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Universidade de São Paulo

Prof. Dr. João Grandino RodasReitor

Prof. Dr. Hélio Nogueira da CruzVice-Reitor

Profª Drª Maria Arminda do Nascimento Arruda Pró-Reitora de Cultura e Extensão Universitária

Prof. Dr. Osvaldo Luiz BezzonPrefeito do Campus de Ribeirão Preto

João Braz Martins JúniorDiretor da Divisão de Atendimento a Comunidade

Camila de Carvalho MicheluttiChefe da Seção de Atividades Culturais

Seção de Atividades Culturais:

Aurélio M. C. Guazzelli (Lelo)Camila de Carvalho Michelutti

Carlos de Araújo ArantesIvani Moreno Cardoso

José Gustavo Julião de CamargoLélis Camilo Cavalieri

Maria Aparecida Rodrigues VitorRafael dos Santos Elias

Regina Célia Reis da SilvaSandra Regina Arcanjo de Carvalho Melo

volume 202014

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ISSN 1516-0513

poesia & prosa

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOPRÓ-REITORIA DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

PREFEITURA DO CAMPUS USP DE RIBEIRÃO PRETODIVISÃO DE ATENDIMENTO A COMUNIDADE

SEÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS

ProduçãoSeção de Atividades Culturais

Coordenação do ProgramaLelo Guazzelli

Seleção de OriginaisAlfredo Rossetti e Lucas Arantes

Preparação, Projeto Gráfico e Supervisão GráficaPSAF - Gráfica

Fotografia: Estéphe Bergoncini, 1° Tenente do Corpo de Bombeiros, aman-

te da fotografia. Participou da Oficina de Fotografia da Seção de Atividades Culturais.

SEÇÃO DE ATIVIDADES CULTURAIS • DVATCOM • PUSP-RP • USPPrefeitura do Campus USP de Ribeirão Preto

Rua Pedreira de Freitas, casa 04 – tel.: (16) 3602.353014040-900 • Ribeirão Preto / SP

www.prefeiturarp.usp.br/[email protected]

facebook: atividadesculturais.usp.br

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editorial Não deve ser muito comum um programa literário durar vinte

anos em nosso País. Mas aí está o Poeta de Gaveta, que começou

sem muita pretensão e permaneceu até os dias de hoje. Abraçado

pela comunidade uspiana, reconhecido pelos amantes da literatura,

entre outros.

É fato que programas culturais não casam com projetos “políti-

cos”, estes são efêmeros e incapazes de gerar consistência. O espaço

de quatro anos é muito pouco para construir uma ação cultural, e, ao

mesmo tempo, suficiente para destruir o que se mantém. Tenho visto

poucos concursos literários pelo país. Pouca inclinação para a arte e

a cultura. Muita coisa acontece, mas parece que vejo tudo em vitrines.

Fico com medo de olhar em meu corpo e achar um código de barra.

Será que é só uma crise saudosista? Pode ser. Mas graças à internet,

vamos descobrindo outros caminhos para nossos sentidos. Pelo me-

nos nela podemos decidir quais mares navegar.

Em tempos digitais estamos redescobrindo o passado e atu-

ando no presente, praticamente “ao vivo”. Estamos mutantes. Várias

gerações ao mesmo tempo mutantes. Mas mudar em pouco tempo

pode não ser nada, apenas conhecer ou simplesmente ver. A ativida-

de cultural quando existe traz modificações, muda o jeito de pensar

porque descobre-se o seu pensar. Entende-se o individual e olha-se

no ambiente social. Reflexão, contradições e o ato de conversar pa-

rece passado. Mas quanto ganharia a nossa sociedade se discutisse

filosoficamente e não futebolisticamente. Parar o frenético impulso de

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uma mídia que nos torna cada dia mais efêmero é bem necessário.

As mídias tradicionais não favorecem mais ninguém, talvez porque

tenham dado menos importância para a cultura e arte, justificando,

como nosso país justifica tudo, pelo direito ao dinheiro.

Um rastro pueril vai ficando em nossas vidas. Percebo que

onde se tem dinheiro, em noutros tempos não se mantém, nada se

solidifica a não ser pelas ruínas. Porém onde se tem arte e cultura,

com dinheiro ou não, a semente sempre germina, os olhos brilham, as

ideias florescem, o caráter é digno. Não falo de uma cura social, mas

um direito à cidadania. De uma sociedade com o direito de ter um sen-

so crítico desenvolvido, para analisar o turbilhão de um entretenimento

decadente socado pelos nossos ouvidos e olhos todos os dias nesse

país, e onde programas como o Poeta de Gaveta, e outras iniciativas

artísticas poderiam ser bem acolhidas.

Lelo Guazzelli

Coordenador do programa Poeta de Gaveta

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ALGUMAS PALAVRAS

O programa POETA DE GAVETA exprime fielmente a literatura

do nosso tempo: plural. Ou se preferirem heterogênea. Sem a preo-

cupação do modismo ou vassalagem à uma determinada escola. A

prioridade é a expressão de cada artista, independente do que o aca-

demicismo possa reiterar como tendência. E isso livra de certa ditadu-

ra imposta sempre por círculos pretensiosamente donos das cartas a

dar. Que bom. Assim, podemos reunir num só volume várias formas

de se fazer literatura, seja em poemas, crônicas ou contos. E esta

diversidade aponta para o deleite de quem tem a oportunidade de ler

e reler haikai, soneto, poemas livres, contos curtos, crônicas atuais,

etc. Além disso, o projeto também reúne em seu bojo o abrir oportu-

nidades aos artistas que não podem, por vários motivos, terem seus

trabalhos publicados em livros, e só quem milita nesta área é que pode

descrever com propriedade, o prazer que é ver diante de nossos olhos

e sentidos nossos trabalhos publicados, nossas linhas impressas, o

papel tatuado com alguma marca pessoal diante de nós. E para mim é

a parte mais importante desse livro que ora vem à lume, num exercício

primoroso de se estabelecer uma porta aberta a quem tem a intrínseca

necessidade de expressão.

Alfredo Rossetti, poeta. Autor dos livros: COLHEITA DOS VENTOS, 2008 TREM

DAS PALAVRAS, 2011 LUZ DE ALPENDRE, 2013

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A arte sempre foi crônica do seu tempo. Aproximar o público

com os realizadores de obras realizadas no presente é manter a socie-

dade em constante contato com a história da cultura, impulsionando o

pensamento de cada um para a construção do futuro. Ao ter acesso a

novos textos no programa POETA DE GAVETA, um novo público esta-

rá se formando para ver a literatura com novos olhos. Um novo público

também é formado por novos conteúdos. E nada melhor do que escri-

tos contemporâneos para catapultar as questões artísticas e humanas

de cada um, nos fazendo repensar o presente para a construção do

futuro. Uma nação precisa ter acesso aos seus artistas e poetas, em

diminuir a distância entre artistas, obra e público, pois são eles quem

ajudam a pensar o mundo em constante transformação, nos fazendo

refletir sobre o homem na atualidade e a nos reinventarmos a cada

instante. É neste contexto que o programa POETA DE GAVETA se faz

necessário, reunindo um variedade de vozes e linguagens formando

um pedaço do mosaico da literatura realizada nos tempos de hoje.

Lucas Arantes, escritor, jornalista e psicanalista. Membro fundador e atual orga-

nizador do Espaço A Coisa. Autor dos livros SONIDOS, DOCUMENTOS INÚTEIS,

POEMAS NA MESA POSTA OU O CLÃ DO URSO DA FLORESTA e O OUTRO ES-

TRANHO. Autor dos espetáculos SUSPENSÃO, AR VAZIO, A.B.ISMO, INFAUSTO,

SOTERRAMENTO, EDIFÍCIO LONDON, entre outros espetáculos. Este último, o es-

petáculo levado ao palco pela premiada Companhia Os Satyros, de São Paulo, e o

livro, publicado pela Editora Coruja, de Ribeirão Preto foram censurados pela justiça

brasileira em março de 2013.

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sumário17 - Fruição e Fricção / Vitor Hugo de Oliveira

18 - Ainda / Vitor Hugo de Oliveira

20 - Ícaro submerso na luz / Vitor Hugo de Oliveira

22 - Única (o) / Flávio Basile

23 - O princípio / Caio Chaves Morau

25 - Flores no chão / Caio Chaves Morau

27 - Breve retrato de uma quarta-feira ordinaríssima / Caio

Chaves Morau

33 - Informática mágica / Amir do N. Elemam

34 - Hiato / Mateus Araujo

35 - Reflexões de uma pedra / Marcos de Abraão

37 - De que pé dá o amor? / Ana Clara Rodrigues Almeida

38 - Singularidade I / Letícia Azevedo

39 - Singularidade II / Letícia Azevedo

40 - Permanência / Letícia Azevedo

41 - Poema de “não sei” / Janaína de Godoy Gonçalves

42 - Amor / Pedro Henrique

45 - Imortalidade / Pedro Henrique

47 - Sentidos / Milena Shimada

48 - Encontro / Marina Liberale

51 - Aroma / Roque Pinho

53 - Afronta Brasiloira / Roque Pinho

55 - Esclarecimento sombrio / Magê DBgt

56 - Senhora morte em desabafo / Magê DBgt

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57 - Foi no carnaval / Guilherme Gandolfi

59 - O homem invisível / Guilherme Gandolfi

61 - 1914 / Alexandre Traldi Reichel

63 - Abra o negro ceú, luar das almas / Camila Silveira Stanquini

64 - Opala 71 / Camila Silveira Stanquini

67 - Arrevesso escuro na avenida Dr. Carlos Botelho / Lucelindo

Dias Ferreira Junior

68 - Romance selado a sangue e cuspe / Lucelindo Dias Ferreira

Junior

69 - Menino-dor: broto de cactos / Lucelindo Dias Ferreira Junior

73 - All-stars nesse puzzle fotográfico / Ana Paula Tavares Miranda

74 - A manhã que acorda meio kafka / Ana Paula Tavares Miranda

75 - Te amo (no Elevado do Caju) / José Antonio Vargas Bazán

Nomes de autores com abreviação:

Amir do Nascimento Elemam - Amir do N. Elemam

Marcos de Abraão de Souza Fonseca - Marcos de Abraão

Letícia Azevedo Januário - Letícia Azevedo

Pedro Henrique Rodrigues da Silva - Pedro Henrique

Roque Emmanuel da Costa de Pinho - Roque Pinho

Maria Eugênia Deungaro Borgato - Magê DBgt

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autoresautores

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textostextos

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Fruição e FricçãoVitor Hugo de Oliveira

Costuro-lhe todos os lábios,

escavo então novas profundidades.

Dou-lhe uma nova geografia.

Todo tapa dói, pois só se espanca o ser amado

As cartas de amor sangram ódios insuperados

e tingem de escarlate, por entre as letras de Moisés,

o puro vinho produzido

por fruição e fricção

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AindaVitor Hugo de Oliveira

Sobre o que ainda não foi dito

sobre o que muito já se disse, se sentiu, se sofreu

preservado feito fóssil nas densas sedimentações

depositadas sobre os corações, as rugas, as lágrimas.

Muito se nasce e se resseca na fértil terra de nossas

almas,

que se muito arada há de necessitar de pousios

quando as chuvas acalentam as ressequidas rachaduras

quando o Nordeste se alumia em verde flora

e exala o perfume da bela rapariga

que se apronta, que acasala, que se achega nos ombros

\e sopra o ouvido

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Arre! os tremores da pele que brotam em pêlos hirtos

são novas florestas que nascem ao comando teu,

as mesmas que nascem... e depois morrem, e se

\sedimentam em palavras

no corpo nu

e fertilizam as frases de palavras desvirtuadas

e brotam em dizeres tampouco puros

e abrem valas entre os lábios

de sons não professados, ainda

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Ícaro submerso na luzVitor Hugo de Oliveira

“Eu quero mais é que me faça flutuar essa tal gravidadeforjar minhas asas nas duras

duras penas da verdade”

Manifesto de repulsa à flacidezO Feliz Amor do Felino Ferido

Como voar sem erguer os braços,

atingir velocidades ultrassônicas e distâncias atmosféricas?

Como ser contido, como escolher o caminho do meio,

ser moderado, ter a parcimônia do entre-segundos?

Estou siderado!

Arregaço minhas mangas, abro minhas asas,

ignoro as físicas algorítmicas e frias, viajo direto à luz

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Será que queimo de velocidade ou de temor?

Derreto minhas possibilidades em lágrimas ferventes,

chorando a dor em Technicolor, no vermelho-sangue das

/costas

Chibatadas solares

Piedades nebulosas

com suas gravitações newtonianas

Após o vértice dos sonhos,

no torpor de mil brilhos estelares

resvalo na luz com as pontas dos dedos,

sucumbo ao pecado

ao corpo

ao inferno,

...

Submerso e disperso na verdade ondulante e incerta

desfeito em duras penas:

Com vistas esbranquiçadas não mais vejo,

como se veria.

Vitor Hugo de OliveiraDoutorado/Psicologia/FFCLRP • “Faz tempo que não leio. Faz tempo que escrevo. Recolho textos esparsos no tem-po, buscando retomar sensações antigas”.www.atravosfimicio.blogspot.com

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Única(o) Flávio Basile

Bem aventurado o que sabe que a Vida não leva a

nada e a lugar algum.

E que falta sua ninguém vai sentir.

Percebe daí: a vida é uma só pra não se ser

Singular.

Flávio BasileA/Direito/FDRP • “Há sete anos, publiquei no Jornal À Cidade de Ribeirão Preto”[email protected]

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O PrincípioCaio Chaves Morau

— De acordo, meu senhor, não sou em quem discordará.

— Ainda bem que lhe sobra algo de sensatez nessa cabeça.

— Sobra sensatez... sim, é verdade. E sobram também muitas

outras coisas...

— Natural que seja assim. Diga-me, pois, algumas delas...

— São tantas, meu senhor, que não sei bem por onde começar.

— Pelo princípio, oras.

— Mas que princípio é esse? Identifico, ainda que com alguma

dificuldade, o princípio daquelas filas de banco, de uma partida de

futebol... mas, meu senhor, aqui nesta cabeça, não há princípio que

mereça este nome.

— Deixa de bobagem, menino. O princípio, estas nove letras

que se pronunciam com gosto, é o mesmo para as filas de banco e

partidas de futebol e para todas essas bobagens que guarda nessa

tua cabeça de jovem.

— Não entendo, meu senhor...

— Não há um único mistério em tudo isso. O princípio é isto

que se convencionou chamar de começo, início, é a força primeira,

o acontecimento primeiro...

— Mas, meu senhor, é demasiada simplicidade pra essas coi-

sas da nossa cabeça...

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— Mais do que simplicidade, lógica, meu filho. O princípio está

ali, não enxerga porque não quer. O princípio está em tudo. “In prin-

cipio creavit Deus caelum et terram”, no princípio Deus criou o céu

e a terra, não lhe parece razoável?

— Meu senhor, me perdoe, não estamos aqui a falar da cria-

ção, tampouco de razoabilidade. Pergunto ao senhor onde é que

está o princípio da nossa alegria e da nossa tristeza, das nossas

dúvidas e das nossas angústias.

— Meu filho, escuta bem o que te digo. Este princípio é ainda

mais claro do que todos os outros. Não está em nada da tua ca-

beça, nem nos pensamentos que te arrastam. O que é o princípio

senão o dia em que saiu do ventre da tua mãe, e que também eu

de lá saí há alguns tantos anos. Este princípio não escolhemos.

Não procura nunca o princípio, meu filho! Acaso já te foi necessário

tocar o coração da tua mãe pra saber do amor que dali parte? Faz

o mesmo com o princípio, convence-te de que ele esteve sempre

ali e cuida de tratar das tuas angústias e das tuas dúvidas com

honradez. Não é o princípio o culpado e não há culpado nenhum.

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Flores no chãoCaio Chaves Morau

— Veja só que sou capaz de ver flores no chão.

— Capazes somos todos... acaso nascem as flores do ar ou

brotam das paredes?

— Repara bem no que digo: vejo flores no chão!

— Ah, não me venha com essa, que é hoje sábado de manhã,

há mais o que se ver por aí.

— Pois, repito. Flores, flores! Vejo flores no chão!

— Que queres tu? Tirar-me a alegria desta manhã com os de-

vaneios teus?

— Queria mesmo que as enxergasse.

— Pois onde estão, oras, essas flores que vês nesse teu chão?

— Aí estão!

— Já bem imaginava... que flores são essas? O que se vê aqui

são reflexos. Reflexos das flores suspensas do alpendre. Acaso cabu-

lastes tuas aulas de física?

— Reflexo... não entendo de que reflexo falas tu...

— Ora bolas, reflexo, deste que tratamos aqui, é o reflexo, ele,

o único, o de se verem as coisas noutro lugar por alguma ação física

que o valha...

— Então, só se veem os reflexos nessa condição? Antes que te

fizesse notar, havias tu reparado nessas flores?

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— Repararia, se tivesse olhado...

— Repararia em que? Nas flores ou no reflexo delas?

— Ora, deixe-me de tantas perguntas.... o reflexo ali está, as

flores também estão. Que mais queres tu?

— Não quis nada desde o princípio.... quis sim que reparastes

nas flores.

— Pois qualquer um em boa vista notaria todas elas...

— Tens certeza? Os reflexos notamos todos. As flores que ali

estão, no piso, nas vidraças, nos lagos bem azuis, ainda que sejam

reflexos, só são flores para quem quiser ver flores.

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Breve retrato de umaquarta-feira ordinaríssima

Caio Chaves Morau

Ontem à noite, sabe-se lá por que razão, resolvi confirmar

se havia aula nesta quarta-feira, já o sabia que sim, por diversas

vezes havia sido preciso que eu decorasse os horários e não seria

desta vez que me enganaria. Eis que um minúsculo asterisco na

tabela chamava a atenção para o fato de que, excepcionalmente

hoje, não haveria aula. Pois bem, em uns quantos dias nublados

e chuvosos, essa informação traduzia diante de mim que no dia

seguinte não haveria “nada” a fazer. Diante dos “nadas” que apa-

recem a toda a gente, tem-se geralmente duas opções claríssimas:

ou deixa-se contaminar por eles ou usa-se da infinita capacidade

inventiva das cabeças humanas para que se preencha de alguma

maneira o tempo.

Resolvi então fazer algo que desejava desde o

primeiro momento em que cogitei passar estes meses em terras

francesas. Tirar um dia justamente para cultivar o “nada”. Seria,

no entanto, uma notável injustiça com o verbo “cultivar” que se lhe

atribuísse um sentido vazio, pois ele próprio, sozinho, já nos diz

demasiado. Para que não me alongue muito nessa introdução que

parece levar a lugar nenhum, digo então que tomei o dia simples-

mente para observar. A tudo e a todos. Foi assim que decidi, para

que me sentisse de certa maneira acompanhado, carregar um livro

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que há muito queria ter lido e que só agora – e que bom que tenha

sido agora – tive a oportunidade de começar. O “Ensaio sobre a

cegueira”, livro do meu autor predileto, malgrado não tenha eu lido

o livro e tampouco visto o filme.

O livro principia com uma epidemia de cegueira, que

vai afetando gradativamente os que tomavam contato com os que

estavam cegos e aqueles, por contágio, cegam também. E a his-

tória se passa de uma maneira tal e a cegueira se instala de um

modo tão abrupto que me veio à mente o seguinte pensamento:

“Que extraordinária coisa essa de se poder ver... deve ser bastante

penosa a vida dos que não veem...”. Pois bem. Saio do metrô e

inicio meu passeio a pé nas ruas cinzentas de uma Paris também

cinzenta que eu não conhecia. E aquilo em que pensei, mal ima-

ginava, fez a mim efetivamente uma companhia durante toda a

tarde. E mais Saramago: “Com o andar dos tempos, mais as ativi-

dades de convivência e as trocas genéticas, acabamos por meter

a consciência na cor do sangue e no sal das lágrimas, e, como

se tanto fosse pouco, fizemos dos olhos uma espécie de espelhos

virados para dentro.”

Espelhos virados para dentro. Guardo esta frase.

Continuo a caminhada, agora mais propenso a observar realmente

tudo o que se passava a minha volta. Lá pelo meio da tarde, entre

uma multidão que se aglomerava em baixo da Torre Eiffel, vi uma

moça bastante simpática, provável que também fosse estrangeira,

com os olhos metidos debaixo de umas grossas lentes escuras,

parada e de braços dados com o seu marido. Não me cansava

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de olhar aquilo. Se por uma imagem se pudesse dizer que há ali

um verdadeiro amor, que duas pessoas estão espiritualmente uni-

das, não haveria melhor cena do que aquele casal. A moça não via

nada. Paradoxo: e ao mesmo tempo via tudo. Absolutamente tudo.

Arrisco-me ainda a dizer que via mais do que aqueles que tiravam

incessantemente fotos a cada intervalo de trinta ou quarenta se-

gundos. Seu marido lhe descrevia a paisagem, lhe mostrava com

palavras toda a atmosfera de beleza, mesmo na tarde nublada

cujos efeitos de frio e de vento ela própria era capaz de sentir, e a

cada frase que encerrava, abria-se em seu rosto um sorriso legíti-

mo, como deveriam ser em verdade todos os sorrisos.

Aquela cena, que agora guardo como uma bela

fotografia dentro desse álbum de vivências que invariavelmente

encontramos em nossa alma, me fez valer esta tarde, que agora,

embora tenha sido hoje, arrisco também a me referir como “aquela

tarde” – confere uma certa nostalgia a um acontecimento notavel-

mente recente. Como se não bastasse aquela cena – permitam-me

usar o “aquela” agora também para a cena – e como se estivesse

eu como um cientista à procura de um objeto a ser descoberto,

atravesso a calçada. Lanço o olhar para um grupo razoavelmen-

te grande de crianças que estavam ao meu lado esperando que

se abrisse a luz verde para os pedestres. Tinham todas síndrome

de Down e estavam sendo guiadas por um professor para que fi-

zessem um passeio por aquela tarde felizmente cinzenta. Olham

fixamente para o rio Sena. Ao contrário da moça acometida pela

cegueira, eles sim podem ver, mas sabemos nós que o que veem

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fora não se processa dentro como nas pessoas a quem se poderia

chamar de normais.

O grupo de garotos e a moça de braços dados com

o marido, naquela tarde, em princípio, tinham visivelmente – não

visualmente – alguma limitação. E como venho me arriscando em

todo o texto, não perco mais uma oportunidade: embora visivel-

mente limitados, eram, em termos visuais, de todos os que ali esta-

vam os mais afortunados: viam absolutamente tudo e como viam!

Perto das seis horas, quando começa a escurecer,

pego o metrô de volta para casa. Continuo maravilhado com as

cenas que tinha visto. Penso que provavelmente só eu tivesse vis-

to aqueles dois episódios e atribuído a eles o significado que aqui

contei. Estava em êxtase. Dentro do metrô, como que para enfati-

zar o profundo significado de uma das tardes mais agradáveis da

minha vida, começa um senhor a tocar esplendidamente músicas

no seu saxofone. A música ali fechava com maestria uma tarde fan-

tástica que havia podido desfrutar. Não para os outros. A música

era bela, realmente bela. Como atestar a sua beleza não sei, mas

queiram aceitar que era incrivelmente bela. Os outros, a maioria,

que estavam entretidos com seus aparelhos eletrônicos, não se

atreveram a tirar os fones de ouvido em que estavam metidos ao

menos para ver, ou melhor, ouvir se valia à pena dirigir a atenção

às notas que aquele pobre senhor colocava naquele vagão com

um fôlego inenarrável. Estavam indiferentes, prova cabal daquilo

que há pouco chamamos de “espelhos virados para dentro”. Che-

gamos à última estação. Arrisco-me a bater palmas. Sozinho, mas

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não em vão. O senhor do saxofone dirigiu a mim imediatamente o

seu olhar. E digo que o os olhos daquele senhor não expressavam

nada mais do que a gratidão. A gratidão por conta das palmas de

um jovem que estava ali maravilhado com as suas músicas. O seu

olhar me dizia, melhor do que quaisquer palavras que se metesse

a dizer, que estava grato, que era raro para que ele que alguém

exaltasse seu trabalho com algumas poucas palmas, que alguém

ajeitasse os olhos, esses “espelhos virados para dentro”, por ao

menos algum instantes, em sua direção.

Pra mim, já podia ter-se acabado o dia naquele mo-

mento. Já havia sido brindado com muito e não esperava que o

trajeto final de ônibus me guardasse alguma surpesa. Como havia

me enganado logo desde o primeiro momento em que saí de casa,

fui levado ao erro mais uma vez. Aquele trajeto final até a resi-

dência universitária guardava ainda alguma magia. Reparo em um

senhor que entra no ônibus com certa dificuldade e tropeça no de-

grau. Estava com uma bengala, mas agora sem as grossas lentes

escuras da moça que estava de braços dados com o marido. Era

também ele cego. E rapidamente me lembrei que já o havia visto

nesse mesmo ônibus em outra ocasião e não havia dado pela sua

cegueira. Lembrei-me que naquele dia ele estava acompanhado.

Pensei que alguém de sua família ou mesmo algum ajudante ou

empregado ficasse sempre ao seu lado para lhe auxiliar. Hoje não

havia ninguém. E o mais natural pra mim foi que eu saísse do

banco onde estava, me dirigisse até ele e dissesse: “Je peux vous

accompagner, monsieur”. Seus olhos não brilharam, porque esta-

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vam cerrados, mas sua alma, essa sim se encheu de alegria e o

agradecimento veio imediatamente. Desci com aquele senhor na

estação de ônibus e percebi que não morávamos muito longe. Não

sabia se agarrava o seu braço como fez a moça de braços dados

com o marido ou se somente apoiava a mão em seu ombro e lhe

dirigia pelo caminho. Optei pela segunda opção. Guiei desastro-

samente mal aquele senhor de cabelos brancos. Esquecia-me de

avisar que se aproximava a calçada e ele esbarrava o pé e perdia

por vezes o equilíbrio. Agradeceu mais uma vez e disse que eu já

poderia ir-me embora, que a partir dali ele já conhecia o caminho

de casa.

A razão pela qual a vida vem e transforma essas

tardes nubladas e cinzentas em belos dias de sol e contentamento

não pretendo descobrir, pois sei bem que será tarefa das mais di-

fíceis. O que me resta – e é só isso que posso fazer - é agradecer

imensamente à moça de braços dados com o marido, aos jovens

guiados pelo professor e a este senhor que toma o ônibus na mes-

ma linha que eu, por terem permitido que pelo menos durante um

dia, ou uma tarde – aquela tarde! – eu tenha definitivamente virado

para fora esses nossos olhos que em todos os outros dias não são

mais do que pobres, ingratos e indiferentes “espelhos virados para

dentro”.

Caio Chaves MorauA/Direito/FDRP • “Apesar de escrever crônicas e poemas há muito tempo, nesse último ano, que passei em Paris, escrevi com mais regularidade e – assim espero! - profundidade”.

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Informática MágicaAmir do N. Elemam

Há problema com informação?

Nós temos a solução!

Só tem uma coisa a fazer

A informática vai resolver.

Não importa qual o problema

A solução é SEMPRE um sistema

Não precisa de operador

Quem faz tudo é o computador

Nunca vai dar defeito

O sistema é sempre perfeito

Nem precisa de treinamento

É só dar Enter. Pronto! Tá feito!

Amir do Nascimento ElemamA/Inf. Biomédica/ FFCLRP/[email protected]

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HiatoMateus Araujo

Escrevo translúcido em mim

A predileção é a mesma que mata.

O gosto do vinho amargo sustenta abstração.

Escrevo e transmuto confins

A disposição que corta acata.

A fraqueza que entrega a dor ostenta exposição.

O verso retém o diverso

Intacto.

O inverso contém o imerso

Hiato.

Mateus AraujoA/Música/FFCLRP

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Reflexões de uma pedraMarcos de Abraão

Não sei por que estou aqui.

Simplesmente quando dei por mim eu era assim,

um ser imóvel e pensante.

Percebo que é estranho pensar,

mais estranho ainda é pensar que estou pensando.

Pois penso nas coisas que se passam,

não sei o que são,

mas apenas sei que passam.

Ora são carícias,

que eu chamei de vento

e ora são lágrimas,

que eu chamei de chuva.

Quando é claro é quente

e quando é noite é silêncio.

Sou um ser imóvel e pensante.

O que eu sinto só eu sei.

Não precisa de verdades.

O mundo é assim,

seco, molhado, quente e frio.

Uma parte é terra e a outra é vazio.

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Não havia nada além do céu até aquele olhar.

Depois disso tudo mudou,

pois assim eu sei que tudo passa,

tudo muda.

Eu estava no meio do caminho quando me notaram.

E toda minha singularidade aflorou-se,

pois também tenho uma história.

Marcos de Abraão de Souza FonsecaDoutorado/Bioinformática/FFCLRP

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De que pé dá o amor?Ana Clara Rodrigues Almeida

O amor não nasceu crescido

Não foi o destino quem trouxe em uma noite especial

\qualquer

Não foi à primeira vista ou a troca de olhares

Nem veio de Deus ou coisa sobrenatural

Não, não e não...sou feliz em dizer.

Sou a única responsável pelo amor que sinto

Escolhi, inventei e recreie...e recrio

Não fui fadada a amar e não o sou em todo o momento

\em que amo.

Sou livre

Posso amar e desamar, graças a Deus!

E se ainda assim amo e continuo amando a cada letra

\que escrevo e dias que passam

É porque ele é bom, alegre e cresce.

Amo porque quero amar e isto me basta.

Ana Clara Rodrigues AlmeidaA/Psicologia/FFCLRP • “Nunca publiquei meus poemas, talvez por falta de oportunidade.”

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Singularidade ILetícia Azevedo

Arbustos deitam-se às margens do riacho preguiçoso

que avança exultando risos e jorros cristalinos.

Minha face se reflete e as calêndulas

irradiam seu amarelo por entre meus dedos.

Os galhos estendem rubras cerejas

feito joias a balouçar em graciosas orelhas...

E a tarde morre neste momento

Frouxo e trêmulo.

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Singularidade IILetícia Azevedo

À sorrelfa, o melro pousa na mesa.

O movimento de suas asas interrompe as repousantes

pétalas de peônias rosadas no cesto.

Sorrateiramente, furta uma cereja deixada ao acaso

e a leva para um galho.

Depois, vai-se em voo suave.

Nas tardes mornas, ouve-se seu canto harmonioso

vindo dos seculares plátanos.

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PermanênciaLetícia Azevedo

Permanecerei aqui,

entre as alamedas verdejantes

onde nossos olhares se encontraram.

Entre prímulas orvalhas

rodeadas de rútilas borboletas.

Espero-te, até que seus pensamentos e

lembranças o traga novamente

de encontro aos meus sentidos

ansiosos por seu eterno sorriso.

Espero-te entre o canto dos pássaros,

entre o cintilar das águas e

entre o rumorejar da fonte.

Minha vista a perder-se

por entre o murmúrio das folhas ao vento.

E o vestígio da minha passagem,

Trazer-te-á até mim.

Letícia Azevedo JanuárioA/Ciências da Informação e da Documentação/FFCLRP • “Leio desde muito cedo e escrevo desde os 12 anos. Com a vida acadêmica não tenho tido muito tempo para me dedicar a poesia. Nunca pensei em publicar minhas poesias, até porque, nunca tive a oportunidade. Mas agora com o Poeta de Gaveta, comecei a pensar sobre isso”.

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Poema de “não sei” Janaína de Godoy Gonçalves

É a imperfeição do que é bonito e a perfeição do que é feio.

Não é o quadrado nem a circunferência, mas uma forma aleatória

\da mistura dos dois.

Não é o doce nem o salgado nem o “sem sal”.

É o ponto tríplice.

A horrível sensação da beleza de uma bomba atômica é o que eu

\sinto,

mas não tão instantâneo.

É o que faz se optar entre duas coisas iguais.

É a sensação de frio depois de estar perto de algo quente, mas não

\estando frio.

É o amargo de algo doce após se provar algo mais doce.

É o que diferencia o azul-esverdeado do verde-azulado.

É o vento frio em dia quente.

É a imensidão da escuridão de um céu estampado de estrelas.

É o aleatório.

É o randômico.

É o sentimento.

É o simplesmente “não sei”.

Janaína de Godoy GonçalvesF/Química / FFCLRP • “Tenho participações em outras edições do Poeta de Gaveta”.

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AmorPedro Henrique

Um dos grandes pilares da sociedade é o amor. O amor e tudo

o que ele proclama aos quatro cantos infinito-além como o

carinho, compreensão e paixão é responsável por você, todo dia,

religiosamente, colocar a comida e trocar a água de seu animalzinho

de estimação, afagá-lo e conversar com ele, no qual ele responde

com o abanar do rabinho e nos pulos que dirige a você. Esse

mesmo amor é responsável por você levantar cedo e muitas vezes

encarar um trabalho horrível para que seus filhos possam ter uma

vida melhor que a sua. Esse mesmo amor que desata a aceleração

do coração e te faz entrelaçar o seu corpo com outro e tornarem-

se um só. O mesmo amor que, não correspondido, torna sua visão

sentimental cinza, diminui sua autoestima e o faz sentir-se um

ínfimo ser mundano. O amor que deixou histórias de romances. De

guerras. De tragédias. E hoje, como nunca, de tragédias pessoais.

Caminhe por um grande centro urbano, um símbolo do auge

civilizatório em que chegamos, mas do ocaso emocional que

enfrentamos. Caminhe pelas ruas e não se surpreenda com algum

mendigo estendendo a mão pedindo-lhe dinheiro para consumir

uma bebida que tornará a sua realidade ilusoriamente menos

horrível. Caminhe mais um pouco e depare com um poste cheio de

cartazes com dizeres sobre trazer seu amor em três dias — como

se o amor fosse uma mercadoria que pudesse ser transportada

diante pagamentos-, dizeres pedindo o paradeiro de uma criança

que — por céus — sabe-se lá onde esteja e como esteja, palavras

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bíblicas trazendo boas-novas sobre a vinda do Juízo Final e

como você fugir do Inferno. Não descanse. Encontre um garoto

na faixa de pedestres fazendo malabarismos enquanto um cartaz

de uma mega agência bancária pede seu apoio para programas

educacionais. Por falar em educação, caminhe para a escola mais

próxima.

Entre em uma sala do ensino médio e sente-se ao fundo da sala.

Veja a magia da professora ensinando a aula que preparou durante

horas de forma que o conteúdo despertasse o interesse e trouxesse

mais do que cultura — trouxesse o senso crítico, a curiosidade, o

despertar para o mundo do conhecimento. Mas veja tudo que disse

apenas mentalmente e com os olhos fechados. Feito isso, abra-os

e encha-os de lágrimas. Um aluno agride a professora e os outros

assistem e aplaudem o espetáculo da degradação do sistema

educacional brasileiro que mal existe. Vá para outra escola — uma

particular. Veja os alunos recebendo em pílulas o conhecimento

específico para que passem no vestibular, formem-se e tornem-se

consumidores vorazes. Caminhe para a universidade em busca de

cidadãos e pessoas que mudam de opinião porque não tem medo

de pensar. Veja mentalmente estudantes que cumprem seu ofício

com afinco a fim de, após serem recompensados, poderem ajudar

a melhorar a vida de seus próximos. Abra novamente os olhos e

veja os mais jovens com marcas físicas de um trote inclusivo. Veja

manifestações de preconceitos raciais, sexuais e sociais. Veja

grupos distintos e não uma rede de pensamentos. Apenas veja e

contemple um microcosmo capitalista.

Contemple microcosmos capitalistas nos hospitais, nas casas, nas

pessoas. E atente para a crise existencial que vivemos. É claro que

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não são todos. Mas é claro que os que estão, serão dizimados pela

própria maneira de viver.

Eu tenho sonhos, sonhos que poderiam tornar minha vida mais feliz

e mais luminosa. Mas atenho-me a tarefas que me fazem fugir dos

meus sonhos. Tenho sorrisos sarcásticos. Tenho mil novecentos

e um amigos virtuais e quase nenhum real. Minha página virtual é

uma apoteose de bons conselhos, de animais fofinhos e de lições

de moral. Minha vida é um cemitério de realizações. E na tentativa

de mudar isso, escrevo. Escrevo para expurgar meus sentimentos

e urgir para a aurora das realizações. Se escrevo, é porque atingi

o fundo do poço e tudo reflete naquilo em que vivo — nas escolas,

nas ruas, nos campos, construções. Eu sou você e sou todos.

Somos todos nós escrevendo a história de seres em massa que

precisam se individualizar. Escrevo e deixo aberto esse testamento

para que não ofereçam a mim a piedade ou desprezo, mas sim

o amor. Plantem em mim e deixem que eu plante a semente do

amor. Do amor que temos pelos cachorros, pelos nossos filhos,

que não temos por nós mesmos e pelos outros que não parecem

nos pertencer de alguma forma. Eu amarei e serei amado. Terei em

mim fonte de amor. Amor que possa mudar nossas escolas, nossos

hospitais, nossa civilização. Amor que gerou grandes histórias.

Amor que culminou em grandes tragédias. Amor próprio que nos

salve, que nos tire de nossa crise, que nos torne humanamente

felizes e quem sabe — quem sabe — loucamente apaixonáveis.

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ImortalidadePedro Henrique

Devemos visitar quem amamos e iniciar conversações com eles

enquanto ainda estão presentes fisicamente nessa existência

terrena tão etérea. Abster-se de tecnologias o máximo possível e

apreciar uma conversa em que possamos olhar para o rosto da

pessoa, ver ela rindo ou contando seus causos cotidianos é uma

lei humana a ser seguida e apreciada. Abraçar e apertar o corpo,

sentindo o calor humano que dele emana é um ato tão simples mas

tão crucial à beleza de momentos humanamente felizes. Poder

dizer-lhe o que sente e compartilhar sentimentalidades enquanto

ainda habita entre nós é uma benção da qual devemos agradecer

até que a vida acabe. Porque, por mais que doa, tudo acaba,

transformando-se em memórias. E será delas que você sobreviverá

quando a pessoa amada se for. Das fotos já amareladas de anos

tão humanamente distantes. De roupas que seres microscópicos

tomam conta sem se importar com a importância de quem as vestiu.

De uma comida deliciosa, de uma música bonita, de um filme antigo

que trarão lembranças da pessoa que se foi. De nada adiantará as

mil flores que depositará no túmulo das pessoas que você gosta.

Elas podem — se você acreditar em Paraíso — ver seu gesto e

ficarem felizes. Mas você não vai ter nenhuma resposta a não ser

sua própria fé. De nada adiantará as memórias que derramam em

sua mente o barulho do sorriso e os momentos bons vividos com

a pessoa amada. Remoer e reviver mentalmente as memórias

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pode ser uma tarefa árdua. Podem afetar tanto emocionalmente

que seu físico padecerá e se sentará para chorar. Chorar e pedir

perdão pelas palavras não ditas, pelos abraços não dados, pelos

beijos acalorados jamais beijados. E pensar que ela está em um

Paraíso pode ser o início do equilíbrio emocional. Aceitar uma

ideia que tantas vezes você rejeitou e agora professa como um

fato, uma lei além da lei do homem — você passa a ter fé. Não

necessariamente a fé baseada em uma religião. Mas a fé em que

além deste mundo terreno tão cheio de ludibriações, existe uma

resposta para todos nossos medos e fraquezas. Um mundo em

que transforma a morte terrena em vida. Em vida rica de sorrisos

e abraços que nossas carne e mente restritivas não permitiram

que aproveitássemos. Um local em que o aperto de mão é um

abraço, o choro é de alegria e a dor não existe. E você imagina a

pessoa que se foi caminhando por entre belas flores e com a face

serena, mostrando que está tudo bem e que, se alguém precisa de

ajuda, esse alguém somos nós- para enfrentar nossas dores e os

dias finais de nossa existência rumo a vivência. Então, estando

estafado pelo choro e pelo ocaso emocional, você adormece.

Acorda e segue o curso normal da existência. Da pessoa que se

foi, as recordações se tornam doces, permitindo um sorriso tímido

no rosto — você sabe que ela está bem. Continuará esquecendo os

abraços, as visitas e mergulhará na Terra das Magias Tecnológicas.

E um dia, sua vivência começará. Com os beijos, abraços e risos

tão terrenamente escassos. Para sempre.

Pedro Henrique Rodrigues da SilvaA/Física Médica/FFCLRP • “Escrevo por gosto e leio porque o ato me faz sentir vivo”.

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SentidosMilena Shimada

pingos dançam, pagãos,

entre seu corpo e o meu

chuvas de verão.

Milena ShimadaDoutorado/Psicologia/FFCLRP • “Participei dos volumes 18 e 19 do Poeta de Gaveta.”

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EncontroMarina Liberale

Medardo ainda está vivo? Tive a sensação que encontrei

com suas partes...

Hoje? Ontem? Sim. A certeza que possuo é que eu encontrei várias

vezes com ele.

O primeiro encontro, concretamente, eu lembro que eu

usava uma calça jeans e uma camisa xadrez verde-água. E só

me dei conta que poderia ser Medardo que estava ao meu lado

no almoço, no refeitório do campus da Universidade de São Paulo

(USP), quando entre uma mordida e outra, eu perguntei para minha

amiga: por que você acha que eu estou usando essa camisa?

A camisa xadrez verde-água na qual eu usava naquele dia

era da minha mãe. Acordei cedo e senti que estava misturada

emocionalmente. Conscientemente escolhi vestir a camisa xadrez

verde-água que ali representava o amor incondicional de mãe.

Precisava ser acolhida. Eu estava à milhas de distância de casa,

preste a me formar e carregava dentro de mim a vontade de não

querer voltar.

Segundo os nossos valores morais (o qual fui educada), amor

incondicional sempre requererá nosso bem! Por mais que

represente um “sufocamento” ou até mesmo uma “dor”, o amor de

mãe para com um filho é representado como algo “divino”e livre de

ser pecador.

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Ah... e eu queria sentir esse “amor incondicional”. Na verdade

eu precisava senti-lo... Só que, o que eu queria nesse momento,

era liberdade, e não sufocamento. Portanto, não caberia ali, usar

a camisa xadrez verde-clara. E foi nesse contexto, entre o falar

“por que você acha que eu estou usando essa camisa?” e o sentir

“sufocamento” e querer “liberdade” que eu vi Medardo.

Queria caminhar com minhas pernas, com meus erros e

acertos, e queria MUITO me sentir amparada. Para que me entenda

melhor, caro leitor, preciso lhe perguntar: como é a sua mãe? Quem

é a sua mãe? A minha mãe tem o discurso que quer e acredita nos

meus sonhos, desde que os meus sonhos não sejam tão longe das

quatros paredes da sua casa. Minha mãe deseja minha felicidade,

mas quando meus sonhos são fora das quatros paredes, não

me ajuda, concretamente, construí-los. Tem discurso, todavia as

atitudes contrapõe a visão de que “os filhos são do mundo”. O seu

apelo emocional chega a me dar náuseas. Epa, um instante: se

sou contraditória; minha mãe também é contraditória; logo somos

todos contraditórios?

Sem respostas prévias para esse questionamento eu fiquei

olhando para Medardo. Como um sopro as palavras foram

saltando da minha boca, ora como sentenças afirmativas, ora como

questionamentos: Medardo é o “outro”! Ás vezes, isso é tudo o que

ele pode dar ou doar. E se recusar esse amor incondicional que

tanto preciso me culpo, pois aparentemente, estou recusando o

que ela pode me dar. Então, diante do incontrolável e do inatingível

(o outro em si) sejamos tolerantes! É tão tênue a linha que separa

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“falta de coragem” com a “bondade” não é mesmo, Medardo? Não

obtive resposta alguma dele até essa última inquietação. Nossos

olhos se cruzaram e ele sorriu... Depois de alguns instantes, como

num passe de mágica, Medardo desapareceu. E eu terminei meu

almoço com a minha amiga usando minha camisa xadrez verde-

claro.

Medardo é o personagem de Ítalo Calvino do então intitulado

livro “Visconde Partido ao Meio”. Medardo, então visconde, ao ir

para a guerra foi partido ao meio por uma bala de canhão e, suas

duas partes voltaram para governar a cidade, uma parte má e outra

boa. E diante dessa dicotomia várias coisas aconteceram.

Conscientemente, tenho encontrando com Medardo dentro de

mim. Alternadamente, mas quase que ao mesmo tempo, eu os

sinto, tanto a parte má quanto a parte boa. E diante de todos

esses sentimentos eu apenas tenho uma palavra para me traduzir

e talvez até responda um dos vários questionamentos apontados

nesse texto: contradição.

E você, caro leitor, conhece Medardo? Não? Olhe atentamente,

talvez a resposta seja surpreendente...

Marina LiberaleF/EERP • “Gosto de escrever, desenhar e pintar óleo sobre tela. Não tenho nenhuma publicação ou vivencia literária”.

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AromaRoque Pinho

Tem pó o tempo

vem nua a nuvem.

Dobra-se o sobrado em si

sobras de um Brasil

brasas remanescentes.

A ruína a anuir

consentindo o que não sente.

Mas memória é um mar sem jeito

gema gris, a lágrima da rima

e a amargura, uma agrura

num ar logo acima.

Pois, esquece as ruínas

são lembranças que se tecem

brancos lenços de cetim

que acenam à cena do fim

e esmaecem.

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Distraia-se, meu amor, escape!

Vem, toma o vento norte

terno, soprando

em seu brando sussurro

de assovios eternos.

Solte-se que o sol te sente

aqui pertinho, doce e cedo

no carinho barato das manhãs.

Toca minha mão e canta

e toquemos para longe

das sobras dos sobrados.

Busquemos num bosque

o resto de olor das flores

o elixir exalado à vida

tão além do mal de lembrar

além das ruínas...

Mas põe em poemas a dor

coração não é brinquedo

finda a morte, brinda a sorte

não há temor

o aroma, meu amor

é o único segredo.

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Afronta BrasiloiraRoque Pinho

Em um cenário poeticovarde dos tempos de escravidão,

paira nos ares a tensão dos combatenazes entre etnias, classes

e poderes. Eis que numa salatente da antigananciosa mansão

portuguesa, uma cenavalha intrigante se apresenta...

De pele clara e cabelos lisos, uma beleza espanholoira sofre

presa em algemalvadas, que a ferem sem dó. Cortes profundoídos

laceram sua alma e a dor já ultrapassa sua carnefasta. Gotas de

sanguerreiras escorrem vagarosamente pelas curvaliosas do seu

corpolido e pingam cruas sobre as roupálidas caídas. Duas belas

negrosseiras gritam ao seu ouvido, rindo abertamente do seu

padecerteiro e implacaveloz.

A penumbrasil que cobre o ambiente é quase tão negra

quanto à pelesada dos escravorazes que ali sofreram. O lugar

abafado remetia-lhes apenas ao passadoentio, marcado em

cada paredeserta com esparsos quadros. Neles, as imagens

do trabalhordinário, feito pelos escravelhinhos e suas ultimortas

energias. Ao longo da sala, antigos instrumentiranos de torturácida.

Mas quem antes comandava os chicotemidos tinha agora um

olhar submissombrio e a raivalente de um cachorrosnando. Presa

nas amarras firmerecidas da desforrasgante, aquela menterrível

sentia um brevelado arrependimento por suas crueldades.

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Acontecia então uma das revoltardias daquela epocastigante.

Apenas uma, de tantas outras. De fora da casa, ouviam-se

gritocantes de alforria, promessadias de satisfação e sorrisos de

liberdadevolvida. As amas-de-leiternura agora sorriam plácidas,

com negros molequeridos em seus braços...

Roque Emmanuel da Costa de PinhoDoutorado/Eng. de Biossistemas/ESALQ • “Tenho crônicas e poemas publi-cados em edições anteriores do Poeta de Gaveta.”

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Esclarecimento SombrioMagê DBgt

Talvez houvesse salvação. Mas há quem duvide que fosse

possível. Os corpos estavam praticamente soterrados, coberto por

fungos e bactérias, vivos e em putrefação. Aquela terra úmida era

o único predador real, pois o que os consumia, no fundo da alma,

eram suas respectivas consciências. Um estupro, uma tortura, um

sequestro. As imagens vinham em flashback, da consequência até

a causa; do fim ao início. Uma mancha de sangue vivo os deixaria

felizes, pois os seus já haviam se sujado, tornando-se pretos, de

existência insignificante. Os pecadores não viviam: vegetavam.

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Senhora Morte em DesabafoMagê DBgt

“Ora, ora” dizia a Morte. “Estou com preguiça. Deu-me

trabalho nos últimos tempos, carregando aqueles para os lugares.

Uns ao Sol; outros nesta terra mundana mesmo, não mereciam

sair daqui. Mas os inocentes eram em maioria, o que me fez ter

muita pena da sua pobre alma. Eu sou a Morte e não tenho prazer

no que faço, se isso esclarece seus pensamentos. Eu sinto tristeza

e agonizo mais que vocês, pecadores, pois eu não pequei. Nasci

pura para me sujar com o trabalho que a humanidade me dá. Eu

sofro sem merecer. Mas pela compaixão que sinto em relação

às almas inocentes, continuo na minha jornada sombria. Tenha

piedade de mim, ao menos. Deixe-me ver sofrer pela dor que

causou.”

Maria Eugênia Deungaro BorgatoA/Eng. Agronômica/ESALQ • “Fui revisora do livro Prosa Fiada e Outro Goles, e capista do livro Tempo de Baú, ambos do autor José Renato de Almeida Prado.”http://livrariaeletronica.blogspot.com

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Foi no CarnavalGuilherme Gandolfi

Escrevo estes versos no carnaval

Comecei na terça, mas já é quarta-feira de cinzas

Tenho medo

Não consigo dormir de tanto pensar

Cogitar que nosso amor seja folião

Sexta: Foi o abre-alas

Por de trás das mascaras nos conhecemos

Lançou teu perfume em mim

E fui bobo lhe fazer corte

Cheio de alegorias para impressionar

Sábado: Nos reencontramos

Sob a benção de Venus, Dançamos

Sua amiga vestida de cupido

Lhe lancei todo meu confete

Fomos para casa embriagados um pelo outro

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Domingo lavamos a tinta

Finalmente conheci sua verdadeira face

Para meu espanto não a assustei com a minha

Reconhecemo-nos em nossos defeitos

Brindamos às imperfeições

Segunda: Fomos alegria

Fui de Arlequim e tu de Columbina

Vimos de mãos dadas a banda passar

Cantaloramos marchinhas de amor

Nem percebemos quando a musica cessou

Terça: Foi de mais

A alegria me deu ressaca

E te vi com overdose de beleza

Apesar da de usarmos proteção

Contraímos a pior DST, a ilusão

Como disse ainda é carnaval

Espero angustiado o sol raiar

Amanha restarão apenas as cinzas

Ou será a fênix nosso enredo?

Talvez ainda possamos renascer

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O homem invisívelGuilherme Gandolfi

Hoje, eu vi um Homem Invisível, de carro eu passei por sua

frente, ele não usava cueca por cima da calça e nem capa, apenas

roupas velhas e uma muleta, estava na sarjeta, em uma grande

avenida. Ainda, sim, não era um humano comum.

Muitos outros atravessavam o seu caminho todos os dias,

iam e vinham, mas pouquíssimos o viam. Ele falava com eles, ten-

tava chamar a atenção, por entre seus lábios rachados saia o som,

mas não haviam ouvidos abertos. Os poucos que o enxergavam se

afastavam, talvez com medo da impotência do Invisível, ou de sua

própria, não sei.

Seu arqui-rival era a fome e seu maior inimigo a indiferen-

ça, contra eles nada podia. Por enquanto combatia os seus vícios,

suas fugas dessa realidade amarga.

Enquanto isso, eu passava com pressa, afinal é isso que

aprendo na escola, a como ter pressa, estar sempre atrasado para

algo mais importante e nunca ter tempo para nada que não gere

lucro. Já o Homem esperava, sentado na calçada da sociedade,

ele olhava além do horizonte.

Hoje, eu vi um homem invisível, ele era um mendigo e estava

lá, mas ninguém o via. Seu super poder? Sorrir. Enquanto meu

carro cuspia sua fumaça e eu seguia estressado e praguejando,

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ele sorria para o mundo e abraçava seu cachorro como há tempos

eu não abraço um amigo.

O seu papelão-casa-colchão é o que ele vale para quem o

governa, para quem o cerca. Seu sonho não perde para ninguém

da Liga da Justiça, ele quer um mundo com mais amor e um pouco

menos de dor.

Ele é só um homem que ninguém vê, ainda, sim, não é nem

um humano comum.

Guilherme GandolfiA/Gestão Ambiental/ESALQ • “Há cerca de quatro anos venho escrevendo, mantendo um blog há cinco meses. Tive um poema publicado no Prêmio Novo Poeta, antologia poética e fui relacionado no Prêmio Sarau Brasil, ambos da Editora Vivara”. http://ironiaepoesia.wordpress.com/

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1914Alexandre Traldi Reichel

Reduzidos à bestialidade dos sons das metralhadoras estão agora

as belas bibliotecas e teatros. Assassinam a cultura e intelectuali-

dade como se fossem inimigos cruéis. Os livros dos mais despon-

tados cientistas de todas as eras, se espalham com o vento pelas

ruas sujas de sangue e sofrimento.

A verdadeira hegemonia da estupidez humana ironiza quaisquer

ideias de que um dia fomos uma espécie civilizada.

O que diriam os pensadores de épocas remotas sobre as condi-

ções em que se encontra nossa história?

Experientes soldados esperneando como crianças em meio às

ruas reduzidas a pó e pólvora; crianças choram sem pais nem

mães, nem pés, nem mãos.

É essa a utilidade de todo este dinheiro? Generais tomam seus es-

pumantes em grandes salões, trajando seus uniformes bem pas-

sados, acompanhados de mulheres mal passadas.

Chorem por milênios, nunca serão perdoados. O sofrimento de

gerações, comemorado com nobres emoções. Escória humana,

quem são vocês que permitem a uma criança chorar, sem que ten-

tem ampará-la?

Quem são teus criadores? Reviram-se agora em seus túmulos,

repousam agora de bruços em seus caixões, tamanha a vergonha

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que sentem ao notarem o quão desgraçado é o fruto de seu ventre.

Rios de sangue, lagoas vermelhas, abastecidas pelas artérias

abertas que ainda pulsam, não há tempo para estancar o ferimen-

to, não há tempo.

Valas comuns, fuzis, uniformes, ordens, gás lacrimogênio, amputa-

ção, hemorragia, prisão, coturnos, trincheiras, balas. Mil novecen-

tos e quatorze.

Alexandre Traldi ReichelA/Eng. Agronômica/ESALQ • “Publico, desde 2009, alguns textos e poesias em um blog.Nunca publiquei nada em livros.”[email protected] • http://maragoiaba.blogspot.com.br/

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Abra o negro céu, luar das almasCamila Silveira Stanquini

A caveira dos suicidas, o coelho dos puros. É a morada do

santo cristão, o coração da Deusa pagã. A morte do dia, a vida dos

sonhos. Um grande queijo aos olhos de ratos cegos; ou um sorriso,

convite à viagem dos esquizofrênicos. É a amante dos poetas; aos

poetas, o anseio. Farol dos navegantes, um rumo aos viajantes.

Confidente dos desejos. A fuga do medo em uma janela ao além?

Com a cor e a doçura do mel que carrega o encanto das

flores sob o orvalho diamante. Amarelo-Sol em sua irmã Lua, em

memória ao tempo dos deuses, em seu resplendor divinal. Amare-

lo amargo, como o creme que respinga dos olhos de um cão ferido.

Os olhos ferem a alma do homem, e é no espelho dos céus que se

retrata a dor daqueles que sofrem e calam.

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Opala 71Camila Silveira Stanquini

“Sou um conhecedor de estradas. Tenho experimentado estradas durante toda a minha vida... Essa estrada que nunca acaba...

Provavelmente, vai sempre ao redor do mundo...”.(My Own Private Idaho)

Não sei bem a data ao certo. O tempo passa rápido demais.

E as estradas não perdoam. Também já não sei mais onde estou,

nem por quais lugares passei. Nomes, endereços, códigos... Tudo

isso deixou de significar algo já faz um bom tempo. Mas de algumas

coisas eu me lembro como se estivesse vivenciando pela primeira

vez. Sua voz inebriante... Olhar hipnótico... Postura firme, toque

libidinoso... Um ar de superioridade exalado por sua presença

incólume. Lembro-me do sabor de seus beijos como se fossem

embebedados pelo whisky de meu copo. E de seu perfume, que

me envolvia como a fumaça deste cigarro que se apaga com as

lembranças.

Lembro-me da primeira vez que o vi. Quando as estradas

ainda não me pertenciam, eu já pertencia a elas. Foi numa época,

como esta, enquanto ganhava uns trocados num bar menos

sujo que este, entre músicos e meretrizes. Não se consegue

desvencilhar uma vida boêmia daqueles que pertencem às ruas.

Naquela época, cantava canções de amor sem, de fato, apropriar-

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me delas. Mas isso mudou quando o conheci. Era como um anjo

caído, travestido de homem, alma de pecador. Tinha nome de

artista, daqueles estrangeiros, embora mantivesse sua postura

de intelectual que contrastava com sua jovialidade. Observava-o

divertindo-se com moças seminuas nas mesas e nos cantos do

bar, enquanto, para saciar o meu desejo, mantinha um microfone

em meus lábios, acariciado por minhas mãos, em um regozijo

quase sexual. Terminava a noite. E até que a próxima noite viesse,

trocava aquele microfone por sua carne. E assim foi nossa vida por

um bom tempo. À noite, pertencíamos ao mundo. Durante os dias,

éramos apenas nós, o nosso mundo.

As estradas nunca terminam. Sequer o anseio dos jovens.

Pois, assim, resolvemos entregarmo-nos às estradas, desta

vez, juntos. Opala 71, verde. Quantas estradas percorreram

aquelas rodas... Quantos amores presenciaram aqueles bancos...

Afagos, carícias, promessas... Tinha, então, 15 anos. Quanto a

ele, há algum tempo já dirigia aquele Opala, que era como uma

representação mecânica de sua índole selvagem. E fomos nós,

entregues à paixão e à doentia obcessão de conquistar o mundo.

Paisagens magníficas coloriram nosso romance através das

janelas daquele veículo que nos conduzia como um mestre aos

seus discípulos pelos caminhos em busca da descoberta. E, ao

adormecer do Sol, lá estavam elas, estrelas, irradiando nossos

sonhos como se fossem infinitos, tal qual o manto negro da noite

que velava por nossas almas. Porém, sonhos terminam. E a vida,

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tal qual as estradas, é contingente demais. Hoje, a minha estrada,

é a da perdição.

Incrível admitir que se possa passar mais tempo nas estradas

do que sob um teto. Seja o teto de um lar, um quarto de hotel, uma

igreja, um santuário, um bar, bordel... A vida é uma estrada a qual

se escolhe percorrer. Tantas estradas, tantas escolhas... Nasci nas

estradas e sei que nelas encontrarei também o meu fim. São elas

o meu caminho.

Tanto tempo nas estradas, cada curva reflete o meu ser...

Inconstante, perturbadora, tênue, densa, escura, clara, sombria,

solitária, perigosa, longa, breve, curvas... Vazia... Estou vazia

e esse vazio reflete-se nas estradas por onde passo. Vazia por

dentro... O vazio de fora... Vi tanto pelas estradas em que passei

que já não sei mais se quero ir além. Tudo o que sei é que, enquanto

tiver as estradas, memórias daquele Opala 71 percorrerão a minha

mente como se, a cada curva, ele ainda estivesse a minha espera.

Camila Silveira StanquiniA/Medicina Veterinária/FZEA • “Publiquei nas edições 18 e 19 do Poeta de Gaveta.”

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Arrevesso escuro naavenida Dr. Carlos Botelho

Lucelindo Dias Ferreira Junior

hoje, eu vi Deus

numa lata de Coca-Cola Zero.

gelado.

escuro.

indecifrável.

fluido.

absolutamente vulgar.

e vi um anjo,

na sacola do supermercado,

volitando,

branco,

pelo ar.

também, vi árvores assassinas,

mais vivas do que fui, sou ou serei um dia.

e bebi lactobacilos vivos.

e comi chocolates.

hoje, eu vi o amor e senti saudade.

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Romance selado a sangue e cuspeLucelindo Dias Ferreira Junior

Rezei ao diabo duas ou três vezes. Agora, levantei e fiz o café.

Nem o café, era o cheiro do seu cuspe na minha camisa. Do seu

perfume e cigarro vagabundos. E das suas doenças. Rezei, duas

ou três vezes, para ter as suas doenças. Transmitidas por sangue,

cuspe. E a sua loucura, pelo ar. Que você tem todas as doenças do

mundo. Sim, eu sei. Os seus fluidos são um perigo a humanidade.

Mas, também, seu abraço é denso. Violento e silencioso, como

um estrangulamento na madrugada. E sua pele tem eczemas. Por

alguma razão, sou todo imune. Mas, ainda assim, pereço ao seu

contato. Mentira! Sou meu próprio veneno.

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Menino-dor: broto de cactosLucelindo Dias Ferreira Junior

Ambiente em escuridão. Surge um círculo de luz no rosto do homem.

Parece que não há volta. Quero dizer, quando se começa uma história. Não há volta. A história nunca retrocede e ficamos intactos. Não, não ficamos intactos. E a história, quando começa, nunca termina. Torna-se uma sina. Triste é o destino de quem a escreve, conta. Uma história torna-se uma sina para quem a tece.Foi assim que perdi o meu pouco. O pouco que eu era. E fui me entregando à silenciosa dor que somente ocorre às madrugadas. À dor, que, antes não minha, externa, calcificou-se em minhas veias. A dor desta história. Devo salientar, para não impressionar o pobre ouvinte, que esta história é tão simples que somente o pobre ouvido poderá compreender de todo. E que somente um ouvido inflamado em pus, poderia senti-la. Sim, caro ouvinte. Irei contar uma história que percorre minhas mãos escarnadas como fluido de vida, contraditoriamente seca, como calango do sertão percorrendo o Saara, que tem entre as patas a história límpida para que se possa atentar ao mais importante, a dor. A dor que é a vida aberta. A pólvora acesa que é a vida. A vida que é uma lama espessa, um sangue escuro coagulado. Juro que tentarei contar desta vez, o que nunca contei antes, de forma a não conter a verdade. Sim, conhece o ouvinte sobre a verdade? Compreender a verdade, tenho percebido, é a única forma de atingir o profundo ilimitado da dor. E existir na verdade é um dos modos mais graves para se chegar ao ápice, seja ele qual for. O ápice que nos transforma irreversivelmente. Como quem tem fome e deseja beber. Esta é a realidade desta história, de todo verdadeira. Devo alertar que a história me guiará, tomará a minha mão. De modo que não haverá outro dia sem que ela esteja em mim. E o que está aqui é eterno, desde já. Não há volta. E se não agrada o que digo, que se invente uma forma diferente de ouvir.

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Não irei referir lugar. Não irei nominar pessoas. Essas informações não me chegam. Sei que era um lugar tão quente, que o diabo reconheceria. E a paisagem, uma passagem de desconforto. De terra seca e sol laranja. (pausa) Neste ambiente nasceu e foi criado o Menino-Dor. Um menino que não poderia ser descrito à perfeição. Que somente um texto sem os adornos o mostraria tal como é. Sem nenhum capricho. Mas ainda assim um texto seria um capricho fútil, como a própria vida. (pausa) O Menino-Dor, como poderia descrevê-lo. Ele era olhos largos e redondos, que constantemente pediam. Ele era olhos apaixonados pelo que não tinha, costumavam chamar tristes. Mas prefiro dizer que eram apaixonados. Olhos que diziam paixão, uma paixão de menino que nunca havia sido acometido pela grave doença da paixão. Nem pelo amor. Pois que tais sentimentos não poderiam existir em seu excessivamente magro corpo, que era quase um canudo para o refrigerante. E, portanto, se ali estavam os órgãos todos, conviviam entupidos e dobrados. E, bem... (pausa) Não caberia em aquele corpo estreito o amor. Do amor somente cabia nada. O Menino-Dor era, também, uma cabeça desproporcional. Pois que possuía um grande cérebro para maquinar suas coisas, remoer suas dores, a carne viva e brilhante. Tumores. Convém referir, a experiência do menino com a dor estava em todos os sentidos. Ele era a dor brilhante qual cristal infiltrado na retina. Não apenas isso. Uma dor pulsante, como quando se aperta uma água-viva na palma da mão de uma criança. Como quando se tem metade da perna arrancada e resta somente um exposto palmito ósseo e uma carne hipervascularizada palpitando. Justamente por resultar de cruzamentos sucessivos de linhagens rebaixadas da sociedade, que o premiavam, como mérito de sobrevivência, com muitas das doenças, até então desconhecidas, do mundo. Sim, vivia no sertão, mas era fruto do mundo inteiro. Um serzinho malformado, pouco crescido, de voz que dava agonia ouvir. (pausa) Estuprado, ainda criança, com bananas chifres-de-boi, seguidas vezes. (pausa) Sei que durou a própria eternidade. (reflexivo) Devo pedir perdão ao ouvinte. Não me sinto adequado para contar o que pretendia. Estou

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fraco e imerso. A história me dói antes que conte. A verdade é que, percebo agora, o Menino-Dor me é inalcançável. Está em um nível que eu jamais poderia participar. Estou despreparado e infeliz. E me fecho, escondo-me do mundo. (encolhe-se) Eu falhei, como sempre tenho falhado. O Menino-Dor nunca poderá ser descrito. Deve morrer, procurar a morte, como eu mesmo. Eu que fui audacioso e pensei saber lidar com as consequências de contar a simples história. A história da dor que está mais viva em mim. Ó pobre ouvinte! Porque eu me descobri em uma história mal contada, falha. Porque eu nasci, indevidamente. Justo agora, eu nasço, como o Menino-Dor nasceria.(levanta-se e grita) EU SOU O MENINO-DOR!Pois nasci às avessas. Sou um cacto. Um broto de cactos. Retenho líquidos que são meus sentimentos, esses que absorvi do mundo. E sofro as consequências do amor seco de Deus. Um amor que, ontem, era o meu pão. De fato, sofro. Não posso evitar. Sou existente para representar a dor como quem deve lembrar ao mundo de seu fardo. Tenho dores. Dores da matéria e do etéreo, que tiveram origem muito cedo, desde nascimento. (sussurro) Nascimento é expulsão por ferida aberta de infecção. Nasci com a pele mestiça, e participo no pior de cada raça. Como quem tem vitiligo, eu tenho um mapa mundi à minha volta, estampado em minha pele. Indicando a minha lepra. E conto esta história como quem acredita que pode mudar e transcrever todo um passado. Porém, não tenho senso de direção, senso algum de narrativa, ou linguagem que se ajuste. Vou simples tecendo com fio de estopa ensanguentado, marcando as digitais como um analfabeto faria. Saiba o pobre ouvinte. Sou livre dos estudos. Não os tenho. E isso me dói inteiro. Falta-me a essência, o tutano para eu enfrentar o mundo. E, por isso, vou só morrendo. Mas a morte, a morte verdadeira, que me sucumbe, que me chega aos pedaços, em terríveis dores, conquanto, não chega. Tenho a dor nos olhos. Tenho a dor nos ouvidos. Tenho a dor na boca. E a dor na língua, no nariz. Nos pulmões, de meus cigarros. No fígado, de minhas bebidas. Nas tripas. No estômago. No pinto. A DOR NO CU. Enfim, a dor de que fui, sou e serei rejeitado pela humanidade. A dor

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do amor inexistente. Tudo me dói. E não aguento sucumbir, esse processo lento e doloroso. Eu já deveria estar prostrado em uma cama a esperar, esperar e esperar. Feito um moribundo. Um Jesus invisível e perdido. Mas se eu fosse o Messias jamais acreditariam em mim. Eu morreria tal e qual já morro. Pois eu tenho a minha sina. Carrego a minha cruz. Morro pela humanidade. Não morri, neste instante, por não saber, por ignorância, por acreditar que a dor é coisa insistente, que não se elimina pelo simples e fácil ato de morrer. Morrer é somente um segundo. É instante, enquanto a minha dor é perene. Eu sou o tempo íntegro. Peço desculpas ao ouvinte, que deve estar em completo despreparo. Vou mudar de assunto, para que eu mesmo apague a minha nódoa. Devo esquecer-me para avançar no mundo. E manter a compostura, mesmo tendo a rudeza do pior dos animais. Devo desculpas, sobretudo ao Menino-Dor, que deve compreender que o mundo é todo árido, não somente o nordeste. Este menino que nasceria se assim eu tivesse descrito. Se eu não tivesse enlouquecido, minutos atrás. Saiba o ouvinte, o Menino-Dor é o próprio texto, a própria história não feita. É um ruído incômodo de coração batendo. Juro que não quis, desde o princípio, me propor a falar sobre o Menino-Dor. Ele apenas veio, fez-me sentir, e sumiu para dentro de mim. Induziu-me um vômito, que era eu inteiro. É que o Menino-Dor nascera. Para balbuciar toda dor implícita. (sussurro) A pior dor é aquela que não se vê. (enérgico) Aqui está a verdade. Não se pode curar a dor de haver nascido. A dor não tem rumo ou fim. É broto de cactos que nasce no sertão, em mim. A história não termina aqui, caro ouvinte. Estive começando o que durará uma vida inteira para contar. Há coisas que sei e não mais deverão ser reveladas. Espero que o ouvinte entenda. É muito chão e há sol, sem água ou pão. E a dor é genuína, ao fim e ao cabo.O círculo de luz se apaga. Fica a completa escuridão.

Lucelindo Dias Ferreira JuniorDoutorado/Engenharia de Produção/EESC • “Sou um estreante experimentando ser um escritor”.

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All-stars nesse puzzle fotográficoAna Paula Tavares Miranda

tive um sonho em pixels acordei

quadradinha eram como se fizessem

parte de um puzzle, difícil congelar um

sonho em uma fotografia

preciso de um calço

para equilibrar mente em corpo manco

e às vezes o contrário

qual é o seu número senhorita?

(o número de vezes que meu cérebro me sabota)

lembro do meu primeiro all-star tinha

um nicho especial para guardar uma

(única) moeda

all I need is

(Oh John)

all stars nesse puzzle fotográfico quando

eu era criança parecia divertido

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A manhã que acorda meio KafkaAna Paula Tavares Miranda

O dia entra pelo quarto com cor de fruta estáquente maneja o cobertor a cobrir somente parteda perna direita do joelho ao calcanhar que é onde sente frio agora precisa acordar mas não é hora o corpo dói do pescoço à coluna um frio que lh’atravessa como uma pedra de gelo

engolida com pouca saliva não quer acordar abreos olhos sente o pé pesado e mais um pouco consegue encontrá-lo no outro que está em parte meticulosamente coberto um súbito e pé e pé se estranham sente um casco envolto à pele que pesa todo corpo sente que está por uma razão fazer jamais sair da cama talvez a materialização do

desejo matinal não consigue movê-lo e começa a senti-lo crescendo da extremidade à cabeça éa melhor sensação que tivera a quer mais e cerraos olhos a degustá-la cega melhor tão melhor a luz que atravessava aguda a cortina já é amena sinal que o sol andou apressado e que o momento anda

lento já sente o estômago duro imagina quais cores se revelariam na quebra desse seu rochedo que a faz parte mina a parte menina agora parece uma questãode escolha preencher o vazio que sobra do duro minério humanizado ou acostumar-se com a leveza do vazio? Decide ser pedra.

Ana Paula Tavares MirandaMestrado/Arquitetura e Urbanismo/IAU/SC • “Tenho um blog onde há pouco tempo expo-nho minhas poesias. Sou amadora”.

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Te amo(no Elevado do Caju)

José Antonio Vargas Bazán

A todas as minhas musas, pela sua irremediável volatilidade.

Morenaque a estas horasem outros braços descansas,saibaque eu te amono Elevado do Caju.

Não sei se eu te amariase os tempos fossem outrosou se te amarei em Santa Cruz.É provável queame a outrana festa de São João.

Sei,como é evidente,que te amono Elevado do Caju.

Quiçá em outrascircunstancias(provável é que me apaixonepor outrasno Calçadão de Bangu),

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não mesmo te amarei.Daqui a uma semana,sabe-se lá,poderei amar a uma outramulher,morena também,como tu.

É tanta a adversidade.Contudo,é daqui que agora eu vejoo cais(um barco chega, vai,atraca em um estrondo).E penso com meus botõesvelhosque eu te amo,não sei se te amarei,nem sequer penses em se te amei.

Não fui o primeiroe não serás a última(são juras de amor na rua Ceará).

Sei, de um saber indubitável,que te amono Elevado do Caju.

José Antonio Vargas BazánDoutorado/Eng. Estruturas/SET/SC • “Tenho um pequeno livro de poemas: Um shingo em el basural (Um urubu no lixão), 2001.”

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Programa Poeta de Gaveta

Inscrições realizadas no período de 01 a 30 de maio de 2013.

Total de 47 participantes com 113 trabalhos:

Ribeirão Preto – 20 p – 43 t/inscritosLorena – 3 p – 7 t/inscritos

Piracicaba – 12 p – 31 t/inscritosPirassununga – 2 p – 6 t/inscritosSão Carlos – 10 p – 26 t/inscritos

Volume 20 –2014 – ISSN 1516-0513

Poeta de Gaveta é uma publicação anual de textos de poesia e prosa produzidos por alunos, docentes e funcionários dos campi do interior da USP, com etapas de inscrição e seleção. É editada pela

Seção de Atividades Culturais da Prefeitura do Campus USP deRibeirão Preto – PUSP-RP.

Os textos publicados são de inteira responsabilidade de seusautores.

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Poeta de Gaveta – Volume 20 – 2014

ISSN 1516-0513

Impresso em novembro de 2013. Tiragem de 800 exemplares.Distribuição gratuita. Proibida a Reprodução sem prévia

autorização.

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