livro nestor capoeira 2 capitulos

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CAPOEIRA a construo da malcia e a filosofia da malandragem 1800-2010autor: Nestor Sezefredo dos Passos Neto ("Nestor Capoeira") 2011CAPOEIRA a construo da malcia e a filosofia da malandragem 1800-2010 Trilogia do Jogador, vol. 1de Nestor Capoeira (Nestor Sezefredo dos Passos Neto) 2001 2011Salve todos capoeiristas; passado, presente, futuro.Para o maestro Pixinguinha, Muniz Sodr, e Man Garrincha.In memorian: Demerval Lopes de Lacerda, o mestre Leopoldina (1933-2007); Marcelo Guimares, mestre Peixinho (1947-2011).Outras obras do autor: - No Brasil: O pequeno manual do jogador de capoeira. Rio de Janeiro: Ground, 1981. Ed. rev e atual.: Rio de Janeiro, Record, 1998. Galo j cantou. Rio de Janeiro: ArteHoje,1985. Ed. rev. e atual.: Rio de Janeiro, Record, 1999. Capoeira, os fundamentos da malicia. Rio de Janeiro:Record,1992. A balada de Noivo-da-Vida e Veneno-daMadrugada. RJ: Record, 1997. - No Brasil, na rea acadmica: PASSOS NETO, Nestor S. dos (Nestor Capoeira). Ritual roda, mandinga x tele-real. Disst. de mestrado, ECO-UFRJ, 1995. Orientador: prof. dr. Muniz Sodr. _____. Jogo Corporal e comunicultura, a capoeira como fenmeno civilizatrio com real aptido comunicativa e transcultural. Tese de doutorado, ECO-UFRJ, 2001. Orient.: prof. dr. Muniz Sodr. - Nos Estados Unidos: The little capoeira book. Berkeley: North Atlantic Books, 1995. Capoeira, roots of the dance-fight-game. Berkeley: NAB, 2001. Capoeira, the streetsmart song. Berkeley: NAB, 2005. - Na Frana:Le petit manuel du jouer de capoeira. Paris: Budo/L'Eveil, 2003. - Na Dinamarca: Com BORGHALL, J. Capoeira, kampdans og livsfilosofi fra Brasilien. Odense: Odense Universitetsforlag, 1997. - Na Holanda: Capoeira, een handboek voor speeler. Holand: Elmar, 2003. - Na Alemanha: Capoeira, Kampfkunst und Tanz aus Brasilien. Berlim: Weinmann, 1999. - Na Polnia: Capoeira. Wroclaw: Patra Purana, 2005. -Na Finlndia: Capoeira. Helsinki: Art House, 2006 - Em Portugal: O Pequeno manual do jogador de capoeira. Lisboa: Arte Plural, 2009.SUMRIO Prefcio com Nestor Capoeira 1 - UMA TICA NEGRA E ALTERNATIVA Um al do autor 1.1 - A tica A tica dos gregos e das sociedades arcaicas A tica, segundo Badiou A malcia, a mandinga, e os fundamentos Gamb Velho e a gostosurazinha holandesa 1.2- O corpo O corpo entre os nags O corpo na globalizao, segundo Tucherman O corpo na globalizao, segundo Villaa Corporalidade - o Jogo 2 - A FILOSOFIA DA CAPOEIRA 2.1 - A malcia ta mundo enganador O intelectual e a "alegria de viver" O "conhecimento", e a "alegria de viver" A "alegria de viver" e a dorA "alegria de viver" e as brabeiras da vida Aprendendo a ver O credo do "Poder" x o da "Alegria de viver" Como desenvolver a "alegria de viver" A contraparte material Outro enfoque sobre a malcia O dinheiro 2.2 - A ao teraputica da roda O iniciante O jogador com 5 anos de capoe A "alegria de viver", ou o "poder"? A escolha das atividades prticas A dinmica teraputica da roda 2.3 - A "construo" da malcia, 1800-2000 Rio: os escravos africanos ladinos, 1800-1850 As maltas, os brabos, e os valentes: 1850-1920 O malandro e o sambista, 19201930 A desconstruo do malandro As contribuies de Bimba e Pastinha, 1930-1960 A mardade de BimbaAs metafsicas de Pastinha A vadiao de Waldemar da Liberdade A contribuio da gerao RioSampa,1960-1980 Mudana em 2005, pela gerao nascida em 1975 3 - O "SISTEMA DE ACADEMIAS" Autoritarismo excessivo? Ou "tradio"? A dialtica da tradio A tradio, do oprimido e do opressor Estratgias usadas na luta pela hegemonia O sonho de um jovem capoeirsta A estratgia de violncia era a nica opo? A violncia nas rodas A visibilidade e o visual 4 - A FILOSOFIA HIND E A MALCIA A finalidade do ser humano O karta e o mestre A emoo e a viso do Real O Real dos hinds O "si mesmo" A liberdadeO Incondicionado e o transcendente O gozo lcido Liberdade e amor 5 - O MALANDRO E A FILOSOFIA DA CAPOEIRA O malandro e o trabalho O malandro e o golpista O malandro e o cafeto O malandro e o golpista sexual: a dobradinha O malandro e a Umbanda O aprendizado do malandro O malandro, o sexo, e a espiritualidade 6 - A PULSO, O KI, E O AX Energia: trs enfoques homeomorfos Os orixs e a pulsp Psicanlise e capoeira Pulso de morte e criatividade Capoeira e a filosofia do real 7 - O IMAGINRIO DA CAPOEIRA 7.1 - O valente e o malandro; Ogum e Oxssi O candombl da Bahia Os orixsOs cultos africanos no Rio de Janeiro O valente e o malandro 7.2 - Outras entidades na roda O sorriso, e a gargalhada da Pombagira Besouro,Manduca,Nascimento; Bimba,Pastinha 7.3 - Galo j cantou 8 - O RITUAL DA CAPOEIRA 8.1- A roda A roda como espao geomtrico A roda como espao ritual A roda como espao mstico A roda como modelo social 8.2 - O berimbau 8.3 - Um tipo de jogo para cada toque de berimbau Na academia de Bimba Na capoeira angola O pulo do gato: a razo da diversificao de jogo 8.4 - O canto 8.5 - Elementos ritualisados 8.6 - A ltima roda 9 - UMA MQUINA DE GUERRA URBANA ApresentaoPano-de-fundo NY x LA O estado contemporneo no Brasil A marginalidade, a capoeira, e o samba Os anis da serpente Nmades e sedentrios A capoeira como uma estrutura "nmade" Reproduo e velocidade Linhas e segmentos A "viso evolucionista" x Clastres Atratores estranhos dos estados caticos Dispositivos para conjurar o Estado Centros de Poder 10 - OS TRS NVEIS, A FEITURA DE UM MESTRE A nova identidade, novas exigncias para mestre As novas exigncias: o tempo O alto nvel tcnico Corrupo: a venda de "diplomas de mestre" Meu encontro com mestre Leopoldina Meu encontro com mestre PastinhaMeu encontro com mestre Waldemar Meu encontro com mestre Caiaras Meu encontro com mestre Bimba 11 - O MTODO DE ENSINO 11.1 - Ritual e mito A brincadeira segundo Winnicott Antdoto Uma "aula de iniciao" O mito em ao: planejar uma aula de capoeira Improvisao e criatividade: receita do antdoto 11.2 - Os mtodos de ensino de nossos dias O desnvel entre a malcia, e a performance Problema: criatividade x mtodos de ensino Jogadores que improvisam: uma exceo Alunos mais experientes, e mais novos, na roda Deixar o aluno aprender sozinho No dar treinamentos complicados para iniciante Treinar o somDiminuir o autoritarismo 11.3 - Os treinamentos mecnicos e repetitivos 11.3.1 -Treinamentos para iniciantes 11.3.2 -Treinamentos para nvel mdio 11.3.3 -Treinamentos para nvel avanado 12- CAPOEIRA NO ESTRANGEIRO 12.1- A expanso no estrangeiro As dcadas iniciais, 1970-1990 12.2- "Cultura" x sexo e corporalidade: choque cultural Malandragem x machismo, e o choque cultural 12.3- Os jovens professores, 20 anos depois, 1990-2010 A popularizao, a partir de 1990 Os mestres gringos 12.4- As razes do sucesso no estrangeiro O sucesso da capoeira entre as mulheres O sucesso da capoeira entre os homens As crticas A parte "social"A filosofia, na viso dos estrangeiros A contribuio da capoeira americana e europia 13 - CONCLUSO: O JOGO COMUNITRIO Posfcio com Nestor Capoeira 14 - APNDICE ACADMICO Introduo (no estilo acadmico) Metodologia Objetivo Outros objetivos Quem Nestor Capoeira 14- BIBLIOGRAFIAPREFCIO COM NESTOR CAPOEIRA "Com f e coragem para ensinar a mosidade do futuro estou apena zelando para esta maravilhosa luta que deixa de erana adequerida da dana primitiva dos caboclos, de batuque, e cadobr originada pelos Africanos de Angola ou Gejes; muitos admira essabelissima luta quando dois camaradas joga sem egoismo, sem vaidade; maravilhosima e educada." Mestre Pastinha, 1889-1981. (1) "Capoeira mardade" Mestre Bimba, 1900-1974. "Para o bom malandro, o bom negcio bom pra todo mundo." Mestre Leopoldina, 1933-2007. Em 1965 conheci Demerval Lopes de Lacerda, o mestre Leopoldina. Eu cursava o primeiro ano de engenharia na Ilha do Fundo (RJ), e Leopoldina ensinava capoeira na "Associao dos Alunos". No ano seguinte, quando ainda era um iniciante e aprendiz, Leopoldina me levou pra umbanda e pro candombl; me enturmou nas rodas de samba; me apresentou um sem nmero de malandros, golpistas, descuidistas, 171s, a rapaziada do 281, e a turma da pesada; e, como se no bastasse, me levou pra desfilar na V.C.Entende, a ala-show da Mangueira,rodeado por dezenas de mulatas maravilhosas. Breve me formei engenheiro e, em paralelo, comecei a ensinar capoeira; eu atuava no mundo da classe mdia, e tambm vivia o sonho de uma outra realidade onde o malandro e o sambista eram os astros do filme. Em 1971, aos 25 anos, chutei tudo pro alto, chutei e sa pedalando: um timo e bem pago emprego como engenheiro da Light and Power Company S.A., a distribuidora de energia eltrica do Rio de Janeiro; um apartamento de dois quartos, no Cosme Velho, ao lado da academia de capoeira onde treinava e dava aulas; a namorada, e mais uma ou duas filiais; o carro, o som, e todas aquelas coisas que um pequeno burguesinho bem sucedido tem dentro de casa. Coloquei umas roupas e um saco-de-dormir numa mochila, pendurei o berimbau no ombro, e parti. Parti para comer aquelas gringas louras, entender que negcio era aquele dos hippies com seu LSD e rock'n'roll, e "conquistar" a Europa.O Jogo de Capoeira no era o eixo central deste "projeto europeu", pois inicialmente no imaginava que pudesse fazer sucesso no Primeiro Mundo, alis "Pases Centrais" (na terminologia modernosa da globalizao). Na poca, 1971, a capoeira era uma exclusividade de Salvador. Fora isto, havia apenas uma dzia de academias no Rio e em So Paulo; e uns nucleozinhos modestos em Belo Horizonte e Braslia. Como que a capoeira poderia ser sucesso no exterior? Mas a verdade que o Jogo foi muito bem aceito. E fui o pioneiro do ensino fora do Brasil, a partir de 1971, na London School of Contemporary Dance. Desde ento, em sucessivas viagens, morei 12 anos l fora, vivendo de capoeira e "dos meus prestgios". Participei da expanso e popularizao, dentro e fora do Brasil at a presente data, 2011, quando temos uns 25.000 professores de capoeira no nosso pas, e mais uns 2.000 espalhados por mais de 150 pases. A capoeira est bombando em todas as grandes cidades do planeta.Eu escrevi 3 livros de capoeira (Editora Record, RJ: 1981, 1985 e 1992); tambm fiz um mestrado e doutorado em Comunicao e Cultura (2). Nas minhas viagens, consegui que meus livrinhos fossem traduzidos e publicados em outros pases: Estados Unidos, Alemanha, Frana, Dinamarca, Holanda, Finlandia, Polonia e Portugal; em 2009, emplaquei 100.000 livros vendidos. Apesar de ainda estar, graas prtica diria do Jogo, em plena forma fisica, usufruindo das rodas e dos prazeres da "vadiao"; a verdade que j estou na casa dos 60 anos de idade e uma obra mais "pesada" e "acadmica" tinha razo de ser. Comecei a escrev-la em 2001 e terminei em 2011. A "obra magna" cresceu, ficou imensa -1.216 pginas - ; resolvi dividir o livro em 3 volumes. O volume que voc tem nas mos o primeiro da Trilogia do Jogador e enfoca a Malcia - a "filosofifa" da capoeira. Os dois outros volumes, que sero publicados em 2013, referem-se ao Histrico da capoeira Eu comparo a malcia "filosofia da malandragem", outra rea carente, apesar dealguns romances como os de Joo Antonio, e trabalhos acadmicos como os de DaMata. Examino cantos de capoeira, letras de samba, e cantos da umbanda. Enfoco testemunhos de mestres de capoeira, a partir de 1930; e de malandros e sambistas que tive o prazer de conhecer e conviver. Mostro pontos em comum, e divergncias, entre a capoeira e sua tica, e a maneira hind de ver o mundo, segundo Prajnampad, fsico e gur indiano; e tambm o enfoque do I Ching, o livro das mutaes, comentado por Confcio sculos antes de Cristo. Dou um rol pela psicanlise com Freud e Jung. Cito muitos daqueles caras, to caros nossa cultura ocidental: desde os antigos gregos, at Marx, Einstein, Nietzsche, Baudelaire, a Escola de Frankfurt, Sartre, Artaud, Foucault, Deleuze, Guattari, Winnicott, Hobsbawn, etc e tal. Passeio pelo mtico do candombl - uma cosmoviso do mundo que inclui o transe e a incorporao de energias atemporais. Tento trazer tona as intimidades da capoeira sob uma tica brasileira que privilegia a msica e o corpo em movimento.E, obviamente, enfoco as obras literrias e estudos acadmicos, que comeam nos 1800s e vem at nossos dias, num total de mais de 150 autores e 800 citaes. O estudo da malcia - a filosofifa e a tica da capoeira - um terreno praticamente virgem, e a que espero perpetuar minhas idias e minha viso, pelo menos por algumas dcadas - um objetivo de todo mestre de capoeira. Por outro lado, alm dos sonhos e objetivos pessoais de "um mestre de capoeira", uma das fontes deste livro foi a pesquisa acadmica do meu mestrado e doutorado. Muniz Sodr, no incio do curso de psgraduao na ECO-UFRJ, assim sintetizou sua linha de pesquisa: Procuro determinar os eixos da construo da identidade no Brasil, tanto do ponto-de-vista das classes hegemnicas quanto do ngulo das subjetividades ditas subalternas. Isto implica a anlise dopensamento identitrio em obras j clssicas da produo intelectual brasileira, dos dispositivos de produo de sentido montados por meios de comunicao de massa e, por outro lado, compreender as estratgias populares de continuidade institucional que interagem com a cultura hegemnica - formas religiosas, ldicas, atividades cooperativas, etc. -, fixadoras de normas de conduta capazes de configurar alternativas para a tica social imediata. Em resumo: as pesquisas se inserem no campo da comunicao, eticidade e cultura pblica. (3) A gente toma uma atitude aqui, outra mais adiante, e se houver uma coerncia, ainda que compreensvel somente para ns mesmos; se houver um mnimo de talento e de viso, e muita dedicao e suor; se houver uma infra-estrutura poderosa (no meu caso, acapoeira); depois de trs ou quatro dcadas chegamos num lugar que nosso, e de mais ningum. Tem sido uma viagem e tanto. E esse "tijolo" - Capoeira, a construo da malcia e a filosofia da malandragem, 18002010 -, o primeiro volume da "Trilogia do Jogador", a materializao de uma parte desta viagem. Espero que voc curta estas pginas, da mesma forma que eu curti escrevendo-as. Rio de Janeiro, junho de 2011. Nestor Capoeira. NOTAS: (1) PASTINHA, V.F. (Mestre Pastinha). Caderno e lbum do Centro Esportivo de Capoeira Angola. Salvador: caderno manuscrito, s/data (aprox. 1960). P. 11a. A grafia original foi mantida. (2) PASSOS NETO, Nestor S. dos (Nestor Capoeira). Ritual roda, mandinga x tele-real. Disst. de mestrado, ECO-UFRJ, 1995. Orientador: prof. dr. Muniz Sodr. _____. Jogo Corporal e comunicultura, acapoeira como fenmeno civilizatrio com real aptido comunicativa e transcultural. Tese de doutorado, ECO-UFRJ, 2001. Orient.: prof. dr. Muniz Sodr. (3) SODR, Muniz. Identidade e Cultura. Problemas Tericos da Comunicao VIII. Rio de Janeiro: Doutorado da Escola de Comunicao da UFRJ, 1 semestre de 1998.1 - UMA TICA NEGRA E ALTERNATIVA "Branco faz letra, Preto faz treta" (Ditado popular dos terreiros baianos apud Muniz Sodr) Fica evidente que, apesar da saga da capoeira comportar lutas e valentes, ela tambm traz os traos de uma histria. A histria de sua asceno e insero na sociedade global, bem como o confronto de seus valores com os de outras prticascorporais, e tambm com os de outras classes sociais. esta dimenso, a do valor, que traz para a capoeira a questo tica. Neste captulo vamos tentar explicitar a Malcia como uma "tica Negra e Alternativa" (no jargo acadmico), ou como a "Filosofia da Capoeira" (no palavreado de meus camars). Um al do autor Quando jovem, adolescente ou quis menino, lembro de ficar deslumbrado com as crnicas sobre futebol do genial teatrlogo, escritor, jornalista, e "p-de-arroz" (torcedor do fluminense) fantico, Nelson Rodrigues. Sombra das Chuteiras Imortais! Cada partida de futebol era um pico; uma Ilada; uma Odissia! Aquiles e Ulisses de chuteiras! A trama que rolava no gramado era perpassada por aes de entidades msticas e foras do alm. Paralelo a isto, os cronistas na pena e nos escritos de Nelson Rodrigues tornavam-se poetas assediados pelas musas,e/ou filsofos dignos de Scrates e Nitzche. Qualquer esporte, por mais empolgante, sempre , ao meu ver, uma coisa muito limitada: juzes (!), cronmetros (!!), vencedor e vencido (!!!), etc.. Nelson Rodrigues, no contraponto, criava a filosofia, a mgica, e o mistrio compatveis com a paixo abissal - o futebol - de um povo - o brasileiro -, que tem na espiritualidade e no misticismo (sem o sentido pejorativo) uma de suas maiores foras e riquezas. Nelson resgatava as limitaes espirituais e filosficas do esporte breto. Mas o projeto de Nelson, que talvez nem fosse "projeto" na cabea de seu autor, no vingou. Melhor dizendo, no teve seguidores nos que vieram depois do "Anjo Pornogrfico". Estes outos - exceto Joo Saldanha e talvez mais dois -, contemporneos de nossa "globalizao", eram apenas mais alguns "idiotas da objetividade" que no enxergavam o "bvio ululante" - para usar, entre aspas, dois conceitos do genial Nelson Rodrigues. O insucesso na continuidade no foi porfalta de misticismo e espiritualidade dos jogadores - quase todos tem sua preces e mandingas, e no adentram o gramado sem fazer o sinal da cruz, ou traar rapidamente um "ponto riscado" no tapete verde vegetal. Nem to pouco a um ralo e azedo atesmo dos massagistas, preparadores fsicos, torcedores; trata-se de uma massa de macumbeiros, cristos, e espritas! O futebol continuou sendo apenas "esporte" - apesar de ser a "paixo nacional", nos dizeres da propaganda de uma marca de cerveja -, sem as dimenses da filosofia e da espiritualidade, pois no haviam outros gnios de planto entre os locutores e comentaristas; nem tampouco entre cartolas e dirigentes; e tambm pela mentalidade rasa e rasteira tpica da midia, no Brasil e no mundo. Felizmente a capoeira no sofreu as limitaes do futebol; limitaes que foram temporariamente expandidas pelas crnicas de Nelson Rodrigues. A capoeira veio do mesmo caldeiro cultural do samba, da malandragem, do candombl, da umbanda. E por isso, desdeseu incio, sempre - a capoeira - foi atravessada pela msica, pelo sungue, pela "filosofia", e pela espiritualidade. O que faltava era explicitar esta filosofia e esta espiritualidade (j que a msica, o berimbau, e o jogo, esto a, firmes e fortes). O que faltava era descrev-la em termos tais que leigos e capoeiristas e letrados e acadmicos pudessen finalmente entend-la e apreci-la em toda sua exuberante, luxuriante, e despudorada beleza: Malcia! Malcia: tica e Filosofia Alternativas! Malcia: tica e filosofia alternativa, negra, mulata, brasileira, marginal. Malcia: tica e Filosofia da Capoeira! No meu primeiro "livrinho", em 1971, na verdade um panfleto xerocado de 40 pginas para meus alunos ingleses da London School of Contemporary Dance, eu falava da malcia a "filosofia da capoeira". Eu falava do mstico, do espiritual, do oculto. E nunca mais parei de veicular e aprofundar estes conceitos nos meus livros que foram sendo publicados no Brasil e, mais tarde, em oito pases; - em 1981, O Pequeno Manual do Jogadorde Capoeira; a chamada na capa dizia: "Descubra a dimenso de um corpo livre"; - em 1985, no Galo J Cantou: "No Oriente exite o Zen, a Europa desenvolveu a psicanlise, no Brasil temos o Jogo de Capoeira"; - e em 1992, o livro terceiro livro chamavase , "Os fundamentos da malcia"; e afirmava que a yoga da ndia, e a capoeira do Brasil eram atividades "homeomorfas" - tinham funo, de certa forma semelhante, cada uma em sua cultura. Eu buscava, na herana dos velhos mestres de ontem, os elementos para "criar" uma "filosofia" que atendesse aos anseios e necessidades dos capoeiristas de hoje. Mas sempre tendo o cuidado de, paralelo s viagens metafsicas, tambm apresentar o Jogo com o seu "Histrico", e os mtodos de treinamento que eu tinha usado e ensinado durante dcadas, com ilustraes em sries de desenhos, tpicos de qualquer manualzinho farjuta de dana, luta, etc. Quando li, com uns 50 de idade, no mestrado e doutorado da ECO-UFRJ, sobre a "dialtica da tradio", do Eduardo Coutinho;a importncia da "alegria", com Muniz Sodr e Winicott; o lance dos nmades e sedentrios, de Deleuze e Guattarri, em Mille Plateaux; a "inveno das tradies" de Ranger e Hobsbawn, etc.; que caiu a ficha: o mundo acadmico realmente tinha contribuies positivas e concretas para o entendimento terico da tica e filosofia do Jogo da Capoeira. E finalmente em 2001 comecei a elaborar um "tijolo" que englobasse o mestrado e o doutorado com seus autores, meus livros, minhas anotaes e memrias. Um escritor ou estudioso "de verdade" provavelmente teria feito o mesmo trabalho em um ou dois anos. A culpa da demora foi da praia; das noitadas cariocas e das consequentes ressacas; das viagens ao estrangeiro, trs a seis meses cada ano; das aulas e rodas de capoeira; e principalmente dos namoros e do gentl convvio com o sexo "frgil". 1.1 - A TICA A tica dos gregos e das sociedadesarcaicas Para os antigos gregos - em especial os esticos -, tica era a procura de uma boa "maneira de ser" ou a "sabedoria da ao". Eu gosto disto: a sabedoria da ao! Para os modernos, tica se confunde com moral. Mas necessrio distinguir tica de moral; e, a partir da, explicitar a minha concepo de tica, para que o leitor possa saber o que estou tentando dizer com "a tica da capoeira": Ethos (c/ eta breve) = costume, carter -> mors, moris (latim) -> moral Ethos (c/ eta longo) = morada -> tica deste Ethos, com eta longo no grego morada, mas que tambm abarca o significado de costume e carter -, que vem "tica": regras e valores que do forma territorializao do sujeito, organizando em vrios nveis a morada do grupo num determinado lugar e procurando determinarlhe os objetos bons ou supremos; o Bem. (4) Para o homem das sociedades tradicionais ou arcaicas, a tica - uma tica das virtudes,e no dos puros deveres, como na modernidade - apresenta-se como a regra do ascendente, do ancestral, do "pai fundador"; uma teoria do ser, que indaga sobre as finalidades da existncia humana e sobre os meios de atingi-la. A "regra tica" outra coisa que a "lei moral" - ethos com eta breve (grego), traduzido (latim) como mors, moris. A "moral" o conjunto de prescries normativas, consideradas a partir de coordenadas de tempo e lugar; uma lei (abstratamente) universal que toma a si mesma por objeto. A partir de Ccero se faz a confuso tica/moral, pela traduo de ethos (com eta breve, do grego) em mors (latim). Confuso que continua modernamente com a tica como uma experincia da conscincia individual, algo a ser regulamentado, por exemplo, pelas corporaes profissionais (a "tica" mdica, dos advogados, etc.; que, na verdade, deveria ser a "moral" mdica, dos advogados, etc.; algo que se julga "absoluto e verdadeira", mas que muda com o tempo, e de lugar para lugar).Por outro lado, havia, entre os gregos da Antiguidade, uma imbricao entre "tica e poltica". Muniz Sodr ensina: Partiam da as condies para que os cidados pudessem adotar um ponto de vista crtico e racional sobre as relaes do indivduo com a comunidade. (5) Plato afirmava que o conhecimento terico bsico do cidado era "o saber essencial da dik, a virtude da justia"; Aristteles distinguia "o sentido estrito da justia (o judicirio) de um sentido geral". (6) Dik (a virtude da justia) implica, assim, uma experincia ontolgica, ou seja, uma experincia, ao mesmo tempo mitolgica e histrica, do modo como se realiza e se integra toda realidade dentro da Cidade, o que a faz permear todos os nveis da existnciahumana, sejam reais ou potenciais. No nvel real, a vontade de justia funciona como o valor cvico constitutivo do homem democrtico, ao qual se subordina at mesmo a virtude da valentia guerreira. O potencial assinala para a possibilidade que tem o homem justo de afirmar a sua liberdade, superando o real j dado e fazendo aparecer o novo, condio essencial preservao e ao crescimento do grupo, inscrita como princpio (tico) originrio. (7) Trata-se, a, da antiga polis (cidade) grega. Sodr explica que, mais tarde, com o cristianismo, a tica "desloca-se dos quadros comunitrios para o mundo inteiro, pregando a igualdade do ser humano". E em seguida, na modernidade, o pensamento tico vai se tornando laico at chegar filosofia novecentista, "quando os problemas sociais e espirituais inserem-se na histria" (finalidades morais, deveres, etc.),reduzida "aos imperativos de funcionamento da sociedade moderna". (8) A malcia - "tica da capoeira" -, que vamos apresentar nas prximas pginas, se aproxima muito mais do Ethos, com eta longo do grego antigo, "a regra do ancestral", "valores que do forma ao sujeito, organizando em vrios nveis a morada do grupo num determinado lugar e procurando determinar-lhe os objetos bons ou supremos". A malcia, que vamos apresentar nas prximas pginas, pouco tem a ver com a "tica", tal como entendida na atualidade, reduzida "aos imperativos de funcionamento da sociedade moderna". A tica, segundo Badiou A palavra "tica" a coqueluche de nosso tempo depois de um longo confinamento nos dicionrios e na prosa acadmica, diz Badiou um nome que se tornou razoavelmente conhecido nos crculos acadmicos. Inicialmente Badiou (9) prope examinar esta "principal tendncia 'filosfica' domomento", mostrando tratar-se de puro niilismo e uma ameaadora negao de todo pensamento. Num segundo momento, ao invs de ligar tica a "categorias abstratas" (o Homem, o Direito, o Outro, etc.), tenta relacion-la a situaes (especficas e no generalizadas), resgatando-a do discurso da mentalidade conservadora e de uma hipcrita piedade pelos infelizes e vtimas. Badiou faz uma crtica radical da "ideologia tica" e de suas ramificaes - a viso do Homem como vtima, a bio-tica, a tica das diferenas, o relativismo cultural, o exotismo moral, etc. -, propondo que na base desta ideologia encontramos o conceito do "Homem Universal" - uma maneira de discriminar todo homem no-branco europeu -, desaguando numa retomada do moralismo religioso ou numa perigosa mistura de conservadorismo e pulso de morte. A seguir, Badiou tenta reconstruir um conceito admissvel de tica imbricado ao devir das verdades (o Bem) - que dar consistncia ao que algum . Neste processo, Badiou apresenta a "verdadeira figura do Mal". O "Mal" como a face sombriado "Bem"; uma possibilidade aberta pelo encontro com o "Bem" em seus trs aspectos: - o simulacro (ser o fiel seguidor de um falso evento); - a traio (trocar a verdade pelo interesse pessoal); - o desastre (crer numa "verdade total"). Quando confrontamos a proposta de Badiou (e sua crtica "ideologia tica") com a "tica da capoeira" - a malcia -, parece haver algo em comum. Alm disto, as trs categorias do "Mal" (de Badiou), so reas bem conhecidas no jogo de capoeira: - o "simulacro" de Badiou, que seria a "capoeira-esporte" (uma prtica com os gestos da capoeira, mas que obedece s regras do esporte, e renega a origen negra e marginal), ou o estilo "eu sou o mais (o nico) correto" (que chamaremos de "capoeiradogma"); - a "traio", que seria seguir normas de conduta da sociedade introjetadas na capoeira; - e o "desastre", que seria se deixar enganar pela falsidade dos valores doSistema. Mas em contraponto, a proposta de Badiou, de uma tica imbricada ao devir das verdades e que, de certa maneira, define o "Mal" (que seria apenas a face obscura do Bem), causa no capoeirista um sentimento de algo que foi simplificado ao extremo. Este sentimento talvez seja explicado por um comentrio do saudoso mestre Paulo dos Anjos. Sua av certa vez lhe falou, a respeito do Mal: "no tenha medo, mas no brinque com ele". Ou seja, a entram outras dimenses muito diversas das proclamadas por Badiou. Vejamos este canto de capoeira: Meu camarado, o capoeira muito mais que um lutador que d pernada. Ele um artista. Sua fora a alegria de viver. Ele conhece a palavra-chave "Amor" e no entanto o capoeirista sabe: a maldade existe. Nestor Capoeira (10)Da mesma forma que enfocamos as idias de Badiou, poderamos enfocar outros expoentes do atual pensamento ocidental. Mas mesmos os que so considerados "alternativos", mesmo os cabeas que criticam as babaquices do "politicamente correto", no conseguem englobar a "filsofia" ou a "tica da capoeira". No apenas pela falta de uma viso, como a da me de mestre Paulo dos Anjos que privilegia a existncia de foras e energias atemporais, como no candombl; mas principalmente devido a malcia estar intimamente ligada a um saber corporal (enquanto os pensadores ocidentais esto fundamentados no intelecto, no saber racional). A malcia, a mandinga, e os fundamentos Talvez para a Capoeira no seja to importante "o que ?" ou "porque?"; mas, sim, "como lidar" com determinada situao (ou pessoa), "como viver" neste nosso mundo. Poderamos at dizer que, na capoeira, o corpo mais importante que o intelecto - a sabedoria da ao.A tica da capoeira, as vezes chamada de fundamentos ou malcia ou mandinga, apreendida e absorvida em grande parte atravs da corporalidade. Vejamos: ...atravs desta astcia especfica aos praticantes do jogo denominada malcia, coisa impossvel de ser treinada, independe da (boa) forma fsica, transmitida de mestre a aluno, de capoeirista a capoeirista, (principalmente) atravs do jogo, (e tambm atravs) da convivncia, da observao dos altos e baixos que vo pintando atravs dos tempos. (11) Muitos jogadores usam os termos "fundamentos", "mandinga" e "malcia" como sinnimos. Alguns, indagados sobre a diferena , so muito vagos e mostram-se perplexos e mesmo contrariados ao explicitar estes conceitos em palavras. No entanto, em outras ocasies, estesconceitos so utilizados de forma diferenciada, mais ou menos da seguinte maneira: - A malcia: as vezes tambm chamada de "a filosofia da capoeira" pelos capoeiristas, o "saber" que o capoeirista vai adquirindo atravs dos jogos, com diferentes pessoas, em diferentes rodas, atravs dos anos. um "saber" que aprendido pelo corpo, e do corpo extravasa para a mente, e para o "esprito" (portanto, um saber corporal, e no um saber racional que se aprende com a mente, p. ex., ao estudarmos um livro). A malcia engloba determinados aspectos como mardade, falsidade, e traio, que no tem exatamente o mesmo sentido destas palavras no dicionrio, ou no uso que as pessoas fazem delas. Estes conceitos, para o capoeirista, absolutamente no tm uma conotao negativa; na verdade so qualidades necessrias aos que querem bem jogar capoeira. - Os fundamentos: a. inclu a malcia (saber corporal); b. conhecer o ritual (por exemplo, comoorganizar a roda com os trs berimbaus, os diferentes toques de berimbau que "puxam" diferentes tipos de jogo", erc.); c. o conhecimento da vida e da "filosofia pessoal" dos Velhos Mestres, como Bimba (1900-1974), Pastinha (1889-19810, e muitos outros; d. e tambm as estratgias e tcnicas corporais de jogo, luta, e treino. Em suma, os fundamentos incluem "sabedoria corporal" e tambm "sabedoria racional". - A mandinga: um conceito um pouco mais amplo. O mandingueiro possui intimidade com a magia, com a feitiaria, e estes saberes so utilizados durante o jogo e na vida "real": rezas para "fechar corpo", para se "tornar invisvel" quando se est sendo perseguido, etc. Mestre Leopoldina cantava: Agora sou mandingueiro; agora sou mandingueiro! Olho grande no me pega, nem feitio me derruba,pois su sei rezar quebrante! Para existir de fato a transmisso da malcia, dos fundamentos, e da mandinga, dos mais experientes para o iniciante; assim como a transmisso do ax (a fora vital) da capoeira; essencial a convivncia com os Velhos Mestres que na minha juventude 1960s -,eram Bimba e Pastinha, e outros; e, hoje em dia - 2011 -, so os mestres de mais de 70 anos de idade como Leopoldina (recentemente falecido), Joo Grande, e Joo Pequeno. Gamb Velho e a gostosurazinha holandesa Falou em "corpo" e inevitavelmente aparece a coisa do "sexo". As mulheres, e o relacionamento sensual e sexual com as mulheres, so fatores bsicos da maneira do capoeirista "estar e ser no mundo" - alis, poderamos dizer o mesmo do sambista e do malandro, que fazem parte do mesmo caldeiro cultural. Isto em oposio ao relacionamentomonogmico do casamento, que em poucos anos descarta a teso e o sexo. E tambm em oposio a viso do "machismo", onde um homem acredita ter direito a vrias mulheres, mas estas mulheres tm de ser "fiis" somente a ele. Por outro lado, um livro como este que pretende ser "srio" e um tanto "acadmico", corre o perigo de ser chato. Ento tive a idia de colocar, aqui e ali, pequenas crnicas, mais leves, que eu espero serem "divertidas". um pouco como no Jogo de Capoeira: existem os golpes (o "rabo-de-arraia", p.ex.) e as quedas (como as bem conhecidas "banda" e "rasteira"); a parte "sria", que d peso capoeira. Mas tambm existem os "floreios" (os saltos e acrobacias), a "ginga" com o seu sungue, a msica e o berimbau. No entanto preciso frisar que o "floreio" e a "ginga" so to importantes quanto os "golpes e as quedas". E, de forma semelhante, as pequenas estorinhas, como esta do "Gamb Velho e a gostosurazinha holandesa", so to importantes como os desenvolvimento tericos "srios" com muitas citaes de autores consagrados. como seos "desenvolvimento tericos srios" formassem o esqueleto; mas so as estorinhas que fornecem a carne, a pele, os cabelos, enfim todo o "visual" que o leitor precisa conhecer para melhor entender os capoeiristas - entre eles, o autor deste livro e a capoeira. Vero; sol; domingo; onze da manh; feira de So Cristvo; Rio de Janeiro. A roda est formada sombra de uma grande rvore. Os raios de sol filtrados pela folhagem desenham um delicado rendado de luz e sombra no cho de terra batida. Trs berimbaus, dois pandeiros, um atabaque e um agog. Uns vinte jogadores, respondendo em unssono ao refro puxado por um dos capoeiristas, compem o crculo dentro do qual estou jogando com um conhecido e respeitado mestre da velha guarda. Ao redor, umas cem pessoas, a maioria nordestinos - pees de obra, feirantes, domsticas, garons, camels, porteiros de edifcio, bebuns, malandrecos, pivetes edesocupados. Eu tinha, com muita cerimnia e respeito, perguntado ao velho mestre se ele jogaria comigo. - um prazer. E, vontade como se estivesse de pijama e chinelos na sua prpria varanda, passou um brao ao redor dos meus ombros e me levou at o p do berimbau, onde nos acocoramos esperando a dupla que estava jogando terminar. Quando perceberam o coroa agachado frente a mim, esperando sua vez, finalizaram rapidamente a vadiao. O velho capoeirista entoou um canto de louvor a Besouro Cordode-Ouro, lendrio capoeirista de corpo fechado nascido em Santo Amaro, no comeo do sculo XX, que "bateu na polcia, em soldado e gener". Adeus Besouro, adeus, adeus, adeus Besouro. Na hora de sua morte, abriu a boca e falou: "Partirei! Do mundo no levo saudade".Em seguida puxou a ladainha e o coro respondeu repetindo os mesmos versos: , menino bom... (e apontava para mim, acocorado sua frente) Tem fundamento... Sabe jogar... A capoeira, camar! Eu estava pra l de emocionado. O p do berimbau, antes do comeo de um jogo, um lugar mgico e estranho. dali que a gente parte pra dentro da roda, pra dentro do Jogo, e pra dentro da capoeira. como se fosse o portal entre o universo macro do mundo, e o microcosmos da capoeira. A roda vazia. Os espectadores em volta. O ax da capoeira. Sem falar no calor do vero e no ritmo hipnotizante - toque de angola -, criando um outro estado de esprito e de realidade. Uma esgarada nuvem de poeira avermelhada levantada pelos movimentos do jogo anterior pairava perto do cho, numa atmosfera de sonho. O velho jogador fez sua mandinga - traou com o dedo um ponto riscado na terra -,inclinou-se na minha direo, me apertou a mo. O rosto e o corpo do velho, salpicados por finos raios de sol, era totalmente humano e ao mesmo tempo tinha qualquer coisa fortemente animal, de ona ou tigre. Ele apertou minha mo e em seguida, em cmera lenta e sem nenhum esforo, levantou as pernas para o alto, o peso do corpo apoiado nos braos e, antes que eu pudesse imit-lo, rolou - apenas os ps e mos tocando o solo, a cala de linho e a camiseta sem mangas imaculadamente brancas - pro centro da roda. O jogo tinha comeado. Ele jogava quase sorrindo. Descontrado, as sobrancelhas arqueavamse, todo o rosto em mmica harmnica com a movimentao do momento, tal qual inspirado saxofonista. A comparao com o sax no choro Pixinguinha - perfeita: o velho jogava uma angola clssica com muito floreio de cabea pra baixo; movimentao em p fluida e sinuosa com sbitas quebradas de corpo; golpes controlados amplos e circulares. Um jogo atemporal que remetia prpriaancestralidade de jogadores de outrora para alm das divises dos estilos da capoeira. O velho estava em grande forma. E eu, encantado - no sentido mesmo de encantamento: enfeitiado -, seguia seu jogo respondendo a seus movimentos, raras vezes tomando a iniciativa, temeroso de quebrar aquela magia que poucas vezes tinha visto e menos ainda experimentado. Alm disso - claro! - eu mantinha minha juventude e agressividade "no sapatinho". Apesar do velho estar em grande forma, ele j tinha mais de sessenta, e eu - naquela poca - mal chegava aos trinta. O coroa tinha mais tempo de capoeira que eu de vida. Me lembro que ele, de p, quebrou o tronco prum lado e, ato seguinte, o corpo muito ereto e as pernas juntas, voltou num belo giro com os braos abertos e as mos espalmadas. Eu me esquivei, me abaixando de modo que uma de suas mos, desenhando um largo crculo no ar, passou por cima de mim. Cresci num movimento lento e suingado e me preparei para lanar a perna esticada num largo, vagaroso, controlado, e clssicomovimento de ataque: a meia-lua-de-frente uma espcie de resposta, com o p numa trajetria horizontal circular na linha da cintura, ao seu movimento de mo na altura da minha cabea. O inesperado! O velho num movimento lento, de costas e braos abertos, terminando seu giro. Eu, embebido na esttica sinuosa daquele jogo, comeando a executar a meia-lua-defrente. Sbito, um p. Melhor dizendo: a sola de um sapato. A sola de um sapato que surgiu do nada, a menos de um palmo de meu nariz. A sola de um sapato, parando to subitamente quanto tinha aparecido. A sola de um sapato, imobilizando-se por uma frao de segundo num momento cristalizado - at hoje, tantos anos depois - tal qual lmpida fotografia. O espanto. A adrenalina. No tive tempo nem pra pensar.Quando dei por mim - expresso clich perfeita para aquele momento -, s pude ver o velho j um pouco distante, agachando no p do berimbau e me chamando com o olhar para que, dali, recomessemos o jogo. Me aproximei ainda um tanto apalermado e fora de centro devido surpresa. O coroa, j acocorado, sorria maliciosamente para mim. Fui me achegando ainda atarantado. O velho levantou-se rpido. Um cotovelo cresceu no meu campo visual, mas agora meu paternalismo de jovem em relao velhice espantado pelo susto - meus reflexos funcionaram: desci arqueando para trs, torci o corpo, as mos tocaram o cho, o tronco girou por cima, e j estava longe, de p no meio da roda olhando pro velho que agora ria abertamente. Ele abriu as mos e estendeu os braos na minha direo, novamente me convidando a me aproximar. Do p do berimbau entoou um canto, gesticulando comicamente e indicando a sua prpria pessoa: - Urubu come folha? E o coro respondeu: - conversa fiada!A feira de So Cristovo tinha crescido, tinha virado moda entre a rapaziada da zona sul do Rio, mas de certa maneira continuava a mesma. Era difcil acreditar que faziam mais de vinte anos que eu no pintava na rea. E tinha sido necessrio aquela gostosurazinha holandesa - "me disserram que tem um forr muitou legal" - para me deslocar at l. Virei a noite tomando cachaa, cerveja, queijo de coalho frito, e danando forr com a ruivinha. Estava tudo muito bom. Estava tudo muito bem. Mas, apesar da esfregao ao som da zabumba e do nvel alcolico, a coisa tinha rolado pro contexto da amizade. Pro companheirismo de uma jovem iniciante de Amsterdam, com um capoeira experiente do Rio de Janeiro. - Nosso encontrro foi taaan legal! As vezes eu fico chateada com os mestrres mais nouvos. No conseguen relaxar e curtir! O tempo inteirro s pensan en sexo, sexo, sexo... muito chato. - normal. outra cultura. O pessoal daqui mais ligado no lance da sensualidade. As vezes fico pensando que o sol e o calor. - Certo. Tudou bem, a sensualidade. Masficar insistindo, insistindo... chato. Eu sorri um sorriso amarelo, concordando em gnero, nmero e grau: malandramente, e sem fazer grande alarde, a ruivinha tinha jogado a possibilidade de sexo para escanteio. E naquela do "encontro taaan legal", o dia ia raiando. A noite clareou. Os msicos iam guardando seus instrumentos. E percebi que no ia dar pra dar o bote. Pacincia. De qualquer maneira tinha sido, realmente, uma noite muito legal. Propus procurarmos uma carne seca desfiada pra encerrar o expediente. E foi a que deparamos com a roda de capoeira, praticamente no mesmo local daquela outra de vinte anos atrs. Eu ia passar direto mas a gringuinha novata apaixonada e entusiasmada - quis ver o jogo "purro e no seu habitat naturral, forra da academia". Eu - naquela de anfitrio gentil - achei "uma tima idia". E como no poderia deixar de ser, mal passado uns dois minutos, um jovem - todorespeitoso - me reconheceu e veio pedir pra jogar comigo. - Que muito legal! Que muito legal! bateu palmas a ruivinha cheia da empolgao e espontaneidade que me faltavam. - Eu nunca te ver voc jogar. Vai ser muito bom nesta roda bonita. Mas o p do berimbau antes do comeo de um jogo um lugar mgico estranho. A roda vazia, os espectadores em volta, e o ax da capoeira. O calor de vero e o ritmo hipnotizante toque de angola. Uma esgarada nuvem de poeira avermelhada levantada pelos movimentos do jogo anterior pairando perto do cho criando ainda mais uma atmosfera de sonho e irrealidade. E sem querer e sem perceber, ao me acocorar eu j estava embarcado. Uma suave euforia e uma sensao de continuidade no tempo - herana! E, completamente presente aqui e agora, era tambm como se eu vivesse a reprise de um filme com os papis invertidos.O rosto e o corpo do jovem jogador aococrado minha frente, salpicados por finos raios de sol, era totalmente humano e ao mesmo tempo tinha qualquer coisa fortemente animal, de gato ou de ona. Fiz minha mandinga, cumprimentei o garoto e rolei - apenas os ps e as mos tocando o cho - pra dentro da roda. O jogo tinha comeado. Quando dei por mim - expresso clich perfeita para aquela situao -, o jogo tinha terminado. Eu tinha entrado de tal forma na parada que no senti o tempo passar; na verdade, nem sabia direito o que tinha rolado, tal tinha sido minha concentrao no aqui e agora do Jogo. O garoto se aproximou - pude ver que ele estava emocionado -, apertou minha mo e num impulso me deu um forte abrao. A platia aplaudiu... deve ter sido um jogo legal. Mas fiquei sentindo que faltava alguma coisa. Como se eu tambm tivesse de ter aprontado algum lance magistral e - herana! -, na sequuncia, cantado para o jogadormais novo, "urubu come folha?", da mesma forma que aquele velho mestre tinha feito comigo h mais de vinte anos atrs. Me benzi no p do berimbau e fui saindo da roda. A ruivinha veio ao meu encontro. Segurou minhas mos e engatou o olhar no meu. - Foi muito, muito legal... muito obrrigado. Tocou meu rosto de leve com a ponta dos dedos e - eu juro, meu camarado, no exagero! - seus olhos azuis estavam mareados de lgrimas. Ainda de mos dadas pegamos um txi e fomos para um motel. Naquele mesmo momento, quando amos entrando no taxi, pude ouvir algum na roda puxando um canto: - Urubu come folha? E o coro respondeu empolgado e em unssono: - conversa fiada! NOTAS: 4 SODR, M. O social irradiado. So Paulo: Cortez, 1992. Pp.49-54. 5 SODR, Muniz. As estratgias sensveis.RJ: Vozes, 2006, p. 131. 6 Idem, ibidem 7 Idem, ibidem 8 Idem, ibidem. 9 BADIOU, Alain. L'thique, essai sur la consciece du Mal. Paris: Hatier, 1993. 10 CAPOEIRA, Nestor. Galo j cantou. RJ: ArteHoje, 1985, p.107. 11 Ibidem, p.110. 1.2 - O CORPO O corpo tem sido encarado de formas diversas no tempo e tambm conforme o lugar. J que a malcia - a tica da capoeira - algo que se transmite, e se apreende e encarna, com o corpo, e no com a mente (ou atravs meditao, etc.), vamos ver como entendemos o corpo nos nossos tempos de globalizao. Padre Antnio Vieira, na poca da escravido, aconselhava, ao rei de Portugal a no dar anistia aos quilombolas (negros fugidos que se refugiavam nos quilombos); eressaltava que "fugindo e passando-se s matas com todo seu cabedal que no outro mais que o prprio corpo". A frase de Vieira atravessa a fantasia ocidental por inteiro: o negro, a, classificado como um animal; s e apenas corpo, sem mente, e sem alma. No entanto, a verdade que os africanos do corporalidade um estatuto complexo, bem diverso da "simplicidade de um animal". O corpo entre os nags A capoeira se desenvolveu no caldeiro cultural afro-brasileiro, e por isto interessante entender o corpo dentro deste contexto de razes africanas. Muniz Sodr explica (12) que os nags, diferente (por exemplo) do zen-budismo, no suprimem corpo a procura de um estado absoluto de "no-ego". O corpo, para o africano, est vinculado ao sagrado, e o sagrado percebido como uma experincia de apreenso de razes existenciais. A experincia sacra mais corporal experincia concreta - que intelectual. Maissomtica que psquica - psiquismo entendido como registro de interioridades que no se ritualiza. O africano no acredita num deus que no dance, num fiel que no mexa. A corporalidade na arkh - sociedade arcaica mas no necessariamente "primitiva" - no se define em termos exclusivamente individuais mas em termos grupais, ou melhor, em termos ritualsticos do grupo (como vemos, no Brasil, o candombl e a umbanda). O corpo - que ritual e grupal - se integra ao simbolismo coletivo na forma de gestos, posturas, direo de olhar, inflexes micro-corporais. H algo do grupo no corpo. Quando se olha para uma pessoa que de Oxal, j se pode adivinhar como esta pessoa . No rito, o corpo encontra a totalidade torna-se sujeito e objeto -; um outro enfoque diverso da meditao com que os orientais querem abolir o ego e atingir a verdade csmica; e tambm um enfoque diferente da cultura ocidental que quer comprender (e dominar) o mundo atravs da mente, do pensamento racional, e da cincia e tecnologia.O rito, para oa africanos, no uma tcnica externa ao corpo do indivduo, mas um lugar prprio plena expanso do corpo. O rito, para os orientais, de interiorizao; para os africanos, implica uma exteriorizao. O africano tem conscincia da importncia do rito e o coloca no centro de sua experincia, inclusive para entrar em contato com deus, no atravs do sacrrdote, mas atravs do transe (como vemos, no Brasil, quando um mdium incorpora um dos orixs, ou uma entidade, numa cerimnia do candombl ou da umbanda) Para o cristo, o rito transformou-se numa forma burocrtica - a missa, etc. -, deixando de ser uma comunho direta com deus. Nos terreiros antigos da Bahia, quando se queria perguntar "como vai voc?", usava-se a frmula "seu corpo est forte?" Na minha juventude, entre os capoeiras e a malandragem do samba, era comum perguntar: "como vai essa fora?". O corpo era assim entendido como uma forma de energia, como uma "fra"; mais que um simples objeto, o corpo era umaenergia composta de elementos vegetais, minerais, animais. O mesmo ocorre com os deuses: a divindade est nos deuses, mas tambm no mineral, no vegetal, e nos homens. Nesta cultura de arkh (arcaica) - dos terreiros no Brasil que influenciou fortemente a capoeira baiana que tem "um fio-terra ligado religio", como Muniz Sodr j nos ensinou (12) -, o que ganha primazia a relao integrativa do corpo com o territrio; do corpo com os outros homens, mas tambm com as guas (Iemanj, Oxum), os vegetais (Osse, Oxossi), os minerais (Ogun, Xang),etc. Uma relao de integrao com a prpria realidade do corpo humano constitudo por todos estes elementos. O corpo como um microcosmo; um territrio tanto fsico quanto mtico. Conquista-se o espao e conquistamos, tambm, nossa prpria pessoa. O corpo tambm pode ser concebido como uma poro de espao com fronteiras e defesas. Na civilizao akan, no atual Ghana e na Costa do Marfim, o prprio corpo visto comoum conjunto de lugares de culto, como um centro para onde convergem elementos csmicos, elementos ancestrais; elementos coletivos e individuais se entrecruzam na territoriedade corporal. O homem arkh permevel ao mundo e ao cosmos. A diviso estrutural entre consciente/inconsciente, que no mundo ocidental moderno define o psiqu do sujeito, no a mesma coisa que a abertura originria para mundos compossveis, para a modulao (como na msica, de um acorde maior a outro, menor) existencial - o transe, por exemplo, uma destas modulaes. O transe, rejeitado por cristos e zenbudistas - que o consideram histeria ou intoxicao religiosa -, acontece como experincia de passagem de um plano para outro, como a vivncia somtica de um princpio csmico que permite reinterpretar, no aqui e agora, o arkh (o arcaico, a ancestralidade). Nada, a, "inconsciente", diz Sodr (12), pois o inconsciente a pressuposio do recalcamento (na viso da psicanlise, tpicade nossa cultura ocidental); e, em oposio, no contexto nag nada est recalcado, pois tudo se ritualiza, tudo se visibilisa na dramaticidade do rito. Divindades e ancestrais, origem e morte, tudo isto se reencontra no instante do deslocamento ritualstico do corpo no espao, na dana, nos diz Muniz Sodr (12), referindo-se mais especificamente ao candombl - mas poderamos ampliar este enfoque, at cert ponto, para a capoeira. Configura-se, a, uma estrutura complexa de personalidades, uma estrutura complexa de identidades, na sociedade brasileira, que faz do indivduo iniciado um verdadeiro templo vivo, uma articulao especial de instncias psquicas pertencentes tanto ao registro mtico quanto s identificaes pessoais. Existe, no candombl, uma identidade mtica composta por vrias entidades presidida pelo "dono da cabea" (um determinado orix) daquela pessoa. A relao entre estas identidades, nos terreiros da Bahia, se designa pela palavra enrdo (12). Durante toda a vida do iniciado, a identidade mtica vai se desdobrar como umaurdidura ficcional, como um romance plasticamente aberto a outras identificaes no mito e na histria. A natureza simblica do jogo identitrio clara; tudo isto ilusrio, no que seja falso: a identidade um jogo que se inventa e construda pelo grupo. Ao descobrir a natureza deste jogo, relativiza-se todas as certezas naturais e nos aproximamos do outro: amor. O sujeito feito, fabricado (pela famlia, pelo grupo, pela sociedade). E a palavra, no terreiro, justamente esta: "feitura da cabea", onde, na iniciao, a divindade (dona da cabea do iniciado) diz seu nome prprio e o iniciado se compromete a celebrar certas obrigaes ritualsticas. A incorporao da divindade pelo iniciado sempre uma ponte entre o individual e o coletivo, entre o mito e o "aqui e agora" histrico. Nada h, a ser explicado pela biologia ou psicologia. Qual a explicao? O transe seria algoinexplicvel? A explicao : o que h no transe uma radicalidade tica. (13) Na capoeira, por sua vez, quando o iniciante "batizado", isto , quando joga pela primeira vez numa roda aps um perodo de aprendizado bsico, ele ganha um apelido; um nome novo que o acompanha por toda a sua vida de capoeirista ao ponto de, um mestre (eu, por exemplo), no se lembrar do nome de todos seus alunos (apesar de conhecer bem o "apelido de capoeira" de cada um). O capoeirista iniciante ganha uma nova identidade. O que est em jogo na capoeira - do mesmo caldeiro cultural do candombl, e por ele fortemente influenciado durante as "dcadas de ouro", 1920 a 1950, quando praticamente todos os grandes capoeiristas baianos pertenciam ao candombl, num momento anterior irradiao da Bahia para o Rio e So Paulo -, a afirmao de um corpo, dentro de um grupo. Inicialmente do corpo do negro e seus descendentes,historicamente postos margem. E aps meados dos 1900s, o corpo do capoeirista, brasileiro ou no, "feito" dentro do universo da capoeira. Descendentes - "negro e seus descendentes" -, a, se entende tanto no sentido consanguneo quanto no de filiao ideolgica e cultural. Negros e brancos foram bons capoeiristas. E o louro de olhos azuis, que canta em portugus e joga capoeira numa roda em Berlim, pode eventualmente ocupar simbolicamente o lugar de sua contrapartida negra e brasileira. O corpo na globalizao, segundo Tucherman Mas o que mesmo o corpo? Tucherman, numa breve histria do corpo, nos diz que: perda, vazio, indiferenciao, desaparecimento; so termos e diagnsticos comuns na "ps-modernidade", com a reinveno da cultura, com o ciberespao e a realidade virtual (a TV, o computador, ainternet, etc.) pondo em questo a existncia do "real" e do seu sentido. Dentro deste contexto, Tucherman indaga: O que ser um corpo? O que ter um corpo? O corpo pertence ao conjunto de categorias mais persistente na cultura ocidental. Nossa cultura - matriz grega e a judaico-crist - tem sido uma poderosa construtora de espelhos e imagens legisladoras. Entre estas destaca-se a imagem do corpo, em crise na contemporaneidade - prteses, cyborgs, clonagem, engenharia gentica, biologia molecular, etc. (14) Tucherman elabora sua "breve histria" a partir do corpo reinventado, idealizado, modelizado, e constantemente treinado nos ginsios gregos, bem antes de Cristo. Um corpo mediado por um ideal externo transcendente, antes pensado que vivido -;que o destaca da natureza para a plis (a cidade) - o cidado. Depois, "aparece" o corpo cristo, desligado da cidade: os eremitas e sua escolha pelo deserto, um corpo-para-a-morte, sede dos pecados da "carne", ao qual prometido o apocalipse que prepara o juzo final, e a ressureio no contexto de uma "civilizao da culpa". No sculo XIII, temos a conquista de uma autonomia pessoal - no basta pertencer ao grupo e agir no coletivo, preciso uma transformao em si mesmo -; paralelo ao aparecimento do cavaleiro andante e do amor corts - que penetra pelos olhos, atinge o corao para ento ganhar o crebro e os testculos. Finalmente, o corpo moderno; este que vive nas grandes cidades, perdido numa multido de corpos. E, muito recentemente, este corpo moderno vai ser confrontado pelos corpos que "existem" na realidade virtual criada pela TV (a novela, etc.) e pela internet. Nesta transio, a comunidade que enquadrava e limitava o indivduo, constituindo um meio familiar onde toda agente se conhecia e se vigiava, vai se transformar, com a chegada do sculo XIX, na sociedade annima e sua vasta populao de gente que no se conhece. Produz-se uma clivagem no indivduo e no seu corpo, distribuindo-se normas e ambientes. Instalam-se, no ntimo de cada um, as disciplinas exigidas pelas normas sociais; torna-se visvel e ameaadora a presena de um novo tipo de corpo, o da multido em movimento, em contraste com a passividade individual. Por outro lado, o homem cr poder escolher mais livremente a sua condio e seu estilo de vida; que tem direito a um espao privado junto famlia. Paralelamente, temos o Estado cada vez mais interferindo em questes at ento fora de sua alada; as reformas religiosas, novas formas de devoo interior e ntima; a leitura e a escrita, que leva emancipao da vida comunitria presa fala e ao gesto; a passagem das sociedades hierrquicas (com seus reis e imperadores) para as sociedades disciplinares (uma disciplina imposta no somente pela fra, mas tambm por uma"segunda pedagogia" exercida pela televiso e seus valores). E, se Descartes havia liberado a racionalidade cientfica da moral, Kant reintroduz a moral como forma aplicada dos exerccios de racionalidade. Para o pensamento moderno, o corpo humano, embora "natural", nasce ligado razo e cultura. Posto em confronto com a diferena, o homem moderno assume uma postura passiva e defensiva, um posicionamento que evita qualquer contato fsico. O medo do contato que dera origem ao isolamento dos judeus na Renascena, reaparece robustecido na forma de guetos individuais - multido e solido pertencem ao mesmo momento. Aparece uma biopoltica e um biopoder preocupados com a proteo da vida, a higiene pblica e a preservao do meio ambiente. No entanto, todo este cuidado demonstra a crise do corpo, caudatria da crise da Modernidade. Tucherman nos diz que o corpo estdesaparecendo devido crise do sujeito moderno perplexo diante das simulaes (televiso, internet, etc.) e dos "duplos" que pe em questo a principal noo de realidade das pessoas, tradicionalmente associada presena tangvel e ao suporte material. Em oposio nossa tradio ocidental, nas culturas de sociedades primitivas ou arcaicas - onde poderamos inserir a capoeira -, assim como em muitas religies orientais, produz-se uma cultura para o corpo, nos diz Ieda Tucherman. O corpo receberia e traduziria, na sua prpria existncia, dois conjuntos de foras: - um conjunto designaria um funcionamento institucional, social e individual, abraando todas as foras csmicas do acaso, do no conhecido; neste contexto teramos os ritos, prticas mgicas, religiosas, etc.; - o outro conjunto refere-se s outras interferncias de energias no controladas: a loucura, a doena, etc.O corpo na globalizao, segundo Villaa Villaa, por sua vez, nos diz: A reflexo sobre a questo corporal, seu controle e representao, atravs de mecanismos de abstrao, de funcionalizao ou de insignificao, cresce hoje em importncia. O corpo parece insistir com seu prprio discurso contra os filsofos da linhagem platnica/cartesiana e insiste contra todos os discursos de normalizao provenientes do campo mdico, jurdico, artstico, etc. ...A recente valorizao da questo corporal como lugar de observao privilegiado problematiza o discurso moderno instrumentalizante do corpo produtor a servio do capital, e vem, ento, em resposta ao silncio corporal imposto pelas injunes dasociedade crist que glorificava uma esttica da alma e no do corpo. ... O que se faz quando a razo est em crise? ... Viramo-nos para o corpo e seus interesses como caminho do ser e do tornar-se. (15) Talvez estes dois enfoques - Villaa e Tucherman -, que analisam a importncia e a problemtica em relao ao corpo nos dias de hoje, possam esclarecer muita coisa; inclusive o surpreendente sucesso da capoeira - prtica ancestral inserida na modernidade -, e de sua tica - alternativa com razes na africanidade e na marginalidade -, nos "pases centrais", onde a atual problemtica em relao ao corpo bem maior que no Brasil (justamente por no existir, na cultura daqueles pases do "primeiro mundo", prticas como o samba, o candombl e a umbanda, ou a capoeira) . Talvez pudssemos dizer que, na capoeira, temos a corporalidade como pensamento. atravs da corporalidade - dos jogos com os outros dentro da roda aos som doberimbau (as "situaes especficas" de Badiou, em oposio s "categorias abstratas") - que se absorve e se aprende a sua "filosofia" (a malcia). Produz-se "uma cultura para o corpo", como apontou Tucherman. E desta forma que a capoeira migra, viaja, e se estabelece. Corporalidade: o Jogo (16) Menino, escuta esta toada: o lance certo, muitas vezes, est errado. Na roda, quem j est classificado, leva sempre um sorriso que desanuvia o lbio ou ento, no rosto, uma charada. Nestor Capoeira (17) Eis a "roda de capoeira" formada: um crculo de jogadores, os berimbaus, pandeiros, atabaque. Aproximemo-nos mais: algum canta uma chula - um canto-de-entrada - e todos ouvem com ateno:"Menino, quem foi teu mestre? Meu mestre foi Salomo. Pulava cerca de ponta de costas sem pr a mo. O mestre que me ensinou est no Presdio da Conceio; a ele devo dinheiro, sade e obrigao. Sou discpulo que aprende, sou mestre que d lio. E o segredo de So Cosme s quem sabe Damio, camar". "Menino, quem foi teu mestre?": a importncia do mestre est ligada, como nas sociedades arcaicas, tica (a regra do ascendente, do ancestral). atravs do contato e convivncia com o(s) mestre(s) que se transfere o ax da capoeira, de iniciado iniciante. Aqui, menciona-se tambm "Salomo". No absurdo pensar que este Salomo seja o mesmo rei dos judeus - cujo smbolo era a estrela de cinco pontas - do Antigo Testamento (embora, talvez, seja apenas o nome do mestre do capoeira de quem comps a cano).O Cinco-Salomo (signo-de-Salomo), signo protetor dos capoeiristas, uma estrela de cinco pontas (18) (um homem com os braos e as pernas abertos) envolvida por um crculo (para proteger contra os males fsicos e espirituais) e, algumas vezes, encimado por uma cruz (smbolo de Cristo mas que tambm representa a encruzilhada, lugar de tomada de decises - para que lado? -, que pertence a Ex, o mensageiro entre deuses e homens, portador do ax). "Pular cerca-de-ponta de costas sem pr a mo": a corporalidade, o saber do corpo, que legitima o status de "mestre". "O mestre que me ensinou est no Presdio da Conceio": o elo com o passado; a marginalidade - tica alternativa hegemnica -; exibida como uma comenda ou medalha. E, ao que tudo indica, a passagem do mestre - que pula cerca de costas sem pr a mo - pelo presdio ser breve. "A ele devo dinheiro, sade e obrigao": - dinheiro como materializao do ax, a energia que faz as coisas se moverem e existiram na sociedade (no corpo, o ax podeser representado pelo sangue); como possibilidade de "fazer a festa", "dinheiro na mo vendaval", canta Paulinho da Viola; - sade: fsica, mental, e espiritual, sem a qual o corpo no funciona; - obrigao: com os orixs, com os ancestrais, e com os mais velhos; a obrigao com a tica (dos ancestrais); ponto bsico do pensar afro-brasileiro. "Sou discpulo que aprende, sou mestre que d lio": estamos diante de uma nova ordem; as categorias estanques e as "especializaes", to caras ideologia ocidental, so re-arranjadas. "O segredo de So Cosme s quem sabe Damio, camar": no restam dvidas, estamos diante de uma confraria cujos ritos, embora apresentados publicamente, s tem significado para aqueles inciados nos mistrios do Jogo. Agora, o cantor "puxa" a ladainha: " , galo cantou..." E voc se surpreende com o sbito calafrio que percorre a tua espinha, ao ouvir os participantes da roda responderem emunssono: " , galo cantou, camar." Ao p do berimbau, dois homens esto acocorados de cabea baixa. Parecem perdidos em seus prprios devaneios, ou talvez em alguma forma de concentrao interior. Levantam a cabea e observam o cantor que continua a "puxar" o canto. O coro vai respondendo e o nvel de energia e magnetismo da roda vai crescendo: " , cocorocou... coro: , cocorocou, camar. E, hora, hora... coro: , hora, hora, camar. Vamos s'imbora... coro: , vamos simbora, camar. Pelo mundo afora... coro: , pelo mundo afora, camar." O ritmo lento e hipntico dos berimbaus vai tomando conta dos dois jogadores acocorados. Suas mentes esto livres de idias e pensamentos - esto ali, somente isto.Despojados de tudo, sentem-se to antigos quanto o prprio rito do qual vo participar. O cantor termina a ladainha e o coro responde: "Volta do mundo... coro: , volta do mundo, camar... Que o mundo deu... coro: , que o mundo deu, camar. , que o mundo d... coro: , que o mundo d, camar." As mos dos dois jogadores tocam o cho e traam sinais mgicos - "pontos riscados" que "fecham" o corpo e fortalecem o esprito. Em seguida, executam a reverncia: apoiados apenas nas mos, levantam o corpo e as pernas para o alto, a cabea quase tocando o cho e, lentamente, num domnio total do corpo, voltam posio acocorada e se encaram: o Jogo comeou. Percebem que sua frente no est mais o amigo ou companheiro de treinos, mas sim uma charada; enigmas imprevisveis e perigosos no dilogo que se inicia. Dilogo, no de palavras, mas de movimentos:movimentos de estudo, de ataque, defesa, de enganar; perguntas e respostas na misteriosa linguagem da capoeira. Os jogadores rolam para o centro da roda, somente os ps e as mos tocando o cho; o corpo relaxado e movendo-se no sungue dos berimbaus; os olhos atentos. O cantor terminou a ladainha; o berimbau mdio "dobra" em cima do ritmo do berimbau grave, o berimbau agudo improvisa. Os dois jogadores percebem tudo isto - o som dos trs berimbaus, a batida do pandeiro e do atabaque - enquanto observam-se e fazem, sem esforo, movimentos de cabea para baixo em cmera lenta, movimentos rentes ao cho como os de uma cobra, ou de um gato, ou de um boto. Esto totalmente presentes. O passado e o futuro, suas idias, problemas e ideais deixaram de existir. Percebem e vivem o momento com uma calma cristalina e uma clareza fotogrfica de quem observa o mar, sentado no alto de um rochedo. Um dos tocadores de berimbau puxa um refro, ainda no ritmo lento, e o cororesponde. como se toda a energia da roda fosse canalizada e jogada sobre a dupla de capoeiristas. O nvel de magnetismo continua a crescer. Um dos jogadores se aproxima, lento e cauteloso, e executa um movimento de ataque; o outro se esquiva, passando por baixo do golpe. Apesar da aparente lentido dos movimentos, ambos esto atentos. De repente, uma pernada rpida como uma chicotada; mas o outro tinha previsto o golpe e fugiu na negativa e rol, negando o prprio corpo ao ataque, evitando-o. Um dos jogadores gira em p e se imobiliza com um brao levantado. Seu par aproximase rodopiando rente ao cho e, por preucao, escora com a mo um dos ps de quem fez a chamada - prevendo um ataque inesperado ou uma falsidade. O que estava no cho se levanta e toca a palma da mo do outro, com a sua. Andam alguns passos frente, alguns passos atrs, as mos se tocando... com um golpe rodado inesperado, quem "chamou" quebra o passo-a-dois , mas o outro esquivou e j est longe.Os berimbaus aumentam o ritmo. O jogo, agora, se desenvolve mais em p. Os capoeiras quebram o corpo, ameaam, fazem fintas. Os golpes partem rpidos, violentos, sem aviso prvio. As defesas so esquivas, fugindo ou entrando por baixo do golpe, derrubando o oponente ou soltando o contra-ataque. Um dos jogadores se imobiliza, e, atento, se aproxima do adversrio cumprimentando-o. Este jogo acabou. No p do berimbau, outra dupla j espera acocorada e logo partem para dentro da roda. O berimbau continua ditando o ritmo e ensinando. NOTAS: (12) Notas de aula - Probelmas da Teoria da Comunicao V ECS 586, 8/5/1997 a 15/5/1997 -, do prof. dr. Muniz Sodr. (13) Ibidem. Vide tambm, A verdade seduzida, RJ, Codecri, 1983. (14) TUCHERMAN, Ieda. Breve histria do corpo e de seus monstros. Lisboa: Vega Passagens, 1999, pp.11-94.(15) VILLAA, Nizea. Em pauta: corpo, globalizao e novas tecnologias. RJ: Mauad, CNPq, 1999, pp. 25-29. (16) Este texto comeou a se estruturar em meu primeiro livro (1981). Mais tarde (1995), foi retrabalhado no mestrado, e num outro livro (1999), at chegar a presente forma. (17) CAPOEIRA, Nestor. O pequeno manual do jogador de capoeira. RJ: Ground, 1981, p. 27. (18) Este pentagrama, na Europa, "o mais famosos smbolo das artes mgicas, a estrela da sorte e do exorcismo", segundo Augusto Meyer (A forma secreta, p.158). Quando desenhado de cabea para baixo representa a "magia negra". Joo do Rio, no incio dos 1900s no Rio de Janeiro, j mencionava o "Cinco Salomo" de uma forma to casual que evidente que tratava-se de algo que todos conheciam. 2 - A FILOSOFIA DA CAPOEIRA J definimos a malcia em poucas palavras. Vamos, agora, estud-la em profundidade.2.1 - A MALCIA A malcia, num sentido amplo, a maneira como o jogador v e joga com a vida, o mundo e, especialmente, as pessoas - uma espcie de "saber" ou "sabedoria". Num sentido mais restrito, a malcia o que permite um jogador se antecipar aos ataques do outro; e tambm "enganar" o oponente, fingindo que vai fazer algo quando, na verdade, est preparando um outro tipo de ataque. Poderamos perguntar o que "sabedoria" tem a ver com "enganar o outro": que, para enganar o outro, necessrio saber como o outro , e como ele vai agir. Cada mestre, cada jogador, e at cada iniciante, explica a malcia da sua maneira. E isto no errado: impossvel enquadr-la num conceito fechado, numa "verdade" expressa em palavras; da mesma maneira que impossvel exprimir em palavras "o que a vida", "o que a arte", "o que o amor", a "amizade" ou o "dio". Eu sempre fui um apaixonado pela "filosofia da capoeira" - a malcia - desde quefui iniciado por mestre Leopoldina (Demerval Lopes de Lacerda, 1933-2007), em 1965. Nos anos seguintes, conheci os mestres Bimba, Pastinha, Noronha, Waldemar, Caiaras, Canjiquinha, Paulo dos Anjos, Atenilo, Eziquiel, Bom Cabrito - todos j se foram -, e muitos outros. Sempre que podia, conversava e, sobretudo, convivia e observava como se portavam em diferentes situaes. Perguntava, depois de j ter estabelecido um mnimo de camaradagem: "Mas, afinal de contas, mestre, o que o sr. acha que essa tal de malcia ?" As respostas eram as mais variadas possveis. Algumas eram poticas e misteriosas, outras engraadas, ainda outras eram racionais. Com os anos, a capoeira forjou, dentro do meu corpo, e da para meu crebro e para as pginas de papel onde eu escrevia, o que a malcia - ao menos, como Ela se apresentou para mim. Para comear, vamos dar um exemplo simples e objetivo. Digamos que Joo observa Z Man jogando com outros. Joo presta ateno aos golpes mais usados por Z; se ele bom em dar quedas; os pontos fracos damovimentao em p e no cho; as "manias" repetidas constantemente; os floreios acrobticos, e se fica "aberto" nestes momentos, etc. A partir desta observao, Joo vai levar em conta, e utilizar, os pontos fortes e fracos que observou. Por exemplo, Joo vai "abrir" falsamente sua guarda para o golpe preferido de Z. quase certo que o Z Man vai atac-lo. Quando vier o ataque, Joo j est esperando, e o contragolpe j est engatilhado. Se Joo vai contra-atacar ou derrubar; ou se vai apenas "mostrar" o contra-ataque (ou a queda) sem finalizar; isto vai depender da sua personalidade e do tipo de jogo que est rolando, se era "brincadeira" ou "jogo duro". Extrapolando esta estratgia, que usada dentro da roda, para o dia-a-dia da "vida real", J.L.Lewis, em sua tese de doutorado, comenta lucidamente: Fingir certamente uma parte essencial da malcia, e isto gira em torno de regra sociais. O capoeira toma vantagem da vtima que segue as regras docomo "se deve" agir. (19) ta mundo enganador Poderamos dizer que, do ponto de vista da Capoeira, os seres humanos so mediocres, mesquinhos, limitados, falsos, preconceituosos, invejosos, covardes e crueis. No jogo, estes sentimentos vem a tona no gestual, na movimentao, e na expresso do corpo e do rosto dos jogadores. A sociedade na qual vivemos - na viso da Capoeira - tambm no melhor: riquezas mal distribudas, recursos naturais mal utilizados, injustia social, misria, guerra e violncia; consumismo e controle atravs da midia, valores falsos e estereotipados. Pois a sociedade na qual vivemos fruto do que ns somos. Isso fica bem claro quando escutamos algumas msicas clssicas de capoeira: "ta mundo velho e grande, ta mundo enganador. se canto desta maneira foi vov quem me ensinou""No cu entra quem merece, na terra vale quem tem; passar bem ou passar mal, tudo na vida passar" "I quer me matar, i na falsidade" "Urubu come folha? Cro: conversa fiada!" O "urubu", ao qual se refere o canto, no a ave. O "urubu" somos ns, os seres humanos, que no somos mansos herbvoros - "come folha? coversa fiada" -, mas, sim, terrveis carnvoros. A malcia da Capoeira , ento, algo bem mais profundo e abrangente que o exemplo que demos ao citar o jogo entre Joo e Z Man. A malcia - saber corporal que extravasa para o cerebro - o "conhecimento da verdadeira natureza do homem" (urubu come folha? ... conversa fiada). Mas este "conhecimento" deve ser temperado comuma grande dose de "alegria de viver" (dizemos "alegria de viver", "teso de viver", em falta de um nome melhor). Esta "alegria de viver" est representado, na roda , pela energia positiva e alto-astral do som que acompanha e rege o Jogo. A malcia, adquirida no jogo atravs dos anos, proporciona o entendimento imediato e intuitivo da personalidade e motivaes de outra pessoa. O capoeira v o outro atravs a maneira como ele se move, pela sua postura, tom de voz, etc.; esta viso independe da "conversa" deschavada pelo outro. Evidentemente isto reforado pela observao (racional, da mente, da cabea do capoeirista) das aes do outro no dia-a-dia (quando, por acaso, existe uma convivncia). Na roda, o capoeira prev os rumos que o jogo do outro vai tomar e "arma" sua estratgia em funo deste conhecimento. Na vida, a mesma coisa. Mas se no faz isso com compreenso e tolerncia ("...ns, os seres humanos, somos assim mesmo"); teso e "alegria de viver"; ele no capoeirista e no vive a vida damaneira como a capoeira sugere e ensina. O intelectual e a "alegria de viver" Nesta altura dos acontecimentos, um intelectual, ou um acadmico com slidos conhecimentos dos filossofos gregos e de conhecidos filosofos contemporneos, dar um bocejo de tdio, jogara este livro de lado enquanto murmura "isto eu j conheo". Clement Rosset j dizia, a respeito de Nietszche: ... alegria de viver, gudio, jbilo, prazer de existir... a idia ou a inteno de uma fidelidade incondicional nua e crua experincia do real (20) Mas apesar de aqui falarmos de uma "alegria de viver", e - quem sabe? - Nietszche tambm falar de algo parecido ou igual, h uma diferena bsica: Nietsche era um homem regido pela cabea; nunca foi um mestre de esgrima, nunca foi um esportista dedicado prtica do box, nunca foi umamante com um extensa experincia e um profundo conhecimento do sexo. O mesmo podemos dizer de nosso entediado intelectual, que j leu estas palavras - "alegria de viver" -, mas nunca vivenciou-as; exceto quis brevemente no auge de um porre, ou tomando LSD ou cogumelos ou santo-daime ou peyote. Na capoeira, e nestas pginas, estamos num outro contexto muito diverso: a "alegria de viver" da qual falamos, e que vamos tentar explicitar nas pginas seguintes, est firmemente imbricada prtica corporal da capoeira - jogo, dana, luta, ritual, msica e canto. Aqui trata-se do corpo, e no da cabea. verdade que tambm podemos atingir um estado de euforia similar - "alegria de viver" - atravs a prtica do esporte, da dana, das artes marciais, da yoga. Mas no esporte a "alegria" obscurecida pela necessidade de ser o "vencedor". Na dana existe a coreografia que inibe a espontaneidade e a criatividade. Nas artes marciais apesar de, semelhante capoeira, existirem o ritual e o sentimento de unio com a ancestralidade (o culto aos sensei da passado), fica faltando a msica e sobra seriedade. Na yoga queremos entrar numa outra esfera de conscincia longe da materialidade mesquinha da vida do dia-a-dia. Ento na capoeira trata-se do corpo, e no da cabea; mas difere de outras prticas corporais por ter muitas caractersticas diversas atuando ao mesmo tempo (jogo, dana, luta, ritual, msica e canto, como j dissemos). Ento a "alegria de viver", imbricada na capoeira mas que tem de ser trazido tona pelo esforo pessoal do praticante (como veremos em seguida), algo que o nosso entediado intelectual, longe de conhecer, desconhece totalmente, O "conhecimento da verdadeira natureza dos homens", e a "alegria de viver" Meu camarada, o capoeira muito mais que um lutador que d pernada. Ele um artista,sua fora a alegria de viver. Ele conhece a palavra-chave Amor e no entanto o capoeirista sabe: a maldade existe. Ser que tu ainda no ouviu o que se anda cantando nas rodas por ai: Galo j cantou, j raiou o dia. Nestor Capoeira A malcia ( "conhecimento da verdadeira natureza dos homens" + "alegria de viver") permite ao jogador "ver" o cenrio vivo, brutal e cruel - o mundo em que vivemos -, sem se tornar deprimido, amargo, agressivo, rido; ou preocupado e "srio" em demasia. O "conhecimento da verdadeira natureza dos homens" vem automaticamente com a prtica do jogo. Mas a "alegria de viver" tem que ser alimentado e desenvolvido por iniciativa pessoal de cada jogador. A "alegria de viver" no vem como uma consequncia inevitvel do Jogo. A "alegria de viver" no aquela que vemos na TV; e tambm no o "don't worry, be happy" (no se preocupe, seja feliz), "politicamente correto" em alguns crculosmoderninhos americanos. A "alegria de viver" uma espcie de teso pela vida; uma alegria de estar vivo naquele momento Voc j viu crianas brincando na beira do mar? Elas pulam numa perna s, correm, gritam, fogem das ondas que "se desmancham na areia", e perseguem-nas incanavelmente na maior alegria, pois esto alimentadas por um outro tipo de energia (de difcil acesso aos adultos, exceto, talvez, nas festas, no carnaval, etc.). este estado de esprito que estamos chamando de "alegria de viver": a pessoa est totalmente presente e curtindo aquele momento. O "conhecimento", sem o apoio da "alegria", pode se tornar muito pesado. Pode transformar o jogador numa pessoa incapaz de curtir a vida. Pois o "conhecimento" traz Poder. E o Poder, sem "alegria de viver", transforma a pessoa em algum que s se interessa - e completamente fascinado - pelo "jogos de poder" ("eu sou mais que os outros").Mas que papo este de Poder que comea a vir, aos poucos, para o jogador? Ser algum tipo de energia, algum tipo de ax, que circula dentro do universo da capoeira e atravessa seus praticantes atravs dos tempos e das geraes? Certamente. Mas nem todos nossos leitores so "msticos"; muitos so "po po, queijo queijo". Ento, para estes, podemos dar alguns exemplos materiais e prticos: - atravs dos treinos o iniciante vai melhorando seu jogo, e comea a dominar o jogo com os jogadores mais fracos; ele comea a ter mais status dentro da academia; - seu corpo fica mais forte, flexvel, "malhado"; sua postura corporal muda, reflexo do treinamento corporal, de um real aumento da autoconfiaa, e tambm de uma certa influncia da postura dos outros jogadores; as pessoas, na "vida real", comeam a ach-lo mais bonito, mais interessante; novas e inesperadas portas se abrem (no trabalho, no sexo, no social); - com uns 5 ou 7 anos de prtica, o jogadorcomea a eventualmente ajudar seu mestre nas aulas e subitamente o jogador se torna um dolo para os outros alunos e alunas. A "alegria de viver" e a dor Muniz Sodr nos contou que ouviu Pastinha definir em diferentes ocasies: "capoeira dor". Talvez o velho bluesman, Howling Wolf, de New Orleans, tambm dissesse: "o blues dor". Charlie "Bird" e Billie Hollyday - quem sabe - talvez dissessem: "o jazz dor". Vinicius de Moraes, auto-denominado o "branco mais preto do Brasil", cantava que pra fazer um samba " preciso um bocado de tristeza"; Joo Gilberto cantava "tristeza no tem fim". O grande e venerando maestro Pixinguinha brilhava num gnero musical brasileiro chamado "choro" ou "chorinho". Mas, talvez, imbricado na capoeira, no blues, no jazz, no samba, na bossa-nova, no choro - que seriam dor e tristeza -, esteja contido, atravs determinadas prticascorporais e sonoras, o prprio antdoto elegante e sapiente - desta mesma dor e deste mesmo "banzo": aquilo que chamei (um pouco tolamente) de "alegria de viver" (parte da malcia) A alegria de viver e as brabeiras da vida A alegria de viver essencial para o jogador digerir as brabeiras que rolam na roda e na academia. E que, na verdade, so os reflexos das baixarias que tambm acontecem na sociedade, mas no so to evidentes devido s fachadas sociais e ao verniz de civilizao - o 171- que maquiam as pessoas e disfaram os contornos brutais do mundo no qual vivemos: - pessoas gents que se tornam rudes, violentas, perversas (quando podem, quando sabem que no vo sofrer retaliao); - pessoas amistosas e engraadas que esto sempre numa boa, batendo altos papos, contando histrias, que inesperadamente armam fofocas ou traies (quando existe algo para ganhar, ou, as vezes, sem aparente ganho);- amigos que se aproveitam da amizade para ter vantagens em certas situaes; - a necessidade de passar por cima dos outros; - o "querer dominar" atravs da fora, inteligncia, dinheiro, ou atravs do medo; - agresso e violncia; - o prazer de machucar ou causar danos; - a impossibilidade de ter um dialogo aberto, sem segundas intenes obscuras; - a necessidade de sempre ir s forras (mesmo num lance sem querer, no qual o outro no tinha ms intenes); - a necessidade de ser o melhor a qualquer custo; - falta de compreenso e compaixo; - estupidez, burrice, ignorncia, grossura, covardia, mesquinhez, mediocridade, etc., etc. Somente com muito alegria de viver", uma profunda compreenso e uma ironia saudvel, possvel testemunhar e aceitar tranquilamente tudo isto sem perder a capacidade de se divertir e apreciar a companhia de outros monstros... desculpemme, eu queria dizer, outros seres humanos.H quem diga que a vida luta, uma verdadeira briga. O "conhecimento da verdadeira natureza do homem", que uma consequncia de jogar capoeira com diferentes pessoas em diferentes lugares, vai ajudar o jogador nesta briga, mostrando quem quem, e como se defender antecipando os acontecimentos. E, se for necessrio, como atacar friamente, com mardade, nos pontos vulnerveis; e de tal forma que no haja retaliao, pois foi tudo feito na traio e na falsidade. Mas para curtir a vida, isto no suficiente. Se a vida briga, o jogador tem de aprender a danar dentro da briga; a capoeira um jogo-dana-luta. E isto s possvel com a ajuda da alegria de viver; o jogo s possvel com a energia alto-astral do som dos berimbaus, pandeiro, atabaque, e cantos, que acompanham e regem a roda. Aprendendo a verPor outro lado, aos poucos, o jogador comea a entender que o Jogo no apenas uma troca de golpes e esquivas, quedas, e movimentos acrobticos. O iniciante comea a ver algo que os no iniciados no percebem. O jogador comea a ver "as brabeiras da vida" se manifestarem no jogo, dentro da roda, de uma maneira crua. Ou seja, atravs do jogo, o "conhecimento dos homens" j comeou a se imbricar ao ntimo do principiante. Durante o jogo a gente v emoes e estranhas reaes estampadas nos rostos, e nas expresses dos corpos dos jogadores. E, muitas vezes, o prprio jogador se surpreende com coisas que acontecem dentro de sua cabea num determinado jogo; e, mais ainda, depois que o jogo termina e o jogador relembra do que aconteceu. Surgem emoes de euforia e dio. Muitas vezes decorrentes do ego do jogador ter sido ferido. Ou, ao contrrio, quando o jogador fere ou "humilha" outro jogador. O jogador comea a ver os outros, e a si mesmo. sob uma nova perspectiva. Um sorriso, um abrao cordial, umaconversa inteligente ou simptica, a aparente camaradagem que rola sem esforo nos crculos sociais e familiares; tudo isto que anteriormente lhe indicava "quem quem", comea a ter menos valor. O "real" comea a ter outra forma e depender de outras referncias, diferentes daquelas que anteriormente o orientavam. O jogador, que est tendo seu corpo e sua cabea feitos pelos diferentes jogos com diferentes pessoas, comea a realmente perceber que todos temos uma "fachada social". Esta fachada s se rompe muito ocasionalmente: nos momentos de crise, de stress; durante as festas e o uso de alcol e drogas; e tambm durante o Jogo. O jogador comea a ver o que existe por trs daquelas "fachadas sociais": algo mais profundo, autntico, primitivo, e - sejamos sinceros - mais brutal, medocre, e mesquinho, que o ncleo de cada ser humano. O credo do "Poder" x o credo da "Alegriade viver" O "credo do poder" o que a malandragem chama de: a Lei do Co. Em quase todas as sociedades, do passado e presente, sempre houve uma minoria dona das riquezas, e uma massa que vivia miseravelmente e trabalhava para sutent-la. Para manter este estado de coisas, os donos da bola tinham a seu servio homens armados prontos para sufocar qualquer rebelio. Foi em cima deste modelito que nossa sociedade cresceu e "evoluiu". Adolf Hitler, governante da Alemanha que por volta de 1939 deflagrou a Segunda Guerra Mundial, tinha uma frase que define bem a lei do co: "Quem quer que tenha se detido a examinar a ordem das coisas, chega a conluso que a essncia do mundo reside no domnio dos mais capazes atravs do uso da fora" O poeta francs, Baudelaire, tambm tem algo a dizer sobre o assunto:"Quer o homem abrace sua vtima na avenida, quer mate suas presas em florestas desconhecidas, no ele eternamente o homem? Isto : o mais perfeito animal de rapina." Em oposio a este "credo do poder", existem capoeiristas que professam um "credo da alegria de viver". Acreditam que, pela primeira vez em sua histria, o ser humano tem recursos materiais para acabar com a fome, a misria, a ignorncia, em todo o planeta. Existem tcnicas modernas e ecolgicas de agricultura e pecuria; frigorficos e enlatados que podem conservar a comida por muito tempo; transportes que podem levar os alimentos para qualquer lugar do globo. Existem remdios e conhecimentos para prevenir doenas. Existe a energia solar, a elica, etc., que podem produzir uma energia limpa e no poluente. Existem maquinas e computadores para substituir o homem no trabalho duro e alienante, deixando-o mais livre para curtir as artes, a diverso, e a vida.Existe a Internet e a televiso, que assistida no alto da mais alta montanha do Tibet, e tambm na mais remota aldeia da Amaznia. Atravs delas, poderamos orientar e educar a humanidade... no entanto o mundo continua esta brabeira que sempre existiu misria, guerra, injustia, ignorncia, violncia. O "credo da alegria de viver" acredita que os capoeiristas, em especial os professores e mestres, devem estar em sintonia com as reais necessidades do homem e do planeta nesta nossa Era Espacial; e que uma mudana para melhor possvel. verdade que o homem das cavernas, durante milhares e milhares de anos, canalizou grande parte de sua energia para as armas e a matana, por necessidade de sobrevivncia. Mais tarde, nos ltimos 5 ou 10 mil anos, com a "civilizao", isto continuou; nem tanto pela necessidade de sobrevivncia, mas pela Lei do Co. Mas agora estamos vivendo um outro momento: se continuarmos com este "modelito", que tambm est poluindo o planeta, estaremos ameaando a prpria raa humana como um todo. possvel melhorar a qualidade de vida das grandes massas que vivem na misria, sem deixar os ricaos sem seu caviar. possvel, e essencial, desviar a energia usada na violncia e nas guerras (e ainda existe a ameaa apocaltiptica da guerra atmica, apesar de estar na moda a "guerra ao terror"), para atividades ldicas e criativas. E a capoeira pode dar sua ajuda e contribuio nesta mudana. Ser totalmente fascinado e viver em funo do Poder algo que acontece com bastante frequncia no universo da capoeira. Isto afasta o jogador da curtio da vida, e da essncia do Jogo. No entanto, a Capoeira no faz nenhuma crtica moralista queles que escolheram este caminho. uma das opes abertas ao jogador. Mas este jogador ter de aturar as respostas que o mundo ira dar esta escolha. E, por sua vez, o jogador da "alegria de viver" tambm enfrentar dvidas e dificuldades, como veremos no prximo captulo. Como desenvolver a "alegria de viver"Como desenvolver a "alegria de viver"? Inicialmente - e isto a base de tudo -, o aprendiz tem que querer desenvolver esta "alegria de viver"; dar tanto valor "alegria" quanto ao "conhecimento" (que muito atrataivo pois est diretamente ligado ao Poder e violncia). Em seguida, se o iniciante realmente quer esta "alegria", ele deve buscar a companhia de jogadores e mestres mais velhos que possuam esta "alegria". O problema que nem todos mestres a possuem e a valorizam (valorizam mais o Poder). Mas, felizmente para o iniciante, no necessrio a convivncia diria com estes mestres que valorizam a "alegria". Alis, nem sempre esta convivncia possvel: h poucos mestres e milhares de praticantes. Mas, muitas vezes, basta um lampejo, um vislumbre de como algum (mais velho) lida com a vida, e o iniciante, que quer desenvolver sua "alegria de viver", j tem uma direo. Paralelo a este esforo, para ajudar este iniciante existe o som e os cantos (que oiniciante canta junto com o cro) que acompanham a roda, que criam um ambiente energtico e alto-astral. Cada vez que o iniciante participa de uma roda, cantando, batendo palmas, e eventualmente tocando algum instrumento (berimbau, pandeiro, atabaque, agogo), ele imerso num caudal energtico que, homeopaticamente, aos poucos, vai fazendo renascer a "alegria de viver" que ele possua quando criana, mas que foi podada, castrada, e quase aniquilada pelas exigncias do processo de "tornar-se um adulto". A contraparte material Joga-se capoeira inicialmente por causa da fascinao que ela exerce; depois vem a paixo, o amor e, at mesmo, o vcio pelo Jogo.Esta a parte que "os olhos no conseguem perceber e as mos nao ousam tocar", como cantou Paulinho da Viola. Mas tambm existe uma contraparte material qual os jogadores se dedicam consciente e abjetivamente: a execuo dosmovimentos, as estratgias de jogo, os golpes, as quedas, as entradas, os diferentes estilos, os diferentes toques de berimbau que induzem tipos de jogos diferentes (em cada estilo), os floreios acrobticos e o controle do corpo, o ritual, o canto, o uso da navalha e arma branca. E ainda, como extenso, o atabaque (e o candombl e o maculel), o pandeiro (e a batucada e o samba); e todo o vasta cultura afro-brasileira da qual a capoeira parte. E tambm o Mundo das Ruas, e a malandragem, onde grande parte da malcia foi desenvolvida. Tudo isto, que pode ser visto com os olhos e percebido pelos sentidos, constitui uma imensa rea de ao para o capoeirista. Mas o desenvolvimento do capoeirista, nestes vrios segmentos interligados, no complicado nem penoso, pois depende somente do amor e da atrao que o jogador sente pelo Jogo. O jogador treina e faz as aulas pois quer se expressar melhor dentro da roda. O jogador joga na roda, pois na roda que a capoeira se materializa e aconteceO jogador sente que, alm do prazer de treinar e exercitar o corpo, alm do prazer de jogar; tudo aquilo saudvel para o corpo e para a mente (e, mais tarde, para o esprito). O jogador sente que est sendo mudado, para melhor, pela capoeira; ele ve os resultados em todas as reas de sua vida. Com o tempo, o jogador comea a buscar outros lugares onde a capoeira praticada; conhece outros ambientes e outras pessoas; e aos poucos vai sendo organicamente introduzido nas demais partes do todo. A capoeira conduz o jogador por caminhos e atalhos inesperados at que, finalmente, ele conhece, no s a malcia - a parte misteriosa-; mas tambm toda a contraparte material da capoeira, to