livro poemas e eu

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POEMAS & EU POEMAS & EU Aníbal Machado

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Trabalho para a materia de Nucleo de Projeto apresentado à Universidade FUMEC, por Joycielle Souza

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Page 1: Livro Poemas e Eu

POEMAS &

EU

POEMAS &

EU

Aníbal Machado

Page 2: Livro Poemas e Eu

POEMAS & EU

Page 3: Livro Poemas e Eu

POEMAS & EUDesigner gráfica: Joycielle Souza

1º Edição

Aníbal Machado

Page 4: Livro Poemas e Eu

Prefácio

Todo mundo era amigo de Aníbal Machado. Os poetas todos: os anteriores de 22, os integrantes da Semana de Arte Moderna, a geração de 45, os concretistas, os indefinidos, que mal tinham metido o bico para fora da casca; os romancistas todos: regionalistas, subjetivistas; os plásticos todos: figurativistas, abstracionistas, tachistas, escultores, gravadores, desenhistas, arquitetos; os músicos: eruditos e populares, compositores ou executantes; as escolas de samba gostavam de Aníbal; católicos e ateus frequentavam o coração de Aníbal; as crianças de todos os tamanhos o adoravam; os mestiços, os pretos, os judeus contavam com a fraternidade cálida de Aníbal; quem fosse perseguido, quem possuísse um defeito físico, moral ou psíquico; quem andasse infeliz, quem tivesse perdido um amor, quem quisesse ir para Paris ou ingressar no teatro, quem precisasse agudamente de dinheiro, quem clamasse por um prefaciador inteligente, quem andasse à cata de um leitor para seus originais, quem tivesse sofrido um acidente, quem penasse em solidão, quem quisesse curar-se de embriaguez ou deixar de fumar, quem tivesse um problema, quem desejasse um conselho ou mesmo quem desejasse continuar seu erro (só precisando de paciência, compreensão, bondade), quem chegasse de longe ou partisse. Todos procuravam Aníbal Machado. Era um consertador de material humano, e era também um homem que aceitava o material humano tal como ele é, precário e torto. O candidato a artista que chegasse do Acre, da fronteira gaúcha, de Mato Grosso, de Madureira, já no dia seguinte tocava a campainha do 487 da Visconde de Pirajá; os estrangeiros ilustres (ou apenas curiosos, e, às vezes, francamente, uns chatos horrorosos) visitavam longamente o estúdio de Aníbal, levavam para lá problemas práticos e angustias íntimas; diversas gerações ensaiavam as danças do momento nas reuniões dominicais de Aníbal; as revistas literárias se fundavam na casa do Aníbal; os manifestos políticos e sociais eram invariavelmente levados, antes de tudo, ao estúdio de Aníbal; programações teatrais eram previamente submetidas à opinião de Aníbal; se nunca patrocinou desquites, entendeu-os, mas é certo que algumas reconciliações difíceis seriam impossíveis sem ele. As vezes, vendo a intimidade com que o usavam, me dava pena dele, pena da bondade dele, mas o próprio Aníbal me disse várias vezes que não tinha importância, que gostava muito de gente, que gostava até dos chatos. Me lembro: “Paulo, só não gosto de fascista e de falta de caráter.” Aliás, por sinal, eu mesmo, sem avisar e sem motivo especial, bati várias vezes na porta do Aníbal. Quando Vargas se matou eu estava sozinho em um apartamento de Ipanema e corri imediatamente para a casa do Aníbal. Outra vez, em uma tarde útil, o Marcito e eu tínhamos uma garrafa de vieux marc, e a convicção de nos dois de que só poderíamos bebê-la com o Machadinho. O Machadinho dos bons instantes de fraqueza, nos quais a amizade sólida se enternece. Era um homem tocado pela graça da compaixão e virilmente bandeado para o partido da vida. E eu me lembro da vez em que ele me disse “Paulo, os homens devem fazer filhos; encher o mundo de crianças é a coisa que não se pode discutir.” Ipanema anda perdendo ultimamente um bocado de sua humanidade: dos lados da Praça General Osório, a gente já não encontra o Raimundo; dos lados da Praça Nossa Senhora da Paz, já não encontra o Aníbal.

Paulo Mendes CamposRio de Janeiro, fevereiro de 1964

2011

Todos os direitos desta edição reservados à JOYCIELLE SOUZA

Capa:Joycielle Souza

Ilustrações:Joycielle Souza

Designer Gráfica:Joycielle Souza

Autor:Aníbal Machado

Page 5: Livro Poemas e Eu

Homem em

preparativo

Ando sempre em preparativos.Acumulo material, encomendo peças. Junto

o necessário. Tomo todas as providências. E trato também da ornamentação.

Com isso, vou me distraindo. Troco coisas e ideias. Alguns me ajudam, servem-se também de mim. E todos assim nos distraímos nesses preparativos.

Page 6: Livro Poemas e Eu

Mas com que seriedade! Com que paixão!

Nos momentos de intervalo, construímos cidades, casamos, discutimos, entramos na guerra.

Preparamo-nos todos para qualquer coisa que ainda não aconteceu. Há dezenas de anos tem sido assim. Há milhares de anos...

Adoro os detalhes que aliviam o peso do conjunto. O que me atrapalha, porém, não é tanto o tempo perdido na escolha do material, — isso até me preenche as horas — o que me atrapalha é a rapidez com que as coisas se deterioram.

Às vezes recebo intimações para acabar depressa. Mas desconfio e faço cera. Acabar depressa, o que?

Saio então a ver se encontro qualquer coisa que seja bem difícil de achar, — acontecimento ou mulher.

Meu medo é a interrupção dessa busca por colapso de entusiasmo ou pela aparição fácil do objeto.

Page 7: Livro Poemas e Eu

Procuro sempre... Procuro sem remitência. Invento novas dificuldades.

Adoro os obstáculos...Vivo assim amontoando, renovando,

corrigindo, experimentando, caindo e me aprumando.

Assim, não chegará jamais o dia da minha inauguração. Pois o meu pavor é a viagem concluída, a coisa acabada...

O meu pavor é a estátua de pedra, o feixe de ossos gelando na chuva ou debaixo da terra....enquanto vocês aí fora continuam procurando, procurando...

Não. Nunca serei inaugurado.

Page 8: Livro Poemas e Eu

O grande

clandestino

Page 9: Livro Poemas e Eu

Eu me distraio muito com a passagem do tempo.

Chego às vezes a dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e passa escondido. Mas com que velocidade!

Basta ver o estado das coisas depois que desperto: quase todas fora do lugar, ou desaparecidas; outras, com urna prole imensa; outras ainda, alteradas e irreconhecíveis.

Se durmo de novo, e acordo, repete-se o fenômeno.

Page 10: Livro Poemas e Eu

Sempre pensei que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não!

Eu queria convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é espetáculo todo íntimo e não disponho de tribunas.

Page 11: Livro Poemas e Eu
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Além do mais, o tempo em pessoa é praticamente invisível, como a ventania. Só se pode apreciar o resultado de seu trabalho, nunca a sua maneira de trabalhar.

Page 13: Livro Poemas e Eu
Page 14: Livro Poemas e Eu

O que é preciso é nunca dormir e ficar vigilante, para obrigá-lo ao menos a disfarçar a evidência de suas metamorfoses.

Page 15: Livro Poemas e Eu

É de fato penoso deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira vez. O tempo tudo transforma e arrasa, sem nos dar aviso.

Ora, isso entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos misturemos com ele, façamos dele um aliado.

Aí, sim: destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão se enchendo e esvaziando toda a vida.

Perde-se até a ideia da morte. Então a gente aproveita para erigir sistemas, tomar iniciativas, amar, lutar e cantar.

Page 16: Livro Poemas e Eu
Page 17: Livro Poemas e Eu

O tempo fica assim tão escondido dentro de nós, que se tem a impressão que fugiu para sempre e se esqueceu.

Em verdade, ele não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos horizontes onde parece pernoitar.

Rói as pedras como o vento, rói os ossos corno um cão. O que mais admira é a extrema delicadeza com que pratica essas violências.

Todos falam de sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que aumenta de velocidade, à medida que nos distanciamos de nossas origens. E quase para quando o esperamos na solidão!

Page 18: Livro Poemas e Eu

Meu mal é sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego quase a tocar nele. Fico horas à janela vendo-o passar. É um vício.

Oh, como se diverte! Para ele, destruir urna árvore, um rosto, uma instituição ou uma catedral tanto faz.

O desagradável é quando de repente se retira de algum objeto ou de alguém. É claro que prossegue depois. Mas deixa sempre uma coisa morta.

Franqueza, nessa hora dá um aperto no coração, uma nostalgia!...

Contudo, não se deve ligar demasiada importância ao tempo.

Ele corre de qualquer maneira.E é até possível que não exista.Seu propósito evidente é envelhecer

o mundo.Mas a resposta do mundo é

renascer sempre para o tempo...

Page 19: Livro Poemas e Eu

O transitório-definitivo O meu fim é Santa Maria, castelo de passarinhos...

Me casaram várias vezes. Aos homens que feri em brigas pelo caminho, eu dizia:

— Não há de ser nada; estou de passagem para Santa Maria.

E às mulheres que abracei: — Fiquem com os filhos. Eu levo a lembrança. Estou indo para Santa Maria, castelo de passarinhos.

Entre as muitas aldeias de pouso, numa acordei com banda de música e gente debaixo da sacada: — Senhor, sabemos que estais de passagem. Aqui ninguém presta. Aceitai ser o nosso chefe.

— Eu também não presto, respondi. E estou de pas¬sagem. Deixai-me dormir...

E bati-lhes a veneziana.

Page 20: Livro Poemas e Eu

Mas fiquei. Armei pontes, retifiquei o rio. Construí piscinas e um auditório onde preguei a centenas de ouvintes.

Falaram-me de algumas precisões: um chafariz, uma igreja, uma escola, talvez uma nova seita. Que eu po¬deria, etc...

Page 21: Livro Poemas e Eu

Abri jardim para os namorados, horrorizei-me de meu próprio busto erguido entre as flores do canteiro principal.E quando a moça mais linda que eu estreitava aos braços gemia: — “Ó tu que para sempre serás meu!” logo eu atalhava: — Não pode ser, minha filha, não pode ser... Estou seguindo para Santa Maria, castelo de passarinhos...

Mais adiante, me condenaram. Respondi aos juízes:

— Para que, se estou de passagem para Santa Maria? Mais vale, em vez da pena, um banho delicioso no rio.

E segui caminho.Há mais de cinquenta anos que estou indo para

Santa Maria. O que não é sacrifício para quem sabe que há de chegar.

E enquanto não chego, vou me distraindo à minha maneira, ora rindo, ora gemendo.

Os pequenos acontecimentos avultam aos meus olhos, os grandes se amesquinham.

Page 22: Livro Poemas e Eu

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Page 23: Livro Poemas e Eu

Esse livro foi impresso no papel couché 70g e 120g, utilizando a tipografia Adobe Garamond Pro em corpo, espaçamento e

entre linhas variados.

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