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I O Gênese ou o Livro das Origens O Livro do Gênese inaugura um conjunto prestigioso de cin- co Livros que os judeus reverenciam como a Torá, a Lei de Moi- sés, e que os cristãos designam com o título de Pentateuco, se- gundo uma palavra grega que designa “cinco estojos” – nos quais estavam protegidas as cinco obras. O entrelaçamento do Pentateuco O Pentateuco conduz o leitor desde a Criação do universo até a morte da figura mais elevada do Antigo Testamento, Moisés; até o século XVII, ele era essencialmente atribuído ao próprio grande legislador. De lá para cá, porém, a realidade foi se reve- lando cada vez mais complexa. A princípio, tradições orais se formaram e foram memorizadas em torno dos santuários. O registro escrito só se desenvolveu a partir do século VIII. Foi então preciso tratar de fundir tradições orais e documentos de origens diversas no seio de uma cultura pouco interessada em nossas modernas exigências históricas e in- teiramente dedicada a uma finalidade religiosa. Daí a abundân- cia de repetições e disparidades. Além disso, remanejos e com- plementações podem ter ocorrido até o século V. Em decorrência dessa consciência de uma longa elaboração anônima, recentemente se lançou uma teoria dita “documentá- BIBLIA_FINAL.indd 33 06/05/11 11:52

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I

O Gênese ou o Livro das Origens

O Livro do Gênese inaugura um conjunto prestigioso de cin-co Livros que os judeus reverenciam como a Torá, a Lei de Moi-sés, e que os cristãos designam com o título de Pentateuco, se-gundo uma palavra grega que designa “cinco estojos” – nos quais estavam protegidas as cinco obras.

O entrelaçamento do Pentateuco

O Pentateuco conduz o leitor desde a Criação do universo até a morte da figura mais elevada do Antigo Testamento, Moisés; até o século XVII, ele era essencialmente atribuído ao próprio grande legislador. De lá para cá, porém, a realidade foi se reve-lando cada vez mais complexa.

A princípio, tradições orais se formaram e foram memorizadas em torno dos santuários. O registro escrito só se desenvolveu a partir do século VIII. Foi então preciso tratar de fundir tradições orais e documentos de origens diversas no seio de uma cultura pouco interessada em nossas modernas exigências históricas e in-teiramente dedicada a uma finalidade religiosa. Daí a abundân-cia de repetições e disparidades. Além disso, remanejos e com-plementações podem ter ocorrido até o século V.

Em decorrência dessa consciência de uma longa elaboração anônima, recentemente se lançou uma teoria dita “documentá-

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ria”, elaborada no século XIX por dois exegetas alemães, Graf e Wellhausen. Apoiados em diversos fatos objetivos, eles concluí-ram que o Pentateuco resulta do entrelaçamento de quatro “do-cumentos” – termo que os atuais biblicistas substituem por “tra-dições” a fim de assinalar sua flexibilidade e suas possibilidades de enriquecimento.

A tradição provavelmente mais antiga é chamada de jeovista, porque dá a Deus o nome de Iahweh desde a narrativa em que apresenta a Criação (Gênese 2, 4 a 4, 26). Sua redação, que se estima ter ocorrido por volta de 800, no reino de Judá, é notável pela expressiva simplicidade: Deus é mostrado como um cera-mista, um jardineiro...

Outra tradição, dita eloísta porque dá a Deus o nome de Eloim, teria se fixado no reino do Norte durante o século VIII. Ela evita os antropomorfismos e recorre à evasiva expressão “anjo de Deus” para designar a intervenção de Deus em assuntos humanos.

Essas duas primeiras tradições forneceram sobretudo narrativas. A maioria dos textos de leis e vários escritos de espírito legalista pertencem à tradição “sacerdotal”, que tomou forma no círculo dos sacerdotes de Jerusalém; a partir de elementos antigos, elabo-rou-se um conjunto que se impôs logo após o retorno do exílio (no final do século VI). Suas preocupações giram principalmente em torno do culto, do calendário, das origens do sacerdócio. Seu estilo abstrato e hierático pode ser observado já no início da Bíblia, visto que ela fornece o primeiro relato da Criação. Predomina no final do Êxodo e nos Números; ocupa a totalidade do Levítico.

Em contrapartida, o Deuteronômio origina-se numa quarta tradição, oratória e calorosa, que insiste na escolha desinteressa-da por Israel e no amor de Deus. Parece tratar-se de uma contri-buição do reino do Norte transmitida a Jerusalém à época da queda de sua capital, Samaria (722). Esses documentos, desco-bertos no Templo durante o reinado de Josias, em 622, estão na origem do Deuteronômio e, indiretamente, na da “história deu-teronomista” (Josué, Juízes, Samuel e Reis).

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Aurora do mundo e limiar da história

O Livro do Gênese é um monumento da cultura ocidental. Como indica o nome, de origem grega, ele narra o “nascimento” do mundo e celebra os ancestrais do povo israelita.

A obra se compõe de duas partes pertencentes a gêneros literá-rios distintos. Os onze primeiros capítulos constituem uma cos-mogonia, uma apresentação do nascimento do mundo: dois re-latos da Criação (1-2, 4 e 2, 4-25); e três da revolta narcísica do homem: Adão e Eva (3), Caim (4-5) e a Torre de Babel (11). O dilúvio aparece como uma nova Criação (6-9). Compostos em data um tanto tardia por escritores hebreus, esses textos não per-tencem ao âmbito do mito, cuja elaboração é anônima, coletiva e se perde na escuridão da pré-história. Esses autores retomaram, retrabalharam e subverteram textos de mitos mesopotâmicos; as lutas irrisórias dos deuses foram substituídas pela afirmação in-transigente do monoteísmo e da liberdade do homem. Por essa razão, esses capítulos podem ser caracterizados como contrami-tos, escritos a fim de dotar Israel de relatos de origem que lhe per-mitissem afirmar o caráter irredutível de sua fé perante a ameaça-dora vaga do politeísmo.

A segunda parte do Gênese (12-50) pertence a um gênero literário mais conhecido hoje em dia: a saga, a crônica familiar, com seus episódios característicos, como os casamentos, as he-ranças, as rivalidades fraternas e os conflitos entre clãs. A saga dos Patriarcas apresenta quatro figuras prestigiosas: Abraão (12-25), Isaac e Jacó (25-36) e José (37-50). Vários indícios levam a situar Abraão por volta de 1850-1800 a.C.; mesmo frágil, essa possibilidade de datação é que diferencia a saga dos contramitos dos capítulos precedentes.

Visões desse tipo só se tornaram possíveis a partir da segunda metade do século XIX. Apenas na década de 1850 a paleontologia incipiente questionou o breve período de tempo até então atribuído à história humana, assim como a constância das espécies animais. Pouco depois, o aparecimento de tabuletas de terracota descober-tas pelos arqueólogos fez ressurgir de um quase esquecimento uma

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cultura riquíssima, a dos sumérios, povo que habitava o sul da Mesopotâmia e que inventou, em torno de 3200 a.C., a primeira forma de escrita da história humana. Essa cultura passou em se-guida para o reino de Acad, mais ao norte. Os teólogos hebreus trabalharam sobre e contra os escritos sumério-acadianos. Graças a esse avanço nos conhecimentos, a interpretação histórica da cos-mogonia bíblica, que por tanto tempo parecera constituir o fun-damento necessário da mensagem religiosa, esmoreceu em detri-mento de uma leitura mais bem informada das práticas literárias de Israel antigo, leitura de pureza espiritual muito superior.

Os contramitos da Criação e do orgulho humano (1-11)

Os onze primeiros capítulos do Gênese expõem de forma ima-gética muitas verdades religiosas grandiosas: Deus criou tudo do nada, o homem e a mulher são imagens de Deus, o universo foi dado ao homem por inteiro para que ele o fizesse dar frutos; o homem, cuja liberdade hesita entre o bem e o mal, preferiu ele próprio ao seu Criador. Agora o homem vive inseguro, na igno-rância e tentado pela violência. Porém permanece aberto, a esse ser grande e frágil, o caminho do bem e da felicidade.

Os dois relatos da Criação (1-2)

A Bíblia justapôs dois relatos simbólicos da Criação. O pri-meiro (1-2, 4), que emana da tradição sacerdotal, é majestoso, hierático. No quadro litúrgico da semana, todas as grandes reali-dades do universo conhecido – a luz, o firmamento, a terra e os oceanos, o Sol e a Lua, os pássaros e os peixes, a efervescência da vida e, por fim, o homem e a mulher –, tudo surgiu da Palavra criadora. Os teólogos hebreus aboliram os conflitos mesquinhos das divindades, que abundam nas mitologias. Os astros, tantas vezes divinizados, são reduzidos a simples criaturas.

“Deus disse: ‘Haja luz!’. E houve luz.” O laconismo impressio-nante desse versículo teria imensa fortuna na cultura ocidental:

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ele se tornaria exemplo do sublime, desse modo de escrita enérgi-ca que procede de uma grande alma e transtorna o leitor, deixan-do-o como que fora de si mesmo. Citemos, como outro exemplo de sublime, os dois versículos que abrem não só a narrativa mas também a Bíblia: “No princípio, Deus criou o céu e a terra./ Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas”.

No sexto dia, “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou”. Nascidos de um único jorro, o homem e a mulher aparecem aqui como inse-paráveis, complementares e iguais. São “à imagem e semelhança” de seu Criador. Esses dois termos alimentaram extensa medita-ção: os seres humanos, imagens de Deus, trazem em si uma base de excelência, fonte de um otimismo radical; seu ideal de vida é crescer de forma constante rumo a uma “semelhança” maior com seu autor, graças à intimidade da prece e à ação resoluta em fun-ção do bem.

O primeiro casal humano foi de imediato abençoado por Deus: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e subme-tei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra.” Eis o homem instituído rei do universo visível e chamado a dominar o mundo. Esse versícu-lo ecoaria no apelo de Descartes para que “nos tornemos mestres e possuidores da natureza”, do qual adviria a súbita aceleração do progresso técnico e científico.

Ao término dessa “obra dos seis dias”, Deus então desfrutou do “descanso do sétimo dia”. Foi essa imagem que instituiu a al-ternância, na existência humana, entre o trabalho e o repouso fora das obrigações da labuta, tanto no Sabá judaico, como no domingo cristão no final da semana.

A esse grandioso relato segue-se outro com imagens muito fa-miliares, sobre o famoso Jardim do Éden, o Paraíso Terrestre. Deus nele aparece ora como um ceramista trabalhando a argila, ora como um jardineiro passeando nos seus domínios para tomar a fresca. Desta vez, o homem foi modelado com a argila do solo e Deus “insuflou em suas narinas um hálito de vida”. Em seguida,

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foi colocado num jardim “em Éden, no oriente”, atravessado por quatro rios e no qual se ergueram duas árvores enigmáticas: a ár-vore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Livre para desfrutar de todo o jardim, o homem foi proibido, sob pena de morte, de comer os frutos da árvore do conhecimento.

Deus disse então: “Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar que lhe corresponda”. E a mulher foi criada: o homem foi acometido por um torpor, Deus tomou uma de suas costelas, com a qual criou a mulher. Ao vê-la, seu companheiro exclamou: “Esta, sim, é osso de meus ossos e carne de minha carne.” Por isso, prossegue o relato, “um homem deixa seu pai e sua mãe, se une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne”. Essa imagem realista do estreito parentesco entre o homem e a mulher não raro serviu para que se tentasse justificar uma depen-dência feminina que, no relato bíblico, só aparece mais adiante, como uma desastrosa consequência da Queda.

Os relatos da Criação suscitaram todo tipo de obras suntuosas, como as de Rafael ou Michelangelo, o oratório de Joseph Haydn (1798) ou o poema que abre La Légende des siècles [Lenda dos séculos] (1859): “Sagração da mulher”. Esses relatos exerceram influência imensa, universal: a Criação do homem “à imagem de Deus” fundamentou, desde tempos remotos, a afirmação da condição absoluta do ser humano. Orquestrada pelos Pais da Igreja, deu origem ao gênero literário da autobiografia, com as notáveis Confissões de santo Agostinho (c. 400 d.C.). Significati-vamente, Jean-Jacques Rousseau retomou o título para sua gran-de obra, As confissões (1782).

A primeira transgressão: a Queda (3)

Tal como nos contos de fada, a interdição parental de fazer isto ou aquilo é seguida pela transgressão. O instigador da deso-bediência é “a serpente, o mais astuto de todos os animais”, que sussurrou à mulher: se comerdes o fruto proibido, “não, não morrereis!”. Pelo contrário, “no dia em que dele comerdes, vos-

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sos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal”. Tão logo a mulher e o homem comeram o fruto, “per-ceberam que estavam nus”, ou, em outras palavras, frágeis e des-protegidos, e confeccionaram tangas com folhas de figueira. Foi a língua francesa, no século XIII, que transformou o fruto em maçã, pois o termo latino é pomum, “fruto com sementes ou ca-roços”, e pomme em francês é maçã. Mais tarde, em 1640, surgi-ria a expressão “pomo de adão” para designar a saliência da parte anterior do pescoço dos homens.

O afortunado desconhecimento do mal cede lugar à vergonha da nudez, ao sentimento de culpa e ao medo. O homem e a mu-lher se escondem um do outro e evitam a presença divina. Am-bos transferem para o outro a responsabilidade de seu gesto: o homem acusou a mulher e a mulher acusou a serpente.

Veio, em seguida, o castigo. A serpente, que brilhava por sua inteligência, foi condenada a rastejar na poeira. E Deus lhe decla-rou: “Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calca-nhar.” Não é difícil perceber aí os vestígios do modo de pensa-mento mítico: o mito explica, por meio de eventos situados num tempo primordial, a situação do mundo atual. O relato nos reme-te a uma época em que os animais falavam e a serpente era dotada de patas, como os quadrúpedes. Sua falta original permite com-preender por que, desde então, ela rasteja sobre seu ventre e ator-menta os humanos, que por sua vez lhe esmagam a cabeça. Mas nessa serpente – tentadora da espécie humana – o Livro da Sabedo-ria enxergou o diabo (2, 24); e a tradição cristã escutou, nessa de-claração, a promessa da santidade absoluta da Virgem Maria e da vitória de seu filho, o Messias. Assim, esse versículo foi denomina-do “Protoevangelho”, a primeira boa-nova da salvação.

Quanto à mulher, ela daria à luz em meio à dor, e suas relações com o homem seriam ameaçadas pelo desejo de dominação. Os seres humanos ganhariam seu pão com dificuldade, “pelo suor de seu rosto”, e retornariam ao solo de onde foram tirados.

Adão – o “Homem” – e Eva – ou seja, a “Vivente” –, que pas-saram a ser designados por um nome, são sujeitos à ironia divi-

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na: “Se o homem já é como um de nós, [é] versado no bem e no mal.” Já se delineia, no entanto, a misericórdia: Deus confeccio-na para o primeiro casal túnicas de pele a fim de protegê-los. Mas a transgressão acarreta a exclusão do Paraíso Terrestre, cuja entrada será guardada por anjos – os querubins – com fulguran-tes espadas de fogo.

O relato da Queda permanece em segundo plano no Antigo Testamento. Não é mencionado pelo Cristo, o qual insiste, no entanto, na universalidade do mal no meio em que são definidas as escolhas humanas. Esboçada por são Paulo (Rm, 5, 12), a teo-logia do Pecado Original encontraria seu grande orquestrador em santo Agostinho. Acompanhemos um de seus mais ilustres discípulos, Blaise Pascal, que dá voz à Sabedoria Divina (Pensa-mentos, fr. 182):

Ó homens, diz ela, não esperai verdade ou consolação por parte dos ho-mens. Eu sou aquela que vos formou, e sou a única que há de ensinar-vos quem sois. Contudo, já não vos encontrais no estado em que eu vos formei. Criei o homem santo, perfeito. Enchi-o de luz e inteligência. Comuniquei-lhe mi-nha glória e minhas maravilhas. Os olhos do homem então contemplavam a majestade de Deus. Ele não estava em meio às trevas que o cegam nem à mortalidade e às misérias que o afligem. Ele não logrou, porém, sustentar tamanha glória sem resvalar na presunção, ele quis tornar-se o centro de si mesmo, independente do meu auxílio. Subtraiu-se à minha dominação e, igualando-se a mim pelo desejo de encontrar a felicidade em si próprio, eu o abandonei a si mesmo e, revoltando as criaturas que lhe eram submissas, fiz delas suas inimigas, de maneira que o homem hoje se tornou semelhan-te aos bichos e está tão afastado de mim que mal lhe resta um confuso vis-lumbre de seu autor, a tal ponto seus conhecimentos foram apagados ou perturbados. Os sentidos, independentes da razão e não raro mestres da razão, conduziram-no à busca dos prazeres. Todas as criaturas o afligem ou tentam, e o dominam quer submetendo-o pela força, quer seduzindo-o por sua doçura, o que é uma dominação ainda mais terrível e injuriosa. Tal é a situação em que se encontram os homens atualmente. Resta-lhes algum instinto impotente da ventura de sua natureza primeira, e estão

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imersos nas misérias de sua cegueira e de sua concupiscência, que se tor-nou sua segunda natureza.

Opondo-se ferozmente a essa visão de mundo, Jean-Jacques Rousseau desenvolveu a ideia de uma inocência original dos homens e das sociedades mais primitivas, seguida de uma dege-nerescência causada pelo desenvolvimento do luxo, das ciên-cias e das artes, portadores de corrupção. O homem nasce bom, a sociedade o deprava. Poetas como Charles Baudelaire e pen-sadores como Emil Cioran ironizaram o que denunciam como ingenuidade inconcebível. Os genocídios do século XX e o pro-gresso da psicanálise minaram a crença numa bondade natural. Assim, em O mal-estar na civilização (1929), Sigmund Freud concluiu a partir de sua experiência clínica, antes mesmo de Auschwitz:

[...] os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criatu-ras entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também al-guém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe so-frimento, torturá-lo e matá-lo. – Homo homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção?

O filósofo Paul Ricoeur situou a explicação bíblica para o enigma do mal entre as grandes estratégias humanas que enfren-taram esse desafio. O estudo magistral data de 1960: Finitude et culpabilité [Finitude e culpa], segundo volume de Philosophie de la volonté [Filosofia da vontade].

Hoje em dia, a interpretação do relato da Queda leva em con-ta o modo de pensamento arcaico. A imaginação mítica estende sobre um antes e um depois aquilo que agora está reunido em

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todo homem: o impulso para o ideal e uma angustiante inclina-ção para o mal. Adão não designa – como seu nome indica – a humanidade considerada como coletividade? Nesse caso, a teolo-gia irá insistir sobre o “pecado do mundo”, conforme o anúncio do Cristo feito pelo profeta e precursor João Batista: “Eis aquele que tira o pecado do mundo” (João 1, 29).

A obra mais abrangente dedicada à Queda é O Paraíso perdido (1667), de John Milton.

A “fratrocidade*”: Caim e Abel (4)

Ao relato da Queda sucede-se um segundo relato de transgres-são, de força simbólica bem mais impressionante que o anódino roubo de um fruto: o assassinato de Abel por seu irmão Caim, ambos filhos de Adão e Eva. O ódio de um irmão, o derrama-mento de sangue, a angústia e a errância do culpado, a prolifera-ção da violência, constituíram uma parábola que nunca deixou de assombrar as literaturas ocidentais.

Em 26 versículos, essa parábola conta, em estilo sóbrio, que Caim, o agricultor, se pôs a odiar seu irmão Abel, o pastor, por-que Deus afastara suas oferendas enquanto continuava a receber as de Abel. Ao ver esse ódio crescer, Deus disse a Caim: “Se esti-vesses bem disposto, não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto, não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita; podes acaso dominá-lo?” Trata-se da glorificação da liberdade.

Caim, infelizmente, levou seu irmão para o campo e o matou. “Onde está teu irmão Abel?”, Deus então lhe perguntou. E Caim respondeu: “Não sei. Acaso sou guarda de meu irmão?” Cai o castigo: “Serás um fugitivo errante sobre a terra.” Contudo, para evitar que o assassino fosse abatido pelo primeiro que o encon-trasse, a misericórdia divina o dotou de um misterioso “sinal”.

* No original francês, frérocité, jogo de palavras que reúne as palavras frère (“irmão”) e féro-cité (“ferocidade”). Optamos por usar, em português, a tradução “fratrocidade” (frater + atrocidade). (N. da T.)

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Em sua extrema brevidade, o relato deixa lacunas: por que Deus acolheu de modo diferente os dois sacrifícios? Como se deu o assassinato? Em que consiste o “sinal”? Que bela oportu-nidade para que teólogos, poetas, pintores e romancistas desses dois últimos milênios preenchessem essas lacunas!

O final do capítulo apresenta os descendentes de Caim, que se tornou construtor de uma cidade. Entre eles estão Lamec e seus filhos: Jabel, pai dos pastores nômades; Jubal, pai dos músicos; Tubal-Caim, hábil em martelar o ferro e o bronze. Nesses poucos versículos se esboça uma meditação sobre a ambiguidade das ciências e das técnicas: de um lado as armas, inventadas pela des-cendência de um assassino, e, de outro, as ferramentas e sobretu-do os instrumentos musicais. A desconfiança, no entanto, triun-fa, por ser a técnica uma realidade posterior à Queda. No Éden ela não aparecia como uma necessidade. Do mesmo modo, a ci-dade também suscita a desconfiança da comunidade israelita, que nunca chegou a esquecer de todo que o período de seu noivado com o Deus único foi uma longa permanência no Deserto.

Na boca de Lamec se lê uma espécie de melopeia:

Eu matei um homem por uma ferida, Uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, Mas Lamec, setenta e sete vezes!

Esse frenesi sanguinário de intermináveis represálias seria amainado pela lei judaica do talião, que proporciona o revide à ofensa: “Olho por olho, dente por dente” (Êxodo 21, 24). A ela se oporia diametralmente o apelo de Cristo para que se perdoasse “setenta vezes sete vezes” (Mateus 18, 22).

Caim ocupa um lugar importante na Cidade de Deus (413-427) de santo Agostinho, na qual se afirma como figura de proa da cidade maldita, compulsivamente imitada por Rômulo, assas-sino de seu irmão Remo e fundador de Roma, cidade sangrenta dos conquistadores. Após incontáveis releituras, em especial no

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teatro, o sombrio Caim se tornou um dos heróis do romantismo: Lord Byron (1821), Gérard de Nerval em “A história da rainha da manhã” (Voyage en Orient [Viagem ao Oriente], 1851), Leopold von Sacher-Masoch e sobretudo Victor Hugo, cuja obra, confor-me mostrou o psicanalista Charles Baudouin, é obcecada por essa figura (“A consciência”, na Lenda dos séculos). O século XX não ficou para trás, com Hermann Hesse (Demian, 1919), John Steinbeck (A leste do Éden, 1952) e Michel Butor (L’Emploi du temps [O emprego do tempo], 1956). Oratórios e óperas se suce-deram a partir do século XVIII.

As artes plásticas privilegiaram a oferenda dos dois irmãos, o assassinato (Tintoreto, Philippe de Champaigne) e a Errância* de Caim (com Prud’hon, A Vingança divina perseguindo o crime, no Louvre). Sobre a morte de Caim, é preciso acrescentar uma lenda rabínica: Lamec, que se tornara quase cego, teria matado Caim e o escondido num matagal pensando se tratar de um ani-mal selvagem, episódio representado com frequência em capi-téis, vitrais ou gravuras.

A expressão “velho como Matusalém” remete ao pai de Lamec, ao qual o Gênese atribui uma vida de 969 anos (5, 27), em con-formidade com as representações arcaicas, que – nos primórdios do mundo – atribuíam aos primeiros homens um vigor e uma longevidade que em seguida se perderam.

O Dilúvio (6-9)

São conhecidas várias centenas de relatos etnográficos de dilú-vios em todo o mundo. A psicanálise e a ciência dos mitos deram conta dessa profusão: todo ser humano nasce emergindo das águas amnióticas do ventre materno, mas teme que lhe façam percorrer o caminho da vida ao inverso e que o afoguem sob as águas. A fantasia da exposição sobre a água expressa esse terror, que faz parte de nossa arqueologia comum e permanece em nós

* Optamos por designar com um termo iniciado por maiúscula os episódios bíblicos que se tornaram motivos amplamente retomados nas artes plásticas e em obras musicais ou lite-rárias.

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qual engrama indelével, “um hieróglifo esquecido [...], um peda-ço de literatura silenciosa” (Marthe Robert). Fenômeno caracte-rístico da fantasia, produz-se um trabalho de reorganização: as águas do útero materno tornam-se um casco e navio, um cesto ou uma arca, sempre prisioneiros das águas.

A ilustração mais célebre desses devaneios está nos capítulos 6 a 9 do Gênese: Deus, ao ver que proliferava a maldade dos homens, arrependeu-se de ter criado a humanidade e resolveu lavar da terra a corrupção. Como só enxergasse um único justo no mundo, Noé, disse-lhe: “Faze uma arca de madeira resinosa [...] entrarás na arca, tu e teus filhos, tua mulher e as mulheres de teus filhos contigo. [...] De cada espécie de aves, de cada espécie de animais, de cada espécie de todos os répteis do solo, virá contigo um casal [...].”

Depois que todos entraram na arca, as águas submergiram toda a terra, trombas de chuva desabaram durante quarenta dias; as montanhas mais elevadas ficaram cobertas; toda a vida desa-pareceu da terra firme. A inundação se estendeu por 150 dias. Por fim, o nível das águas começou a baixar e um belo dia um pombo, solto por Noé, voltou à arca: trazia no bico um ramo fresco de oliveira. Ao baixarem, as águas depositaram a arca so-bre o monte Ararat (ao sul do Cáucaso).

Então Noé e todos os ocupantes saíram da arca. Noé ofereceu um sacrifício do agrado de Deus, que firmou uma Aliança com ele e seus descendentes: “Não haverá mais Dilúvio para devastar a terra [...] porei meu arco na nuvem e ele se tornará um sinal da aliança entre mim e a terra.” Assim é explicada a origem do arco--íris. Nessa aliança com a humanidade, Deus apresentou apenas duas interdições: o assassinato e o consumo de carnes não san-gradas. Noé tinha três filhos: Sem, ancestral de Abraão, Cam e Jafé. Noé, que inventara o vinhedo, certo dia exagerou um pou-co ao desfrutá-lo e se embriagou. Adormeceu nu, e Cam, ao vê--lo assim, não reagiu, ao passo que seus dois irmãos cobriram o idoso com seu manto, sem olhar para ele. E Noé, ao acordar de sua embriaguez, amaldiçoou Cam, ancestral dos cananeus.

No relato do Dilúvio e na fantasia das águas, simultaneamente vivificantes e mortíferas, enxertou-se a liturgia cristã do batismo:

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imersão do velho homem na água para fazê-lo morrer, e um novo nascimento pela emersão da água (Romanos 6, 3-6). Do mesmo modo, a grande imagem da Igreja como nau castigada pelas águas mórbidas do mundo, como nova arca de Noé, atesta o su-cesso desse episódio bíblico. A tal ponto que milhares de igrejas foram construídas em forma de navio, com o casco voltado para o céu. Como naves.

Voltamos a encontrar a fantasia da exposição sobre a água com Moisés, abandonado no Nilo ao nascer, dentro de um cesto, com o peixe do Livro de Jonas e, finalmente, nos relatos evangélicos da tempestade acalmada e do caminhar de Cristo sobre o mar: o Filho de Deus comanda os elementos enfurecidos e triunfa con-tra o medo universal da morte sob as águas.

Inúmeros pintores, como Rafael e Nicolas Poussin, e escrito-res, como Arthur Rimbaud, se inspiraram na visão do Dilúvio. Conservou-se a expressão “do tempo do dilúvio” e o adjetivo “antediluviano” para designar um acontecimento muito antigo, ou mesmo não datado.

A Torre de Babel (11)

Um terceiro e último relato de transgressão encerra a primeira parte, contramítica, do Gênese: a Torre de Babel. Situa-se num tempo primordial, quando toda a humanidade falava a mesma língua (a tradição hebraica a identifica como hebreu, língua pri-mitiva e sagrada). O relato responde a uma pergunta: qual a ori-gem das línguas?

Os homens, ainda unidos por um idioma comum, resolveram erigir uma cidade e uma torre cujo topo alcançasse o céu. Deus zombou desse orgulho, tal como ironizara o sonho de Adão de se tornar Seu igual. Resolveu embaralhar a língua deles de modo que os homens não fossem mais capazes de se entender, inter-rompendo assim aquela tentativa insensata. Desde então, cada um dos povos dispersos pela terra se encontraria encerrado numa linguagem particular.

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O narrador recorda aqui a cidade pagã da Babilônia, símbolo do mal, onde se erguiam templos-torres de vários patamares, chama-das zigurates. O nome Babel, que quer dizer “porta dos deuses”, é associado a um verbo hebraico que significa “embaralhar, tumul-tuar”. A tradição judaico-cristã sempre opôs Babel, a cidade do tumulto, a Jerusalém, cujo significado é “cidade da paz”. Seria o caso, notadamente, do Apocalipse. Em seu monumental Cidade de Deus, santo Agostinho orquestra o conflito entre as duas cida-des, o qual mais tarde seria retomado muitas outras vezes.

Reconhecemos Babel no episódio do grande inquisidor dos Irmãos Karamazov (1880), de Dostoievski, ou em “A bibliote-ca de Babel”, de Borges (Ficções, 1944). A ilustração plástica mais conhecida é A Torre de Babel, do pintor Brueghel, o Ve-lho (1563).

A saga dos Patriarcas (12-50)

Os onze primeiros capítulos do Gênese ofereciam narrativas de alcance universal sobre o gênero humano como um todo. Retrabalhavam mitos sumério-acadianos (como o Dilúvio), de-puravam-nos e faziam que contribuíssem para a celebração do Deus único. Em contrapartida, toda a continuação do livro per-tence a um gênero literário a partir de então bem conhecido: a saga, ou crônica das venturas e desventuras de uma família por várias gerações.

Abraão: o Pai dos crentes (12-25)

Originário de Ur, no sul da Mesopotâmia, Abraão, descenden-te de Sem, estabeleceu-se mais ao norte, em Harã. Foi lá que Deus lhe dirigiu seu apelo (12, 1-3):

Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei.

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Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei. [...]Por ti serão benditos todos os clãs da terra.

Confiando na Palavra Divina, Abraão abandonou tudo e par-tiu. Chegou à Palestina, onde teve um encontro misterioso: um rei-sacerdote, Melquisedec, ofereceu-lhe pão e vinho e o aben-çoou (14, 18-20).

Como não tinha filhos com sua mulher, Sara, ele tomou por segunda esposa uma serva, Agar, com a qual teve um filho que se chamou Ismael (16). Sara e Abraão se lamentavam, já muito idosos, por não terem descendência. Foi então que Deus firmou uma Aliança com Abraão: prometeu que ele se tornaria o pai de uma grande multidão e que teria com Sara um filho, Isaac. De Ismael se originaria uma poderosa nação. Mas com Isaac é que a Aliança se perpetuaria. Como sinal dessa Aliança, todos os recém-nascidos machos deveriam ser circuncidados (17).

Pouco depois (18), durante o calor mais forte do dia, estava Abraão sentado na entrada de sua tenda sob o Carvalho de Mambré, quando avistou perto dali três pessoas em pé: o pró-prio Deus e dois anjos. Imediatamente lhes ofereceu hospitali-dade. Deus lhe disse: “Tua mulher Sara terá um filho.” Sara, que tinha escutado, pôs-se a rir por causa da idade avançada de ambos. Mas Deus prosseguiu: “Acaso existe algo de tão ma-ravilhoso para Iahweh? Na mesma estação, no próximo ano, voltarei a ti, e Sara terá um filho.” Essa aparição divina junto ao Carvalho de Mambré foi interpretada pelos cristãos como uma revelação velada do mistério da trindade. E a afirmação de que “para Deus nada é impossível” seria reiterada por oca-sião da Anunciação a uma virgem do nascimento de Cristo (Lucas 1, 37).

Os dois anjos se puseram então a caminho para destruir as duas cidades corrompidas de Sodoma e Gomorra, não obstante a súplica lancinante de Abraão (19). Em Sodoma, foram recebidos por Ló, sobrinho de Abraão, mas a multidão cercou a casa a fim de saciar seus desejos com os dois visitantes. Os anjos disseram a

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Ló: “Toma tua mulher e tuas duas filhas que aqui se encontram, porque Iahweh vai destruir a cidade. Foge, e não olhes para trás.” Infelizmente, a mulher de Ló olhou para trás e foi transformada em estátua de sal. Ao nascer do sol, uma chuva de fogo e enxofre desabou sobre Sodoma e Gomorra (18). Desde então, as duas cidades somaram-se a Babel entre as cidades malditas. Inspira-ram o título de uma parte do prestigiado romance de Proust, Em busca do tempo perdido, publicado em 1921-22. Tornariam a aparecer na rica meditação de Michel Butor intitulada L’emploi du temps [Inventário do tempo], que versa sobre a figura de Caim e as cidades malditas (1957).

As duas filhas de Ló, ao ver desaparecerem os homens de sua cidade, embriagam o pai a fim de se unirem a ele durante a noi-te. Desse incesto – muito próximo do incesto de Mirra no mito grego de Adônis – nasceriam Moab e Ben-Ami, ancestrais de dois povos frequentemente inimigos de Israel (Gênese 19).

Alguns anos mais tarde, ante a inveja de Sara, Abraão viu-se obrigado a expulsar Agar e seu filho Ismael de sua casa. Restou-lhe apenas Isaac. E então surgiu o incompreensível: Deus, que pro-metera através desse filho único uma incontável descendência, e que sempre tivera horror aos sacrifícios humanos tal como os ho-locaustos infantis ao deus Molec (Levítico 18, 21), ordenou a Abraão que levasse o menino ao topo do monte Moriá e o ofere-cesse em holocausto. Eis que foi mais uma vez exigido do patriar-ca que acreditasse que para Deus tudo é possível. O filósofo dina-marquês Søren Kierkegaard dedicou um de seus mais belos livros, Temor e tremor (1843), à angustiada marcha de pai e filho, duran-te três dias, para a montanha do sacrifício. Celebra em Abraão o “cavaleiro da fé”, do face a face silencioso com o Absoluto, muito superior a um simples herói trágico como Agamêmnon, a quem os deuses ordenaram que sacrificasse sua filha Ifigênia. O herói trágico se lamenta, dividido entre dois deveres éticos: o amor pa-terno e o serviço ao interesse coletivo. Aqueles que o cercam o compreendem e dele se compadecem. Já Abraão se vê arrancado do âmbito da ética, dos deveres coletivos: está só, chocado com o chamado do Absoluto, em meio ao medo e ao tremor.

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Ao fim da terrível marcha, Deus chamou Abraão: “Não estendas a mão contra o menino! Agora sei que temes a Deus.” Abraão avis-tou então um cordeiro, preso pelos chifres num arbusto, e o sacri-ficou. Nesse momento, Deus lhe prometeu uma descendência mais numerosa que as estrelas do céu e a areia da praia: “Por tua posteridade serão abençoadas todas as nações da terra, porque tu me obedeceste.” Os cristãos escutaram aí o anúncio do Cristo (22).

Prevendo sua morte próxima, Abraão enviou seu servidor Eliezer até o local onde estava sua família, na Mesopotâmia, para que en-contrasse a mulher que Deus preparara para Isaac. Junto a um poço, numa cena de rara beleza, o servo encontrou Rebeca, da linhagem de Abraão. Ela lhe ofereceu água e deu de beber aos camelos. Ao ver o esplendor da moça, Eliezer compreendeu que estava em presença da futura esposa. Assim se firmou o casamento de Isaac (24).

E Abraão morreu com a idade de 175 anos.

Da saga de Abraão, as artes plásticas registraram sobretudo o encontro com Melquisedec, tomando-o como prefiguração do dom da Eucaristia; a aparição sob o Carvalho de Mambré; a ex-pulsão de Agar (Claude Lorrain, Jean-Baptiste Camille Corot); o sacrifício de Isaac, ao qual Rembrandt dedicou uma pintura cruel; e o encontro de Eliezer e Rebeca junto ao poço (Paolo Ve-ronese, Bartolomé Esteban Murillo, Poussin). O pintor russo Andrei Roublev (1360/70-1427/30) se inspirou nos misteriosos visitantes de Abraão para pintar o ícone da Trindade, que se tor-naria famoso.

Jacó e Esaú (25-36)

Rebeca deu à luz gêmeos: o primeiro era ruivo, todo peludo, e foi chamado de Esaú (ou seja, “ruivo”); seu irmão foi chamado de Jacó (“calcanhar”), porque nasceu com a mão agarrada no calcanhar do irmão. Esaú tornou-se um habilidoso caçador, cor-ria pelos campos, ao passo que Jacó permanecia nas tendas. Cer-to dia, voltando faminto e exausto de suas andanças, Esaú depa-rou com o irmão diante de um saboroso prato de lentilhas. Jacó

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só aceitou dividi-lo com ele se em troca lhe cedesse seu direito de primogenitura. O tolo concordou, renunciando assim à promes-sa divina.

Já velho e cego, Isaac quis abençoar seu filho preferido, Esaú. Mas Rebeca, que gostava mais de Jacó, vestiu-o com as roupas do irmão e cobriu suas mãos e pescoço com pelos de cabrito a fim de imitar os pelos de Esaú. O impostor compareceu diante do pai e lhe disse: “Sou Esaú, teu primogênito.” Isaac o atraiu a si e o apalpou. Confundindo-o com Esaú, deu-lhe sua bênção, a qual, no Antigo Testamento e não raro no Antigo Oriente, é não só eficaz como irrevogável:

Que os povos te sirvam, [...] Sê um senhor para teus irmãos, [...] Maldito seja quem te amaldiçoar! Bendito seja quem te abençoar.

Ante a fúria e os pensamentos homicidas de Esaú, Jacó teve de fugir para Harã, para junto da família de Labão, irmão de Rebe-ca (27).

Durante a viagem, foi surpreendido pela noite, adormeceu e teve um sonho: pousada no solo, viu uma escada que subia até o céu. E por ela subiam e desciam os anjos de Deus. Deus lhe apa-receu: “Eu sou Iahweh, o Deus de Abraão, teu pai, e o Deus de Isaac. A terra sobre a qual dormiste, eu a dou a ti e à tua descen-dência. [...] Eu estou contigo e te guardarei em todo lugar aonde fores.” Em memória a essa visão, o fugitivo erigiu uma estela a que deu o nome de Betel, ou seja, “casa de Deus” (28).

Jacó serviu Labão, e casou-se com suas duas filhas, Lia e Ra-quel. Com elas e suas servas teve onze filhos. Quando Raquel, que permanecera muito tempo estéril, afinal deu à luz José, Jacó fugiu para voltar à casa de seu pai Isaac (29-32). No caminho, certa noite, quando sua caravana acabava de passar o vau do Ja-boc, ele ficou só. Apareceu um homem que lutou com ele até o raiar do dia. Seu adversário, ao ver que não conseguia derrotá--lo, deslocou-lhe a coxa. Jacó, contudo, retomou o combate e

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disse: “Eu não te deixarei se não me abençoares.” O misterioso lutador perguntou: “Qual é o teu nome?” Diante da resposta, anunciou: “Não te chamarás mais Jacó, mas Israel, porque foste forte contra Deus.” Israel significa, sem dúvida, “Que Deus seja forte”. Jacó deu àquele lugar o nome de Fanuel, ou seja, “Face de Deus”.

Depois desse episódio, Jacó se reconciliou com Esaú. Teve, fi-nalmente, doze filhos, que se tornaram os pais das doze tribos de Israel.

A hostilidade entre os irmãos Jacó e Esaú* serviu como ima-gem das lutas fratricidas entre católicos e protestantes na França no final do século XVI, no épico Les Tragiques [As trágicas] (1617) do vigoroso poeta Agrippa d’Aubigné. A pintura do século XVII multiplicou as telas sobre a bênção de Isaac (José Ribera, Mu-rillo, Jean Jouvenet). Outros dois episódios da saga de Jacó fo-ram reproduzidos com frequência: a Escada celeste vista em so-nho (que Rafael substitui por uma escadaria, considerada mais nobre) e a Luta com o Anjo, a que Eugène Delacroix dedicou uma grande tela que se encontra na entrada da igreja parisiense de Saint-Sulpice.

A gesta de José (37-50)

Entre seus filhos, Jacó nutria amor privilegiado por José, o que resultou, para o rapaz, na hostilidade de seus irmãos. A situação tornou-se ainda mais difícil quando José lhes relatou dois de seus sonhos, em que vira os irmãos se prostrarem à sua frente. Eles então tramaram para se livrar dele: certo dia, quando apascenta-vam os rebanhos, ao longe, primeiro jogaram José numa cister-na; depois, pensando melhor, venderam-no por vinte siclos de prata a uns mercadores estrangeiros que o levaram para o Egito. E fizeram Jacó acreditar que um animal feroz devorara seu ama-do filho (37).

* No Brasil, a eterna rivalidade entre irmãos é tema do romance Esaú e Jacó (1904), de Ma-chado de Assis. (N. da T.)

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Outro filho de Jacó, Judá, teve com uma cananeia dois filhos, Her e Onã. Her desposou Tamar, que logo ficou viúva. Conforme a lei judaica do levirato (Deuteronômio 25, 5-10), um irmão deve se incumbir de sua cunhada viúva e suscitar-lhe posteridade para o falecido. Onã, porém, quando se unia a Tamar, derramava por terra sua semente de modo a evitar o nascimento de filhos que não fossem seus. Deus puniu tal egoísmo com a morte. Sem que se compreendesse o verdadeiro alcance da condenação divina, foi chamado de “onanismo” o suposto crime de um homem derramar sua semente sem visar à procriação e, em seguida, a simples mas-turbação. Assim abandonada, a infeliz Tamar acabou se disfarçan-do de prostituta para se unir ao sogro, Judá: dele teve dois filhos, um dos quais Farés, que foi um dos antepassados de Davi (através de Rute) e, portanto, do futuro Messias (38).

Voltemos, porém, a José. No Egito, foi vendido a Putifar, um servo de Faraó, e graças à sua inteligência logo se tornou o inten-dente de seus domínios. A esposa de Putifar, entretanto, não se mostrou insensível à beleza do rapaz. Insinuou-se para ele e até tentou arrancar sua roupa. Submisso a Deus, José recusou e con-seguiu fugir, mas uma de suas vestes ficou nas mãos da mulher. Ela alertou seus criados e denunciou ao marido que José havia tentado estuprá-la: a veste serviu de “prova”. O infeliz foi então jogado na prisão (39).

No cárcere, o cativo chamou a atenção ao interpretar de manei-ra favorável e acertada os sonhos de dois grandes oficiais de Faraó caídos em desgraça e que também se encontravam presos (40). Dois anos depois, Faraó, que reabilitara os dois oficiais, teve por sua vez um sonho: viu surgirem do Nilo sete vacas gordas, e depois sete vacas magras que devoravam as primeiras. Em vão desfilaram perante o soberano os habituais intérpretes dos sonhos. Um dos oficiais então se lembrou do dom de José. Convocado por Faraó, José desvendou-lhe o significado do sonho: sete anos de abundân-cia se sucederiam no Egito, seguidos de sete anos de fome. Deus o estava alertando para que organizasse reservas durante a abundân-cia, de modo que a escassez não devastasse a terra. Era preciso en-contrar um homem para dirigir essa tarefa de previdência.

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Impressionado com a sabedoria de José, que tinha então trinta anos, o monarca o nomeou administrador de todo o Egito. Quando adveio a fome, o país inteiro pôde contar com a reserva dos silos. Em Canaã, os irmãos de José, também castigados pela fome, resolveram ir ao Egito para se abastecer de trigo. José os reconheceu, mas eles de nada desconfiaram. Na sequência os acusou de espionagem, prendeu um deles como refém e exigiu que fossem a Canaã buscar seu irmão mais novo, Benjamim (vem daí a palavra benjamim de uma irmandade).

Jacó de início recusou-se a se apartar de seu filho caçula. Mas, como a fome se agravara, acabou por ceder. De volta ao Egito, os irmãos foram convidados à casa de José para um banquete. Este não conseguiu dominar sua emoção: pôs-se a chorar, então se deu a conhecer e os perdoou. Em seguida, chamou para junto de si Jacó e todos os seus e estabeleceu-os no Egito.

Jacó, sentindo a morte se aproximar, abençoou todos os filhos e expirou. José morreu aos 110 anos, e seu corpo foi embalsamado.

A magnífica história de José conheceu imenso sucesso popular. Inspirou Thomas Mann em sua tetralogia José e seus irmãos (1933-43), que opõe a serenidade dos tempos patriarcais às con-vulsões do mundo moderno. Rafael, Peter Paul Rubens e Diego Velázquez pintaram obras sobre o tema, e Rembrandt fez uma gravura intitulada José e a mulher de Putifar. Richard Strauss compôs uma Lenda de José (1914). A tradição cristã viu nesse Patriarca uma prefiguração do Cristo. Em seus Pensamentos, Pas-cal resumiu essa interpretação. Ele decifra no relato do Gênese todo o desenrolar do mistério da Encarnação, desde a vida trini-tária e a missão do Filho até a Paixão de Cristo (fr. 474):

Jesus Cristo figurado por José. Amado por seu pai, enviado pelo pai para ver seus irmãos, é inocente, vendido pelos irmãos por vinte tostões, por aí se tornando seu senhor, seu salvador, salvador dos estrangeiros e salvador do mundo. O que só podia ter a intenção de causar sua perda, a venda e a crítica que lhe fizeram. […]

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Na prisão, José inocente entre dois criminosos; Jesus Cristo na cruz entre dois ladrões. Ele prevê a salvação de um e a morte do outro com base na mesma aparência; Jesus Cristo salva os eleitos e condena os acusados de crimes iguais. José apenas prediz, Jesus Cristo faz. José pede àquele que será salvo que se lembre dele quando alcançar a glória; e aquele que é salvo por Jesus Cristo lhe pede que se lembre dele quando estiver no seu reino.

A história de José inaugura a permanência multissecular dos judeus no Egito, até o retorno rumo à Palestina sob a liderança de Moisés.

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