatos. O inquisidor descobre um despenseiro que se envolve com bruxaria para atrair uma jovem camponesa para que faa sexo em troca de comida. Interessado em impor o poder da Inquisio sobre os componentes da abadia, Bernardo Gui acusa outros personagens menores e os condena a serem queimados na fogueira. Para corroborar seu veredito, ele pede para que Guilherme o confirme. E o monge franciscano sabe o que acontece com quem contesta a opinio de um inquisidor: ele prprio poderia ser acusado de compactuar com os supostos herticos e, assim, se tornar um deles por associao. As acusaes O acusado na Inquisio era responsabilizado por uma "crise de f", pela qual poderia, ou no, ter relao com fenmenos naturais como pestes, terremotos, doenas e misria social. Ele era ento preso e entregue s autoridades estatais para ser punido. As penas variavam de confisco de bens pena de morte na fogueira. O uso do fogo foi o modo de punio mais famoso, embora outros meios fossem utilizados. Essas punies tinham um significado religioso, j que o fogo era o smbolo da purificao e materializao da desobedincia a Deus, ou seja, do pecado e ilustrao da imagem do inferno. As punies com fogo tambm envolviam autores de livros polmicos. Em 1756, em Londres, por exemplo, h o registro do que teria sido levado execuo um Cavaleiro de Oliveira, na verdade o escritor portugus Francisco Xavier de Oliveira (1702-1783): a publicao da obra Discours pathetque ou suget des calamites, publicado naquela cidade. H duas verses para essa execuo: em uma delas, o cavaleiro foi queimado com o livro suspenso ao pescoo como herege convicto. Na segunda, o livro foi colocado em uma esttua do escritor e ento queimada. importante lembrar, entretanto, que os tribunais da Inquisio no eram permanentes, e sim entravam em funcionamento em casos de heresia comprovada e depois eram desativados. Quando houve a Reforma Protestante,

  • no sculo XVI, foram institudos outros mtodos judicirios de combate heresia. Neles o delator que apontava um herege garantia sua prpria f em pblico e sua condio perante a sociedade. Basta lembrar que a caa s bruxas teve origem em pases protestantes e no foi liderada pela Inquisio. Outro ponto que deve ficar claro que a Inquisio apenas fazia as investigaes e inquritos, deixando a aplicao da pena final para o poder secular. Aos poucos, a partir do sculo XIX, os tribunais inquisitrios foram suprimidos pelos estados europeus, embora fossem mantidos pelo Estado Pontifcio, hoje a cidade-estado do Vaticano. A partir de 1908, no pontificado de Pio X (1835-1914), a Inquisio ganhou a nova denominao de Sacra Congregao do Santo Ofcio e, em 1965, quando aconteceu o Concilio Vaticano II, assumiu o nome que tem hoje: Congregao para a Doutrina da F. Condenaes e punies A condenao mxima imposta pela Igreja para aqueles que eram acusados de heresia era a excomunho e, depois, a morte por tortura ou mesmo na fogueira. Mesmo assim, o condenado no era executado sem mais nem menos; era necessrio passar pelo menos mais de um ano excomungado e ser formalmente processado pela Igreja como tal. Pesquisadores afirmam que o processo culminava, em geral, com a sentena da entrega do herege ao brao secular da Igreja. Mas como surge uma heresia? Desde Jesus, passando pelos apstolos, houve um esforo aparente e visvel para que o cristianismo se tornasse a religio unitria, ou seja, que fosse a predominante. Historicamente falando, a primeira manifestao nesse sentido foi a manuteno da unidade em torno da figura do apstolo Pedro. O argumento se baseia, claro, no texto bblico, que afirma que se h um s Deus, revelado em Jesus Cristo, que por sua vez fundou "Sua nica Igreja" (como visto em Marcos 16:18) e que Jesus teria dito "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida", tudo isso leva a crer que no podem existir outros tipos de verdades.

  • Com o passar do tempo essas afirmaes comearam a ser contestadas e geraram vrios desdobramentos, cises, rejeies da autoridade nica e terminaram por proliferar nas mais diversas formas de religiosidade relacionadas com o Cristianismo. As heresias seriam ento formas de religiosidade crist que destoam das estabelecidas pelos apstolos, mrtires e primeiros cristos em geral. No primeiro sculo da Era Crist os movimentos herticos iam contra as idias propagadas por nomes consagrados da Igreja, que iam do prprio apstolo Joo, j em idade avanada, at Clemente Romano ou So Clemente, quarto papa da Igreja entre 88 e 97, Orgenes de Cesareia (telogo, 185-253), Incio de Antiquia (bispo da Sria, 67-110), Policarpo de Esmirna (bispo daquela cidade, 70-160) e Irineu de Lyon (telogo e escritor, 130-202), entre outros. O uso da palavra heresia no contexto cristo comeou com Irineu de Lyon em sua obra Contra Haereses (contra heresias) para descrever e, ao mesmo tempo, desacreditar seus oponentes no comeo das atividades crists. Ele descreveu sua prpria posio como sendo ortodoxa, que mais tarde, segundo algumas fontes, seria o padro adotado pelos defensores catlicos. Mas como funciona o ponto de vista hertico? Segundo os telogos, os herticos no percebem suas prprias crenas como algo grave ou ofensivo para a tica em voga. Por exemplo, algumas correntes catlicas consideram o protestantismo como heresia, enquanto outros no catlicos chamam o catolicismo de "a grande apostasia". Para haver uma heresia, deve haver um sistema autoritrio de dogmas, designados como ortodoxos, ou seja, que concorde com as leis que a Igreja considera verdadeiras. O primeiro uso conhecido do termo em um contexto legal foi em 380 d.C., no chamado Edito de Tessalnia, imposto pelo imperador romano Teodsio, em 27 de fevereiro de 380. Veja-se abaixo trecho do documento: dito dos imperadores Graciano, Valentiniano (II) e Teodsio Augusto, ao povo da cidade de Constantinopla. Queremos que todos os povos governados pela administrao da nossa clemncia professem a religio que o divino apstolo Pedro deu aos romanos, que at hoje foi pregada como a pregou ele prprio, e que evidente que professam o pontfice Dmaso e o bispo de Alexandria,

  • Pedro, homem de santidade apostlica. Isto , segundo a doutrina apostlica e a doutrina evanglica cremos na divindade nica do Pai, do Filho e do Esprito Santo sob o conceito de igual majestade e da piedosa Trindade. Ordenamos que tenham o nome de cristos catlicos quem siga esta norma, enquanto os demais os julgamos dementes e loucos sobre os quais pesar a infmia da heresia. Os seus locais de reunio no recebero o nome de igrejas e sero objeto, primeiro da vingana divina, e depois sero castigados pela nossa prpria iniciativa que adotaremos seguindo a vontade celestial. Dado o terceiro dia das Kalendas de maro em Tessalnica, no quinto consulado de Graciano Augusto e primeiro de Teodsio Augusto. Antes da emisso desse dito, a Igreja no era apoiada por nenhum mecanismo em particular que justificasse a viso de algo que ameaasse sua soberania. Com esse documento, a diviso entre a Igreja crist e o estado romano se tornou tnue, e uma das conseqncias foi o compartilhamento dos poderes de estado das foras mantenedoras da ordem pertencentes s autoridades ligadas s duas instituies. Essa nova autoridade eclesistica deu Igreja o poder de pronunciar sentenas de morte sobre aqueles que julgava serem herticos. Por cerca de cinco anos aps a oficializao do lado "criminoso" da heresia pelo imperador, foi executado o primeiro hertico cristo, um bispo hispnico chamado Prisciliano (340-385), fundador do priscilianismo e executado por oficiais romanos. Em termos gerais, tratava-se de uma doutrina que incentivava a Igreja a abandonar a opulncia e a riqueza para se reunir com os pobres. Condenava a escravido, atribua ampla liberdade e importncia para as mulheres e abria as portas dos templos para elas assumirem seus papis como participantes ativos. O primeiro texto de tal doutrina conhecido foi escrito por Egeria, uma monja galega que viveu por volta do ano 381. Por anos, aps a Reforma Protestante, no sculo XVI, as Igrejas daquele movimento tambm se dedicaram a executar supostos hereges como podem atestar os julgamentos de bruxas na cidade norte-americana de Salem, em Massachusetts.

  • O ltimo hertico executado por uma sentena catlica foi Cayetano Ripoll (1778-1826), um professor espanhol enforcado e acusado de no acreditar nos dogmas catlicos. Foi a ltima vtima da inquisio espanhola. Apesar da verdadeira devassa que os historiadores j fizeram em vrias fontes conhecidas, ainda no possvel apontar com certeza o nmero de vtimas executadas pelos mandos e desmandos de vrias autoridades eclesisticas, mas estima-se que chegue a alguns vrios milhares. Para alguns, por causa da forte conotao negativa associada ao termo, a palavra heresia passou a ser usada com menos freqncia nos dias modernos. H, entretanto, algumas excees, como no caso de Rudolf Bultmann (1884-1976), um telogo alemo que praticamente definiu a separao entre histria e f, chamada de demitologizao, definida como tentativa hermenutica de analisar o significado real da linguagem mitolgica usada na Bblia, em especial no Novo Testamento, ou nos ainda persistentes debates que envolvem as ordenaes de mulheres e homossexuais. As heresias em outras religies claro que, para a maioria das pessoas esclarecidas, o que passa pela cabea descobrir se a questo da heresia uma exclusividade catlica, ou melhor, crist, ou se possvel encontrar tal conceito nas demais grandes religies. Para tanto, vamos dar uma olhada em como tal conceito encarado pelos judeus e muulmanos. No judasmo, o ortodoxismo possui alguns pontos de vista que diferem dos princpios tradicionais de f. Os grupos mais ligados ao tradicionalismo afirmam que todos os judeus que rejeitam o significado simples das 13 Maimnides, corrente fundada por Moiss Maimnides, 1135/1137/1138-1204, que contm muitos dos preceitos da f judaica, so considerados como hereges. Esses princpios esto descritos conforme Roque Frangiotti: Creio plenamente que D'us o Criador e guia de todos os seres, ou seja, que s Ele fez, faz e far tudo.

  • Creio plenamente que o Criador um e nico; que no existe unidade de qualquer forma igual d'Ele; e que somente Ele nosso D'us, foi e ser. Creio plenamente que o Criador incorpreo e que est isento de qualquer propriedade antropomrfica. Creio plenamente que o Criador foi o primeiro (nada existiu antes d'Ele) e que ser o ltimo (nada existir depois d'Ele). Creio plenamente que o Criador o nico a quem apropriado rezar, e que proibido dirigir preces a qualquer outra entidade. Creio plenamente que todas as palavras dos profetas so verdadeiras. Creio plenamente que a profecia de Moshe Rabeinu (Moiss) verdica, e que ele foi o pai dos profetas, tanto dos que o precederam como dos que o sucederam. Creio plenamente que toda a Tor que agora possumos foi dada pelo Criador a Moshe Rabeinu. Creio plenamente que esta Tor no ser modificada e nem haver outra outorgada pelo Criador. Creio plenamente que o Criador conhece todos os atos e pensamentos dos seres humanos, eis que est escrito; "Ele forma os coraes de todos e percebe todas as suas aes" (Tehilim 33:15). Creio plenamente que o Criador recompensa aqueles que cumprem os Seus mandamentos, e pune os que transgridem Suas leis. Creio plenamente na vinda do Mashiach (Messias) e, embora ele possa demorar, aguardo todos os dias a sua chegada. Creio plenamente que haver a ressurreio dos mortos quando for a vontade do Criador. J no islamismo, os dois principais grupos religiosos, os sunis, considerados como o maior ramo do Isl, j que em 2006 correspondiam a 84% do total de fiis, e os shias ou xiitas, cerca de 15% do total, consideram-se mutuamente como herticos. Grupos como os ismaelenses, os hurufistas, os alauitas e mesmo os sufis tambm j foram considerados por algumas correntes dentro de sua prpria religio como

  • herticos. Embora o sufismo seja freqentemente aceito como vlido pelos xiitas e por muitos sunitas, o recente movimento dos wahhabistas, seguidores do wahhabismo, movimento religioso que foi criado na Arbia central em meados do sculo XVIII por Muhammad bin Abd al Wahhab, os considera herticos.

    As principais correntes hereges Anabatistas - Nome que significa "rebatizadores". Cristos da chamada "ala radical" dos protestantes, batizados em idade adulta, desconsiderando at ento o batismo obrigatrio da Igreja Romana. Mesmo os que j tinham sido batizados em criana recebiam o sacramento novamente, pois "o verdadeiro batismo s tem valor quando as pessoas se convertem conscientemente a Cristo". Paulicianos - Seguidores de Paulo da Samsata, bispo de Antioquia. Acreditavam serem originrios dos Apstolos e que tinham seu incio a partir das pregaes deles no primeiro sculo depois de Cristo. Pela falta de recursos que comprovassem tal incio, foram detestados pelos Imperadores bizantinos que defendiam o catolicismo. Montanismo - Fundado por Montano, profeta asitico que viveu entre os sculos II e III. Seu movimento via as revelaes profticas sem fundamentao bblica, exegese ou interpretao slida. Suas interpretaes deixavam as pessoas apreensivas e oprimidas, preocupando-se com a vinda do Esprito Santo e a chegada do fim do mundo. Ofismo - Doutrina surgida por volta do ano 100 e resultante de vrias seitas surgidas entre o Egito e a Sria. Atribua grande importncia serpente citada no Gnesis e a considerava como a portadora do conhecimento do Bem e do Mal e, por isso, um importante smbolo da Gnose ou conhecimento. Bogomilismo - O termo significa "Amado/Querido de Deus" no velho idioma blgaro. Surgiu a partir do avano dos paulicianos (grupo com uma viso

  • teolgica do cristianismo primitivo) para o Ocidente a partir do sculo VII. Surgiu no antigo imprio blgaro que, na poca, se estendia da Ucrnia ao Adritico. Foi considerado como uma seita dualista datada do sculo X. Dizia-se a "verdadeira e oculta Igreja Crist". Teria precipitado o surgimento do catarismo e era tradicionalmente reconhecido pelos inquisidores como "a tradio oculta por trs do catarismo", conforme o j citado Joo Ribeiro Jnior. Puritanismo - Concepo da f crist desenvolvida na Inglaterra por uma comunidade de protestantes radicais depois da Reforma. Pretendia purificar a Igreja Anglicana, ao retirar os resduos do Catolicismo, de modo a tornar sua liturgia mais prxima do Calvinismo. Monarquianismo - Srie de crenas que enfatizam a Unidade Absoluta de Deus. A crena confiita com a doutrina da Trindade, que v em Deus uma unidade composta pelo Pai, Filho e Esprito Santo. O adicionismo, uma de suas correntes, diz que Deus um nico ser, superior a tudo e completamente indivisvel. Assim, o Filho no foi coeterno com o Pai, mas sim revestido (ou adotado) de Deus para pr em prtica seus desgnios. Maniquesmo - Fundada pelo profeta persa Mani ou Manes no sculo III, na Prsia ou na Babilnia. Divide o mundo entre Bem, ou o Deus bom, e o Mal, ou o Deus mal. A matria intrinsecamente m, por isso o esprito intrinsecamente bom e, ao tomar um corpo fsico, deixa-se corromper. Arianismo - Viso sustentada pelos seguidores de Arius, bispo de Alexandria nos primeiros tempos da Igreja primitiva. Esse movimento negava a existncia da consubstancialidade (ou seja, que possui a mesma substncia) entre Jesus e Deus. O Cristo seria preexistente, uma criatura mais excelsa, que encarnara em Jesus de Nazar. Este seria, por sua vez, um subordinado de Deus, e no o prprio. rio afirmava que s existe um Deus e que Jesus seria apenas seu filho, e no o prprio.

  • Nestorianismo - Doutrina do sculo V que afirma que h em Jesus Cristo duas pessoas distintas: uma humana e outra divina, completas de tal forma que constituem dois entes independentes. Essa doutrina surgiu em Antiquia e manteve forte influncia na Sria. sustentada ainda hoje por correntes ligadas ao movimento Rosacruz e Gnose. A Inquisio medieval A verso medieval da Inquisio comeou suas atividades em 1184, na famosa regio do Languedoc, no sul da Frana, lugar polmico por ser acusado de ser o bero de movimentos herticos, como o dos ctaros ou albigenses. Os ctaros acreditavam em dois deuses: um bom e espiritual e outro mau e fsico. Segundo sua crena, Cristo teria sido enviado para salvar as almas boas, que iriam para o cu, enquanto as ms voltariam por meio da reencarnao. Isso fez com que os clrigos criassem uma Inquisio para avaliar a propagao de tais idias em 1183, quando delegados papais descobriram essa vertente e a consideraram heresia no Conclio de Verona, em 1184, com o nome de Tribunal da Inquisio. Tal criao se deu por meio de duas bulas papais, assinadas por Gregrio IX em abril de 1233. A partir de ento, a instituio julgou e condenou vrios propagadores de heresias, mas tambm absolveu muitos, o que pouqussimo divulgado. O texto seguinte parte da bula Licet ad capiendos, de 1233, que marca o incio da Inquisio e dirigida aos dominicanos inquisidores. Vejamos o que diz: Onde quer que os ocorra pregar, estais facultados, se os pecadores persistem em defender a heresia apesar das advertncias, a priv-los para sempre de seus benefcios espirituais e proceder contra eles e todos os outros, sem apelao, solicitando em caso necessrio a ajuda das autoridades seculares e vencendo sua oposio, se isto for necessrio, por meio de censuras eclesisticas inapelveis.

  • Vale lembrar que os dominicanos eram chamados originalmente de Ordem dos Pregadores. Tm como objetivo pregar a mensagem de Jesus e a converso ao cristianismo. Essa ordem foi fundada em Toulouse, na Frana, em 1216, por So Domingos de Gusmo, um sacerdote espanhol originrio da Caleruega. Os religiosos dessa ordem viviam em conventos prximos a grandes cidades e realizavam votos de pobreza, obedincia e castidade, o que os tornava religiosos no monges. No toa que Humberto Eco escolheu Bernardo Gui, justamente um dominicano, para caracterizar seu inquisidor impiedoso. Essa figura histrica foi o bispo de Lodve, na regio do Languedoc, e considerado como um dos escritores mais produtivos da poca. A exemplo de muitos outros inquisidores, inclusive do polmico Savonarola, foi poderoso, temido e respeitado dentro e fora do ambiente eclesistico por defender seus ideais com ferocidade. Foi um dos que mais atacou os ctaros, presidindo julgamentos entre 1307 e 1323. Outra viso da Inquisio Analisando os fatos, difcil pensar que algum se atreveria a defender a Inquisio. Mesmo assim, o professor de filosofia Roman Konik, ligado Faculdade de Filosofia da Universidade de Wroclaw, na Polnia, e autor do livro Em Defesa da Santa Inquisio arrisca essa posio. Seu livro despertou muito interesse, mas sofreu boicotes de livrarias, por causa da m fama que a Inquisio tem at hoje. Em entrevista concedida revista eletrnica Catolicismo ele comentou sobre a obra de Umberto Eco: Na mente do homem de hoje, h uma idia comum que considera o inquisidor como um velho monge encapuzado com inclinaes sdicas, inflamado do desejo de autoridade. O melhor exemplo disso a figura de Bernard Gui, inquisidor de Toledo, descrito pelo conhecido medievalista italiano Umberto Eco em seu livro O Nome da Rosa. Pior ainda a imagem apresentada no filme realizado com base em tal obra.

  • Bernard Gui, como figura histrica real, foi inquisidor de Toledo e durante 16 anos exerceu esse cargo. Julgou 913 pessoas, das quais apenas 42 ele entregou ao tribunal civil como perigosos rebeldes (reincidentes, pedfilos, criminosos), o que no significava absolutamente pena de morte para eles. Em muitos casos, Gui indicava tratar-se de doena psquica, suspeio de heresia, desistindo de interrogatrios. Segundo a viso preconceituosa dos protestantes, certo que essas pessoas iriam para a fogueira, ao contrrio da verdade histrica. E importante registrar que escritores protestantes, pouco simpticos Inquisio, comearam a escrever a histria dela de maneira desfavorvel, apresentando-a deformada. Tambm nas expresses artsticas das pocas posteriores medieval verificou-se um reflexo dessa viso caricatural. Mas basta analisar o mundo artstico medieval para observar quadros que apresentam So Domingos convertendo os hereges, So Bernardo de Claraval discutindo com eles, ou ento pinturas de inquisidores-mrtires morrendo nas mos de hereges, por exemplo, o martrio de So Pedro de Verona, ou de So Pedro de Arbus, assassinado na catedral de Zaragoza. Exemplo de dio radical contra a Igreja e da manipulao a que me referi um quadro no Museu Nacional de Budapeste, apresentando uma sala de torturas, intitulado no catlogo "Inquisio". S depois de muitos protestos de historiadores, mostrando que o quadro apresentava cena de tortura em um tribunal civil, que o ttulo foi mudado para "Sala de torturas". Lembremo-nos de que foram as descries caricaturais de Diderot, Voltaire e at de Dostoivski que formaram na mente do homem de hoje a viso da Inquisio como um espectro. Os historiadores poloneses tambm no ficaram atrs dos historiadores "progressistas". Deparando diariamente com essa viso distorcida da Inquisio, o homem comum inclinado a aceit-la como verdadeira. Talvez a opinio do pesquisador seja a verdade. Afinal, h um grande nmero de pesquisadores que insistem em afirmar que os inquisidores eram homens esclarecidos e que tratavam os hereges como portadores de doenas mentais. O suspeito de heresia, segundo os registros histricos, era tratado assim: o suspeito no recebia os sacramentos necessrios e estabelecidos pelo catolicismo. Caso

  • ele no se arrependesse de sua conduta, seria chamada a autoridade no religiosa, principalmente em casos de agresso verbal ou fsica. Se nem mesmo assim a pessoa se mostrasse arrependida, era considerada como "antema", ou seja, reconhecida como passvel de excomunho. Alguns autores vo mais longe e afirmam que o uso da tortura em processos inquisidores era um fato bastante restrito, embora no se saiba mais detalhes do quanto poderia ser restrito. Ainda de acordo com essas pesquisas, a tortura era autorizada em casos em que no houvesse provas confiveis, testemunhas fidedignas ou quando o acusado j tivesse antecedentes como m fama, maus costumes ou tentativas de fuga. Assim, o Concilio de Viena indicou que os inquisidores recorressem tortura apenas em caso de aprovao pelo bispo diocesano e por uma comisso julgadora que deveria analisar cada caso. H tambm quem afirme que a tortura da Inquisio era mais branda que a aplicada pelos poderes civis e que violncia como amputao de membros no era permitida sob nenhuma circunstncia. Vale lembrar que a aplicao da tortura no era, de modo algum, uniforme em todos os tribunais inquisitrios e variava entre as cidades, e mesmo entre os pases onde atuavam.

    Alguns acessrios mais comumente usados pelos inquisidores para obter a confisso dos acusados

    Cadeira inquisitria: Com at 1.600 pontas afiadas de ferro ou madeira, sobre as quais as vtimas, completamente nuas, se sentavam para serem interrogadas. Por vezes, a fim de aumentar o sofrimento, o assento de ferro era aquecido. Esmagador de joelhos, polegares e mos: Cada um desses trs instrumentos tinha funes especficas, conforme os nomes indicam. Eram, no geral, prensas que esmagavam as ditas partes do corpo. Esmaga seios: O instrumento preferido no sculo XV para torturar as mulheres acusadas de bruxaria. O seio era envolto por um ferro retangular aquecido ao mximo. Eram esmagados com movimentos bruscos e circulares.

  • Despertador: Uma espcie de cavalete de madeira ou de ferro, com um vrtice pontiagudo. Os acusados eram puxados por cordas ligadas a roldanas e suspensos at certa altura. Depois eram rapidamente lanados sobre o despertador de forma que o nus e as partes sexuais tocassem a ponta da pirmide. Dependendo da maneira como o instrumento estivesse afiado, as partes ntimas arrebentavam, entre elas, os testculos, a vagina e o cccix. Roda de despedaamento: O acusado era colocado de costas sobre uma roda de ferro, sob a qual havia brasas. Ento a roda era girada lentamente, o que causava uma morte lenta depois de longas horas de dor e gerava queimaduras de alto grau. H uma segunda verso onde a roda usada para dilacerar o corpo dos condenados. Em vez de brasas, eram usados instrumentos pontiagudos. Mesa de eviscerao: Considerado um dos mais cruis instrumentos. Era usado para extrair de maneira lenta e mecnica as vsceras dos condenados. Depois de abrir a regio abdominal, as vsceras eram puxadas uma a uma por ganchos pequenos que eram presos a uma roldana que, por sua vez, era girada pelo carrasco. Pndulo: Usado para deslocar os ombros e preparar para outros tipos de tortura. A vtima era levantada por cordas presas aos pulsos e depois, bruscamente, solta para depois ser levantada novamente, antes do corpo chegar ao solo. Cavalete: Instrumento usado na inquisio portuguesa. A vtima era deitada de costas numa mesa que continha material cortante. Por meio de um funil colocado na boca, o carrasco enchia seu estmago com gua. Depois ele pulava em cima da barriga do ru, forando a sada do lquido. Isso era repetido at que o culpado morresse. Donzela de ferro: Tambm chamado de Virgem de Nuremberg, famoso instrumento imortalizado pelo nome da banda de heavy metal, Iron Maiden. Era uma espcie de caixo com o tamanho e a forma de uma mulher. A vtima era

  • colocada no interior, onde havia lminas dispostas de tal maneira que, uma vez que a porta era fechada, a presso fazia com que perfurassem o corpo, provocando sangramento e morte lenta. Manjedoura: Uma caixa longa em que a vtima era posta de costas e tinha as mos e os ps amarrados. O corpo era esticado at que os ossos estalassem ou as juntas fossem desmembradas. Poder e f Como a Inquisio, que foi uma das principais fornecedoras de documentos que compem os Arquivos Secretos, conseguiu reunir tantas informaes? O poder temporal foi responsvel por esse resultado, uma vez que por meio dos processos inquisitrios muitas informaes chegaram aos Arquivos Secretos. No sculo XV, reinos como os de Castela e Arago solicitaram a permisso para instalar suas prprias verses da Inquisio, visando obter uma uniformidade de viso entre seus reinos em unificao. No caso dos famosos reis catlicos, Fernando e Isabel, foi com seu casamento que o reino conquistou as terras dos muulmanos na Pennsula Ibrica e no dos judeus sefaraditas, designao dos descendentes de judeus originrios de Portugal e Espanha, foi obtida a unidade nacional que antes no existia. O chamado Tribunal do Santo Ofcio, o outro nome da Inquisio, cuidou dos casos de converso de judeus e muulmanos que passaram a ser parte importante dos reinos que buscavam sua unificao. De fato, alguns se viram obrigados a renegar sua religio original e aderir ao cristianismo para no abandonar os pases em que j estavam instalados. Essa a origem do termo "cristo-novo". Os pesquisadores j descobriram que, em muitos casos, apesar da declarao de converso, muitos judeus ainda praticavam seus ritos normais em segredo dentro do lar, chamados de cripto-judeus, o que fatalmente gerou uma onda de acusaes de pessoas que buscavam as boas graas dos inquisidores. Entretanto, nem todos passaram a exercer sua religio original clandestinamente. Alguns, de fato, se convertiam. E como ocorreu a ligao entre uma instituio

  • religiosa e o poder temporal? Desde cedo, o poder dos reis se apossou da Inquisio como forma de obter seus objetivos econmicos, afastando-se aos poucos de seu objetivo religioso. No caso espanhol, por exemplo, a Inquisio espanhola, que j chegou a ser ridicularizada em filmes e programas de TV por comediantes como o judeu Mel Brooks e os britnicos do Monty Phyton, empreendeu uma gigantesca campanha contra os inimigos dos reis catlicos. Ao colocar o poder da f junto ao da lei, ela se tornou de fato um dos piores pesadelos da humanidade. O assunto gerou tanta polmica e curiosidade que at hoje so produzidos documentrios sobre o assunto. Em novembro de 1994, a BBC de Londres apresentou o documentrio The Myth of the Spanish Inquisition (O mito da inquisio espanhola), que se baseava em informaes retiradas de "arquivos fechados", ou seja, dos Arquivos Secretos. Segundo o programa, "a inquisio espanhola, tida como a mais cruel e violenta, teve, na verdade, sua imagem distorcida por protestantes que queriam minar o poder da maior potncia mundial na poca: a Espanha". O programa ainda fala que cada processo inquisitorial foi registrado durante os 350 anos em que a Inquisio espanhola esteve em atividade e, segundo o professor especialista Henry Kamen, os registros so bastante detalhados e trazem uma viso "muito diferente da que estava cristalizada na mente dos historiadores". O importante para nossa explanao saber que a Inquisio no floresceu apenas na Espanha. Em pases como Itlia e Portugal tambm foram instalados tribunais com as mesmas funes. Em Portugal, porm, o papa teria visto os abusos cometidos pelo ramo espanhol e recusado uma permisso, o que teria feito com que os regentes portugueses ameaassem com a criao de uma inquisio rgia, pois, segundo eles, era algo urgente para o reino. Isso tudo porque os portugueses no queriam perder terreno e influncia para seus rivais espanhis. Assim, em 1249, implantou-se no ento reino de Arago a primeira Inquisio estatal. Tempos depois, j na Idade Moderna, com a unio dos reinos de Arago e Castela, assumiria a designao de Inquisio Espanhola, instituio sob controle direto da monarquia hispnica, que estendeu depois sua atuao para a Amrica. A Inquisio portuguesa comeou suas atividades em 1536 e esteve em

  • funcionamento at 1821. Em Roma, na Itlia, a Congregao da Sacra, Romana e Universal Inquisio do Santo Ofcio esteve em plena atividade at 1965.

    Captulo 3 Os Ctaros e o Segredo do Santo Graal

    Os principais acusados de levar a Igreja Catlica criao da Inquisio foram os ctaros. Embora at hoje pesquisadores e historiadores discutam as verdadeiras intenes da existncia dessa seita, difcil no prestar ateno aos seus verdadeiros intentos. A fascinante seita dos ctaros foi a principal causa da primeira e nica cruzada de cristos contra cristos. Na poca da Cruzada Albigense, entre 1209 e 1244, o ponto de vista maniquesta desse grupo levou os catlicos mais ortodoxos a afirmar a unicidade de Deus. Portanto, o fato de acreditar em dois deuses, como os ctaros faziam, seria uma heresia. A diferena entre o comportamento de Deus no Antigo Testamento e no Novo Testamento no primeiro era uma entidade brava e rancorosa e no outro se torna uma entidade benvola e condescendente dava bases para que a crena crescesse firme e forte. Os dirigentes da Igreja comearam uma perseguio implacvel aos adeptos daquele movimento, a ponto de invadir cidades do sul da Frana e matar sua populao na totalidade. Quem eram os ctaros A palavra ctaro vem do grego katars, que significa "puro". Esse grupo tambm ficou conhecido como albigense, pois se concentrou mais na cidade de Albi, tida como um dos grandes centros de influncia hertica no sul da Frana. Os ctaros floresceram no sculo XII, um perodo em que o contato entre Oriente e Ocidente era grande, por causa das cruzadas e do constante fluxo de pessoas entre a Europa e a Terra Santa. Isso propiciou que muitas idias e filosofias fossem trazidas de terras distantes junto com suas mercadorias e ganhassem adeptos europeus.

  • No sculo XII, as pessoas viam a decadncia do clero. A Igreja era uma potncia, com seus padres e bispos vivendo no luxo e perdoando pecados em troca de dinheiro. Esse era o clima ideal para o surgimento de uma seita que se enraizou primeiramente no norte da Itlia, graas aos intercmbios culturais entre Veneza e o mundo bizantino. De l se espalhou para regies como Milo, Lombardia e Florena, e depois para outros pases como Alemanha (onde apareceu pela primeira vez a palavra ctaro, em 1163), Inglaterra (onde so chamados de lolardos) Flandres e sul da Frana. O medo das represlias da Igreja fez com que os ctaros mantivessem seu credo em silncio. Porm, a popularizao do movimento atraiu tanta gente que seus seguidores passaram a agir abertamente, j que dispunham da proteo de senhores feudais. No demorou muito para o catarismo e para outro movimento ligeiramente semelhante, chamado de valdensianismo, criado em Lion por Pedro Valdo, em 1176, se tornassem as religies predominantes do Languedoc. Mas o que os tornava to perigosos para a Igreja? O principal motivo foi o conflito de suas crenas, que iam de encontro s de Roma. Por exemplo, enquanto os catlicos viam a salvao obtida por meio do sofrimento fsico de Jesus, para os ctaros a redeno no vinha de Sua morte, mas sim de Sua vida. Para os ctaros, o mundo fsico imperfeito, portanto no poderia ser criao de um Deus perfeito. Rejeitavam toda a viso bblica da criao, por isso chegavam, por extenso, a rejeitar todo o Antigo Testamento. De acordo com Joo Ribeiro Jnior, em Pequena histria das heresias, eles chegaram a reescrever o Novo Testamento e elaborar uma mitologia inteira, a fim de substituir o Antigo Testamento. Para os ctaros, a humanidade tinha sido moldada pelo demnio. Para um ctaro, para alcanar a salvao, era necessrio conhecer o verdadeiro destino e origem da humanidade e s poderia atingir esse verdadeiro conhecimento por meio da renncia do mundo satnico da carne, levando uma vida de abstinncia e pobreza. Tomemos algumas definies encontradas no livro de Stephen O'shea, A heresia perfeita. Para os ctaros, o homem, que foi criado por Deus, o lado bom, prisioneiro da matria. Esta, que foi criada por Sat, identificado como Jav, est

  • presa ao mundo. O dualismo, herdado do maniquesmo, a luta da carne contra o esprito. Assim, para nos salvar, Jesus, que seria um anjo, teria se revestido de um "corpo aparente", algo ilusrio, para que pudesse nos transmitir a maneira de obter essa libertao. A salvao, nesse caso, seria "a libertao das parcelas de luz perdidas nas trevas do corpo". Acreditavam na reencarnao: se algum falhasse nesta vida teria uma prxima chance de conseguir seu intento. A cruz de Cristo, para eles, era um smbolo falso, pois no teria havido uma morte real (fsica), j que Jesus era um ser espiritual. Seu servio eclesistico era composto de uma leitura do evangelho, um breve sermo, uma bno e a Orao do Senhor. Esse servio podia ser feito em qualquer lugar. Essa abordagem simples da liturgia teria, segundo alguns estudiosos, antecipado a simplicidade de seitas protestantes de pocas posteriores.

    Maniquesmo: a origem do catarismo Uma das doutrinas que deu origem ao catarismo foi o maniquesmo. O maniquesmo uma religio de origem persa, que deve seu nome ao lendrio Mans, ou Manion Manique (215-276), da Babilnia, que teria vivido nos primeiros sculos da nossa era, talvez no sculo III. Mans, que se dizia "filho da luz", seguia os ensinamentos de Zoroastro e defendia uma reforma religiosa que procurasse a transcendncia e a libertao das iluses da vida terrena e corprea. Tinha um pensamento dualista, ou seja, para ele o mundo material era ruim, enquanto o espiritual era o bom. So dois reinos: o da luz, dominado por Deus, identificado como Ormuzde ou Ahura Mazda, e o das trevas, de domnio de Sat, Ahrim ou Anr Mainiu. O ser humano, preso por Sat, deveria lutar sem descanso para se libertar das trevas e readquirir a luz. Sua libertao s poderia acontecer mediante uma vida austera, passando por trs selos ou modificaes: o selo da boca (jejum), o da mo (absteno do trabalho) e o do ventre (castidade).

  • O maniquesmo conquistou a ateno de homens como Santo Agostinho. Um de seus mais famosos discpulos foi Madek, do sculo VI, que afirmava que todo o mal do mundo era causado pelo desejo de posse de fortuna e mulheres. Por isso, pregava que esses mesmos itens deviam ser de posse comum, ou seja, de usufruto de todos. Essa doutrina se estendeu da frica do Norte at a China e, embora fosse combatida tanto pela Igreja quanto pelos governos dos pases onde entrava, se prolongou at a Idade Mdia, quando ressurgiu com os ctaros. Organizao da Igreja ctara Sabe-se pouco sobre o modo como os ctaros se organizavam. O que chegou at ns d uma idia vaga, mas consistente. Tinham duas classes ou graus. A primeira, que englobava os leigos, era conhecida com o nome de crentes ou auditores. A segunda era composta pelos perfeitos ou eleitos, que enfrentavam um perodo de prova de dois anos. Os crentes tinham regras para fazer seu jejum e no podiam comer carne, ovos ou leite. A principal obrigao dessa casta era adorar e alimentar os perfeitos. Os crentes jamais poderiam aspirar ascender casta dos perfeitos, considerados de alto nvel. No leito de morte, podiam receber o consolamentum ou batismo espiritual, que combinava caractersticas de batismo, confirmao e ordenao. Caso no morressem, eram colocados em regime de fome. Os perfeitos tornavam-se membros dessa casta depois do perodo mencionado, no qual renunciavam a todos os bens terrenos e viviam comunalmente com outros da mesma classe. Evitavam as tentaes da carne isolando-se completamente do convvio com o sexo oposto, alm de fazer voto para nunca dormirem nus. Eram completamente contra a unio sexual, pois perpetuava a vida e aprisionava mais um esprito no mundo esprio material. Praticavam o jejum absoluto trs vezes por ano, condenavam o servio militar e tinham o suicdio como ideal de santidade, sendo sua forma mais perfeita a endura, onde passavam fome at morrer.

  • Uma pessoa podia ingressar na igreja catara por meio de dois ritos de iniciao. O primeiro era a conveneza, palavra de origem ocitnia, a lngua dos ctaros, que significa acordo ou pacto, um acordo por meio do qual o crente era consolado na hora da morte mesmo que no estivesse consciente e em condies de recitar o Pai-Nosso em voz alta. O segundo era o consolamentum, j citado, feito de forma espiritual, nunca com gua que, como qualquer coisa material, maldita. Era necessrio passar por este para se tornar um perfeito. Acontecia em duas partes: o servitium era uma confisso geral feita pela assembleia; o pater noster era uma cerimnia em que o candidato se prostrava diante do bispo-chefe e rogava para que este o abenoasse e por ele intercedesse junto a Deus enquanto renunciava Igreja romana e cruz traada na cabea na hora do batismo. Essa cerimnia terminava com a troca de beijos entre os presentes, chamada de paz. Havia ainda dois outros sacramentos conhecidos: a penitncia e a quebra do po, uma espcie de comunho, j que no acreditavam na material transubstanciao. Cada igreja ctara tinha um bispo-chefe, que era auxiliado por dois perfeitos, identificados como filius maior e filius minor, que tambm recebiam a denominao de bispos. Quando o chefe morria, o cargo era automaticamente passado para o filuis maior. As lendas do Santo Graal Os ctaros colecionaram, ao longo dos anos, muitas lendas que, segundo algumas fontes, esto registradas em documentos dos Arquivos Secretos do Vaticano. Pela mitologia dos caadores de tesouros, o Santo Graal estar ligado a dois grupos religiosos que tm sua existncia comprovada historicamente: os cavaleiros templrios e os ctaros ou albigenses. Em muitas das histrias contadas, os ctaros figuram como o grupo que possui o segredo da localizao do Santo Graal e de outro Santo Sudrio, que no o famoso de Turim. Isso despertou a imaginao de caadores de tesouros com o passar dos anos.

  • Os templrios so conhecidos por terem supostamente passado muitos anos acampados no Monte do Templo, em Jerusalm, e terem usado os estbulos de Salomo para fazer escavaes. Eles teriam encontrado algo valioso sob as runas. Alguns escritores acreditam que eles teriam achado o Santo Graal, e outros creem que foi a Arca da Aliana. H tambm outras suposies. De tudo o que se especulou sobre a posse de tesouros pelos templrios, o fato que jamais foram encontrados, e nunca se soube de qualquer registro histrico que comprovasse sua existncia. Os ctaros tambm eram tidos como guardies e protetores de tesouros, mas isso varia de acordo com a verso da lenda que se propaga. Na verdade, o Santo Graal foi um dos supostos tesouros em seu poder. Fontes histricas francesas sugerem, sem nenhuma prova, que o clice de Cristo passou das mos dos templrios para as dos ctaros e que foi levado para um local desconhecido quando houve o cerco fortaleza de Montsgur, em 1224. No preciso ser historiador para ver que a data desse acontecimento e a da queda de Acre no batem, pois o primeiro, acontecido por volta de 1291, seria posterior ao segundo. Mas o que sabemos, hoje em dia, sobre os ctaros? Os arquivos da prpria seita foram queimados durante o processo da Igreja Catlica contra eles. As informaes que temos vm dos processos catlicos contra os ctaros, registrados pela Inquisio que, por seu posicionamento ante os condenados, so claramente inclinados a distorcer as informaes l contidas. Foram esses processos que erradicaram os ctaros da regio do sul da Frana conhecida como Languedoc por meio de uma cruzada, criada e orientada pelo papa Inocncio III. O fascnio de suas doutrinas, entretanto, chegou at os dias de hoje e gerou movimentos que esto em plena atividade na mesma regio da Frana. Nos Arquivos Secretos h alguns documentos fascinantes a esse respeito, como o Pergaminho de Chinon, que absolve os Cavaleiros Templrios da acusao de heresia. Porm, at onde se sabe, no foi encontrado, ou melhor, divulgado, nada que tenha absolvido os ctaros.

  • O Santo Graal nos romances Dan Brown se aproveitou das vrias lendas e da fascinao dos leitores sobre os histricos e trgicos personagens ctaros e templrios para se valer dos contos em que os ltimos teriam retirado o tesouro, seja ele Graal, a Arca da Aliana, seja outro qualquer, quando da queda da cidade de So Joo de Acre, na Palestina, capital dos cruzados por um sculo, aps a perda de Jerusalm nas mos dos muulmanos, em 1291. A Cruzada Albigense A Igreja Catlica tentou conter a expanso ctara. Comeou enviando misses de catequizao formadas por monges cistercianos, a mesma Ordem de Bernardo de Clairvaux, um dos maiores entusiastas dos templrios e autor das regras que ditavam o comportamento dos monges cavaleiros. As converses foram poucas, e os monges, apesar do esforo, foram recebidos com vaias nas ruas de Toulouse. A coisa comeou a piorar quando um escudeiro do conde Raymond VI de Toulouse, seguidor ctaro, matou um enviado do papa Inocncio III cidade. Diz-se que o acontecimento enraiveceu tanto o pontfice que ele no falou durante dois dias. Depois, declarou que os ctaros eram "piores que os sarracenos" e convocou uma cruzada para varrer a heresia de uma vez por todas. Muitos cavaleiros franceses, movidos pelos mais diversos motivos, responderam ao apelo do papa, formando, assim, a primeira cruzada contra um inimigo que estava na prpria Europa. Alm da salvao prometida a quem entrasse no empreendimento por no mnimo 40 dias, era permitido que os participantes contassem com os despojos do territrio conquistado. O j citado autor O'Shea relata que 20 mil cavaleiros que lideravam um enorme exrcito iniciaram a cruzada albigense em 1209. A primeira cidade tomada foi Beziers, e quase todos os habitantes, incluindo catlicos, foram massacrados. Ao perguntar ao abade de Citeaux, representante papal, como distinguir os catlicos

  • dos ctaros, este teria respondido: "Matem-nos a todos. Deus se encarregar dos seus". O mesmo cenrio se repetiu em Carcassone, prximo a Rennes-le-Chateau. Em Herauld 150 ctaros se atiraram voluntariamente a uma fogueira para no se renderem. Apesar das aparncias favorveis aos exrcitos papais, a batalha contra os ctaros durou quase 40 anos at o cerco final. Havia clulas de fiis que conseguiram sobreviver por mais meio sculo. Milhares de perfeitos, levados escolha entre a converso ao catolicismo e a morte, logo se prontificavam a se sacrificar, mostrando tendncias para o martrio. Muitos morreram de fome e acorrentados s paredes de calabouos, outros queimados publicamente em grandes fogueiras. Houve os que apelaram para a j descrita endura, se suicidando pelo jejum. Apenas em 1224, depois de um cerco que durou dez meses, caiu a fortaleza de Montsgur, nos Pirineus, ltimo reduto de ctaros. Suas runas podem ser vistas at hoje em Arieg, ao sul da cidade de Lovelanet. Localizada no alto de um penhasco escarpado de 1.207 metros de altura, mais de duzentos ctaros, entre homens e mulheres, dos quais faziam parte 50 perfeitos, desceram a montanha "cantando calmamente at grandes piras, onde morreram queimados. O local conhecido hoje em dia como Campo dos Queimados. Os ctaros que conseguiram fugir da Frana foram para a Itlia. Porm, foram descobertos pela Inquisio, j instalada na maioria dos pases europeus de ento. Pouco depois, em 1299, Pedro Autier, um perfeito, regressou ao sul da Frana e, com o apoio do povo, comeou a reconstituir vrias comunidades ctaras. Novamente a Inquisio entrou em ao, capturando e executando Pedro Autier em 1311. Como a igreja ctara no estava completamente reconstituda, terminou por se extinguir, pois no contava mais nem com o apoio da aristocracia, agora decadente na regio. Na Itlia, nos montes Apeninos e no Alpes da Lombardia, os ctaros resistiram at por volta de 1400, quando desapareceram.

  • Os tesouros e os neoctaros Fontes acadmicas dizem que, pouco antes do cerco final, foi erguida uma trgua para que os ctaros pudessem se preparar para seu destino. Assim, um grupo de ctaros (algumas verses dizem que seriam apenas quatro) teria descido as enormes muralhas de Montsgur para transportar seu fabuloso tesouro. Esses quatro, segundo relatos da Inquisio, fugiram para as montanhas levando consigo "certos objetos". A lenda complementa: quando o Graal estava escondido em lugar seguro, os ctaros fizeram seu sacrifcio final. Para o historiador brasileiro Joo Ribeiro Jnior, o Santo Graal poderia estar entre o tesouro ctaro. H quem diga, como o historiador Andrew Sinclair, que o Graal pode ter sado da fortaleza ctara para ir parar nos subterrneos da Capela Rosslyn, na Esccia. H outros autores que afirmam que o Graal pode estar em qualquer lugar do Languedoc, inclusive em Rennes-le-Chateau. Seja como for, ningum jamais encontrou nada que fosse nem remotamente similar ao Graal, apesar de localidades to distantes entre si como o Pas de Gales, a Inglaterra, a Itlia e certas cidades da Frana moderna apresentarem hoje candidatos ao ttulo de "verdadeiro Graal". Enquanto isso, nos dias de hoje cresce e floresce de maneira discreta o chamado movimento neoctaro no mesmo Languedoc que viu o martrio dos ctaros originais. O escritor portugus Bernardo Sanchez da Motta conta sobre o reaparecimento ctaro: verdade que a tradio ctara permanece viva no Languedoc, pelo menos de forma indireta, porque renasceu um interesse pelo tema durante o sculo XIX com Jules Doinel. Penso que o ideal ctaro ainda est muito ativo no Languedoc, tambm porque alguma documentao chegou aos nossos dias. A biblioteca de Orleans est repleta de documentos ctaros. Bernardo Motta conta em seu livro Do enigma de Rennes-le-Chateau ao Priorado de Sio um pouco sobre Jules Doinel. Nascido em 1842, em Moulins,

  • no Allier, esse o principal nome ligado a um movimento neoctaro surgido no final do sculo XIX na Frana. Sua carreira de arquivista e palegrafo se iniciou nos Archives du Cantal, e posteriormente na Biblioteca de Loiret. Foi nesta ltima que encontrou algo que mudou sua vida: uma carta com a assinatura de um chanceler episcopal, de nome Etienne, queimado em 1022, em Orlans, por heresia. Essa carta apresentou a Doinel o grupo sectrio do qual o chanceler fazia parte: uma seita de "popelicanos", composta por homens e mulheres de forma indistinta, estabelecida na diocese de Orleans no sculo XI. Doinel descobriu que as reunies da seita aconteciam em Orlans e l encontrou uma mulher eslava vinda da pennsula itlica para participar nos encontros, possivelmente uma "bogomil", nome pelo qual so conhecidos os ctaros eslavos. Motta ainda relata que Doinel obteve vrias informaes sobre o que acontecia nessas reunies, que, segundo os documentos histricos, se iniciavam "com todos os participantes entoando cantos com uma vela acesa na mo. Depois, um animal, que deveria representar uma divindade, entrava na sala e colocava-se no meio da assembleia. Era o sinal para que cada um escolhesse um parceiro do sexo oposto e se unisse com ele". Das crianas nascidas desses encontros, uma era escolhida para ser "purificada pelo fogo" palavra bem comportada para queimada em cerimnia. De suas cinzas era feita uma mistura usada para administrar extrema-uno. Um dos membros da seita, horrorizado com os procedimentos, denunciou-a a um cavaleiro, de nome Arefast, que comunicou a situao ao rei. Em 25 de dezembro de 1022, os hereges foram presos e chamados perante o Snodo, na catedral de Orlans. Trs dias depois, treze dos hereges foram queimados. Apesar desses fatos, Doinel se interessou pela histria dos popelicanos e mergulhou nas pesquisas para levantar as crenas ctaras, embora estes no fossem, em si, ctaros e acreditassem em um tipo de dualidade. Em 1189, Doinel criou uma igreja neognstica, da qual foi, durante muitos anos, o patriarca, com o nome adotado de Valentino II e os ttulos de Bispo de Montsgur. Em 1890, ele reorganizou a igreja, declarou aquele ano como o "ano I da restaurao da gnose" e restabeleceu os sacramentos bases de catarismo: o

  • consolamentum, a quebra do po e a penitncia. Estabeleceu a hierarquia da sua igreja por meio da nomeao de onze bispos, com uma mulher, Sofia de Varsvia, e uma srie de diconos de ambos os sexos. Foi tambm instituda a Ordem do Paracleto, em honra aos mrtires ctaros mortos na Cruzada Albigense. Embora Doinel tenha abandonado seu posto em 1894, a igreja neoctara continuou at a metade da Segunda Guerra Mundial. Ela terminaria com um homem chamado Chevillon, que acumulava a liderana do movimento neoctaro com os ttulos de Gro-Mestre da Ordem Martinista e Gro-Mestre do Rito de Misraim, ou do Egito. Em 1941, a polcia do governo colaboracionista de Vichy ordenou a priso de Chevillon e apreenso dos documentos encontrados na sede de Lion. Os documentos foram considerados contrrios aos interesses de Vichy. Apesar de no ter nada em comum com a maonaria do grande oriente, subversiva aos olhos de Vichy, a igreja neoctara foi vista como tal. Chevillon foi condenado morte e executado.

    Captulo 4 Os Evangelhos Proibidos

    O termo apcrifo usado para definir todos os textos ligados a ensinamentos religiosos que no fazem parte oficialmente da Bblia. Assim, detalhes essenciais como a vida de Jesus durante sua infncia, at o comeo de suas pregaes, que no so encontrados em nenhum dos quatro evangelhos "oficiais", podem ser apreciados em vrios textos apcrifos. Do grego Apokruphoi, que significa secreto, suas cpias ou, em alguns casos, verses desconhecidas do pblico, poderiam estar guardadas pelos bibliotecrios dos Arquivos Secretos a sete chaves. Por sua ligao com o gnosticismo, os apcrifos foram considerados herticos. No comeo do cristianismo, quando este ainda no havia atingido o status que possui hoje, vrios textos eram consultados pelos fiis e traziam, em si, muitas idias que batiam de frente com o que a Igreja considerava de acordo com o cnon, o chamado cnon eclesistico ou cnon da Igreja.

  • Nos ltimos anos, personagens bblicos como Judas e Madalena foram apenas dois exemplos que, de uma forma ou de outra, se tornaram mais interessantes e ganharam destaque graas ao conhecimento extrado dos chamados evangelhos apcrifos. Cannicos X Apcrifos A palavra cnon, no hebraico qneh, significava vara ou rgua para manter algo em linha reta, algo como a linha ou rgua dos pedreiros e carpinteiros. A Igreja produziu, em um processo longo e lento que tomou anos, uma lista de livros que eram aceitos como inspirados, os mesmos que dariam palavra "cnon" o significado de "contedo das escrituras como se encontra nesses livros". Assim, o cnon passou a designar todos os textos considerados de inspirao divina, possudos de autoridade normativa para a f crist. Os demais textos eram considerados "apcrifos". H, at hoje, certo receio por parte dos cristos mais fervorosos, principalmente entre os catlicos, em considerar os apcrifos como fonte de informao sobre os personagens bblicos. E muitos chegam a se manifestar, em diversas pginas na internet, dizendo que tais textos deveriam ser queimados, esquecidos ou simplesmente destrudos. Tomemos, como exemplo, uma pgina de um trabalho acadmico (Bart D. Ehrman. Lost Christianities (em ingls). [S.1.]: Oxford University Press, 2003) que fala sobre o ento recm-descoberto Evangelho de Judas. Vejam, s este trecho: Esse novo-velho "evangelho" reabilita Judas Iscariotes, positivando-o como aquele por quem Cristo pde ser crucificado. Trata-se de uma antiga idia gnstica, raciocnio circular segundo o qual "o mal til e necessrio para que haja o bem". Na dcada de 1980 saiu o romance Eu, Judas, de Taylor Caldwell, onde essa verso revisada de Judas foi difundida. Aceitar tal hiptese seria contrariar toda histria que sempre descreveu Judas como traidor. Um documento antigo deve ser analisado de vrios prismas: deve-se observar a sua

  • origem, autor e data; depois analisar seu contedo, separando o fictcio do factual aqui reside o trabalho mais srio, onde os estudiosos devero conflitar as informaes histricas. Afinal de contas, no porque esse manuscrito arvora ser Judas um heri que toda a sua biografia ser mudada. O pensamento retrgrado do autor do texto acima um exemplo clssico da falta de viso que as pessoas tm do valor que esses documentos podem apresentar hoje em dia. de estranhar que Madalena e Judas estejam to em evidncia hoje em dia? Ningum sabe nada sobre eles, e o pouco que se descobre duramente rechaado por fanticos catlicos como delrio, heresia e outros adjetivos. No se pode deixar de entender que os textos apcrifos so verses que podem ajudar a compreender melhor as atitudes dos personagens bblicos. Ento, por que no lev-las em considerao? Ningum disse que, pela publicao do Evangelho, Judas Iscariotes deveria levar uma medalha de honra ao mrito ou algo assim, mas que se deveria entender mais as causas que levaram aos atos descritos na Bblia. A briga entre cannicos e apcrifos muito antiga. Quando falamos de Pedro, alguns dos textos apcrifos, que supostamente foram de sua autoria, chegaram a ser admitidos pelos padres da poca. Seria mesmo o caso de manter sua proibio e conseqente destruio? Todos os apcrifos exprimem mesmo heresias? Para que o leitor possa entender melhor essas idias, vamos analisar um pouco as condies histricas que levaram escolha dos evangelhos cannicos ou oficiais. O Conclio de Niceia Voltemos ao ano de 325 de nossa era. Naquele tempo, foi realizado o Conclio de Niceia, na atual cidade de Iznik, provncia de Anatlia, na parte asitica da Turquia chamada de sia Menor em tempos antigos. Esse foi o primeiro de dois conclios realizados na cidade; o segundo ocorreu em 787.

  • O primeiro Conclio foi convocado pelo Imperador Flavius Valerius Constantinus (285-337), ou Constantino, filho de Constncio I. Constantino, chamado de primeiro imperador cristo, assumiu o poder quando da morte de seu pai, em 306, e logo passou a ser a autoridade mxima inicialmente na Bretanha, na Glia, atual Frana, e na Hispnia, atual Espanha. Aos poucos, assumiu o controle completo do imprio romano. Alguns anos antes, no reinado de Domcio Aureliano (270-275), os regentes romanos abandonaram a unidade religiosa desde que esse imperador renunciou, em 274, aos seus direitos divinos, prprios desse governo. Constantino, porm, sempre almejou relanar essa unidade religiosa e viu no cristianismo, que ento estava em ascenso, uma oportunidade para alcanar esse objetivo. Hoje muitos historiadores que analisaram seu governo so unnimes em dizer que sua converso no foi to completa assim, pois ele no abria mo de sua posio como sumo sacerdote do culto ao "Sol Invictus", representao do deus persa Mitra, e s foi batizado em seu leito de morte. De fato, alguns elementos desse culto seriam depois absorvidos pelo cristianismo, como a comemorao do Natal em 25 de dezembro. Assim, o interesse principal de Constantino no cristianismo seria mesmo us-lo para fortalecer sua monarquia. Tinha certo conhecimento da doutrina crist e observou, durante o ano de 303, as perseguies impostas pelo imperador Diocleciano. Tinha noo de que os cristos, embora fossem minoria, chegavam a no mximo 10% da populao do imprio e estavam concentrados em grandes centros urbanos, principalmente em territrios inimigos. Ento, em 325 convocou mais de 300 bispos para o Conclio de Niceia. O imperador, sempre de olho na unidade religiosa como um fator que o ajudaria a manter o poder, tinha noo da existncia de divises dentro da nova religio. Esse concilio deveria, assim, estruturar de uma vez por todas seus poderes. Entre os participantes estavam bispos orientais que, como era costume, estavam em maioria, entre eles pelos menos trs arcebispos, Alexandre de Alexandria, Eustquio de Antiquia e Macrio de Jerusalm, alm das presenas de Eusbio de Nicomdia e Eusbio de Cesareia. Representando o Ocidente estavam Marcus

  • de Calbria (Itlia), Cecilian de Cartago (frica), Hosius de Crdova (Espanha), Nicasius de Dijon (Frana) e Domnus de Stridon (no Danbio). Os debates comearam. Entre os vrios pontos discutidos na ocasio, estava a questo ariana, que negava a equivalncia de Jesus e Deus, colocando Cristo como um homem, e no uma divindade; a celebrao da Pscoa; o cisma de Milcio, fundador da Igreja dos Mrtires; o batismo de herticos e o estatuto dos prisioneiros na perseguio realizada sob o comando de Licnio, imperador romano destronado e condenado morte pelo prprio Constantino. A escolha dos evangelhos cannicos Foi nesse mesmo conclio que aparecem as verses da escolha dos evangelhos cannicos. No incio do cristianismo, havia o absurdo nmero de 315 textos. A verso oficial de como foi feita essa escolha registrada em alguns documentos. Porm, mesmo que se trate de verses histricas, quando algum as l sente como era difcil ser prtico e direto naqueles dias e no deixar o fanatismo tomar conta das decises a serem tomadas. Vejamos como isso ter