imagens da natureza no haikai de paulo franchetti

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I Congresso Internacional de Literatura e Ecocrítica: As linguagens da Natureza e suas representações ISBN: 978-85-237-0605-0 705 IMAGENS DA NATUREZA NA POESIA DE PAULO FRANCHETTI Rodrigo Michell dos Santos Araujo PPGL/UFS/FAPITEC-SE [email protected] Fernanda Bezerra de Aragão Correia PRODEMA/UFS/CAPES [email protected] Tomemos o mundo em sua infinidade de aberturas, onde tudo pode ser fotografado e filmado, onde tudo pode tornar-se, deixa-se ver como um todo, sem portas e sem muros. Um mundo (super) exposto. Superexposição transparente, se seguirmos com Paul Virilio (1993), e ainda bombardeada de signos. Do regime das imagens, circulantes e em movimento, parece-nos que tudo está mesmo à mostra, lição antonioniana de Blow-Up (1966), e mesmo que se fuja das imagens, cobrindo espelhos, esta é revelada, lição beckettiana de Film (1965). Como o mundo não pode falar põe-se no confessionário da imagem. Na superfície da humanidade algo circula, fazendo do mundo um vir-a-ser, um tornar-se. Mundo codificado, se assim quisermos denominá-lo, ou exposto. Salutar são, assim, as palavras de Vilém Flusser (2007) dirigindo-se às programações da superfície, marcada de cores e imagens, códigos, símbolos, tudo significando o mundo, construindo rotas, guiando-nos como um fio de Dédalo Imagens-mundo. Mas imagens que outrora, com o uso da fotografia, foram tomadas como ameaça à própria pintura por desestabilizarem a tábua do tempo, como se a chapa da máquina vencesse, finalmente, o pincel (DUBOIS, 1993). Longe de pensar e adentrar nos pontos de afinidades e oposições que se estabeleceram entre a fotografia e a pintura, interessa-nos olhar para a imagem fotográfica a partir de dois momentos: de uma leitura, partindo de um viés estruturalista, sontaguiana (2004) e barthesiana (1984), em um primeiro momento; e de uma leitura alçada em um viés semiótico e sociológico a partir Charles Sanders Peirce (2008) e José Martins (2009), respectivamente. Imagens em confronto, mas também em diálogo, para construir modos de perceber, ver e ler. E ainda: primeiridade, secundidade, terceiridade. Ícones, índices, símbolos; hipoícones, imagem, diagrama, metáfora; qualissigno, sinsigno, legissigno. É com a semiótica, ou Teoria Geral

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I Congresso Internacional de Literatura e Ecocrítica: As linguagens da Natureza e suas representações ISBN: 978-85-237-0605-0

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IMAGENS DA NATUREZA NA POESIA DE PAULO FRANCHETTI

Rodrigo Michell dos Santos Araujo

PPGL/UFS/FAPITEC-SE

[email protected]

Fernanda Bezerra de Aragão Correia

PRODEMA/UFS/CAPES

[email protected]

Tomemos o mundo em sua infinidade de aberturas, onde tudo pode ser fotografado e

filmado, onde tudo pode tornar-se, deixa-se ver como um todo, sem portas e sem muros. Um

mundo (super) exposto. Superexposição

transparente, se

seguirmos com Paul Virilio (1993), e ainda bombardeada de signos. Do regime das imagens,

circulantes e em movimento, parece-nos que tudo está mesmo à mostra, lição antonioniana de

Blow-Up (1966), e mesmo que se fuja das imagens, cobrindo espelhos, esta é revelada, lição

beckettiana de Film (1965).

Como o mundo não pode falar põe-se no confessionário da imagem. Na superfície da

humanidade algo circula, fazendo do mundo um vir-a-ser, um tornar-se. Mundo codificado, se

assim quisermos denominá-lo, ou exposto. Salutar são, assim, as palavras de Vilém Flusser (2007)

dirigindo-se às programações da superfície, marcada de cores e imagens, códigos, símbolos, tudo

significando o mundo, construindo rotas, guiando-nos como um fio de Dédalo

Imagens-mundo.

Mas imagens que outrora, com o uso da fotografia, foram tomadas como ameaça à

própria pintura por desestabilizarem a tábua do tempo, como se a chapa da máquina vencesse,

finalmente, o pincel (DUBOIS, 1993). Longe de pensar e adentrar nos pontos de afinidades e

oposições que se estabeleceram entre a fotografia e a pintura, interessa-nos olhar para a imagem

fotográfica a partir de dois momentos: de uma leitura, partindo de um viés estruturalista,

sontaguiana (2004) e barthesiana (1984), em um primeiro momento; e de uma leitura alçada em

um viés semiótico e sociológico a partir Charles Sanders Peirce (2008) e José Martins (2009),

respectivamente. Imagens em confronto, mas também em diálogo, para construir modos de

perceber, ver e ler.

E ainda: primeiridade, secundidade, terceiridade. Ícones, índices, símbolos; hipoícones,

imagem, diagrama, metáfora; qualissigno, sinsigno, legissigno. É com a semiótica, ou Teoria Geral

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dos Signos, que tomaremos o mundo como povoado de signos sendo o próprio homem um

p. 131). Nesta altura do percurso perguntas fazem-se notórias: o que pode a imagem fotográfica?

O que pode um haikai? Para onde apontam ambos, se é que apontam para algo? Poderia um

encontro entre o não-verbal (fotografia) e o verbal (haikai)? Como se daria uma confluência, ou

transa, entre a imagem fotográfica e a literatura?

Entre a imagem fotográfica e o haikai, o olhar. Mas não qualquer olhar. Para que direção

elas olham? Para si mesmas, para o mundo? O que resulta desse olhar? Uma imagem em tons

desbotados, uma imagem onírica, uma imagem que fala, que clama. Uma imagem que, por vezes,

é ora tarkovskiana, ora sukoroviana. A fotografia e o haikai assim conversam, mas por uma janela

entreaberta. Sussurram. Olham-se, na tentativa de abrirem a janela, entrecruzarem-se, confluírem,

figurarem. Assim, argumentaremos aqui que é na escrita do haikai de Paulo Franchetti que pode

se manifestar a força, ou melhor, a potência da natureza. Ao escrever a natureza , sua poesia cria

outras naturezas, outros mundos. Assim como a fotografia ao captar o real. Nessas possibilidades

de novos caminhos que se busca a urgência de não só uma teoria semiótica, mas como também

uma teoria contemporânea da fotografia que auxilie a estruturação do pensamento. Deste modo,

ao tomarmos os haikais de Paulo Franchetti, buscamos construir um terreno comum onde se

possa estabelecer um trânsito entre escrita e imagens da natureza, construir um ponto de

encontro entre literatura e fotografia.

O : algumas considerações

Uma página em branco à espera. Uma página-silêncio. Página-meditação. A página-palco à

espera das palavras. Palavras que cortam espaços, loucas, frenéticas, sem rumo. Linhas que

cruzam as margens. E ainda, palavras que dançam pelo vazio do branco da página. Vazio que

tudo diz. Palavras que perfuram o abismo da página. Tão velozes como um lance mallarmaico. O

haikai quer percorrer este incerto caminho, perfurar a página, dançar, mergulhar, habitar,

heideggerianamente falando. Haikai é uma composição poética japonesa de três versos, dispostos

em uma ordem métrica de cinco/sete/cinco sílabas poéticas. Três versos e dezessete silabas

poéticas que configuram uma mescla de simplicidade e concisão, versos curtos que parecem

querer chegar mais rápido ao leitor. Um drama de poucas palavras, poesia ideogramática de

brevidade expressiva.

O tradicional haikai oriental mantém uma íntima relação com a natureza, uma expressão

do real, das estações do ano, interagindo o homem com o meio. Preza a objetividade, mas perder

de vista a subjetividade. Expressa os sentidos da natureza, penetrava na vida das coisas, portanto

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místico. Cheio de iluminação, satori em japonês, o haikai é um caminho espiritual à natureza búdica

de cada ser. Argumentos que, por ser o haikai uma poesia do ver/sentir, isto é, o que poderia

chamar de uma poesia-imagem1, o haikai constrói imagens da natureza.

Primordial para se adentrar nas concepções da poesia haikai é o trabalho do escritor

espanhol e poeta Fernando Rodríguez-Izquierdo que, em seu livro Haiku Japonés: historia y

traducción (2010), faz um pertinente panorama da história do haikai na literatura japonesa,

abordando o período entre os séculos XVII e XX2. Diante da esparsa literatura sobre o haikai3, a

obra de Rodríguez-Izquierdo soma-se a nomes já consagrados no tema, como Reginald Blyth

(1963) e Donald Keene (1956), ou, se podemos assim dizer, vem contribuir no preenchimento de

lacunas existentes na crítica da poética oriental. Na primeira parte da obra, em que o autor parte

das origens para uma tentativa de conceituação do haikai, destaca-se uma peculiar e salutar

só da vida. É como a flor da existência, e despreocupa-se

do além, mas desvela nas coisas uma nat 4 (RODRÍGUEZ-

IZQUIERDO, 2010, p. 30). Como é a vida o tema central, pode o leitor destacar o lugar de

ausência da subjetividade, o pessoal do poeta, nos haikais. Partindo do pressuposto que o homem

faz parte da natureza ao passo que mantém uma íntima relação com ela, além de que a obra

literária também tem um profundo elo com a realidade, Rodríguez-Izquierdo argumenta que, no

momento em que o haikai abre mão da subjetividade em detrimento da síntese, a personalidade, o

pessoal do poeta, atinge o haikai de forma sublimada e depurada.

haikai contempla o outro (objeto), a árvore,

o céu, as folhas das árvores que caem no outono, os animais, os rios. Zen-budista por excelência,

o haikai

(LOBO, 1993, p. 45). Na síntese de Luiza Lobo: O haikai é uma prática poética resultante de uma abordagem filosófico-religiosa do mundo zen-budismo ou confucionismo; emprega, como forma de imagem, símbolos que se apresentam predeterminados para sua combinação, ligados à natureza. No ocidente, a busca do haikai deriva de uma necessidade de se reencontrar o símbolo, de se superar a fragmentação resultante dos efeitos do capitalismo e do cosmopolitismo modernos, que acarretam o excesso de fragmentação e uma sociedade de simulacros levados ao extremo pela troca simbólica entre signos já mecanizados e esvaziados de sentido (LOBO, 1993, p. 68).

______________________ 1 -de irradiar imagens próprio da poesia - 2 Convém notar que, ancavaleiros e samurais. Rodríguez-Izquierdo, na primeira parte do livro, aborda as diferenças formais e conteudísticas entre a poesia anterior ao haikai 3 Em língua portuguesa, vale destacar as importantes considerações acerca do haikai de autores como Haroldo de Campos (1975), além de duas grandes obras: Haicai no Brasil (1988), de Masuda Goga, e No Japão: impressões da terra e da gente (1997), de Oliveira Lima. 4 s una naturaleza divina inmanente a

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haikai; do

pois o haikai, como um poema-síntese que mergulha na página em branco, que vaza pelas frestas

percorrendo o vazio budista do papel, é estritamente fragmentário: linhas que se entregam num

enorme turbilhão. Voar pela imensidão. Perguntaríamos, pois, como se com David Harvey

(2002): um turbilhão pós-moderno? Poesia curta. Poesia-minuto. Poética da brevidade. Síntese.

Tudo dizer no mínimo.

E, neste turbilhão, Ocidente e Oriente não tão distantes, como dois blocos em polos

extremamente opostos, mas próximos, conversando. Posto Ocidente e Oriente na rota da

confluência, podemos criar um ponto em comum para a possibilidade do diálogo. Construiremos

nas poesias haikais do poeta, e também ensaísta, Paulo Franchetti um espaço comum para o

trânsito Ocidente e Oriente, e além: construir aberturas, diálogos, intersecções, trocas. Haikai

aqui visto como poética da síntese e como pertencente de um entrelugar,

comprime espaço-tempo (HARVEY, 2002). Pelo haikai, um espaço entre linguagem e mundo o

que Maurice Blanchot (1987) chamou de espaço literário

palavra cara à Benedito Nunes (2010), entre verbal e não-verbal; uma transa entre literatura e

fotografia.

A imagem fotográfica: algumas problematizações

As imagens fotográficas nos abrem muitos horizontes. Desde as origens a fotografia teve

inscrita em sua história a reprodução mecânica daquilo que não se repetirá, consolidando a

tradição barthesiana de congelamento do real (cf. BARTHES, 1984). Um recorte estático, isto

porque fotografias materializam o mundo. Se já é conhecida, no discurso fotográfico, a

concepção de fotografia como fragmento do mundo (SONTAG, 2004), podem as imagens

fotográficas ampliar as fronteiras do mundo físico e recriá-lo? Diante da tradição que eternizou o

tempo na imagem, pode a fotografia dissimulá-lo para fabricar outros mundos? Poderíamos,

então, radicalizar o estatuto da fotografia? Se assumirmos a tarefa, devemos voltar-nos às origens

do discurso fotográfico, ou seja, à raiz: a fotografia como registro, documento. Tomá-la pela raiz

é, pois, regressar ao eidos da fotografia do discurso amoroso de Roland Barthes que, digamos, foi

ao grau zero da fotografia através de suas concepções de studium e puntum em A Câmara Clara

(1984). Teve a imagem fotográfica seu estatuto de recorte estático de um tempo móvel, algo de

tautológica, imagens sem intenções alimentando-se do real, mas sem duplicá-lo a isso, Barthes

(1984, p. 66) chamou- hes

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que inscreveu a fotografia como mensagem principalmente as fotografias de imprensa que

também se enquadram no espaço unário puramente ligada a um real literal.

Entretanto, para além do status da fotografia como documento do real podemos deflagrar

um campo de tensões. Levar ao limite a tradição do discurso fotográfico requer penetrarmos em

outros campos de teorizações, como a sociologia e a antropologia, mas não no intuito de pôr em

terra teorias, mas de articulá-las. Na sociedade industrial da reprodução e da cópia (cf.

BENJAMIN, 1994), é lícita a contribuição para o discurso fotográfico do pensamento

sociológico de José de Souza Martins, em Sociologia da fotografia e da imagem (2009). Pensamento

que fez a fotografia se libertar do seu caráter documental, inscrevendo-lhe uma construção

formalmente similar e precisa, e aparentemente objetiva, [...] é documento verdadeiro do que as

pessoas veem e, sobretudo,

Martins assim abre a discussão para repensar o papel da fotografia no contemporâneo,

para pôr a fotografia num adeus ao documental, não para aniquilá -lo, mas para usurpá-lo, um

documental que é impregnado de fantasia, muito mais próximo do irreal que do real. Não intenta

aqui mapear a utilização técnica da fotografia pelo campo das Ciências Sociais, mas sim como, a

partir da reflexão sociológica, traçar novos caminhos, investir em novos pacotes de imagens, em

novas aventuras, em novos mundos, em novas transformações. Pensar com a sociologia da

fotografia e da imagem nos esbarrarmos em novos campos tensionados: imagens-mundo de um

paraíso perdido (OLIVEIRA; ARAUJO, 2011), fotografias que transformam e atualizam o real

(SANTOS, 2010), e que também fabricam mundos.

A reflexão de Martins vai à raiz, nas teorizações da fotografia, para negar a tese de

congelamento aí a crítica barthesiana

polissêmica da fot

retrata o que está lá. [...] Nutre a sua interpretação por uma contínua remessa do real , que não se

erteza. Mas

é a fotografia ficcional porque apresenta o caráter narrativo. Fotografias narram, tecem histórias,

inventam, recriam, representam, apresentam. A fotografia vista como conjunto narrativo de histórias, e ao como mero fragmento imagético, se propõe como memória dos dilaceramentos, das rupturas, dos abismos e distanciamentos, como recordação do impossível, do que não ficou e não retornará. Memória das perdas. Memória desejada e indesejada. Memória do que opõe a sociedade moderna à sociedade tradicional, memória do comunitário que não dura, que não permanece (MARTINS, 2009, p. 45).

A reflexão sociológica da fotografia foi a que mais nos direcionou para os seus paradoxos

em seu campo de tensões, entre ver e o não-ver, entre o presente e o ausente, entre o real e o

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irreal. Colocou-a em descongelamento. Deste modo, somos lançados à carência de novos modos de

ver (cf. BERGER, 1999). O que teríamos então para ver? Se é a fotografia imaginação e narração,

poderia ser ela narração de uma realidade que já é em si encenação? A tese de José Martins, de

de instrumento de registro, com objetividade, elas ainda assim criam imagens de ficção.

Se levarmos às últimas consequências o fato de que o mundo é bombardeado por

imagens e que a realidade é e sempre foi interpretada por meio de informações fornecidas por

imagens, podemos, partindo da semiótica peirceana, problematizar ainda mais o lugar da

fotografia. Para o filósofo e matemático norte-americano Charles Sanders Peirce (2008), o mundo

é povoado por signos, sendo o próprio homem um signo. Signo, para Peirce, é tudo aquilo que

r

origem a outro signo.

E se entendermos um signo como um duplo pois ele representa algo imagens sempre

tricotomias peirceanas, as categorias de ícone, índice, símbolo são as principais para o filósofo,

sendo ícone um signo que mantém relação por analogia com o objeto; índice o que mantém uma

relação direta com o objeto; símbolo o que mantém uma relação convencional com o objeto.

Assim como as imagens eram estabelecidas como hipoícones para Peirce, as fotografias eram

imagem com aquilo que ela se refere que esta assume um caráter indexal, isto é, traz em si o

referente.

Como, desde os primórdios de sua história, a fotografia fora posta no banco do registro

do real, agora, tem diante de si, ou em si, um processo de signagem (cf. PIGNATARI, 2004). À

esteira destes processos caminharam outras teorizações, não apenas para recobrir lacunas como

também para sintetizar discursos, como as de Philippe Dubois (1993) ao tratar dos recortes que

faz do mundo e do modo como a ele se refere, situando a imagem fotográfica tanto no índice

como no referente ao objeto. Na trilha de Peirce, Philippe Dubois (1993) sintetizará o discurso

fotográfico e aproximará a fotografia da categoria de índice peirceana. A partir de sua obra O Ato

Fotográfico (1993) observamos a trajetória dos discursos sobre a fotografia que partem do que

Peirce concebeu como aqui-e-agora de uma qualidade (PEIRCE, 2008) que constitui a experiência.

Dubois nomeia os percursos da fotografia como i) espelho do real, isto é, mimética, no campo da

similaridade, um analogon ou para a epistemologia peirceana, um ícone; ii) transformação do real,

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determinada culturalmente, onde um determinado conjunto de códigos age sobre ela, ou seja, a

foto é um símbolo; iii) traço do real, assinalando a sua relação com o referente, onde ela atesta e

estabelece, assim, uma relação de contigüidade com o objeto. As imagens fotográficas, em sua

maioria, mantêm relação direta com o objeto, estabelecendo uma conexão física, para, depois da

singularidade e ao mesmo tempo , assumir um caráter de sintaxe, qualissigno ou ícone.

Fotografia como singularidade, pois, assim como um índice peirceano, ela certifica, ratifica,

atesta. É só na fotograf

NÖTH; 2008, p. 131).

Ainda podemos trazer a urgência de uma filosofia da fotografia de Vilém Flusser (1995)

a discussão arte e ciência, como os textos surgiram no momento da crise das imagens e como as

imagens aparecem na crise dos textos, pois cabe à fotografia (imagem técnica) remagicizar os

índice e ícone, referência e composição, aqui e lá, atual e virtual, documento e expressão, função

a fotografia renuncia ao infinito

deve estar a serviço da objetividade, muito menos dependente da subjetividade do fotógrafo, mas

(MACHADO, 1984, p.54), a imagem, enfim, transfigurará o mundo. Portanto, é a partir do

discurso fotográfico, de seu caráter indexal e de sua referencialidade que poderemos estabelecer

um trânsito entre fotografia e literatura na escrita do haikai, pois, se é o haikai

(barthesiano) do real, como se o haikaísta, com uma câmera na mão, fotografasse a natureza ao

mundos,

narração de outras naturezas. Ficção.

Narrações de uma natureza fluida

Um território tão fugidio quanto palpável, tão belo quanto aterrorizante. É somente e,

sobretudo, a materialidade da imagem que é capaz de tornar a natureza presente. Só mesmo a

imagem estaria apta a inscrever todas as peculiaridades e segredos da mais recôndita vida

selvagem por todos os cantos do planeta. Como não pode falar, a natureza é posta no

confessionário da imagem, levada a mostrar-se em todas as suas formas. A natureza é

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garantia de verdade as fotografias. A natureza é para aqueles que andam por ela, que a apalpam,

viajam pelos caminhos que ela própria se incumbiu de traçar, aqueles que compreendem suas

-se o próprio Império, sua

própria imagem e semelhança: imprevisível, móvel, fluída, flexível, dinâmica, criativa,

surpreendente, poderosa.

Como se dão essas relações na obra de Paulo Franchetti? Tomamos aqui a obra Oeste

(2007) do poeta, que gira em torno das quatro estações do ano, do campo, da terra natal. Obra

bilíngue, traduzida para o japonês por Masuda Goga, os haikais de Paulo Franchetti vão de

encontro com os tradicionais haikais nipônicos cultuados pelo mestre Bashô. São haikais que, nas

próprias palavras de Franchetti, trazem, para o leitor a presentificação de um instante como algo inacabado, aberto, um esboço ou um diagrama do choque entre a sensação fugaz e irrepetível e seu longo e profundo ecoar nas diversas cordas da sensibilidade e da memória (FRANCHETTI, 2007, p. 11).

O haikai

cordas da sensibilidade). E por estar na fronteira, ambos se mesclam. Um incorpora o outro,

como se a objetividade do haikaísta abrisse espaço para a percepção do olhar e pa ra a

sensibilidade do fotografar. Assim Paulo Franchetti, em Oeste, trabalha entre fronteiras.

Fotografa, com a escrita, o real. Seus haikais são como lentes de uma câmera que quer captar as

potencialidades da natureza, a sua essência, a natureza búdica das coisas. A primeira parte da obra é

dividida entre as quatro estações do ano. Cada haikai tematizando sua estação. Em um haikai da

primavera, temos: Mesmo o velho eucalipto Parece feliz Névoa da manhã (FRANCHETTI, 2007, p. 23).

Segundo a tradição haikaista do poeta nipônico Bashô, o primeiro verso de um haikai é

uma circunstância eterna e absoluta, que, de certo modo, é a objetivação do mundo exterior; o

segundo verso seria a ocorrência do evento, e no terceiro verso tem-se a interação, ou, por vezes,

o resultado do ocorrido. Neste haikai

haikai, o velho

eucalipto já é logo capturado pela lente fotográfica de Franchetti. Eis a nossa imagem fotográfica.

a ocorrência do evento. O estado de sentimento ligará o segundo

podemos dizer que a névoa relaciona-se com a felicidade do eucalipto. Ora, esse elo entre o

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objeto (eucalipto) e o mundo exterior (névoa) é marcado por uma profunda carga de oniricidade

termo chave para a filosofia de Gaston Bachelard em sua Poética do Espaço (2008). O eucalipto

está no mundo, vive no mundo, é o mundo. Como se ambos fossem um só. Mas vejamos que o

haikai

e o

mundo oniricamente vivem. Assim, a fotografia que temos deste haikai é de uma paisagem

acinzentada, mas viva de cor pelo eucalipto. Neste haikai de verão, a mescla de tons parece ainda

mais nítida: Tarde de verão Uma nuvem solitária Chovendo no vale (FRANCHETTI, 2007, p. 52).

Da imensa tarde de verão, todos esperam o sol. Entre esta imensidão da tarde, uma

-se a ela, como se

fosse desmanchar-se, esgotar-se. Não que a nuvem solitária estrague a tarde de verão, mas que ela

viva na tarde de verão. Uma pequena nuvem chuvosa na imensidão do céu ensolarado. E

perguntaria, com razão, o leitor: não haveria algo de metalinguístico nesse esgotar-se? Isto é, uma

pequena nuvem (o haikai) que se esgota na imensidão do céu ensolarado de verão (a página em

branco)? Esse haikai de Franchetti mais que nos leva a Bashô, mais que uma intertextualidade (cf.

SAMOYAULT, 2008), é uma homenagem ao poeta nipônico, uma homenagem à tradição secular

do haikai oriental. Outro haikai fotografa uma paisagem da tarde, mas não mais de verão, e sim de

outono: Tarde de outono Os olhos não desgrudam Da árvore seca (FRANCHETTI, 2007, p. 61).

Neste haikai, sujeito e objeto se fundem. As imagens captadas (tarde de outono, árvore

seca) relacionam-se. A imagem que temos não corresponde apenas a uma determinada paisagem

fotografada, mas a várias possibilidades de outras imagens, de outras tardes de outono, de outras

árvores secas. Uma imagem, portanto, do máximo do cotidiano quantos de nós já não paramos

em uma tarde para observar uma árvore mesmo que seca? E quantos hoje parariam? A árvore

pode nada querer dizer, mas pode também tudo querer.

Os haikais , dos tons

cinza, do frio, imagens típicas de um cenário de inverno. Citemos este: Sob a névoa fria

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O cemitério da vila Cercado de ciprestes (FRANCHETTI, 2007, p. 81).

Aqui, três imagens impactantes: a névoa fria, o cemitério, os ciprestes ao redor do

cemitério. No cemitério, o silêncio. Silêncio coberto de névoa. Nada se move a não ser a névoa e

o balançar dos ciprestes. Temos uma imagem de um paraíso, mas um paraíso isolado, frio,

distante, onde todos ali descansam em seu silêncio. Um paraíso que parece ser delirante,

mórbido, tão frio quanto o inverno. E os ciprestes, estes que parecem esconder o paraíso,

esconder os mortos, mas também guardá-los, protegê-los.

Os haikais de Paulo Franchetti irradiam imagens, criam imagens no leitor, ícones como

quer a semiótica. Imagens que dão materialidade à natureza, multiplicam essa natureza por todos

os lados. Imagens-natureza. Imagens que criam, constroem, falam, pensam, escrevem, circulam.

Neste espaço propício ao diálogo da escrita com imagens da natureza, podemos dizer que tudo

está em movimento. Haikais que dançam na página em branco, imagens que circundam o mundo.

Frenesi.

Considerações finais

Se, como sugere o já clássico Jacques Aumont (1993), as imagens pensam, elas pensam,

acima de tudo, que nós somos alguma coisa. As imagens querem, desejam, sonham não só com

mundos e os projetam, mas também com sujeitos que o povoem e criam demandas subjet ivas

sobre aquilo que nós somos (ELLSWORTH, 2001). E nós, leitores, embarcamos nos fluxos

vertiginosos de informações e imagens da natureza, percorremos caminhos sem direções, que não

se sabe para onde e que lado vão. Sobretudo, vivemos a imagem da natureza em todos os seus

limites. Deste modo que os haikais

novos choques com o mundo natural, novas aventuras, novos animais, novas plantas que nos

UJO; 2011, p. 9). Um aquém-

mundo?

É na confluência da literatura com a fotografia, do haikai com as imagens da natureza que

as poesias de Paulo Franchetti, como uma câmera fotográfica, além de captarem imagens do real,

além do mero registro do cotidiano, ficcionalizam imagens, constroem novas outras naturezas.

Imagens que narram. Imagens-narração. Isto porque a fotografia não pode ser entendida

exclusivamente como realidade capturada, mas, sim, como transformação e atualização do real,

ou melhor, como criação de um novo real fotográfico (SANTOS, 2010). Certamente os haikais

de Paulo Franchetti homenageiam não apenas os difusores do estilo nipônico, mas também a

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Ocidente/Oriente, Paulo Franchetti reescreve o Oriente, intertextualizando com ele. Um

entrecruzamento de textos, multiplicidade, heterogeneidade, transmissão, mas também

continuidade (SAMOYAULT, 2008).

Posto tudo em diálogo, em movimento, em trânsito, à luz de teorias semióticas, de teorias

clássicas e contemporâneas da fotografia, a urgência do haikai: mostrar que é possível ir além do

cotidiano capturado pelas suas lentes e que as imagens que captura podem ir além do registro. A

literatura e a fotografia enquanto atividades humanas mantêm suas particularidades, suas

diferenças, quesito que se deve pontuar em qualquer tentativa de confronto entre atividades e

campos disciplinares. O elo que as une é um cordão subjetivo que desponta da narração, na

ficção, na criação. Construir saídas quando não há saídas. Na rota de fuga que haikai e fotografia

podem, enfim, se encontrar.

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