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FONTES SOBRE A INFNCIADiagnstico de fontes de informao sobre a criana e o adolescenteRede Marista de Solidariedade 1a edio Curitiba PR 2012

Apoio:

FONTES SOBRE A INFNCIA: Diagnstico de fontes de informao sobre a criana e o adolescente. Iniciativa Rede Marista de Solidariedade e Instituto HSBC Solidariedade Concepo e Coordenao Tcnica: Centro Marista de Defesa da Infncia Coordenao: Geliane Quemelo Equipe Tcnica: Claudia Cartes Patrcio, Marcelo Keiji Saito, Tyciana Paula Begnini, Vanisse Simone Alves Corra Comisso editorial de adolescentes: rica Jaqueline Ribeiro, dila Luiz de Arajo, Rubens Mateus Fernandes de Oliveira, Brendha Emanuele de Arajo Reviso de contedo: Jimena Grignani e Barbara Pimpo Ferreira Reviso ortogrfica: Alessandra Menini Coordenao do Projeto Grfico: Alexandre Loureno Cardoso, Kelen Yumi Azuma e Pollyana Devides Nabarro Coordenao Editorial: Centro Marista de Defesa da Infncia Diagramao: Clarissa Martinez Menini Fotos: acervo da Rede Marista de Solidariedade Contato: [email protected] Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil) , Fontes sobre a infncia: diagnstico de fontes de informao sobre a criana e o adolescente / Rede Marista de Solidariedade. 1. ed. So Paulo: FTD, 2012. ISBN 978-85-322-8078-7 1. Crianas e adolescentes Brasil 2. Crianas e adolescentes Direitos 3. Fontes estatsticas 4. Indicadores sociais 5. infncia 6. Informao Fontes 7. Pesquisa I. Rede Marista de Solidariedade. 12-02613 ndices para catlogo sistemtico: 1. Brasil: Diagnstico de fontes de informao sobre a criana e o adolescente: Fontes estatsticas oficiais: Bem-estar social 362.7 CDD 362.7

SumrioPrefcio Apresentao Introduo 7 11 15

cAPtulo 1

Direitos Humanos de crianas e Adolescentes: Apontamentos e Reflexes terico-prticasGlossrio Referncias Bibliogrficas

18 56 58

cAPtulo 2

Importncia do Monitoramento para a Efetivao dos Direitos da InfnciaReferncias Bibliogrficas

62 75

cAPtulo 3

levantamento de Fontes de Informao sobre a InfnciaFontEs EstAtstIcAs oFIcIAIs nAcIonAIs 1. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) 1.1 censo Demogrfico 1.2 contagem da Populao 1.3 Estatsticas do Registro civil (Rc) 1.4 Indicadores de Desenvolvimento sustentvel 1.5 Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais (Munic) 1.6 Pesquisa de oramentos Familiares (PoF) 1.7 Pesquisa Mensal de Emprego (PME) 1.8 Pesquisa nacional de sade do Escolar (PensE) 1.9 Pesquisa nacional por Amostra de Domiclios (PnAD) 2. Banco de Dados do sistema nico de sade (Datasus) 3. Instituto nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio teixeira (Inep)

76

78 80 82 84 86 88 90 92 94 96 99 103

SumrioFontEs EstAtstIcAs oFIcIAIs (continuao) nAcIonAIs 4. Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada (Ipea) 5. sistema de Informao Para a Infncia e Adolescncia (sipia) 6. Instituto sangari Mapa da Violncia REGIo sul 7. Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econmico e social (Ipardes) 8. Fundao de Economia e Estatstica (FEE) 117 119 106 108 110

InstItuIEs quE REAlIzAM PEsquIsAs nAcIonAIs 1. centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infncia (ciespi) REGIo sul 2. Pastoral da criana 3. Instituto comunitrio Grande Florianpolis (Icom) 4. Programa de Apoio a Meninos e Meninas centro de Defesa da criana e do Adolescente Bertholdo Weber (Proame) 122 124 126 121

oBsERVAtRIos E nclEos DE EstuDos nAcIonAIs 1. observatrio nacional dos Direitos da criana e do Adolescente (oBs) 2. observatrio Regional Base de Indicadores de sustentabilidade (oRBs) REGIo sul 4. Programa Multidisciplinar de Estudo, Pesquisa e Defesa da criana e do Adolescente (PcA) 132 128 129

SumriooBsERVAtRIos E nclEos DE EstuDos (continuao) 5. observatrio de Violncias na Infncia 6. centro de Estudos Psicolgicos sobre Meninos e Meninas de Rua (cEP-Rua) 6.1 ncleo de Estudos e Pesquisas em Adolescncia (nepa) 6.2 centro de Estudos Psicolgicos sobre Meninos e Meninas de Rua (cEP-Rua nH) nova Hamburgo 6.3 centro de Estudos Psicolgicos sobre Meninos e Meninas de Rua (cEP-Rua) 6.4 ncleo de apoio infncia, juventude e suas famlias em polticas pblicas (nejif) 6.5 ncleo de estudos sobre crianas e adolescentes em situao de rua (nEcAsR) 6.6 ncleo de estudos sobre Direitos da criana e do adolescente (nedica) 6.7 ncleo de estudos e pesquisas sobre resilincia e psicologia positiva (nEPRPP) 6.8 ncleo de estudos e pesquisas sobre trabalho 134 135 137 138 140 141 142 143 144 145

FontEs DE InFoRMAEs IntERnAcIonAIs 1. the luxembourg Income study (lIs) 2. the organisation for Economic co-operation and Development (oEcD) 3. World Health organization (WHo) 4. Pan American Health organization (PAHo) 5. the Economic commission for latin America (Ecla) 6. social Watch 7. united nations Educational, scientific and cultural organization (unesco) 8. the united nations childrens Found (unicef) tabela Resumo sobre Fontes de Informaes Glossrio Referncias Bibliogrficas

146 146 146 147 147 147 148 148 148 151 159 161 163

consideraes finais

6

Prefcio

A

presente publicao consiste em um guia que ser de grande utilidade aos profissionais e ativistas da causa da defesa e garantia dos direitos de crianas e adolescentes. Trata-se de um levantamento dos organismos pblicos e privados que produzem informaes referentes a esse segmento da populao dados primrios na forma de censos oficiais, estudos por amostragem, estudos temticos e demais tipos de pesquisas geradas a partir de cruzamentos de dados contendo os objetivos, a metodologia da coleta, os tipos de informaes disponveis e a forma de acess-las. Pode parecer uma iniciativa singela, mas a realizao do trabalho que se materializa nesta publicao trabalhosa e foi fruto do conhecimento da equipe da Rede Marista de Solidariedade, composta por profissionais que atuam, j de longa data, na luta pelos direitos de crianas e adolescentes. Eles sabem como poucos as dificuldades das pessoas envolvidas nessa luta quando se trata de conhecer a realidade, fundamentar propostas de trabalho ou dialogar de maneira consistente com os agentes que tm condies de deliberar sobre polticas pblicas para a rea. Acessar informaes relevantes, realizar sua leitura e compreender seu significado so tarefas complexas at para aqueles mais acostumados com a manipulao de dados estatsticos, como pesquisadores e professores. Porm, muitas vezes, so os militantes da rea dos direitos de crianas e adolescentes que so exigidos a provar a necessidade de maiores investimentos ou direcionamento adequado dos mesmos, em 7

FontEs soBRE A InFncIA

favor das necessidades de nossas crianas e jovens. Estes nem sempre possuem a familiaridade necessria com as tabelas, os grficos e as longas listagens de dados estatsticos. Outra necessidade o acompanhamento sistemtico dos dados da realidade, que adquire ainda maior importncia se temos como horizonte a realizao do monitoramento do Sistema de Garantia de Direitos como um importante instrumento de controle social. E nesta perspectiva que Conselheiros de Direitos, Conselheiros Tutelares, tcnicos de rgos pblicos e entidades no governamentais, ativistas de direitos humanos, acadmicos, entre outros agentes sociais, precisam conhecer e compreender a realidade em que vivem as crianas e adolescentes em nosso pas e suas transformaes. Na busca por este conhecimento, nem sempre fcil definir quais so os dados mais relevantes, onde se deve busc-los e como acess-los. O levantamento aqui apresentado, intitulado Fontes sobre a Infncia - Diagnstico de fontes de informao sobre a criana e o adolescente, pretende ser um instrumento para essas pessoas, grupos e movimentos, que dele podem se servir para acessar dados que lhes auxiliem na elaborao de diagnsticos de realidades locais, de compreenso da situao da infncia e juventude nos estados e no pas, em comparao ou no, com outros pases e realidades. A corajosa iniciativa da equipe da Rede Marista de Solidariedade est ancorada em uma metodologia j testada por instituies que atuam na sistematizao de dados sobre a situao da infncia e juventude. Assim, a publicao desse rol de informaes consiste em tornar disponveis aos interessados na temtica os dados obtidos depois de cumprido um dos passos da proposta metodolgica difundida pela Red por los Derechos de La Infncia em Mxico (Redim). Nesta metodologia, que tem como objetivo ltimo criar um sistema de informaes a partir de slida base de dados sobre as condies em que vivem crianas e adolescentes, sempre numa perspectiva da garantia de seus direitos fundamentais , o Fontes sobre a Infncia Diagnstico de fontes de informao sobre a criana e o adolescente, busca saber onde esto os dados, como so coletados e como se pode acess-los. Isto essencial para a compilao dos dados que iro compor a base de futuros sistemas de informaes. 8

PREFcIo

O livro vem precedido de uma explanao sobre a construo do conceito de infncia e juventude e de uma apresentao sobre a evoluo da poltica de ateno rea no Brasil, que pode situar o leitor nos referencias tericos mais gerais que sustentam a compreenso da equipe que elaborou o trabalho. Esclarecedora e instrutiva tambm a descrio dos passos metodolgicos da proposta e a definio de conceitos como dados, indicadores, fontes, tudo apresentado em glossrios muito teis queles que necessitam utilizar-se de dados estatsticos na ao de defesa e busca da garantia dos direitos. Caber ao leitor o bom uso das informaes aqui contidas, e espero que elas se tornem instrumentos teis nas mos de profissionais e ativistas que lutam para concretizar os direitos de nossas crianas e jovens.

Profa. Silvia Alapanian Proeca/Universidade Estaudal de Londrina (UEL)

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Apresentao

Brasil, apesar de ter consolidado aspectos legislativos no campo do marco regulatrio, de ter implementado um sistema de garantia de direitos, alm da existncia de diversos institutos de pesquisa que fornecem dados relevantes a respeito da infncia, ainda esta aqum em relao ao acesso destes e o seu uso mais direcionado para efetivao dos Direitos da Criana e do adolescente. Diante disso, aps o conhecimento de experincias internacionais, apresentou-se a oportunidade de realizar um diagnstico das fontes de informao sobre a infncia. Este estudo representa o esforo de identificar onde esto as informaes sobre a infncia e adolescncia no Brasil, na publicao FONTES SOBRE A INFNCIA: Diagnstico de fontes de informao sobre a criana e o adolescente, realizado pela Rede Marista de Solidariedade por meio do Centro Marista de Defasa da Infncia, com o apoio do Instituto HSBC Solidariedade. Esse documento traz elementos que contribuiro com a discusso sobre a criana e o adolescente, pois compila informaes sobre fontes oficiais, instituies de pesquisas, ncleos e observatrios que abordam indicadores referentes infncia no Brasil, especialmente nos Estados da regio Sul do pas: Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O diagnstico de fontes de informao tem como propsito facilitar a busca de dados e disponibilizar informaes a atores do Sistema de Garantias de Direitos, pesquisadores, acadmicos e crianas e adoles11

O

FontEs soBRE A InFncIA

centes; ressalta a importncia da utilizao de dados como subsdio na construo de polticas pblicas, aes de incidncia e fomento a disseminao da cultura do monitoramento por meio de dados no controle social. A inspirao para esse documento foi a metodologia de monitoramento baseado em dados, criada pela organizao norte-americana, a Fundao Annie Casey, com o projeto Kids Count e difundida na Amrica Latina pela Red por los Derechos de La Infncia em Mxico REDIM, com o projeto Infancia Cuenta. Essas instituies atuam na sistematizao e publicao de dados que revelam a realidade de crianas e adolescentes em seu pas, iniciativa que possibilita intervenes polticas da Sociedade Civil a partir de indicadores alinhados a Conveno dos Direitos da Criana ONU. Experincias como estas esto sendo desenvolvidas no Paraguai, Argentina e Nicargua. A metodologia citada composta por trs etapas: I Elaborao de relatrio anual e ensaios temticos; II Plano de Comunicao; III Plano de Incidncia Poltica. No entanto, neste momento, nossa opo foi realizar um recorte e desenvolver um estudo aprofundado sobre diagnstico das fontes de informao. A construo deste documento contou com uma equipe que passou por um processo de qualificao por meio de leituras e anlises para a apropriao da metodologia. Pesquisas, identificao de bibliografias referentes rea da infncia e visitas em instituies que atuam com coleta e/ou anlise de dados em cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran, contou tambm com a constituio de uma Comisso Editorial formada por adolescente que integram a Rede Marista de Solidariedade, que contribuiu com a reviso do documento, identificando termos tcnicos a fim de facilitar a leitura para diversos pblicos. Outra atividade que contribuiu, para esta publicao, foi a participao na II Oficina Internacional de Monitoramento de Dados, realizada em Curitiba em 2011 - momento em que foi apresentado o documento CAD? Crianas e Adolescentes em Dados e Estatsticas - realizado pelo Instituto Marista de Assistncia Social (IMAS), em parceria com o Frum Nacional DCA, Viso Mundial, Kindernothilfe (KNH), Plan Brasil, Instituto C&A e a Rede Marista de Solidariedade. Esse documento nacional apresenta um panorama geral sobre os dados das crianas e adolescentes 12

APREsEntAo

brasileiros, e se configura como uma importante e indita iniciativa de reunir informaes especficas sobre essa populao, alm de fomentar a construo de planos de incidncia poltica tanto no mbito nacional como no estadual. Atrelado a ideia de um sistema de monitoramento baseado em dados, constatou-se a importncia da construo de um diagnstico das fontes, a fim de que os indicadores possam ser utilizados de forma mais efetiva e concretizem o desfrute dos direitos pelas crianas e adolescentes.

Centro Marista de Defesa da Infncia Curitiba, 2012

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14

Introduo

o Brasil, a Constituio Federal de 1988, no artigo 227, destaca que crianas e adolescentes devem ter prioridade absoluta e que dever de todos mant-las a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia e opresso. Documentos internacionais, como a Declarao dos Direitos da Criana ONU de 1989; e Nacionais, como o Estatuto da Criana e do Adolescente de 1990, fortalecem ainda mais a doutrina de proteo integral de crianas e adolescentes. Acompanhar a efetivao dos direitos e verificar se esto sendo assegurados exige monitoramento de indicadores especficos, atualmente pouco conhecidos, compreendidos ou, at mesmo, inexistentes. A Sociedade Civil e os atores do Sistema de Garantia de Direitos tm papel importante nesse monitoramento. Mecanismos que buscam incidir na efetivao dos direitos esto previstos em lei e j funcionam, com maior ou menor eficcia, em todo o territrio brasileiro. Exemplo disso so os Conselhos Municipais dos Direitos da Criana e do Adolescente que esto presentes em todos os municpios do pas, alm de outros organismos internacionais e nacionais que acompanham e incidem nas polticas voltadas infncia. No entanto, iniciativas de incidncia nas polticas pblicas direcionadas a esse pblico podem fragilizar-se pelo desconhecimento de dados que subsidiem a discusso. Assim, a transformao e a melhoria das con15

N

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dies atuais esto diretamente ligadas visibilidade da realidade em que se encontra a infncia no caso brasileiro. oportuna a aplicao e elaborao de um Sistema de Monitoramento, a fim de contribuir com a efetivao dos direitos de crianas e adolescentes. Um Sistema que permita revelar um retrato real da situao dos direitos da infncia, baseado em dados oficiais e assim dispor de subsdios para aes de incidncia poltica. Nesse sentido, essa publicao vem com a inteno de apresentar o leitor, de forma simples e acessvel, s fontes de informao que podem subsidiar a construo de conhecimento com enfoque nos direitos da infncia; resultado de um trabalho de pesquisa que buscou mapear fontes de informaes que apresentem indicadores sobre a criana e o adolescente sendo este um procedimento necessrio na contemporaneidade, e que acima de tudo possibilite a anlise e interpretao dos dados. Nessa perspectiva, esse documento traz um Diagnstico de Fontes de Informaes sobre a Infncia nos Estados do Sul do pas: Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, etapa esta considerada preliminar construo do Sistema de Monitoramento baseado em Dados da Infncia. A discusso sobre fontes de informao com indicadores diretamente relacionados criana e ao adolescente permitiu identificar como as instituies que realizam pesquisa discutem essa temtica, disponibilizam e divulgam os dados. O acesso e compreenso dessas informaes instrumentalizam atores do Sistema de Garantias de Direitos da Infncia e pode contribuir para uma atuao ainda mais efetiva nos espaos de interveno poltica e social. Dessa maneira, esse documento apresenta um contedo que fruto de reflexes tericas, metodolgicas e conceituais, e por meio dela busca identificar indicadores para o monitoramento da situao de direitos da infncia baseado em dados, tomando como modelo experincias internacionais j consolidadas. Diante disso, o primeiro captulo deste documento trata dos Direitos Humanos de Crianas e Adolescentes, as concepes, apontamentos e reflexes terico-prticas, suas relaes e inter-relaes, alm de aspectos histricos dos Direitos da Criana e do adolescente no Brasil e a elaborao e legitimao dos documentos legais: Constituio Fede16

IntRoDuo

ral do Brasil, Estatuto da Criana e do Adolescente e normativas internacionais: Declarao Universal dos Direitos Humanos, Declarao dos Direitos da Criana e Conveno das Naes Unidas sobre os Direitos da Criana. O segundo captulo traz a definio conceitual sobre indicadores e o modelo de sistema de monitoramento apresentado, a fim de ressaltar a necessidade e a importncia de se apropriar dos indicadores para fortalecimento do papel da Sociedade Civil no controle social e maior eficcia na incidncia poltica. O terceiro captulo apresenta as fontes oficiais, destacando sua concepo, metodologia, periodicidade e acesso. Por opo, tambm foram includas instituies que realizam pesquisas, ncleos e observatrios que destacam informaes sobre a infncia. Essas instituies apontadas contribuem na pesquisa e gerao de informaes sobre esse pblico na regio sul do pas. O recorte geogrfico desse documento se deu a partir de aspectos de identidade regional, e algumas fontes internacionais e nacionais foram includas como forma de ampliar o acesso as informaes. Cabe mencionar ainda a dificuldade encontrada em acessar as informaes, visto que essas se encontram dispersas, sem sistematizao, sem divulgao adequada e utilizam metodologias diferentes para a anlise e interpretao dos dados. Dito isso, o resultado em que se chegou neste captulo transcende a apresentao do contedo, que permite ao leitor compreender e identificar as fontes de pesquisas e seus mtodos de anlise dos dados, um detalhamento que oferece um referencial terico e metodolgico importante para a definio de indicadores de monitoramento dos Direitos da Criana e do adolescente. O documento apresenta tambm consideraes finais - aspectos relevantes na leitura e anlise da proposta apresentada. Por fim, o intuito desse documento, alm dos apresentados acima, de fomentar a construo de conhecimento e de subsdios para a tomada de deciso baseada em dados referentes ao enfoque dos Direitos da Criana e do adolescente, bem como instigar o leitor a buscar elementos referentes ao tema e a sua atuao.

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DIREITOS HumANOS DE CRIANAS E ADOlESCENTESAPontAMEntos E REFlExEs tERIco-PRtIcAs

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ivemos em uma poca na qual os direitos humanos so uma temtica amplamente difundida. Progressivamente os direitos vo sendo pautados, de acordo com as transformaes histricas e suas demandas. Cada vez mais estes direitos so especificados e direcionados a parcelas especficas da populao, como no caso das crianas e adolescentes. Mas uma conquista ampla e efetiva do exerccio dos direitos humanos ainda est longe de ser uma realidade. Os problemas e as justificativas para o no exerccio dos direitos humanos so inmeros, passando por questes econmicas, culturais, religiosas, etc. Como afirma Bobbio, (2004), no momento de apoiar a ideia dos direitos humanos universais, a maioria dos governos concordou com sua existncia1, porm, no momento de passar ao, aparecem as reservas e oposies. Esta complexa situao se estende a condio de direitos humanos de crianas e adolescentes. Desde a Conveno de Direitos da Criana de 1989, que, diga-se de passagem, foi amplamente incorporada na legislao brasileira, h o reconhecimento da comunidade internacional de que crianas e adolescentes so sujeitos de direitos. Mas de que modo esta condio vivenciada em nosso pas? Nossa sociedade incorpora culturalmente os princpios para desenvolver com a criana e o adolescente uma relao de respeito? H recursos financeiros suficientes para executar as polticas previstas? O acesso a bens e servios igual para todas as crianas e os adolescentes? Nem preciso desdobrar os muitos aspectos que se encontram implcitos nestes questionamentos para ficar evidente que apesar de um longo caminho j trilhado, a garantia de direitos de crianas e adolescentes , ainda hoje, um tema relevante de debate e reivindicao. Neste sentido, a preocupao com a identificao e a sistematizao de indicadores que possam avaliar a situao da infncia e da juventude no Brasil, uma estratgia utilizada para a solidificao de aes j desenvolvidas ou para indicar novos rumos de atuao social. Tal anlise da realidade somente se faz ancorada em reflexes e elementos histricos. No pretendendo, em nenhum momento, esgotar o

V

1

Esta afirmativa de Bobbio (2004) se refere ao fato histrico de que a Declarao Universal dos Direitos do Homem de 1948 foi reconhecida pela maior parte dos governos.

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FontEs soBRE A InFncIA

assunto, o presente captulo trata de colaborar com a misso desta publicao, apresentando um panorama geral da condio scio-cultural e legal da criana e do adolescente, evidenciando aspec-

tos relevantes da histria brasileira e trazendo reflexes que podem lanar luzes sobre os modos como pensamos e agimos com relao criana e ao adolescente na atualidade.

crianas e adolescentes: vrias concepesO mundo adulto, com frequncia, tem dificuldade em compreender e respeitar os modos de expresso e insero social da criana e do adolescente. Em seu livro Os mudos falam aos surdos, Mollo ilustra bem a questo: certamente por terem fama de faladoras que no se ouvem as crianas; certamente tambm por se pensar por elas que no se entende o que dizem. (MOLLO, 1977 in BERNARDI, 2005: 34). Esta frase emblemtica destaca como as pr-concepes e a desconsiderao das diferenas colocam barreiras nas relaes entre adultos e crianas/adolescentes, levando a um caminho de ausncia de comunicao, de no reconhecimento do outro. Seja na viso da criana como um inocente, uma pessoa imatura, ainda incapaz de compreender o mundo a sua volta, ou no entendimento do adolescente como um perigo ordem social, ou ainda, em um tom irnico, como um aborrecente2; a criana e o adolescente so corriqueiramente tratados mais como objetos do que como sujeitos, mesmo no mbito das polticas pblicas. A garantia de direitos de crianas e adolescentes no se trata somente de uma mudana de ordem cientfica e jurdica, mas de uma perspectiva de relacionamento renovada, baseada na considerao da alteridade e da construo de uma realidade social onde qualquer forma de violncia e opresso no passe despercebida. No entanto, a invisibilidade e o descrdito no so as nicas condies sociais da criana e do adolescente. Convivemos com variadas concepes a respeito da vida

2

Para maior aprofundamento ver Renault (2002), Sarmento (2005 e 2008) e Mollo (2005).

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Direitos Humanos De Crianas e aDolesCentes: apontamentos e reflexes teriCo-prtiCas

humana em seus primeiros anos; concepes que podem at apresentarem-se como contraditrias. Para alguns estudiosos de fato a contradio que marca o lugar social da criana e do adolescente em nossa sociedade3. Mollo, em um artigo de 2005, faz uma sntese das condies e significados da infncia4. Coexistem diferentes concepes de infncia expressas nas prticas individuais, institucionais e no imaginrio coletivo: a criana um investimento, alvo de polticas e aes que pretendem gerar cidados saudveis e educados (intenes sociais que ecoam na preocupao de pais com o preparo de seus filhos para o futuro); mas a criana tambm um nada, uma coi-

sa, alvo de violncias e do acaso. Quando no destinada morte ou invisibilidade social, tornase objeto de programas sociais e instituies. Estes dois plos de concepes, bem como meus mltiplos espectros, apontam todas as incoerncias e todas as contradies que marcam o lugar das crianas em nossa sociedade. (MOLLO, 2005:400). comum que um discurso que afirme a necessidade de proteger direitos de crianas e de adolescentes, ao mesmo tempo se refira a estes como incapazes ou no considere relevantes as suas opinies. Como veremos adiante, este modo de pensar e agir sobre a criana e o adolescente possui fortes razes na histria das polticas brasileiras.

3

Para desenvolver esta questo, ver a bibliografia citada, principalmente Renault (2002), Sarmento (2005 e 2008) e Mollo (2005). Em algumas das referncias utilizadas, o recorte dos autores sobre a criana e a infncia; em outras leituras, o termo criana utilizado de modo genrico, significando uma referncia criana e ao adolescente. Ao fazermos argumentaes baseadas em um dado autor, conservamos as expresses por ele utilizadas, mas, como poder ser verificado, grande parte das questes postas em torno dos conceitos de infncia e de criana podem ser generalizadas para a adolescncia e a adolescentes.

4

Infncia e adolescncia como fenmenos sociaisBernardi, (2005), observa que os estudos atuais que tematizam a infncia e a adolescncia se referem a estas usando termos como concepo, imagem, perspectiva, significados, representao. Orientados por diferentes perspectivas tericas, tais termos implicam em uma ideia central: estamos diante de fenmenos construdos socialmente. O fenmeno biolgico da vida humana um fato da natureza, mas como esta vida interpretada e as relaes que os indivduos estabelecem entre si, um fenmeno social. Deste modo, pensar a criana e a adolescncia hoje diferente de como se pensava sobre elas

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FontEs soBRE A InFncIA

cem, duzentos, quinhentos, mil anos atrs. At mesmo os referenciais etrios e os termos empregados variam ao longo do tempo.

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O ttulo original deste livro Lenfant et la vie familiale sous lAncien Rgime. Muitas vezes, uma traduo mais literal deste ttulo aparece citada nas bibliografias. Heywood (2004), apoiado em pareceres de historiadores, enumera vrios problemas relacionados s fontes de pesquisa de Aris. Entre estes, citamos dois aspectos: os dirios e autobiografias revelam indcios de concepes que poderiam estar circunscritas a classes sociais especficas; as obras de arte da Idade Mdia possuam certo padro de expresso artstica que pouco retratava da vida cotidiana, preocupando-se mais em representar posies de status e apresentar os temas religiosos.

os significados sociais atribudos criana e ao adolescente, bem como os modos de interao com os adultos, foram mudando ao longo da histria, de acordo com as mltiplas transformaes sociais.

6

Em Histria Social da Criana e da Famlia5, trabalho considerado como fundamental entre os estudos relacionados histria da infncia, Philippe Aris aponta mudanas ocorridas durante e aps a Idade Mdia, que levaram a sociedade moderna a compreender a infncia de um novo ngulo: o surgimento do sentimento de infncia. Este sentimento estaria na base do reconhecimento de uma condio diferenciada de infncia; de um novo quadro familiar, onde as relaes afetivas tornam-se determinantes e de uma crescente produo de teorias sobre as especificidades de cada perodo da infncia, incluindo a diferenciao entre esta e a adolescncia. (ARIS, 2006) A expresso sentimento de in-

fncia faz uma referncia dual na opinio de Heywood (2004), servindo tanto para compreender o surgimento de uma relao de afeto e cuidado, quanto para a emergncia de um novo conceito de infncia. Apesar de Aris constituir-se como referncia obrigatria, pois lana as bases para toda uma produo que, partindo de suas consideraes, tematiza a concepo de infncia como um processo histrico, so inmeras as crticas endereadas a sua tese do surgimento do sentimento de infncia na modernidade. As crticas mais generalizadas sobre a tese de Aris recaem sobre as fontes de pesquisa por ele utilizadas6. Embora tambm se questione que, ao buscar referncias semelhantes aos contemporneos, Aris possa ter deixado de identificar outras formas de conscincia de infncia. (HEYWOOD, 2004) O filsofo francs Renaut, (2002), realiza um estudo amplo, com dados que remetem a prticas sociais desde a Antiguidade, questionando se o sentimento de infncia, postulado por Aris, pode ser indicativo do surgimento na modernidade de uma forma de amor paternal totalmente indita. Em sua pesquisa histrica, Renaut, (2002), afirma que desde

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Direitos Humanos De Crianas e aDolesCentes: apontamentos e reflexes teriCo-prtiCas

a Antiguidade existiam, embora muito distintos das percepes que surgem na modernidade, sentimentos de afeto, apego e tambm reconhecimento sobre as especificidades da infncia. A grande diferena que emerge na modernidade no reside na existncia de sentimentos sobre a infncia, mas na mudana deste sentimento. Na modernidade h uma renovao da percepo de infncia. O que ocorre na modernidade o desabrochar de uma reestruturao da percepo sobre a infncia, em torno de valores de igualdade e de liberdade, o que reordena as relaes de alteridade com a criana (RENAUT, 2002). A concluso que Renaut chega, demarcando uma posio que ele julga ser distinta de Aris, de que a compreenso da criana como dotada de direitos foi resultado de um movimento extremamente lento, que precedeu em muito o humanismo moderno. E que, se de fato, a modernidade transformou a relao com a infncia, esta alterao no nasceu do surgimento de um amor parental indito at ento. A relativizao do conceito de sentimento de infncia no significa que as crianas e adolescentes dos sculos anteriores viveram em um paraso terrestre. As con-

dies gerais da vida eram muito duras, com o risco constante de epidemias e guerras. Alm disso, as crianas, reconhecidas como posses de seus pais7, eram especialmente expostas a maus tratos, abandonos e assassinatos. O abandono e a venda de crianas eram frequentes, principalmente em perodos de escassez de recursos para a subsistncia. Na Idade Mdia, surgiu uma nova alternativa ao abandono: a entrega de crianas para serem criadas em mosteiros. O que poderia livr-las de algumas formas de sofrimento, mas as colocavam em uma situao de submisso autoridade religiosa. De fato, a condio humana de dependncia e servido era comum at a Idade Mdia. Nestes termos, a vida de crianas e de adolescentes no era muito diferente da grande maioria da populao em especial mulheres e servos. Somente aps as lentas mudanas sociais que envolveram o reconhecimento da liberdade humana que a liberdade da criana e do adolescente tambm foi tematizada. (RENAUT, 2002) Em sntese, os modos de pensar e agir com relao a crianas e adolescentes dizia muito sobre a estrutura social e suas demandas. E as mudanas sociais no ocorre-

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Inclusive, no direito Romano, o pai tinha o poder de executar seu filho mesmo que este j fosse adulto. (RENAUT, 2002)

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FontEs soBRE A InFncIA

ram rapidamente, exigem um longo cozimento histrico. Passamos a apontar algumas noes e atitudes que merecem destaque8, pois se relacionam a transformaes sociais importantes e que ainda reverberam sobre a contemporaneidade:

O que se deve ter em mente que as diferentes ideias sobre crianas e adolescentes mesclavam-se ou existiam lado a lado. Por exemplo, a viso crist de que a criana era manchada pelo pecado original demorou a se dissolver, convivia e se destacava em relao noo

Sculos XV, XVI e XVII: Mudanas nas relaes econmicas incentivam a instruo dos filhos das classes intermedirias, para melhor operarem com seus bens. A principal imagem atribuda criana era de um ser mal, sujo e fraco, devido a marca deixada pelo pecado original. Diante disto, a principal questo era de dar uma orientao religiosa criana. (HEYWooD, 2004) Sculos XVII e XVIII: Preocupao com a moralidade da criana leva a tendncia de um isolamento, que primeiro ocorre nas classes abastadas e depois se generaliza no tecido social. Esta tendncia vem em consonncia com uma profunda mudana da organizao social, na qual a antiga sociabilidade medieval vai sendo substituda por novos costumes, incluindo a preservao da intimidade e consolidando uma vida familiar privada. Despontam, tambm, concepes diferenciadas sobre a infncia: alguns pensadores lanam as sementes para a ideia de que a criana como ser humano dotada de certa liberdade. surgem questionamentos sobre a autoridade paterna absoluta. Postula-se que esta deve se restringir a um governo da vida infantil orientada para o seu bem estar. (REnAut, 2002)8 Trata-se de processos estudados na civilizao europia, mas que foram intensamente disseminados em todo o ocidente.

Final do sculo XVIII e o incio do sculo XIX: Aparece a concepo romntica de infncia. nesta, as crianas tornam-se virtuosas, criaturas de sabedoria e moralidade. Muitos artistas e escritores deixaram obras marcadas pela ideia romntica de infncia. (HEYWooD, 2004)

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romntica (HEYWOOD, 2005). A concluso de Heywood de que a histria da infncia, considerando o perodo da Idade Mdia at a modernidade do sculo XX, no pode ser vista como uma trajetria linear, mas sim cclica. um fenmeno que se move por linhas sinuosas com o passar dos sculos: a criana poderia ser considerada impura no incio do sculo XX tanto quanto na Alta Idade Mdia (...). O que ocorreu foi uma mudana de longo prazo rumo a uma sociedade urbana pluralista favorecendo o surgimento gradual de uma verso prolongada de infncia, que suscitou a necessidade de uma educao ampla e determinada segregao dos jovens em relao ao mundo dos adultos (HEYWOOD, 2004: 35). Na modernidade, a criana passa a ocupar um lugar de importncia ao mesmo tempo em que se fortalecem processos de vigilncia e controle sobre ela. A criana precisa ser formada, educada. Para Renaut (2002), a percepo sobre as diferenas implicadas nas idades da vida humana resultou em uma concepo de que a passagem da infncia e da adolescncia para uma vida adulta s poderia ser feita pela educao. A infncia, tida como male-

vel, objeto de intervenes que visam sua modelagem, tanto nas prticas educacionais como nas mdicas. A emancipao da criana, como uma pessoa diferente do adulto no se d fora do registro da necessidade de sua normatizao para uma existncia homognea, pois se estabelece um modelo correto para ser indivduo. Dito de outro modo, ocorre a promoo de uma identidade normalizada (RENAUT, 2002). O que se identifica que o primeiro lugar que a modernidade d criana o lugar de alvo de proteo a servio de uma modelagem. Para que isto ocorresse, era preciso certo aprisionamento e processos de correo. Para Sarmento (2008), a modernidade confinou as crianas a espaos privados, ao cuidado das famlias e das instituies tais como creches, reformatrios, orfanatos. Este impulso foi caracterizado pela retirada dos mais jovens da esfera pblica, principalmente se estes apresentavam indicadores potenciais de desvio ou indigncia econmica (SARMENTO, 2008: 19). A correo e o aprisionamento fazem parte da mesma lgica que reconhece na criana um ser indefeso, exigindo do mundo adulto

notas

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formas de proteo, cuidados especficos direcionados a sua segurana. Para Sarmento (2005), esta cultura de proteo um fato social sem precedentes que instaura uma norma de defesa da criana constitutiva de uma imagem de criana-rei (...), em torno da qual se organiza a vida familiar, se projetam as aspiraes parentais, se sustentam polticas pblicas direcionadas para a famlia; ao mesmo tempo, as posies paternalistas estabelecem condies de dependncia que favorecem uma efetiva menorizao das crianas, potenciam a assimetria de poderes nas relaes intergeracionais e constituem fortes constrangimentos de exerccio de uma vida social plena pelas crianas (sARMEnto, 2005: 369). Estas observaes de Sarmento nos levam a considerar que a centralidade da criana e do adolescente nas famlias e nas polticas, sob o foco da proteo, nem sempre vem acompanhada da garantia de seus direitos. Pois alm da ideia da proteo, garantir direitos humanos de crianas e de ado-

lescentes significa respeitar suas condies de vida, suas formas de perceber e agir no mundo. Na grande maioria das sociedades, as diferenas biopsicossociais entre crianas/adolescentes e adultos referendam aes e discursos legitimadores da desigualdade, respaldando o poder do adulto (NETO, 2004; SARMENTO, 2005). O resultado uma cultura adultocntrica9, que estabelece relaes de discriminao, negligncia, explorao e violncia, isto , de opresso e dominao sobre crianas e adolescentes, num claro (mas raramente reconhecido) processo de hegemonia social, cultural, econmica e jurdica do mundo adulto, em detrimento do mundo infantoadolescente (nEto, 2007: 08).

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Podemos definir simplificadamente o adultocentrismo como a desconsiderao do universo infanto-juvenil diante da super valorizao dos referenciais adultos e seu modo de sentir, raciocinar e estabelecer relaes.

A criana e o adolescente so vistos como subalternos ao mundo dos adultos, com valor somente enquanto seres em trnsito, futuros cidados que no presente so alvo de cuidados, tratamentos e orientaes. Neste referencial, as crianas so invisveis por no serem consideradas como seres sociais com direitos plenos (SARMENTO, 2008).

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Mas as diferenas entre adultos, crianas e adolescentes no precisam ser vistas em uma escala de valores, atribuindo-se qualidades comparativas entre elas. Pode significar simplesmente uma diferena de condies de vida. Quando alguns autores falam em identidade geracional10, esta a ideia que tentam evidenciar: infncia e adolescncia so ciclos distintos da vida, tal como ocorre com a vida adulta e a velhice. Todos ns, seres humanos possumos caractersticas bio-psquicas: h etapas da vida biolgica e psicolgica a serem consideradas, porm estas no so determinantes. Somos, antes de tudo, seres sociais, o que implica no fato de que no bastam nossas condies biolgicas e psquicas, mas estas esferas precisam ser postas em relao com a condio social de existncia. O modo como a sociedade se organiza, como estabelece suas relaes e como trata a infncia e a adolescncia, so fatores constitutivos dos indivduos. Ser um sujeito social tambm implica em vrias formas de vida concreta: ser menina ou menino, ser rico ou pobre, ser branco ou negro, viver na rea urbana ou rural, ser cristo ou muulmano, so s algumas das diferenas reais

que designam diversas condies concretas de existncia. Diante desta questo, a noo de infncia e de adolescncia so construes sociais e, portanto, so fenmenos histricos sobre os quais se produzem diferentes vises de acordo com uma determinada poca e seus valores. Mas a criana e o adolescente, as pessoas concretas que vivenciam estes perodos da vida humana que chamamos de infncia e adolescncia, so sujeitos sociais, que vivenciam situaes distintas, pois esto inseridas em realidades multideterminadas e lidam com estas realidades de modos diferentes, alm de possurem uma subjetividade prpria. Pensar a criana e o adolescente deste modo permite entender que seus direitos so direitos humanos, porque fazem parte da humanidade. No se concedem direitos a elas por uma atitude de bondade dos adultos, mas porque elas tm direito a terem direitos. Ao mesmo tempo, crianas e adolescentes vivenciam uma condio humana peculiar, porque esto em uma etapa da vida que demarca algumas diferenas. E estas diferenas precisam ser compreendidas e respeitadas em um duplo sentido:

10 As etapas da vida entendidas sob o conceito de gerao conferem especificidades identidade de cada pessoa. Para ver detalhadamente o conceito de gerao: Sarmento (2005) e Neto (2007).

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notas

Existem aspectos especficos da existncia durante a infncia e a adolescncia. A subjetividade humana e as experincias concretas da vida fazem com que cada criana e cada adolescente sejam seres humanos singulares.

traficadas, estamos realizando um processo de adjetivao que recalca e oculta a identidade do ser criana (ou do ser adolescente) e sua essncia humana (...) (grifo do autor) (nEto, 2007: 08).

A tarefa dos movimentos que reivindicam a garantia de direitos de crianas e adolescentes de agir contra a cultura adultocntrica. preciso abandonar a ao meramente caritativa para construir modos de reconhecimento das identidades concretas de crianas e adolescentes. Quando s conseguimos pensar a criana e o adolescente a partir de situaes problemas como menores, delinquentes, pobre abandonado, meninos e meninas em situao de risco, abusados e explorados sexualmente, miserveis, protagnicos, desnutridos, organizados politicamente, marginalizadas, exploradas no trabalho, drogadas, assassinadas, maltratadas, deficientes, desaparecidas, 28

O direcionamento de servios e polticas resoluo pontual de problemas sociais, perdendo a dimenso ampla das condies de existncia de crianas e adolescentes geram aes meramente normativas, descontextualizadas e pensadas sob a influncia de uma cultura adultocntrica (FERREIRA e SARMENTO, 2008). Um segundo ponto de reflexo se refere a noo de que as condutas das crianas e dos adolescentes so determinadas por caractersticas biolgicas e psicolgicas, sem levar em considerao suas subjetividades. Abstrair as diferenas em prol da crena de que h uma homogeneidade conferida pelos aspectos psicolgicos, afetivos e cronolgicos, anula a possibilidade de compreenso das subjetividades (FERREIRA e SARMENTO, 2008). O que podemos entender da realidade de outro ser humano se

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achamos que sabemos o que e como ele pensa? Vale uma nova referncia citao de Mollo, comentado anteriormente, que nos fora a perceber que se pensamos pela criana e pelo adolescente no poderemos ouvi-los; ouvir a criana e o adolescente no somente um princpio tcnico, mas uma condio poltica para um dilogo que permita a to almejada participao infanto-juvenil, que nada mais do que abrir espao para uma partilha de poder entre as geraes. Confraternizando com Dolto (2005), que acreditava que todos os que se dispem a ouvir as respostas das crianas e de um esprito revolucionrio, entendemos que preciso defender uma condio emancipatria da infncia e adolescncia. Para tal tarefa necessrio procurar alternativas novas, atravs de espaos e mecanismos estratgicos (polticos, sociais, econmicos, culturais, religiosos e jurdicos) que se tornem verdadeiros instrumentos de mediao, nessa luta pelo asseguramento da essncia humana e da identidade geracional,

vencendo esse processo de des-humanizao, de dominao e opresso, de desclassificao social de crianas e adolescentes (nEto, 2007: 10).

notas

Encontramo-nos em um momento em que a anlise da realidade crucial. Precisamos compreender como vivem as crianas e adolescentes do nosso pas para insistir nas medidas que trazem resultados e repensar as estratgias diante das barreiras que ainda no conseguimos transpor.

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Direitos HumanosO debate sobre o reconhecimento dos direitos humanos tem suas origens no incio da modernidade. Trs documentos importantes, originrios de momentos histricos que envolveram grandes mudanas sociais, podem ser compreendidos como precedentes a discusso atual sobre direitos humanos: o Bills of Rights da Inglaterra, elaborado na consagrao da Revoluo de 1689, o Bills of Rights das colnias americanas que se rebelaram contra a Inglaterra em 1776 e a famosa Dclaration des Droits de Lhomme et Du Citoyen de 1789, que emergiu da Revoluo Francesa (BOBBIO et all, 1998). Estes marcos histricos dos direitos envolviam aspectos distintos dos de hoje em dia, pois a questo dos direitos estava orientada pelo contexto da consolidao do Estado de Direito11. O fato que a chamada concepo contempornea de direitos humanos surge com a Declarao Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Naes Unidas em 10 de dezembro de 1949 (PIOVESAN, 2006). neste contexto, ps Segunda Guerra Mundial, que a questo dos direitos posta como um problema internacional. Na Declarao Universal, emergem direitos de acordo com a conscincia do valor fundamental da vida humana, que entram em pauta a partir das atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial. Os horrores do nazismo, sobre o qual basta lembrar a morte de pelo menos 11 milhes de pessoas, ocorreram em nome de uma nao. Ou seja, foi o Estado o violador de direitos, com base na ideia de que a titularidade de direitos (a condio de possuir direitos) pertencia somente a uma determinada raa, a raa pura ariana (PIOVESAN, 2006). Diante das repercusses e implicaes dos crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, Comparato afirma que a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra poca da Histria, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento (...) veio aprofundar a afirmao histrica dos direitos humanos (COMPARATO, 2005: 55). A Declarao Universal inaugura uma fase que ainda podemos considerar em desenvolvimento, e (...) representa um fato novo na histria, na medida em que, pela primeira vez, um sistema de prin-

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Sobre o estado de Direito ver Bobbio et all (1998) e Bobbio (2004).

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cpios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, atravs de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vivem na Terra (BOBBIO, 2004: 27). A Declarao Universal tambm a sntese dos movimentos scio-histricos de universalizao dos direitos humanos. Os direitos no so fatos da natureza, resultam de lutas pela emancipao ou por melhores condies de vida e por isto so passveis de transformaes e ampliaes. Os direitos no nascem todos de uma vez, cada momento envolve circunstncias especficas que colocam em pauta determinados direitos. O que nos remete a ideia de que no desenvolvimento das sociedades humanas e de suas demandas, que os direitos vo surgindo como tal. E tambm os direitos no surgem

de uma vez por todas, quer dizer, so necessrios debates, enfrentamentos e lutas sociais para que o que est assegurado no papel possa ser uma prtica concreta entre as pessoas (BOBBIO, 2004). Resumindo, para compreender a perspectiva dos direitos humanos, precisamos tom-los como um fenmeno social fruto das interaes entre as pessoas. Ao longo dos anos os direitos foram se multiplicando e diferenciando. medida que o ser humano no era mais visto de modo abstrato e sim em suas dimenses concretas, como sua cultura, seu sexo, sua idade, os direitos vo sendo especificados, o que d origem a novas normativas, voltadas a aspectos singulares da vida humana. neste contexto que surgem os direitos humanos de crianas e de adolescentes.

notas

Direitos humanos de crianas e adolescentesAo observarmos a afirmativa do artigo primeiro da Declarao francesa de 1789, de que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos (DDHC de 1789, in COMPARATO, 2005: 154), constatamos que decorrem quase 200 anos at que a criana e o adolescente sejam includos na dimenso de direitos atribuda aos homens. Este fato sugere a Renault (2002), que a incorporao dos Direitos da Crian31

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CONVENO DOS DIREITOS DA CRIANA 1924Foi aprovada pela extinta Assembleia da sociedade das naes, a primeira Declarao dos Direitos da criana, chamada de Declarao de Genebra. seu contedo era baseado no texto escrito em 1923 por Eglantyne Jebb, fundadora da unio Internacional de socorro s crianas.

a na modernidade foi um processo lento at as primeiras dcadas do sculo XX. Porm, a partir destes ltimos oitenta anos a situao se inverte, e adentramos em um perodo de acelerao com relao ao tema da criana e do adolescente e seus direitos. Com relao s declaraes que se referem ao pblico infanto juvenil, precisamos contar sua histria desde 1924, a partir de quando surgem no cenrio mundial menes a infncia. Porm uma real transformao na noo da criana como detentora de direitos somente ser concretizada pela Conveno dos Direitos da Criana em 1989. Com relao Conveno dos Direitos da Criana de 1989, os textos de 1924 e de 1959 se diferem basicamente em duas questes: As primeiras declaraes no apresentavam obrigatoriedades para que os Estados signatrios aplicassem seus princpios; A nfase dos textos era dada proteo da criana e no posse de direitos. Na Declarao de 1924, o que se colocava eram os deveres do adulto na proteo fsica e moral da criana. E em 1959,

apesar da introduo do documento mencionar que a criana detinha direitos de proteo e liberdade, todos os seus artigos listavam somente direitos de proteo, em nome de um desenvolvimento saudvel de seres imaturos. Em 1978, o governo polons apresentou Comisso de Direitos Humanos da ONU o projeto de uma conveno homenageando o escritor e pedagogo Janusz Korczak, que morrera junto com as crianas do orfanato que dirigia, em uma cmara de gs no campo de extermnio de Treblinka, em 1942 (LEWOWICKI et all, 1998). Korczak argumentava em seus livros que as crianas eram uma classe oprimida e tinha por urgente a criao de vias que permitissem a elas expressarem suas ideias. Ele valorizava a criana no presente, no como um investimento para o futuro, e sim como uma pessoa que merecia ser respeitada. A proposta polonesa foi submetida a um longo perodo de debates, ocorridos entre 1980 e 198712. Com relao ao contedo dos debates, o confronto poltico da Guerra Fria, as desigualdades econmicas, as dife-

12 De acordo com Rosemberg e Mariano (2010), o Brasil enviou representante a todas as sesses desde 1981.

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renas de interesses e de concepes de infncia desencadearam negociaes tensas e conflituosas. Estas tenses foram se abrandando com mudanas polticas que ocorreram em meados da dcada de 1980, o que permitiu uma aproximao de posies, acentuando o apoio aos direitos sociais, como essenciais ao modelo democrtico do Estado de Bem-Estar (ROSEMBERG, MARIANO, 2010: 708). A Conveno foi promulgada em 20 de novembro de 1989. o primeiro documento internacional que concebe a criana e o adolescente como titulares de seus direitos. Sua ratificao rpida e ampla denota sua importncia: At o momento, 193 pases ratificaram a conveno. Alm de ser o instrumento de direitos humanos mais ratificado em escala mundial, a grande maioria das ratificaes ocorreu nos primeiros 10 anos aps sua aprovao, o que no acontecera com outros tratados internacionais. somente os EuA e a somlia no procederam ratificao da conveno (RosEMBERG e MARIAno, 2010: 709-710).

Rosemberg e Mariano (2010), apresentam um quadro sntese dos Direitos da Criana que a Conveno de 1989 estabeleceu. Neste quadro-sntese pode-se observar que a Conveno estabeleceu direitos de liberdade, reconhecidos criana por sua condio de ser humano, e direitos de proteo, determinados de acordo com sua especificidade etria (ROSEMBERG, MARIANO, 2010). Estes direitos so apresentados de acordo com quatro princpios anunciados na Conveno: no discriminao; adeso aos melhores interesses da criana; sobrevivncia e desenvolvimento e participao. A ratificao da conveno pelo governo brasileiro ocorreu em 1990, mesmo ano em que o Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei 8.069, foi promulgado. O Estatuto j incorpora o esprito da Conveno, tematizando a criana e o adolescente como sujeitos de direitos. Pereira (1998), ressalta que a tnica dada nesta lei da superao do assistencialismo, visando uma poltica universal de direitos ao invs de aes paliativas direcionadas a populao marginalizada. O Estatuto d amparo a todos

CONVENO DOS DIREITOS DA CRIANA 1949A organizao das naes unidas onu serviu-se da Declarao de Genebra e inseriu a questo da criana no artigo 25 da Declarao universal dos Direitos do Homem - DuDH.

1959Para desenvolver os termos do artigo 25 da DuDH, aprovada pela onu a Declarao dos Direitos da criana, com dez princpios.

1989Baseada em uma proposta inovadora, promulgada a conveno Internacional dos Direitos da criana.

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Sntese dos Direitos da Criana estabelecidos na conveno de 1989DIREItos cIVIs E PoltIcos Registro, nome, nacionalidade, conhecer os pais. Expresso e acesso informao. liberdade de pensamento, conscincia e crena. liberdade de associao. Proteo da privacidade. DIREItos EconMIcos, socIAIs E cultuRAIs Vida, sobrevivncia e desenvolvimento. sade. Previdncia social. Educao fundamental (ensino primrio obrigatrio e gratuito). nvel de vida adequado ao desenvolvimento integral. lazer, recreao e atividades culturais. crianas de comunidades minoritrias: direito de viver conforme a prpria cultura. DIREItos EsPEcIAIs (proteo) Proteo contra abuso e negligncia. Proteo especial e assistncia para a criana refugiada. Educao e treinamento especiais para crianas portadoras de deficincia. Proteo contra utilizao pelo trfico de drogas, explorao sexual, venda, trfico e sequestro. Proteo em situao de conflito armado e reabilitao de vtimas desses conflitos. Proteo contra trabalho prejudicial sade e ao desenvolvimento integral. Proteo contra o uso de drogas. Garantia ao direito ao devido processo legal, no caso de cometimento de ato infracional.(Fonte: FRotA, 2004: 71, in RosEMBERG e MARIAno, 2010: 712)

os direitos anunciados na Conveno de 1989. O modo como os estudiosos usualmente categorizam os direitos apresentados no Estatuto 34

feito em termos de direitos individuais como vida, liberdade, dignidade e coletivos a exemplo dos econmicos, sociais e cul-

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turais.13 Desde sua promulgao, o Estatuto, embasado na Constituio Federal de 1988, que norteia as polticas destinadas criana e ao adolescente. Os princpios e a poltica de atendimento previstos no Estatuto so considerados inovadores, mesmo hoje em dia, passados mais de 20 anos de sua publicao. Apesar da importncia desta lei para a construo de um novo paradigma de ateno criana e ao adolescente, e mesmo tendo desencadeado inmeras conquistas, a implementao plena do Estatuto ainda uma pauta de reivindicao, pois exige uma complexa mudana cultural e institucional. No faltam notcias que denunciam abusos e descasos com relao a esta populao, cometidos tanto por familiares, responsveis, como pelo poder pblico. Mas como podemos compreender os problemas que enfrentamos? Vivemos em uma cultura de violncia que assola a todos? Ainda nossa sociedade se recusa a tratar crianas e adolescentes como pessoas que possuem direitos? Estamos fazendo menos do que deveramos com recursos escassos e falta de capacitao profissional? As respostas a estas questes

no aparecero espontaneamente. Estamos novamente diante da necessidade de uma reflexo crtica, relacionando nosso passado e nosso futuro em suas mltiplas determinaes. Aspectos histricos dos Direitos da Criana e do adolescente no Brasil Existe uma grande carncia de dados histricos com relao ao modo como a criana vivia na sociedade brasileira antes da ocupao portuguesa em 150014. Pois, (...) diferente do que ocorreu com os povos do chamado velho mundo e de outras partes da Amrica latina, nossos antepassados no escreviam nem construam edifcios de pedra que pudessem contar-nos um pouco de seus costumes e leis. Pelo fato de serem nmades, coletores, caadores e pescadores, os povos indgenas brasileiros no desenvolveram uma civilizao fixa e, assim, no se inscreveram na histria escrita e hoje em dia reconhecida como histria oficial (FAJARDo, 1999:06). O que possvel ponderar, a

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Pensar os direitos como direitos de liberdade ou direitos de proteo tambm uma maneira vlida de categorizao, mais utilizada na literatura pesquisada, nos comentrios sobre a Conveno de 1989. Para ver mais detalhadamente esta categorizao e suas implicaes ver RENAULT (2005); ROSEMBERG e MARIANO (2010). De fato, a povoao das terras brasileiras iniciou-se somente em 1530 (RAMOS in DEL PRIORE, 2007).

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Grumetes eram os empregados de menor prestgio nas naus, desenvolviam trabalhos pesados e numerosos. Pajens eram serviais de oficiais e nobres, apesar de serem em geral mais jovens, eram superiores hierarquicamente aos grumetes, e repassavam a esses, parte de suas tarefas (RAMOS in DEL PRIORE, 2007). As rfs do Rei eram meninas destacadas para casarem nas colnias. O maior envio de meninas era s ndias, pois no Brasil a prtica de amancebar-se com as nativas suavizava o problema da constituio de famlias (RAMOS in DEL PRIORE, 2007: 33). A bibliografia utilizada fornece dados mais detalhados sobre a Companhia de Jesus, mas eram vrias as ordens religiosas que exerciam a converso e o ensino no Brasil do sculo XVI.

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partir de alguns fragmentos histricos, que antes do Brasil tornar-se uma colnia portuguesa, a concepo de infncia era muito distinta da que se inscreve nos fatos histricos depois dela (FAJARDO, 1999). As fontes de pesquisa disponveis permitem uma retomada da condio social da infncia e da adolescncia a partir dos relatos das naus portuguesas do sculo XVI. Em geral, o nmero de crianas e adolescentes a bordo era pequeno, composto por trabalhadores das embarcaes grumetes e pajens15 e por passageiros, como as rfs do Rei16 e algumas crianas que viajavam acompanhadas de seus familiares (RAMOS in DEL PRIORE, 2007). Todos os que viajavam nas naus eram expostos a uma rotina de dificuldades, sendo poucos os que chegavam a desembarcar. Alm da condio das viagens serem complicadas escassez de alimentos, naufrgios, ataques de piratas as crianas tinham suas condies de viagem ainda mais dificultadas: eram as primeiras a serem descartadas quando havia a necessidade de diminuir o peso das embarcaes, mesmo quando viajavam acompanhadas de seus pais, estavam expostas a violncias sexuais,

e as que trabalhavam nos navios executavam atividades perigosas, principalmente os grumetes. Poucos sobreviviam s viagens e outros tantos ainda sucumbiam aps desembarcar, nos longos e difceis trajetos em terra (RAMOS in DEL PRIORE, 2007). Em 1549, com a chegada dos primeiros padres da Companhia de Jesus17, outro aspecto da histria comea a ser registrada: as misses de evangelizao. Ao que tudo indica, por opo dos prprios religiosos, a evangelizao era associada ao ensino de ler, escrever e fazer contas. Na converso dos gentios, a prioridade dos padres era a dedicao s crianas, pois entendiam que a estes se imprimia melhor a doutrina (CHAMBOULEYRON, in DEL PRIORE, 2007). Mesmo com os resultados considerados positivos, expressados pelos padres nas cartas enviadas a Portugal, era comum que na adolescncia os indgenas retomassem suas tradies. Como uma reao a este fato, o ensino tornou-se cada vez mais rgido em disciplina, incluindo a vigilncia e a acentuao dos castigos fsicos (CHAMBOULEYRON, in DEL PRIORE, 2007). Foram ento os jesutas, para horror dos indgenas

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que desconheciam o ato de bater em crianas, que introduziram os castigos fsicos no cotidiano colonial (DEL PRIORE, 2007: 96). Sobre o cotidiano das crianas livres na Colnia e o Imprio, Del Priore (2007), relata as complicadas barreiras para que os nascidos vivos no perecessem logo em seus primeiros meses ou dias. Hbitos alimentares e de vestimentas, como tambm doenas causadas por vermes ou vrus, provocavam altas taxas de mortalidade infantil. O problema atenuou-se a partir de meados do sculo XVI, mas continuou a existir e no sculo XIX (Segundo Imprio) tornou-se uma das maiores preocupaes dos higienistas. Faleiros, (in PILOTTI e RIZZINI, 1995), destaca que o nmero de crianas escravas no era grande, pois as causas j citadas de mortalidade infantil se somavam outros fatores, como o nmero reduzido de mulheres escravas, o infanticdio e os abortos devido aos maus tratos. As crianas livres e escravas sobreviventes conviviam nas casas dos senhores18 at cerca dos sete anos e com elas os adultos brincavam como se brincava com animaizinhos de estimao (DEL

PRIORI, 2007: 96). Depois dos sete anos, considerada a idade da razo, as crianas brancas passavam a ser educadas enquanto as negras comeavam a trabalhar. No sculo XVIII, com a concentrao da populao nas cidades porturias de Salvador e Rio de Janeiro, evidencia-se a problemtica das crianas abandonadas. Com o argumento de que as crianas lanadas nas ruas, entregues a voracidade dos animais, ofendiam a religio catlica, o vice-rei escreve para Dom Joo em 1726, solicitando a instalao da Roda (FALEIROS, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). A Roda era um sistema institucional originrio da Frana, dirigido aos expostos at sua maioridade. Neste sistema, atravs de um dispositivo cilndrico, a roda, as crianas enjeitadas eram depositadas do lado de fora e recolhidas do lado de dentro das instituies, de tal modo que o anonimato de quem entregava a criana era garantido.19 As Rodas dos Expostos tornaram-se smbolos do tratamento assistencial dado a criana neste perodo. A primeira Roda fora instalada na Santa Casa de Misericrdia de Salvador, em 1726 e o Rio de Janeiro recebeu a sua primeira

18 A convivncia entre crianas brancas e negras at os sete anos no garantia a igualdade de condies, Faleiros aponta que as crianas negras serviam de brinquedo para as crianas brancas e eram comumente mal tratadas e exploradas sexualmente (FALEIROS, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). 19 A denominao de Roda para o atendimento que era oferecido aos nela enjeitados presta-se confuso e ao entendimento de que a assistncia a estes se resumia ao recolhimento imediato exposio e deixa obscuras todas as etapas e modalidades de assistncia que os mesmos recebiam at a maioridade (FALEIROS, in PILOTTI e RIZZINI, 1995: 230). Para maior compreenso sobre o atendimento prestado aos expostos, verificar o texto da autora aqui citada.

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roda em 1738 (PINHEIROS, 2003; FALEIROS, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). Mesmo com o advento das rodas, o nmero de bitos entre as crianas permanecia bastante alto. Um relato de Maria Graham, no ano de 1821, conta que em sua visita a Roda dos Expostos do Rio de Janeiro, descobrira que das 12.000 crianas recebidas nos ltimos treze anos, apenas 1000 estavam vivas. Estas mortes colocavam em dvida a qualidade da assistncia prestada (FALEIROS, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). No perodo histrico que sucedeu o estabelecimento da independncia do Brasil, em 1822, ocorrem vrias mudanas na assistncia as crianas: novas rodas so criadas e definem-se legislaes sobre as condies dos rfos, dos aprendizes e dos infratores. Criam-se instituies com a preocupao asilar e educacional (FALEIROS, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). Com relao populao de crianas escravas, o cenrio tambm se altera na poca imperial. A Lei do Ventre Livre, Lei n 2040 de 28 de setembro de 1871, concedia liberdade aos filhos de escravas, que deveriam ficar sob os cuidados dos senhores at completarem oito anos. Com esta idade os 38

senhores poderiam decidir em entregar as crianas para o governo, recebendo em troca uma indenizao (PINHEIRO, 2003). Antes de 1880 nenhuma criana fora entregue ao governo, e depois disso o nmero de renncias era pequeno: registraram-se 41 crianas encaminhadas aos cuidados do governo em 1880 e 11 crianas em 1881. A baixa taxa de crianas entregues se devia ao fato de que a lei permitia que os senhores continuassem utilizando os servios das crianas at completarem 21 anos, ou que as transferissem para atender a outros senhores, acompanhando suas mes quando vendidas. A possibilidade do uso dos trabalhos da criana se mantinha e era muito mais lucrativo do que a sua renncia, mesmo mediante o recebimento da indenizao. Deste modo, a maioria das crianas filhas de escravas seriam libertadas junto com os demais escravos, por meio da Lei 3.353, de 1888, que declara extinta a escravido no Brasil (PINHEIRO, 2003). A Lei do Ventre Livre foi considerada uma lei ingnua e pouco expressiva em termos de resultados concretos em 1885 o nmero de confiados ao governo era de menos de 0,1% do total de crianas registradas. No entanto, sua

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importncia deve ser destacada, pois a partir dela, e do pequeno nmero de crianas que o governo passa a ter de administrar, que surgem discusses importantes sobre o futuro da infncia pobre no pas (RIZZINI in PILOTTI, 1995; PINHEIRO, 2003). A principal iniciativa do Imprio direcionada a infncia pobre, segundo Irma Rizzini (in PILOTTI e RIZZINI, 1995), fora a inaugurao do Asilo de Meninos Desvalidos, em 1875, concretizando o disposto no n 1.331A de 1854. A preocupao central era a questo educacional, dando nfase formao dos meninos livres de modo que pudessem contribuir com a edificao do Imprio. O modelo de uma educao feita em regime asilar no era novidade para a poca, sendo que tambm as crianas oriundas de famlias ricas eram educadas em internatos. Porm, a educao destas orientava-se para a ocupao de altos postos, enquanto a educao asilar dos meninos pobres almejava a formao para trabalhos secundrios (RIZZINI in PILOTTI e RIZZINI, 1995). A demanda por instituies asilares torna-se cada vez maior. O nmero de crianas levadas para viveram nas Santas Casas aumen-

tou consideravelmente entre 1864 a 1881. E, entre 1870 e 1880, aparecem com frequncia nos relatrios dos Chefes de Polcia, direcionados aos Ministros da Justia, informaes sobre menores expostos e pedidos de abertura de instituies para a regenerao da infncia (PINHEIRO, 2003). Na passagem do regime monrquico para o republicano, era intensa a preocupao em fundar uma nao culta e civilizada, na qual a criana passa a figurar como alvo de investimento pblico, para que, formada como um homem de bem, tenha condies de ser o futuro da nao. A assistncia pblica s crianas pobres nos primeiros anos da Repblica (de 1903 a 1922) assumia a forma de uma caridade oficial, com atuao dispersa, desorganizada e efmera (RIZZINI, 2008; RIZZINI in PILOTTI e RIZZINI, 1995). Os problemas envolvendo as crianas eram referenciados a uma viso ambivalente, onde a criana estava em perigo ou era perigosa. A infncia desvalida precisava ento ser salva, para que o futuro fosse construdo. As preocupaes com a infncia se inseriam em uma forte tendncia higienista20, que revelavam

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De acordo com Rizzini (2008: 108), o higienismo pode ser considerado como um movimento que incidiu sobre a infncia, foi abraado por mdicos brasileiros no final do sculo XIX. A ideia era (...) de investir na clula da infncia, e por meio dela, atuar sobre a famlia, ensinando-lhe as noes bsicas de higiene e sade em sentido fsico e moral.

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Em meados do sculo XIX, havia muitos trabalhos nas faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia que nesta concepo de medicina estudavam a mortalidade infantil entre os expostos (RIZZINNI, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). A expresso menores viciosos surgiu em uma lei de 1902, que visava reformar o servio policial e sua atuao na apreenso de menores que vagavam pelas ruas (RIZZINNI, in PILOTTI e RIZZINI, 1995).

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o interesse da medicina social21 sobre a infncia. Esta medicina estudava os elementos naturais e sociais que prejudicavam a sade e deu origem a aes de higiene pblica que se tornaram instrumento de organizao, controle e regulao da vida social. Esta tendncia higienista iria acentuar-se ao longo das primeiras dcadas do sculo XX (RIZZINI in RIZZINI e PILOTTI, 1995: 245). A assistncia oficial do incio da Repblica substituiu a denominao de asilos por institutos, reformatrios e escolas correcionais, nos quais se mantinha o recolhimento e a educao dos abandonados e viciosos22. A tnica geral desta assistncia era de controle e represso, feita por instituies jurdico-policiais, vinculadas a servios particulares beneficentes. Porm, aos poucos vai se mesclando aos princpios repressivos ideais de uma nova assistncia, de cunho cientfico, orientada para a reabilitao (RIZZINI in RIZZINI e PILOTTI, 1995: 245). Desenvolvia-se um aparato mdico-jurdico-assistencial, apresentado como capaz de exercer as funes de preveno, educao, recuperao e represso.

ser da medicina (do corpo e da alma) o papel de diagnosticar na infncia a possibilidades de recuperao e formas de tratamento. caber Justia regular a proteo (da criana e da sociedade), fazendo prevalecer a educao sobre a punio. filantropia (...) estava reservada a misso de prestar assistncia aos pobres e desvalidos, em associao s aes pblicas. A composio desses movimentos resultou na organizao da Justia e da Assistncia nas trs primeiras dcadas do sculo xx (RIzzInI, 2008: 26-27). Em sntese, de acordo com a argumentao de Souza (1998), as preocupaes com a infncia brasileira, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, estavam orientadas por um projeto maior, de modernizao do Brasil. Os lemas eram urbanizar, industrializar, sanear e higienizar, tendo como meta o progresso nacional. Neste contexto, a famlia considerada elemento essencial para a constituio da sociedade moderna, industrial e urbana. Em 1922 ocorreu no Rio de Janeiro o 1 Congresso Brasileiro de

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Proteo a Infncia CBPI, promovido pelo Departamento da Creana no Brasil. As discusses apresentavam conhecimentos mdicos, psicolgicos e sociais sobre a criana, visando que estes servissem para garantir proteo e assistncia infncia desvalida. Tal objetivo fazia necessria a instituio de formas legais de controle e vigilncia. Esta pauta, coordenada pelo presidente da comisso executiva do evento, Dr. Moncorvo Filho23, destacava a criana como objeto de investigao cientfica (SOUZA, 1998). Apesar da invisibilidade social deste evento na poca, sua influncia foi grande na elaborao do Cdigo de Menores de 1927 apresentado pelo juiz Mello Mattos - que veiculava concepes difundidas no 1 CBPI, arrolando categorias para diferenciar as crianas qualificadas para uma nova ordem social e as percebidas como ameaadoras a esta ordem. O Cdigo de 1927, calcado na noo de desestrutura familiar, trazia uma concepo poltica-social de proteo e vigilncia dos menores de 18 anos, vtimas de omisso ou transgresso da famlia, e que acabam por compor uma populao de abandonados ou delinquentes. Neste cenrio, as medi-

das de internao eram comandadas pelo Poder judicirio, na figura do juiz de menores24, e executadas pela segurana pblica e por instituies filantrpicas (PEREIRA, 1998). Sob a luz do Cdigo de Menores, o regime ditatorial do Estado Novo implantou, na dcada de 1940, uma poltica de proteo e assistncia centralizada, o que, alm de coadunar com o perfil do governo, atendia as exigncias de especialistas que defendiam a centralizao h trs dcadas (RIZZINI in PILOTTI e RIZZINI, 1995). A poltica teve incio com a criao do Servio de Assistncia ao Menor SAM, primeiro no Distrito Federal e depois, em 1944, expandido para todo o territrio nacional. O SAM sistematizava e orientava os servios de assistncia, alm de abrigar os menores mediante a autorizao dos juzes de menores. Vinculadas a esta poltica, entre 1942 e 1943, surgiram vrias instituies sociais governamentais e privadas. Entre elas, Irma Rizzini (1995), destaca o surgimento da Legio Brasileira da Assistncia, fundada pela ento primeira dama Darcy Vargas com o objetivo inicial de assistir as famlias dos convocados para a Segunda Guer-

23 O Dr. Moncorvo Filho fora um dos mais importantes idealizadores de uma assistncia infncia baseada em princpios cientficos. Para maiores detalhes ver PILOTTI e RIZZINI (1995). 24 Os chamados juzes de menores eram os magistrados atuantes no rgo Juzo de Menores, regulamentado em 1923.

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ra Mundial. Passado o perodo de guerra, a LBA se mantm, voltando seus trabalhos assistncia materna e a infncia (RIZZINI, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). A referida autora tambm relata que, na dcada de 1950, o SAM comea a receber inmeras crticas por expor meninos e meninas a condies degradantes, como alimentao inadequada, falta de higiene, maus tratos, violncias sexuais e at assassinatos. Alm das denncias sobre o tratamento dado aos acolhidos, tambm se divulgava denncias de desvio de dinheiro pblico. Em 1961 se faz uma Comisso de Sindicncia sobre o SAM, movimento que acaba por culminar na sua extino. O SAM ento substitudo pela Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor, a FNBEM, que mais tarde, na dcada de 1970 recebe o nome FUNABEM (VOGEL in PILOTTI e RIZZINI, 1995). A FUNABEM pretendia vencer a burocracia e a corrupo existente no SAM, bem como cumprir com a poltica de assistncia ao menor ancorada em bases cientficas. A viso era de aes voltadas preveno, com preferncia para a reintegrao na famlia, sendo a internao a ltima escolha. Para levar a poltica aos estados, foram 42

criadas as Fundaes Estaduais do Bem-Estar do Menor FEBEMs, organizaes estaduais que recebiam recursos e instrues da FUNABEM (VOGEL, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). Os primeiros anos de exerccio da FUNABEM indicam bons resultados, pelo menos nos relatrios oficiais. Mas, ao longo dos anos, com o aumento dos problemas sociais e o crescimento estrutural dos servios, este equipamento cai tambm no descrdito e suas aes, consideradas um hbrido de correo-represso-assistncia, revelam a falncia da poltica e seu perfil centralizador (VOGEL, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). Os problemas da FUNABEM e das FEBEMs, envolvendo denncias de descaso e violncias, foram pautados em 1975 na Comisso Parlamentar de Inqurito CPI do Menor Abandonado (PEREIRA, 1998). Uma das respostas oficiais dada a partir das discusses da CPI de 1975 consistiu na atualizao do Cdigo de Menores, elaborada por um grupo de juristas. A adaptao da legislao se deu no sentido de dar algum ar de modernidade ao antigo modelo assistencial-autoritrio (MENDEZ, 1991 in PEREIRA, 1998).

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Em 1979 aprova-se a nova verso do Cdigo de Menores, destinada a assistir menores em situao irregular, nomenclatura que reunia diversas situaes, como (...) crianas e adolescentes das camadas populares, considerados autores de ato infracional; vtimas de maustratos; crianas e adolescentes cujos pais ou responsveis no possuam rendimento suficiente para lhes proporcionar uma vida digna. o cdigo trata, ento, de uma parcela da populao, menor de 18 anos de idade, cuja condio scio-econmica os coloca em situao de patologia jurdico-social(PEREIRA, 1998: 61).

Em suma, os dois Cdigos mantiveram o mesmo cerne propositivo: destinada a uma parcela especfica da populao infanto-juvenil; com medidas essencialmente jurdicas, internao provisria rotineira, perspectiva social de controle e vigilncia (SOUZA, 1998; PEREIRA, 1998).

notas

Mudanas em tempos de redemocratizaoCom o final da ditadura militar, ordenam-se novas perspectivas de construo social no Brasil. No anseio de resgatar as liberdades individuais arduamente sacrificadas durante os regimes de ditadura (GONALVES, 2005: 112), a dcada de 1980 na sociedade brasileira foi marcada pelos debates em torno da redemocratizao, pautando a construo democrtica dos direitos sociais, a participao e o controle social. neste contexto de afirmao de direitos que ocorrem as discusses sobre o reordenamento da poltica destinada a crianas e adolescentes, fortemente marcada pela tendncia de suprimir todas as formas de autoritarismo. O que consequentemente implicava em uma ruptura com a legislao em vigor. 43

Na segunda verso do Cdigo, as funes do juiz so ampliadas e seu poder de tutela permitia legislar por meio de portarias. O exerccio da tutela era sustentado em princpios e diretrizes da poltica de segurana nacional, ditada pelo regime da poca, onde o controle social da pessoa era de fundamental importncia para a consecuo dos propsitos polticos do governo militar (PEREIRA, 1998: 62).

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Pereira (1998), cita a adeso de 250 mil pessoas proposta.

Diante da falncia da atual poltica destinada aos menores, era vital a busca por experincias bem sucedidas. No perodo entre 1982 e 1984, ocorreram vrios encontros para troca de experincias e produo de materiais, que resultaram na formao de uma rede de lideranas de abrangncia nacional. Era a organizao de uma nova identidade poltica, que tinha como pauta a militncia em defesa da criana e do adolescente. Um movimento expressivo desta identidade era a Coordenao Nacional do Movimento de Meninos e Meninas de Rua (VOGEL, in PILOTTI e RIZZINI, 1995). A questo dos meninos e meninas de rua teve grande destaque na mdia e tornou-se uma forte bandeira dos movimentos sociais, evidenciando a falncia do modelo de institucionalizao da pobreza preconizado pelos Cdigos de 1927 e 1979 (ROSEMBERG, 2008). Os debates envolvendo a situao da infncia e da adolescncia no Brasil organizaram-se em dois grandes movimentos com papis importantes na elaborao da Constituio Federal de 1988: o Criana e Constituinte, que agregava a luta de mulheres por creches e que contribuiu para a redao do artigo 208; e o Criana

Prioridade Absoluta, com atuao fundamental na incluso do artigo 227 (ROSEMBERG, 2008). A Comisso Nacional Criana Constituinte foi criada atravs de uma portaria em 1986. Reunia a participao de vrios Ministrios e Secretarias, alm de organismos multilaterais, como o Fundo das Naes Unidas para a Infncia e a Organizao Nacional para a Educao Pr-Escolar. Nesta comisso, havia divergncias sobre a proteo integral, pois mantinha na redao da proposta a criana em situao irregular como objeto de proteo (PEREIRA, 1998). Fazendo frente a esta Comisso, organiza-se por emenda popular, em 1987, com ampla adeso25, o movimento Criana Prioridade Absoluta, reunindo diversas foras sociais atuantes no campo da infncia e adolescncia em defesa da proteo integral. As organizaes deste movimento criam, em 1988, o Frum Nacional Permanente de Entidades No-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente Frum Nacional DCA (PEREIRA, 1998). Para Rosemberg (2008), o recuo dos anos permitiu visualizar que os posicionamentos do movimento Criana Prioridade Absoluta no eram homogneos. No somente o

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grupo era ecltico, como suas subagendas eram variadas. A convergncia estava na defesa da infncia contra um Estado totalitrio. Pereira (1998), afirma que num contexto geral, incluindo os movimentos j citados, foram muitas as foras influentes na elaborao da Constituio de 1988 e, posteriormente, na elaborao do Estatuto da Criana e do Adolescente. As influncias provinham de articulaes nacionais, com apoio das esferas estaduais e municipais, e agregavam, pelo menos, trs foras distintas: o mundo jurdico, com a participao de juzes, promotores, advogados; as polticas pblicas, por meio de seus dirigentes e tcnicos; os movimentos sociais, representados por entidades no governamentais com perspectivas variadas, como o Frum Nacional DCA; a Ordem dos Advogados do Brasil, a Sociedade Brasileira de Pediatria.

mos privados, como a Associao dos Fabricantes de Brinquedos do Brasil ABRINQ (PEREIRA, 1998). Sobre a variedade de concepes deste perodo, Schuch (2005) sintetiza a questo afirmando que a constituio da infncia e juventude como foco de polticas especficas realizou-se envolvendo a luta entre perspectivas de agentes diversos, disputas polticas entre enunciados que ultrapassam fronteiras nacionais, embora se revistam de significados particulares (SCHUCH, 2005: 51). Diante destas consideraes, a citao abaixo pode nos servir como um parmetro para entender o processo social mais amplo que garantiu a criao do Estatuto: A redefinio da cidadania da infncia o efeito conjugado da mudana paradigmtica na concepo de infncia, da construo de uma concepo jurdica renovada, expressa sobretudo na conveno dos Direitos da criana, de 1989, e do processo societal de ampliao das formas de cidadania, a partir de uma ao assertiva e contra-hegemnica, onde tm lugar nomeadamente 45

H que se destacar tambm a participao constante de organis-

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agentes e organizaes no governamentais (onGs) centradas na infncia. tal redefinio constitui, por consequncia, um espao tenso, no isento de ambiguidades e em processo de construo. no obstante, exprime-se como uma das mais prometedoras possibilidades de interpretao dos vnculos sociais das crianas (sARMEnto, FERnAnDEs e toMs, 2007: 189). Representantes de partidos polticos, comunidades, igrejas e movimentos sociais, expressando concepes diversas, sustentadas por demandas muitas vezes antagnicas, encontraram um caminho novo para pautar as questes relacionadas infncia e a juventude (ROSEMBERG, 2008). Ancorada a princpios constitucionais como a democracia participativa e a descentralizao poltico-administrativa e consonante com o conjunto de documentos internacionais da poca, o Estatuto da Criana e do Adolescente, Lei 8.069 de 1990, emerge com uma radical mudana de concepo scio-jurdica da infncia e da juventude: a afirmao histrica de crianas e adolescentes como sujeitos de direitos.

O Estatuto afirma, em seu Livro I, Ttulo I, crianas e adolescentes como pessoas com necessidades especficas por estarem em uma peculiar condio de desenvolvimento. Esta leitura implica na valorizao da infncia e adolescncia enquanto diferena, na prioridade absoluta a ela destinada, por conta de sua situao de desenvolvimento, e na obrigatoriedade da proteo integral como dever do Estado, da famlia e da sociedade (PARAN, 2010). Os direitos atribudos s crianas e aos adolescentes so ordenados em cinco direitos fundamentais26: 1. Direito Vida e Sade;

2. Direito Liberdade, ao Respeito e Dignidade; 3. Direito Convivncia Familiar e Comunitria; Direito Educao, Cultura, ao Esporte e ao Lazer e Direito Profissionalizao e Proteo no Trabalho

4.

26

Comparato (2005), definiu os direitos fundamentais como direitos humanos reconhecidos e positivados em normas leis, tratados, Constituies.

5.

A partir do Estatuto instalam-se mudanas que alteram o sistema de operaes destinadas ao

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A CONSTITuIO DE 1988 FORNECEu AS DIRETRIzES PARA A gESTO E ExECuO DE POlTICAS PBlICAS.

notas

Princpios constitucionais evidenciados no Estatuto da Criana e do Adolescente:* Princpio da Descentralizao * Princpio da Participao * nfase municipalizao * conselhos com carter deliberativo e composio partidria * criao e manuteno de programas especficos * Manuteno de fundos nacionais, Estaduais e Municipais * Atuao convergente

* Princpio da Focalizao

* Princpio da Sustentao

* Princpio da Integrao Operacional * Princpio da Mobilizao

* Participao da sociedade 47

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A Poltica de Atendimento dos Direitos da Criana e do Adolescente apresentada em suas linhas gerais no Artigo 87 do Estatuto.

atendimento da criana e do adolescente. O modo como a poltica de atendimento27 foi arquitetada, de acordo com os princpios constitucionais, exige a universalidade e a integrao. Ou seja, todas as crianas e adolescentes brasileiros podem acessar o conjunto das polticas pblicas e estas esto articuladas em um sistema de atendimento. Este sistema de atendimento precisa tambm ser gestado e fiscalizado pelo conjunto da sociedade. Tal configurao da poltica tambm inclui a ao de novos elementos, dos quais destacamos o Conselho Tutelar e os Conselhos de Direitos. Os Conselhos Tutelares so representantes da sociedade eleitos com a funo, expressa no artigo 131, de zelar pelo cumprimento dos direitos de crianas e de adolescentes (PARAN, 2010). A criao dos Conselhos Tutelares implica na reduo do papel do Poder Judicirio - fruto do embate com o Cdigo de Menores - atrelando a defesa dos direitos de crianas e adolescente, bem como a aplicao da maior parte das medidas de proteo ao mbito executivo (BAZLIO, 2003). O modelo operacional da Doutrina da Proteo Integral, priman-

do pela participao democrtica, estabelece como frum de controle e formulao das polticas os Conselhos de Direito, em instncias Municipais, Estaduais e Federal. Uma definio geral dada aos Conselhos de Direito que estes so rgos intersetoriais, de composio mista e paritria entre governo e Sociedade Civil, existentes em todos os nveis de governo (municipal, estadual e Federal) que, de acordo com o Estatuto da Criana e do Adolescente e a Constituio Federal, detm a competncia e a legitimidade para deliberar polticas pblicas voltadas criana e ao adolescente, bem como a prerrogativa de controlar as aes do administrador pblico encarregado de sua efetiva implementao (CONANDA, 2007; DIGICOMO, 2008). Por intermdio do Conselho de Direitos da Criana e do Adolescente fica garantida a participao popular no processo de discusso, deliberao e fiscalizao da execuo da poltica de atendimento destinada populao infanto-juvenil (PONTES JUNIOR, 2008). A poltica de atendimento proposta pelo Estatuto foi posteriormente regulamentada pelo CONANDA na Resoluo 113 e no-

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meada Sistema de Garantia de Direitos da Criana e do Adolescente. Sua execuo depende da articulao de entes governamentais e no-governamentais da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios (BRASIL, 2006). o sistema de Garantia de Direitos da criana e do Adolescente constitui-se na articulao e integrao das instncias pblicas governamentais e da sociedade civil, na aplicao de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoo, defesa e controle para a efetivao dos Direitos da criana e do adolescente, nos nveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal (BRAsIl, sem data, sem pgina)28.

De acordo com o Sistema de Garantia de Direitos, temos trs eixos constitutivos: defesa, promoo e controle social (BRASIL, 2006). O eixo da defesa dos direitos consiste no acesso a justia, aos recursos s instncias pblicas e mecanismos jurdicos. este o eixo de atuao do Conselho Tutelar, junto com outras instncias do

poder pblico e da Sociedade Civil, tais como a Justia da Infncia e Juventude, o Ministrio Pblico, a Defensoria Pblica, a Segurana Pblica, ouvidorias e os Centros de Defesa (CEAT, 2006, BRASIL, 2006). O eixo da promoo de direitos transversal e intersetorial, inclui servios e programas de polticas bsicas e programas de execuo de medidas de proteo e socioeducao (BRASIL, 2006). O eixo do controle social trata da participao da sociedade na formulao e acompanhamento das polticas, por meio da ao de instituies pblicas colegiadas e paritrias, como os Conselhos de Direitos e os Conselhos Setoriais (CEATS, 2006, BRASIL, 2006). Alm destes espaos de participao e representao, o controle social exercido soberanamente pela sociedade. O fluxograma reproduzido a seguir, publicado pelo Portal Nacional SGD, ilustra a organizao do Sistema de Garantia de Direitos. Fica evidente no desenho que as instncias exercem funes que podem ser classificadas em mais de um eixo. o caso do Conselho de Direitos, considerando sua participao na elaborao de polticas como um dos componentes da

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Esta citao foi selecionada do site da Secretaria de Direitos Humanos e consta nas referncias.

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notas

promoo. Destaca-se que a mesma lgica de fluxo modelo para as trs esferas: Unio, Estados e Municpios.

Dificuldades como desafiosAo avaliarmos a situao atual da poltica implantada a partir do Estatuto, verificamos que os compromissos firmados na lei representaram avanos, mas ainda as inoperncias so mltiplas. Apesar de passadas mais de duas dcadas de criao do Estatuto, muitos so os desafios para seu cumprimento. Em termos do funcionamento do Sistema de Garantia de Direitos, observa-se uma frequente desarticulao entre os servios, alm do fato de que nem sempre todos os equipamentos necessrios esto operando. Uma questo importante entre estes desafios est na implantao e implementao dos Fundos da Infncia e Adolescncia FIAs, que deveriam ser criados pela Unio, estados e municpios, sob a responsabilidade dos Conselhos dos Direitos. Na pesquisa Conhecendo a Realidade (CEATS, 2006), os dados coletados indicam qu