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Série FONTES NOVAS Direção Tito Carlos Machado de Oliveira RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL E INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA Luisa Maria Nunes de Moura e Silva Luiz Fernando Sanná Pinto Nilson Araújo de Souza

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SérieFONTES NOVAS

DireçãoTito Carlos Machado de Oliveira

RELAÇÕES INTERNACIONAISDO BRASIL E INTEGRAÇÃO

LATINO-AMERICANA

Luisa Maria Nunes de Moura e SilvaLuiz Fernando Sanná Pinto

Nilson Araújo de Souza

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UNIVERSIDADE FEDERALDE MATO GROSSO DO SUL

ReitorManoel Catarino Paes - Peró

Vice-ReitorAmaury de Souza

SérieFONTES NOVAS

DireçãoTito Carlos Machado de Oliveira

Aprovado pela Resolução 19/06 do Conselho Editorial da UFMS

Câmara EditorialTito Carlos Machado de Oliveira, Manoel Francisco de Vasconcelos Motta,Flávio Aristone, Antônio Firmino de Oliveira Neto, Christian Azaïs, Antônio Vitório Ghiraldello

Conselho ConsultivoArmen Mamigonian (USP), Ana Célia Castro (UFRJ), Antônio Carlos doNascimento Osório (UFMS), Antônio Firmino de Oliveira Neto (UFMS), Antônio MacialRiquelme (Kansas Univercity), Carlos Walter Porto Gonçalves (UFF), Carmen Galan Lopez(Universidad Camplutense de Madrid), Chistian Azaïs (Université Picardie Jules Verne),Cleonice Alexandre Le Boulegart (UCDB), Dercir Pedro de Oliveira (UFMS),Eduardo Yazigi (USP), Francisco Martinez Gonzáles-Tablas (Universidad Autônoma de Madrid),Flávio Aristone (UFMS), Hubert Drouvot (Université Pierre Mendes France, Grenoble),Ivani Catarina Fazenda (PUC/SP), Juan Carlos Ribintein (Universidad Nacional de La Plata),Lia Osório Machado (UFRJ), Luis Carlos Barbieri (FGV), Marco AurélioMachado de Oliveira (UFMS), Manoel Francisco de Vasconcelos Motta (UFMT),Rosa Éster Rossini (USP), Wilson Ferreira de Melo (UFMS)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

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Campo Grande - MS

2008

SérieFONTES NOVAS

DireçãoTito Carlos Machado de Oliveira

RELAÇÕES INTERNACIONAISDO BRASIL E INTEGRAÇÃO

LATINO-AMERICANA

Luisa Maria Nunes de Moura e SilvaLuiz Fernando Sanná Pinto

Nilson Araújo de Souza

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Projeto Gráfico,Editoração Eletrônica,Impressão e AcabamentoEditora UFMS

RevisãoA revisão lingüística e ortográficaé de responsabilidade dos autores

Direitos exclusivospara esta edição

UNIVERSIDADE FEDERALDE MATO GROSSO DO SULPortão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMSFone: (67) 3345-7200 - Campo Grande - MSe-mail:[email protected]

Editora associada à

ISBN: 85-7613-091-2Depósito Legal na Biblioteca NacionalImpresso no Brasil

Associação Brasileira dasEditoras Universitárias

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PREFÁCIO

Nilson Araújo de Souza1

1 Nilson Araújo de Souza é Doutor em Economia pela Universidad Naci-onal Autônoma de México (UNAM), com pós-Doutoramento em Eco-nomia pela Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA-USP); professor aposentado pela Universidade Federal de Mato Grossodo Sul e atual professor-pesquisador do Programa de Pós-Graduação daUniversidade Ibirapuera (UNIb) e do Curso de Relações Internacionaisdo Centro Universitário Belas Artes (FEBASP), ambos de São Paulo;autor de vários livros sobre Economia Internacional e Economia Brasi-leira Contemporânea. Seu mais recente livro: Economia brasileira con-temporânea – de Getúlio a Lula. São Paulo: Atlas, 2007.

Este livro faz parte dos projetos de pesquisa quedesenvolvemos sobre a integração econômica regional, comfoco na América do Sul, junto ao Programa de Pós-Graduaçãoda Universidade Ibirapuera e ao Curso de RelaçõesInternacionais do Centro Universitário Belas Artes.

Partimos da premissa de que, em lugar da globalização,a tendência que predomina na economia mundial contemporâ-

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nea é a regionalização, isto é, a formação de blocos econômi-cos regionais. Essa tendência, ainda que haja se generalizadono período mais recente, tem sua origem na década de 1950,quando começou a se manifestar tanto na Europa (início dafutura Comunidade Econômica Européia, atual União Européia)quanto na América Latina (constituição do Mercado ComumCentro-Americano e da Associação Latino-Americana de Li-vre Comércio).

No caso da América Latina, os primórdios do movimentointegracionista podem ser buscados nas próprias lutasindependendistas do começo do século XIX, tendo comoprincipal referência o projeto de integração proposto por SimonBolívar. Desde então, houve várias ondas integracionistas naregião. À exceção da última, deflagrada na década de 1980 eacelerada na primeira década deste século, todas as outrasfracassaram.

Na origem desses fracassos, conforme se pode ver noscapítulos 2, 4 e 5 deste livro, está, invariavelmente, a ação doexpansionismo estadunidense na região, que passou a semanifestar desde que, na década de 1820, elaborou-se aDoutrina Monroe, simbolizada no slogan “A América para osamericanos”. A essa ação, somam-se, certamente, os conflitosentre as oligarquias regionais, em grande medida fomentadosa partir dos interesses expansionistas dos EUA.

A pesquisa constata, no entanto, que a ondaintegracionista iniciada nos anos 1980 e acelerada na primeiradécada deste século XXI, particularmente na América do Sul,tem mais possibilidades de se consolidar do que as anteriores,conforme se pode verificar nos capítulos 3, 5, 6 e 7 deste livro.Esta nova onda beneficia-se do fracasso da tentativa dogoverno estadunidense impor o seu projeto de integração(consubstanciado na proposta de criação da Área de LivreComércio das Américas), bem como das políticas neoliberais(pregadas pelo “Consenso de Washington”) praticadas naregião ao longo da década de 1990. Foi nessa conjuntura queascenderam em vários países da América do Sul governoscomprometidos com o projeto de integração sul-americano.

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Uma questão importante para os objetivos da pesquisaera localizar e analisar o comportamento da diplomacia brasileiraem relação à proposta de integração regional. Esse objetivo foiformulado com a preocupação de responder ao lugar-comum,bastante difundido, de que o Brasil sempre esteve de costaspara as demais nações latino-americanas, priorizando asrelações com a Europa e os Estados Unidos.

A essa tarefa, dedicaram-se os autores nos capítulos 2,3 e 7 do livro. Verifica-se que, na política externa brasileira,sempre estiveram em conflito dois paradigmas: o que coloca aprioridade na busca do interesse nacional e se consubstanciouna Política Externa Independente sistematizada entre fins dadécada de 1950 e inícios da de 1960 e o outro que consideraque o Brasil deve aliar-se à potência hegemônica de cada épocae que se tornou conhecido como Alinhamento Automático.

As bases para o primeiro paradigma foram assentadas,na primeira década do século XX, pelo verdadeiro fundador dadiplomacia brasileira, José Maria da Silva Paranhos Júnior, maisconhecido como Barão do Rio Brando. Sempre lembrado porhaver negociado pacificamente o deslindamento fronteiriço doBrasil com seus vizinhos, deve-se a ele, também, a primeiraproposta brasileira de integração latino-americana, o Pacto ABC.Tratava-se de uma proposta de unidade entre Argentina, Brasile Chile como base para a integração econômica regional. Apósresolver os problemas fronteiriços, declarou: “Já construí omapa do Brasil. Agora o meu programa é o de contribuirpara a união e a amizade entre os países sul-americanos.Uma das colunas dessa obra deverá ser o A.B.C.”

Dali em diante, a proposta de integração retornaria váriasvezes até que, na década de 1980, durante o governo Sarney,passaria a ocupar um lugar de destaque na diplomacia brasileira,assumindo, no começo desta década, na gestão do governoLula, o significado de principal objetivo estratégico da nossapolítica exterior. Foi com base nessa definição que o Itamarati,por ocasião das negociações acerca da ALCA, recolocou como

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prioridade o interesse nacional, somando-se a outros paísesda região, sobretudo da América do Sul, que haviam assumindoigual definição.

Os governos desses países, percebendo a importânciada união, só aceitavam negociar em bloco com os EUA. Aintransigência manifestada pelos negociadores estadunidensesnessas rodadas, que não aceitavam abrir mão de seu projetooriginal, terminou levando ao fracasso das negociações daALCA e ao fortalecimento de um projeto de integração daAmérica do Sul, inicialmente designado de Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), mais tarde rebatizado comoUnião das Nações Sul-Americanas (Unasul).

A integração da América Latina tem um significado nãoapenas comercial para os países que participam desse processo.Tem também um significado estratégico: aumenta a capacidadede decisão autônoma desses países no contexto internacional,possibilitando que se beneficiem mais de suas próprias riquezas.

O desenvolvimento auto-sustentado e mais eqüitativoda América Latina e do Brasil depende, em grande medida, doavanço desse processo integracionista: se a integração seconsolida, não apenas aumentam as possibilidades dedesenvolvimento desses países, como cresce seu papelautônomo na esfera internacional; se, ao contrário, a região sefragmenta, a tendência é que os ciclos de reprodução ampliadada dependência aumentem ainda mais a pobreza, a miséria e aexclusão social em todos os países da América Latina.

É, portanto, de fundamental importância investigar esseprocesso. Compreendê-lo significa aportar elementos para oentendimento dos rumos que, neste mundo marcado peloisolamento da política belicista e expansionista dos EUA, como conseqüente fortalecimento das articulações contra-hegemônicas, trilharão a economia e a sociedade latino-americanas.

Conforme se analisa nos capítulos 6 e 7, ainda existemobstáculos à conformação definitiva desse bloco regional,

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oriundos principalmente da pressão estadunidense (agoramanifestada na tentativa de realizar acordos bilaterais decomércio com países da região), mas também dos conflitos edesníveis regionais. Mas, também, se examina, nos capítulos 3e 7, que as condições nunca foram tão favoráveis para aintegração sul-americana como agora.

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SUMÁRIO

Prefácio ............................................................................................. 7

AS RELAÇÕES INTERNACIONAISCONTEMPORÂNEAS E A AMÉRICA LATINA

1. Hegemonia e reestruturação do Sistema MundialCapitalista .................................................................................. 21

1.1 A divisão do mundo e o expansionismoestadunidense ...................................................................... 221.2 A hegemonia dos EUA na ordem econômicainternacional de pós-guerra ................................................. 311.3 Começa o declínio dos EUA ......................................... 401.4 A tentativa de “exportar” a crise e a “detente” ............. 471.5 O agravamento da crise e a estratégia daTrilateral .............................................................................. 521.6 Reaganomics:ou a economia política do terror:neoliberalismo e Warfare State ............................................ 591.7 Faltava sustentabilidade à recuperaçãoestadunidense ...................................................................... 64

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1.8 Bush (filho) tenta impor “nova ordem mundial”através das armas ................................................................ 721.9 Reação da periferia: a união faz a força ........................ 75

2. A dialética das integrações na América Latina ....................... 832.1 Ocupação, exploração e escravidão naAmérica Latina .................................................................... 842.2 Emancipação e projeto de integração naAmérica Latina .................................................................... 882.3 Derrota da primeira vaga integracionista ...................... 912.4 Doutrina Monroe: “A América para os americanos” ... 942.5 Crise do modelo dependente e Pacto ABC ................ 1012.6 A Grande Depressão e a segunda ondade integração ...................................................................... 1042.7 Doutrina da Contra-Insurgência x Integração daAmérica Latina .................................................................. 1082.8 Ditaduras subordinadas aos EUA bloqueiam projetointegracionista ................................................................... 1162.9 Esgotamento da ordem econômica de Bretton Woods enova tentativa de integração da América Latina ............... 1222.10 A crise da dívida, a redemocratização e a nova ondaintegracionista ................................................................... 1272.11 “Consenso de Washington”, “Nova Ordem Mundial” e“Iniciativa para as Américas” ........................................... 134

3. A crise do neoliberalismo e o novo contexto latino-americano ................................................................................. 1433.1 A crise dos EUA e o “Consenso de Washington” .............. 144

3.2 A crise do neoliberalismo ............................................ 1493.3 A Conjuntura Política Latino-Americana: o casodo Brasil ............................................................................ 1553.4 A Conjuntura Política Latino-Americana: o casoda Argentina ...................................................................... 1643.5 A Conjuntura Política Latino-Americana: o casoda Venezuela ...................................................................... 1733.6 A Conjuntura Política Latino-Americana: o casoda Bolívia .......................................................................... 1853.7 A ascensão de um novo modelo de integraçãona América do Sul? ............................................................ 199

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OS PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO NAAMÉRICA LATINA

4. Integração e desenvolvimento na América Latina ................ 2094.1 A integração da América Latina: alguns fatoshistóricos ........................................................................... 2114.2 O desenvolvimento da América Latina e aintegração .......................................................................... 2154.3 A integração da América Latina e a Paz ...................... 2264.4 Perspectivas de Integração Latino-Americana ........... 227

5. O Mercosul e a Integração Latino-Americana ..................... 2335.1 Globalização e regionalização da economia: crise docapitalismo central ............................................................ 2355.2 A regionalização na América Latina ............................ 248

O CONFLITO ENTRE DUAS ESTRATÉGIAS DEINTEGRAÇÃO ECONÔMICA REGIONAL

6. O projeto de integração dos EUA e a América do Sul ......... 2696.1 ALCA expressa interesse estratégico dos EUA ......... 2706.2 Contexto em que nasceu projeto da ALCA ................ 2716.3 A proposta dos EUA para a ALCA ............................ 2756.4 EUA pregam livre comércio, mas intensificamo protecionismo ................................................................ 2806.5 Integração econômica e desníveis regionais ................ 283

7. A estratégia brasileira para a integração regional ................. 2937.1 Governo Fernando Henrique aceita projeta da ALCA,mas reduz ritmo ................................................................ 2947.2 Governo Lula muda orientação acerca da ALCA ....... 2987.3 Limites externos à integração sul-americana ............... 3047.4 Limites internos à integração sul-americana ............... 3097.5 Possibilidades da integração sul-americana ................ 3117.6 Ou ALCA ou Unasul .................................................. 315

Bibliografia .................................................................................... 317

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PARTE1

AS RELAÇÕES INTERNACIONAISCONTEMPORÂNEAS E A

AMÉRICA LATINA

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CAPÍTULO1

HEGEMONIA EREESTRUTURAÇÃO

DO SISTEMA MUNDIALCAPITALISTA

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Aascensão dos Estados Unidos como potência nosistema mundial ocorreu na segunda metade doséculo XIX. Para isso, foi muito importante a açãodo seu Estado no sentido de proteger suas

indústrias nascentes da competição internacional, sobretudoinglesa e francesa. Após a Guerra da Secessão3, a expansão daindústria estadunidense alcançou os estados do sul, o quecontribuiu, junto com a Segunda Revolução Industrial, paratransformar os Estados Unidos no maior produtor demanufaturados do mundo, já no final do século XIX.

2 Luiz Fernando Sanna Pinto é graduado em Relações Internacionais noCentro Universitário Belas Artes, de São Paulo. Dedicado à pesquisa doprocesso de integração latino-americano.3 Guerra civil americana (1961-1965), entre os Estados do Norte (União)e do Sul (Confederação).

Luiz Fernando Sanná Pinto2

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A divisão do mundo e oexpansionismo estadunidense

O período de emergência dos EUA coincidiu com o detransformação do capitalismo mundial. A grande crise econômicainiciada em 1873, a Segunda Revolução Industrial e a fusãoentre o capital industrial e bancário, sob hegemonia do último,criando o financeiro, acabaram gerando um processo deconcentração e centralização do capital sem precedentes. Ocapitalismo baseado na competição e no livre comércio foisubstituído pelo capitalismo monopolista; o sistema mundialentrou em sua fase imperialista.

O imperialismo é o capitalismo chegado a uma fase dedesenvolvimento onde se afirma a dominação dosmonopólios e do capital financeiro, onde a exportaçãodos capitais adquiriu uma importância de primeiroplano, onde começou a partilha do mundo entre ostrustes internacionais e onde se pôs termo à partilhade todo o território do globo, entre as maiorespotências capitalistas.4

De 1873 até o início do século XX, praticamente todo omundo já havia sido dividido entre “esferas de influência” dasgrandes potências, nas condições de colônias, semi-colôniasou países dependentes. Mesmo assim, ao contrário do queKautsky imaginou, a concentração e centralização do capitalnão levaram à criação de um cartel mundial único onde asgrandes empresas e os países imperialistas se juntariam e

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4 LENIN, V. O Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo. São Paulo:Global, 1979, p. 88.

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conviveriam em paz para explorar os países atrasados (Ultra-imperialismo). Lênin, ao contrário, postulara que o “acordotácito” entre as grandes empresas monopolistas pela divisãodo mercado internacional não poderia durar muito tempo. Essasempresas cada vez mais se apoiariam em seus Estados nacionaisna competição por mercados e territórios. Tal fato engendrouum complexo e contraditório movimento que combinou ainternacionalização do capital, fruto da necessidade constantede expansão e de busca por maiores taxas de lucro, com anacionalização do mesmo, já que, para conseguirem uma melhorposição relativa no mercado mundial, os grandes trustes e cartéisnecessitavam de todo o apoio de seus Estados no sentido degarantir suas posições no mercado interno e organizar todauma infra-estrutura que as permitissem expandir com maisfacilidade (inicio da formação do capitalismo monopolista deEstado). Esse processo levou à eclosão da Primeira GrandeGuerra.

Depois que os grupos internacionais dividiam omercado mundial, parecia que a competição devessecessar e tivesse início um período de paz duradoura.Isso não aconteceu porque as relações de força estãosempre se modificando. Algumas companhias cresceme se tornam mais poderosas, ao passo que outrasdeclinam. Assim, o que em dado momento era umadivisão justa, torna-se injusta mais tarde. Hádescontentamento da parte do grupo mais forte,seguindo-se uma luta por uma quota maior.Freqüentemente isso leva à guerra.5

A Primeira Guerra Mundial enfraqueceu a posição dospaíses europeus na arena internacional. A Alemanha, a França ea Inglaterra pareciam ter entrado em uma exaustiva guerra sem

5 HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro:Afiliada, 1986, p. 255.

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fim, enquanto a Rússia mergulhava em um longo processorevolucionário. Só havia uma explicação para demonstrar porquea guerra atingira tamanhas proporções; segundo Hobsbawm:

O motivo era que essa guerra, ao contrário dasanteriores, tipicamente travadas em torno de objetivosespecíficos e limitados, travava-se por metas ilimitadas.Na era dos Impérios a política e a economia se haviamfundido. A rivalidade política internacional semodelava no crescimento e competição econômicos,mas o traço característico disso era precisamente nãoter limites. As ‘fronteiras naturais’ da Standard Oil, doDeutsche Bank ou da De Beers Diamond Corporationestavam no fim do universo, ou melhor, nos limites desua capacidade de expansão.6

É importante destacar que, tal qual uma crise ou depressãoeconômica, as guerras intensificam as tendências característicasdo desenvolvimento capitalista e acirram suas contradições. Aomesmo tempo que destroem forças produtivas, aceleram acentralização e os componentes financeiros do capital7.

Os Estados Unidos foram os que mais lucraram com aguerra, entrando no conflito, ao lado de França e Inglaterra, em1917, com o objetivo de “assegurar” os empréstimos que haviamconcedido para esses países.

A entrada dos EUA no conflito representou importantemudança na sua política exterior. Apesar de ter exercido umapolítica imperialista na América Latina (principalmente Central)e na região das ilhas do pacífico já no final do século XIX e

6 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 37.7 Essa tendência foi observada por Bukharin ao analisar os efeitos daPrimeira Guerra Mundial sobre a economia mundial (BUKHARIN, Nikolai.A Economia Mundial e o Imperialismo. São Paulo: Nova Cultura, 1986).

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inicio do XX, algo que ficou patente quando da afirmação doCorolário Roosevelt, os EUA haviam mantido até a PrimeiraGuerra Mundial o principio de não intromissão nos conflitoseuropeus, celebrizado na frase de John Quincy Adams: Americagoes not abroad in search of monster to destroy8.

A mudança de postura dos EUA com relação ao mundorepresentou sua efetiva consolidação como potência global,ainda que rivalizando com França, Inglaterra, Alemanha e Japão,e enfrentando forte oposição interna, liderada por setores quenão abandonavam o tradicional sentimento isolacionista.

O que efetivamente levou os Estados Unidos a adotaremuma política global foi seu crescimento econômico, intensificadodurante a Guerra.

A guerra mundial realmente colocara os EstadosUnidos em condições excepcionais e exclusivas. Acessação das exportações de grãos pela Rússiadeterminara o aumento da demanda de produtosagrícolas americanos, bem como de armamentos pelospaíses beligerantes. Sua indústria bélica adaptara-seàs necessidades da guerra na Europa e obtiveraenormes lucros com exportações de armamentos emunições para a Grã-Bretanha, França e Bélgica. (...)Também a procura de créditos e financiamentosexternos orientara-se para Nova York e os EstadosUnidos rapidamente se transformaram de devedoresem credores da Europa, e de países como Canadá,Argentina, Panamá, Bolívia, Costa Rica e outros, queantes recorriam ao mercado de Londres.9

8 “Os Estados Unidos não vão ao exterior em busca de monstros paradestruir”. KISSINGER, Henry. Diplomacy. New York: Simon & Schuster,1994, p. 35.9 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano:da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2005, p. 70.

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Com o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, o mundoparecia outro: a Europa estava transformada, quatro impériosforam arruinados – Russo, Alemão, Austro-Húngaro e Otomano.Os EUA aumentavam cada vez mais o seu poderio, enquanto osSovietes, liderados por Vladimir I. Ulianov (Lênin), construíama primeira experiência socialista na área abrangida pelo antigoImpério Russo. A revolução soviética nascia sob o signo dapaz, da igualdade entre os Estados soberanos e daautodeterminação dos povos.

Contrapondo-se a esse apelo, Woodrow Wilson,presidente dos EUA, apresentou, na Conferência de Versalhes,seus Fourteen Points, com o objetivo de demonstrar que osestadunidenses tinham um plano próprio para a paz, tambémdefendendo a igualdade soberana dos Estados e aautodeterminação dos povos.

Os apelos de Lênin e Wilson representaram o início deum período em que o sistema mundial capitalista, sustentadopor suas estruturas hegemônicas de poder (grande capitalprivado, Estados e etc.), passaria a disputar espaço com umsistema socialista de organização da sociedade, da economia edo Estado, sistema que, devido à sua natureza, assustava asclasses dominantes dos países capitalistas.

A primeira opção estratégica das grandes potências comrelação à Rússia Soviética, após as fracassadas tentativas deintervenção no processo revolucionário, era isolar o país atrásde um “cinturão de quarentena” (cordon sanitaire) de Estadosanticomunistas, evitando a difusão da revolução para o restoda Europa. Esse papel coube à Finlândia, Letônia, Estônia,Lituânia, Polônia e Romênia.

Apesar do importante papel que a Rússia revolucionáriadesempenhava no imediato pós-guerra, os problemas dasclasses dominantes das grandes potências estavam longe deser unicamente representados pelo “perigo vermelho”. Aconcorrência e a disputa dentro do próprio sistema capitalistarapidamente saltariam aos olhos de todos.

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Após a Conferência de Versalhes, os defensores do“isolacionismo” voltaram ao centro do poder em Washington,rejeitando o Tratado de Versalhes e a Liga das Nações, e seafastando dos negócios mundiais (exceto a sua área direta deinfluência, é claro).

Na Europa, França e Inglaterra tentavam jogar o ônus daguerra para a derrotada Alemanha, cobrando dívidas impagáveisque, por sua vez, serviriam para pagar suas dívidas com osEstados Unidos. Estes, para receberem seus créditos junto àFrança e à Inglaterra, fizeram empréstimos à Alemanha,transferindo assim as dívidas da Inglaterra e França para osalemães. Essa arquitetura financeira não durou muito, já que aguerra só serviu para aumentar a centralização do capital,ampliando o poder dos monopólios e gerando graves problemaseconômicos que rapidamente se manifestariam.

Em outubro de 1929, ocorreu o colapso da Bolsa de NovaYork, que deflagrou em todo mundo, exceto na União Soviética,uma grande depressão econômica. O capitalismo monopolista10

demonstrou toda sua fragilidade, gerando crises sociais epolíticas sem precedentes.

Na periferia do sistema mundial, a crise contribuiu paraenfraquecer muitos governos conservadores dos países que jáhaviam alcançado a independência política, o que possibilitoua ascensão de forças sociais que privilegiaram a industrializaçãoe a modernização com forte auxílio estatal.

Nos países centrais, a Grande Depressão e aconseqüente desestabilização política e social abriram duasalternativas possíveis de recuperação dentro dos marcos docapitalismo: uma progressista, bem representada pelo governo

10 O capitalismo, como vimos, já havia atingido sua fase monopolista,mas, no discurso, ainda mantinha a roupagem liberal, típica da faseconcorrencial.

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de Franklin Delano Roosevelt, nos Estados Unidos, queconsistia no aumento dos gastos sociais e dos investimentosprodutivos de parte do Estado, bem como no cerco a algunsmonopólios e na ampliação do papel do poder público no sentidode melhor regulamentar a atividade econômica11; e umareacionária, que teve sua primeira expressão antes mesmo dadepressão, na Itália, e que acabou se tornando a opção dasclasses dominantes dos países onde a possibilidade de umarevolução socialista era iminente, como na Alemanha. Essaalternativa nazi-fascista consistia na “recuperação” da economiavia destruição das organizações populares, com o Estadogarantindo, através da violência e da superexploração da forçade trabalho, a reprodução ampliada do capital.

Com a superexploração da força de trabalho tornando-se o eixo central da recuperação econômica dos países nazi-fascistas, as contradições próprias do capitalismo acabaram seexacerbando onde esses regimes reacionários eram implantados,com a reprodução ampliada do capital só podendo ocorrermediante os pesados gastos do Estado na indústriaarmamentista e na expansão externa, ou seja, através de umapolítica de invasão e anexação de outros Estados.

Essa política militar expansionista culminou nadeflagração da Segunda Grande Guerra. Depois de um períodoem que os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) dispuseramde consideráveis vantagens, os Aliados, a partir da entrada dosEstados Unidos e da União Soviética na guerra, ao lado de umaGrã-Bretanha enfraquecida e de uma França invadida, selaramuma aliança mundial progressista que lançou uma ofensivapolítica, militar, econômica, cultural e ideológica que esmagou

11 Esse tipo de política econômica foi posteriormente teorizada peloconhecido economista inglês John Maynard Keynes. Ver: KEYNES, JohnMaynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo:Atlas, 1982.

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as forças reacionárias que a Alemanha, a Itália e o Japãorepresentavam.

A Segunda Guerra Mundial transformou profundamentea história:

- as antigas potências européias, devido à enormeperda de vidas, o deslocamento de refugiados e àdestruição da infra-estrutura e do estoque decapital produtivo, estavam arruinadas;

- o Japão, que foi o único país a ser atacado porbombas atômicas, estava humilhado;

- os povos das antigas colônias da África e da Ásia,principalmente os que lutaram contra a invasãodas potências do Eixo aos seus países, estavamprontos para aproveitar a fraqueza de suas antigasmetrópoles e conquistar a independência políticae econômica;

- a União Soviética, apesar de sua heróica vitóriamilitar sobre a Alemanha, era um país destruídopela invasão nazista (20 milhões de soviéticosmortos, cidades e grandes partes dos camposcompletamente destruídos, enormes despesasmilitares, dívidas e etc.), não possuía a bombaatômica e tinha que negociar os acordos do pós-guerra com um país que estava em uma posiçãoestratégica muito superior. As conquistas que aURSS conseguiu foram garantir a manutenção deuma frente ocidental socialista na vasta zona doleste europeu que ficou protegida por seu ExércitoVermelho e a influência ideológica que exercia,com a conquista de milhões de simpatizantes emtodo mundo.

Dos países importantes, apenas os EUA pareciam ter sebeneficiado materialmente na guerra, alcançando uma posiçãonunca antes vista na história: estavam sem rivais no sistemamundial capitalista.

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As tropas americanas ocupavam os países do Eixo, osadministravam e estavam estacionadas, em grandenúmero, em bases em países aliados – como França eInglaterra – e em todos os continentes. Os EstadosUnidos haviam demonstrado ao mundo sua liderançacientífica e tecnológica e a determinação política deutilizá-la, bombardeando, com intervalo de três dias,as cidades de Hiroshima e Nagasaki. Os Estados Unidosdetinham mais de 50% das reservas de ouro do mundoe eram importantes credores dos países aliados,inclusiva da União Soviética, bem como dos paísesinimigos, devido às reparações de guerra.12

Apesar dessa posição de liderança absoluta que haviamalcançado no sistema capitalista, superior à exercida pelaInglaterra durante o século XIX, os EUA necessitavam conter aexpansão socialista. Os partidos comunistas, socialistas e social-democratas haviam alcançado extraordinário prestígio na Europae na Ásia, devido ao fato de seus partidários terem sido os maisaguerridos opositores do nazi-fascismo e do imperialismojaponês, o que ameaçava a própria existência do sistema lideradopelos EUA.

Isso expôs a principal contradição existente no cenáriomundial do imediato pós-guerra, origem dos embates que sedesdobraram em lutas políticas, econômicas e sociais locais,nacionais, regionais, mundiais e até espaciais. Muitos analistastentaram mistificar esse fato ao apresentar os conflitosexistentes nesse período a partir de condicionantes geopolíticosque expressam uma suposta rivalidade entre nações soberanasque buscam seus interesses individuais em um sistemainternacional, o que nega completamente o verdadeiro caráter

12 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos anos de periferia. Umacontribuição ao estudo da política internacional. Porto Alegre: UFRGS,1999, p. 26.

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A hegemonia dos EUA na ordemeconômica internacional de pós-guerra

Foi o desenvolvimento desigual característico docapitalismo que permitiu uma concentração e uma centralizaçãotão brutal do capital no território estadunidense, levando essepaís, no intuito de assegurar a colocação dos enormesexcedentes que sua capacidade produtiva estava em condiçãode gerar, a reorganizar o sistema mundial capitalista. Foi assimque os EUA contribuíram para a recuperação das economiaseuropéia e japonesa e hegemonizaram a construção de todo umaparato institucional que garantisse o crescimento do comérciomundial, cujas bases foram estabelecidas, no plano multilateral,em Bretton Woods (1944), com a criação do Fundo MonetárioInternacional (FMI), do Banco Internacional para Reconstruçãoe Desenvolvimento (BIRD) e, posteriormente, do Acordo Geralsobre Tarifas e Comércio (GATT), aos quais foram somados osplanos e as instituições de auxílio e ajuda internacionais – osPlanos Marshall e Colombo, a Agência Internacional para oDesenvolvimento (AID), o Ponto IV, a Aliança para o Progressoe etc.

Deve-se dizer, inclusive, que os gastos estadunidensesna manutenção de suas bases militares no exterior tambémcontribuíram para aquecer a demanda mundial.

É interessante notar que foi o poder financeiro do dólar,garantido pelas reservas em ouro acumuladas pelos Estados

desses conflitos, baseados na contradição existente entre aexpansão e evolução das forças produtivas, fruto da socializaçãocada vez maior da produção, e a manutenção de certas relaçõessociais de produção, que garantem a apropriação privada dariqueza socialmente produzida.

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Unidos, que possibilitou a reativação da economia mundial.Essa reativação se deu, em grande parte, a partir da expansãodas atividades internacionais das grandes empresasmonopólicas daquele país, que se aproveitaram da ajudafinanceira garantida pelo seu Estado para penetrar naseconomias européia e japonesa, já que nessas regiões a guerracausou grande destruição das forças produtivas, o quecontribuiu para desvalorizar os elementos de capital fixo e dotrabalho, possibilitando um grande aumento na taxa de lucro.

Tal fato, evidentemente, reforçou as relaçõesmonopólicas no plano internacional, o que entrelaçou quasetodos os países capitalistas numa extensa rede comercial,administrativa e financeira. Esse processo foi chamado pormuitos de integração monopólica mundial, cuja infra-estruturae formação celular foi encontrada, como bem demonstrouTheotônio dos Santos13, nas corporações multinacionais, quese tornaram as principais unidades produtivas do sistemacapitalista.

Foi esse processo que garantiu o grande crescimentodo comércio internacional durante o período do imediato pós-guerra, com o surgimento de uma nova divisão internacional dotrabalho e com mudanças significativas nas relações econômicasinternacionais. O financiamento do Estado norte-americano paraa reconstrução econômica européia e japonesa garantiu asdivisas necessárias para que as empresas européias, assim comoas filiais das grandes corporações estadunidenses que seinstalaram nesses países, adquirissem máquinas e matérias-primas elaboradas dos Estados Unidos.

Ao lado disso, uma importante mobilização popular naEuropa favoreceu a maior participação do Estado na economia

13 SANTOS, Theotônio dos. Imperialismo e Corporações Multinacionais.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

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- através de investimentos em infra-estrutura e educação -,conquistou a ampliação dos direitos econômicos e sociais(seguro-desemprego, previdência e etc.) e contribuiu para arealização de uma política monetária expansiva, permitindo aincorporação das tecnologias de ponta em seus sistemasprodutivos, o que, em combinação com a reorganização dasgrandes empresas nacionais e do aparato científico e tecnológicoeuropeu próprio, garantiu uma rápida reconstrução econômicanessa região.

Ao mesmo tempo, na periferia do sistema capitalista, ospaíses que já haviam conquistado a independência políticaintensificaram o processo de modernização baseado naspolíticas de industrialização via substituição de importações,que eram fundamentadas na utilização dos recursos adquiridoscom as tradicionais exportações de produtos primários naimportação de máquinas e matérias-primas elaboradasnecessárias à industrialização.

No que se refere às regiões que ainda mantinham o statusde colônia, o enfraquecimento dos antigos impériostransoceânicos europeus, notadamente França e Inglaterra,somado à maior organização dos povos das colônias,principalmente dos que lutaram ao lado dos Aliados na SegundaGuerra Mundial, possibilitou a deflagração do processo de lutaspela libertação nacional, mais conhecido como processo de“descolonização”, que transformou profundamente a estruturadas relações internacionais.

A criação desses novos Estados nacionais abriu umimportante debate sobre as possibilidades de viabilizá-loseconomicamente, com a idéia de se realizar uma política desubstituição de importações tendo ganhado muitos adeptos, oque fez com que as teorias da Comissão Econômica para AméricaLatina (CEPAL), principal instituição que estudava os processosde industrialização como forma de superação dosubdesenvolvimento, se tornassem conhecidas em todo mundo.

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Tudo isso impulsionou, como se sabe, um fortecrescimento da economia mundial, algo que certamente marcouo período do pós-guerra. Esse impulso inicial, deve-se dizer,favoreceu ainda mais, ainda que temporariamente, os EstadosUnidos, base nacional a partir da qual se lançou a integraçãomonopolista mundial.

A princípio, isto [a nova divisão internacional dotrabalho] levou a um fortalecimento do país de ondese originava a inversão. As filiais montadas no exteriorcompravam seus equipamentos e matérias primaselaboradas da empresa-matriz ou de outras empresasdo mesmo grupo econômico, levando à criação denovas unidades produtivas.14

Esse foi o período de hegemonia absoluta dos EstadosUnidos no sistema mundial capitalista, sustentada, comopudemos observar, nos seguintes fatores (todosinterdependentes):

1- Hegemonia do dólar – O fato de os EUA possuírem,no imediato pós-guerra, mais da metade das reservasmundiais em ouro, e serem a maior potência econômicae militar do planeta, permitiu que o novo sistemamonetário internacional fosse baseado na paridadedólar-ouro, garantida pelo Federal Reserve. Com isso,o dólar, que era emitido unicamente pelos EstadosUnidos, transformou-se em moeda mundial, dando aesse país o privilégio de controlar a liquidezinternacional. Isso, como vimos, foi fundamental paraos EUA garantirem a manutenção de suas tropas noexterior e para a reativação da economia mundial, bemcomo para expansão internacional de suas empresasmonopólicas.

14 SANTOS, Theotônio, 1977, p. 28.

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2- Liderança ideológica – A fragilidade em que asclasses dominantes da Europa e da Ásia seencontravam, devido à crescente influência das forçassocialistas, fez com que essas se apoiassem naliderança ideológica estadunidense, que tinha comoeixo central a pregação do anticomunismo. Essaliderança dava legitimidade para que os EstadosUnidos mantivessem bases militares nesses países,tornando-os política e militarmente dependentes, semque pudessem ter muita autonomia ou planejar umapolítica externa própria. Isso também fez com queesses países aceitassem que os EUA tomassem ospaíses periféricos do sistema capitalista como sua áreade influência, ainda que houvesse alguma resistênciaem regiões onde as antigas ligações entre metrópole-colônia eram mais fortes ou em pontos muitoestratégicos (exemplos: África do Norte e parte doOriente Médio, com relação à França, eCommonwealth e também parte do Oriente Médio,em relação à Grão-Bretanha, apesar da estreita aliançaque esse país tinha com os Estados Unidos).

3- Poderio militar – Os EUA, após a Segunda GuerraMundial, possuíam um poderio militar nunca antesvisto na história humana. Além de bases com tropas eequipamentos espalhadas em todos os continentes,que ainda ampliavam sua influência política emregiões estratégicas, era o único país, até 1949, apossuir a bomba atômica.

4- Falta de rivais imperialistas – Como o grau dedestruição do Japão e da Europa no imediato pós-guerra era muito profundo, isso fez com que, em umprimeiro momento, eles não pudessem competir comos Estados Unidos.

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É importante dizer que a principal estratégia dos EstadosUnidos nesse período foi a de contenção do comunismo,expressa na chamada Doutrina Truman, que sustentava doisobjetivos: de um lado, isolar e pressionar econômica, política emilitarmente os países socialistas, inclusive dissuadindo-os comseu poderio nuclear, no intuito de bloquear seudesenvolvimento e, como conseqüência, diminuir sua influência;de outro, evitar a ascensão de forças socialistas no interior dosistema capitalista, com a prioridade sendo dada a alguns pontosestratégicos, como Europa e Japão.

É necessário destacar que foi feito um extraordinárioesforço para que os partidos social-democratas e socialistas (IIInternacional) se desprendessem da idéia de construção efetivado socialismo, o que culminou nas mudanças programáticasque os fizeram assumir a bandeira de um capitalismo dirigido ereformado, tornando-os radicais defensores do chamado Estadode bem-estar social (Welfare State).

Tudo isso contribuiu para alterar profundamente aestrutura interna dos Estados Unidos. Na área econômica, opapel central que desempenhava fez com que seu consumo eprodução internos atingissem níveis muito elevados,insustentáveis no longo prazo.

(...) tendência que caracterizou a economia americanano pós-guerra: o desenvolvimento de um padrão deconsumo e mesmo de produção superior à suacapacidade interna de poupança e de investimento.Nas primeiras décadas depois da guerra, isso foipossível porque, além de controlar, através dafaculdade de emitir dólar, as imensas massas dedinheiro que circulavam no mundo, passou a receber opagamento dos empréstimos que fizera para financiaro esforço bélico na Europa e a posterior reconstruçãoeuropéia e japonesa.15

15 SOUZA, Nilson Araújo de. Ascensão e Queda do Império Americano.São Paulo: Mandacaru, 2001, p. 83.

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No que se refere à política econômica, os empréstimosde longo prazo e a juros muito baixos e a ajuda financeira dadapelo governo dos Estados Unidos para reconstrução econômicada Europa e do Japão, bem como, em grau muito menor, para o“desenvolvimento” dos países periféricos, somado aosgigantescos gastos militares e às pressões constantes de parteda população para o aumento dos gastos sociais, fizeram comque houvesse uma forte tendência ao déficit fiscal.

Além disso, a perda de competitividade para o Japão e aAlemanha, a manutenção de bases militares no exterior, asguerras, a ajuda econômica para os países desenvolvidos e osgastos em turismo rapidamente fariam com que tambémhouvesse uma forte tendência ao déficit no balanço depagamentos.

As políticas de empréstimos e ajuda financeira que ogoverno dos EUA concedia aos outros países funcionavamcomo mecanismos de transferência indireta de recursos para ogrande capital local que se internacionalizava: os empréstimose a ajuda eram pagos com recursos públicos, adquiridos peloEstado através dos impostos, os quais, por sua vez, recaiamsobre toda a população. Como geralmente a compra de bensdas corporações privadas estadunidenses eram condições paraque os empréstimos e a ajuda financeira fossem efetivados,essas foram as grandes beneficiadas de todo o processo.

No que diz respeito à política propriamente dita, osgigantescos gastos com armamentos aumentaram muito ainfluência daquele grupo que o presidente Eisenhower chamou,no seu discurso de despedida da Casa Branca, de “complexoindustrial militar”. As empresas de armamento e de alta tecnologialucravam bilhões de dólares com a política de Guerra Fria, o quefez com que essas corporações se tornassem algumas dasprincipais lobistas de Washington, possibilitando suaparticipação na formulação de uma política externa extremamenteagressiva, o que se somou à formação de todo um sistema

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paralelo de espionagem e operações clandestinas, o qual,liderado pela CIA (Central Intelligence Agency) e pela NSA(National Security Agency), deveria garantir as condições pararealização do “trabalho sujo” nas políticas de segurança, o queera feito, majoritariamente, através das chamadas operaçõesencobertas (covert actions). O propósito de tais operações eramanipular os acontecimentos e sua percepção, no sentido depermitir que o governo dos EUA patrocinasse sabotagens,assassinatos (tanto fora quanto dentro de seu território) e todotipo de ação terrorista que conviesse aos seus interesses, semque houvesse exposição à opinião pública. Isso, evidentemente,ampliou o poder dos setores mais conservadores daquele país.

Como Eisenhower previra, no seu discurso dedespedida, a combinação dos interesses do complexoindustrial-militar estavam a ‘endanger our liberties ordemocratic processes’. A necessidade de guerrasinteriorizava o sistema repressivo que o Pentágono e aCIA tratavam de exportar para os países da AméricaLatina e de outras regiões, de modo a preservar eexpandir os investimentos das grandes corporaçõesamericanas. A tolerância com os que pensavam de mododiferente estava a desaparecer. E os Estados Unidoscada vez mais se assemelhavam a um Estadototalitário16.

Essas alterações, como demonstraremos mais adiante,afetaram profundamente a dinâmica da integração monopolistamundial, acirrando suas contradições.

É preciso lembrar que, no imediato pós-guerra, tambémhouve um intenso desenvolvimento nos países socialistas, a

16 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano:da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2005, p. 296.

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despeito do isolamento que as políticas de Guerra Fria lhesimpuseram. A União Soviética e os países do Leste Europeuconseguiram se recuperar ainda mais rapidamente do que ospaíses capitalistas: em 1949, a União Soviética já possuía abomba atômica, quebrando o monopólio dos EUA; e em 1957,com o Sputnik, a URSS iniciou a era espacial. Com a rápida eplanejada urbanização, baseada nos mecanismos de umaeconomia socialista, foi sendo construída uma sociedade comuma maior população trabalhadora, científica, intelectual eartística do que a dos países capitalistas, contribuindo para orápido desenvolvimento do país. Além disso, outros países sejuntaram ao campo socialista: Vietnã do Norte, em 1946; Coréiado Norte, em 1948; China, em 1949; e Cuba, a partir de 1961.

A expansão do socialismo na Ásia preocupava cada vezmais os políticos estadunidenses, o que contribuiu paraintensificar o sentimento anticomunista dos setores maisconservadores, que passaram a propor políticas cada vez maisagressivas. O general MacArthur chegou a sugerir a utilizaçãode bombas atômicas na China e na Coréia do Norte; sugestãoque foi rapidamente descartada pelo presidente Eisenhower,que, apesar de conservador, era cauteloso.

A poderosa máquina de guerra estadunidense exigiu aconstrução de um aparato militar equivalente por parte dossoviéticos, o que fez com que a tensão aumentasse cada vezque um desses países desenvolvesse um novo armamento. Talsituação obrigou as duas potências a atuarem com mais cautelanas crises políticas internacionais, sob pena de causarem adestruição completa da vida humana na terra. Isso deu origemao que muitos chamaram de “equilíbrio do terror”, que teve nadoutrina da destruição mútua assegurada (Mutual AssuredDestruction – MAD) sua principal expressão.

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Começa o declínio dos EUAAs contradições geradas pela integração monopolista

mundial deflagraram, em pouco tempo, novos e intensosconflitos, que inicialmente se manifestaram na periferia docapitalismo. Como as políticas de industrialização viasubstituição de importações adotadas pelos países quebuscavam o desenvolvimento garantiram a transferência derecursos dos demais setores da economia para a indústria, oque aumentava muito a taxa de lucro nessa atividade, astransnacionais, principalmente estadunidenses, se sentiramatraídas e passaram a investir na industrialização com vistas àexploração do mercado interno desses países, aproveitando asituação para exportar plantas produtivas obsoletas que, senão eram competitivas nos demais países desenvolvidos, erammuito competitivas nos periféricos, o que contribuiu paradiminuir os custos de uma inovação tecnológica extremamentenecessária para os Estados Unidos.

A entrada dessas transnacionais nos países periféricosmonopolizou rapidamente suas economias, o que, somado aofato delas terem cessado as vendas dos equipamentos e dasmatérias primas elaboradas que controlavam às industrias dospaíses onde pretendiam se estabelecer, contribuiu para limitar ocaminho de uma industrialização autônoma na periferia. Em umprimeiro momento, em muitos países, sobretudo nos latino-americanos, a resposta a essa ofensiva imperialista foi umapolítica de unidade entre setores da burguesia nacional e doproletariado (com apoio de parte da classe média),consubstanciada nos movimentos nacional-democráticos, quepassaram a tentar arrostar o capital internacional e seus aliadosinternos através do fortalecimento do capitalismo de Estado edo desenvolvimento de uma indústria de base nacional.Entretanto, com o tempo, boa parte da burguesia nacional dessespaíses acabou não resistindo às pressões impostas pelo grande

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capital internacional, o que abriu caminho à nova dependência17,que ampliou a quantidade de recursos internos que eramtransferidos aos países dominantes, cujas economias eram maisdinâmicas e não passavam por oscilações tão violentas.

A resistência dos movimentos nacional-democráticoslatino-americanos ocorreu paralelamente à libertação dos paísesasiáticos e africanos. Vendo suas perspectivas de viabilizarEstados nacionais minimamente autônomos minguarem, essespaíses passaram a adotar posturas cada vez maisantiimperialistas, prejudicando a influência dos EUA ebloqueando uma maior expansão de suas transnacionais.

As lutas de libertação nacional, com o conseqüentesurgimento de novos Estados soberanos, tiveram o significadode uma verdadeira revolução nas relações internacionais, o quefez essas transformações serem comparadas com a RevoluçãoFrancesa de 1789, com os novos países representando algoequivalente ao Terceiro Estado naquela Revolução; daí o termo“Terceiro Mundo”.

O desdobramento político dessa revolução se deu coma Conferência Afro-Asiática de Bandung, em 1955, quandolíderes como Gamal Abdel Nasser (Egito), Ahmed Sukarno(Indonésia), Jawaharlal Nehru (Índia), Chu En Lai (RepúblicaPopular da China) e Josip Broz Tito (Iugoslávia), representandoEstados soberanos relativamente fortes, se reuniram com líderesde outros vinte e quatro países recém libertados e de trintamovimentos de libertação nacional (como a Frente de Libertaçãoda Argélia, o Néo-Destour da Tunísia, o Istiglal de Marrocos,entre outros), para anunciar uma ampla aliança internacionalque tinha como objetivo fortalecer e apoiar as lutas pelaautodeterminação dos povos colonizados.

17 A nova dependência foi estudada em detalhes por autores como AndréGunder Frank, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos. Não vamosentrar em detalhe sobre este tema aqui, já que discutimos melhor adependência no próximo capítulo.

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Transcendendo o meramente político, essa revoluçãoinfluenciou profundamente as esferas econômicas e culturais, emum movimento que enterrou para sempre o velho colonialismo ea visão etnocêntrica que até então vigorava nas organizaçõesinternacionais. Mais tarde, na Conferência de Belgrado, em 1962,muitos dos Estados representados em Bandung formaram oMovimento dos Países Não-Alinhados, que criticava as políticasde guerra fria e sugeria uma espécie de “terceira via” como modelosócio-econômico para o Terceiro Mundo.

Tudo isso se somou à crescente perda de poder relativodos Estados Unidos para os outros países capitalistasdesenvolvidos, sobretudo Alemanha e Japão que, por teremtido seu aparato produtivo destruído durante a guerra, iniciaramuma recuperação econômica baseada na introdução detecnologias de ponta ao processo produtivo, em condiçõesque garantiram uma alta taxa de lucro, o que contrastou com asituação dos EUA, onde a inovação tecnológica era bem maiscara, já que o velho aparato produtivo estava intacto (seuterritório não foi atingido pela guerra), fato que, junto com osaltos custos de sua mão-de-obra e o fator cambial, com anecessidade estratégica de o dólar estar sempre valorizado, fezcom que os Estados Unidos perdessem competitividadeinternacional. Na prática, em um momento de forte crescimentoda economia mundial e de intensificação do comérciointernacional, isso significou uma enorme transferência detecnologia e recursos econômicos e financeiros dos EstadosUnidos para esses países desenvolvidos.

A necessidade de mercados cada vez maiores, em funçãodas grandes escalas de produção que as novas tecnologiasexigiam, fez com que a Europa iniciasse um amplo processo deintegração econômica, algo que também deveria evitar o aumentodo conflito entre as unidades nacionais européias, bem comogarantir as condições para uma maior competitividade frenteaos EUA. O primeiro passo nesse sentido foi dado em 1951,quando da criação da Comunidade Européia do Carvão e do

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Aço (CECA), composta por França, Alemanha Federal, Itália,Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos. Mais tarde, em 1957,quando o desdobramento da crise de Suez deixou claro aoseuropeus a vontade dos Estados Unidos de esvaziar os últimosresquícios de seu poderio e influência políticos internacionais,a integração ganhou um objetivo mais estratégico, com aformação da Comunidade Econômica Européia (CEE).

O processo de integração europeu também favoreceu astransnacionais estadunidenses que haviam se estabelecido novelho continente, ainda que com a recuperação da economiaeuropéia e a reorganização de suas empresas as filiais dascompanhias estrangeiras tivessem que se integrar melhor àeconomia local, necessitando diminuir seus custos para poderemcompetir com as empresas nacionais dos países onde haviamse instalado.

Uma vez recuperadas as economias desenvolvidas, asfiliais das grandes corporações estadunidenses nelas instaladasnão podiam mais se dar ao luxo de comprar máquinas eequipamentos ou produtos elaborados de suas casas matrizes,nem mesmo de transferir seus lucros ao país de origem (o quetambém não compensava, já que a taxa de lucro era maior naEuropa do que nos Estados Unidos), sob pena de sucumbiremà competição local. Além disso, as próprias empresastransnacionais desses países também começaram a se multiplicare fortalecer, tendência que também se manifestou no Japão.

Logo, percebe-se que o esquema que garantiu a novadivisão internacional do trabalho do imediato pós-guerra, frutoda integração monopolista mundial articulada em torno dopoderio econômico, político e militar dos Estados Unidos,começou a entrar em crise, o que levou a um contraditórioprocesso de relativa desintegração dentro mesmo do sistemamundial capitalista, coisa que muitas vezes foi escondido edisfarçado em função da existência e do fortalecimento de umcampo socialista.

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É uma lei do capitalismo que este se desenvolva sob aforma de uma aguda contradição entre suas tendênciaspara a integração, impostas pelo processo deconcentração, centralização e monopolização, e suastendências desintegradoras, impostas pela competição,anarquia da produção e contradições de classe. Estalei é uma expressão específica da contradição geralentre o caráter cada vez mais coletivo da produção,para atender à necessidade de maiores lucros, e aslimitações impostas ao processo produtivo pelo caráterprivado da apropriação, que é inerente ao capitalismocomo sistema.18

A política nacionalista empreendida pelo entãopresidente da França, o general Charles de Gaulle (1959-1969),foi uma expressão concreta dessa crise. Com ele a Françaquebrou a unidade da Aliança Atlântica, deixando a OTAN equestionando as políticas de guerra fria, optando por políticasexterna e econômica independentes, buscando o domínio denovas tecnologias e o desenvolvimento de novos armamentos,como o nuclear, bem como denunciando a inundação do “papelpintado” (dólar sem lastro) nos mercados de todo mundo.

Apesar disso, é preciso lembrar que antes dessastendências desintegradoras se manifestarem mais radicalmente,os estímulos tributários e fiscais praticados pela administraçãodemocrata nos anos 1960 acabaram impulsionando um fortecrescimento da economia dos Estados Unidos, fenômeno queficou conhecido como boom Kennedy-Johnson.

Por alguns anos, vários analistas e teóricos chegaram aacreditar na tese do capitalismo pós-cíclico, como se osinstrumentos de intervenção do Estado na economia pudessemimpedir a ocorrência de crises econômicas mais graves, o que

18 SANTOS, Theotônio dos, 1977, pp. 20-21.

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acabou gerando um otimismo exagerado dentro dos EUA, comas políticas de reformas sociais internas, como os programas decombate à pobreza e de construção de uma Great Society(Grande Sociedade), sendo combinadas com uma política externacada vez mais agressiva, com o aumento dos gastos militares ea maior participação nos conflitos do Vietnã.

A despeito do otimismo exagerado de alguns, ocrescimento econômico não poderia durar muito tempo,sobretudo depois da reconstrução da Europa e do Japão e doinício da crise da divisão internacional do trabalho que vigorouno imediato pós-guerra.

Foi no segundo semestre de 1966 e no primeiro de 1967que a economia estadunidense passou por um processo dedesaquecimento, com a ameaça de um início de crise econômica,no que Washington respondeu com um forte aumento dosgastos militares e com a escalada na Guerra do Vietnã. A equipedo presidente Johnson acreditava que, tal como ocorrera desdeo final da Segunda Guerra Mundial, o aumento dos gastosmilitares impediria uma estagnação ou depressão no nível daatividade econômica, sem levar em consideração as novascondições tecnológicas, políticas e econômicas nacionais einternacionais.

Como a indústria de guerra trabalhava com tecnologiascada vez mais sofisticadas, já que o Estado financiava os custosde criação e introdução de novas tecnologias nos setoresestratégicos, fazendo com que o intervalo entre invenção einovação desses setores fosse muito menor do que nos ligadosà produção com fins civis, os gastos militares diminuíram seusefeitos multiplicadores sobre o resto da economia, deprimindo,inclusive, a taxa de crescimento econômico.

A manutenção de um enorme aparato técnico e científicopara o desenvolvimento, a manutenção e o manuseio deequipamentos bélicos altamente sofisticados, bem como ogrande número de trabalhadores menos qualificados que

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operavam em fábricas que produziam esses materiais, sem falarna grande quantidade de soldados que trabalhavam em milharesde bases militares espalhadas por todo o planeta, junto commuitos outros profissionais das mais diversas áreas que estavamdireta ou indiretamente ligados a esse gigantesco complexoeconômico, gerava o processo conhecido como reproduçãonegativa ampliada19 – quando uma extraordinária quantidadede recursos humanos, materiais e naturais é utilizada paraatividades improdutivas, ou seja, que não servem para ampliaçãonem dos meios de produção nem da força de trabalho, causandouma crescente subprodução de valores que acelera fortementeas pressões inflacionárias.

Além disso, os analistas da Casa Branca pareciam terignorado o fato do esgotamento das reservas em ouro de partedos EUA ter tornado a guerra um instrumento ainda maislimitado para impedir a recessão, já que os gastos com asoperações militares no exterior pressionavam com muita força ajá frágil balança de pagamentos do país.20

A alternativa bélica para aceleração da economia foi umverdadeiro desastre, com a manutenção artificial do augeeconômico não podendo durar até o final de 1969, quando teveinicio um período recessivo (em pleno apogeu de uma economiade guerra!) que foi combinado com uma alta inflacionária,processo que depois ficaria conhecido como estagflação.

Com o início da recessão, ficou claro que o volume doexcedente econômico a ser distribuído entre os diversos setoresda sociedade diminuiria, o que levou, em um primeiro momento,a uma disputa entre as classes dominantes (conflitos

19 Ver: BUJARIN, Nicolai. Teoria económica del período de transición.Córdoba: Cuadernos de Pasado y Presente, 1972.20 Ver: SANTOS, Theotônio dos. La crisis Norteamericana y AméricaLatina. Buenos Aires: Periferia, 1972.

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A tentativa de “exportar”a crise e a “detente”

No que se refere ao plano político interno dos EstadosUnidos, o descontentamento dos liberais com o governo deLyndon Johnson e o assassinato de Robert Kennedy (que faziaoposição a Johnson dentro do Partido Democrata e eracandidato favorito nas eleições presidenciais de 1968) abriramcaminho para a vitória republicana de Richard Nixon, com esteprometendo “paz com honra” e uma “vietnamização” (ou seja,dar menos apoio ao Vietnã do Sul) do conflito na Indochina.

Nixon se deparou com uma situação econômicaextremamente complicada, tendo que adotar uma política queseria extremamente prejudicial aos aliados estadunidenses.

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interempresariais, interimperialistas, do grande capital nacionaldos países desenvolvidos com o grande capital transnacionaldos mesmos, do capitalismo de Estado dos países dependentescom o capital transnacional e etc.), o que abriu espaço para aascensão dos movimentos populares em todo mundo: nosEstados Unidos, o boom econômico, a Guerra do Vietnã e aposterior recessão acabaram por abrir as feridas das questõesraciais e sociais, com o desenvolvimento da campanha em proldos Direitos Civis, as manifestações estudantis e o surgimentode movimentos antiimperialistas e a favor de transformaçõessociais; na Europa, o maio de 1968 francês, o “verão quente”italiano e as “greves selvagens” demonstraram a insatisfaçãodas massas para com o sistema, algo que também ocorreu naAmérica Latina (com as grandes manifestações contra a ditadurabrasileira, o “cordobazo” argentino, a vitória da Unidade Popularchilena e uma série de outros fatos nos mais diversos países daregião) e em todas as outras regiões do planeta.

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(...) quando os Estados Unidos resolvem enfrentar oproblema de sua balança de pagamentos, não o fazemrestringindo seu consumo ou paralisando a inflaçãoque afeta a exportação de seus produtos e desvalorizao dólar. Para paralisar a inflação dentro dos marcosdo sistema, o governo teria que entrar em umenfrentamento muito forte com a classe operária nosentido de baixar seus salários, pois está é a únicaforma imediata do capitalismo de paralisar o aumentode preços sem baixar a taxa de lucro, o que provocariauma depressão. Portanto, a saída menos crítica é‘exportar’ sua crise.21

Por “exportação” da crise se entendia uma políticaeconômica que forçasse um aumento das exportaçõesestadunidenses e uma diminuição de suas importações, o quedeveria ser feito mediante a desvalorização do dólar e políticascomerciais externas protecionistas. Para desvalorizar o dólar,Nixon declarou o fim da paridade e da livre-conversibilidadeentre o dólar e o ouro (em 1971), o que prejudicou muito aAlemanha Ocidental, o Japão e todos os outros países quepossuíam grande quantidade de reservas financeiras em dólares.Como bem observou o economista Nilson Araújo de Souza, foio “maior calote de todos os tempos”.

Quem possuía dólar pelo mundo inteiro, além de ver-serepentinamente na contingência de não mais podertrocá-lo por ouro, passou a ter em mãos uma moeda demenor valor. Era uma apropriação indireta daeconomia norte-americana.22

Para Europa e Japão, a melhor alternativa de longo prazopara enfrentar essas atitudes dos Estados Unidos era criar ou

21 Tradução nossa da versão original em espanhol: SANTOS, Theotôniodos. Imperialismo y Dependencia. México: Ediciones Era, 1978. P. 199.22 SOUZA, 2001, p. 69.

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fortalecer processos de integração regional, aproveitando oaumento do poder financeiro de suas moedas nacionais parareorganizar suas economias e reestruturar o aparato produtivoque estava voltado às exportações, buscando novos mercadose diminuindo a dependência com relação aos EUA.

O grande desafio para os europeus era fortalecer aComunidade Econômica Européia (CEE) e desenvolvermecanismos que objetivassem unificar monetariamente a região,algo extremamente difícil em um período em que as incertezas sobreo funcionamento do sistema financeiro internacional garantiamcondições propicias para a especulação sobre as moedas.

Ao Japão coube iniciar um esquema próprio de integraçãoem bases informais, o que ficou conhecido como “modelo doganso voador” (flying goose model), que impulsionou, ao longode toda década, a industrialização dos quatro “Dragõesasiáticos” (Coréia do Sul, Cingapura, Hong Kong e Taiwan),também conhecidos como NICS (new industrialized countries),e dos quatro “Tigres asiáticos” (Tailândia, Malásia, Filipinas eIndonésia). Gao Xian explica como funcionava esse modelo:

O ‘modelo do ganso voador’ foi um modelo dedesenvolvimento internacional promovido edesenvolvido por economistas japoneses para explicaro padrão de desenvolvimento, a divisão do trabalho ea transferência de estrutura industrial na Ásia Oriental,modelo que foi largamente aceito pelas comunidadeseconômicas da Ásia Oriental e do mundo. Neste modelo,o Japão atuou como o ganso-chefe, que estava no topodo desenvolvimento econômico, financeiro etecnológico e que promoveu o crescimento econômicoregional através da transferência de capital, detecnologia e de indústrias; os ‘quatro DragõesAsiáticos’(Coréia do Sul, Cingapura, Hong Kong eTaiwan) eram as asas dos gansos, que recebiam atransferência de capital e tecnologia do Japão paradesenvolver suas indústrias e, em troca, transferiam

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parte de suas indústrias intensivas de trabalho para acauda do ganso, isto é, os ‘quatro TigresAsiáticos’(Tailândia, Malásia, Filipinas e Indonésia).23

Esses movimentos expressavam a luta entre os diversossetores dominantes nos países centrais. Mas é preciso destacarque, muitas vezes, o aparente confronto internacional entrepolíticas econômico-comerciais era manifestação de lutas entredois setores do grande capital de um mesmo país (algo queocorria principalmente com os estadunidenses): o transnacional,que defendia a adoção de políticas econômicas internacionaisliberais, para poder exportar e importar, bem como manejarmundialmente seu capital, sem maiores restrições de parte dosEstados; e o nacional, que, quando não podia concorrer com asempresas que produziam no exterior (que empregavam mão-de-obra mais barata, tinham mais incentivos fiscais e etc.), buscavaproteção em seu Estado, exigindo maiores restrições àsimportações e ao deslocamento internacional do capital.

Essas lutas acabaram por favorecer, no plano político,os partidos de esquerda, já que as elites dominantes estavamcada vez mais divididas24: na Europa, durante toda primeirametade da década de 1970, vários partidos ligados àInternacional Socialista chegaram ao poder sustentandoprojetos políticos mais progressistas do que os que oscaracterizaram anteriormente (quando foram influenciados etomaram parte nas políticas de guerra fria), o que se somou àcriação e ao fortalecimento de novas coalizões de esquerda,que envolviam comunistas, socialistas e social cristãos. EmPortugal, a Revolução dos Cravos derrubou o regime fascistacriado por Salazar e formou um governo baseado em uma suigeneris (pelo menos para os países europeus) coalizão entremilitares progressistas, comunistas, socialistas e outros setores

23 XIAN, Gao. A recentralização asiática e o papel da China. In: SANTOS,Theotônio dos (coord.). Globalização e Regionalização. Hegemonia eContra-Hegemonia (Vol. 3). São Paulo: Loyola, 2004. P. 313.24 Para mais detalhes ver: SANTOS, 1978.

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que apoiavam fortemente a democracia; nos Estados Unidosdespontaram, dentro do Partido Democrata, lideranças políticasliberais mais radicais que, apesar de conquistarem muito apoiode diversos setores da população, não conseguiram resultadoseleitorais mais satisfatórios; no Terceiro Mundo, os movimentosnacional-democráticos ganharam novo fôlego, com uma fortetendência à aproximação com as forças socialistas.

Durante esse período, a União Soviética soubeaproveitar a situação de crise e ampliar sua influênciainternacional, principalmente na Ásia, no Oriente Médio, naÁfrica e na América Latina. A recessão econômica fez com que,na necessidade de abrir novos mercados para a exportação,vários países se aproximassem do campo socialista, o que foitornando as antigas políticas de guerra fria contraproducentes.

Como resposta a todas essas mudanças no cenáriomundial, bem como à quebra do consenso bipartidário que existianos Estados Unidos em torno de sua política externa, osgovernos de Richard Nixon (1969-1974) e Gerald Ford (1974-1977), fortemente influenciados por Henry Kissinger, Secretáriode Estado durante boa parte desse período, reformularamconsideravelmente a política exterior estadunidense, em umatentativa de adaptá-la à nova correlação internacional de forças.

A estratégia para essa reformulação, de acordo com opróprio Kissinger, teve como base a realpolitik25, com os seusprincipais eixos de ação tornando-se26:

25 Termo alemão que se transformou em sinônimo de realismo político,ou seja, políticas baseadas nos interesses concretos dos atores envolvidos.No que concerne à política internacional, tal termo é utilizado para sereferir às políticas pragmáticas que estão baseadas apenas na perseguiçãode um suposto interesse nacional, sempre se levando em consideração obalanço de poder.26 Kissinger resumiu, no terceiro e último volume de suas memórias, suaexperiência como Secretário de Estado, em que descreveu, de maneirabastante detalhada, algumas de suas estratégias durante a formulação e,sobretudo, durante o manejo da política externa dos EUA. Ver: KISSINGER,Henry. Years of renewal. New York: Touchstone, 2000.

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O agravamento da crise ea estratégia da Trilateral

Depois da recessão de 1969-1971, e como conseqüênciada política econômica de Nixon, que tinha como objetivoestimular a economia dos EUA, sobretudo através da

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a) a política de distensão (détente) com relação aocampo socialista, com os objetivos de acalmar aoposição liberal interna, garantir as condições parauma “saída honrosa” do Vietnã, diminuir os gastosmilitares, abrir novos mercados para exportações e darsustentação ao triângulo Washington-Pequim-Moscou, em que os Estados Unidos utilizaram oconflito sino-soviético para se aproximar das duaspartes e ganhar mais poder de barganha com ambas,ao mesmo tempo em que tentava aprofundar a cisãodentro do bloco socialista;b) o reconhecimento das potências médias e a divisãodo mundo em esferas de influência, em uma tentativade racionalizar e administrar o processo dedesconcentração do poder internacional, semprebuscando reforçar a liderança de potências regionaisque eram fiéis aos Estados Unidos, o que permitiria aestes países maior liberdade de ação, enquantoWashington poderia manejar a política mundial a partirde alguns centros regionais localizados;c) a tentativa de dividir com os aliados desenvolvidosos custos de defesa do mundo capitalista, algoextremamente necessário na medida em que os déficitsfiscais e na balança de pagamentos inviabilizavam umaumento considerável dos gastos comequipamentos bélicos.

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desvalorização do dólar, houve um período de recuperação ecrescimento econômico que começou em 1971 nos EstadosUnidos e que, em função da ligação do mercado interno dessepaís com a economia mundial, também se manifestou na Europae no Japão, em 1972 e 1973. Este crescimento, baseado emestímulos artificiais, acabou gerando fortes pressõesinflacionárias, com o aumento da demanda de produtosagrícolas sendo combinado com a baixa das colheitas e ascompras dos países socialistas nos mercados capitalistas, oque abriu caminho para um período de depressão econômicacom alta generalizada de preços – estagflação.

A situação piorou ainda mais quando, no final de 1973,os Estados Unidos apoiaram Israel na Guerra de Yom Kippur, oque fez com que os países árabes embargassem a venda depetróleo para os EUA e a Europa Ocidental, ação que foi seguidapor um forte aumento no preço do petróleo, que necessitava tero preço corrigido em função das desvalorizações do dólar em1971 e 1973. Esse processo, articulado pela Organização dosPaíses Exportadores de Petróleo (OPEP), demonstrou para oTerceiro Mundo a importância e o potencial da cooperação Sul-Sul no sentido de criar associações de produtores e formaralianças estratégicas de caráter político e econômico.

A crise econômica mundial acabou aumentando o poderde negociação dos países periféricos, o que culminou nadeflagração de uma impressionante ofensiva do Sul: apoiadosem suas demandas pelos países socialistas, os paísesdependentes conseguiram obter o controle da Assembléia Geralda ONU, aprovar a Carta Internacional dos Direitos e DeveresEconômicos das Nações (1974 – o que iniciou um intenso debatesobre uma Nova Ordem Econômica Internacional), fortalecer asteses do Movimento dos Países Não-Alinhados, do G-77, daUNCTAD (United Nation Conference on Trade andDevelopment) e sustentar a proposta de uma nova ordeminternacional da informação e comunicação na UNESCO (UnitedNations Educational, Scientific and Cultural Organization),ameaçando, em todos os sentidos, o status quo internacional.

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Tudo isso aconteceu em meio a uma enorme crise delegitimidade dentro dos Estados Unidos, com o escândalo deWatergate (que resultou na renúncia de Nixon) e asinvestigações no Congresso sobre os assassinatos e as diversasoperações clandestinas que as agências de inteligência esegurança do país haviam realizado.

O fiasco no Vietnã, após o escândalo de Watergate e aconseqüente renúncia de Nixon, ocorreu, em meio dostrabalhos do comitê instituído no senado americanopelo senador Frank Church, sobre as atividades dosserviços de inteligência dos Estados Unidos (FBI, CIA,NSA e outras agências), revelando não apenas aparticipação da CIA no golpe contra o Governo deAllende, mas também nos assassinatos do general RenéSchneider, ministro da guerra do Chile, PatriceLumumba (Congo), Ngo Dinh Diem (Vietnã do Sul),Leônidas Trujillo (República Dominicana), astentativas de matar Fidel Castro e os atos de terrorismocontra Cuba.27

Para responder a esses acontecimentos, diversos setoresdominantes dos Estados Unidos buscaram articular um novoprojeto político que visasse melhor administrar o deslocamentoe a desconcentração do poder mundial. Sua principalpreocupação era a tendência à criação de uma aliança concretaentre os países socialistas e o Terceiro Mundo, o que de algumaforma se manifestava, sobretudo, na atuação do Movimentodos Países Não-Alinhados. Foi para desenvolver esse projetoque foi criada a Comissão Trilateral28, com o objetivo de reunir

27 BANDEIRA, op. cit., p 350.28 A Comissão Trilateral é uma organização privada que foi criada em1973 por iniciativa do influente financista estadunidense DavidRockefeller, que achava essencial juntar lideranças japonesas nas reuniõesdo círculo Bilderberg (que reunia lideranças estadunidenses e européias).Desde o inicio, o objetivo da Comissão Trilateral era tentar prepararlideranças políticas que pudessem gerir a crise global do capitalismo etentar harmonizar os conflitos interimperialistas e intercapitalistas emgeral. Para mais detalhes, ver: ASSMANN, Hugo (ed.). A Trilateral: novafase do capitalismo mundial. Petrópolis: Vozes, 1979.

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importantes personalidades da política, dos negócios, dasfinanças e da academia dos Estados Unidos, da Europa Ocidentale do Japão para discutir e delinear estratégias em que a tríadedos países capitalistas desenvolvidos pudesse atuarconjuntamente nas relações internacionais.

O ambicioso projeto da Trilateral teve no governo deJimmy Carter (1977-1981) sua principal expressão. Carter era ohomem indicado para, em meio ao clima de desconfiança geralda população no que se refere à política, vencer as eleições comum discurso liberal e reformista formulado pelos ideólogos daTrilateral.

Os trilateralistas (entre eles Carter), conscientes daprofunda necessidade de administração da crise quedebilita o capitalismo, adotam uma linguagem quepostula revisões profundas. Em certos momentos, essalinguagem é não só ousadamente crítica como tambémapresenta deslegitimações fugazes do sistema visandoconstruir uma ideologia plausível que legitime oreordenamento do mesmo.29

O Grupo dos Sete, formado por Estados Unidos, Canadá,Reino Unido, Alemanha Ocidental, França, Itália e Japão, tornou-se um importante centro de decisões do sistema mundialcapitalista, tendo como desafio garantir as condições para asuperação da estagflação e impedir o deslocamento do poderpara as regiões periféricas.

A defesa dos direitos humanos foi um dos principaiseixos de sustentação da política externa de Carter. Com umaaparência humanitária, o propósito real dessa política era atingira URSS e os países do Terceiro Mundo que estavamaprofundando as políticas de desenvolvimento nacionalautônomo. Em alguns desses países, vigoravam então regimes

29 ASSMANN (ed.), 1979, p. 8.

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ditatoriais que antes foram impulsionados pelo governo dosEUA, mas que, diante da crise econômica mundial, optaram porevitar a adoção das políticas de “ajuste estrutural” e começarama implementar programas econômicos independentes, além departiciparem do movimento que impulsionou a ofensiva do Sul.30

A partir de 1976, com a baixa do preço do petróleo e coma grande liquidez internacional que a reciclagem dos petrodólarespropiciou, teve inicio um novo período de crescimentoeconômico baseado em grandes projetos que deveriam serfinanciados a médio e longo prazo. Tais projetos teriam queintegrar novas tecnologias e criar a infra-estrutura necessáriapara um novo ciclo de desenvolvimento global, algo que sópoderia ocorrer mediante a adoção de profundas reformas quevisassem abrir caminho para uma nova divisão internacional dotrabalho, para novas formas de socialização da propriedadeprivada, através da centralização do capital e do aumento daintervenção do Estado na economia, e para uma nova políticade ciência e tecnologia, que deveria diminuir o papel do setormilitar, impedindo a aceleração do processo de reproduçãonegativa ampliada.

As reformas necessárias para abertura de um novo ciclode desenvolvimento mundial poderiam prejudicar poderososinteresses dentro e fora dos Estados Unidos, o que dificultavamuito sua implementação. Como bem observou Hugo Assmann,o governo Carter ficou marcado pela confrontação entre essesinteresses.

(...) a Comissão Trilateral, sobretudo em sua primeirafase, concentrou seu esforço em agrupar, antes de tudo,

30 Foi o caso, por exemplo, do governo Geisel no Brasil (1974=79): alémde implementar o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND),participou das articulações para criar a Associação Latino-Americana deIntegração (ALADI) e, através da política do chamado PragmatismoResponsável, realizou a aproximação em relação aos demais países doTerceiro Mundo.

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as forças daquelas corporações transnacionais cujapreocupação primeira era a harmonia intracapitalistana sua amplitude global. A gestão internacional dacrise conduz estas forças a uma redefinição profundados conceitos de segurança, estabilidade, ordem edemocracia. Dito de maneira brutal, sua baseconstitutiva na busca de um controle mundial já não sereduz tanto aos governos nacionais quanto àscorporações transnacionais. Esta ótica estratégicadesloca o acento para os interesses transnacionais doimperialismo (controle de energia, alimentação) como objetivo de manter um projeto acumulativo intenso.É natural que semelhante perspectiva se choque comalguns interesses ‘nacionais’ (capitalistas internos,aparelhos de informação) e, muito especialmente, comas velhas alianças do Pentágono (produtores dearmamentos) e todo o tradicional ‘complexo industrialmilitar’.31

Além dos problemas no que se refere ao confronto comos setores do complexo industrial militar, que sairiamprejudicados com a reconversão de boa parte do aparatocientífico e tecnológico para o desenvolvimento de projetosque não tivessem vínculos com as estratégias do Pentágono (oque também exigiria um aprofundamento da política de distensãocom o campo socialista), havia a questão da necessidade dereorientar e ampliar as políticas sociais do Estado, já que aintrodução em massa de novas e revolucionárias tecnologiasao processo produtivo diminuiria a necessidade de empregartanta mão-de-obra, o que obrigaria os então poderosossindicatos a pressionarem as empresas e o governo no sentidode diminuir a jornada de trabalho, ampliar os recursos destinadosà proteção social e reeducar os trabalhadores para novas

31 ASSMANN, 1979, pp. 35-36.

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funções, o que aumentaria os custos das inovações e exigiriaum maior planejamento econômico e social, algo que poderia sedesdobrar, em certos momentos, em intervenções estatais queexcedessem a função de garantir a reprodução ampliada docapital, o que impulsionaria e favoreceria as forças sociaiscomprometidas com uma transformação mais profunda dasociedade.

As dificuldades na implementação desse projetoaumentaram ainda mais quando se aprofundaram as turbulênciasinternacionais e se esgotaram os petrodólares, o que, somadoao posterior aumento das taxas de juros internacionais e dopreço do petróleo, deflagrou um novo período depressivo queteve início em 1979, o que contribuiu para fortalecer os gruposmais conservadores nos EUA e para fazer com que o governoCarter e a Trilateral mudassem suas estratégias.

No plano econômico, diante das dificuldades deestabelecer e reestruturar os regimes internacionais que deveriamservir de apoio ao projeto inicial da Trilateral, e em função daanarquia mundial e das desestabilizações que tais dificuldadespromoviam, o governo Carter decidiu que os EUA deveriamretomar a direção da economia mundial capitalista, no que foifundamental a política de aumento dos juros do Fed durante agestão de Paul Vocker, que permitiu a retomada do controle daspolíticas monetária e cambial internacional por parte dos EUA,abrindo o caminho para uma contra-ofensiva conservadora quealcançaria o seu auge na década de 1980. Assim, ao fim do governoCarter, o Fed inauguraria uma política que se institucionalizariano governo seguinte, de Ronald Reagan.

No plano político, o intrincado processo que combinourevoluções socialistas, intervenções estadunidenses eascensão de forças fundamentalistas islâmicas (cuja principalexpressão foi a criação da República Islâmica do Irã, lideradapelo aiatolá Ruhollah Khomeini) na região estratégica que ficouconhecida como arc of crisis, que ia do subcontinente indiano

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- ou se aprofundavam as reformas sociais que deveriamcombinar a introdução de novas tecnologias no processoprodutivo com a diminuição da jornada de trabalho e aampliação do Estado de Bem-Estar Social, o que abririacaminho para um novo ciclode desenvolvimento quepoderia impulsionar transformações qualitativas nasformações econômico-sociais mundiais – projetodefendido por forças políticas que se organizavam emalguns partidos social-democratas, socialistas ecomunistas;

- ou se buscava enfraquecer e destruir as instituiçõesque garantiam a proteção dos trabalhadores (sindicatos,Estado de Bem-Estar etc.), com o objetivo de aumentar ograu de exploração da força de trabalho e permitir aelevação da taxa de lucro, o que deveria abrir caminhopara um modelo de crescimento econômicoprofundamente desigual, com a introdução das novastecnologias sendo combinadas com a superexploração

Reaganomics ou a economia política doterror: neoliberalismo e Warfare State

A crise econômica mundial aumentou a polarização entre,de um lado, as forças revolucionárias e progressistas e, de outro,as forças conservadoras e reacionárias, o que fez com que, nofinal da década de 1970 e início da de 1980, fossem abertas duasalternativas básicas para a superação da crise:

até a África Oriental, cujo centro principal era o Oriente Médio,contribuiu para aumentar a tensão entre os Estados Unidos e aUnião Soviética e desencadear o que posteriormente se chamoude Segunda Guerra Fria.

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da força de trabalho (que com a abertura econômicapoderia ser importada dos países dependentes para osdominantes); esse caminho permitiria também o aumentodo excedente econômico e sua conseqüente distribuiçãono sentido de garantir a manutenção de elevados saláriosem alguns setores daeconomia, sobretudo naquelesimprodutivos ou indiretamente produtivos, que estariamligados aos serviços necessários para organização deum sistema desequilibrado (profissionais ligados aomarketing, à bolsa de valores e outros serviçosfinanceiros, ao complexo industrial militar, aos serviçosde luxo e etc.), o que deveria impedir fortes crises derealização e impulsionar o consumo e a produção debens de luxo, criando grande instabilidade econômico-social – projeto defendido pelas forças políticasconservadoras e reacionárias que se organizavame mtorno de alguns partidos democrata-cristãos,conservadores, republicanos e outros que passaram adefender o projeto que ficou conhecido como neoliberal.

Nos países desenvolvidos, a primeira alternativa semanifestou, sobretudo, nos primeiros anos do governosocialista francês de François Mitterrand, enquanto a segundaalternativa se manifestou de maneira mais clara nos governosde Margareth Thatcher, na Inglaterra, Ronald Reagan, nosEstados Unidos, e Helmut Kohl, na Alemanha Federal.

É preciso dizer que os Estados Unidos de Ronald Reaganforam, pelo papel que esse país desempenhava na economiamundial, o centro a partir do qual se expandiu o projetoneoliberal32. Os principais objetivos do governo Reagan eram:

32 Conforme se verá mais adiante, os únicos aspectos do programa neoliberalpraticados no interior dos EUA foram as políticas de juros elevados e dequebra dos direitos trabalhistas. O Estado na diminuiu seu papel na economia:apenas substituiu gastos sociais por gastos militares e financeiros. Aomesmo tempo, não houve redução do protecionismo: medidas tarifáriasforam substituídas por medidas não-tarifárias.

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a) enfraquecer, utilizando-se de todos os meiosnecessários, a União das Repúblicas SocialistasSoviéticas, que Reagan e seus partidários acreditavamser o centro a partir do qual a maior parte dos males domundo surgiam;

b) promover um programa para recuperação econômica,que consistia em conseguir a estabilização, a queda dainflação e garantir as condições para um forte crescimentoda economia;

c) impulsionar uma nova divisão internacional dotrabalho, na qual os Estados Unidos se especializariamna ciência pura e nas tecnologias emergentes (laser, fusãonuclear, engenharia genética, inteligência artificial,supercondutividade, espacial e etc.), que deveriam serestimuladas a partir de enormes gastos em P & D e peloseu planejamento centralizado no Pentágono, o queexigia uma abertura econômica dos outros setores paraas economias mais competitivas, com a conseqüentequebra dos setores menos eficientes e dos que nãoconseguiam garantir a proteção do Estado.33

Para garantir as condições para o crescimento econômicoque advogava, Reagan diminuiu enormemente os impostossobre as rendas mais altas e cortou muito dos gastos sociais doEstado, o que foi combinado com um aumento colossal dosgastos militares baseados na mais alta tecnologia, justificadospelo clima da Segunda Guerra Fria. Isso aumentou ainda mais odéficit fiscal dos Estados Unidos, o que se manifestou, emfunção da enorme quantidade de recursos aplicados nos setoresimprodutivos e indiretamente produtivos ligados ao Pentágono

33 No que diz respeito à nova divisão internacional do trabalho ver:SANTOS, Theotônio dos. Do Terror à Esperança. Auge e declínio doneoliberalismo. Aparecida: Idéias & Letras, 2004.

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e suas economias externas, em uma elevação da renda da mão-de-obra altamente qualificada que tal expansão exigia, com seusefeitos secundários aquecendo a demanda externa de certosprodutos e serviços, o que agravou ainda mais o déficit nabalança comercial do país, responsável pelo crescimento dossetores exportadores europeus e japoneses.

Tal política só foi possível mediante um enorme aumentoda taxa de juros dos EUA, que garantiu a atração dos dólaresacumulados pelos superávits comerciais dos demais países domundo e a temporária cobertura de suas crescentes dívidasfiscais (internas) e comerciais (externa), o que deu origem aosingular efeito que combinou o aumento do déficit público ecomercial com a escassez mundial de dólares, com a conseqüentevalorização dessa moeda tendo sido vinculada à enormeprofusão de quase-moedas que inflaram as operaçõesespeculativas dentro de um sistema financeiro internacionalmarcado pelas desregulamentações.

Estávamos, assim, diante de um aparente contra-senso:um governo anti-socialista aumentava drasticamenteo planejamento centralizado da economia, embutidodentro dos gastos militares. Ao mesmo tempo umgoverno ultra-liberal, para sustentar essa política,gerava o maior déficit do Tesouro, jamais imaginadopelos mais audazes neokeynesianos. Nunca ahumanidade viveu uma contradição tão brutal (eevidente!) entre a retórica e a realidade.34

A multiplicação das quase moedas no sistema financeirointernacional, impulsionada pelo gigantesco esquema deendividamento mundial (devemos lembrar que o aumento dataxa de juros estadunidense fez explodir a dívida externa dospaíses do Terceiro Mundo, sobretudo da América Latina, quehaviam tomado empréstimos a juros pós-fixados), gerou enormepressão para que todos os países efetuassem a

34 SANTOS, op. cit., p. 170.

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desregulamentação de seus sistemas financeiros e aumentassemsuas taxas de juros, sob a pena de sofrerem enormes fugas decapitais e ataques especulativos que poderiam desorganizarqualquer economia capitalista.

Essa pressão pesou, sobretudo, naqueles governos quepretendiam adotar um caminho contrário ao neoliberal, como ode Mitterrand, que viu a política de seus vizinhos europeuspressionarem cada vez mais seu programa popular inicial, que apartir de então só poderia ser implementado a partir da tomadade posições mais radicais. Provavelmente por receio a umpossível isolamento dentro de um sistema mundial capitalistadominado pela ideologia neoliberal, o que poderia comprometero projeto de integração da Europa Ocidental, Mitterrand recuoue passou a adotar um programa cada vez mais próximo do quepregavam os neoliberais, com as políticas monetárias restritivase o corte nos benefícios sociais, seguindo uma tendência que jávinha se manifestando dentro de alguns partidos social-democratas e socialistas.

Em todos os países, mesmo nos governados pelospartidos socialistas, como Espanha, França, Itália,Grécia e Portugal, o mundo do trabalho e dossindicatos foi derrotado, no início dos anos oitenta,perdendo direitos, empregos e salários. Uma derrotaque atingiu tamanhas proporções com o avanço dadécada que vários autores chegaram a falar de uma‘verdadeira era de vingança do capital contra otrabalho’. Até os anos noventa, o movimento sindicalpraticamente desapareceu do cenário político europeue norte-americano colocado na defensiva pela forçadas novas legislações conservadoras e pelo medo dodesemprego produzido pelas políticas deflacionistas.35

35 FIORI, José Luís. Globalização, hegemonia e império. In: TAVARES,Maria da Conceição; FIORI, José Luís (orgs.). Poder e dinheiro: umaeconomia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 117.

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É importante lembrar que as políticas neoliberais, adespeito dos princípios teóricos e filosóficos nos quais estavamapoiadas, bem como da retórica de quem as implementava, nãodiminuiu a participação do Estado na economia dos paísescentrais36; pelo contrário, a aumentou, na medida em que osjuros altos pesaram sobre dívidas públicas consideráveis,gerando um efeito cumulativo extremamente perverso, com osrecursos antes destinados aos gastos sociais sendo transferidospara o pagamento de dívidas públicas artificialmente infladas.

Entre os 7 grandes países [Estados Unidos, ReinoUnido, Japão, Alemanha, França, Itália e Canadá], aparticipação da dívida pública bruta no PIB aumentade uma média de 36,8% em 1973 para 43,2% em 1980,55,5% em 1985, 59,5% em 1990 e 67,3% em 1994. Emaparente paradoxo, este foi o período sob hegemoniaconservadora. Foram os anos de triunfo do pensamentoneoliberal quando se cortaram drasticamente os gastossociais na maior parte desses países. Nesse período seimpôs o ‘princípio’ tão ‘sábio’ de Milton Friedman deque não há almoço sem que alguém o pague. Parece,contudo, que nesse período houve mais pagamento emenos almoço!37

36 No caso dos países periféricos, ao mesmo tempo em que se alienava opatrimônio público, afastando o Estado da atividade econômica produtiva,aumentava o peso do gasto público em decorrência do forte crescimentodos encargos financeiros.37 SANTOS, 2004, p. 104.

Faltava sustentabilidadeà recuperação estadunidense

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Com o tempo, ficou claro que esse esquema que garantiua recuperação da economia mundial era insustentável, já que,mantendo tais políticas, os EUA nunca teriam capacidade depagar suas crescentes dívidas. Essa percepção rapidamente

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Nesse clima, o grande capital busca uma saída em seufavor. Propõe e impõe (em nome do livre mercado!) queos Estados nacionais se desfaçam de seus patrimôniospara pagar suas dívidas, dando substância, assim, aparte dos enormes excedentes especulativos sobrantesem nível mundial. Dessa forma papéis inúteis e semvalor passam a receber o respaldo de bens públicosque se convertem em patrimônio dos especuladoresfinanceiros.

Esse é claramente o princípio que orienta as chamadas‘conversões’ da dívida externa. Através delas os papéisdesvalorizados dos bancos, que são pretensos valoresde dívidas, se convertem em empresas e bens retiradosdo setor público em geral. Seria uma forma ideal parao capital financeiro evitar a quebra geral dos bancos eempresas privadas, substituindo-a pela quebra dosEstados. Muito mais difícil, contudo, é obrigar oscontribuintes a aceitarem a idéia de sustentar asempresas e os bancos em quebra indefinidamente.Mesmo porque a cada ano aumentava o volume dessasquebras e diminuía a possibilidade de o Estadofinanciá-las.38

influenciou os mercados financeiros, o que culminou, emoutubro de 1987, numa crise que conduziu à desvalorização dodólar e dos demais ativos que foram artificialmente inflados.Para evitar a recessão, bem como a quebra de poderososconglomerados financeiros, os Estados dos principais centrosdesenvolvidos intervieram no sentido de impedir uma quedamais brusca do dólar e desvalorizações muito violentas de ativossem nenhum respaldo na realidade, o que em parte foi feitomediante o aprofundamento das políticas de privatizações.

38 SANTOS, idem, pp. 175-176.

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Paralelamente a isso, a aceleração na década de 1980 dasreformas mercantis iniciadas na segunda metade dos anos de1950 na União Soviética39 fez explodir uma intensa crise queresultou na exacerbação dos nacionalismos e em grandeconfusão ideológica em todo bloco socialista europeu, o queabriu caminho para uma desintegração que se desdobrou nareconversão de suas economias para o capitalismo, o que foiacelerado pela sua rápida integração subordinada no sistemamundial capitalista.

Paradoxalmente, a queda da URSS contribuiu paraimpulsionar o processo de desintegração característico docapitalismo, já que tornou a liderança ideológica estadunidense,um dos principais fatores de legitimação do papel dos EstadosUnidos como articulador central do sistema mundial capitalista,algo desnecessário, aumentando o grau de autonomia e a margemde manobra das outras potências econômicas na políticainternacional.

Com isso, ao retornarmos aos fatores que sustentaram ahegemonia dos EUA no pós-guerra, notamos que só restaram opoderio militar e uma precária hegemonia do dólar (não maisinstitucionalizada), fatores que se sustentam mutuamente e sãobaseados em condições que não podem durar muito tempo.Vale citar, nesse sentido, a observação de André Gunder Frank:

Qual é a base e a certeza da posição e do poder dosEstados Unidos no mundo? Os dois pilares são aresposta: o do Dólar e o do Pentágono. O dólar é otigre de papel – literalmente isso, e muito mais do quequando Mao empregou este termo para os EstadosUnidos. A força e a mobilidade do Pentágono édependente do dólar que, em troca, o sustenta. Mas as

39 Ver CAMPOS, Cláudio. A História continua. São Paulo: GráficasBrasileiras, 1992.

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duas torres de sustentação dos Estados Unidos sãotambém seus dois calcanhares de Aquiles. Por causadelas, tal como ocorreu com as torres gêmeas do WorldTrade Center em Nova Iorque – todo edifício norte-americano pode ruir em pedaços numa manhã – nãopelo terrorismo, mas pelas operações do mercadofinanceiro na economia mundial e pelas políticasimprudentes do próprio governo dos Estados Unidos.40

E explica:

(...) custa dólares manter o Pentágono, suas bases em80 países e o desdobramento de suas forças militaresem volta do mundo. Os gastos militares são as causasprincipais dos dois déficits norte-americanos: noorçamento federal e na balança comercial.Inversamente, a força do Pentágono ajuda a sustentara confiança global no dólar.

Mas esta mesma confiança recíproca na força, por estamesma razão, constitui também os dois mutuamenterelacionados calcanhares-de-aquiles dos EstadosUnidos. O dólar é literalmente um tigre de papel, namedida em que é cunhado no papel, cujo valor estábaseado somente na sua aceitação e na confiança quese tem nele em todo mundo. Esta confiança podedeclinar ou ser totalmente retirada de um dia para ooutro, e levar o dólar a perder a metade ou mais dametade do seu valor. Sem considerar o corte no consumoe no investimento norte-americanos, assim como ariqueza denominada dólar, qualquer declínio no valordessa moeda comprometeria também a capacidade dos

40 FRANK, André Gunder. Tigre de papel, dragão de fogo. In: SANTOS,Theotônio dos (coordenador). Os Impasses da Globalização. Hegemoniae Contra-Hegemonia (Vol. I). São Paulo: Loyola, 2003. P. 25.

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Estados Unidos de manter e aumentar o seu aparelhomilitar. Inversamente, qualquer desastre militarenfraqueceria a confiança global no valor do dólar.41

Logo, percebe-se que os fatores que ainda permitem osEstados Unidos manterem sua posição de centro nacional apartir do qual se organiza uma precária integração monopolistamundial são os mesmos que possibilitaram a instável e artificialrecuperação econômica baseada no projeto neoliberal, já queforam os enormes gastos com equipamentos bélicos de altatecnologia que agigantaram os déficits do Tesouroestadunidense, processo a partir do qual se aqueceu a demandainternacional e se gerou um auge especulativo alimentado poraltos juros pagos pelos títulos da dívida pública que deveriamcobrir os déficits do Tesouro e comerciais. Isso combinou oaumento dos gastos do Estado com a diminuição dos benefíciossociais e o enxugamento monetário, expressão da transferênciaregressiva de renda possibilitada pela destruição dasorganizações de defesa dos interesses dos trabalhadores e daconseqüente superexploração da força de trabalho.

A impossibilidade dos Estados Nacionais sustentarempor muito mais tempo a supervalorização artificial dos ativosfinanceiros, o que se tornou muito custoso a partir da crisedeflagrada em outubro de 1987, acabou se manifestando a partirde 1990, quando sua desvalorização (do dólar, das taxas dejuros, dos preços dos imóveis e etc.) abriu caminho para umperíodo recessivo na economia mundial.

Apesar dos limites do poderio de seu país, expressos naimpossibilidade de manter o crescimento econômicodesequilibrado da década de 1980, o governo de George Bush(pai) aproveitou o clima ideológico desencadeado com a quedado Muro de Berlim e a posterior dissolução da URSS para

41 Idem, p. 26.

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anunciar o nascimento do que ele chamou de Nova OrdemMundial, que deveria legitimar a hegemonia dos EUA numsistema internacional reestruturado. Nessa estratégia, erafundamental manter ou mesmo ampliar os já elevados gastosmilitares. Para justificar isso, os ideólogos do governo Bushalegaram que a democracia liberal teria que se defrontar comnovos inimigos: traficantes internacionais de drogas, gruposmafiosos transnacionais, terroristas irracionais e supostosgovernos despóticos e irresponsáveis dos países periféricos(tidos muitas vezes como patrocinadores das atividades acimacitadas) seriam as novas ameaças.

O primeiro grande acontecimento dessa Nova Ordem foia Guerra do Golfo, com os ataques “cirúrgicos” dos “mísseisinteligentes” estadunidenses sendo lançados com a coberturaao vivo da CNN. Tudo isso causava a impressão de que todosdeveriam se dobrar frente à liderança do que acreditavam ser aúnica superpotência mundial.

A reação européia a essa nova ofensiva dos EUA foi oaprofundamento da integração entre os países da região. Já em1987 foi instituído o Ato Único Europeu, base para criação, em1992, do Mercado Único Europeu. Com a assinatura do Tratadode Maastricht, no início de 1992, o projeto europeu começou aganhar contornos mais concretos, o que foi somado à unificaçãoalemã e à possibilidade de uma maior aproximação entre os paísesdo Leste Europeu e da Rússia com a Europa Ocidental.

Os principais objetivos do Tratado de Maastricht eram:criar uma união monetária e econômica entre os países membrosdo bloco; definir objetivos para elaboração de políticas externae de defesa comuns; visar à cooperação em assuntos jurídicose a criação de uma cidadania européia.

É importante destacar, dentro desses objetivos citados,o papel estratégico da criação de uma moeda comum para ospaíses membros do bloco, algo que poderia se configurar, nolongo prazo, como uma alternativa ao dólar como moeda de

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reserva mundial. A própria desvalorização do dólar, com oconseqüente aumento do poder financeiro das outras moedas,acabou contribuindo para que o Bundesbank tivesse lastro paraorganizar a reunificação alemã e (ainda que com maioresdificuldades) lançar o projeto da unidade monetária européiacom base na hegemonia de sua moeda nacional.

A recessão de 1990-94 permitiu a desvalorização dos ativosfinanceiros e do capital fixo instalado, o que abriu caminho paraum novo período de inversões produtivas e crescimentoeconômico dos EUA, processo que igualmente se beneficiou doforte aumento das exportações proporcionadas pela abertura dasdemais economias, sobretudo da América Latina.

Esse processo contou com o firme apoio do novopresidente dos Estados Unidos, o democrata Bill Clinton.Contrário a um grande aumento dos gastos militares e a favorda elevação dos gastos sociais, Clinton baixou a taxa de juros ebuscou acabar com os déficits fiscais, o que enfureceu os setoresmais conservadores da sociedade estadunidense, que oacusavam de desmantelar o sistema de defesa que o presidenteReagan havia criado.

Na Europa, os critérios para participar da criação damoeda única da região (déficit público abaixo de 3%, dívidapública menor do que 60% do PIB, inflação de no máximo 1,5ponto percentual superior ao país com menor índice de inflaçãoe taxa de juros de longo prazo que não pudesse ser 2 pontospercentuais superiores à média dos três países com a menortaxa) obrigaram os governos a diminuírem o sistema financeirodemasiadamente inflado (o que foi feito, sobretudo, baixando ataxa de juros), o que disponibilizou recursos para novosinvestimentos que também garantiriam a retomada docrescimento econômico (embora mais tímido do que o dos EUA).

Os desdobramentos desse processo acabaram servindode oxigênio para vários partidos trabalhistas, social-democratasou socialistas que haviam ficado fora do poder durante a década

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de 1980, lançando-os como possível alternativa ao ideárioconservador hegemônico e como a melhor opção paraadministrar e evitar retrocessos no período de crescimentoeconômico que todos passaram a vislumbrar, culminando noque muitos chamaram de onda rosa (com a ascensão de Blair,Schroder, D´Alema e Jospin), limitada pelo caráter “social-liberal”da maioria desses governos, com as políticas neoliberais sendocombinadas com uma retórica menos conservadora e comalgumas compensações sociais, o que foi consubstanciado noprojeto da Terceira Via.

Apesar desses estímulos para a deflagração de um novociclo de desenvolvimento, é preciso destacar que tambémexistiam fatores limitadores que impediram a desinflação totaldo sistema financeiro internacional e a superação do projetoneoliberal, algo que estava vinculado aos profundosdesequilíbrios da economia mundial. A inexistência de uma moedainternacional alternativa (o sistema monetário europeu aindaestava em processo de unificação), o acúmulo de reservas emdólares pelas maiores potências econômicas capitalistas e aimportância do déficit comercial dos Estados Unidos comoestímulo para o aumento da demanda mundial criaram uma fortetendência à baixa desvalorização do dólar, o que impediureestruturações mais radicais no sistema mundial, situaçãoinsustentável que contribuiu para gerar ciclos constantes esucessivos de correções graduais que diminuem aos poucos opoder relativo dos estadunidenses nas relações internacionais– com a lenta superação daquela tendência ocorrendo devido àperda de confiança no dólar gerada pela eterna necessidade decorreções parciais e limitadas que apenas adiam a soluçãodefinitiva do problema.

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Bush (filho) tenta impor “nova ordemmundial” através das armas

A idéia de que os Estados Unidos poderiam perder poderno sistema internacional aterrorizava boa parte da direita daquelepaís, que identificava os setores mais liberais do PartidoDemocrata como fracos demais para conduzirem o país à posiçãode única superpotência mundial, perigoso delírio completamentedeslocado da realidade histórica, em que os EUA necessitamdo respaldo financeiro dos demais centros de poder para garantira manutenção de seus aparatos militar, científico-tecnológico eseu elevado padrão de consumo interno.

Essa idéia neo-hegemonista da direita radical, apoiadapor empresas ligadas à especulação financeira e ao complexoindustrial militar, bem como por funcionários públicos de altoescalão do Pentágono e dos serviços de inteligência, ganhoucada vez mais terreno e contribuiu para pressionar fortemente ogoverno Clinton no sentido de endurecer sua política externa ealterar o curso da política econômica, a ponto de a primeira-dama ter denunciado, em um programa de televisão em janeirode 1998, a existência de uma vast right-wing conspiracy contraseu marido. Coincidência ou não, pouco antes de seu julgamentode impeachment (em função de suas declarações falsas sobre orelacionamento sexual que manteve com uma das estagiárias daCasa Branca) na House of Representative, em dezembro de 1998,Clinton aprovou a Operation Desert Fox (com o bombardeioaéreo sobre vários alvos no Iraque), e, no dia seguinte a suaabsolvição no mesmo julgamento pelo Senado, convocou oslíderes do Congresso para discutir a possível intervenção militarem Kosovo, o que se concretizou em março de 1999 com osbombardeios à Iuguslávia.

A extrema-direita estadunidense, que se instalou nopoder em Washington junto com o presidente George W. Bush(filho) – através de manobras ilegais que tiveram início com a

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manipulação das eleições em Miami e culminaram na atitudeirresponsável de uma Suprema Corte majoritariamenteconservadora -, já vinha se fortalecendo e articulando umprograma próprio desde o governo do velho Bush (pai), quandonão se conformou com a atitude do então presidente de nãoavançar até o Iraque e derrubar Saddam Husseim na Guerra doGolfo. Seus partidários, com destaque para Dick Cheney e PaulWolfowitz, elaboraram (1992) o Defense Planning Guindance(DPG), uma proposta para a reestruturação da política de defesados Estados Unidos que o pai do atual presidente se recusou aimplementar. Embrião da Doutrina de Segurança Nacional dopresidente Bush filho, o DPG apontava como o principal objetivodos EUA a prevenção da emergência de qualquer potência quepudesse rivalizar com seu poderio, bem como sinalizava com autilização de princípios como o de antecipação de ataques combase na presunção do que o inimigo poderia fazer (nada podeser mais subjetivo!), os chamados ataques preventivos(preemptive attacks), idéias que foram trabalhadasposteriormente em alguns think tanks ultra-conservadores(American Enterprise Institute, Hudson Institute e outros) e quese transformaram no Project For The New American Century,referência fundamental para os elementos que se encontramdirigindo o país mais poderoso do mundo neste momento.

Após um difícil início de governo marcado pela falta delegitimidade e pelo total desdém às instituições multilaterais etemas centrais para o bem-estar de todos os povos e nações –como o meio-ambiente e os direitos humanos –, W. Bush sebeneficiou do clima de comoção geral que sucedeu aos ataquesterroristas de 11 de setembro (2001), o que ensejou uma maiorradicalização política e a implementação plena daqueles projetosque citamos, a partir daí apresentados como única respostapara uma guerra contra o terrorismo internacional.

Ao lançamento da guerra contra o Afeganistão (ainda em2001) sucederam-se várias medidas que limitaram as liberdadescivis – USA Patriot Act – e geraram as condições propícias para

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a manutenção de uma guerra permanente, sem fim, indefinida noespaço e no tempo, sustentada por uma política econômicamilitarista que exacerba os desequilíbrios da economiainternacional e precipita a reestruturação do sistema mundial.

O superávit fiscal conquistado a duras penas durante ogoverno Clinton foi convertido em déficits sucessivos no deBush (filho), seguido pelo aprofundamento do déficit comerciale pelo aumento exponencial das dívidas interna e externa, o queabala a confiança na capacidade de pagamento dos EUA e novalor do dólar, fatores que podem incentivar um papel maisativo e independente da Europa na política internacional,sobretudo após o lançamento do euro (1999), que pode servircomo alternativa à moeda estadunidense na formação dasreservas mundiais. O conservadorismo político e econômico,expresso na dificuldade dos governos europeus em superar oprojeto neoliberal e realizar as reformas sociais que podem elevaro padrão de consumo de amplas parcelas de sua população,diminuindo a dependência do aparelho produtivo da região àdemanda dos Estados Unidos, é o maior obstáculo para queisso aconteça. Como vimos, existe uma ligação umbilical entre oneoliberalismo, uma maior exploração da força de trabalho e atransferência de recursos para um sistema financeirointernacional baseado no dólar, o que possibilita a manutençãode um elevado padrão de consumo e de altas taxas deinvestimento (sobretudo nos setores militares) dentro dosEstados Unidos.

A Guerra contra o Iraque, iniciada em 2003, apontoudivergências importantes entre os Estados Unidos e os outrospaíses centrais, bem como entre as diversas forças políticas queatuam no seu interior, o que se manifestou, sobretudo, na Europa,onde a direita de Aznar e Berluscone se juntou ao New Labour deTony Blair e vários países menos importantes para apoiar a coalizãoliderada pelos EUA, com o repúdio da maior parte da opiniãopública mundial e da maioria dos governos, que entendiam a guerracomo ilegal, tal como a qualificou Kofi Annan, então secretário-geral da Organização das Nações Unidas.

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Reação da periferia:a união faz a força

Nos países periféricos, os efeitos da Guerra do Iraque secombinaram com a crise do Consenso de Washington42 paraabrir caminho para o fortalecimento da chamada cooperaçãoSul-Sul, que havia sido desarticulada durante a década de 1980,quando da explosão da chamada crise da dívida em muitos

Com a escassez mundial de petróleo, a região do OrienteMédio tornou-se o ponto nevrálgico da política internacional,na medida em que essa matéria-prima ainda é a principal fonteda matriz-energética na qual se baseia a economia mundial, oque faz com que o controle e a influência sobre os governosdos países produtores de petróleo sejam entendidos comoquestão de segurança nacional para as grandes potênciascontemporâneas. Como os Estados Unidos têm perdido poderrelativo constantemente, a utilização do poderio militar paragarantir o controle de tão importante região tornou-se prioridadena agenda da direita estadunidense, no que a manifestação davontade de alguns países exportadores de petróleo de substituiro preço dessa matéria-prima ou parte de suas reservas de dólarespara euros também pesou.

A oposição à Guerra do Iraque ainda promoveu umaaproximação de poderosos países europeus com paísesimportantes do Terceiro Mundo, o que demonstra suainsatisfação com os delírios neo-hegemônicos da atualadministração dos EUA.

43 No quarto e quinto capítulos deste livro, analisamos com mais detalhesa ascensão e a crise do Consenso de Washington, bem como seu significado,sobretudo para a América Latina.

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países. Samir Amin, ao escrever sobre um possível renascimentodo Movimento dos Países Não-Alinhados, insinuado na reuniãode Kuala Lumpur, em 2003, no clima do lançamento da Guerrado Iraque, destacou o que pode ser o novo ponto deconvergência entre os povos do Sul:

Os países do Sul tomam consciência simultaneamentede que a gestão mundial neoliberal nada tem aoferecer-lhes e que, por esta razão, ela é obrigada arecorrer à violência militar para impor-se, fazendo,assim, o jogo do projeto norte-americano. O movimentose torna – como já havíamos sugerido – aquele do não-alinhamento diante da mundialização liberal e dahegemonia dos Estados Unidos.43

Vamos destacar, antes de finalizarmos esse capítulo, aimportância do Terceiro Mundo e de suas articulações,elementos fundamentais do processo de reestruturação dosistema mundial.

São os países que formam o famoso BRIC´s (Brasil,Rússia, Índia e China), por conta do tamanho de seus territórios,seus índices populacionais, seu relativo desenvolvimentoeconômico, social, científico e tecnológico, bem como seupoderio militar e influência cultural, os que devem se tornar ospilares de sustentação de uma nova estrutura cooperativa queenvolverá a articulação de diferentes projetos que objetivarãoaumentar o grau de autonomia da periferia com relação aospaíses desenvolvidos, no intuito de permitir a criação de novoscentros mundiais de decisão, condição para se impulsionar odesenvolvimento econômico-social dessas regiões.

O IBSA (sigla em inglês de Índia, Brasil e África do Sul),criado em 2003 para aumentar o diálogo entre os seus membros

43 AMIR, Samir. Refundar a solidariedade dos povos do Sul. In: SANTOS(coord.), 2003, p. 177.

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no sentido de garantir as condições necessárias para oestabelecimento de projetos de cooperação nas mais diversasáreas, com destaque para a de ciência e tecnologia, constituiimportante exemplo de articulação da periferia.

A OPEP, paradigma de instituição que visa utilizar osrecursos naturais de seus países membros como instrumentode pressão internacional para valorizá-los, se fortaleceu muitonesses últimos anos, com o intenso conflito na região ondeestão concentradas as maiores reservas de petróleo tendocontribuído para tanto.

Na Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasilliderou o processo de criação de uma importante aliança entreos países periféricos na discussão da liberalização dos mercadosagrícolas, o Grupo dos 20, que se transformou em um dos maisfortes blocos de negociação dentro dessa instituição.

Além disso, o fortalecimento e a implementação deprojetos de integração regional de países em desenvolvimentotornaram-se uma importante tendência dentro do contextogeopolítico e econômico atuais.

Na Ásia, o espetacular crescimento econômico daRepública Popular da China vem desestruturando o processo deregionalização liderado pelo Japão, alterando a correlação deforças local e impulsionando um novo modelo dedesenvolvimento que deverá se vincular a essa emergentepotência.

Na Ásia Central, a Conferência das Cinco Nações(Cazaquistão, Curdistão, Tajiquistão, Rússia e China), estabelecidaem 1996, com o objetivo de cooperar nos assuntos de segurançaregional, se transformou, em 2001, na Organização da Cooperaçãode Shangai, importante instrumento para garantir a estabilidadede uma região que, tendo em vista a existência de populaçõesmuçulmanas e sentimentos separatistas (algo que a CIA sempresoube utilizar em seu favor), pode ser muito instável. Dentro dessa

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perspectiva, deve-se destacar, ainda, o aumento das relaçõeseconômicas nessa região, com destaque para a crescenteaproximação entre Moscou e Pequim, sobretudo na questãoenergética, eixo da cooperação sino-russa.

No Sul da Ásia, a China tornou-se membro, em 2001, doAcordo de Bancoc, organização de cooperação regionalestabelecida em 1975 por Índia, Bangladesh, Sri Lanka, Laos eCoréia do Sul, com o propósito de promover o desenvolvimentocomercial (incluindo tarifa comum e acordos de isenção de tarifapreferencial) entre os países membros.

Na África, a despeito de todos os conflitos étnicos enacionais que cortam o continente, herança direta da predatóriacolonização realizada na região, a consciência de que acooperação é a única maneira de promover o desenvolvimentovem se tornando lugar comum entre os líderes africanos.

Nesse sentido, destaca-se a Nova Parceria para oDesenvolvimento da África (NEPAD), adotada na 37ª sessãoda Assembléia dos Chefes de Estado e de Governo daOrganização da Unidade Africana (OUA) em 2001. O NEPAD éum projeto de longo prazo, programado e conduzido pelos paísesda própria África, com o objetivo de fomentar o crescimentoeconômico e erradicar a pobreza.

Para melhor perseguir a implementação do NEPAD, em2002, a Organização da Unidade Africana se transformou emUnião Africana, com um projeto de integração bem maisaudacioso, com o Parlamento Pan-Africano funcionando desde2004, na África do Sul, e com perspectivas de formação dediversas áreas de livre comércio, de uma moeda e de um bancocentral comuns.

Na América do Sul, como veremos com detalhes nospróximos capítulos, importantes movimentos de integraçãoregional se fortalecem cada vez mais, com destaque para oMercosul, a Comunidade Andina de Nações e a ComunidadeSul-Americana de Nações, rebatizada em abril de 2007 comoUnião das Nações Sul-Americanas (Unasul).

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Desde já, é preciso dizer que uma maior articulação entreos setores da população dos países do Sul que desejam superara condição de dependência com os do Norte que são contráriosao neoliberalismo deve ser aprofundada para que as reformassociais necessárias sejam realizadas em todo planeta, de modoa evitar que a transferência da produção de certos bens pararegiões onde há uma superexploração da força de trabalhopressione para baixo os salários no mundo todo. Além disso,essa articulação é fundamental para conter as aspirações neo-hegemônicas do governo Bush (filho) nesse pouco tempo quelhe resta do segundo mandato, no que a oposição de umcongresso de maioria democrata e contrário a Guerra do Iraquepode ser muito útil.

Não podemos deixar de considerar a possibilidade dosgrupos mais conservadores do atual governo dos EUA,desmoralizados devido a uma série de escândalos (provas sobreas fraudes eleitorais, comprovação da inexistência de armas dedestruição em massa no Iraque, vazamento de nome de agenteda CIA, torturas e obscenidades cometidas por soldados emAbu Ghraib, corrupção envolvendo empresas ligadas aopessoal do alto escalão do governo nos contratos parareconstrução do Iraque, etc.), aproveitarem a situação instáveldo Oriente Médio para jogar os Estados Unidos em outra guerra,já que é difícil de prever como seria a resposta iraniana abombardeios dos EUA em suas centrais de desenvolvimentode tecnologia nuclear. Um possível envolvimento em novoconflito, cujos desdobramentos seriam imprevisíveis, podecomprometer o próximo governo (independente do resultadodas eleições) com boa parte do programa da direita, o quecertamente geraria um novo ciclo de instabilidade internacional.

De qualquer forma, em seguida ao militarismo aventureiro,virá a necessidade de ajustar a economia estadunidense, cadavez mais dependente do financiamento das demais potências, oque pode fazer com que os Estados Unidos aumentem a pressãosobre os países periféricos, pretendendo que estes arquem com

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parte dos custos de tais ajustes. A América Latina, zona deinfluência direta dos EUA, precisará estar muito bem organizadapara evitar pagar parte dos custos das irresponsabilidadesalheias.

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CAPÍTULO2

A DIALÉTICADAS INTEGRAÇÕES

NA AMÉRICA LATINA

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Adespeito do que possa parecer, a contradição entreintegração e desintegração na nossa região não éapenas um fenômeno da contemporaneidade; pelocontrário, é uma constante na história latino-

americana. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é traçaruma síntese histórica dos processos que levaram (e continuamlevando) a esses contraditórios movimentos, bem como tentarapresentar as bases político-econômico-sociais em que sesustentaram.

A compreensão desses processos históricos éfundamental para a análise da atual conjuntura latino-americana,bem como para se entender quais são os problemas estruturaisque atuam no sentido de fragmentar e desintegrar política,econômica e socialmente a América Latina. O nosso objetivo édemonstrar que, mais do que apenas a formação/construção deuma comunidade de Estados que partilham de uma identidade

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Ocupação, exploração e escravidão naAmérica Latina

A América Latina nasce, aos olhos dos “povoscivilizados”, como produto da expansão do capital bancário ecomercial europeu. As viagens de circunavegação, deflagradaspor Espanha e Portugal, foram financiadas por grandesbanqueiros e mercadores florentinos, genoveses e alemães.Grande parte dos recursos que financiaram a viagem de PedroÁlvares Cabral, em 1500, por exemplo, vieram da casa bancáriados Fugger, famosa e influente família que se tornou credorados reis de Espanha e Portugal. Logo, a América Latina surgiuintegrada ao nascente mercado mundial. Essa integração, tãonecessária para o desenvolvimento do sistema mundialcapitalista, tornando-se uma das principais bases da chamadaacumulação primitiva, que possibilitou o surgimento daRevolução Industrial e a conseqüente consolidação docapitalismo como modo de produção hegemônico, se deu àscustas da desintegração interna da América Latina. Suasriquezas naturais, para a desgraça dos povos nativos e dospovos que se formaram a partir da mistura entre eles, os africanose os europeus, despertaram a cobiça da “civilização”. Teve inícioo processo de colonização.

Forjada no calor da expansão comercial promovida,no século XVI, pelo capitalismo nascente, a AméricaLatina desenvolveu-se em estreita consonância com a

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comum e que visam aumentar suas margens de poder e seugrau de autonomia no cenário mundial, o que está em jogo naquestão da formação de uma unidade latino-americana é aintegração mesma de uma sociedade cuja massa da populaçãosempre se viu explorada, marginalizada e violentada pela açãodo capital internacional.

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dinâmica do capital internacional. Colônia produtorade metais preciosos e gêneros exóticos, contribuiu deinício para o aumento do fluxo de mercadorias e paraa expansão dos meios de pagamento, que, ao mesmotempo que permitiam o desenvolvimento do capitalcomercial e bancário na Europa, escoaram o sistemamanufatureiro europeu e aplanaram o caminho para acriação da grande indústria.44

A colonização da América Latina foi um processo ingenteque demandou ampla utilização de força de trabalho, demandaessa coberta pela escravização dos índios e pela destruição desuas respectivas sociedades. Para algumas regiões,particularmente nas de plantação de cana de açúcar no Brasil enas Caraíbas e nas plantações de algodão no sul dos EstadosUnidos, foram importados escravos africanos, causando adesgraça de outro continente inteiro.

A economia colonial latino-americana dispôs da maiorconcentração de força de trabalho até então conhecida,para possibilitar a maior concentração de riqueza quejamais possuiu qualquer civilização na históriamundial..45

Muitos dos índios que foram escravizados,particularmente os que pertenciam às civilizações maisavançadas, como a dos Maias, a dos Incas e a dos Astecas,possuíam importantes habilidades técnicas, que, no entanto,foram desprezadas pelos colonizadores. Integrada de maneirasubordinada ao mercado mundial, a América Latina tinha comoúnica tarefa atender às demandas da Europa, ou seja, lhefornecer metais preciosos e produtos tropicais.

44 MARINI, Ruy Mauro. Dialéctica da dependência. Coimbra: Centelha,1976, pp. 10-11.45 GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1986, pp. 49-50.

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É quase certo – escreve Sérgio Bagú – que às minasespanholas foram lançados centenas de índiosescultores, arquitetos, engenheiros e astrônomos,confundidos entre a multidão escrava, para realizar otosco e esgotante trabalho de extração. Para aeconomia colonial, a habilidade técnica destesindivíduos não interessava. Eles só eram contados comotrabalhadores não qualificados.46

Como não poderia deixar de ser, havia, na América Latina,uma elite que, articulada com os interesses coloniais, tambémse beneficiava da superexploração imposta à grande maioria dapopulação. Essa elite, geralmente constituída por descendentesde europeus, reproduzia na América Latina o padrão de consumodas classes altas européias. O exemplo extremo disso pode serencontrado no caso da cidade de Potosí: possuindo as maioresreservas de prata da América, já em 1573, apenas 28 anos apóssua fundação, contava 120 mil habitantes, ou seja, a mesmapopulação que Londres e mais habitantes do que Sevilha, Madri,Roma e Paris. O contraste que se via nessa cidade, entre o luxoem que viviam alguns e a miséria em que viviam as massasindígenas da população, que passavam seus dias extraindoprata e mascando folhas de coca, que serviam para mascarar afadiga e diminuir a fome, já caracterizava o processo que, comobem demonstrou André Gunder Frank, sempre marcou a AméricaLatina, o de “desenvolvimento do subdesenvolvimento”.

Fluiu a riqueza. O imperador Carlos V deu imediatosinal de gratidão, outorgando a Potosí o título de VilaImperial e um escudo com essa inscrição: ‘Sou o ricoPotosí, do mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhase sou a inveja dos reis’. (...) No começo do século XVII,a cidade já contava com 36 igrejas esplendidamente

46 Idem, ibidem., p. 55.

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ornamentadas, 36 casas de jogo e 14 escolas de danças.Os salões, os teatros e os tablados para as festasostentavam riquíssimos tapetes, cortinas, brasões eobras de ourivesaria; dos balcões pendiam damascoscoloridos e trançados de ouro e prata. As sedas e ostecidos vinham de Granada, Flandres e Calábria; oschapéus de Paris e Londres; os diamantes do Ceilão,as pedras preciosas da Índia, as pérolas do Panamá;as meias de Nápoles; os cristais de Veneza; os tapetesda Pérsia; os perfumes da Arábia, e a porcelana daChina. As damas rebrilhavam com jóias, de diamantes,rubis e pérolas; os cavalheiros ostentavam tecidosbordados na Holanda.47

Os lucros gerados pela extração de metais preciosos epela comercialização dos produtos tropicais que eramproduzidos na América Latina beneficiaram, sobretudo, adespeito do monopólio de comércio entre metrópole e colônia,garantido pelo pacto colonial, os capitais nascentes naInglaterra, Holanda e França. Isso porque Espanha e Portugalnão possuíam considerável produção de manufaturas, o que ostransformou em meros intermediários entre os metais preciososque vinham das colônias e os produtos manufaturados queeram produzidos por outros países europeus.

Ao mesmo tempo em que a América Latina seguia comseu “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, garantidoatravés da integração com o exterior, representada, no período,pelo pacto colonial, algumas regiões do norte da América,particularmente a Nova Inglaterra, aproveitavam o certo graude autonomia que a Inglaterra lhe permitia, devido ao fato deserem economicamente inúteis, não sendo, portanto, exploradas,para se integrar internamente e, posteriormente, realizarem uma

47 GALEANO, op. cit., pp. 33-34.

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Emancipação e projetode integração na América LatinaParecia que, quanto mais estreitos os laços de uma região

com sua metrópole, maior era a desintegração e o caos socialque eram gerados em seu interior. Mesmo assim, as crises e asguerras européias engendradas no alvorecer da modernacivilização capitalista criaram, junto com o esgotamento dasfontes de metais preciosos na América Espanhola, as condiçõespara uma maior conscientização por parte das elites e do povolatino-americano de que seu status de colonizado contribuíapara degradar suas sociedades. Nascia o sentimento quesustentou as lutas de independência do final do século XVIII ecomeço do XIX.

O primeiro país da América a ficar independente foi osEstados Unidos, que declararam a independência em 1776 e aconquistaram efetivamente em 1783, ao findar a guerra com osingleses. Com um centro autônomo de acumulação de capital,localizado no norte do país, os EUA rapidamente iniciaram umaexpansão territorial, comprando Flórida, Lousiana e Oregon eanexando territórios indígenas do Oeste e os Estados do Texas,Novo México, Colorado, Arizona, Califórnia, Utah e Nevada,anexados após a guerra contra o México em 1845. Era o que eles

integração qualitativamente superior no mercado mundial, emuma posição de não subordinação, aproveitando a brecha dadapelas potências coloniais e a condição de neutralidade paraparticiparem do chamado comércio triangular (Europa-África-América). Isso permitiu a essas regiões acumularem capitais edesenvolverem suas manufaturas, o que as tornaria,posteriormente, um importante pólo de industrializaçãoautônoma no norte da América.

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chamavam de “Destino Manifesto de uma grande nação, superiorem espírito a todas as demais”. Os Estados Unidos já nasciamcom vocação imperial.

Na Europa, a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterrada década de 1770, e a Revolução Francesa de 1789, com asguerras napoleônicas lhe seguindo, afetaram diretamente ascondições dos países da América Latina, abrindo espaço, emmeio ao caos das antigas metrópoles, às lutas pelaindependência.

No entanto, vale destacar, houve dois tipos distintos deforças que apoiaram o processo de emancipação da AméricaLatina. Uma delas, de caráter realmente revolucionário, defendiaa adoção de amplas reformas sociais e acreditava na capacidadedo povo latino-americano de construir uma sociedade mais justa.Para tanto, os líderes dessas forças defendiam medidas como areforma agrária, o fim de todo o tipo de servidão e escravização,o fortalecimento do Estado como instrumento de integraçãoeconômica e social, bem como a formação de uma confederaçãode Estados latino-americanos, com o objetivo de garantir aindependência da região e o seu fortalecimento em um sistemamundial constantemente agressivo. Os líderes que de algumaforma se identificaram e lutaram pelas medidas citadas acimaforam: Túpac Amaru, no Peru; Tiradentes, no Brasil; MiguelHidalgo e José Maria Morelos, no México; Francisco deMorazán, na América Central; José Artigas, no Uruguai;Rodríguez de Francia, no Paraguai; José de San Martín, naArgentina e no Chile; e Simon Bolívar, na Venezuela, Colômbia,Equador e Bolívia.

Ainda que esses líderes tivessem projetos diferentes,cada um deles representava de alguma maneira um dos pilaressob os quais a integração latino-americana deve estar baseada:Miguel Hidalgo, José Maria Morelos e José Artigasrepresentaram a idéia de que era necessário adotar amplasreformas sociais, principalmente a agrária, para destruir as

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estruturas econômicas e sociais internas que foram produto eperpetuavam a subordinação dos países latino-americanos aogrande capital internacional; Rodríguez de Francia demonstrouque a ação do Estado é fundamental para garantir a modernizaçãodas forças produtivas e o conseqüente progresso da sociedade;e Simon Bolívar demonstrou que a melhor maneira de os paíseslatino-americanos enfrentarem os desafios externos é unindo-se e atuando conjuntamente na arena internacional.

Foi justamente por todas essas tendências terem seexternado no período que vai de 1770 até 1830, durante a nossaemancipação com relação às metrópoles européias, que ele podeser identificado como o da primeira tentativa de integraçãolatino-americana. Nessa tentativa, deve-se destacar, do pontode vista das relações internacionais, o projeto de Bolívar.

Longe de ser uma visão romântica de Bolívar, criadasob a euforia da vitória nas guerras de libertação, aidéia de unidade Latino-Americana foi levada à práticasob as mais diversas formas, sobretudo tratados decooperação político-militar entre os países recém-libertados, conferências para criar uma federação quegarantisse que nenhum país americano fosse vítima daintervenção estrangeira e finalmente com a proposta,em 1823, de instalação do Congresso do Panamá,congresso este de caráter interamericano que teriacomo finalidade a fundação de uma estreita União dosEstados Independentes do continente.48

Foi o Congresso Anfictiônico do Panamá, em 1826, amelhor expressão do projeto de Bolívar. Tendo sido convidadostodos os países da América Latina, apenas Peru, Gran-Colômbia,América Central e México participaram. A ausência de países

48 MOURA, Luisa. Para Conhecer os Processos de Integração Regionalda América Latina. Texto temático para discussão.

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como o Brasil, o Chile e a Argentina se deu devido à pressão epreocupação da Inglaterra e dos Estados Unidos, que temiam aformação de um pólo de poder alternativo na região. NesseCongresso, o principal acordo aprovado foi o de criação de umTratado de União, Liga e Confederação Perpétua entre os paísesque estiveram presentes.

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Derrota da primeiravaga integracionista

Apesar disso, o projeto de Bolívar e dos outrosrevolucionários latino-americanos acabou sendo derrotado pelaforça do capital inglês e estadunidense, que, na transição parao capitalismo industrial, apoiaram a independência política dospaíses da América Latina no intuito de quebrar o monopólioeconômico espanhol e português na região, então garantido pelopacto colonial. O objetivo, portanto, dessas outras forças queapoiaram a nossa independência política era rearticular aintegração da elite latino-americana com o capital internacional,tornando-a economicamente dependente dos novos centrosindustriais.

Logo, após a independência e a derrota dos quedefendiam um projeto “integracionista” para a América Latina,não ocorreram mudanças muito significativas em sua estrutura,permanecendo a contradição entre integração subordinada aomercado mundial e desintegração econômica e social internas.

Em seu livro As veias abertas da América Latina,Eduardo Galeano fornece uma boa explicação sobre aspossíveis causas do fracasso do projeto “integracionista”:

Os pólos de prosperidade, que floresciam para darresposta às necessidades européias de metais ealimentos, não estavam vinculados entre si: as varinhas

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do leque tinham seu vértice do outro lado do mar. AAmérica Latina nascia como um só espaço naimaginação e na esperança de Simon Bolívar, JoséArtigas e José de San Martín, porém estava dividida deantemão pelas deformações básicas do sistemacolonial. As oligarquias portuárias consolidaram,através do livre comércio, esta estrutura defragmentação, que era sua fonte de ganhos: aquelesilustrados traficantes não podiam incubar a unidadenacional que a burguesia encarnou na Europa e nosEstados Unidos.49

As elites que já dominavam internamente a AméricaLatina permaneceram no poder, agora controlando diretamenteas decisões do Estado e tendo a liberdade de realizar o comérciocom qualquer outra nação. A articulação dessas elites com aInglaterra, potência hegemônica da época, acentuou adesintegração na América Latina e modelou o que viria a setornar o grande paradigma da acumulação de capital na região,caracterizado pela dependência com relação às economiascentrais.

Ignorando-se uns aos outros, os novos países articular-se-ão diretamente com a metrópole inglesa e, em funçãodas exigências desta, passarão a produzir e a exportarbens primários, em troca de manufaturas de consumo e– quando a exportação supera suas importações – dedívidas.50

Foi justamente o modelo dependente de reprodução decapital que impossibilitou a integração da América Latina. Paracompreendermos melhor a trajetória da região, faz-se necessárioentender, portanto, como funcionava e como evoluiu esse

49 GALEANO, op. cit., p. 278.50 MARINI, op. cit., p. 11.

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modelo dependente. Segundo Ruy Mauro Marini, o autor quemelhor explicou seu funcionamento, este é baseado nasuperexploração da força de trabalho, permitida devido àeconomia latino-americana ter sido integrada ao capitalismomundial para atender às exigências dos grandes centrosindustriais, tornando-as economias exportadoras, em que osdois momentos fundamentais do ciclo econômico – a produçãoe a circulação de mercadorias – se separam, com a produçãosendo realizada no âmbito interno e a circulação no externo, oque fez com que o consumo individual dos trabalhadores dospaíses dependentes não interferisse na realização dasmercadorias que eram produzidas no seu interior, gerando atendência à compressão do consumo e do salário das massas,com o respectivo aumento da taxa de lucros dos proprietáriosdos meios de produção. Isso deu origem às distorções dosistema produtivo e à estratificação do mercado interno daAmérica Latina, com uma diferenciação das esferas decirculação: a esfera baixa – em que participam os trabalhadores– que o sistema se esforça por restringir – se baseia na produçãointerna, enquanto a esfera alta – em que participam osproprietários dos meios de produção e os outros setoresbeneficiados por aquele – que o sistema tende a dilatar, vincula-se à produção externa de mercadorias sofisticadas através docomércio de importações.

É importante notar que esse modelo dependente deacumulação de capital adotado nos países periféricos foifundamental para o desenvolvimento e a industrialização dospaíses centrais.

Com efeito, o desenvolvimento industrial supõe umagrande disponibilidade de bens agrícolas, que permitaa especialização de parte da sociedade na atividadeespecificamente industrial. No caso da industrializaçãoeuropéia, o recurso à simples produção agrícolainterna teria travado a extrema especializaçãoprodutiva que a grande indústria tornava possível. O

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forte incremento da classe operária industrial e, emgeral, da população urbana ocupada na indústria enos serviços, que se verifica nos países industriais noséculo passado [XIX], não teria tido lugar se estes nãotivessem contado com os meios de subsistência deorigem agro-pecuária, proporcionados de formaconsiderável pelos países latino-americanos. Foi issoque permitiu aprofundar a divisão do trabalho eespecializar os países industriais como produtoresmundiais de manufaturas.51

Mais do que apenas contribuir para a especializaçãoindustrial dos países europeus, a América Latina impulsionouuma mudança qualitativa no eixo de acumulação das economiasavançadas, na medida em que sua incorporação no mercadomundial de bens-salários (sobretudo alimentos) e de matérias-primas possibilitou uma contínua desvalorização real da forçade trabalho e dos elementos do capital constante dos paísesque haviam alcançado maior desenvolvimento, com o aumentoda produtividade do trabalho sendo combinado com a elevaçãoda taxa de lucro, o que permitiu o desdobramento da tendênciados produtos elaborados se converterem em bens de consumopopular no interior das economias industriais.

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Doutrina Monroe:“A América para os americanos”

Em contraposição ao que ocorria na América Latina, osEstados Unidos adotavam um modelo independente deacumulação de capital, com o Estado prestando um grande

51 MARINI, 1976, p. 13.

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auxílio, através do protecionismo, ao desenvolvimento daindústria. Ao mesmo tempo, os EUA iam expandindo suasfronteiras e adotando uma política externa que já explicitavasuas futuras ambições. No que se refere à América Latina, foi deespecial importância, de parte dos EUA, a declaração da chamadaDoutrina Monroe, em 1823. Proposta inicialmente pelo secretáriodo exterior inglês, George Canning, como uma declaraçãoconjunta entre os EUA e a Inglaterra a favor da independênciados países latino-americanos e do comprometimento de nãoadquirir para si qualquer porção de seus territórios, os EUA,que não concordavam com esta última idéia, optaram por nãofazer a declaração com os ingleses, preferindo declararunilateralmente a Doutrina Monroe que, com o lema “Américapara os americanos”, se punha contra uma possível re-colonização da América Latina por parte das potênciaseuropéias, estimulada pelos governantes reacionários queformavam a Santa Aliança (Prússia, Rússia e Áustria-Hungria),mas que nada dizia acerca de uma possível expansão territorialdos próprios Estados Unidos.

Em Agosto de 1823 George Canning informou oministro norte-americano em Londres, Richard Rush,que: Madri já não podia recuperar suas colônias;Londres não se opunha a uma negociação amigávelentre as colônias e a metrópole; Grã-Bretanha nãoambicionava para si qualquer porção das colôniasmas não podia contemplar com indiferença atransferência de qualquer porção delas a outro poder.Propôs aos Estados Unidos uma declaração conjuntaonde ambos governos se manifestassem a favor daindependência das colônias e se comprometessem anão adquirir para si qualquer porção delas.Washington não concordava com a segunda parte. Nãohouve a declaração conjunta. A assim chamadaDoutrina Monroe de três de dezembro de 1823 opõe-sea qualquer nova aquisição de terras no Novo Mundo,

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por parte dos países europeus, mas nada diz sobre umapossível expansão territorial dos próprios EstadosUnidos. Na verdade, essa expansão, sobretudo no casode Cuba, já estava contemplada por políticosamericanos.52

O México foi o primeiro país a sentir, em 1845, na guerrapromovida pelos Estados Unidos, as verdadeiras ambiçõesdaquele país. Os conflitos com os Estados Unidos custaram aoMéxico o Texas, a Califórnia, o Colorado, o Arizona, o NovoMéxico, Nevada e Utah. Como bem observou o embaixadorSamuel Pinheiro Guimarães, no prefácio do livro Brasil,Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na Américado Sul, de Moniz Bandeira, os EUA só não expandiram mais seuterritório devido ao racismo de suas elites, optando por aumentarsua influência política e econômica na região da América Centrale do Caribe sem incorporá-las ao seu território.

Somente não foram anexadas outras regiões da AméricaCentral e do Caribe ao território americano, tais comoa República Dominicana e o Yucatan, devido à profundaaversão e receio das elites americanas em absorver narepública populações de origem ibérica, miscigenada,católica, de hábitos considerados atrasados einferiores e que iriam ‘corromper’ a Grande RepúblicaWhite, Anglo-Saxon, Protestant.53

De fato, o único país da América Latina que estavaseguindo um modelo econômico autônomo, o Paraguai, eratambém o que mais se desenvolvia. Logo depois de sua

52 ALEIXO, José Carlos Brandi. Visão e atuação internacional de SimonBolívar. Brasília: Embaixada da Venezuela, 1983. P. 11.53 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Prefácio. In: BANDEIRA, Luiz AlbertoMoniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração naAmérica do Sul. Da Tríplice Aliança ao Mercosul. Rio de Janeiro: Revan,2003. P. 18.

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independência, sob o governo de Rodríguez de Francia, quehavia se apoiado nas massas camponesas para esmagar aoligarquia paraguaia e realizar as reformas necessárias para aintegração nacional, o Paraguai já despontava como um pólode poder independente na América do Sul. O país não estavasubordinado ao mercado mundial, não devia um centavo aoexterior; 98% por cento do território paraguaio era de propriedadepública, cedida aos camponeses que tinham obrigação de povoá-lo e explorá-lo permanentemente, sem poder vendê-lo. Alémdisso, o Estado incentivava a industrialização, ocupando o lugarde uma burguesia nacional inexistente. O Paraguai se tornou oúnico país da região onde não havia mendigos, famintos,analfabetos nem ladrões; onde havia uma base industrial própria:pólvora, munição e peças de artilharia, trilhos de trem, tecidos,papel, tinta e até navios, construídos nos estaleiros deAssunção. O problema era que, na medida em que o país sedesenvolvia, já nos governos de Carlos Antônio López eFrancisco Solano López, aumentava a pressão e a necessidadede ampliar suas relações com o exterior. No entanto, depois deum intrincado jogo diplomático envolvendo os países da Baciado Rio da Prata, liderado pelo Brasil monárquico, o Paraguaificou cercado por inimigos. A crise rapidamente levou à guerra.

Os interesses do Estado Paraguaio, último baluarte daprimeira vaga “integracionista” latino-americana, eramincompatíveis com o modelo dependente adotado por seusvizinhos. A Inglaterra, semeando a discórdia, teve papelimportante na destruição da única experiência de sucesso dedesenvolvimento na América Latina. A guerra, deflagrada em1865, durou até 1870, com os países da Tríplice Aliança (Brasil,Argentina e Uruguai), lastreados pelo capital inglês, destruindocompletamente o Paraguai.

Os paraguaios sofreram a herança de uma guerra deextermínio que se incorporou à história da AméricaLatina como seu capítulo mais infame. Chamou-se aGuerra da Tríplice Aliança. Brasil, Argentina e Uruguai

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tiveram a seu cargo o genocídio. Não deixaram pedrasobre pedra nem habitantes varões em seus escombros.Embora a Inglaterra não tenha participadodiretamente na honrosa façanha, foram seusmercadores, seus banqueiros e seus industriais que sebeneficiaram com o crime do Paraguai. A invasão foifinanciada, do começo ao fim, pelo Banco de Londres,a casa Baring Brothers e Banco Rothschild, emempréstimos com juros leoninos que hipotecaram odestino dos países vencedores.54

A Guerra do Paraguai (ou da Tríplice Aliança), portanto,serviu duplamente à Inglaterra: de um lado, aniquilou o paísque se erguia como um pólo autônomo de desenvolvimento naAmérica do Sul; de outro, aumentou as dívidas dos paísesvencedores, ampliando sua influência na região.

A Guerra da Tríplice Aliança teve inicio no período emque, no norte da América, acabava a Guerra da Secessão, primeiraguerra industrial da história, que acabou gerando, junto com aSegunda Revolução Industrial, um impulso imenso na economiaestadunidense, garantindo as condições para o ingresso dosEUA na nova fase do capitalismo mundial, iniciada a partir dacrise de 1873, quando o processo de concentração ecentralização de capital gerado pela fusão entre capitalmonopolista industrial e bancário, formando o financeiro,inaugurou a era do imperialismo. A partir desse momento, osEstados Unidos, que já haviam consolidado sua hegemonia naAmérica do Norte e Central, passaram a disputar com a Inglaterraa hegemonia na América do Sul.

A primeira tentativa dos EUA de ampliar sua influênciana América do Sul e, em conseqüência, diminuir a inglesa, ocorreu

54 GALEANO, op. cit., p. 205.

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em 1887, quando o presidente Groover Cleveland propôs aoprincipal país da região, o Brasil, um projeto de União Aduaneira.Como o Brasil adotava como princípio de política exterior,naquele momento, a não assinatura de acordos assimétricoscom as potências, a proposta de Washington não vingou. Semdeixar-se abalar, ciente da importância estratégica que a Américado Sul tinha em um período em que as grandes potênciasbuscavam desesperadamente novos campos de inversão eexploração, bem como garantir o abastecimento e a reserva dematérias-primas para importação, os EUA propuseram, em 1889,durante a 1ª Conferência Pan-Americana, a formação de umaampla comunidade comercial que envolvesse todos os paísesda América55. Entretanto, no que pesou a forte oposição daArgentina e do Chile, os países que mais estavam vinculadoscom a Inglaterra, a proposta malogrou. Mesmo assim, essaconferência foi marcante, na medida em que garantiu oestabelecimento de um Pan-Americanismo baseado na liderançaestadunidense.

Os Estados Unidos, já no final do século XIX, passarama adotar cada vez mais uma política externa agressiva eimperialista, intervindo por diversas vezes tanto na AméricaLatina como em alguns países asiáticos. Ainda que o marcoinicial desse tipo de política pudesse ser considerado a GuerraHispano-Americana, em 1898, foi só com a presidência deTheodore Roosevelt, de 1901 até 1909, que essas políticas foramsistematizadas e consolidadas. No que se refere à América Latina,o Corolário Roosevelt se somou à Doutrina Monroe, em 1904,com os EUA se reservando ao direito de, carregando um BigStick (“um grande porrete”, eufemismo para o uso brutal da

55 Portanto, primeira tentativa dos EUA de tentar consolidar sua hegemoniana região através do estabelecimento de uma área de livre comérciohemisférica.

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força militar), intervir nos assuntos dos países latino-americanossempre que ocorressem o que consideravam desordens einstabilidades internas nessas regiões. O comandanteestadunidense Smedley D. Butler, que encabeçou muitas dasintervenções militares, elucidou bem, resumindo suas própriasatividades, o real motivo de algumas dessas expedições:

Passei 33 anos e 4 meses no serviço ativo, como membroda mais ágil força militar desse país: o Corpo deInfantaria da Marinha. Servi em todas as hierarquias,desde segundo tenente até general de divisão. Edurante todo esse período, passei a maior parte dotempo em funções de pistoleiro de primeira classe paraos grandes negócios, para Wall Street e para osbanqueiros. Em uma palavra, fui um pistoleiro docapitalismo ... Assim, por exemplo, em 1914 ajudei afazer com que o México, e em especial Tampico, setornasse uma presa fácil para os interesses petrolíferosnorte-americanos. Ajudei com que o Haiti e Cuba fossemlugares decentes para a cobrança de juros por partedo National City Bank ... Em 1909-1912 ajudei apurificar a Nicarágua para a casa bancáriainternacional Brow Brothers. Em 1916, levei a luz àRepública Dominicana, em nome dos interessesaçucareiros norte-americanos. Em 1903, ajudei a‘pacificar’ Honduras em benefício das companhiasfrutíferas norte-americanas.56

56 HUBERMAN, Leo. Man´s Worldly Goods. The story of the wealth ofnations. Nova Iorque, 1936. Citado In: GALEANO, op. cit., pp. 120-121.

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Crise do modelo dependentee Pacto ABC

O que estava por trás de tantas intervenções realizadasem um espaço tão curto de tempo era a crise do modelodependente de reprodução do capital, conseqüência dasmudanças estruturais por que passava o capitalismo mundial.

Com o importante crescimento econômico dos paísesindustriais no final do século XIX e início do século XX (1895-1914), apogeu do período que os franceses chamaram de BelleÉpoque, já sob a hegemonia do capital monopolista, aseconomias exportadoras das regiões periféricas expandiram-se,o que, junto com o aumento dos investimentos internacionaisna infra-estrutura e na produção de certos bens primários,alterou a estrutura sócio-econômica dos países dependentes,já que o boom contribuiu para desestruturar as economias desubsistência e expandir os setores complementares da economiaexportadora (estradas de ferro, casas bancárias, lojas comerciais,manufaturas e etc.), impulsionando o crescimento das cidadese da classe média.

Como as crises cíclicas caracterizam o funcionamentoda economia mundial capitalista, era de se esperar que umainevitável diminuição na atividade econômica dos países centraisocasionasse graves problemas nas economias dependentesreestruturadas: com as crises, diminuíam as demandas dospaíses industriais por exportações e aumentava a pressão paraque seu capital investido no exterior realizasse os lucros, o quese manifestava na superprodução de bens primários de partedos países exportadores e na crise do seu balanço depagamentos. Aos governos desses países não restava outraopção senão subsidiar seus exportadores – garantindo ademanda e o emprego de amplas parcelas da população -, sobpena de, não impedindo sua quebra, perder para sempre o

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mercado dos países centrais, já que outros produtores poderiamse aproveitar da situação. O resultado era o aumento colossaldas dívidas externas, um forte aumento na inflação e o surgimentode uma indústria nacional pouco produtiva, já que faltavamincentivos para um projeto de industrialização consistente, oque era sentido, sobretudo, pelas classes médias urbanas.

É importante destacar que o desenvolvimento daindústria nos países dependentes criou mecanismos internosrelativamente autônomos compensadores das crises mundiaise criadores de crises internas próprias57. Entretanto, a hegemoniadas oligarquias agrário-exportadora-financeiras, vinculadas aocapital monopolista internacional, impedia o desenvolvimentopleno de um projeto de industrialização organizado e planejado,o que, somado aos problemas estruturais anteriores, deu origema uma importante crise que possibilitou a formação de uma sériede movimentos políticos, sociais, militares e culturais que semanifestaram por toda América Latina em oposição àmanutenção da ordem existente.

No âmbito dos governos, o presidente chileno JoséManuel Balmaceda e os presidentes brasileiros Deodoro daFonseca e Floriano Peixoto, com seus planos de industrializaçãoe idéias nacionalistas, foram os melhores exemplos. No queconcerne às lutas por independência política, se destacaramfiguras como as do porto-riquenho Eugenio Maria de Hostos edo cubano José Martí. Dentre as manifestações sociais, aRevolução Mexicana (1910-1917) foi a mais importante. Tendocomo seus grandes líderes Pancho Villa e Emiliano Zapata, oprimeiro no norte e o segundo no sul do país, importantesreformas foram conquistadas: iniciou-se um ambicioso projetode reforma agrária e houve um avanço qualitativo da democraciaem algumas regiões, com as decisões sendo tomadas com a

57 Ver, sobretudo: SANTOS, Theotônio dos. La crisis Norteamericana yAmérica Latina. Buenos Aires: Periferia, 1972.

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participação direta da população. Mesmo assim, a ingerênciaestrangeira permaneceu na política mexicana, com o conflito deinteresses entre a maioria da população e as classes dominantesapoiadas pelo capital estrangeiro tendo levado à queda de váriospresidentes, até que os ânimos se esfriaram, em 1917. No restanteda América Latina, cabe lembrar, entre muitos outros movimentossociais que se desenvolveram nesse período, a Coluna Prestes(Brasil) e a luta de Augusto César Sandino (Nicarágua).

Ainda que não tenha havido nenhuma proposta concretade integração latino-americana por parte de algum dessesgovernos ou movimentos (com exceção de Hostos, quepropunha a formação de uma Confederação Antilhana), a próprialuta contra as instituições que garantiam a dependência e,portanto, a desintegração econômica e social da região, jásimbolizava o inicio de uma nova vaga “integracionista” quevarreria a região nas décadas seguintes, influenciada pela grandecrise estrutural do capitalismo.

Houve, durante esse período, inclusive no âmbito dospróprios governos conservadores, um projeto de integraçãoque visava aumentar o grau de autonomia das classesdominantes locais frente às demais potências mundiais, o doPacto ABC (Argentina, Brasil e Chile), que tinha como objetivopromover uma política de cordial inteligência entre os principaispaíses da América do Sul. O grande promotor desse pacto foi oBarão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores do Brasilque acabou morrendo pouco depois de promover esse acordo,o que contribuiu para sua ínfima duração, já que nenhumestadista de prestígio abraçou o projeto. Mesmo assim, sem asbases econômicas e sociais necessárias, dificilmente se poderiater realizado com sucesso qualquer tipo de acordo de integração.

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A Grande Depressão e asegunda onda de integração

Foi só com o estouro da Grande Depressão, deflagradaem outubro de 1929, com a quebra da bolsa de Nova York, que asituação latino-americana efetivamente se alterou. Vários dosmovimentos políticos e sociais que haviam emergido dascontradições geradas pelo modelo dependente do final doséculo XIX e início do século passado aproveitaram a situação deafrouxamento do elo que integrava a economia latino-americanaao capital internacional para alcançar o poder e promover seusprojetos de industrialização, desenvolvimento e reforma social,abrindo caminho para um novo ciclo histórico na região.

Muitos governos conservadores caíram em toda aAmérica Latina durante as décadas de 1930 e 1940, sendosubstituídos por governos nacionalistas que pretendiamtransformar suas respectivas economias, sociedades e Estados.Os principais desses governos foram: o de Getúlio Vargas, apartir de 1930, no Brasil; o de Lázaro Cárdenas, a partir de 1934,no México; e os governos dos generais do Grupo de OficiaisUnidos (GOU), que tinham Juan Domingo Perón como principalreferência, a partir de 1943, na Argentina.

Com exceção de Cárdenas que, com a recuperação doespírito da Revolução Mexicana, propunha reformas maisaudaciosos que os demais governantes, o principal objetivodesses novos governos era iniciar o processo de industrializaçãoe garantir maior autonomia para suas economias. Para tanto, oEstado assumiu um papel fundamental. A política adotada paraalcançar esse objetivo ficou conhecida como política deindustrialização via substituição de importações, descrita pelaprimeira vez pelo economista e industrial brasileiro RobertoSimonsen, em importante artigo no Boletim do Ministério deIndústria, Comércio e Trabalho, ainda nos anos 1930. A idéia

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básica dessa política era o Estado, utilizando-se de suas políticasalfandegárias, cambiais, fiscais e de investimento, incentivar aprodução nacional de bens industriais que antes eram compradosno exterior – daí a idéia de substituir importações, posto que jáhavia um mercado consumidor considerável nesses países.

As importantes transformações não ocorreram apenasna América Latina. A Grande Depressão quase causou a débâclefinal do sistema mundial capitalista. Em alguns países da Europa– Alemanha, Espanha e Portugal – em parte devido à grandeinfluência alcançada pelas forças socialistas, o nazismo e ofascismo ascenderam ao poder, com a repressão às classestrabalhadoras e a ampliação do papel do Estado na economiagarantindo a manutenção da reprodução do capital. Em outrospaíses, onde a intensidade do conflito era menor, governantesprogressistas adotaram políticas econômicas inéditas,conseguindo, através do aumento da participação do Estadona economia, recuperá-la da depressão e aumentar o padrão devida da população. O New Deal, plano do então presidente dosEUA, Franklin Delano Roosevelt, foi o principal exemplo dessenovo tipo de política que, mais tarde, em 1936, seria teorizadapor John Maynard Keynes58.

Sabe-se que, apesar da recuperação da economiamundial, os conflitos entre as grandes potências recrudesceram,principalmente devido à agressividade das ideologias nazi-fascistas e da necessidade de expansão das economias alemã ejaponesa. Isso, como se sabe, levou a Segunda Grande GuerraMundial.

Na América Latina, ainda antes da guerra, a criseeconômica mundial e o acirramento do conflito entre as grandespotências diminuiu a pressão imperialista sob a região. Os EUA,

58 KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e damoeda. São Paulo: Atlas, 1982.

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sob a presidência de Franklin Roosevelt, reformularam suapolítica latino-americana, substituindo o Corolário Roosevelt(do outro Roosevelt) pela Política de Boa Vizinhança. Issoporque, na medida em que a Alemanha buscava ampliar suainfluência na região, não convinha aos EUA, que sempreconsideraram a América Latina sua zona de influência, adotarpolíticas que estimulavam um forte sentimento anti-americano.Mesmo assim, algumas grandes empresas acabaram intervindona região durante a década de 1930, principalmente as depetróleo, notadamente a Standard Oil e a Royal Dutch Shell. Asintervenções, que geraram intenso conflito entre alguns paísesna América do Sul, se deram devido à crença de que existiria, naregião, 1/3 das reservas mundiais de petróleo. Além de teremcontribuído para a queda do presidente nacionalista argentino,Hipólito Yrigoyen, que se dispunha a nacionalizar toda aprodução de petróleo na Argentina, essas intervenções tambémcontribuíram para dar inicio à cruenta Guerra do Chaco (1932-1935), entre Bolívia e Paraguai, dois dos mais pobres países daAmérica do Sul.

Apesar disso, as décadas de 1930 e 1940 marcaram oinício da segunda onda “integracionista” latino-americana. Osprocessos de industrialização, o aumento dos direitos sociais etrabalhistas e todas as outras reformas que estavam sendoadotadas contribuíram para uma maior integração econômica esocial internas em vários países da América Latina. É evidenteque todas essas transformações ocorreram de maneiras e emvelocidades diferentes em cada país. O maior ou menor controlenacional sob os meios de produção influenciou muito nessadiferenciação. Países que eram caracterizados por seremeconomias de enclave, onde os meios de produção dos setoresexportadores eram totalmente controlados por empresasestrangeiras, tinham muito mais dificuldade para superarem suascontradições e iniciarem processos de transformação maisamplos. Esse era o caso de muitos países da América Central edos países caribenhos, bem como de alguns da América do Sul;

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eles estavam totalmente integrados ao mercado mundial edesintegrados internamente, com a pobreza alcançandoproporções assustadoras. Em países onde o controle nacionalsob os meios de produção era considerável e onde haviaimportante mercado interno, o desenvolvimento econômico esocial não parecia uma quimera; pelo contrário, apesar dasdificuldades políticas, ele parecia ser o destino de países comoo Brasil, a Argentina, o México e o Chile.

É importante destacar que o processo de industrializaçãodos países da América Latina ocorreu em uma conjuntura e deum modo totalmente diferente do que nos países centrais. Oque se deu, em um primeiro momento, foi uma reorientação doconsumo das classes dominantes para o interior de suaseconomias. A grande problemática era a oferta dar conta doconsumo pré-existente. Essa era a idéia da política deindustrialização via substituição de importações: fortalecer oEstado para garantir – nos momentos de crise mundial – autilização das poucas divisas existentes para importação demáquinas e equipamentos a preços baratos – em função dacrise – e para, nos momentos de auge da economia mundial,assegurar a reorientação dos excedentes gerados pelasexportações para importar o que fosse necessário para darcontinuidade ao processo de industrialização. Percebe-se, comisso, a importância e a co-participação do setor exportador nessapolítica – seja como gerador das divisas seja como mercadopara a produção industrial.

A partir de certo momento, quando a oferta industrialpassou a coincidir com a procura existente, surgiu a necessidadede generalizar o consumo das manufaturas, tornando-as bensde consumo popular – o que mudaria o eixo de acumulaçãodesses países e culminaria na superação completa do modelodependente de reprodução do capital. Tal transformação exigiainiciativas e reformas importantes – consolidação dos direitostrabalhistas, reforma agrária e desenvolvimento de um setor debens de capital nacional – que, de modo geral, lideranças como

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Getúlio Vargas e Lázaro Cárdenas tentavam implementargradualmente. Com isso, os setores exportadores passaram ase sentir cada vez mais ameaçados, organizando partidos deoposição que só poderiam se fortalecer com o auxílio do capitalinternacional, ou seja, após o final da drástica conjunturamarcada pela Segunda Guerra Mundial.

Já na década de 1940, quando o mundo ainda estava emguerra, surgiu a primeira proposta formal de integração daAmérica Latina daquele período: o Tratado de 1941 entre Brasile Argentina para estabelecer um regime de livre comércio entreos dois países e com a proposta de criação de uma uniãoaduaneira, que estaria aberta à entrada de outros países sul-americanos. Projeto que, apesar dos interesses comuns, comoa industrialização e a busca de autonomia, além da importantecomplementação econômica entre Brasil e Argentina, fracassou,já que o maior envolvimento da América na guerra, com o ataquejaponês a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, expôs algumasdivergências políticas importantes: a Argentina, que era maisligada à Grã-Bretanha do que aos EUA, também tinha fortesrelações econômicas com os alemães. Logo, os argentinos serecusaram a cortar relações com os países do Eixo, o que, quandoo Brasil e quase todos os outros países da América passaram aapoiar os Aliados, fez com que tanto o Tratado de livre comérciode 1941 quanto a proposta de união aduaneira sul-americanafossem inviabilizados.

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Doutrina da Contra-Insurgênciax Integração da América Latina

Ao terminar a Segunda Guerra Mundial, com a vitóriados Aliados, sobretudo da URSS e dos EUA, o mundo estavacompletamente transformado: de um lado, os EUA alcançaram ahegemonia absoluta no sistema mundial capitalista; de outro, a

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União Soviética garantiu a consolidação do campo socialista.Não demorou muito para que os dois países se desentendessem,sobretudo devido ao cerco estadunidense ao bloco socialista,deflagrando o conflito que ficou conhecido como Guerra Fria.Como veremos, esse conflito afetou profundamente a histórialatino-americana.

Os EUA, além de liderarem o processo de criação dasagências multilaterais que deveriam ajudar a gerir o sistemamundial – FMI, BIRD e GATT -, trabalharam no sentido de criarinstituições próprias para os países americanos, no intuito degarantir que essa região continuasse sendo sua zona deinfluência direta, seu “quintal”. A primeira conferência realizadacom esse objetivo foi a Interamericana (as ConferênciaInteramericanas eram a manifestação do Pan-americanismoliderado pelos EUA, consolidado, como vimos, em 1889) deChapultepec, na Cidade do México, em 1944. Nessa Conferênciafoi aprovada a Carta Econômica das Américas, responsávelpela consagração institucional dos princípios de Bretton Woodsno hemisfério. Além disso, foi nessa Conferência que os EUAmanifestaram pela primeira vez seu interesse na criação de umaagência militar interamericana.

Foi só em 1947 e 1948 que as principais instituições querespaldaram o domínio estadunidense sob a região foramcriadas. Na Conferência Interamericana do Rio de Janeiro,realizada em Petrópolis, em 1947, foi aprovado o TratadoInteramericano de Assistência Recíproca (TIAR), no qual umataque armado de qualquer Estado contra um Estado americanoseria considerado como um ataque contra todos os Estados dohemisfério. O objetivo desse Tratado era claramente integrar ospaíses latino-americanos às estratégias militares de “guerra fria”dos Estados Unidos. Em 1948, na Conferência Interamericanade Bogotá, foi criada a Organização dos Estados Americanos(OEA), que substituiu as Conferências Interamericanas eexplicitou, devido à declaração anticomunista constante doartigo 32 da Carta desta instituição, o domínio dos interessesdos EUA sob o dos demais países.

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Houve, apesar disso, até o inicio da década de 1950,certo espaço para que os países da região adotassem, sempressões muito fortes, políticas que visassem aprofundar astransformações que já vinham sendo feitas desde meados dadécada de 1930. Isso porque os EUA, devido ao aumento dainfluência das forças socialistas na Europa e na Ásia,concentraram seus esforços na reconstrução econômica dovelho continente e do Japão, além de estarem ocupados com aGuerra da Coréia (1950-1953).

A Comissão Econômica para América Latina e Caribe(CEPAL), agência especializada da ONU, que tinha comoobjetivo analisar o desenvolvimento econômico latino-americano, propor políticas e assessorar governos, tornou-se aprincipal referência teórica para os países que buscavam seindustrializar. Foi no âmbito de seus estudos, liderados por RaúlPrebisch, famoso economista argentino, que surgiu a teoria dadeterioração dos termos de troca e os conceitos de paísescentrais e periféricos.

Nas décadas de 1940-50, desenvolveu-se o pensamentoda CEPAL, que vai dar um fundamento de análiseeconômica e um embasamento empírico, assim comoapoio institucional, à busca de bases autônomas dedesenvolvimento. Estas se definiram por intermédio daafirmação da industrialização como elementoaglutinador e articulador do desenvolvimento,progresso, modernidade, civilização e democraciapolítica.59

A CEPAL tornou-se também importante referência paraos países que vinham se descolonizando na Ásia e na África,com suas teses, principalmente as que criticavam os conceitos

59 SANTOS, Theotônio dos. A teoria da dependência: balanço eperspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. P. 74.

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tradicionais das velhas teorias do comércio internacional,influenciando diretamente a argumentação dos países periféricosnas instituições econômicas multilaterais. Além disso, essasteses serviram de inspiração para a criação do G-77, grupo depaíses do Terceiro Mundo que visava adotar uma posiçãocomum na pauta das negociações econômicas multilaterais, como objetivo de aumentar o poder de barganha de seus integrantes,e da UNCTAD (United Nation Conference on Trade andDevelopment), agência da ONU que debate sobre assuntosreferentes ao comércio internacional e ao desenvolvimento dospaíses do Sul.

A partir do início da década de 1950, as transnacionais,sobretudo estadunidenses, passaram a aumentar seusinvestimentos nos países latino-americanos, agora nos setoresindustriais e com vistas à exploração do mercado interno. Oforte desenvolvimento dos setores de bens de capital dos paísescentrais fez com que a industrialização do Terceiro Mundopudesse ser complementar às necessidades do capitaltransnacional, desde que realizada com a tecnologia ou com asmáquinas e equipamentos sob o seu controle.

A integração da tecnologia altamente desenvolvida dospaíses centrais no sistema produtivo da América Latinasignificava o desenvolvimento de um novo setor de bens deconsumo de luxo na região, o que entrava em choque com omovimento de alteração do eixo de acumulação que estava emcurso com a convergência entre as esferas altas e as esferasbaixas de consumo, condição para a superação da dependência.

O projeto do capital transnacional estava vinculado comos interesses dos setores exportadores tradicionais, já queambos não viam com bons olhos o desenvolvimento de umaindústria de bens de capital de base nacional por parte dospaíses da América Latina, o que diminuiria a importância dosetor exportador como gerador de divisas e de mercado e docapital transnacional como provedor de tecnologia.

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A resposta a esse projeto imperialista foi, em muitospaíses latino-americanos, uma política de unidade entre setoresda burguesia nacional, do proletariado rural e urbano e dasclasses médias, consubstanciada nos movimentos nacional-democráticos, que objetivavam arrestar o capital internacionale seus aliados internos através do fortalecimento do capitalismode Estado e do desenvolvimento de um setor de bens de capitalde base nacional. O nacionalismo figurava como o ponto deconvergência ideológica entre os diversos setores da sociedadeque apoiavam esse projeto de construção de uma democraciade massas e de um sistema produtivo que fosse capaz desatisfazer as necessidades da maioria da população.

Em função do poder de mobilização do nacionalismo naAmérica Latina do imediato pós-guerra, os Estados Unidos, apartir do inicio da década de 1950, colocaram como uma dasprioridades de sua política na região a doutrinação dos militaresnos cânones do que mais tarde ficou conhecido como Doutrinade Contra-Insurgência. A idéia dessa doutrina era fazer comque os militares, que sempre participaram ativamente da políticalatino-americana, passassem a acreditar que tudo que ocorriano mundo estava baseado no conflito entre os dois blocosantagônicos da Guerra Fria: o “Ocidental Cristão” (ao qualpertenciam os países capitalistas) e o “Comunista” (ao qualpertenciam os países socialistas).

Segundo essa Doutrina, os “Comunistas” tinham oobjetivo de expandir seu regime, sob controle de Moscou, paratodo mundo. Neste sentido, caberia às forças armadas dos EUAproteger o bloco Ocidental Cristão de um possível ataque militarvindo do campo socialista, enquanto caberia às forças armadasdos países da América Latina - supostamente frágeis à“subversão comunista” no interior de suas fronteiras - garantirque as forças ditas comunistas (e aí se incluía qualquer correntepolítica que não aceitasse a hegemonia dos EUA na região) semantivessem afastadas do poder. Isso, na medida em que muitosmilitares passaram a identificar qualquer tipo de mobilização

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popular de massas como movimentos comunistas, gerou umapressão enorme sobre os governantes nacionalistas.

Em 1952, aproveitando a volta de Getúlio Vargas ao poder,no Brasil, e a presidência do general Carlos Ibañez Del Campo,no Chile, Juan Domingo Perón, em seu segundo mandato, naArgentina, resgatou a idéia da formação do Pacto ABC, propostano inicio do século XX pelo Barão do Rio Branco. A propostade Perón, entretanto, era bem mais audaciosa, já que estavabaseada na constatação de que, para darem continuidade aseus projetos de industrialização autônoma e inclusão social,seus países deveriam organizar uma comunidade econômica epolítica que, a partir de uma união aduaneira, deveria adotarposições conjuntas na arena internacional, formando consórciosque teriam como objetivo controlar o preço mundial de muitasmatérias-primas, buscando evitar a deterioração dos termos detroca. A oposição conservadora, principalmente a brasileira, quenaquele momento estava controlando o Itamaraty, pressionoumuito Vargas para que não aderisse ao projeto. Vargas, queestava em uma posição política bastante frágil, com osconservadores ganhando cada vez mais o apoio de altoscomandantes militares, acabou cedendo, o que contribuiu parao malogro do projeto de Perón.

A UDN, no Congresso, e a imprensa conservadora, aela vinculada, formaram um coro e, apresentando osentendimentos de Vargas com Perón como ‘traiçãonacional’, acusaram os dois de conspirarem ‘contra oideal do Pan-Americanismo e a realidade da boavizinhança, tradicionais no hemisfério’, por tentaremfazer o Pacto ABC e resistirem aos EUA.60

60 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos:conflito e integração na América do Sul. Da Tríplice Aliança ao Mercosul.Rio de Janeiro: Revan, 2003. P. 261.

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A idéia do Pacto ABC também admitia a participação deoutros países sul-americanos. No entanto, a oposiçãoconservadora de todos os países da América do Sul passou aatuar no sentido de inviabilizar essa integração, defendendo aidéia de que o Pacto nada mais era do que um projeto dehegemonia peronista sobre a região.

Na América Central, já no início da década de 1950, sobinspiração da CEPAL, teve início um processo de integraçãopróprio. Em 1951 foi criada a Organização dos Estados Centro-Americanos (ODECA), ao que foi somada a assinatura de váriostratados bilaterais. Em 1958 os países dessa região assinaram oTratado Multilateral de Livre Comércio e Integração Econômicae, em 1959, foi assinado o convênio centro-americano paraequiparação das taxas sobre produtos importados. Apesardisso, a debilidade econômica desses países, combinada comsua proximidade geográfica com relação aos Estados Unidos,fez com que essas iniciativas logo fossem cooptadas pela açãodo grande capital estadunidense.

Como demonstrou Theotônio dos Santos61, os EUAinspiraram a adoção do Acordo Tri-partido de AssociaçãoEconômica entre El Salvador, Honduras e Guatemala, em 1958,além de apoiarem, através da Agency for InternationalDevelopment (AID), a assinatura, em 1960, do Tratado Geral deIntegração Econômica, com o objetivo de integrar os mercadoscentro-americanos e facilitar a distribuição e a organização docapital estrangeiro na região.

As décadas de 1950 e 1960 foram marcadas por um intensoconflito entre as forças políticas e sociais que defendiam osdois distintos projetos para os países da região: o nacional-

61 SANTOS, Theotônio dos. Economia Mundial, Integração Regional eDesenvolvimento Sustentável. As novas tendências da economia mundiale a integração latino-americana. Petrópolis: Vozes, 1993.

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democrático e o da dependência tecnológico-financeira. Emmeados da década de 1950 houve uma tentativa de compromissoentre esses dois modelos antagônicos, algo que foi expressona ideologia desenvolvimentista e que apenas adiou aradicalização e a polarização que ocorreria em torno daquelesdois projetos62.

No dia 18 de Fevereiro de 1960, em Montevidéu, foiassinado o tratado que instituiu a Associação Latino-Americanade Livre Comércio (ALALC), integrada por Argentina, Brasil,Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguai, e que tinha por objetivocriar, em doze anos, uma zona de livre comércio na região. EssaAssociação, que foi instituída com base no relatório do Grupode Trabalho Regional Latino-Americano, criado pela CEPAL,acabou tendo seus objetivos estratégicos limitados devido àpressão do FMI e ao clima de instabilidade política na região, oque certamente atrasou o processo de integração.

Em 1957, o Comitê de Comércio da CEPAL criou oGrupo de Trabalho do Mercado Regional Latino-Americano, de cujo relatório resultou o Acordo deMontevidéu, em 1960, que criou a Associação Latino-Americana de Livre Comércio. Contudo, as pressõesdo FMI impediram a adoção de dois elementos básicospara assegurar o êxito dessa iniciativa. A definição desuas metas na direção de uma integração mais profundae a criação de mecanismos de compensação quepermitissem um comércio flexível entre os váriospaíses.63

62 O governo brasileiro de Juscelino Kubitschek e o argentino de ArturoFrondizi podem ser considerados exemplos de governos pautados pelaideologia desenvolvimentista, mas que tentaram conciliar com o ingressode capital estrangeiro..63 SANTOS, 1993, p. 121.

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Ditaduras subordinadas aosEUA bloqueiam projeto integracionista

Em 1961, com os desdobramentos da Revolução Cubana(1959) preocupando cada vez mais os Estados Unidos, estesapoiaram um movimento que visava derrubar o governo de FidelCastro; planejaram o que ficou conhecido como invasão daBaía dos Porcos. Com o fracasso desse intento, Fidel Castro seviu ameaçado e optou, com o objetivo de garantir e aprofundara revolução, por alinhar-se à União Soviética. A partir daí,Washington passou a dar maior prioridade ao que acontecia naAmérica Latina, aumentando os recursos dados às forças quese opunham aos projetos nacionalistas e socialistas.

Em 1963, com o assassinato do presidente John F.Kennedy, nos EUA, muda a conduta desse país com relação àAmérica Latina. Ainda que os Estados Unidos viessemapoiando as forças conservadoras e as constantes intervençõesdos militares no processo político da região desde meados dadécada de 1950, era de interesse do Departamento de Estado amanutenção dos regimes democráticos na América Latina (adespeito da oposição do Pentágono, que já apoiava a idéia deque eram necessários regimes ditatoriais para enfrentar osprojetos nacionalistas e socialistas), para que os EUA pudessemcontinuar, sem maiores constrangimentos, seu discurso próliberdade e democracia, expressos no programa da Aliança parao Progresso (ALPRO)64. Vale lembrar que, até aquele momento,o que caracterizava o processo político latino-americano era o

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64 O programa da Aliança para o Progresso, lançado em 1961 pelopresidente Kennedy, visava prover recursos para o desenvolvimento dospaíses latino-americanos que, segundo os EUA, praticavam a democracia.No entanto, com o tempo, os recursos desse programa passaram a sertransferidos para os líderes políticos latinos que apoiavam Washington.

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circulo vicioso eleições – golpe militar – eleições, do qual aArgentina foi o melhor exemplo.

No entanto, com a ascensão de Lyndon B. Johnson àpresidência dos Estados Unidos, a linha dura passou a comandaro Departamento de Estado, que começou a planejar, junto como Pentágono, a CIA, os militares e os partidos conservadoreslatino-americanos, os golpes que sustentaram o Estado deexceção duradouro na América Latina. O primeiro país a passarpor esse tipo de golpe foi o Brasil, depois que o presidentenacionalista João Goulart anunciou a deflagração das chamadasreformas de base, que tinham como objetivo consolidar o modelonacional-democrático no principal país sul-americano. A tomadado poder pelos militares, em 1964, representou importante vitóriado modelo dependente de reprodução de capital na América doSul, já que fez com que o Brasil se tornasse um aliado fundamentaldos EUA na contenção dos movimentos autonomistas e dosprojetos “integracionistas” da região.

Em substituição a esse projeto nacional, o regime militarcriado em 1964 dava origem a uma modernizaçãofundada na aliança e integração dessa burguesia aocapital multinacional, consagrando um tipo dedesenvolvimento industrial dependente, subordinadoàs modalidades de expansão e de organização docapitalismo internacional, que submetia os centros deacumulação locais à lógica de expansão do centrohegemônico mundial.65

Antes de quase toda a América do Sul ser tomada porregimes militares vinculados aos EUA, que garantiriam amanutenção da reprodução ampliada da dependência nesserincão do planeta, ocorreu uma importante ofensiva de parte

65 SANTOS, Theotônio dos. A teoria da dependência: balanço eperspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. P. 95.

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das forças populares e democráticas da região. Tal ofensiva, emgrande parte impulsionada pela crise econômica mundial queteve inicio em 1967, foi baseada em dois processos políticos esociais importantes:

1) no surgimento de governos militares que faziam umaleitura alternativa da Doutrina de Contra-Insurgência ede Segurança Nacional, que, encabeçados pelo governorevolucionário peruano do General Juan VelascoAvarado, bem como impulsionados pelos governos dogeneral Juan José Torres, na Bolívia, e pelo governomilitar nacionalista do Equador, viam a ameaçaguerrilheira como uma conseqüência da injustiça social,da espoliação de seus países pelo capital internacional edas oligarquias internas, o que os fez adotarem políticasprogressistas e antiimperialistas, como a realização dereformas agrárias e a nacionalização de companhiasestrangeiras;

2) e na vitória eleitoral da Unidade Popular, no Chile,com Salvador Allende alcançando a presidência eadotando um programa de transição ao socialismo, achamada “via chilena ao socialismo”.

A esses dois processos se somou, é importante destacar,a ascensão das forças populares na Argentina, que culminouna eleição de Victor José Cámpora (delegado pessoal de Perónexilado) para presidência, em 1973, o que deixou o caminhoaberto para a volta e posterior eleição presidencial, ainda em1973, de Juan Domingo Perón.

Todos esses processos influenciaram, por sua vez, ofortalecimento da articulação sub-regional que foi criada em1969, com o Acordo de Cartágena (Pacto Andino), que passoua unir Bolívia, Peru, Equador, Chile, Colômbia e, posteriormente,a Venezuela. O Pacto Andino tinha como objetivo central romperou diminuir a dependência, com a negociação e a definição deuma política de restrição aos investimentos estrangeiros,

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dotando os Estados nacionais de capacidade de controle sobreas corporações transnacionais, bem como com o planejamentoconjunto de setores econômicos e o desenvolvimento depolíticas de ciência e tecnologia regionais.

O Grupo Andino reuniu originalmente Colômbia,Equador, Chile, Peru e Bolívia, agregando-se em 1973a Venezuela. O Acordo de Cartagena tinha pretensõesmais ambiciosas que a ALALC: almejava chegar aoplanejamento conjunto de setores econômicos e definiuuma política de restrição ao capital estrangeiro e dedesenvolvimento tecnológico regional. Este acordoteve seu auge em 1971-1973, sustentado pelo governoAllende, no Chile, pelo governo revolucionárioperuano, pelo governo Torres na Bolívia, pelo governomilitarista nacionalista no Equador e pelos governosdemocráticos da Colômbia e Venezuela. Estes governosfavoreciam evidentemente a integração regional e sub-regional e uma concepção política regionalbolivariana. A volta do peronismo na Argentina levouà sua aproximação com o Grupo Andino e abriu aperspectiva da formação de um poderoso mercadocomum.66

Apesar disso, com golpe da extrema direita contra ogeneral Torres, em 1971, o golpe de Pinochet contra Allende, em1973 (com a posterior saída deste país do Grupo Andino), aqueda do general Alvarado, em 1975, e o golpe militar argentino,em 1976, essa ofensiva popular acabou se esgotando. Nessesentido, o Pacto Andino pode ser considerado a última propostaque surgiu e se efetivou na segunda onda “integracionista”latino-americana, que durou de 1930 até a primeira metade dadécada de 1970.

66 SANTOS, 1993, p. 22.

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Os governos militares que baseavam sua conduta naschamadas Doutrinas de Segurança Nacional passaram a esmagare reprimir as principais organizações que se mobilizavam emprol das reformas que consolidariam os modelos nacional-democráticos nos países da região: sindicatos foram fechados;movimentos estudantis reprimidos; partidos de esquerda,nacionalistas e reformistas proibidos de funcionar; e líderesconsiderados “subversivos” acabaram sendo presos,torturados e assassinados. O terror tomou conta de toda Américado Sul. Na verdade, a combinação de democracia com a criaçãode um ciclo independente de reprodução de capital tendia aaprofundar cada vez mais as transformações da América Latina;a dependência, com a conseqüente superexploração da forçade trabalho, não se mostrou compatível com os valoresdemocráticos. O capital internacional, vinculado a certos setoresdas classes dominantes latino-americanas, submeteu os paísesda região às necessidades do mercado mundial, à nova divisãointernacional do trabalho e à lógica das grandes corporaçõestransnacionais.

Em tempos difíceis, a democracia transforma-se emcrime contra a segurança nacional, ou melhor, contraa segurança dos privilégios internos e dosinvestimentos estrangeiros. Nossas máquinas de moercarne humana integram uma engrenageminternacional. A sociedade inteira se militariza, oEstado de exceção passa a ser permanente e o aparelhode repressão torna-se hegemônico a partir de umapertar de parafusos lá nos centros do sistemaimperialista. Quando a sombra da crise espreita, faz-senecessário o saque aos países pobres para garantir opleno emprego, as liberdades públicas e as altas taxasde desenvolvimento dos países ricos. Relações de vítimae carrasco; dialética sinistra: há uma estrutura dehumilhações sucessivas que começa nos mercadosinternacionais e nos centros financeiros e termina nacasa de cada cidadão.67

67 GALEANO, op. cit., p. 295.

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Não seria possível, portanto, realizar uma verdadeiraintegração na América Latina com o modelo de reproduçãoampliada da dependência em vigor; com as tecnologias vindodo exterior sendo combinadas com a superexploração da forçade trabalho, a marginalização social, a pobreza e a miséria; como Estado garantindo a manutenção dessa verdadeiradesintegração social através do terror e da violênciaindiscriminada, com todas as garantias do Estado de Direitosendo esmagadas, tudo com o respaldo teórico das bizarrasdoutrinas que saiam dos prédios públicos e de algumasuniversidades estadunidenses. Logo, a ALALC não poderiaintegrar nada; pelo contrário, o desarmamento alfandegário, nosmarcos do capitalismo dependente, beneficiou as grandescorporações transnacionais, ao permitir que essas pudessemdistribuir os centros de produção e os mercados latino-americanos com mais facilidade. Esse, aliás, já era um dos temoresde Raúl Prebisch, principal economista da CEPAL e um dosmaiores defensores do projeto de integração. Como vimos, suapreocupação tinha fundamento.

Como queria o libertador Simon Bolívar, dizem, estaintegração [ALALC] não vai além dos limites queseparam o México do seu poderoso vizinho do norte.Os que sustentam esse critério seráfico esquecem,interessante amnésia, que uma legião de piratas,mercadores, banqueiros, marines, tecnocratas, boinasverdes, embaixadores e capitães-de-empresa norte-americanos se apoderaram, ao longo de uma histórianegra, da vida e do destino da maioria dos povos dosul, e que atualmente também a indústria da AméricaLatina jaz no fundo do aparelho digestivo do império.‘Nossa’ união faz sua ‘força’, na medida que os países,ao não romperem previamente com os moldes dosubdesenvolvimento e da dependência, integram suasrespectivas servidões.68

68 Idem, ibidem, p. 271.

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Esgotamento da ordem econômicade Bretton Woods e nova tentativade integração da América Latina

Como vimos no capítulo anterior, o final da década de1960 foi marcado pelo início de uma crise de longo prazo (comcurtos períodos de recuperação) na economia mundial, o queexigiu, sobretudo de parte dos EUA, correções no sentido dediminuir suas importações e aumentar as exportações e asentradas de capitais. Os países latino-americanos foramdiretamente afetados por essa crise: o aumento na conta dasimportações, no valor dos juros internacionais e a diminuiçãodas exportações, somados à maciça presença de empresasestrangeiras na região (empresas que constantementerepatriavam seus lucros), aumentaram a transferência derecursos da América Latina para os países desenvolvidos,pressionando fortemente seus balanços de pagamentos, já quecom essa situação tornava-se impossível adquirir as divisasnecessárias para a realização das transações acima citadas.

Nesse sentido, como demonstrou Nilson Araújo de Souza,abriram-se duas alternativas para que os países dependentesenfrentassem a crise: o chamado ‘ajuste estrutural’, queconsistia na adoção de políticas monetaristas que visavam forçara contração da economia e que tinham como objetivo liberarexcedentes exportáveis e diminuir as importações, permitindo amanutenção de elevados superávits comerciais, quepossibilitariam a aquisição de divisas necessárias para opagamento da enorme dívida externa; ou o enfrentamento dadependência, com o Estado aumentando os investimentospúblicos, auxiliando a substituição de produtos importados porprodução interna, dando preferência ao capital nacional,regulamentando melhor a atuação do capital estrangeiro eadotando políticas que visassem diminuir a concentração derenda.

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Diante dessa situação [da crise internacional], queafetou a imensa maioria dos países da periferia, restoua eles duas alternativas: ou aumentavam asubordinação externa, adotando o chamado ‘ajusteestrutural’, eufemismo que disfarçava as políticas decontenção das economias nacionais a fim de aumentaro papel do capital estrangeiro e criar as condiçõespara o pagamento do ‘serviço’ da dívida externa; ouaproveitavam a crise para começar a trilhar umcaminho independente de desenvolvimento, adotandoum programa de substituição de importações em setoresbásicos e estratégicos e aumentando o papel do Estadona economia.69

O melhor exemplo histórico da adoção da primeiraalternativa foi o Chile do general Augusto Pinochet, que, em1973, com forte auxílio dos Estados Unidos, derrubou o governoda Unidade Popular, entregando, em seguida, a pasta econômicado país aos discípulos de Milton Friedman, economistaestadunidense da chamada Escola de Chicago, principalreferência para os monetaristas e neoliberais, inaugurando anegra história do neoliberalismo na região. Na Argentina, com oretorno dos militares ao poder, também foi adotada a política do‘ajuste estrutural’. As forças armadas uruguaias, que tomaramo Estado em 1973, também caminharam nesse sentido; optarampor exacerbar a dependência. Não por acaso, as ditadurasmilitares desses três países foram as mais repressivas esangrentas da América do Sul.

A segunda alternativa, de enfrentamento dadependência, teve como referência os governos de LuisEcheverría Alvarez (1970-76), no México, Omar Torrijos (1972-

69 SOUZA, Nilson Araújo de. A Longa Agonia da Dependência. EconomiaBrasileira Contemporânea (JK-FH). São Paulo: Alfa-Omega, 2004. PP.19-20.

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1979), no Panamá, Ernesto Geisel (1973-1979), no Brasil, e AndrésPérez (1974-1979), na Venezuela. Adotando políticasnacionalistas, esses governos também tiveram participaçãofundamental naquilo que ficou conhecido, na década de 1970,como ofensiva do Sul; ofensiva essa que só foi possível porquemuitos países do Terceiro Mundo, que também se confrontaramcom as duas alternativas citadas acima, optaram pela segunda,com alguns caminhando rapidamente ao socialismo.

Foi o presidente Echeverría Alvarez quem, apoiando-senos princípios do cardenismo70, propôs e conseguiu aprovarnas Nações Unidas a Carta dos Direitos Econômicos dasNações, origem da proposta e do debate sobre a Nova OrdemEconômica Internacional; Andrés Pérez nacionalizou o petróleoe impulsionou o fortalecimento da Organização dos PaísesExportadores de Petróleo (OPEP), entidade que teve um papelfundamental na política mundial da década de 1970; Omar Torrijosnegociou a devolução do Canal do Panamá, para que esteficasse sob a soberania do Estado panamenho, não mais dosEstados Unidos, além de iniciar importantes reformas sociaisno país; Geisel, com seu Segundo Plano Nacional deDesenvolvimento e a política externa do “pragmatismoresponsável e ecumênico”, tentou projetar a influência brasileiramundialmente, contrariando o interesse dos EUA.

No âmbito da América Latina, as políticas dessesgovernos culminaram, por proposta de Echeverría, na criaçãodo Sistema Econômico Latino-Americano (SELA), em 1975.Contando com a adesão de muitos países da região, os objetivosdesse sistema eram: coordenar posições governamentais nosforos internacionais; estimular a cooperação horizontal entreos países da região; apoiar os processos de integração latino-

70 Referência a Lázaro Cárdenas, que governou o México nos anos 1930e promoveu profundas reformas no país, com destaque para a ReformaAgrária.

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americanos e propiciar ações coordenadas entre eles. A criaçãodo SELA foi importante para demonstrar a força do projeto“integracionista” latino-americano, já que ocorreu logo emseguida à derrota das forças populares que defendiam o projetomais ambicioso do Grupo Andino, última expressão da grandevaga “integracionista” que teve inicio na década de 1930.Temporariamente adiado, o projeto regional latino-americanoestava pronto para ser retomado a qualquer momento.

Na década de 1970, nos Estados Unidos, a humilhantederrota no Vietnã, o escândalo de Watergate e as investigaçõesno Senado sobre as atividades de seus serviços de inteligência(FBI, CIA, NSA e etc.), no Church Committee (liderado pelosenador Frank Church), que expôs as diversas atrocidades queo governo dos EUA havia cometido na condução de sua políticaexterna, como a participação da CIA em vários golpes queperverteram regimes democráticos, em assassinatos de líderesestrangeiros e em atos de terrorismo no âmbito das operaçõesencobertas (covert actions), incitaram a populaçãoestadunidense a votar, nas eleições presidenciais de 1976, emum candidato mais liberal, pertencente ao Partido Democrata:Jimmy Carter.

Carter iniciou seu governo com a conhecida estratégiaque combinou uma contra-ofensiva retórica e material aospaíses do Sul e ao bloco socialista, ofensiva esta que cobriu, aomesmo tempo, as demandas da opinião pública interna paraadoção de uma política externa que deveria condizer com ossupostos valores democrático-liberais pregados pelo país.

Foi no âmbito dessa política que foi impulsionada aestratégia da Comissão Trilateral, que tinha como objetivo uniros Estados Unidos, a Europa e o Japão contra os desafioslançados pelo Terceiro Mundo e pelos países socialistas. Suabase era a defesa dos direitos humanos no campo internacional,com o propósito de desvincular os governos dos países centraisdos governos ditatoriais que eles haviam sustentado

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anteriormente, o que serviu, sobretudo, para tentar desprestigiare isolar os países periféricos que, no bojo da crise, optaram porenfrentar a dependência.

O mais importante é entendermos que a partir dessemomento os Estados Unidos passaram a não mais confiar nosgovernos militares, já que muitos destes passaram a defenderposições nacionalistas que não eram nem um pouco compatíveiscom as políticas de ‘ajuste estrutural’ que os países centraispretendiam impor ao Terceiro Mundo. Com isso, salvo algumasexceções, governos militares em todo mundo passaram a seafastar cada vez mais dos EUA.

De 1975 a 1978, o contexto econômico mundial, com ainvasão dos petrodólares nas praças financeiras dos países donorte e a conseqüente baixa na taxa internacional de juros,tornou-se um pouco mais favorável para os países periféricos,que passaram a poder tomar empréstimos baratos, o quediminuiu a pressão sobre seus balanços de pagamentos. Emcontrapartida, a possibilidade de tomar esses empréstimosacabou fazendo com que muitos países que haviam optadopelo enfrentamento à dependência, como Brasil, México eVenezuela, o fizessem sem arrostar diretamente algumasimportantes instituições que caracterizavam uma economiadependente. Foi possível, por exemplo, privilegiar e expandir osinvestimentos nacionais, privados e estatais, que tinham comoobjetivo a exploração do mercado interno, ao mesmo tempo emque se permitiu que as empresas estrangeiras seguissemrepatriando seus lucros sem maiores restrições de parte doEstado, já que os empréstimos internacionais baratos puderamcobrir esses países com as divisas necessárias para tanto. Isso,como se verá mais à frente, acabou prejudicando muito oposterior desenvolvimento desses países.

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A crise da dívida, a redemocratizaçãoe a nova onda integracionista

Em 1979, a crise econômica mundial recrudesceu. Com aascensão de Khomeini, no Irã, através da chamada RevoluçãoIslâmica, foi deflagrado o “segundo choque do petróleo”, comos preços desse produto alcançando um patamar muito elevado.Além disso, os Estados Unidos, diante da proposta de um novosistema monetário internacional de parte do FMI, passaram aaumentar abruptamente seus juros, estratégia que sustentavadois objetivos: de um lado, diante do acirramento da criseeconômica provocada pelo aumento nos preços do petróleo, osjuros serviram para atrair capitais de todo mundo para os EUA,cobrindo o déficit externo desse país e valorizando sua moeda;de outro, mais importante, visava retomar o controle da políticamonetária e cambial a nível internacional. Essa atitude contribuiupara aprofundar ainda mais a crise internacional, afetandodiretamente, como veremos, os países latino-americanos.

Em 1981, Ronald Reagan se tornou presidente dos EUA.Extremamente conservador, ele diminuiu os impostos eaumentou enormemente os gastos militares, o que gerou grandedéficit fiscal. Para cobrir esse déficit, sua administração optoupor aumentar ainda mais as taxas de juros, já que com issocapitais do mundo seguiriam entrando nos EUA, financiandosuas dívidas, que cresciam a cada dia.

Logo, com o enorme aumento da taxa de jurosestadunidense no governo Carter e sua persistência no Reagan,a dívida externa dos países do Terceiro Mundo em geral e daAmérica Latina em particular explodiu, atingindo proporçõesimpagáveis, deflagrando, como veremos adiante, a chamadacrise da dívida.

Do ponto de vista da política externa hemisférica, aadministração Reagan passou a atuar de maneira muito dura

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com relação à América Central e o Caribe, região onde a crise de1979-1983 impulsionou importante avanço das forçasprogressistas e revolucionárias, que tiveram na RevoluçãoSandinista Nicaragüense de 1979 sua principal expressão.Respaldado pela analise ultra-conservadora do Comitê de SantaFé, que via uma suposta penetração soviética no interior daregião durante o governo liberal de Carter, Reagan ordenou ainvasão de Granada, em 1983, lançou uma “guerra de baixaintensidade” contra o governo revolucionário da Nicarágua eas guerrilhas de El Salvador e pressionou fortemente o governodo primeiro ministro Forbes Burnham, da Guiana, o governo deMichel Manley, da Jamaica, bem como o governo panamenho,sobretudo por conta da questão do Canal do Panamá, que empoucos anos não deveria mais ser controlado pelos EUA.

Essa política intervencionista dos Estados Unidos naAmérica Central e no Caribe acabou propiciando uma rearticulaçãopolítica dos países democráticos da América Latina em torno doGrupo Contadora, criado em 1983 e que, com a participação doMéxico, Venezuela, Colômbia e Panamá, buscava a pacificaçãoda América Central e do Caribe sem a ingerência de Washington,contando com forte apoio das forças políticas liberais, social-democratas e socialistas internacionais, o que favoreceu econsolidou a relação da América Latina com outras regiões doplaneta sem que houvesse a tradicional tutela dos EUA.

Na América do Sul, no inicio de 1982, antes do defaultmexicano fazer emergir a crise da dívida, ocorreu outro importantefato que contribuiu para afastar os países latino-americanosdos Estados Unidos. O governo militar argentino, com LeopoldoGaltiere na presidência, acossado por pressões domésticas querecrudesciam, devido à depressão econômica e o caráterextremamente repressivo do regime, decidiu enviar suas tropaspara as Ilhas Malvinas, com o objetivo de recuperar a soberaniasobre um território que havia sido ocupado há mais de um séculopelos britânicos.

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Os militares argentinos acreditavam que, por teremexcelentes relações com o governo Reagan, inclusive tendodado apoio às intervenções dos Estados Unidos na AméricaCentral, esse país conteria a Grã-Bretanha para que nãoocorresse uma guerra. No entanto, isso não aconteceu. Alémde não conseguirem conter os britânicos, que enviaram umaexpedição militar para recuperar o controle sobre as ilhas, osEUA os apoiaram abertamente, dando, inclusive, respaldologístico para suas operações militares. Na guerra, a Grã-Bretanha recuperou suas Falklands (como os ingleses chamamas Malvinas) e a Argentina saiu humilhada, com a atuação dosEstados Unidos soando como alta traição em toda AméricaLatina. Preferindo sustentar seus compromissos com a OTAN eapoiar o governo de Thatcher, Washington, após 159 anos,jogou a Doutrina Monroe na lata de lixo da história, mesmo elaestando institucionalizada no Tratado Interamericano deAssistência Recíproca (TIAR).

No final de 1982, o México, em estado de insolvênciaexterna, declarou a moratória. Como a situação da maioria dospaíses da América Latina não era muito diferente da mexicana,os bancos privados internacionais, que haviam feito osempréstimos durante a segunda metade da década de 1970,suspenderam qualquer tipo de novas operações com essespaíses, o que os impediu de fazerem a rolagem da dívida.

Restaram, novamente, duas alternativas aos países daregião:

1) ou recorriam às instituições financeiras públicasmultilaterais (FMI e Banco Mundial) que ofereceramcréditos de emergência em troca do comprometimentodos devedores de que estes adotariam os ajustesnecessários para garantir o pagamento das dívidas – ofamoso ‘ajuste estrutural’, que consistia em restringir aomáximo a demanda para provocar a diminuição dasimportações, ao mesmo tempo em que eram liberados

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excedentes exportáveis que garantiriam a aquisição dasdivisas necessárias para o pagamento das dívidas;

2) ou declaravam a moratória da dívida externa eaprofundavam o modelo autônomo de desenvolvimentoda economia, aumentando os investimentos na economiae desenvolvendo o setor de bens de capital, para evitarficar a mercê das turbulências internacionais.

A adoção da primeira alternativa trouxe como resultadoo aumento do apoio popular à aceleração da transição dosregimes ditatoriais à democracia; transição que se revelou umprocesso complexo e contraditório: de um lado, havia forte apoioda população para o fim dos regimes de exceção, com aesperança de que o retorno à democracia favorecesse a inclusãosocial e a adoção das reformas sociais adiadas com os golpesmilitares; de outro, os Estados Unidos e os países centraistambém enxergaram na redemocratização a oportunidade defortalecer os partidos e as forças políticas que defendessemprojetos econômicos mais liberais, já que os militares latino-americanos, sobretudo depois da política de direitos humanosde Carter e da “traição das Malvinas” de Reagan, salvo algumasexceções, tendiam a se afastar cada vez mais de Washington,inclusive oferecendo resistência à adoção de políticasneoliberais. Foi em meio a essa contradição, engendrada noprocesso de redemocratização, que teve inicio a terceira vaga“integracionista” latino-americana.

Na Argentina, foram realizadas eleições em 1983, com avitória de Raúl Alfonsín. No Uruguai, as eleições foram em 1984,com Julio Maria Sanguinetti sendo eleito. No Brasil, em 1984,foi eleito, indiretamente, o primeiro presidente civil desde o golpede 1964, Tancredo Neves, que, no entanto, morreu em 1985,antes de assumir o cargo, com o vice, José Sarney, tendoassumido em seu lugar.

A contradição entre a redemocratização da América doSul e as intervenções militares e as políticas duras dos EUAcom relação à América Central e o Caribe tornou-se obvia,

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fazendo dessa questão um ponto chave da nova onda“integracionista” latino-americana. A Argentina, o Brasil e oUruguai, agora governados por civis, junto com o Peru,formaram, em 1985, um Grupo de Apoio à Contadora, somando-se ao México, à Venezuela, à Colômbia e ao Panamá na tentativade pressionar no sentido da pacificação da América Central edo Caribe. A articulação entre esses oito países deu origem, em1986, no intuito de se aprofundar a cooperação política e odebate sobre a América Latina, ao Grupo do Rio. Foi esse Grupoque promoveu, em 1988, no México, a primeira reunião da históriaentre todos os chefes de Estado latino-americanos sem apresença dos Estados Unidos, bem como, posteriormente, arealização da Conferência dos países Ibero-Americanos, quelançou uma importante ponte de negociação entre a AméricaLatina e a Europa (particularmente Espanha e Portugal).

Em 1984, os chanceleres e ministros da economia daArgentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, México,Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela, reunidos emCartágena, na Colômbia, criaram uma instância permanente dedebates sobre a questão da dívida externa, declarando, inclusive,a corresponsabilidade (algo que os países centrais não admitiam)dos países desenvolvidos e seus bancos pelo problema dadívida. Essa instância, que foi impulsionada pela criação dacomissão comum SELA-CEPAL, teve como tema central apossibilidade de se formar um pool de devedores para negociarcom o pool dos bancos credores (que, evidentemente, preferiamnegociar com cada país individualmente). Apesar de não tertido sucesso em realizar uma negociação conjunta dos paíseslatino-americanos para equação do problema da dívida externa,ela tornou-se outro exemplo importante de cooperação entre ospaíses da região.

Foi o eixo de integração Brasil – Argentina o principalmotor do “integracionismo” da década de 1980. A cooperaçãoentre esses dois países ganhou fôlego com o apoio informal(mais considerável) do governo brasileiro ao argentino na Guerra

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das Malvinas. Além disso, os problemas da dívida externa e osprocessos simultâneos de redemocratização tambémcontribuíram para fortalecer os laços de amizade entre os doisvizinhos. Nesse sentido, Sarney e Alfonsín objetivaramconsolidar uma aliança estratégica, tendo a Ata de IntegraçãoBrasil-Argentina, de 1986, formalizado esse objetivo. De acordocom Moniz Bandeira71, os doze protocolos da Ata de Integraçãoreferiam-se basicamente à intensificação no intercâmbio de bensde capital, à criação de mecanismos de compensação dedesequilíbrios comerciais, à expansão gradual, equilibrada esustentada do intercâmbio bilateral, à cooperação na área deciência e tecnologia (nuclear, militar, biotecnologia etc.) e algunsoutros acordos secretos, sobre aviação militar e energia atômica.

A determinação com que Alfonsín e Sarney trataram depromover a integração econômica entre os dois paísesfoi tanta que em apenas um ano se encontraram trêsvezes, (duas com a participação do presidente doUruguai, Julio Maria Sanguinetti). E seus esforços paraconstruir o ‘zollverein’, a partir de um projeto integradode produção, comércio e desenvolvimento tecnológicodo setor de bens de capital, fornecimento de trigo,complementação do abastecimento alimentar eexpansão gradual, sustentada e equilibrada docomércio, com apoio à exportação do país deficitário,visou possibilitar que o Brasil e a Argentinaalcançassem maior autonomia e independência emrelação ao mercado mundial, mediante crescenteunificação de seus espaços econômicos. A própriaênfase dada à integração do setor de bens de capital,coração da indústria pesada e matriz do

71 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Brasil, Argentina e Estados Unidos:conflito e integração na América do Sul. Da Tríplice Aliança ao Mercosul.Rio de Janeiro: Revan, 2003.

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desenvolvimento tecnológico, mostrou o propósito deaumentar, particularmente, a capacidade de auto-sustentação e auto-transformação de suas economias,estabelecendo o ciclo completo da reproduçãoampliada do capital, de forma independente, com aunificação dos dois mercados.72

Logo, percebe-se que o objetivo básico do projeto eraconsolidar uma firme aliança entre os dois países maisimportantes da América do Sul; aliança essa que deveriaenfrentar a dependência com mais vigor. A própria idéia decentrar o projeto na cooperação no setor de bens de capital, omais importante a ser desenvolvido para que se quebre o ciclode reprodução ampliada da dependência, já demonstrou atomada de consciência de que a melhor maneira de fortalecerum projeto de desenvolvimento autônomo, baseado noprogresso tecnológico próprio e na melhoria do padrão de vidada massa da população, em detrimento da importação detecnologia e da superexploração da força de trabalho, é adotandopolíticas econômicas e sociais conjuntas que visem ampliar omercado para os produtores da região e combater a açãopredatória do capital internacional.

Em 1988, dando continuidade ao projeto de integração,Brasil e Argentina firmam o Tratado de Integração, Cooperaçãoe Desenvolvimento, com os dois países se comprometendo aconstituir um espaço econômico comum, mediante a remoçãogradual, em dez anos, de todos os obstáculos tarifários e não-tarifários à circulação de bens e serviços, bem como harmonizare coordenar suas políticas aduaneiras, monetária, fiscal, cambial,agrícola e industrial.

Apesar disso, como vimos, paralelamente a esseprocesso de integração, havia uma forte pressão dos paísescentrais para que os países latino-americanos adotassem os

72 BANDEIRA, op. cit., pp. 464-465.

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“ajustes” econômicos necessários para o pagamento de suasdívidas externas. Nesse sentido, com as dívidas e os jurosnaquele patamar, era inviável pagá-los e adotar políticasautônomas de investimento e ampliação do mercado internoque promoveriam a integração econômica e social desejadas.Com isso, ao não declararem moratória (ou ao fazê-lo apenasquando já não havia mais como pagar as dívidas, com asreservas no limite), os governos latino-americanos optaram poradotar políticas monetárias restritivas e desvalorizar a moeda,tudo com o objetivo de diminuir ao máximo as importações eaumentar as exportações, o que levou à intensa aceleração dainflação, a um grande aumento da dívida interna, da exploraçãoda força de trabalho, da pobreza e da exclusão social; ou seja,promoveu a desintegração econômica e social internas.

Tudo isso contribuiu para tornar a América Latina o palcode um verdadeiro clima de caos econômico e social no mesmomomento em que o governo republicano dos Estados Unidospassou a perceber a impossibilidade de continuar as políticasde juros altos e dólar supervalorizado que diminuíam acompetitividade de suas empresas e aumentavam enormementesuas dívidas e seu déficit comercial.

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“Consenso de Washington”,“Nova Ordem Mundial” e

“Iniciativa para as Américas”

A reversão da política econômica estadunidensenecessitava, para alcançar melhores resultados, da adoção depolíticas específicas de parte dos demais países, especialmentedo Terceiro Mundo e da América Latina. Nesse sentido, osEUA passaram a pressionar os países latino-americanos avalorizarem suas moedas e a liberalizarem seu comércio exterior,

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medidas que também estavam inseridas dentro da lógicaneoliberal, mas que eram contrárias às políticas anteriores dedesvalorização cambial e restrição às importações; o que, somadoà difusão da idéia, patrocinada pelos grandes veículos decomunicação, de que “não havia alternativas” e de que o únicomeio de alcançar a “modernidade” e ingressar no PrimeiroMundo era através de políticas “pró-mercado” (ou melhor, pró-monopólios, de preferência estrangeiros), favoreceu a vitórianas eleições de partidos e políticos que tinham projetosconservadores.

Vale lembrar que a fragilidade em que se encontrava obloco socialista, devido à adoção de políticas cada vez maisconservadoras no seu processo de “reforma”, tambémfavoreceu essa propaganda, sobretudo depois da queda doMuro de Berlim e a posterior dissolução da União Soviética.

O primeiro governo latino-americano democraticamenteeleito a implantar com ortodoxia as políticas neoliberais foi o daBolívia, a partir de 1986, com Victor Paz Estensoro na presidência.Estensoro, sob orientação do economista norte-americanoJeffrey Sachs, com o objetivo de combater a hiperinflação,promoveu a abertura econômica, a privatização e a contençãoda demanda. Como disse Eduardo Galeano: “uma demandaexcessiva, nestas terras de famintos, seria a culpa da inflação”73.Além de Estenssoro, outros governantes neoliberais forameleitos: Carlos Salinas de Gotari, em 1988, no México; CarlosAndrés Pérez (em nova versão), em 1989, na Venezuela; CarlosSaúl Menem, em 1989, na Argentina; Fernando Collor de Melo,em 1990, no Brasil; e Alberto Fujimori, também em 1990, no Peru.

Em 1989, com a queda do Muro de Berlim, os EstadosUnidos, sob a presidência de George Bush (pai), iniciaram acondução das políticas que teriam como objetivo manter a paz

73 GALEANO, op. cit., p. 239.

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dos cemitérios da chamada Nova Ordem Mundial. Segundo osestadunidenses, novas ameaças pareciam afrontar a liberdadee a democracia. Para a América Latina, foi de particularimportância a citação do narcotráfico e do terrorismo comoalguns dos novos inimigos. Com a enorme exclusão socialcausada pelo modelo econômico dependente, somado àintervenção da CIA, que em meados da década de 1980 passoua facilitar a venda de drogas por parte de paramilitares de extremadireita, para que estes dispusessem de recursos para se armarcontra as guerrilhas de esquerda, essas duas atividadesadquiriram certa importância na América Latina.

Nesse sentido, os Estados Unidos passaram a dispor deoutro pretexto para manter uma ativa participação militar naregião. O exemplo que melhor caracterizou essa hipocrisia políticafoi a Operation Blue Spoon, com os EUA mobilizando cerca de25 mil soldados, em dezembro de 1989, para intervir no Panamáe prender o chefe de governo desse país, o general ManuelAntônio Noriega, acusado de tráfico de drogas. Curiosamente,Noriega havia trabalhado durante anos para a CIA, inclusivedurante a guerra contra o governo sandinista da Nicarágua.Além disso, o real objetivo dessa expedição foi impedir atransferência da soberania do Canal do Panamá, que pertenciaaos EUA, ao Estado panamenho, algo que estava previsto paraacontecer em janeiro do ano seguinte e contava com o apoio dogeneral Noriega.

No âmbito econômico, foi em março de 1989 que oSecretário do Tesouro dos Estados Unidos, Nicholas Brady,apresentou um plano para que os países latino-americanospudessem renegociar suas dívidas. A estratégia desse planoera vincular a renegociação das dívidas externas à adoção, porparte dos países devedores, de todo um arsenal específico demedidas econômicas (justamente aquelas que os EUAnecessitavam para reverter sua política econômica, comodemonstramos).

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Coincidentemente, em novembro daquele mesmo ano,reuniram-se, na capital dos EUA, funcionários desse governo edos organismos financeiros internacionais ali sediados – FMI,Banco Mundial e BID -, todos “especialistas” em economialatino-americana. Nessa reunião, organizada pelo Institute forInternational Economics, os “especialistas” tiveram comoobjetivo fazer uma avaliação das reformas econômicasempreendidas na América Latina. Essa avaliação fez com queeles chegassem a um consenso, elogiando e recomendando aadoção de diversas políticas neoliberais.

Foi justamente a adoção das medidas recomendadas poresse “Consenso de Washington” que o FMI e o Banco Mundialvincularam como exigências à renegociação da dívida latino-americana. Recomendações que consistiam em: disciplina fiscal(desconsiderando o pagamento de juros, é claro); mudanças dasprioridades do gasto público (prioridade ao pagamento dos jurose das dívidas em detrimento do investimento na economia e dosgastos que objetivassem o bem estar social); reforma tributária;taxas de juros reais positivas; taxas de câmbio de acordo comas leis do mercado (na realidade, até as crises da segunda metadeda década de 1990 se incentivava a supervalorização da moeda);liberalização do comércio; fim das restrições aos investimentosestrangeiros; privatização das empresas públicas;desregulamentação das atividades econômicas (sobretudo domercado de trabalho, a fim de baratear os custos com mão deobra); e garantia dos direitos de propriedade.

Outro fato importante foi o lançamento, em 1990, pelopresidente dos Estados Unidos, George Bush (pai), da Iniciativapara as Américas, com o objetivo de convidar os países daregião a participarem das negociações que formariam uma Zonade Livre Comércio do Alaska à Terra do Fogo (do extremo norteao extremo sul da América)74. Quando a competição

74 Portanto, segunda tentativa dos EUA imporem sua hegemonia na regiãoatravés de uma Zona de Livre Comércio. A primeira, como demonstramos,ocorreu em 1889. Nesse sentido, é interessante notar que tanto a primeira(1889) quanto a segunda (1990) propostas surgiram em períodos decompetições interimperialistas.

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interimperialista se acirra, os grandes capitais em disputa tendema tentar institucionalizar seu predomínio sob as regiõesperiféricas, em particular nas localizadas no entorno geográficomais próximo de seus centros de acumulação. Nesse sentido, aidéia subjacente à criação dessa zona de livre comércio erainstitucionalizar a integração dos países latino-americanos aogrande capital estadunidense, impedindo, ao mesmo tempo, acriação de um eixo de poder alternativo na região (que poderiaser articulado sob a liderança do Brasil e da Argentina) e aintegração desses países ao grande capital de alguma potênciaimperialista rival dos Estados Unidos. Com isso, Washingtongarantiria um amplo mercado para seus produtos e importantesreservas de mão-de-obra barata e matérias primas estratégicasque seriam extremamente úteis para aumentar suas vantagensvis-à-vis a Europa, o Japão e qualquer outro país que possaameaçar a preponderância norte-americana no sistema mundialcapitalista.

Como resposta à iniciativa do presidente Bush, Argentinae Brasil articularam, junto com Paraguai e Uruguai, a criação doMercado Comum do Sul (MERCOSUL), que foi estabelecidoem março de 1991, pelo Tratado de Assunção. O aspecto maispositivo da criação desse bloco foi a assinatura, em junho de1991, do Acordo do Jardim das Rosas, que permitiu que ospaíses do Mercosul negociassem em conjunto a questão daformação de uma zona de livre comércio nas Américas,impedindo que Washington manobrasse no sentido de realizaracordos econômicos bilaterais com os países do Cone Sul.

No entanto, é preciso destacar que o Mercosul tambémserviu aos interesses dos governos neoliberais. Collor e Menem,sabendo que era impossível, no curto prazo, assinar um acordode livre comércio com os EUA, optaram por aproveitar o eixo decooperação criado entre os dois países na década de 1980 paraacelerar o processo de abertura econômica, integrando, também,Paraguai e Uruguai ao projeto. Já em 1990, antes da criação doMercosul, os dois presidentes haviam decidido precipitar para31 de dezembro de 1994 os prazos acordados no Tratado de

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Integração, Cooperação e Desenvolvimento para aconformação do Mercado Comum Brasil-Argentina. Logo, aparceria estratégica pautada na integração física e nodesenvolvimento do setor de bens de capital, com aumentogradual, flexível e equilibrado do intercâmbio comercial,transformou-se em um projeto meramente “comercialista”, cujoúnico objetivo parecia ser a aceleração e a remoção de barreirastarifárias e não tarifárias.

Mesmo sem institucionalizar qualquer tipo de integraçãocom o grande capital estadunidense, muitos países latino-americanos, ao adotarem as políticas sugeridas pelo Consensode Washington, exacerbaram a dependência, o que levou àdesindustrialização, ao atraso tecnológico, ao aumento dodesemprego, da marginalização social, da fome e da miséria.

O México, atraído pela economia de seu poderoso vizinhodo norte, institucionalizou sua integração com o grande capitaldos EUA. Em 1992, esse país optou por se tornar membro doAcordo de Liberalização Econômica, que envolvia EstadosUnidos e Canadá desde 1988, e que se tornou, com sua adesão,o North America Free Trade Agreement (NAFTA), que entrouem vigor em 1994. Foi nesse ano (1994), inclusive, que o ExércitoZapatista de Libertação Nacional se levantou em protesto contraa implantação do NAFTA e que explodiu a “crise da tequila”(crise mexicana).

O anuncio da criação do NAFTA, em 1992, chegou aesboçar uma resposta da América do Sul, particularmente doBrasil, que, sendo presidido por Itamar Franco, que não tinhasimpatia pelo projeto neoliberal, anunciou a proposta de criação,em 1993, de uma Área de Livre Comércio da América do Sul(ALCSA). O projeto, no entanto, depois de Itamar ser sucedidopor Fernando Henrique Cardoso, acabou virando uma carta deintenções.

De 9 a 11 de dezembro de 1994 ocorreu, em Miami, aPrimeira Cúpula das Américas, quando os governos neoliberaislatino-americanos aceitaram iniciar as negociações para a

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constituição de uma área de livre comércio hemisférica, a famosaALCA (Área de Livre-Comércio das Américas), que deveria serconcluída até 2005. Esse projeto, por seu significado, podendoinstitucionalizar e exacerbar a dialética que gera a contradiçãoentre integração de um país com o grande capital estrangeiro ea sua desintegração econômico-social internas, vemenfrentando cada vez mais resistência. A crise do Consenso deWashington, iniciada em 1994 e aprofundada em 1997-98, temfeito as idéias do projeto “integracionista” latino-americanoressurgirem, levando, como veremos no próximo capítulo, a umaimportante luta política.

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CAPÍTULO3

A CRISE DO NEOLIBERALISMOE O NOVO CONTEXTOLATINO-AMERICANO

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Oprocesso que levou à ascensão de partidos deesquerda e centro-esquerda na América Latinaestá profundamente vinculado às crises daspolíticas do “Consenso de Washington”, as quais,

como bem demonstrou Theotônio dos Santos75, representarama última fase do auge financeiro que teve início em 1973 e foiexacerbado durante quase toda a década de 1980, na esteira doespetacular aumento dos juros promovido a partir da gestãoCarter e da irresponsável política econômica de Reagan.

75 SANTOS, Theotônio dos. Do Terror à Esperança. Auge e declínio doneoliberalismo. Aparecida: Idéias & Letras, 2004.

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A crise dos EUA e o“Consenso de Washington”

Vimos, no segundo capítulo deste trabalho, que atentativa de retomada da hegemonia estadunidense baseou-se,sobretudo, na política econômica de Reagan, a qual, ao diminuira arrecadação do Estado, através da diminuição dos impostos,e aumentar espetacularmente os gastos bélicos, gerou um déficitfiscal colossal que se desdobrou em um aumento da demandamundial, com o seu conseqüente déficit comercial. Os déficitsestadunidenses transformaram diversos países, em função dossuperávits que passaram a acumular, sobretudo Japão eAlemanha, em importantes potências financeiras.

Como os déficits gêmeos dos EUA precisavam sercobertos de alguma maneira, esse país elevou ainda mais suataxa de juros (que já havia sofrido uma brusca elevação em1979), garantindo também uma sobrevalorização do dólar,condições que tornaram a compra de títulos da dívida públicados EUA uma aplicação extremamente rentável para os dólaresque haviam sido acumulados pelos países superavitários. Alémdisso, o aumento dos juros provocou a elevação, na mesmaproporção, da dívida externa dos países periféricos, fazendocom que o superávit comercial que esses países conquistarama duras penas fosse transferido diretamente para os paísescentrais, sobretudo os EUA, na forma de pagamento dos jurosda dívida, que também contribuíram para cobrir os déficitsdaquele país.

Essa política gerou um boom especulativo totalmenteartificial que se manifestou de diversas formas: especulaçãocom os títulos de dívidas públicas; fusões de empresas;especulação no mercado de ações em função das fusões;especulações imobiliárias e etc.

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Na América Latina, esse boom especulativo afetou demaneira extremamente negativa suas economias. A valorizaçãoartificial de ativos (valorização do dólar, altas taxas de juros,elevação no preço de imóveis e valorização de títulos públicosemitidos por dívidas públicas crescentes) provocou um aumentoespetacular na dívida externa dos países latino-americanos, oque culminou na conhecida crise da dívida da década de 1980.Com isso, ao optarem por pagar os juros inflados da dívidaexterna, os países da região passaram a exportar em massa seusexcedentes econômicos para os países centrais. Esse foi oobjetivo do chamado “ajuste estrutural” (como vimos nocapítulo anterior), que consistia na restrição da demanda paraque não houvesse muitas importações (o que era feito atravésde políticas monetária e fiscal restritivas), bem como para quefossem liberados excedentes exportáveis que garantiriam aaquisição das divisas necessárias para o pagamento das dívidas.Além disso, foram dados grandes incentivos fiscais e cambiaisao setor exportador.

A combinação de valorização internacional de ativos,desvalorização das moedas nacionais e altos juros internosprovocou um desequilíbrio gigantesco nas economias dospaíses latino-americanos: situação próxima à hiperinflação;intensa concentração de renda; aumento da dívida interna e dadependência externa. Tudo isso em um momento políticoextremamente delicado, pois a crise econômica contribuiu parafortalecer os movimentos de oposição aos regimes militares,favorecendo a redemocratização. Os partidos de oposição àsantigas ditaduras, eleitos para darem continuidade às reformasadiadas pelos golpes militares, ao não enfrentarem a dependênciaexterna, se viram obrigados a adotar políticas econômicas querapidamente se tornaram impopulares, abrindo espaço, comoveremos, a uma onda conservadora.

É preciso destacar, entretanto, que toda essa euforiaespeculativa internacional não podia durar muito tempo, poisestava baseada em uma política insustentável dos Estados

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Unidos: ao aumentar a taxa de juros e valorizar o dólar, as dívidase os déficits estadunidenses aumentavam ainda mais, em umefeito cascata que passou a gerar desconfianças nos mercadose nos países que financiavam esse processo. Isso durou atéoutubro de 1987, quando se dá a maior crise financeira desde1929. Essa crise, a despeito da intervenção dos bancos centraise dos governos, iniciou um processo de desvalorização dosativos que se efetivou no início da década de 1990.

Vimos, nos capítulos anteriores, que o governorepublicano dos EUA percebeu, em seguida à crise, que achamada reaganomics era inviável no longo prazo. Era precisodiminuir os déficits, desvalorizar o dólar e diminuir as taxas dejuros. Isso, além de causar a recessão mundial de 1989-1994, jáque o crescimento da década de 1980 tinha o déficit do tesourodos Estados Unidos como base, aumentou a pressão sobre oresto do mundo, sobretudo dos países periféricos (depois de1989 com a inclusão dos antigos países socialistas) e da AméricaLatina, para que mudassem suas políticas econômicas.

Foi nesse contexto que, depois da maioria dos países daAmérica Latina ter entrado em estado de insolvência externa edeclarado moratória, o Secretário do Tesouro dos EUA, NicholasBrady, lançou o plano de renegociação das dívidas externas.Essa renegociação estaria condicionada, evidentemente, àadoção de uma série de medidas recomendadas pelasinstituições financeiras multilaterais – FMI e Banco Mundial -,medidas estas que ficaram conhecidas por haverem sidorecomendadas em importante encontro de economistasorganizado pelo Institute for International Economics, emWashington, como “Consenso de Washington”76.

É interessante mencionar que as políticas “sugeridas”pelo Consenso de Washington combinavam perfeitamente comas novas prioridades da política econômica estadunidense e

76 Para mais detalhes acerca do “Consenso de Washington”, ver capítuloanterior.

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com as necessidades do capital especulativo internacional que,devido à queda na taxa de juros dos países centrais e àdesvalorização do dólar, necessitava urgentemente de novoscampos de aplicação, o que foi em parte coberto pelos chamados“emergentes” que adotaram as políticas do “Consenso”. Nessesentido, ficou claro que o objetivo do “Consenso” era tornar ospaíses periféricos o refúgio do capital especulativo internacionalem um contexto de crise das políticas neoliberais nos paísescentrais, o que impulsionaria, ainda, um processo de destruiçãode parte do aparato produtivo do Terceiro Mundo, o que foicombinado com a desnacionalização de suas economias.

É importante lembrar o que dissemos no capítulo anterior,ao afirmarmos que as medidas sugeridas pelo “Consenso deWashington” – valorização das moedas nacionais, aberturacomercial, privatizações, desregulamentação econômica e etc.–, que pareciam justamente o contrário das políticas de ajusteestrutural para o pagamento da dívida externa - que levaramnossas economias ao caos na década de 1980 -, beneficiaram,junto com o apoio de um aparato publicitário gigantesco,sustentado pelos veículos de comunicação em massa, as forçasconservadoras que prometiam a “modernização” de nossassociedades, isto é, nos inserir no Primeiro Mundo.

Em um primeiro momento, esses políticos conquistaramimenso prestígio. A abertura comercial e a valorização cambialaumentaram enormemente o poder de compra de produtosestrangeiros, sobretudo o das classes média e alta, que ademaisde ficarem iludidas com as “baratas” mercadorias de além-mar,aproveitaram o câmbio favorável para realizar viagensinternacionais. Os jovens economistas que coordenavam essasnovas políticas, todos com pós-graduação nas “prestigiosas”universidades dos Estados Unidos, passaram a ser apresentadoscomo gênios pelos veículos de comunicação, como gurus deuma “ciência” (que eles acreditam ser exata!) que supostamenteequacionaria todos os problemas de nossos países através daadoção de medidas técnicas “cientificamente” comprovadas

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por gráficos e tabelas que expressavam a tendência universalde todos os fatores humanos ao equilíbrio.

Foi nesse momento que o terrorismo intelectual impostopelo chamado pensamento único subsidiou uma criminosafalsificação da história de diversos países da região: nossosubdesenvolvimento teria sido causado por políticaseconômicas autárquicas e estatizantes. Essa falsificaçãohistórica teve sua expressão mais radical dentro dos própriosantigos núcleos nacional-democráticos de países comoArgentina e México: no Partido Justicialista (peronista) deMenem, acreditava-se que a Argentina deveria se reincorporarao Primeiro Mundo (diziam que no começo do século XX aArgentina fazia parte do Primeiro Mundo!), e que para tantodeveriam copiar suas políticas econômica e externa daquelefinal de século XIX e começo do XX, se alinhandoautomaticamente à nova potência hegemônica; no PRI deSalinas, a Revolução Mexicana foi desqualificada, exaltando-seas supostas qualidades do governo do ditador Porfírio Díaz (!).

Poucos ousavam dizer, na primeira metade da década de1990, que a queda da inflação de quatro dígitos se deveu naverdade à recessão global de 1989-1994 - quando finalmente osativos supervalorizados pelo boom especulativo da década de1980 entraram em queda - e às suicidas políticas de aberturaeconômica e sobrevalorização cambial, que inundaram a regiãode mercadorias estrangeiras que partiam de seus países deorigem em uma conjuntura deflacionária.

Entretanto, o suposto equilíbrio alcançado pelas políticasdo “Consenso de Washington”, baseado nas três âncoras(cambial, monetária e fiscal) que se auto-sustentavam, sópoderia vigorar enquanto durassem as divisas acumuladasdurante a suspensão do pagamento da dívida externa e o capitalfinanceiro internacional adentrasse nos países que adotavamessas políticas em busca dos juros altos ou pudesse se apropriardo seu patrimônio público.

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A crise do neoliberalismoA situação era insustentável. A sobrevalorização das

moedas nacionais, a abertura cambial, as altas taxas de juros e aalta carga tributária faziam com que a concorrência dos produtosestrangeiros fosse extremamente prejudicial, gerandodesestímulo aos investimentos produtivos e a conseqüenterecessão, com quebra de empresas e desemprego em massapressionando para uma diminuição na arrecadação. Como o cortenos gastos e investimentos não era suficiente para cobrir os jurosda dívida, era necessário tomar novos empréstimos, queaumentavam ainda mais a dívida e pressionavam o orçamento.

Com isso, era evidente que, como havia grande entradade capital financeiro especulativo internacional em busca daselevadas remunerações dos juros das dívidas, o que se somavaà grande quantidade de importações, a crise final dessaspolíticas se manifestaria nas contas externas. Foi isso o queaconteceu no México (1994), na Ásia (em 1997), na Rússia (1998),no Brasil (1999) e na Argentina (2001).

Deve-se dizer que essas crises também foraminfluenciadas pela situação de desequilíbrio da economia

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A âncora cambial, somada à abertura comercial, gerouum enorme déficit na balança de comércio exterior. Esse déficitfoi coberto pelas divisas que vinham sendo acumuladas e pelaâncora monetária que, com juros estratosféricos em umaconjuntura de desvalorização dos ativos mundiais, atraiu ocapital especulativo internacional. O pagamento das enormestaxas de juros foi garantido através da âncora fiscal, com oaumento da arrecadação do Estado e a diminuição nos gastos einvestimentos públicos, reservados para o pagamento dos juros– o chamado superávit primário que escondia o escandalosodéficit orçamentário.

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estadunidense, que se manifestou nas contraditórias medidasque os EUA necessitaram tomar para manter artificialmente suahegemonia no sistema mundial capitalista, ou seja, para garantira vinculação dos outros centros de poder ao dólar e ao seugigantesco mercado consumidor, o que também permitiu asustentação de seu poderio militar.

Vimos, no segundo capítulo desse trabalho, que existeuma tendência à baixa desvalorização do dólar (o que está ligadoà dificuldade dos outros países centrais superarem as políticasneoliberais), o que gera, em função de sua insustentabilidade,ciclos constantes e sucessivos de correções graduais naeconomia mundial - com oscilações no valor do dólar emudanças nas taxas de juros internacionais –, impulsionadoresde uma instabilidade constante nos mercados financeiros, oque contribuiu para precipitar a crise das políticas do “Consensode Washington”.

O caso das crises da segunda metade da década de 1990foi emblemático: o Japão, que teve sua moeda valorizada noinício da década de 1990, decidiu aproveitar a necessidade derenovação dos títulos da dívida pública dos Estados Unidosem 1996 e forçou uma queda do yen (de 82 por dólar para 140por dólar). Isso, evidentemente, acarretou um aumentoconsiderável no déficit comercial estadunidense. Com isso, osEUA optaram por aumentar sua taxa de juros, atraindo capitaisde todo mundo. Essa atração dos capitais aconteceu em ummomento em que as economias “emergentes” se encontravamcom suas reservas em queda, já que suas moedas estavamsupervalorizadas. A rápida queima das reservas desses paísessinalizou ao mercado a impossibilidade da manutenção do valorde suas moedas, acelerando todo o processo. Foi esse o panode fundo da deflagração das crises financeiras asiática, russa,brasileira e, acrescentados outros fatores, argentina.

É interessante notar que essas crises favoreceram aindamais o capital internacional em detrimento do nacional dos países

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que adotavam as políticas do “Consenso de Washington”. Asempresas desses países, que já tinham que arcar com jurosestratosféricos em função da âncora monetária (juros que, emalguns casos, como no Brasil, ainda tiveram violento aumentoem função da crise), viram suas dívidas em dólares aumentadaspela desvalorização, o que fez com que não restassemalternativas para muitas dessas empresas senão sua liquidação,em condições extremamente favoráveis para as empresastransnacionais que, por manejarem diferentes moedas em funçãode sua atuação global, estavam blindadas e muitas vezes atélucravam com a especulação sobre as crises cambiais. Issoexplica o aumento no fluxo de investimentos externos diretos(IEDs) para esses países no momento em que havia intensasaída de capital e forte desvalorização cambial77. O resultado foiuma maior desnacionalização da economia.

Essas crises destruíram completamente o prestígio dos“gurus” econômicos e das novas lideranças que prometiamlevar a “modernidade” aos países da América Latina. É certoque mesmo antes dessas crises as políticas do “Consenso deWashington” e as lideranças que as implementavam já vinhampassando por forte desgaste: amplos setores de nossassociedades (cientistas, engenheiros, professores, funcionáriospúblicos, empresários nacionais, trabalhadores da indústria edo campo, militares e etc.) viam seu papel e sua importânciasocial diminuindo naquele mundo vislumbrado por tecnocratasinúteis que acreditavam (será?) ser os portadores da verdadeabsoluta expressa na “ciência” que supostamente dominavam.As crises cambiais serviram para coroar esse desgaste. O“Consenso de Washington” entrou efetivamente em bancarrota,causando a desgraça política dos líderes que o implementaram.

77 Para mais detalhes sobre a relação entre as crises cambiais e adesnacionalização das economias dos países periféricos, ver capítulo 1 dolivro: SCHUTTE, Giorgio Romano. O elo perdido. São Paulo: AnnaBlume, 2004.

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É interessante notar como de “salvadores da pátria” ospolíticos do “Consenso” rapidamente se tornaram criminososda pior espécie, com acusações e condenações de todos ostipos: ligações com o narcotráfico; vendas ilegais dearmamentos; violações dos direitos humanos; corrupção e umainfinidade de outros crimes. Por sua importância no planejamentoestratégico-militar hemisférico, bem como por estar diretamenteligado às conseqüências da implementação de políticaseconômicas neoliberais na região, é importante citar o exemplodo narcotráfico. Sabemos que a economia informal em geral seagigantou na América Latina a partir dos anos 1980; entretanto,o caso do narcotráfico não se iguala a nenhum outro: a produçãoe exportação de coca chega a ser a principal atividade econômicade alguns países andinos. Deve-se dizer, inclusive, que essagigantesca economia ilegal se integrou harmoniosamente nosistema financeiro global, o que contribuiu muito para suaexpansão. O caso do Peru é bem elucidado por Chossudovsky:

..., grande quantidade de dólares originária danarcoeconomia foi canalizada para o câmbio negronas esquinas das ruas de Lima (el mercado Ocoña).Desde o governo Belaúnde (1980-1985), o BancoCentral usava periodicamente o mercado Ocoña parasuprir sua necessidade de reservas internacionais. Issosignifica que, para honrar as obrigações do serviço dadívida, o Peru depende da reciclagem dos narcodólaresno câmbio negro, estimando-se que em 1991 o BancoCentral tenha comprado nele cerca de 8 milhões dedólares por dia, dos quais grande parte se destinava atal fim.78

78 CHOSSUDOVSKY, Michel. A Globalização da Pobreza: Impactos dasreformas do FMI e do Banco Mundial. São Paulo: Moderna, 1999. P.200.

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E continua falando sobre o papel e os interesses do FMInesse esquema:

A lavagem do ‘dinheiro sujo’ também estava sendofortalecida pelas reformas do sistema bancário e doregime de câmbio patrocinadas pelo FMI, permitindoo ‘livre’ movimento de dinheiro dentro e fora do país.Esse fortalecimento da narcoeconomia serviu tambémaos interesses dos credores internacionais do Peruporque contribuiu para gerar as receitas em dólaresnecessárias para que o país honrasse suas obrigaçõesdo serviço da dívida.79

Vimos, no capítulo anterior, quando citamos o bizarrocaso de Noriega, que o tráfico internacional de drogas tornou-se um dos principais desafios à “Nova Ordem Mundial” deBush (pai), o que tem servido de desculpa para que os EstadosUnidos mantenham bases militares na América Latina. Qualqueranalista militar sabe, entretanto, que essas bases servem paraauxiliar possíveis operações militares com o objetivo de garantira “estabilidade política” (eufemismo para interesses político-econômicos estadunidenses) da região, bem como paramonitorar de perto áreas de enorme importância estratégica,como a floresta amazônica, patrimônio biológico inestimável.

É no mínimo intrigante que poucos citem o auxílio da CIA,na década de 1980, na abertura dos “canais da coca” para osparamilitares de extrema direita que combatiam as guerrilhas daregião. Além disso, é chocante descobrirmos como os lídereslatino-americanos que aplicaram as políticas do “Consenso deWashington”, personalidades que foram tão elogiados no exteriorestavam de alguma forma envolvidas nesse “negócio” ilegal.

A Colômbia, por exemplo, exporta mais coca do quecafé. Essa é uma economia extremamente poderosa,que se desloca para toda região da América Latina.

79 CHOSSUDOVSKY, idem, p. 202.

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No começo da década de oitenta, estava dirigida porum senhor chamado Salinas, no México. O irmão deleestá sendo processado por ser líder da coca no Méxicoe ele também está foragido por seu compromisso com acoca. Ora, o Sr. Salinas era o líder da aplicação doConsenso de Washington no Continente.

No Panamá, sabe-se que está preso Noriega, quetambém estava vinculado a coca, inclusive porintermediação dos norte-americanos80. Na Colômbia,tínhamos um presidente que havia sido eleito com odinheiro da coca. Foi gravado um telefonema dele aosdirigentes da coca, pedindo dois milhões de dólares.Como resposta obteve: ‘você vai receber’. No Peru, umcerto senhor Montesinos, que todos sabem que era umhomem-chave da coca, era também um homem-chavedo governo Fujimore. Na Argentina, defrontamos umsenhor chamado Menem, cujo irmão é acusado de estarligado à coca. A mulher de Menem o acusa deenvolvimento com a Máfia, que seria responsável peloassassinato de seu filho. No Brasil, nós tínhamos umsujeito chamado Collor, associado a um certo senhorchamado PC Farias, que estaria organizando ocomércio de coca aqui.81

Portanto, notamos que o prestígio político dosneoliberais latino-americanos se esgotou tão logo se esvazioua onda de expansão financeira que havia sido desviada para ospaíses “emergentes” após a crise do neoliberalismo do final da

80 O caso de Noriega certamente deve ser matizado na medida em que ogoverno dos EUA usou como pretexto sua suposta vinculação com onarcotráfico para invadir o Panamá e seqüestrá-lo justamente no momentoem que, dando prosseguimento às lutas do Presidente Omar Torrijos,preparava o país para receber de volta o Canal de Panamá, que estava sobcontrole estadunidense.81 SANTOS, 2004, pp. 343-344.

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A Conjuntura PolíticaLatino-Americana: o caso do Brasil

O Brasil é a maior economia da América do Sul, suaextensão geográfica, bem como sua população de quase 200milhões de habitantes, miscigenada e culturalmente tolerante,tornam esse país um ator estratégico que demanda atenção detodas as potências do globo. Nesse sentido, a atuação dessepaís no tocante à integração latino-americana é fundamental.Há quem diga, como Eduardo Galeano, que “o Brasil é o eixo delibertação ou servidão de toda América Latina”. Vimos, nocapítulo anterior, que o golpe de Estado que derrubou opresidente Goulart, em 1964, foi um dos marcos que sinalizaramo fim da segunda vaga “integracionista” latino-americana: ogolpe inaugurou os regimes duradouros de exceção dos grandespaíses da América do Sul, com os modelos econômicos dosgovernos nacional-democráticos e desenvolvimentistas sendo

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década de oitenta do século passado e início da de noventanos países centrais. É preciso destacar que, a despeito desseesvaziamento, o sistema financeiro continua sendoartificialmente inflado por alguns países da região que passarama implementar as políticas de metas de inflação. No entanto, amudança na correlação de forças da América Latina, com aascensão das lideranças que se mobilizavam contra as políticasdo “Consenso de Washington” (processo que veremos commais detalhes na segunda parte deste capítulo), bem como asmudanças na correlação internacional de forças, tem feito comque a resistência a esse tipo de política econômica aumentecada vez mais, sobretudo por seus efeitos recessivos em ummomento de crescimento econômico mundial que vembeneficiando os países periféricos que não mais adotam aspolíticas neoliberais.

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substituídos pelo modelo dependente. A política econômicados “discípulos” de Eugênio Godin, no Governo Castelo Branco,prenunciou o “genocídio econômico” que Pinochet seencarregaria de consolidar na América Latina.

É interessante dizer que no Brasil, diferentemente doque ocorreu em outros países da região, sempre houve forteresistência (inclusive de alguns setores da classe dominante) àimplementação plena de uma política econômica neoliberal. Paraa consolidação do regime militar, por exemplo, foi preciso abrirespaço para algumas dessas forças, o que exigiu a substituiçãoda política econômica de Roberto Campos82. Em algunsmomentos, como no Governo Geisel, essas forças nacionaistornaram-se preponderantes na condução política do País.

No período de redemocratização, houve forteparticipação popular, impedindo a implementação de uma“democracia” construída desde cima, como pretendiam as forçasdo establishment internacional. Após o conturbado período dogoverno Sarney, marcado pela combinação de medidasnacionalistas e populares com medidas conservadoras eimpopulares, com as últimas prevalecendo na política econômicado final do governo, o país teve suas primeiras eleições diretaspara Presidência da República desde 1960, em um contexto deforte polaridade entre três alternativas distintas:

- Fernando Collor, um jovem político vinculado ainteresses oligárquicos do Nordeste que, a despeito deseu insignificante partido, o Partido da ReconstruçãoNacional (PRN), conquistou amplo apoio da mídia aoaparecer como arauto da “modernização”, “caçador demarajás”. Apesar de seus discursos inflamados a favordos setores desfavorecidos da população, seu projeto

82 Roberto Campos era o principal Ministro da área econômica do governoCastelo Branco.

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era explicitamente neoliberal, em um momento em queessa doutrina econômica estava em plena ascensão naregião;

- Luiz Inácio Lula da Silva, ex-torneiro mecânico esindicalista que se tornou o principal líder do Partidodos Trabalhadores (PT), cujo projeto era pautadoprincipalmente por medidas de redistribuição de renda ede melhoria na condição de vida dos trabalhadores;

- e Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista(PDT), herdeiro do projeto nacional-democrático deGetúlio Vargas e João Goulart, pautado peloantiimperialismo e a favor da autodeterminação do povobrasileiro, objetivando acabar com as chamadas “perdasinternacionais”, fator que considerava essencial paraconstrução de um país verdadeiramente democrático ejusto.

Como sabemos, Collor venceu Lula no segundo turnocom uma vantagem de menos de 3% dos votos, mesmo comtodo apoio dos grandes veículos de comunicação. É importantedizer, inclusive, que a falta de maturidade política dos dirigentesdo PT naquele período também influenciou o resultado daseleições, no que foi marcante a recusa do apoio de UlyssesGuimarães, que havia sido candidato no primeiro turno peloPMDB (partido que naquele momento era de longe o maior doBrasil), à candidatura de Lula no segundo turno.

Apesar de eleito presidente, Collor não tinha sustentaçãopolítica suficiente para articular a implementação plena daspolíticas do “Consenso de Washington”. Além disso, suapersonalidade forte e sua excessiva e explicita ganância porpoder contribuíram para afastar alguns de seus aliados. Após adesastrosa tentativa de implementar políticas neoliberaiscombinadas com um plano anti-inflacionário que teve oseqüestro dos ativos financeiros como principal medida, Collorrapidamente fez uma reforma ministerial e adotou políticas

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puramente neoliberais, inspiradas no “Consenso deWashington”. O impacto negativo dessas políticas econômicas,tanto para os trabalhadores como para os empresários, se fezsentir quando denúncias de corrupção rapidamente culminaramno impeachmeant do presidente.

Apesar do “impedimento”, o projeto neoliberal do“Consenso de Washington” estava longe de perder sua forçano Brasil. O vice de Collor, Itamar Franco, político nacionalistaoriginário do PMDB, apesar de não simpatizar com as doutrinaseconômicas neoliberais, acabou optando por abrir espaço noseu governo para alguns de seus defensores. O Plano Real, queserviu de base para aplicação das políticas do “Consenso deWashington” no Brasil, foi desenvolvido e implementado pelosneoliberais que ganharam espaço nesse período, liderados peloministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, que passoua ser conhecido como FHC83.

Como vimos, a aplicação das políticas do “Consenso”geraram uma euforia inicial na população que, com o câmbiosupervalorizado e a abertura comercial, ficou iludida com ainundação de produtos importados “baratos” no mercado. Essaeuforia contribuiu para a eleição, em 1994, do ministro FHC. Foia ele que coube consolidar as políticas do “Consenso” no Brasil.Sociólogo reconhecido internacionalmente, FHC desfrutava degrande prestígio no Brasil e no exterior. Era tido, junto comoutros integrantes de seu partido, o Partido da Social DemocraciaBrasileira (PSDB), como um político progressista (algodesmentido pelos fatos).

83 Este, apesar da retórica de esquerda, havia escrito um livro nos anos1960, em companhia do sociólogo chileno Enzo Falleto, que propugnavaque a dependência externa favorecia o desenvolvimento, a modernização,a melhor distribuição de renda e a democracia (Ver CARDOSO, FernandoHenrique & FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento daAmérica Latina. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975).

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É interessante destacar, nesse sentido, o fato de queGustavo Franco, presidente do Banco Central de FHC até partede seu segundo mandato, e um dos principais autores do PlanoReal, tenha sido fortemente influenciado no plano intelectualpor Hjalmar Schacht, Ministro das Finanças de Hitler84. A políticade combate à hiperinflação do economista nazista influencioudiretamente a criação do Plano Real. Alguns dizem que o fim dahiperinflação e o gigantesco crescimento econômico daAlemanha nazista comprovaram a eficiência de tal políticaeconômica. Entretanto, qualquer um que conheça minimamentea história e os princípios básicos da teoria econômica sabe queo crescimento da economia nazista se deveu à brutal repressãodas organizações populares e à superexploração da força detrabalho, que teve na escravização de judeus, comunistas eciganos sua mais forte expressão, com o escravo trabalhandoaté morrer, com seu corpo sendo aproveitado para fazer sabão esua pele para fazer produtos de couro. Além disso, o elevadogasto estatal com equipamentos bélicos também contribuiu paraaquecer a economia alemã.

Logo, percebe-se o caráter extremamente conservadorda política econômica de Fernando Henrique Cardoso,influenciada pelas idéias de um dos personagens que participoudo episódio mais monstruoso da história humana. Guardadasas devidas proporções, a política econômica de FHC e GustavoFranco também causou violenta regressão social.

O caráter conservador do governo FHC também seexpressou em suas alianças políticas, feitas com os partidosmais à direita do Brasil: o Partido da Frente Liberal (PFL), oPartido Progressista (PP) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

84 Foi Gustavo Franco, inclusive, quem prefaciou, sob o ponto de vistaeconômico, a autobiografia de Schacht, destacando seu papel positivo nogoverno de Hitler e citando o fato de o autor do livro ter sido inocentadono Tribunal de Nuremberg. Ver: FRANCO, Gustavo. Schacht, aspectoseconômicos. In: SCHACHT, Hjalmar. Setenta e seis anos de minha vida:a autobiografia do mago da economia alemã da República de Weimarao III Reich. São Paulo: Editora 34, 1999.

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O Plano Real conseguiu se sustentar, depois de algunsajustes após a “crise da tequila” de 1994, até 1998, quando acrise que descrevemos na primeira parte deste capítulo alcançouo Brasil. É importante dizer que o ano de 1998 era de eleições, eque o governo dos Estados Unidos e o FMI, em função doprejuízo que o esgotamento das reservas e a conseqüente crisecausariam à campanha de reeleição de FHC, articularam umaoperação de emergência (já que os recursos do FMI e do G-7estavam comprometidos com as crises na Ásia e Rússia) quegarantiu a manutenção das reservas e a âncora cambial até ofinal das eleições.

Com o desmoronamento do Plano Real e a conseqüentedesvalorização cambial da nossa moeda, a equipe econômicade FHC passou a adotar a política de metas de inflação. Essapolítica também é extremamente conservadora, representandoa manutenção forçada de um sistema financeiro artificialmenteinflado. Ela é baseada nos pressupostos monetaristas de que ainflação é um fenômeno puramente monetário, o que faz comque a política adotada para combatê-la seja altamente restritiva,impondo forte dano aos setores produtivos e ao Estado (quetem de arcar com gigantescos encargos financeiros para opagamento da dívida em função da manutenção da taxa de jurosem patamares extremamente elevados).

É importante dizer, ao citarmos a questão doendividamento do Estado, que todos os grandes veículos decomunicação elogiaram a responsabilidade fiscal do governode FHC, mesmo com a dívida líquida total do setor públicosaltando de cerca de 153 bilhões de reais, no inicio de seugoverno, para 881 bilhões de reais no seu final, em dezembro de2002. Nem é preciso calcular o quanto representou o aumentodessa dívida em dólares, já que houve intensa desvalorizaçãodo real durante esse período, para verificarmos o quãoirresponsável foi o deficitário governo FHC.

É no mínimo intrigante que os grandes veículos decomunicação do Brasil, que sempre se apresentaram comoportadores do ideal democrático e como elementos funcionais

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para o esclarecimento da população, tenham exaltado comoextremamente positivos os dados que indicavam o superávitprimário – que supostamente comprovariam a responsabilidadefiscal do governo. Sabemos muito bem que as contas primáriasapenas calculam a diferença entre a arrecadação e os gastos einvestimentos do governo sem considerar o pagamento dosjuros da dívida. Ora, eram justamente estes juros elevadíssimosque pesavam no orçamento, causando déficits que precisavamser cobertos com mais empréstimos e mais superávit primário,aumentando ainda mais a dívida e bloqueando a capacidade deinvestimento e de gasto social do governo. Ao exaltarem osuperávit primário como um dado positivo, os veículos decomunicação em massa brasileiros estavam expressando suaaprovação a uma política econômica que desvia recursos dosetor social e produtivo para o setor financeiro e especulativo.

Foi justamente contra essas políticas que o povobrasileiro elegeu, em 2002, Luiz Inácio Lula da Silva comopresidente, líder do maior partido brasileiro de oposição aogoverno de Fernando Henrique Cardoso. É importante dizerque Lula assumiu a presidência com o país em condiçõesprecárias; era a chamada “herança maldita” do governo FHC,que tinha no acordo com o FMI seu principal símbolo85.

A profunda desnacionalização que o governo FHCcausou à economia brasileira e o grau de vulnerabilidade emque o país se encontrava fizeram com que os dirigentes doPartido dos Trabalhadores temessem que algum tipo deretaliação dos mercados financeiros pudesse prejudicar aeconomia brasileira, gerando um estado de caos político e socialque poderia enfraquecer o governo de Lula. Foi com o objetivode evitar esse tipo de enfrentamento que os principais dirigentesdo campo majoritário do PT elaboraram um programa de

85 Cf. SOUZA, Nilson Araújo de. Economia brasileira contemporânea –de Getúlio a Lula. São Paulo: Atlas, 2007.

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transição na política econômica do país, programa este queteria como objetivo conquistar a confiança do mercado financeiropara, depois de diminuídas as vulnerabilidades, efetuarmudanças substanciais na política econômica.

Entretanto, mesmo após o extraordinário aumento dasexportações ter garantido a diminuição das vulnerabilidades daeconomia, o governo não substituiu a política de metas de inflaçãodurante todo o seu primeiro mandato, a qual foi inclusiveaprofundada na gestão do Ministro da Fazenda Antônio Paloccie do Presidente do Banco Central Henrique Meirelles.

A manutenção dessa política econômica fez com que opaís alcançasse um baixo crescimento econômico (3,4% ao ano),enquanto boa parte dos países periféricos cresceu mais de 6%ao ano no período. Muitos membros do governo deixaram-seenganar pelos elogios da imprensa e da oposição à manutençãode uma política econômica “responsável” (já vimos queresponsabilidade é essa) por parte de Lula, iludindo-se, ainda,com o razoável crescimento do PIB em 2004, guindado peloaumento das exportações, resultado de uma eficiente políticaexterna de diversificação das exportações e do crescimento daeconomia mundial.

O lado progressista do governo Lula tem se expressado,sobretudo, na política externa independente, na suspensão doprocesso de privatização, no aumento dos financiamentos doBNDES para o setor produtivo nacional e na ampliação de algunsprogramas sociais. O primeiro aspecto é o que mais nos interessaaqui. Já no seu discurso de posse, o presidente destacou quesua prioridade na política externa seriam os projetos deintegração latino-americanos, sobretudo o Mercosul. Isso temde fato acontecido. O Brasil é um dos principais países aimpulsionar uma nova vaga integracionista na América Latina.

É interessante destacar, nesse sentido, que a ascensãopolítica de Lula e do PT ocorreu na segunda metade da décadade 1970, como resultado da resistência da população e da classe

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trabalhadora à superexploração imposta pela ditadura militar.Vimos, no capítulo anterior, que é justamente a superexploraçãoda força de trabalho a principal característica de uma economiadependente, e que é a condição de dependência que nos integraao capital monopolista internacional e nos desintegra política,econômica e socialmente no plano interno.

Logo, a eleição de Lula está carregada de simbolismo,servindo como importante estímulo a uma integração real daregião. Além disso, um governo fortemente respaldado pelasforças populares em um país importante como o Brasil alterasignificativamente a correlação de forças na América do Sul,impulsionando a adoção de políticas mais progressistas porparte dos outros governos da região, o que tem fortalecido oprojeto de integração.

Apesar disso, a política de metas de inflação do Brasilafeta negativamente e é um dos principais obstáculos para ofortalecimento da integração da região. Os juros altos transferemgrandes quantidades de recursos do principal país da Américado Sul para a esfera financeira, diminuindo a disponibilidade derecursos para o investimento em projetos de infra-estrutura eem ciência e tecnologia, eixos principais nos quais o novo modelode integração latino-americana deve estar baseado.

Além disso, a política restritiva do Brasil limita suasimportações, o que, somado às políticas de aquecimento dademanda que países como a Argentina vem adotando, contribuipara desequilibrar o comércio na região em favor do Brasil. Essedesequilíbrio prejudica o processo de integração, pois estimulao surgimento de medidas protecionistas por parte dos paísesque são deficitários, o que pode gerar pequenas crises que sãoamplamente exploradas pela mídia conservadora que sempreatua no sentido de enfraquecer os vínculos de cooperação entreos países da América Latina.

Isso fortalece ainda mais os argumentos que demos emtodo este trabalho ao dizer que a integração da região éabsolutamente incompatível com a manutenção de um modelo

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A Conjuntura PolíticaLatino-Americana: o caso da Argentina

A Argentina foi o país que mais profundamenteimplementou as políticas do “Consenso de Washington”. Porisso, foi um dos países da América Latina que mais regrediram

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econômico que reproduz a dependência de maneira ampliada. Asubstituição das políticas monetaristas de metas de inflação éum fator sine qua non para consolidação de uma verdadeiraintegração na região.

Há, portanto, uma contradição muito grande entre apolítica econômico-financeira e a política externa do governoLula. A manutenção dessa política econômica enfraquece todosos aspectos positivos da política externa, enquanto que umavanço ainda maior da política externa exige a substituição dapolítica econômica.

Ainda é difícil saber que caminho trilhará o governonesse segundo mandato do presidente Lula (2007-2010), aindaque a demissão do ministro Palocci no final do primeiro mandato,bem como o lançamento do Plano de Ação para o Crescimentoda economia no início do segundo, possam ser consideradossinais positivos. De qualquer forma, a questão das taxas dejuros e do controle do Banco Central ainda está em aberto, comfortes indícios de que não haverá nenhuma mudança substancialna condução da política monetária.

A formação de uma ampla coalizão de apoio ao governo– envolvendo PMDB, PC do B, PSB, PDT, PRB e PV – ofereceuma oportunidade histórica para Lula ser mais ousado e lançarum projeto mínimo de nação, algo que só tem se expressado deforma bastante limitada. Cabe a Lula e seus assessoresaproveitar a situação.

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social e politicamente, o que culminou na crise de 2001-2002.Em 2002, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas eCensos da Argentina, o produto interno desse país sofreu umaredução de 10,9%; 57,5% da população viviam abaixo da linhada pobreza; 27,5% dos argentinos viviam abaixo da linha deindigência; 17,8% da população estava desempregada; e 13,8%subempregada.

É interessante notar que os argumentos que serviram decobertura ideológica para implementação de tão desastrosaspolíticas foram criados a partir de uma criminosa falsificação dahistória do país. De acordo com os pretensos intelectuais epolíticos que defendiam a política do “Consenso”, a Argentinahavia passado por dois grandes períodos históricos: o primeirofoi o da grandeza nacional, que foi de 1880 até as décadas devinte e trinta do século passado; o segundo foi o do isolamentonacional, que foi da década de 1930 até o final da década de 1980.

Eles defendiam que a adoção de políticas econômicasbaseadas na doutrina liberal e as relações especiais com a potênciahegemônica da época do primeiro período, a Inglaterra, foramfundamentais para que o país tivesse alcançado “tão proeminenteposição no sistema mundial”, já que o PIB argentino se igualavaao dos mais prósperos países no final do século XIX e inicio doXX. Nesse sentido, a decadência nacional teria sido causada pelosuposto intervencionismo excessivo do Estado na economia, pelademagogia política, pela corrupção e por uma política externa queousava contradizer a potência hegemônica.

Segundo esses autores86, depois do período dedecadência causado pelo suposto isolamento de 1930-1989,caberia à nova geração de políticos argentinos reinserir o país

86 O historiador brasileiro Amado Luiz Cervo fez importante síntese desse“revisionismo” histórico empreendido pelos argentinos no final da décadade 1980 e inicio da de 1990 em artigo publicado no livro organizado peloembaixador Samuel Pinheiro Guimarães: CERVO, Amado Luiz. A políticaexterior da Argentina. In: GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Argentina:Visões Brasileiras. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2000. PP.11-88.

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no mundo, quebrar o odioso isolamento em que o país seencontrava, recuperando, assim, o prestígio e a grandeza danação.

Ao contrário do que afirmam os “revisionistas”, aArgentina nunca foi um país importante no cenáriointernacional. Mesmo que seu produto interno tenha podido sercomparado ao de alguns países desenvolvidos, a Argentinanunca passou de um país dependente. A suposta grandezanacional não podia resistir a uma crise internacional.Diferentemente de países como Inglaterra, França, EstadosUnidos, Alemanha e Japão, a Argentina não tinha um parqueindustrial desenvolvido; ela dependia do mercado inglês paravenda de seus produtos agrícolas e das reservas que essasvendas proporcionavam para comprar bens industriais nomercado mundial. Logo, qualquer crise internacional poderiacausar o desabastecimento interno, acabando com as ilusões deuma suposta grandeza nacional. Foi isso o que aconteceu: ascrises mundiais, sobretudo a Primeira Guerra Mundial e a GrandeDepressão, enfraqueceram o modelo político oligárquico-liberalque havia sido criado por figuras como Juan Bautista Alberdi,Bartolomé Mitre e Domingo Faustino Sarmiento.

O nacionalismo argentino despertou dessa crise domodelo dependente, com figuras como Hipólito Yrigoyenprecedendo, já no final da década de 1920, a ascensão do Grupodos Oficiais Unidos e de Juan Domingo Perón. No pós-SegundaGuerra Mundial o que marcou a vida política Argentina foi ointenso conflito entre as forças que defendiam o enfrentamentoda dependência externa, que tiveram no Peronismo sua maisimportante expressão, e as que defendiam a adoção de políticaseconômicas neoliberais, que puderam ser mais radicalmenteimplantadas no regime militar instaurado em 1976.

Com isso, houve uma inconstância gritante nas políticaseconômica e externa argentina do período que vai de 1930 até1989, o que nega completamente a tese de que este período foi

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o de isolamento nacional, já que os governos neoliberais semprebuscaram se aproximar dos países centrais. A própria recorrênciade crises institucionais no país durante o período (1945, 1955,1962, 1966, 1973, 1983), causadas pelo constanteintervencionismo dos militares na política do país, intervençõessempre acompanhadas pela adoção de políticas econômicasinspiradas pela doutrina neoliberal, demonstram o quãofantasiosas são essas afirmações.

Mesmo sendo completamente fantasiosos, essesargumentos influenciaram profundamente na reestruturação dasconcepções estratégicas dos programas dos principais partidospolíticos argentinos: o Justicialista e a União Cívica Radical(UCR). Paradoxalmente, o “revisionismo” alcançou suaexpressão mais radical dentro do próprio Partido Justicialista(que havia sido criado por Perón), com Carlos Menem renegandoos princípios tradicionais do Peronismo e abraçando o ideárioneoliberal do “Consenso de Washington”. É evidente que oisolamento sofrido pela Argentina na década de 1980, em funçãodo repúdio de muitos países à política de violações aos direitoshumanos do regime militar e do embargo econômico decretadopelos países europeus em apoio à Grã-Bretanha durante a Guerradas Malvinas, além da crise da dívida e da hiperinflação do finalda década, contribuiu para que a população apoiasse, em umprimeiro momento, as políticas do “Consenso”: supervalorizaçãocambial, abertura comercial, relações especiais com os EstadosUnidos e etc.

Como vimos, a adoção dessas políticas sempre gera umailusão inicial, um bem-estar passageiro causado pelo aumentodo poder de compra em moeda forte, que subsidia a importaçãoexcessiva de produtos estrangeiros “baratos”. Pouco tempodepois, com as reservas queimadas, a indústria nacionaldestruída e o Estado pilhado pelas privatizações e pelopagamento de uma dívida pública absurda, percebe-se comoeram caros esses produtos.

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O eixo central da aplicação das políticas do “Consensode Washington” na Argentina de Menem foi o Plano deConvertibilidade, aprovado em 1991, que fixou, na Constituição,a paridade de um para um do peso com relação ao dólar e aboliuo controle dos movimentos de capitais. De acordo com DemétrioMagnoli, os principais objetivos desse Plano eram:

- de um lado, fazer com que a convertibilidade peso/dólar funcionasse como instrumento para separar aArgentina do Brasil, evitando que o Mercosul evoluísserumo à unificação monetária;

- de outro, a convertibilidade serviria para soldar a aliançaentre a elite política argentina e as finançasinternacionalizadas, à custa da ruína da indústria e daclasse média do país.87

Depois de reeleito em 1994, quando as políticas do“Consenso” ainda desfrutavam de certo prestígio entre osargentinos, Menem passou, a partir da segunda metade dadécada de 1990, por forte desgaste político, já que os nefastosefeitos econômicos e sociais provocados por essas políticascomeçaram a aparecer, sendo agravados pelas crises na Ásia,Rússia e Brasil.

A prova de como a população passou a se opor àspolíticas neoliberais se deu nas eleições presidenciais de 1999.O candidato do Partido Acción por la República, DomingoFelipe Cavallo, que foi o principal ministro da área econômicade Menem, não conseguiu mais do que 10,1% dos votos. Avitória ficou com Fernando De la Rúa, candidato da “Alianza”,composta pela Aliança da Frente País Solidário (Frepaso)88 e

87 MAGNOLI, Demétrio. O Brasil, no espelho argentino. Revista Época,Edição 191, 14/01/2002.88 A Frepaso surgiu do desligamento de oito deputados, liderados por CarlosChaco Alvarez, das fileiras do Partido Justicialista no inicio da década de1990, em função dos rumos que o partido vinha tomando sob a influênciado “menemismo”.

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pela UCR, que prometia uma política econômica mais voltadapara o social e se apresentava como uma alternativa ao“menemismo”.

Entretanto, em lugar de mudar a política econômica, Dela Rua a manteve em seus aspectos essenciais, preservando atrajetória que vinha de antes rumo à crescente deterioração daeconomia. Com o agravamento da crise, De la Rua,contraditoriamente, nomeou para enfrenta-la, na qualidade deministro da Fazenda, o principal artífice da política econômicaque a havia engendrado, Domingo Cavallo, desrespeitandofragorosamente a vontade da população. A manutenção da irrealconvertibilidade levou a economia argentina ao caos, em umasubordinação sem precedentes à política econômica dosEstados Unidos.

A segurança jurídica e o regime de contratos vigentesbaseados na convertibilidade eram insustentáveis,porque se fundamentavam em um regime econômicofinanceiro baseado em uma moeda estrangeira, emdesequilíbrios macroeconômicos crescentes e emnormas insólitas como fixar os preços dos serviçospúblicos em dólares e indexá-los pela inflação dosEstados Unidos.89

Em 2001, as políticas do “Consenso de Washington”finalmente entraram em colapso na Argentina. Nesse ano, houveintensa fuga de capitais, da ordem de U$ 20 bilhões, o queculminou no default sobre a parte principal da dívida pública eno abandono definitivo da convertibilidade, além de ter sidointerrompido o acesso do país ao financiamento internacional.A crise foi tão profunda que o descontentamento da populaçãogerou mobilizações que chegaram a provocar medidas

89 FERRER, Aldo. Economia Argentina: situação e perspectivas. PolíticaExterna. Vol. 15, número 1. Junho/ julho/ agosto de 2006. P. 59.

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autoritárias por parte do governo De la Rúa. Felizmente, o povoargentino não permitiu o avanço do autoritarismo. O relato deVictor De Gennaro, dirigente da Central dos TrabalhadoresArgentinos (CTA), expressou bem aquele momento:

De la Rua declarou, às nove da noite do dia 19 dedezembro, o Estado de Sítio, e então aconteceu algoque nos surpreendeu. Meia hora depois de seu discurso,começou o panelaço nas ruas de todo país; foiimpressionante a manifestação do povo. A televisãotentou explicar o fato como uma manifestação contra ocorralito financeiro, medida econômica anunciada porCavallo. Mas, na verdade, o maior panelaço que houvefoi contra o Estado de Sítio! (...) é a primeira vez que,sem liderança política, saiu às ruas, de forma massivae unitária, para não permitir o avanço doautoritarismo.90

No dia seguinte, De la Rúa renunciou. O estado em quese encontrava o país era tão grave que foi difícil encontrar umsucessor para De la Rúa, já que seu mandato duraria até fins de2003. Depois da renúncia imediata do parlamentar a quemcorrespondia o cargo de acordo com a linha sucessória, aAssembléia Legislativa designou como Presidente interinoAdolfo Rodriguez Saá, que em menos de uma semana declaroua moratória e renunciou. Finalmente, foi nomeado Presidente oex-governador da província de Buenos Aires, Eduardo Duhalde,que fora candidato do Partido Justicialista contra De la Rúa. .

Duhalde adotou as seguintes medidas econômicas:desvalorizou o peso; promoveu uma política de substituição deimportações; e promoveu a “pesificación” das dívidas emdólares e uma devolução negociada dos depósitos bancários.

90 Citado em: STUART, Ana Maria. Argentina: a reconciliação do Estadocom a sociedade. Política Externa. Vol. 12, número 2. Setembro/ Outubro/Novembro de 2003. P. 63.

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Além disso, no plano social, promoveu o programa “jefes yjefas de hogar”, que subsidiou os desempregados com 150pesos mensais. Duhalde também antecipou as eleiçõespresidenciais.

A eleição para presidência da República foi muitodisputada. No Partido Justicialista, por exemplo, foi suspensa aeleição interna, com os três candidatos do partido disputandoseparadamente a presidência: Carlos Saúl Menem, NéstorKirchner e Adolfo Rodríguez Saá.

Como bem demonstrou Ana Maria Stuart91, três projetosemergiram na disputa presidencial:

- um projeto de centro-esquerda – representado porNéstor Kirchner, cujos pontos principais eram:substituição de importações, políticas sociais públicase fortalecimento da aliança estratégica com o Brasil. Éinteressante destacar que, além de ter sido governadorda província de Santa Cruz, Kirchner liderava, desde2000, “La Corriente Peronista”, linha interna doJusticialismo que recuperou bandeiras tradicionais doPeronismo, se contrapondo ao “menemismo”. O apoiode Eduardo Duhalde foi muito importante para fortalecera campanha de Kirchner.

- um projeto conservador e populista de direita –representado por Carlos Menem. Defendia a dolarizaçãoda economia, a militarização dos conflitos sociais, oassistencialismo paternalista e uma forte aliança com osEstados Unidos. Advogava a continuidade, de maneiramais autoritária, das políticas que ele havia implementadocomo presidente.

91 Idem, ibidem.

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- um projeto tecnocrático e neoliberal – representadopor López Murphi, que defendia o alinhamento com asposições dos organismos financeiros internacionais(FMI e Banco Mundial), a defesa da ética e de umasuposta racionalidade.

As eleições caminharam para o segundo turno, comMenem e Kirchner tendo ficado praticamente empatados com22% dos votos cada um no primeiro turno. No segundo turno,as pesquisas de intenção de voto demonstraram que Kirchnerreceberia aproximadamente 70% dos votos, em função do forteíndice de rejeição de Menem. No entanto, a fim de evitar ahumilhante derrota eleitoral, Menem retirou-se das eleiçõesacusando o então presidente Eduardo Duhalde de abuso damáquina pública para pressionar os governadores a apoiaremKirchner. Tudo não passou de uma manobra, que malogrou,com o objetivo de enfraquecer a liderança e questionar alegitimidade do novo presidente.

Kirchner assumiu a presidência em maio de 2003. Oaprofundamento das políticas de substituição de importaçõese a adoção de uma política monetária expansiva, bem como umabem sucedida renegociação da dívida externa92, vem garantindoa esse presidente importante respaldo popular. O conhecidoeconomista argentino Aldo Ferrer descreveu bem os avançosdo governo Kirchner:

A unidade monetária foi restabelecida e a atividadefinanceira normalizada. O PIB cresceu 30% e o produtoindustrial 50%, ambos superando os níveis máximosregistrados em 1998. O desemprego diminuiu cincopontos percentuais e foram criados 2,5 milhões depostos de trabalho.93

92 Propôs aos bancos credores um desconto de cerca de 75% da dívida.Depois de longa negociação, os bancos terminaram concordando comessa proposta.93 FERRER, Aldo. 2006, p. 58.

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A Conjuntura PolíticaLatino-Americana: o caso da Venezuela

A Venezuela é o país que vem passando pelas maiorestransformações políticas, econômicas e sociais nos últimos anos.Ele foi governado, desde 1958, quando se deu a queda do ditadorMarcos Pérez Jiménez, por dois partidos que sustentavambasicamente o mesmo projeto e que se alternavam no poder: aAção Democrática (AD), de viés social-democrata, e o Comitêde Organização Política Eleitoral Independente (COPEI), de viésDemocrata-Cristão. A hegemonia desses dois partidos na vidapolítica venezuelana era baseada em um pacto de conciliação, ofamoso Pacto de Punto Fijo.

A base da vida econômica do país, desde meados dadécada de 1920, tem sido o petróleo, abundante na região. Em1976, na esteira das nacionalizações dessa matéria primaestratégica em diversos países do mundo, incentivadas pela

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Em termos de política externa, Kirchner definitivamenteacabou com qualquer resquício dos princípios do realismoperiférico, que haviam sido elaborados por Carlos Escudé eimplementados pelos Ministros da Economia e das RelaçõesExteriores de Menem, Domingo Cavallo e Guido Di Tella, com oslogan de “política de reincorporação ao Primeiro Mundo”. Onovo presidente argentino vem dando prioridade às políticasde integração sul-americana. Junto com Hugo Chávez e Lula,Kirchner é um dos principais defensores de um novo modelo deintegração para a América Latina.

Deve-se dizer que, após três anos de forte crescimentoeconômico no país, o presidente Kirchner terá que aprofundarainda mais as mudanças para aumentar o volume dosinvestimentos e manter o nível de crescimento.

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atuação da OPEP, foi fundada a companhia estatal Petróleos daVenezuela S.A. (PDVSA). Posteriormente, associada a muitasempresas estrangeiras do setor, como Shell, Exxon e Móbil, aestatal venezuelana passou a ser cada vez mais controlada comouma empresa privada, funcionalizada pelos dois grandespartidos políticos e por uma elite parasitária que vivia das rendasdo setor. As obrigações fiscais chegaram a ser drasticamentereduzidas e o corpo gerencial, bem como seus salários, passarama ser fixados de maneira autônoma pela empresa; a PDVSA setornou um “Estado dentro do Estado”.

Na década de 1980, com a crise da dívida e a queda dospreços internacionais do petróleo a partir de 1984, o país entrouem grave crise econômica. Com a diminuição das rendaspetrolíferas, o saque privado que ocorria dentro da PDVSA fez-se sentir ainda mais, o que gerou uma crise econômica e socialque pôs em xeque o “puntofijismo”. A primeira manifestaçãodessa crise política se deu em 1989, quando o então presidentedo país, Carlos Andrés Pérez, assinou um acordo com o FMI ebaixou um pacote econômico que reduzia os gastos públicos,congelava os salários e elevava o preço dos gêneros de primeiranecessidade, o que provocou a ira da população, que se rebeloucontra essas políticas neoliberais. Esse episódio ficouconhecido como “Caracazo”, e terminou com a população sendofortemente reprimida pelas forças policiais venezuelanas,provocando a morte de centenas de manifestantes.

Em fevereiro de 1992, ocorreu outra rebelião, dessa vezenvolvendo os militares, liderados pelo tenente-coronel HugoChávez Frias, que a partir de então se tornou o principal opositordo programa neoliberal na Venezuela.

Todos esses protestos, expressão da exclusão socialagravada pelas políticas neoliberais, terminaram por enfraquecero presidente Andrés Pérez, que acabou sendo destituído dapresidência em maio de 1993 em função dos escândalos decorrupção em que estava envolvido.

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Em seu lugar, assumiu um antigo presidente do país,Rafael Caldera, que, apesar de representar um amplo leque deforças políticas que haviam lutado contra as políticas neoliberaise de haver prometido mudanças, aprofundou ainda mais asubmissão do país às políticas de Washington. Vale lembrarque os Estados Unidos consideram a Venezuela um ponto-chavede sua estratégia hemisférica, já que as reservas de petróleodesse país são parte essencial de sua política energética.

Rafael Caldera promoveu a chamada “aberturapetroleira”, a fim de atrair capital estrangeiro e ampliar asconcessões no setor para as empresas transnacionais. Calderachegou inclusive a romper o compromisso com as cotas daOPEP, elevando a produção do petróleo para vendê-lo maisbarato aos EUA. É interessante destacar que esse presidentechegou até a nomear Luis Giusti para a presidência da PDVSA,nome que sempre esteve diretamente ligado à equipe republicanaque cuidava das políticas energéticas do governo Bush (pai),tendo ido, inclusive, após deixar o cargo, em 1999, morar nosEstados Unidos e assessorar o presidente Bush (filho) em seuPlano Estratégico para o Hemisfério, além de ter voltado atrabalhar para a Shell. Esse governo chegou a reduzir opagamento dos royalties do petróleo de 16% para apenas 1%.

Toda essa política de Pérez e Caldera culminou na crisefinal do “puntofujismo”, com a vitória, nas eleições presidenciaisde 1998, com 56,2% dos votos, de Hugo Chávez, do MovimentoV República (MVR), partido que havia sido criado apenas umano antes dessas eleições.

O programa de Chávez tem seu fundamento narecuperação das tradições nacionais, na defesa da soberaniado país e no uso dos recursos do petróleo para o aumento dobem-estar social e na promoção do desenvolvimento. Deve-sedizer que, mesmo sustentando um ideário antiimperialista eantioligárquico, e contrariando o que os veículos decomunicação conservadores afirmam, as decisões de Chávez

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são feitas baseadas em analises realistas da dinâmica dacorrelação de forças, o que tem favorecido o aprofundamentodo projeto popular e democrático da Revolução Bolivariana.Como o próprio Chávez afirmou, citando Bolívar: ele é “apenasuma débil palha arrastada pelo furacão revolucionário”.

Tendo tomado posse em fevereiro de 1999, Hugo Cháveziniciou seu mandato presidencial adotando uma políticaeconômica cautelosa e apostando na conquista detransformações mais profundas no terreno político. O coronelassumiu o país em um momento econômico bastante difícil: obarril de petróleo havia despencado para 8,74 dólares emdezembro de 1998; a taxa de desemprego real se aproximava dos20%, combinada com uma taxa de subemprego de cerca de 50%.Pragmático, tentando evitar possíveis retaliações queprovavelmente desestabilizariam o governo logo no início deseu mandato, Chávez manteve no cargo a Ministra das Finançasde Rafael Caldera, dando continuidade à política cambial eintroduzindo duras medidas de ajuste fiscal, além de seguirpagando os serviços da dívida pública.

A transformação do país deveria ter inicio, de acordocom seu programa, na esfera política, deflagrando-se a revoluçãopela via institucional. Nesse sentido, foi de fundamentalimportância a realização de um plebiscito com o objetivo deconvocar uma Assembléia Constituinte, seguida da eleição dosdeputados constituintes, de um referendo para aprovar a novaConstituição e de uma nova eleição para presidência daRepública e governadores, além de eleições para prefeitos e umplebiscito sobre a estrutura sindical.

Esse comportamento democrático do governo Chávezacabou por favorecer o “Projeto Bolivariano”, que conseguiuincorporar importantes mecanismos de democracia participativana nova Constituição, além de uma série de direitos sociais e doaumento do controle da população e do Estado sobre a economianacional. Dos mecanismos de democracia participativa, é

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importante destacar o referendo revocatório, que foi incluídona Constituição por sugestão do próprio presidente Chávez,garantindo à população que “todos os cargos e magistraturasde eleição popular são revogáveis”.

Em novembro de 1999, o referendo popular ratificou anova Constituição com 71% de aprovação. Simbolicamente, ecomo prevê a nova Constituição, o nome do país passou a serRepública Bolivariana da Venezuela.

Em 2000, Hugo Chávez foi eleito para um mandato deseis anos, enquanto a vitória dos defensores da RevoluçãoBolivariana nas eleições para Assembléia Nacional, bem comopara os governos e prefeituras, garantiu uma radical mudançana correlação de forças do país. Foi sentindo essa alteraçãoque o presidente Chávez anunciou, em novembro de 2001, umousado programa de transformações, que dessa vez incluiu aárea econômica. Foram ratificadas 49 leis, entre elas a da Terra ea de Hidrocarburantes, que desferiram importante golpe natradicional oligarquia venezuelana. O que poderia ser pior paraa elite do país do que a reforma agrária e a utilização dos recursosprovenientes da exportação do petróleo para o financiamentode programas sociais e atividades produtivas?

Foi a partir desse momento que a oposição iniciou aarticulação de uma série de movimentos que tiveram comoobjetivo derrubar o presidente legitimamente eleito. Essa ofensivada oposição teve início ainda no final de 2001, quando o paísvivia uma difícil situação econômica, causada pela manutençãodo cambio supervalorizado e pela retirada em massa de capitalda Venezuela, pressionando suas reservas. Foi nesse momentoque a Central dos Trabalhadores Venezuelanos (CTV),controlada pelos partidários de Carlos Andrés Pérez, com orespaldo da organização patronal Federación de Câmaras(Fedecámaras), convocou uma greve geral com o objetivo dedesestabilizar o governo Chávez, protestando contra as leisaprovadas pelo executivo. O governo dos Estados Unidos,

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preocupado com os rumos da Venezuela, já que as novas leisdesafiavam fortemente seus interesses, deu apoio operacionale financeiro para as tentativas de desestabilização e atéimpulsionaram um golpe.

(...) na medida que a situação econômica e a segurançada Venezuela deterioram-se, sobretudo a partir de finsde 2001, o governo de George W. Bush tratou deaproveitar o crescente caos na Venezuela para unir asforças de oposição e as prover com planejamento erecursos de inteligência de modo a converter a grevedos trabalhadores na indústria do petróleo emmovimento para derrubar Chávez da presidência,ainda que isso significasse uma ruptura da legitimidadeconstitucional e do regime democrático. Naquele ano,2001, os EUA canalizaram centenas de milhares dedólares para os grupos americanos e venezuelanosadversos ao presidente Hugo Chávez, inclusive a CTV,através da ‘National Endowment for Democracy’,agência criada pelo Congresso, que quadruplicou oincremento às doações, elevando seu orçamento paraVenezuela a mais de US$ 877,000, assim que ascondições em Caracas se agravaram.94

Em abril de 2002, novamente, a CTV, de novo apoiadapela Fedecámaras, convocou uma greve geral que supostamenteteria motivos salariais e duraria apenas 24 horas. No entanto,com a destituição de sete altos executivos da PDVSA, em funçãodo conflito em que estavam com a direção nomeada por Chávez,a crise se agravou, com os dirigentes da CTV e da Fedecámaras,com o objetivo explícito de forçar a renúncia do presidente,anunciando que a greve geral seria prolongada por tempo

94 BANDEIRA, Luiz Alberto Muniz. Os EUA e o golpe contra Chávez.Meridiano 47. Número 22, mês 5, 2002. P. 20.

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indefinido, instando uma multidão para marchar para o PalácioMiraflores. Impulsionados por esses acontecimentos, de 11 para12 de abril, três generais prenderam Hugo Chávez, levando-opara o Forte Tiuna. Em seguida, o General Lucas Rincón Romero,chefe do Estado Maior do Exército da Venezuela, anunciou queChávez renunciara à presidência da República. O presidente daFedecámaras, Pedro Carmona Estanca, foi então empossado nogoverno venezuelano. Carmona ganhou apoio imediato dosgrandes meios de comunicação privados do país e do governoestadunidense, com a visita de Charles Shapiro (embaixadordos Estados Unidos na Venezuela) a Carmona representando oreconhecimento implícito desse país ao governo golpista. Alémdisso, no mesmo dia 12, o FMI anunciou a disponibilidade derecursos financeiros para a Venezuela, algo que tinham negadoà Argentina. Na verdade, o governo estadunidense participoudiretamente do golpe.

Ao que tudo indica, porém, os EUA não apenas encora-jaram e financiaram o golpe de Estado contra Chávez.Militares americanos também participaram diretamen-te da sua execução. De acordo com diversas informa-ções, na noite de 11 para 12 de abril, o coronel RonaldMacCammon, adido militar dos EUA na Venezuela, eseu assistente, tenente-coronel James Rogers, permane-ceram dentro da ‘Comandancia del Ejército’, no FuenteTiuna – principal unidade militar da capital – assesso-rando os generais que desobedeceram a Chávez e o des-tituíram da presidência da Venezuela.95

O “governo” Carmona, que durou apenas 48 horas, chegoua assumir, nesse pouco tempo, características extremamenteautoritárias, fascistas até. Carmona deixou-se influenciar pelossetores mais conservadores e radicais do Opus Dei da Venezuela,

95 BANDEIRA, Idem, p. 21.

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representados pelo contra-almirante Carlos Molina Tamayo e pelomultimilionário Isaac Peréz Recau, firmando um decreto sereservando ao direito de destituir governadores e prefeitos eleitos,derrogando a Constituição aprovada em referendo popular edissolvendo a Assembléia Nacional.

Quando soube do golpe, a população pobre de Caracas ede toda Venezuela rapidamente se sublevou em apoio a Chávez,que também tinha o respaldo de amplos setores das ForçasArmadas. Além disso, diante de medidas tão radicais tomadas porCarmona, até mesmo a CTV e alguns generais que haviam apoiadoo golpe desistiram de fazê-lo. Com isso, Chávez voltou ao podernos braços do povo. Ao retornar ao governo, Chávez esclareceuque jamais renunciou e que foi deposto e preso pelos golpistas.

Em dezembro de 2002, em nova tentativa de desestabilizaro governo, outra greve geral foi anunciada, com a alta gerênciada PDVSA tendo preparado meticulosamente a paralisação damaior empresa do país, responsável por 80% das exportaçõesda Venezuela. A greve foi dramática e durou 63 dias, só sendosuperada devido ao apoio da massa da população, que chegouaté a ficar sem gás de cozinha e retomou o fogão a lenha, e aosoperários petroleiros, através da Fedepetrol, que conseguiramgarantir o controle de áreas estratégicas da PDVSA, com osportuários e militares garantindo a embarcação do petróleo. Alémdisso, os países da OPEP e o Brasil garantiram, nos momentosde desabastecimento, o embarque de petróleo à Venezuela. Assistemáticas tentativas de desestabilização, com as sabotagense as greves, fizeram com que o PIB do país sofresse uma quedade 8,9% em 2002 e de 7,7% em 2003.

A pressão golpista só diminuiu devido ao crescente apoiopopular ao governo e à pressão internacional, com a criação do“Grupo de Amigos da Venezuela”, liderado pelo presidente Lula,tendo dado grande contribuição na mediação de um acordo quepreviu a realização de um referendo revogatório para acabar como impasse no país. O referendo ocorreu em agosto de 2004, com

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cerca de 60% da população votando no “no”, garantindo o man-dato de Hugo Chávez até as eleições presidenciais de 2006. Atémesmo o governo dos Estados Unidos reconheceu a vitória deChávez no referendo, que certamente deve ter sido o mais trans-parente da história do país, a julgar pela quantidade de observa-dores de agências internacionais, como a OEA e o Carter Center.96

É no mínimo intrigante o fato de os grandes veículos decomunicação apresentarem Chávez como “um perigo para ademocracia”, já que esse presidente sustentou politicamenteumas das mais democráticas constituições do mundo e venceuas duas disputas eleitorais e o referendo revogatório quedisputou (sem falar no apoio popular que o sustentou quandoa oposição tentou derrubá-lo). Durante seu governo, houveuma eleição por ano, se considerarmos as legislativas emunicipais. Como bem disse Eduardo Galeano:

Extraño dictador este Hugo Chávez. Masoquista ysuicida: creó una Constituición que permite que elpueblo lo eche, y se arriesgó a que eso ocurriera en unreferendum revocatorio que Venezuela ha realizadopor primera vez en la historia universal.97

É importante destacar que, a cada tentativa de golpemalograda, a Revolução Bolivariana se aprofundou mais. Depoisdo intento golpista de abril de 2002, o governo afastou os principaisgenerais golpistas, promovendo novos oficiais e garantindo ahegemonia do projeto bolivariano sobre as Forças Armadas.Depois do “locaute” petroleiro de dezembro de 2002 e janeiro de

96 Instituição criada em 1982 pelo ex-presidente estadunidense JimmyCarter. Os principais objetivos dessa instituição são monitorar e auxiliara resolução de conflitos internacionais e observar e certificar o andamentodos processos eleitorais em alguns países.97 GALEANO, Eduardo. Entre Venezuela y Nadalandia. Disponível nosite: http://www.patriagrande.net/uruguay/eduardo.galeano/escritos/20040818.htm.

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2003, o governo garantiu o controle sobre a PDVSA, demitindomilhares de gerentes e diretores – cerca de 18 mil dos 42 milfuncionários da empresa. O controle dessa poderosa estatal temservido como alavanca para o projeto popular de Chávez.

Deve-se dizer que a crise energética mundial,impulsionada por uma combinação de fatores, como a guerraestadunidense no Oriente Médio, a recuperação do controle doEstado russo sobre seus setores energéticos e a crescenterebelião popular na Nigéria, bem como a rearticulação da OPEP,liderada pelo próprio Chávez, elevou radicalmente os preçosinternacionais do petróleo, o que favoreceu enormemente aeconomia venezuelana, com a PDVSA tendo utilizando seusrecursos em investimentos em setores como educação, saúde,infra-estrutura, indústrias de base e nos núcleos dedesenvolvimento endógeno.

Os enormes excedentes nos preços do petróleo em 2004e 2005, em função da brusca elevação em seus preçosinternacionais, foram investidos na economia através do Fundode Desenvolvimento Econômico e Social do País (Fondespa), oque garantiu um espetacular crescimento do PIB da ordem de17,9% em 2004 e 9,3% em 2005. Além disso, o governo elevou acobrança de royalties de 1% para 16% das empresastransnacionais que extraem e processam o petróleo venezuelano.

O investimento de parte da renda petrolífera nas chama-das missões sociais de emergência, bem como nos núcleos dedesenvolvimento endógeno, tem garantido importantes con-quistas sociais na educação (Misiones Robinson, Ribas e Su-cre), na área médica (Misión Barrio Adentro), na criação demercados populares (Misión Mercal) e no impulso ao desen-volvimento econômico e social (Misión Vuelvan Caras).98

Com o aprofundamento das transformações, bem comocom o aumento da consciência popular, o governo tem

98 No site da estatal venezuelana PDVSA (http://www.pdvsa.com/), sãoencontradas informações detalhadas sobre os programas e as misionessociais do governo da Venezuela.

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reestruturado seus planos, assumindo posições e adotandopolíticas ainda mais avançadas, que agora tem como objetivo“construir o socialismo do século XXI”.

No plano da política externa, Hugo Chávez mantém seupragmatismo. O eixo principal de suas articulações internacionaisse dá em torno das relações com os países da OPEP e com ospaíses da América Latina. No âmbito da OPEP, o país impulsionaas decisões da organização no sentido de manter os preços dopetróleo favoráveis aos países exportadores, além de fazeracordos bilaterais de ciência e tecnologia no setor petrolíferocom os países da organização. No âmbito de suas relações coma América Latina, a Venezuela recuperou a tradição do libertadorSimon Bolívar, impulsionando um novo modelo de integraçãona região. Os principais projetos que sugerem a emergência deum modelo qualitativamente superior de integração na AméricaLatina, com a integração de cadeias produtivas, foram propostospelo governo venezuelano: Gasoduto do Sul99, Petrosur100,Petroamérica101, Telesur102, Bandesur103 e Alba104.

99 Projeto que visa construir um grande gasoduto ligando toda América doSul, da Venezuela à Argentina.100 Projeto de integração energética que tem como objetivo fomentar acooperação e a criação de alianças entre as empresas energéticas estataisde Brasil, Argentina, Uruguai e Venezuela.101 Tem como objetivo fomentar e coordenar a cooperação na áreaenergética entre diversas empresas estatais de toda América Latina.102 Uma rede de televisão dos países do Sul (no caso, os latino-americanos)que tem como objetivos quebrar o monopólio dos grandes veículos privadosde comunicação (muitas vezes estrangeiros ou controlados indiretamentepelo capital internacional) e promover a integração regional.103 Projeto para a criação de um Banco Sul-Americano deDesenvolvimento, que teria como objetivo financiar projetos nas áreassociais e econômicas, sobretudo os que promovam a integração regional.104 Alternativa Bolivariana para a América Latina e Caribe: propõe umaintegração que enfatize a luta contra a pobreza e a exclusão social,fundamentando-se na criação de mecanismos que visam impulsionar osurgimento de vantagens cooperativas entre as nações. É um projeto deintegração que rejeita o ideário neoliberal e que está fortementefundamentado em valores socialistas. Os países que até agora fazem parteda ALBA são: Cuba, Venezuela e Bolívia.

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Entretanto, é preciso destacar que o grau de tensão nasrelações entre Caracas e Washington, em função da participaçãodireta da Casa Branca no golpe de 2002, tem contribuído paradeteriorar as relações da Venezuela com os países sul-americanosmais subordinados aos EUA, como a Colômbia de Uribe, o quereforça nossa tese de que a integração entre países periféricosé incompatível com a manutenção de um modelo econômicodependente por parte de algum desses países.

Antes de finalizarmos nossa análise sobre a Venezuela,é preciso destacar que a imprensa mundial costuma apresentarum Hugo Chávez muito mais radical e menos conseqüente doque a realidade, sobretudo no que diz respeito aos assuntosinternacionais e às relações com os Estados Unidos. Aintensidade dos atritos com Washington nunca chegou a porem risco as relações comerciais entre os dois países, o que nãovem impedindo que a Venezuela continue trabalhando paradiversificar mais seus parceiros comerciais. Além disso, ogoverno bolivariano continua abrindo concessões para astransnacionais de energia, ainda que não se subordine a elas. Aforte retórica do presidente Hugo Chávez contribuiu para torná-lo mundialmente conhecido, fazendo com que haja maior atençãointernacional no processo político do país, o que certamentecontribui para inibir a oposição golpista e os Estados Unidosde implantarem um governo ditatorial no país.

A reeleição de Chávez com mais de 62% dos votos, em2006, levou até mesmo Washington a recuar e reconhecer alegitimidade do novo mandato do Coronel – ainda que tecendocríticas acerca do modo como ele supostamente trata ademocracia. Demonstrando que não vai retroceder, Chávezimpulsionou a união de todos os partidos que apóiam o governoe promoveu a criação do Partido Socialista Unido da Venezuela,além de ter anunciado a nacionalização dos setores detelecomunicações e eletricidade e de ter negado a renovação daconcessão da rede privada de televisão RCTV, que funcionavacomo um instrumento político das forças que tentaramimplementar uma ditadura na Venezuela com o frustrado intentode golpe em 2002.

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A Conjuntura PolíticaLatino-Americana: o caso da Bolívia

A Bolívia é o país onde o repúdio às políticas neoliberaisgerou algumas das mais intensas manifestações sociais domundo, o que culminou na vitória eleitoral de um indígena àpresidência da República (dezembro de 2005), ensejando umaguinada política que promete impulsionar profundastransformações econômicas, sociais e até civilacionais, devidoao fato de cerca de 80% da população do país ser de origemindígena (Aymara, Quéchua e outras tribos amazônicas), comsua cultura e tradição milenaristas sendo preservada pela maioriada população marginalizada.

A ascensão dessas forças populares é conseqüênciadireta da degradação econômica e da regressão social causadaspela aplicação da doutrina econômica neoliberal na Bolívia, queexacerbou a exploração, a pobreza e a miséria do país mais pobreda América do Sul.

A elite criolla sempre superexplorou e marginalizou amaioria indígena da população, daí o forte caráter étnico dasmanifestações sociais e políticas na Bolívia. Até meados dadécada de 1940, os índios eram proibidos de entrar nos centrosdas grandes cidades que haviam construído com seu sangue,necessitando de permissão especial para tanto, além de estaremvinculados à terra numa situação de semi-servidão nos campos.Tal situação só veio a se alterar, em parte, com a Revolução de1952. Tendo sido liderada pelo Movimiento NacionalistaRevolucionário (MNR), encabeçado pelos setores maisprogressistas da classe média (sobretudo os militares) e pelosoperários das minas de estanho, a Revolução chegou aincorporar importantes demandas indígenas ao novo projetonacional105. O então presidente Victor Paz Estenssoro

105 Deve-se dizer que a participação de indígenas na Guerra do Chaco(1932-1935) foi fundamental para sua incorporação à nação.

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implementou importantes medidas que contribuíram para acriação da Bolívia “moderna”: nacionalização das minas deestanho; inicio de uma reforma agrária; substituição do Exércitopor milícias populares; e adoção do sufrágio universal.

Entretanto, o clima de guerra fria e a difusão da doutrinade Contra-Insurgência contribuíram para gerar profundainstabilidade política no país, com golpes militares atrás degolpes militares. Mesmo depois do terrível golpe de RenéBarrientos Ortuño, em 1964, com forte repressão aostrabalhadores mineiros e à guerrilha, além da nomeação de umconhecido criminoso de guerra nazista e ex-agente da CIA paraum posto-chave em seu governo106, as forças progressistasainda conseguiram reagir, com a ascensão, em 1970, do generalantiimperialista Juan José Torres e a convocação de umaAssembléia Popular que representou o momento mais radicaldo impulso das forças democráticas iniciado em 1952.

Em 1971, Hugo Banzer Suárez derrubou o governo deTorres e adotou uma brutal ditadura, aliando-se automaticamenteaos Estados Unidos e adotando uma política econômicadependente. Os governos que se seguiram também forammarcados pelo desrespeito aos direitos humanos e por corrupçãogeneralizada, com o narcotráfico tornando-se um dos principaisnegócios da elite do país, inclusive com fortes indícios daparticipação de ex-presidentes nesse negócio ilegal, como do

106 Estamos nos referindo a Klaus Barbie (que utilizou o nome de KlausAltmann na Bolívia). Ele pertenceu à SS e foi chefe da Gestapo em Lyon,trabalhando no imediato pós-guerra para a CIA, com o serviço de reprimiras forças socialistas na Alemanha ocupada pelas tropas britânicas eestadunidenses. Depois que seus serviços se tornaram inúteis para CIA,Barbie fugiu para a Bolívia, tornando-se, no governo Barrientos, presidenteda Transmaritima e assessor dos serviços de inteligência da Bolívia. Barbietornou-se ainda um homem chave no tráfico de drogas (cocaína) e dearmas, sempre apoiando e ocupando posições importantes nos corruptosgovernos ditatoriais de Hugo Banzer e Luis García Meza.

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ditador Luis García Meza, cujo governo (1980-1982) era comumentechamado nos círculos internacionais de “governo da cocaína”.

Foi em 1985, com Victor Paz Estenssoro do MNRvoltando à presidência da República, já na vigência de um regimedemocrático-liberal, que a doutrina econômica neoliberal passoua ser implementada com ortodoxia no país. Estenssoro, soborientação do economista estadunidense Jeffrey Sachs, setornou o primeiro governante latino-americanodemocraticamente eleito a adotar de maneira mais aprofundadaessas políticas. A Nova Política Econômica (NPE) da Bolíviapromoveu a abertura econômica, uma política monetária restritivacombinada com a eliminação no controle dos preços (que foraminformalmente indexados ao dólar), e o inicio das privatizações,além do fechamento das minas de estanho não-lucrativas e dademissão de cerca de 23 mil trabalhadores do setor e de outros50 mil funcionários públicos. A declaração de Gonzalo Sánchezde Lozada, arquiteto do pacote de ajuste econômico deEstenssoro, elucida bem como foram as reações da população atais medidas e o caráter da resposta de um governosupostamente democrático:

[...] Assim que implementamos as medidas, tivemos umagreve geral; o país ficou parado dez dias em setembrode 1985. [...] No décimo dia, os líderes sindicaisiniciaram uma greve de fome, que foi seu grande erro.Foi então que decidimos declarar o estado deemergência. [o presidente] Paz acreditava que o povoconsiderava a situação insustentável. Assim,capturamos os líderes sindicais e os deportamos parao interior do país. Isso desarticulou o movimentotrabalhista. Fechamos o Comibol, consórcio demineração do Estado, e demitimos 24 miltrabalhadores, além dos cerca de 50 mil funcionáriospúblicos despedidos em todo o país. Acabamos com aestabilidade do emprego.107

107 CHOSSUDOVSKY, Michel. A Globalização da Pobreza: Impactosdas reformas do FMI e do Banco Mundial. São Paulo: Moderna, 1999. P.206.

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A desarticulação dos poderosos movimentos sindicaisdas minas foi uma condição necessária para a implementaçãodo modelo neoliberal. Entretanto, na década de 1990, a eliteboliviana perceberia que tais medidas contribuíram paradespertar forças sociais ainda mais poderosas: os ex-líderessindicais acabaram indo trabalhar com os camponesesindígenas, aumentando sua conscientização e dando um caráterpolítico ao movimento cocalero.

É importante dizer que as medidas neoliberaiscontribuíram muito para a expansão da narcoeconomia boliviana,já que as demissões em massa e a abertura comercial destruíramboa parte da economia nacional, com o influxo de produtosindustriais e alimentos importados baratos redirecionando ocapital e o trabalho para o setor econômico onde eramencontradas as chamadas “vantagens comparativas” do país,a produção da coca e sua transformação em cocaína paraexportação. Isso beneficiou enormemente a oligarquia produtorae comerciante da cocaína, o setor financeiro internacional quepassou a ter acesso a excedentes em dólar da Bolívia,provenientes da “reciclagem” dos narcodólares ganhos notráfico internacional, e o setor financeiro nacional que ficouinflado com as aplicações desse capital.

A liberalização do mercado de câmbio por meio dosistema de leilão holandês (bolsín) foi acompanhadade medidas que conferiram legitimidade à lavagem denarcodólares no sistema bancário doméstico.Introduziu-se o sigilo nas transações de câmbio (elsecreto bancario) e estimularam-se o aumento dedepósitos em dólar e a repatriação de capital para osistema bancário doméstico. Taxas de jurosextremamente altas (5% acima do Libor) contribuírampara atrair ‘depósitos de hot money’ para os bancoscomerciais da Bolívia.

Esses depósitos incluíam as receitas derivadas docomércio de drogas atribuídas a intermediáriosbolivianos. O sigilo bancário (‘sem perguntas’), as

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reformas do regime de câmbio, que permitiram o livremovimento de dinheiro para dentro e para fora do país,juntamente com as altas taxas de juros, estimularam osdepósitos de narcodólares no setor bancário comercialboliviano.108

Não podemos confundir o cultivo da coca que tem comoobjetivo sua transformação em cocaína e sua venda para oexterior com o cultivo tradicional, milenarista, que tem comoobjetivo o consumo interno das folhas de coca. A coca é umpatrimônio cultural dos povos dos Andes, suas folhas sãoconsumidas desde pelo menos o século II antes de Cristo.Apesar de ter sido considerada um artigo de luxo na época doImpério Inca, seu consumo passou a ser difundido para todapopulação durante o período colonial, já que mascar (chacchar)as folhas de coca diminui as sensações de fome, sede e cansaço,o que contribuía para a superexploração dos povos indígenas.

Com o tempo e a crescente marginalização dos indígenasna nova sociedade colonial e posteriormente oligárquica e liberal,a segregação fez aflorar os aspectos mais cooperativos ecomunitários da tradicional cultura indígena, com o chacchado(ato de mascar folhas de coca) tornando-se um ritual comprofundas implicações sociais, simbolizando os sentimentosde amizade e generosidade para com o próximo, materializadosno ato de compartilhar a coca e consumi-la conjuntamente comos outros, em ritual que sela relações de confraternidade econfiança entre seus participantes. Além disso, o cerimonial écheio de formalidades e controles exercidos pela comunidade,o que faz com que raramente as folhas de coca sejam objeto deconsumo abusivo que poderia causar danos à saúde dosindígenas (diferentemente do consumo da cocaína que, comotodos sabemos, causa sérios danos a saúde).

108 CHOSSUDOVSKY, 1999, p. 209.

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O consumo moderado de folhas de coca não prejudica asaúde e ainda possui importantes efeitos medicinais que foramincorporados à tradicional medicina dos povos andinos, quenormalmente não tem acesso a outros tipos de medicação. Nãoobstante tudo isso, as folhas de coca são tradicionalmenteoferecidas como tributo aos deuses e lugares sagrados.

Portanto, a produção e comercialização das folhas de cocatêm um amplo, legal e legítimo mercado de consumo interno naBolívia, daí a forte resistência dos cocaleros, que ganharam maiorconscientização política com a chegada dos ex-líderes sindicaisdas empresas de mineração a partir da segunda metade da décadade 1980, ao projeto estadunidense de erradicação total daprodução de coca. O interessante é que há fortes indícios de queesse programa estadunidense foi apropriado pela narco-oligarquianeoliberal boliviana, com a repressão sendo exercida sobre osprodutores tradicionais. A julgar pelo enorme crescimento danarcoeconomia boliviana no período, isso faz todo o sentido, jáque a repressão aos produtores tradicionais pode ter contribuídopara aumentar as áreas de produção que visavam suatransformação em cocaína e posterior exportação, além deredirecionar a mão-de-obra indígena para este tipo de produção.

Ao mesmo tempo que a estrutura macroeconômicaapoiava a narcoeconomia e a lavagem do dinheirosujo, o governo, com o apoio da DEA norte-americana,adotava uma legislação destinada a reprimir aprodução de coca. Usando os poderes conferidos pelalegislação pertinente (Ley Del régimen de la coca), ogoverno criara unidades móveis de patrulhamentorural (as Umopar, Unidades Móbiles de PatrullajeRural) nas áreas de produção de coca. Essas unidadesestavam em grande parte envolvidas em açõesrepressivas contra o pequeno produtor de coca(freqüentemente em áreas de produção tradicional).Suas atividades tinham pouco impacto sobre o comérciode drogas e sobre os vários poderosos interesses

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envolvidos na comercialização e exportação de pastade coca. Segundo um relatório, houve insinuações deque a Umopar era controlada pela máfia da droga.109

Não deixa de ser contraditório, pelo menos na aparência,que o governo dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em quemostra empenho em impulsionar esse tipo de ação repressivaàs comunidades rurais produtoras de coca, fecha os olhos parao fato de que o controle dos materiais químicos utilizados parafabricar a pasta da coca, materiais estes que são vendidos pelasgrandes corporações transnacionais químicas européias eestadunidenses (que por sinal lucram muito com isso), seriamuito mais fácil, barato e humano.

Além disso, o maior controle nas operações do sistemafinanceiro desses países também contribuiria para a identificaçãode quem está por trás desse negócio ilegal. Entretanto, ogoverno dos EUA e as organizações econômicas multilaterais –FMI e Banco Mundial – advogam justamente o contrário. Háquem diga que setores de Washington tem interesse namanutenção do multibilionário negócio do tráfico internacionalde drogas, seja para legitimar a ingerência militar na AméricaLatina, para garantir que pequenos e pobres países terãoexcedentes em dólares para serem transferidos ao exterior, paragarantir o financiamento de algumas operações encobertas(covert actions) nesses países, para que boa parte dos jovensestadunidenses permaneçam alienados enquanto negros elatinos pobres se mantêm ocupados em uma guerra sem fimpelo controle das “bocas” nos subúrbios das faustosas cidadesestadunidenses, ou ainda em função dos grupos de pressãoque atuam em prol das grandes corporações, como as jámencionadas empresas químicas ou as empresas de armamentosque faturam com a conseqüente militarização de nossassociedades.

109 Idem, Ibidem, p. 209.

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Exageros à parte, comprovadas ou não tais hipóteses,não convém aqui nos aprofundarmos sobre o papel dos EstadosUnidos e suas várias agências no mapa internacional donarcotráfico. Apenas convém enfatizar que a Federación deCampesinos Cocaleros da Bolívia (formada por produtorestradicionais), que então tinha como líder máximo o indígenaEvo Morales Ayma, resistiu com indignação e impressionanteforça popular às tentativas dos governos neoliberais bolivianosde destruir um patrimônio cultural andino, enquanto a produçãode droga para a exportação não era suprimida. Foi por isso quea Federación apresentou ao então presidente Hugo Banzer(em seu segundo governo: 1997-2001) um programa de cocaínacero ao invés do coca cero exigido pelo governo dos EUA.

A crescente mobilização dos camponeses indígenascontra o programa de fumigação total do cultivo da coca acabouampliando ainda mais sua consciência, com o movimento searticulando politicamente em torno do Instrumento Político porla Soberania de los Pueblos que, por não ter conseguidolegalizar a sigla na Corte Eleitoral do país, se juntou ao pequenoe até então inexpressivo partido Movimiento al Socialismo(MAS). Junto com a Central Operária Boliviana (COB) e asmobilizações lideradas por Felipe Quispe, do MovimientoIndígena Pachakuti (MIP), o MAS participou ativamente dasrebeliões populares que se contrapunham às medidasneoliberais, como a privatização e posterior aumento no preçoda água e, principalmente, contra a entrega do maior patrimôniodo país - as reservas de gás - às transnacionais.

É preciso lembrar que todos os governos, até 2005, quehaviam sucedido o de Paz Estenssoro de 1985-1989 adotarampolíticas neoliberais: foi assim com o de Jaime Paz Zamora (1989-1993), do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR); comos dois governos de Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-1997/2002-2003), do MNR; com o segundo governo do antigo ditadorHugo Banzer Suárez (1997-2001), do Acción DemocráticaNacionalista (ADN); e até mesmo com o improvisado governo

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de Carlos Mesa (2003-2005), que apesar de ser um políticoindependente estava mais vinculado ao MNR.

Foi durante a primeira presidência de Sánchez de Lozada,apelidado de el gringo devido ao fato de ter estudado e morado nosEstados Unidos e por isso ter sotaque estadunidense, que teveinício um processo que exacerbaria a oposição às políticasneoliberais: a aprovação da lei de capitalização da YacimientosPetrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), em decreto assinado em1997, dois dias antes de Lozada concluir seu mandato. Esse decreto,na prática, funcionou quase como uma privatização do setor.

A Bolívia adotou, ao longo da década de 1990, ummodelo de privatização das empresas estatais, ao qualdenominou de ‘capitalização’ e que consistia navalorização do patrimônio das empresas estatais pelaassociação com corporações estrangeiras que deveriaminvestir no setor nos próximos anos. Na prática, ascompanhias públicas foram entregues a capitaisexternos em condições muito favoráveis ao investimentoestrangeiro, enfraquecendo paralelamente acapacidade de fiscalização do Estado. Em especial, a‘Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos’ (YPFB)foi distribuída, entre outros consórcios, à Enron-Shell,à BP-Amoco e à Repsol-YPF, com modificação das leisde hidrocarbonetos, segundo a qual os impostos sobreos recursos seriam diminuídos de 50% para 18%, e osroyalties passariam a ser pagos com base em umadeclaração jurada pelas próprias companhias,facilitando assim o contrabando do produto. Nessecontexto, as empresas petroleiras ganharam o direitode propriedade dos recursos em boca do poço (isto é,após sua extração), do refino e da distribuição doproduto.110

110 URQUIDI, Vivian Dávila; VILLA, Rafael. Venezuela e Bolívia:legitimidade, petróleo e neopopulismo. Política Externa. Vol. 14, n. 4.Março/ Abril/ Maio de 2006. Pg. 75.

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Nos governos seguintes, esse decreto foi implementado,com o novo modelo de contratos com as petroleiras sendorealizados à margem da lei, já que deveriam ser referendados noCongresso.

A situação política no país era bastante instável, já queSánchez de Lozada havia chegado à presidência com o repúdiode 8 entre 10 bolivianos. No primeiro turno das eleiçõespresidenciais de 2002, Lozada praticamente empatou com ocandidato do MAS, Evo Morales, apenas vencendo no segundoturno, que foi decidido por decisão do Congresso.

A crise política explodiu quando Lozada indicou queestaria disposto a realizar o projeto do consórcio empresarialPacific LNG, criado pelas companhias British-Petroleum eRepsol-YPF, que tinha como objetivo construir um gasodutoque conectaria as reservas de gás bolivianas à costa pacíficachilena (país com o qual a Bolívia não possuía relaçõesdiplomáticas), onde este gás deveria ser processado e enviadopara os Estados Unidos.

O povo boliviano se mobilizou em massa contra esseprojeto. A memória do ouro, da prata e do estanho que haviamsido retirados do país permanecia viva na consciência dapopulação, que não queria ver mais suas riquezas naturais seremsaqueadas, dadas as condições da exploração do gás após a“capitalização”. O ano de 2003 foi marcado por essasmobilizações, lideradas por Morales e Quispe. Com a repressãodo governo tendo vitimado manifestantes, as mobilizações seintensificaram, com a convocação de uma greve geral e o cercoda capital do país pelos indígenas tendo paralisado a Bolívia.Os manifestantes exigiram a demissão de Sánchez de Lozada eseus ministros e a nacionalização do gás.

Em outubro de 2003, Lozada finalmente renunciou, como vice, Carlos Mesa, assumindo em seu lugar. Mesa rapidamenteconvocou um referendo sobre a situação do gás; referendo

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este que decidiu pela revogação da lei dos hidrocarbonetos deSánchez de Lozada, recuperando para o Estado boliviano apropriedade do gás na boca do poço. Com base neste referendode 2004, há a lei que foi aprovada pelo Congresso em maio de2005 e que garante que 51% das refinarias de gás voltem a serde propriedade do Estado. Mesa, entretanto, não apoiou a novalei de hidrocarbonetos (sendo que os manifestantesdemandavam uma lei ainda mais radical), adotando uma posiçãoambígua entre os interesses dos manifestantes camponeses eoperários e os da oligarquia e das transnacionais, pendendopara esses últimos, o que fez com que os manifestantes semobilizassem e exigissem a renúncia do presidente e de seussucessores diretos (o presidente do Senado e da Câmara dosdeputados).

Em junho de 2005, o Congresso finalmente aceitou arenúncia de Carlos Mesa, nomeando o presidente da SupremaCorte de Justiça, Eduardo Rodríguez Veltze, Presidente daRepública. Veltze rapidamente convocou eleições presidenciaisantecipadas, que foram realizadas no dia 4 de dezembro de 2005.

Essas eleições foram históricas: pela primeira vez, umindígena, no caso o aimara Evo Morales, do MAS-IPSP(Movimiento al Socialismo - Instrumento Político por laSoberania de los Pueblos), se torna presidente da Bolívia, ondecerca de 80% da população é formada por indígenas ou seusdescendentes diretos. Sua vitória foi incontestável: venceu noprimeiro turno com cerca de 54% dos votos, conferindo-lhegrande legitimidade (algo muito difícil na Bolívia) erepresentando o desdobramento político-eleitoral da ascensãoindígena e operária na luta contra o neoliberalismo. Éinteressante citar aqui um comunicado do próprio MAS:

Formado por auténticos representantes de los pueblosindígenas, campesinos y obreros, el MAS es,actualmente, la expresión de todos los sectoresmarginalizados de la sociedad que, oprimida por el

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modelo neoliberal y por la globalización, lucha porsus reivindicaciones, por su identidad, suautodeterminación, la soberania y la dignidad.111

Foi de especial simbolismo, no dia 21 de janeiro de 2006,um dia antes da posse do novo Presidente da República daBolívia, a cerimônia realizada em Tiahuanaco, centro cerimonialda civilização originária do Planalto boliviano, onde Evo Moralesfoi coroado, seguindo rituais aimaras, Apu Mallku (que podeser traduzido para “líder supremo”) dos povos indígenas dosAndes. Foi a primeira vez desde a coroação de Túpac Amaru(1570) que este título foi outorgado a alguém. Em seu discurso,destacou que, depois das derrotas de Atahualpa e de Huáscarpara os espanhóis, há quinhentos anos, os indígenas finalmenteretornaram ao comando da nação.

O programa de Evo Morales e do MAS promete“refundar” a Bolívia, resgatando a dignidade de seu povo. Épor isso que foi convocada uma Assembléia NacionalConstituinte, que deverá integrar plenamente os povosoriginários à nação, resgatando e reconstruindo algumas dasinstituições políticas de suas antigas civilizações, que devemampliar a democracia participativa na Bolívia. Além disso,Morales propõe e espera que a nova Constituição ajude a“descolonizar o Estado”, que deverá se tornar o principalinstrumento para o desenvolvimento do país. Como o MASconseguiu eleger a maioria absoluta dos deputados para aAssembléia Constituinte nas eleições de julho de 2006, tudoparece caminhar neste sentido, a despeito das tentativas dedesestabilização da direita.

No dia primeiro de maio de 2006, em Decreto Supremo,Morales finalmente nacionalizou as reservas de hidrocarbonetos

111 Ver: http://www.masbolivia.org/mas/comunicados/jichhapi.html.Acessado no dia 04/09/2006, às 15:00 horas.

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do país, fazendo com que as empresas que exploram essesrecursos tenham que ser mistas, com a estatal YPFB sendoproprietária de pelo menos 51% do capital. Além disso, a YPFBpassou a controlar a comercialização do produto, definindoquanto poderá ser exportado e quanto poderá ser usado nomercado interno, bem como seus preços, além de impor algumascondições no processo de industrialização desses recursos, oque deverá ser feito na Bolívia. O Decreto também acrescentou32% (por um período provisório) de impostos sobre os recursosaos 50% que já haviam sido aprovados na lei de 2005, garantindoque o Estado ficará com 82% da renda do setor.

Essa nacionalização foi a medida mais importante que ogoverno adotou, com a população dando total respaldo àdecisão do governo. Como Chávez, na Venezuela, Moralestambém pretende utilizar a renda recebida da exploração dosrecursos naturais do país para desenvolver as forças produtivasinternas e romper com a dependência externa. Como o próprioMorales disse:

Como lo hicimos com el gás y el petróleo, debemosseguir recuperando todos los recursos naturales paraindustrualizarnos en beneficio de los bolivianos yromper la dependencia de los centros imperiales quenos han condenado a ser provedores de matériasprimas.112

O projeto de Morales é ambicioso: pretende recuperaralguns aspectos essenciais da tradicional cultura milenaristaindígena e ao mesmo tempo incentivar a industrialização e aprodução própria de tecnologia, criando um elo de ligação entreo passado representado pelo legado cultural das antigascivilizações e o futuro socialista que se pretende construir,

112 MORALES, Evo. Discurso encontrado em: http://www.masbolivia.org. Acessado no dia 04/09/2006, às 15:00 horas.

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passando por uma transição que, segundo Álvaro Garcia Linera,atual vice-presidente e principal ideólogo do novo governo,deve incentivar e potencializar formas de auto-organização edesenvolvimento mercantil propriamente andino e amazônico,o que ele chama de “capitalismo andino-amazônico”.

Lenin proponía soñar com los ojos abiertos, lo quesignifica tener la capacidad de mirar el horizonteestratégico, pero saber manejar la táctica. Elcapitalismo andino-amazónico es la manera que, creo,se adapta más a nuestra realidad para mejorar lasposibilidades de las fuerzas de emancipación obrera ycomunitária a mediano plazo. Por eso, lo concebimoscomo un mecanismo temporal y transitorio.113

No âmbito da política externa, o governo de Morales temdado prioridade à agenda regional, sobretudo às relações coma Venezuela, já que a imprensa conservadora do Brasil aproveitouo fato de o episódio da nacionalização ter afetado a Petrobráspara transformá-lo em “humilhação nacional”, em clara tentativade enfraquecer o presidente Lula e desestabilizar o governo deMorales. Apesar disso, a Bolívia tem participado e impulsionadoas iniciativas que esboçam o surgimento de um novo modelode integração na região, aderindo à ALBA e estudando apossibilidade de se tornar membro pleno do Mercosul, além depossivelmente participar do projeto do Gasoduto do Sul.Ademais, as relações entre esse país e o Chile melhoraram muitodesde que Bachellet assumiu a presidência do país vizinho, oque tem gerado iniciativas que podem culminar em umarenegociação da questão do acesso ao mar por parte da Bolíviae no re-estabelecimento de relações diplomáticas entre os doispaíses andinos.

113 LINERA, Álvaro Garcia. El “capitalismo andino-amazónico”. LeMonde Diplomatique, N. 79, janeiro de 2006.

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Não se pode subestimar, entretanto, a oposiçãoconservadora boliviana, que desde o início do mandato deMorales vem sustentando ações que tem como objetivodesestabilizar seu governo. Com a abertura da AssembléiaConstituinte, na qual o MAS tem ampla maioria, a tendência éque as ações desestabilizadoras da oposição se ampliem, comojá tem ocorrido. Mesmo assim, com a articulação de poderososmovimentos sociais em torno do MAS-IPSP e uma correlaçãoregional e internacional de forças favorável, tudo indica queMorales conseguirá sustentar seu governo e realizar astransformações políticas, econômicas, sociais e culturais queprometeu.

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A ascensão de um novo modelo deintegração na América Latina?

Os mecanismos de integração latino-americanos, comodemonstramos no capítulo anterior, sempre foram influenciadospela contradição que até hoje marca a vida dos povos que vivemao sul do Rio Grande, aquela expressa na dialética dasintegrações: a do embate constante entre as forças que visamconquistar a independência e a libertação da região contra asque pretendem mantê-la sob o jugo da dependência.

Foi assim que a ALALC, que surgiu sob influência doideário da CEPAL, que visava ampliar a autonomia e possibilitaro desenvolvimento dos países da região, rapidamente se tornou,após os golpes militares que garantiram a reprodução ampliadada dependência na maior parte da América Latina, instrumentodas corporações transnacionais que aproveitaram odesarmamento alfandegário para organizar e distribuir melhoros centros de produção e os mercados latino-americanos.

Mais tarde, a aliança estratégica entre Brasil e Argentina,que surgiu na década de 1980, impulsionada pelos movimentospopulares que apoiaram a redemocratização, e que era focada

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na criação de cadeias produtivas integradas com ênfase nosetor de bens de capital e em uma ampla cooperação na área daciência e tecnologia, ganhou contornos neoliberais,transformando-se, na esteira das políticas do “Consenso deWashington”, em um projeto meramente “comercialista”, quedeveria servir de plataforma para a criação de uma Área deLivre-Comércio das Américas (ALCA).

Pois bem, a crise das políticas do “Consenso deWashington” também está sendo a crise da integração“comercialista” que essas mesmas políticas impulsionaram, oque, por sua vez, se desdobrou na crise do projeto querepresentava a continuidade da aplicação dos princípios dessa“integração” neoliberal, o da ALCA.

Novamente, a integração passou a ser vista por diversospaíses latino-americanos como uma forma de articulação regionalque tem como objetivo ampliar os mecanismos de poder quevisam combater a dependência. É por essa razão que os antigosinstrumentos de integração estão sendo reformados e novostêm sido criados: Comunidade Sul-Americana de Nações(CASA), depois rebatizado como União das Nações do Sul(Unasul); Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA);Petrosur e PetroAmérica; Telesur; Bandesur; “refundação” doMercosul, sua ampliação e aprofundamento, com propostas decriação de uma moeda única e de um parlamento no bloco; etc.

É importante destacar que, mesmo com o surgimento detodas essas propostas, os grandes veículos de comunicação,que sempre adotaram uma postura crítica com relação àsiniciativas de integração latino-americanas, apresentam as crisesque expressam a falência do modelo “comercialista” como aprova final da inviabilidade da construção de um grande blocolatino-americano. Nada mais longe da verdade, a falência dessemodelo, como vimos, é uma condição para o desenvolvimentode um projeto verdadeiramente “integracionista” para a AméricaLatina.

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No Mercosul, as crises que envolveram os dois principaispaíses desse bloco, Brasil e Argentina, estavam ligadas (e decerta maneira ainda estão) à maneira precipitada como asbarreiras comerciais foram removidas, bem como à disparidadedas políticas econômicas desses dois países ao longo da décadade 1990, quando seu comércio esteve determinado por políticascambiais irrealistas baseadas em convertibilidades artificiais desuas moedas nacionais (as chamadas âncoras cambiais). Abalança de comércio pendia sempre a favor do país que tinhasua moeda menos supervalorizada.

Hoje em dia, o principal problema que envolve o comércioentre esses dois países decorre da política econômica-financeirabrasileira. Enquanto o governo argentino vem adotando umapolítica monetária expansiva, que tem como objetivo recuperara economia argentina após o desastre neoliberal, o governobrasileiro, apesar de ensaiar mudanças, ainda mantém umapolítica monetária restritiva que, em função da estagnação quegera, limita as importações. Isso, evidentemente, prejudica oempresariado argentino, que reage pedindo proteção do Estadocontra os produtos brasileiros. Cada vez que isso acontece, oBrasil tem que negociar com a Argentina formas de equilibrar ocomércio através de concessões de salvaguardas temporárias,sobretudo em alguns setores chaves (produtos de linha branca,automóveis, têxteis e calçados), o que exigiu a criação de umaCláusula de Adaptação Competitiva (CAC), o que foi duramentecriticado pela imprensa brasileira, e que contribuiu paradesgastar a relação entre os dois vizinhos.

A falta de apoio do presidente Lula ao processo derenegociação da dívida levado a cabo por Kirchner, devido àestratégia de manter “boas relações” com o sistema financeironacional e estrangeiro, também contribuiu para desgastar essarelação.

Entretanto, a despeito de todos esses problemas, o Brasile a Argentina continuam sustentando uma parceriaimportantíssima, com os governos Lula e Kirchner impulsionandoo surgimento de um novo modelo de integração na região.

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Outro problema importante causado pela políticaeconômica de metas de inflação do governo brasileiro é oafastamento dos parceiros menores do Mercosul (Paraguai eUruguai). Com a demanda brasileira contida pela políticamonetária, bem como pelo desestímulo aos investimentosestatais e privados que essa mesma política causa, esses paísesse sentem desestimulados a participar do bloco, o que tem feitocom que eles utilizem a possibilidade de aderir a acordosbilaterais de livre-comércio com os EUA como instrumento debarganha para terem suas demandas atendidas (ou ao menosouvidas) no Mercosul, o que gera mal-estar dentro do bloco.

A entrada da Venezuela no Mercosul, que em função daalta do preço do petróleo dispõe de importantes recursosfinanceiros, pode suavizar essa situação, apesar de nadasubstituir o mercado brasileiro ou a imensa capacidade deinvestimento que esse país possui. As mudanças econômicasiniciados no Brasil no segundo mandato do governo Lula,simbolizadas no lançamento do Plano de Aceleração doCrescimento, que, sem abrir mão do combate à inflação, passa adar prioridade à retomada do crescimento econômico, tambémpode favorecer o processo de integração.

A fundação da Comunidade Sul-Americana de Nações(CASA), em dezembro de 2004, representou um grande avançono processo de integração da América do Sul. A intenção doprojeto é fazer com que o Mercosul, a Comunidade Andina(CAN), o Chile, a Guiana e o Suriname se integrem em um grandebloco sul-americano. Os objetivos da CASA transcendem osimples desarmamento tarifário: sua proposta está vinculada àidéia de que a integração deve ser física, impulsionada porgrandes investimentos em infra-estrutura. É por isso que com acriação da CASA se pretende desenvolver melhor a Iniciativapara a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana(IIRSA), que deve impulsionar projetos que visam à integraçãoenergética, de transportes e de telecomunicações. Com o tempo

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e com a retomada do desenvolvimento por parte de algunspaíses da região, a tendência é que esse bloco se torne o eixocentral de um projeto latino-americano que se contraponha àspretensões hegemônicas dos Estados Unidos. A CASA recebeu,em 2007, a designação de União das Nações do Sul (Unasul).

Também em dezembro de 2004, foi criada a AlternativaBolivariana para as Américas (ALBA). O objetivo desse acordo,firmado inicialmente por Cuba e Venezuela, com a posterioradesão da Bolívia, é apresentar um projeto de integração que secontraponha ideologicamente aos acordos de livre comérciopromovidos pelos EUA. É um projeto abertamenteantiimperialista, fortemente influenciado por valores socialistas.Sua intenção não é competir com os outros projetos deintegração latino-americanos; pelo contrário, é ser umcomplemento a eles. A Venezuela, país que idealizou a ALBA, étambém um dos que mais contribuíram para a criação da CASA,além de ter se tornado membro pleno do Mercosul no final de2005. A ALBA funciona como um eixo de integração entre paísessocialistas e em transição ao socialismo, ajudando a criar umacorrelação regional de forças favorável ao fortalecimento deprojetos de transformação social mais radicais.

É necessário destacar que a atual conjunturainternacional tem favorecido o renascimento do projeto“integracionista” na América Latina. A política externa dogoverno Bush (filho), que após 11 de setembro de 2001 passoua ser elaborada e implementada pelos setores mais reacionáriosda sociedade estadunidense, os chamados neoconservadores,que acreditam que a melhor maneira de manter uma suposta PaxAmericana é utilizando seu poderio militar, tem priorizado oOriente Médio (com as Guerras do Afeganistão e do Iraque, semfalar nas intrigas com a Síria e o Irã), o que contribuí para diminuira pressão (inclusive militar) sobre os países latino-americanos.

Entretanto, com o tempo, o inevitável fracasso dainvestida militar estadunidense no Oriente Médioprovavelmente fará com que as atenções de Washington se

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voltem para a América Latina, com os governantes desse paísvoltando a impulsionar com mais força um projeto que apostana institucionalização da integração dos países latino-americanos ao grande capital estadunidense como a melhorforma dos EUA competirem no sistema mundial. O fortalecimentoda estratégia de fazer acordos de livre comércio bilaterais comos países do hemisfério, bem como o apoio à tentativa de golpecontra o presidente venezuelano, em 2002, refletem essatendência.

Devemos nos lembrar de que projetos como o da NovaOrdem Mundial e da Iniciativa para as Américas (mais tardetransformada em ALCA) tiveram dificuldade de seguir adiantedevido, entre outras coisas, ao surgimento de um novo pólo emconflito, resultante do processo de unificação européia, sob ahegemonia da Alemanha, e do fracasso das políticas neoliberaisna América Latina. Atualmente, o cenário está ainda maisdesvantajoso para os Estados Unidos, que terão que assumircada vez mais abertamente sua nova condição de potênciaregional, o que aumentará muito a pressão desse país parasubmeter os latino-americanos às suas estratégias, pressão quesó poderá ser contida por uma América Latina unida e bemarticulada com as forças antiimperialistas globais.

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PARTE2

OS PROCESSOS DEINTEGRAÇÃO NAAMÉRICA LATINA

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CAPÍTULO4

INTEGRAÇÃO EDESENVOLVIMENTO NA

AMÉRICA LATINA114

114 Este capítulo tem como base um ensaio escrito em maio de 1989,quando, na América Latina, se davam alguns passos efetivos para aintegração dos países do Cone Sul. Brasil, Argentina e Uruguai saíam nafrente em busca dos caminhos concretos da integração, através da buscade solução conjunta para a questão da dívida externa, e levavam o debateao Grupo dos Sete.

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Luisa Maria Nunes de Moura e Silva115

Estudar, analisar e, simultaneamente, procuraralternativas para a integração da América Latina éuma tarefa complexa que, evidentemente, apenas seinicia. A Política é uma ciência e, como tal, tem

buscado, na verdade dos fatos, estabelecer conexões teóricase apontar prognósticos. Neste sentido é que, num primeiromomento, a análise e sistematização dos fragmentos históricos,econômicos, sociais e políticos que compõem o mosaico do

115 Luisa Maria Nunes de Moura e Silva é doutora em Sociologia pela USP,professora aposentada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul eprofessora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da UniversidadeIbirapuera (UNIb) e do Curso de Relações Internacionais do CentroUniversitário Belas Artes (Febasp). É coordenadora do Centro de Estudos-Estágios, Monografias, Projetos e Pesquisas em Relações Internacionais(CEMPPRI) da Febasp e autora do livro Nordeste, desenvolvimento eresponsabilidade social empresarial. Rio de Janeiro: Clássica, 2006.

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processo da integração latino-americana são necessárias. Énecessário, sobretudo, resgatar o processo econômico eideológico que se constitui na raiz dos processos de libertaçãoe soberania dos povos da América Latina para que, sobre estarealidade reconstruída, a análise das propostas políticascolocadas na ordem do dia para a integração do continenteLatino-Americano seja eficaz.

São conhecidos os principais momentos da história domovimento para a integração da América Latina, quepersonalidades marcaram esse movimento e como se deram osseus primeiros passos. Por isso, não raras vezes, temos atendência a considerar que, se os países da América Latina seunirem, estarão a salvo de processos econômicos e políticosinternacionais que na maioria das vezes penalizam o seu povo.

Nada mais frágil do que esta concepção, pois, por maisque esta unidade possa concorrer para o fortalecimento daseconomias de todas as nações latino-americanas e que estefortalecimento possa barrar a corrida hegemônica dassuperpotências e contribua para um equilíbrio de forças a nívelmundial, o mero “desejo” de que isso ocorra por si só não barraas forças externas de dominação e o poder dos monopólios emjogo. Ainda mais, a luta pela integração de hoje tem que sesituar num patamar diferente daquele do inicio do movimento,pois se dá no marco da modificação da correlação de forçasentre os dois grande blocos mundiais - o capitalista e o socialista-, o que faz com que se definam estratégias mais objetivas deluta pela unidade dos povos latino-americanos.

Para transformar o mero desejo em realidade, os dirigentesdas nações da América Latina estão, pois, compreendendo que,nos tempos atuais, a base da política mundial passou a ser oproblema da salvaguarda da Paz Universal, o que claramente sópode ser assegurado quando cada nação e cada povo tiver asua segurança nacional garantida pelo pleno desenvolvimentode suas forças produtivas e por um Estado soberano.

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A integração da América Latina:alguns fatos históricos

As origens do pensamento da unidade da América Latinase encontram nos países deste continente no momento em queneles despertava o sentimento de nacionalidade e a consciênciade que necessitavam lutar para libertar-se do colonialismoeuropeu, da dominação direta de Portugal e Espanha, em finsdo séc. XVIII e inícios do século XIX. Os arautos dessas idéiasforam diversos ideólogos na América Central, Bolívia, Chile eArgentina. Mas foi, sobretudo, Simon Bolívar – que liderou afundação da Gran-Colômbia e da Venezuela - um dos primeirosa fazer propostas concretas que levassem efetivamente a essaunidade. Sua perspectiva de transformar todo o novo mundonuma só nação, de estabelecer uma união fraternal dos povos euma inalterável harmonia entre governos e, finalmente, umgoverno comum com o objetivo de enfrentar os inimigos e serrespeitado pelas demais nações esbarrou, no entanto, naestratégia de expansão continental estadunidense.

Longe de ser uma visão romântica de Bolívar, criada soba euforia das vitórias nas guerras de libertação, a idéia da unidadelatino-americana foi levada à prática sob as mais diversas formas,sobretudo tratados de cooperação político-militar entre os

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Os povos latino-americanos, subjugados pela violênciadas intromissões, coloniais primeiro e imperialistasposteriormente, sempre desejaram a fraternidade e a paz. Paraconsegui-las, estão hoje dando largos passos na consciênciade que a unidade da América Latina não é uma mera intençãodeclarada em acordos políticos e sim a integração orgânica esincronizada de suas economias, de suas culturas e de seusprojetos de desenvolvimento e paz.

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países recém-liberados, conferências para criar uma federaçãoque garantisse que nenhum país americano fosse vítima daintervenção estrangeira116 e finalmente com a proposta, em 1823,de instalação do Congresso do Panamá, congresso este decaráter interamericano que teria como finalidade a fundação deuma estreita União dos Estados Independentes do continente.

Cabe destacar que a proposta de realização destecongresso por Bolívar se dá sobre a base concreta da primeiraunidade parcial na América Latina, a República Federada daGran Colombia117, e em meio ao fragor das batalhas anticoloniais,ao aproximar-se a vitória dos países da América Espanhola sobresua metrópole.

Nasceu como estratégia de fortalecimento da luta pelaindependência, na certeza de que a unidade que ali fosseconseguida seria decisiva para a derrota dos colonizadores eelementar para a construção do novo mundo da Unidade Latino-Americana.

Na preparação do Congresso do Panamá, tiveram que sersuperados numerosos obstáculos, desde problemas detransportes e comunicações até outros muito mais complexos, deordem política interna dos jovens países independentes. Noentanto, o mais sério deles, do qual dependia o êxito na realizaçãodo Congresso, não foi possível superar: o boicote imposto pelosadversários da unidade latino-americana que pretendiam dividirpara governar e que teve expressão maior precisamente napolítica externa estadunidense, permeada de ideais deexpansionismo.

116 Foi proposta do político hondurenho José Cecílio Del Valle, autor da“Declaración de Independência” que a Assembléia Nacional Constituintedas Províncias Unidas de Centro América convocassem uma conferenciageral de representantes dos estados independentes do ContinenteAmericano, que efetivamente ocorreu.117 Em 1819, Integrada pela antiga Capitania Geral da e o Vice-reinado deNova Granada, incluídos Panamá e a Audiência de Quito (atual Equador).

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A política externa dos EUA apresentava uma aparentedubiedade. Já no momento da luta pela independência dospaíses submetidos ao jugo do colonialismo, os estadunidensesnão haviam respondido positivamente aos apelos de apoio porparte da América Latina. Não só se mantiveram omissos comonão reconheceram os jovens países e ainda obstaculizaram, portodos os meios, a liberação das últimas colônias da Espanha,Cuba e Porto Rico.

Na prática, os EUA não só não ajudaram em nada aAmérica Latina como, camuflando-se numa suposta“neutralidade”, executavam uma política exterior de agressão:cultivaram a possibilidade de anexar a ilha de Cuba; apoderaram-se da Flórida ocidental e posteriormente a oriental; depoistomaram o Texas. O próprio Bolívar já havia percebido a grandeameaça que a posição estadunidense de “rigorosa neutralidade”significava, se levada em consideração que a desigualdade dasforças em guerra favorecia a Espanha.

Por tudo isso, os estadunidenses não foram convidadosao Congresso do Panamá por seus organizadores. Mas outrospaíses, como Colômbia, México e Centro-América, na esperançade apoios concretos em lugar das vagas promessas conseguidasaté então, os convidaram a participar. A “diplomacia”estadunidense optou por confirmar sua presença sem, no entanto,comparecer, sabotando conscientemente o Congresso e a unidadeda América Latina proposta pelos próprios latino-americanos.

Esta foi uma das formas pela qual os EUA tentaramestabelecer as bases da sua hegemonia e a debilitação dosprocessos de independência da América Latina. Outra forma foia proclamação da “Doutrina Monroe” em 1823. Essa “doutrina”,teoria e prática da sua visão particular da unidade do continenteamericano (independente, sim, mas sob a hegemonia,“predestinada por Deus” dos EUA)118, não foi nada mais doque uma estratégia de política externa daquele país frente à

118 Ver GLINKIN, A. El Latino-Americanismo contra el Pan-Americanismo. Moscu: Progreso, 1984, p. 29.

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proximidade do Congresso do Panamá (1826) precisamente paradebilitar a unidade dos jovens países independentes da Américado Sul, na medida em que esta unidade poderia vir a ser um forteobstáculo aos seus planos expansionistas.

Ainda no final do século XIX, a perspectivaestadunidense de expansionismo sobre o resto do continenteutilizou-se do pensamento bolivariano para lançar oPanamericanismo, ideário e política exterior que se baseou numasuposta “comunidade de interesses” entre os EEUU e seusvizinhos Latino-Americanos119.

O Panamericanismo surge no bojo dos esforços queforam realizados, após o Congresso do Panamá, para manteracesa a chama da unidade e solidariedade na América Latina. E,embora os historiadores dos Estados Unidos tenham omitidoalguns fatos120, a história das relações internacionais na regiãoreafirma que o pensamento de Bolívar de unidade da AméricaLatina frente às grandes potências, especialmente os nossosvizinhos continentais do norte, continuou na base da diplomaciada região. O México, país que mais sofreu entre todos aintervenção estrangeira, foi o primeiro a assumir, após a mortede Bolívar, a convocação de um novo congresso das jovensnações independentes. Vários congressos e conferências serealizaram até o final do século XIX não só com o apoio dospaíses mais expressivos de América Latina, como da própriaopinião pública, nos quais foram assinados diversos tratadosde cooperação, assistência recíproca, união e aliança defensivapara conservação da paz, etc.

119 Na verdade, a ideologia do Panamericanismo nada tinha que ver com osideais de Bolívar e foi mais uma justificativa ideológica para ointervencionismo dos Estados Unidos nos jovens países independentes daAmérica Latina.120 É o caso do livro “História Diplomática da América Latina”, de H.Davis, J. Fename e F. Peck, catedráticos da Universidade de Georgetown(Washington, 1977)

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O desenvolvimento daAmérica Latina e a integração

A História do desenvolvimento dos países da América Latinaesteve sempre marcada pela dominação violenta, fosse atravésde bases militares, como ocorreu no período colonial, fosseatravés de instrumentos claramente econômicos e ideológicos,como ocorreu após o período das lutas pela independência.

A América Latina foi vítima da exploração das grandespotências mundiais que arrancaram, à força das armas e docomércio exterior desigual, os frutos do trabalho nativo eescravo. Essas mesmas potências passaram, posteriormente, aexplorar diretamente as forças produtivas de cada nação ou degrupos de nações, assentando as bases do domínio dosmonopólios121 característicos da fase imperialista do capitalismo.

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Em que pese a intenção dos países de se unirem, não seconseguiu, no entanto, que tais tratados fossem ratificadosposteriormente, já que as relações de dependência comercial ede dívida externa assumidas pelos jovens países junto aosantigos colonizadores e às potências industriais desenvolvidas(sobretudo a Inglaterra) fazem com que eles acabem sesubmetendo à regra imposta pelas grandes potências - “dividirpara governar” -, digladiando-se em diversas lutas inter-regionais, o que, em definitivo, mina as possibilidades daintegração ainda no século XIX.

121 Lenin analisou o processo de expansão do capitalismo no mundo,chegando à conclusão de que sua fase superior - o imperialismo - já estavaplenamente formado desde fins do século XIX até o início da 1ª GuerraMundial. LENIN,V.I. El imperialismo y la escision del socialismo. ObrasCompletas. T. 30, p. 164.

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Após a independência política conseguida a duras lutas,os países latino-americanos se viram a braços com toda a sortede contradições. Apesar da consciência de que a fragmentaçãolevaria à submissão contínua, em meio a todo o processo detentativa de unificação que acabamos de analisar, e, agora, sobo signo do domínio dos monopólios surgidos comoconseqüência da concentração da produção e do capital nospaíses mais desenvolvidos da Europa e na América do Norte, aAmérica Latina passa a ser, na realidade, peça do jogo derepartição de zonas de influência do imperialismo a nível mundialem processo de fortalecimento de suas próprias posições.

Por outro lado, a soberania e a autonomia dos Estadosrecém-formados eram debilitadas pela política exterior daquelespaíses que os oprimiam economicamente e fomentavaminternamente as divergências e oposições, o militarismo e aagressividade.

Assim foi que os albores do século XX vão encontrar ospaíses da América Latina imersos em dívidas externas, herdadasumas do período colonial, realizadas outras por meio deinvestimentos estrangeiros sem nenhum risco para estes e queganhavam a forma de empréstimos estatais e privados totalmentegarantidos pelos governos dos países devedores (o caso dosinvestimentos ingleses, franceses e alemães), ou deinvestimentos no setor produtivo (caso dos EUA).

O objetivo destes “investimentos” estrangeiros, cujacontribuição ao “desenvolvimento” dos países da AméricaLatina foi defendida por economistas de filiação monetarista122,era ampliar a infra-estrutura de transportes, comunicações eexportações. Mas o resultado prático foi que estes investimentospropiciam a consolidação cada vez mais profunda das posições

122 São representantes brasileiros dessa corrente Eugenio Gudin, OtávioGouveia de Bulhões, Roberto Campos e Delfim Neto.

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monopólicas na região, favorecendo a desnacionalização desuas economias e a drenagem de recursos para o exterior.

Em trabalho anterior, desenvolvemos a tese daincompatibilidade dos monopólios imperialistas e sua atuaçãonos países da América Latina com a democracia nestes países123.

Na mesma linha de raciocínio, entendemos que, em quepese os investimentos estrangeiros estimularem odesenvolvimento das forças produtivas dos países sub-desenvolvidos, o estabelecimento de uma considerável rede detransportes e comunicações e a criação de empresas quebeneficiam as matérias primas, abre espaço a que o capitalmonopólico recrie (sempre cria) formas pre-capitalistas eatrasadas de produção no campo e em regiões maisdescapitalizadas desses países. Bem como cria os fenômenosdas “regiões”124 e, definitivamente, acabe colocando sob seucontrole as estruturas econômicas e do Estado de cada umdesses países.

À medida, pois, que os EUA se impuseram como osgrandes credores da América Latina, aproveitaram-se das lutaspela libertação colonial para impor a sua ocupação sob a formade “proteção”. Foi assim com Porto Rico, Cuba, Panamá,Honduras, Haiti, Republica Dominicana e México.

Todo esse movimento de penetração do capitalmonopólico nos países do continente se desenvolve sob oclima do Panamericanismo e se amplia posteriormente com adisseminação da “tese” de que seria impossível para os países

123 SILVA, Luisa M. N. M. Imperialismo, dependência e Estado.Comunicação apresentada ao X Congresso Latino-Americano deSociologia. Rio de Janeiro, 1986, publicado na Revista de CiênciasHumanas, 1989, UFMS, pp, 40-46.124 Um estudo concreto deste fenômeno no Brasil/Nordeste é o livro deOLIVEIRA, F. Elegia para uma Re(li)gião. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1977.

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em desenvolvimento superar o atraso econômico sem a ajudado capital estrangeiro.

Na realidade, como conseqüência de todo este processode dependência econômica e política dos povos e nações daAmérica Latina, ficou definitivamente comprometida a suapolítica exterior, enfim a sua capacidade de barganha a nívelinternacional.

O fato de não ter vingado o processo de unificação daAmérica Latina proposto por Bolívar permitiu que oPanamericanismo se impusesse como norteador das relaçõesinternacionais do continente americano. Os estadunidensesconseguiram desenvolver a “Doutrina Monroe” e levá-la àprática, designando para si um papel dirigente e de autoridadenos assuntos inter-americanos em documentos diplomáticosremetidos aos seus representantes em países da América Latina.

Ainda no final do século XIX, foi convocada a IConferência Pan-Americana, cuja pauta incluía importantespropostas no sentido da integração econômica e pacificaçãode toda a América, que iam desde a união aduaneira, implantaçãode moeda única, etc., até‚ à adoção de um plano de arbitragempara que se resolvessem os litígios da América Latina125,cabendo aos EUA o papel de grande pacificador.

Parecendo claro que o Panamericanismo e seu ideário desolidariedade continental eram, na verdade, uma capa paradisfarçar a real colisão dos interesses expressos noexpansionismo estadunidense com os de soberania da AméricaLatina, nenhum país do continente aceitou estas propostas elevantou-se uma onda de desconfiança com relação aWashington. Nessa conferência, apenas foi criada a União

125 A América Latina recém saía de guerras cruentas como a da TrípliceAliança (Argentina, Brasil e Uruguai contra o Paraguai) em 1864-1870 ea guerra do Chile com a Bolívia e Peru em 1879-1884

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Internacional das Repúblicas Americanas, tendo como órgãopermanente o Escritório Comercial com sede em Washington.

As conferências seguintes, até 1910, corroboraram paraa transformação dos EUA em interlocutor e referência máximaválida para as nações e como mediador destas junto aos paísesda Europa. E coroaram, a nível diplomático, a expansão dosmonopólios nos países latino-americanos. Assim, o EscritórioComercial transformou-se em Escritório Internacional dasRepúblicas Americanas e incorporou atividades culturais esociais, começando a desenvolver atividades administrativas ede organização. Mais tarde, o escritório foi denominado UniãoPanamericana, convertido em Secretariado Permanente daOrganização Interamericana e seu objetivo oficial era o dacooperação econômica e política dos Estados Americanos.

Aos poucos, os EUA continuaram aumentando a suahegemonia econômica e política sobre os países latino-americanos, usando muitas vezes as debilidades e temores deuns (Uruguai) ou as alianças secretas com outros (Brasil).

Entretanto, a consciência dos “golpes” americanos nãocalou a oposição, cada vez mais ampliada, nos países latino-americanos que estavam agora na posição de satélites deWashington.

A Argentina comandava este grupo consciente emantinha a sua independência diplomática em relação aos EUA,preferindo manter a orientação tradicional da sua economia emdireção à Inglaterra. Era uma oposição surda, conseguida graçasà resistência à ratificação de acordos e tratados que porventuraos americanos conseguiam aprovar nas reuniões.

Debilitados econômica e politicamente, os países latino-americanos ainda esgrimiam o “Império” estadunidense com oDireito Internacional e tratavam de se proteger contra aparticipação dos EUA nas soluções dos litígios na AméricaLatina. Isto porque, quase sempre, esta participação redundava

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em “intervenção” militar ou diplomática, visto que a econômicaestava na base. Os princípios da soberania nacional foramressuscitados com base na doutrina de Carlos Calvo (1825-1906), jurista argentino que proclamou, baseado na igualdadejurídica de todos os Estados, a inadmissibilidade da ingerênciadiplomática e, muito menos, a da intervenção armada, para cobraras dívidas de outro país ou para obter indenizações por perdassofridas por súditos estrangeiros.

Aproveitando-se de contradições inter-imperialistas(rivalidades entre EUA, Inglaterra e Japão), a diplomacia dospaíses latino-americanos logrou obter vitórias em prol da defesade suas soberanias. No fundo desta tendência defensiva, estavaa aspiração dos maiores países da América Latina - Brasil,Argentina e Chile - de criar uma unidade que pudessecontrapesar a influência dos EUA, abrindo uma brecha na“Doutrina Monroe”. No entanto, as posições assumidas pelosdiversos países latino-americanos na 1ª Guerra Mundial fizeramcom que esta tendência, mais uma vez, não se materializasseduradouramente.

No primeiro período pós-Guerra, aumentouconsideravelmente a dependência financeira das Repúblicaslatino-americanas com relação aos Estados Unidos. De 1920 a1929, os banqueiros estadunidenses emprestaram à AméricaLatina 3,5 vezes mais que os ingleses. Esses empréstimosimpunham sempre compromissos que ampliavam aspossibilidades de pressões sobre estes países.

No comércio exterior, também os estadunidensestomaram a frente dos ingleses, correspondendo-lhes o dobrode exportações e importações dos países latino-americanos.

Enquanto isso, seguiram sendo celebradas asconferências pan-americanas sob a crescente indignação dosdelegados latino-americanos, que nunca viam discutidas suaspropostas, vítimas de manobras dos Estados Unidos nosbastidores diplomáticos.

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Sobreveio a crise mundial de 1929-30 e esse período foimarcado, na América Latina, por um auge revolucionário e porescaramuças sangrentas entre os países. Foi nesse período quese abriu a guerra entre a Bolívia e o Paraguai pelo chacoparaguaio. Cada um destes países era apoiado por uma potênciaimperialista (os EEUU apoiavam a Bolívia e a Inglaterra, oParaguai) e afetava interesses dos países vizinhos, Brasil eArgentina. A guerra ameaçou alastrar-se e serviu de motivopara que os governos desses países recebessem novosempréstimos estrangeiros e, sob o pretexto de garantir a“unidade nacional”, também procurassem reprimir as forçasdemocráticas dentro de seus países.

Para restabelecer a paz, foi decisivo o papel das forçaspopulares, organizadas no movimento anti-bélico e, neste, o daConfederação Sindical Latino-Americana, que participou em1933, em Montevidéu, do Congresso Antibélico Continental.Foi a solidariedade entre os povos latino-americanos, frente àameaça de guerra, um dos principais fatores que obrigaramaqueles dois países a pôr fim ao sangrento conflito.

Este fato significou o fracasso total da mediaçãodiplomática inglesa e abriu espaço e liberdade de ação para osestadunidenses que, muito ao contrário de defenderem a soluçãopacífica dos conflitos latino-americanos, propunham aintervenção da União Pan-Americana, sob sua hegemonia.

Novamente, a consciência do intervencionismoestadunidense fez com que um projeto comandado pelaArgentina, denominado Pacto Antibélico, recebesse amplorespaldo na América Latina e conseguisse ser colocado em pautana VII Conferência Pan- Americana (1933). As cláusulasprescreviam que os Estados signatários do Pacto, em caso deconflito, deviam adotar todas as medidas para manter a paz e denenhuma forma recorrer à intervenção diplomática ou armada”126

e chegou à conferência já assinado por diversos países, como

126 The International Conferences of American States. 1933-1940Washington, 1940, p. 497. In GLINKIN, A. op cit., p 82.

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Argentina, Brasil, México, Paraguai, Uruguai e Chile, nãorestando aos EUA senão tentar restabelecer o seu prestígiopopularizando uma política de bom vizinho, renunciando aalgumas prerrogativas intervencionistas.

Todos os países latino-americanos ratificaram o Pacto, e aunidade foi suficiente para que a garantia da paz no continentefosse vislumbrada e os EUA olhassem com mais respeito seuspares continentais: a política externa foi modificada, reconhecidosgovernos surgidos por via revolucionária, estabelecida uma novapolítica de empréstimos e de cooperação comercial.

Embora essa nova política continuasse sendo funcionalao seu ideário e à sua prática expansionista, não há dúvida deque foi um marco decisivo no estabelecimento de novacorrelação de forças na América Latina e nos marcos das relaçõesentre as grandes potências.

O decorrer do final dos anos de 1930, da II Guerra Mundiale do pós-guerra é marcado por uma diminuição da influência doimperialismo estadunidense sobre a política externa dos paísesda América Latina. Isso porque haviam se quebrado os esquemashegemônicos anteriores, com base na Inglaterra, e ainda não sehavia consolidado a nova hegemonia, baseada nos EUA.Naquele período, os EUA inicialmente tiveram que reconstruirsua própria economia (depois da Grande Depressão), depoisvoltaram-se para a guerra e, finalmente, se envolveram noesforço de reconstrução européia e na guerra contra a Coréia.

Essa situação abriu espaço para o desenvolvimentoindustrial independente de vários países da América Latina, oque ensejou que, a partir dos anos de 1960 e de 1970, fossemcriados vários organismos e organizações de cooperação inter-estatal dos países latino-americanos numa autêntica retomadado ideário de latinoamericanidade de Bolivar e Marti e das outraspersonalidades do período da Independência.

Ficou evidenciada então a necessidade objetiva de serecuperar o tempo perdido, de se criarem organismos queefetivamente procedessem à integração da América Latina nas

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mais diversas áreas, desde a diplomática até a científica127,passando por relações econômico-comerciais, finanças,desenvolvimento industrial e de recursos naturais, transporte,comunicações etc., procurando sempre independência emrelação aos Estados Unidos.

As concepções de solidariedade e de cooperação latino-americana adquiriram dimensão profunda em importantesorganismos como a CECLA (Comissão Especial CoordenadoraLatino-Americana); OPANAL (Organismo para a Prescrição dasArmas Nucleares na América Latina); GRULA (Grupo Latino-Americano para a ONU); nas conferências regionais dosMinistros de Relações Exteriores e nos encontros de chefes deEstado. Estes se constituíram nos cinco organismossubregionais mais importantes da integração econômicacomponente do sistema regional.

Mas foi a criação do SELA - Sistema Econômico Latino-Americano – que culminou esta etapa da formação de um novosistema de relações entre os países da América Latina. Foiresultado do desenvolvimento de esforços e processosintegradores objetivamente acontecidos na região, iniciadosainda em 1960, com a criação da ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio) e do MCCA (Mercado ComumCentro-Americano).

As atividades do SELA não se restringem a questõestécnico-econômicas, e sua função é mais ampla: trata-se de um“organismo regional de consulta, coordenação, cooperação epromoção econômica e social conjunta”, com resultadossensíveis nos primeiros cinco anos em diversas áreas culturais,industriais e técnicas.

127 Em recente acordo patrocinada pela ALADI (14 de novembro de1988), alguns países latino-americanos conveniaram o intercâmbio debens científicos, tecnológicos, educativos e culturais liberados de tarifasalfandegárias.

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No âmbito das atividades do SELA, foi proposto, sob ainiciativa do Brasil, o Tratado de Cooperação Amazônica128,subscrito por oito países sul-americanos. Este tratado, entreoutros objetivos, estabelece diretrizes básicas de política comumpara o desenvolvimento e conservação das riquezas naturaisda região amazônica, bem como cria um organismo executivoespecial, o Conselho de Cooperação Amazônica.

Já no início dos anos de 1980, foi constituída a ALADI -Associação Latino-Americana de Integração com a finalidadede fortalecer os vínculos entre os grupos integracionistasregionais e dar maior dinamismo a suas atividades.

A partir, pois, do momento em que a América Latinaassumiu a sua identidade, passa a ocupar lugar destacado nacorrelação de forças a nível mundial.

Para a modificação do papel e do lugar dos países daAmérica Latina nas relações internacionais, contribuíramprocessos objetivos de desenvolvimento sócio-econômiconesses países, a despeito dos grilhões impostos peloendividamento externo contraído precisamente para financiaresse desenvolvimento.

Na América Latina, em relação a outras regiõessubdesenvolvidas, o crescimento populacional e a incorporaçãodesta população à produção social é maior, o potencialeconômico se desenvolve mais rapidamente com a assimilaçãode novas fronteiras produtoras e com o desenvolvimento daindústria pesada e da agricultura.

Mudanças fundamentais também ocorreram nasestruturas sociais e políticas, as quais favoreceram que os quatromaiores países da região (Brasil, México, Argentina e Venezuela)

128 No âmbito deste tratado, foi realizado em 1987, em Belém do Pará, oI CITAM cujos documentos foram reunidos no volume 1 da sérieCooperação Amazônica intitulado “Universidade e DesenvolvimentoAmazônico”.

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viessem a se encontrar entre os primeiros vinte e cinco Estadoscapitalistas do mundo.

No entanto, a partir da consolidação da hegemoniaestadunidense no campo capitalista, dos anos 1950 em diante,o “desenvolvimento” pela via capitalista dependente trouxepara estes países a penetração intensiva de capital estrangeironos ramos chaves de suas economias129, o que resultou numaelevação do nível de exploração do povo desses países,agravando o nível de contradições internas (de classe) e externasem relação aos países imperialistas.

O espaço para o enfrentamento das contradiçõesinternas aumentou com a ampliação crescente dos espaçosdemocráticos. Já as contradições externas, que limitam opotencial de desenvolvimento da região, levaram os paíseslatino-americanos a considerar uma forma de reação comoresposta a esta forma de dependência caracterizada pelacrescente influência dos monopólios transnacionais naeconomia e na política da América Latina.

É assim que a unidade e a cooperação entre os paíseslatino-americanos foram decisivas para que, na ONU e em outrosfóruns internacionais, fosse reconhecido o direito da AméricaLatina em bloco fazer propostas para a reformulação da injustaOrdem Econômica Internacional. Muitas das decisõesrelacionadas a uma Nova Ordem Econômica Internacional foramcondicionadas pelo papel da diplomacia dos países latino-americanos.130

129 A prolongada expansão dos monopólios internacionais converteu aAmérica Latina na principal região de investimentos estrangeiros domundo desenvolvido (EUA, Japão e Alemanha).130 Ver SOUZA, N. A. A Nova Ordem Econômica Internacional. S. Paulo:Global, 1987, p. 97.

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A integração daAmérica Latina e a Paz

O sistema de cooperação de países da América Latinadifere do de outros países em outras regiões, como é o caso daÁfrica (Organização da Unidade Africana) ou da Europa(Comunidade Econômica Européia) ou ainda o da antiga UniãoSoviética e Leste Europeu (CAME). O traço distintivo presentena organização dos países latino-americanos é a plenaautonomia dos organismos que a compõem e dos países quedeles participam, a ausência de hierarquias ou escalões.

É importante que se ressalte este traço porque estaunidade e a integração em diversas áreas, conseguida até adécada de 1990, se forjou precisamente sobre uma base decontradições históricas e econômicas sociais e políticas que,como acabamos de analisar, fracionaram e fragilizaram de umaforma ou de outra estes países, limitando-os de um lado eimpulsionando-os de outro, rumo à liberação colonial, àsoberania nacional e à conquista de um espaço próprio daAmérica Latina nas decisões mundiais.

Nas últimas décadas, a dívida externa tem sido a principalexpressão da dependência econômica da região. O seucrescimento assustador levou os países mais endividados docontinente a se reunirem e a discutir novas condições depagamento ou até mesmo a fazerem moratórias parciais entre osanos de 1980 e de 1990. Cresceu na época a consciência de que adívida externa da América Latina, nos termos em que foi contraída,era impagável, a não ser à custa da estagnação da economia e dafome e da miséria da maioria da população latino-americana.

Assim sendo, passou a ser considerada como saída paraos países latino-americanos se libertarem desta sangria eescaparem do domínio externo precisamente a de suspenderemo pagamento da dívida, serviço e principal e abrirem espaço

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Perspectivas da IntegraçãoLatino-Americana

Em que pese a disseminação ostensiva de uma descrençaque tem na base o ideário que move as posições diplomáticasdos centros hegemônicos, a integração latino-americana parececaminhar no sentido da realização do ideal de Bolívar.

Os países latino-americanos estão tentando construir asua própria via da integração: “o caminho não existe, ele estásendo construído”.

para um estilo de desenvolvimento baseado nas potencialidadesregionais e vocacionado para o mercado interno da região.

Para darem esse passo decisivo, os pequenos e grandespaíses latino-americanos necessitam da unidade, cooperação eintegração, enfim, do estabelecimento de uma rede deinterdependências e de complementaridades que permita aos seusEstados aumentarem a capacidade de negociação e respondereme agirem como uma só frente às ameaças externas contra aintegridade da região e até mesmo a segurança do Planeta.

Ao mesmo tempo em que se fortalecem, os países latino-americanos aumentam a brecha aberta pela crise da dividaexterna e pela crise do sistema de dominação. Assim conseguemmelhores condições de pressão para o estabelecimento de umaNova Ordem Econômica Internacional, uma ordem que promovaimportantes transformações sócio-econômicas tanto nos paísesdominados quanto nos países centrais; uma ordem em queambos os lados deixem suas posições anteriores para, atravésda redistribuição de tarefas econômicas e da reestruturaçãodas relações internacionais sobre uma base mais justa edemocrática, compartilhem a responsabilidade histórica dodesenvolvimento e da paz mundial.

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Não é um caminho no modelo europeu, onde o novoimperialismo (alemão) sucede o velho e decadente (inglês). Nemnos moldes socialistas, onde prevalece a cooperação para oplanejamento do desenvolvimento, para a especialização ecooperação na produção entre os países membros, e para acolaboração técnica e científica. É que os marcos que regem aintegração da América Latina são os do capitalismo dependentee, portanto, não favorecem nem a hegemonia de um só paíssobre os outros nem, definitivamente, a cooperação e aintegração.

Portanto, é por um caminho próprio que os países docontinente têm buscado a cooperação regional em atividadesespecíficas, e outras cooperações parciais que, ao se somarem,se potencializam e convergem para um objetivo único que é ode garantir a independência do desenvolvimento das naçõeslatino-americanas como condição para a soberania dos povos epara a paz.

Na medida em que são decisivos para o desenvolvimentode uma nação, a Ciência e a Tecnologia estão na base das forçasprodutivas, da potencialização da produtividade, da produçãode bens e riquezas de um povo; a Educação prepara esse povopara os desafios do desenvolvimento, cimenta a soberania,desenvolve e fortalece o espírito participativo e criativo - é esseo caminho da integração para o qual nos parece apontar a atualcooperação entre os países da América Latina.131

Liberadas as energias do seu povo pela participaçãodemocrática, os países latino-americanos não contam apenascom as suas próprias forças, embora elas sejam fundamentais.Contam também com o declínio do império estadunidense

131 Ver os Tratados bilaterais firmados pelo Presidente Sarney e peloPresidente Alfonsín, criando um Instituto Brasil-Argentina de Tecnologia.

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iniciado na virada dos anos de 1960 para os de 1970 com asimpatia e a solidariedade dos demais povos que vivem idênticasituação e também luta por sua emancipação.

A realidade vem demonstrando que, sem o esforçoconjunto destes países e sem sua participação, dificilmente osproblemas regionais, continentais e mundiais poderão serresolvidos. A integração da América Latina é, portanto,necessária e deve ser um fato inexorável nos próximos tempos.

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CAPÍTULO5

O MERCOSULE A INTEGRAÇÃO

LATINO-AMERICANA

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No início da década de 1990, as iniciativas deintegração estavam em grande evidência. Quasetodos os países da América Latina tem demonstradointeresse e envidado esforços para uma integração

econômica no sentido mais amplo.

As propostas chegaram às ações numa dinâmica bastanteacelerada. Um exemplo desse fenômeno foi a assinatura doTratado de Assunção, pelo qual se acordaram iniciativasrecíprocas para o estabelecimento de uma zona de livre comércionos quatro países do Cone Sul: Brasil, Argentina, Uruguai eParaguai. Esta seria uma primeira etapa do estabelecimento deum Mercado Comum - o Mercosul -, que pretendia ser o embriãoda futura integração do bloco sul-americano do continente.

Ao analisarmos esta nova iniciativa integradora,começamos por expressar uma preocupação de ordem política,que está no pensamento e no discurso de diversas categorias

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de atores envolvidos no processo (políticos, intelectuais,comerciantes, pequenos produtores rurais e industriais,trabalhadores, estudantes, donas de casa, etc.): a quem serveessa proposta de integração dos povos latino-americanoscolocada na mesa?

Esta preocupação nos conduz ao exame da questão“Mercosul” nos marcos em que se dá efetivamente: a situaçãoeconômica e política mundial, e os seus efeitos em nível dastransformações econômicas e políticas no interior dos paísesdependentes.

A forma de inserção das economias latino-americanasna economia mundial, em situação de subordinação edependência econômica, deixa-as vulneráveis a tentativas deingerências econômicas e políticas por parte dos paísesdominantes, que, através do poder de seus monopólios, tentamcontrolar o desenvolvimento das forças produtivas(especialmente o desenvolvimento da Ciência e da Tecnologia)e os Estados nacionais da região.

Por outro lado, a integração de mercados dinamiza osprocessos locais de desenvolvimento que, ao se realizaremlocalmente, nos marcos da própria subordinação econômica epolítica, entram em contradição com os interesses dos paísesimperialistas. Que benefícios, portanto, trará esse processo parao desenvolvimento e melhoria das condições de vida dos povoslatino-americanos? E, mais ainda, quais serão as perspectivasconcretas de realização do ideal de Bolívar - da unificação detoda a América Latina numa só nação, numa união fraternal dospovos, numa inalterável harmonia entre governos e, por fim,num governo comum capaz de enfrentar os inimigos dodesenvolvimento da região e ser respeitado pelas demais nações- e da intervenção do bloco latino-americano na transformaçãoda ordem econômica internacional injusta?

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Globalização e regionalização daeconomia: crise do capitalismo central

Fala-se insistentemente em globalização da economia. Aimprensa dedica largos espaços à discussão da sua definição edas suas conseqüências. Autoridades governamentais,políticos e intelectuais discutem o assunto e até ostradicionalmente críticos das relações do sistema capitalista têmcomungado da concepção de que é possível a formação de um“mundo sem fronteiras” graças à ação reguladora do mercadosobre as relações econômicas de cada país e a nível mundial.132

Ao mesmo tempo, evidenciam-se processos inversos,como a formação de megablocos de países, de comunidadeseconômicas que instalam “fronteiras” de protecionismo,interiorizando e fechando os mercados regionais. Estesfenômenos contradizem a tendência à chamada “globalização”da economia, mas conseguem ser “explicados” pelopressuposto da capacidade que o mercado teria de distribuir osrecursos existentes entre os distintos ramos da economia, regiõesou países, globalizando seus benefícios e levando-os até ondenenhuma política econômica jamais poderia chegar.

Desta forma, o mercado aparece como uma divindadetodo poderosa com autonomia e capacidade de, por si só, regularas relações fundamentais da economia e da sociedade, semnecessidade de interferências de forças “estranhas”, como oEstado, por exemplo.133

132 É o caso de pensadores dos ex-Partidos Comunistas.133 Da hipótese de que os problemas atuais provêm das interferências edistorções provocadas pela intervenção governamental nas decisões queo mercado deve assumir, provêm as propostas de redução do Estado, quevão desde o enxugamento de funções até à privatização das empresasestatais (criadas nos ramos chaves da economia, onde os empresáriosnacionais nunca tiveram capacidade ou interesse em investir). Enfim, aproposta final acaba sendo o desmantelamento do “Estado promotor dodesenvolvimento e planejador da política econômica” para permitir queo papel de organizador e reorganizador da sociedade corresponda aomercado. Ver a propósito o estudo do caso boliviano realizado porSANCHES, P.R. El neoliberalismo en acción. Analises crítico de la “nuevapolítica econômica”. La Paz, 1986, 3ª ed.

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Esta concepção atende pelo nome de “neoliberalismo”e, em realidade, só tem de novo o fato de ser a reformulação develhas teses liberais sobre o como resolver, na fase atual deprofunda crise da reprodução ampliada do capital, os problemasda internacionalização dos monopólios. E não resiste a umaanálise teórica mais profunda e muito menos aos próprios fatosque a sua prática implica.

A crise mundial vem se manifestando desde o início dadécada de 1970 através de crises periódicas e generalizadas,revelando que, se alguma coisa há de global na atualidade,trata-se da crise que assola a economia mundial.

O seu centro detonador foi os EEUU, a mais forteeconomia mundial, quando, em 1971, o então presidente Nixondecretou o fim da paridade e da livre conversibilidade do dólar.A recessão generalizada de 1974/75 começou por alcançar aseconomias mais desenvolvidas do mundo e avançou em váriaseconomias subdesenvolvidas. Na década de 1980, atinge oconjunto dos países do Terceiro Mundo até que, na metade dadécada, alcançou os próprios países socialistas.

Nilson A. de Souza demonstra essa tendência em seuartigo anteriormente citado.134 Diz a respeito: “Esse quadro dedesaceleração da economia mundial, permeado de recessõesgeneralizadas como as de 1974/75 e de 1980/83, se agravoufortemente na virada da década de oitenta para a de noventa,quando explodiu numa nova e mais profunda recessão”.

Já sobre as repercussões da crise econômicaestadunidense nos países em desenvolvimento, diz Sedi Hirano:

O impacto (...) é dramático. O ajuste recessivo requeridopara equilibrar as contas externas das periferiasendividadas resultaram (...) não só na queda brusca

134 SOUZA, N. A. op. cit., p. 131

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dos níveis de emprego e de vida, mas na interrupção dopróprio desenvolvimento (...). Os países latino-americanos transformam-se em exportadores natos decapitais em forma de serviços da dívida externa. Ospreços dos produtos básicos (de exportação) sofreramqueda abissal, atingindo, na atualidade, o seu preçomais baixo. é dentro deste contexto que se produziu umprocesso de exclusão maior e a integração seletividadealguns poucos países semi-industrializados.135

Podemos afirmar, portanto, que a crise é mundial, alcançatodas as economias do globo e, nesse sentido, ela é global. Acrise da economia é global porque a economia estáinternacionalizada. É a própria concorrência, definida pelaliberdade do mercado, que faz com que empresas fortes eliminemas fracas (por falência ou absorção) e com este processo dêemorigem à centralização da produção. Esta importantecaracterística do capitalismo se faz acompanhar do fato de que,em situação de elevado nível de desenvolvimento das forçasprodutivas, se combinam numa mesma empresa distintos ramosda produção ou então várias fases de transformação da matéria-prima. Nestas condições, estão formados os monopólios.

Do processo de transformação da livre concorrência emmonopólios, resulta uma imensa socialização da produção. Mas,se a produção passa a ser social, a apropriação continua sendoprivada.136 Ou seja, o desenvolvimento do capitalismo chegou

135 HIRANO, Sedi. O MERCOSUL no Contexto Econômico Internacional:uma análise sócio-econômica. São Paulo: PROLAM/USP, mimeo., 1993.136 Marx já havia demonstrado teórica e historicamente em “O Capital”que a livre concorrência engendra a concentração da produção,concentração essa que, numa certa fase de seu desenvolvimento, leva aosmonopólios. Mas Lenin desenvolve a questão em “El imperialismo, fasesuperior do capitalismo” resumindo a história dos monopólios ereafirmando: “os meios sociais de produção seguem sendo propriedadeprivada de um reduzido número de indivíduos. Se conserva o marco geralda livre-concorrência formalmente reconhecida, o jugo de uns quantosmonopólios sobre o resto da população se faz cem vezes mais duro, massensível, mais insuportável (LENIN, V.I, op. cit., p. 709).

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a tal ponto que, muito embora a produção mercantil seja o marcode referencia, ela está totalmente desmoralizada e os grandesbenefícios (leia-se lucros), gerados com base na socializaçãoda produção, não circulam livremente, não são distribuídossocialmente e vão parar nas mãos de uns poucos gruposeconômicos.

A compreensão do poder que adquirem os monopóliosfica mais clara quando observamos que os monopóliosindustriais se desenvolvem simultaneamente com osmonopólios bancários. Na medida em que estes concentramgrandes massas de dinheiro que a indústria necessita paraproduzir, surge a inevitável fusão entre os dois tipos de capital,dando origem ao que Hilferding denominou de “capitalfinanceiro”.

Transformado em capital financeiro, o capital tem seupoder elevado à enésima potência. Desencadeia uma muito maisrápida expansão do capital e do progresso técnico e, portanto,um mais rápido desenvolvimento da própria acumulação e daconcentração/centralização do capital, produzindo asuperacumulação, quer dizer, a formação de capitais excedentes.

Portanto, se a característica do capitalismo de livreconcorrência era a exportação de mercadorias, a característicado capitalismo moderno, onde impera o monopólio, passa a sera exportação de capitais.

A exportação é necessária ao capital em busca de lucros.Mesmo porque, nos países exportadores de capital, o capitalismoamadureceu excessivamente e não existe campo para a suacolocação lucrativa. Por outro lado, em vários países deeconomias atrasadas137, algumas condições elementares, tais

137 No caso específico da América Latina o “atraso” das economias não sedeu por falta de recursos para o seu desenvolvimento, mas precisamentepelo seu caráter dependente resultante da sua descapitalização na épocacolonial e em seguida pela via do intercâmbio desigual. Na fase dosmonopólios, a descapitalização é o preço do pagamento de royalties e daremessa de lucros das empresas transnacionais.

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como a construção de redes de transportes, matérias primasbaratas, salários baixos, preços da terra relativamente baixo ecapitais escassos, garantem extraordinários lucros aoscapitalistas.

A exportação de capitais é, pois, a forma por excelênciade como se dá a internacionalização da produção capitalista.Esta internacionalização da produção, aliada à característica docapitalismo de promover o desenvolvimento desigual entresetores da produção ou entre países, tem como resultado umaredivisão internacional do trabalho em que os países ricoscontrolam as fontes de matérias-primas e se aproveitam dosmercados e da mão-de-obra barata dos países pobres.

O domínio do capital financeiro, o imperialismo, é, pois,o desenvolvimento e domínio do capitalismo em seu mais altograu. O predomínio do capital financeiro implica o predomíniode uma oligarquia financeira e a situação destacada de unsquantos Estados dotados de “potência” financeira entre todosos demais, Estados esses que crescem na frente e estão sempreprocurando redividir o mundo em suas esferas de “influência.

Diz Lenin:

os capitalistas não repartem o mundo levados por umaparticular perversidade, mas porque o grau deconcentração a que se chegou os obriga a seguir estecaminho para obter lucros e o repartem segundo ocapital, segundo a força; outro procedimento derepartição é impossível no sistema da produçãomercantil e do capitalismo. A força varia, por sua vez,em consonância com o desenvolvimento econômico epolítico.

E, mais adiante “Vivemos, por conseguinte, em umaépoca peculiar da política colonialista mundial que se achaintimamente relacionada com a fase contemporânea dedesenvolvimento do capitalismo com o capital financeiro”.138

138 LENIN. V.I., op. cit., p. 753-754

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O desenvolvimento dos monopólios atingiu talmagnitude que conduziu à formação de trustes gigantescosoperando em dimensão mundial, ainda que sediados emdeterminado país central. Foi assim que, depois da SegundaGuerra Mundial, surgiu um novo personagem econômico, astransnacionais, que passaram a ser a ponta-de-lança daexpansão imperialista mundial, da internacionalização daeconomia. O capital financeiro é uma força tão considerável ede tal forma decisiva em todas as relações econômicas e sociaisno interior dos países que tem a capacidade de subordinar (e defato o faz) até os Estados que gozam da independência maiscompleta, ainda que a subordinação mais benéfica para oimperialismo seja precisamente aquela que traz consigo a perdada independência política dos países e dos povos submetidos.

Até a Segunda Guerra Mundial, a característica dadominação imperialista mundial se exercia através do sistemacolonial, em que imensos territórios do mundo “pertenciam” aum punhado de países ricos. Com a emergência da crise geraldo capitalismo, deflagrada por ocasião da Primeira GuerraMundial e aprofundada na Grande Depressão e na SegundaGuerra, o regime colonial entrou em crise e a luta independentistadas colônias realizou a quase completa descolonização noimediato pós-guerra.

A partir daí, o imperialismo teve que encontrar novoscaminhos para seguir sua sanha espoliadora; pois, agora,tratava-se de subjugar e espoliar nações formalmenteindependentes ainda que economicamente subdesenvolvidas.

A política colonial e imperialista, bem como as relaçõesde dependência entre grandes e pequenos Estados, sempreexistiu mesmo antes do capitalismo e de sua fase superior.Aquela política, contudo, se diferencia da política colonial docapital financeiro, pois esta tem como particularidadefundamental a dominação das associações monopolistas deum só patrão (a super concentração) e não a livre concorrência.

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Tais monopólios adquirem o máximo de solidez quando reúnemem suas mãos todas as fontes de matérias-primas e, assim, apossessão de colônias ou o controle de países pobres é a únicaforma de garantir, de maneira completa, o seu êxito. Portanto,“quanto mais desenvolvido‚ o capitalismo, quanto mais sensívelse faz a insuficiência de matérias-primas, quanto mais dura é acompetição e a busca de fontes de matérias-primas em todomundo, tanto mais encarniçada é a luta pela aquisição decolônias”.139

E, para o capital financeiro, não têm importância só asfontes de matérias-primas já descobertas, mas também aspossíveis. Daí que a tendência inevitável do capital financeiro é ade ampliar o seu território econômico e ainda seu território em geral.

Ampliar o seu território significa, em realidade, umapolítica monopolista internacional que tem como sentidoprincipal salvaguardar os interesses econômicos de suascorporações no resto do mundo. E são elas, de fato, quecontrolam as decisões centrais do governo, pois é típico da eraimperialista o processo de fusão do capital financeiro com oEstado capitalista.

Tanto no período colonial quanto no período maisrecente, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, osEstados imperialistas seguiram sua marcha inexorável,acompanhando o movimento dos seus capitais pelo mundo e,portanto, também se internacionalizando. Não no sentido deexpressar os interesses internacionais, mas no sentido dedefender os seus próprios capitais no resto do mundo. E, nesteprocesso, agem não só traçando uma política global para oconjunto de sua área de “influência”, mas também operandoconcretamente para que seus interesses sejam efetivamentedefendidos.

139 LENIN, V.I., op. cit., p. 760.

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É dentro desse processo que o capital financeiro, atravésde seu Estado, realiza a “captura” dos Estados dos paísesdependentes, passando estes a defender, dentro dos seuspróprios países, os interesses do capital internacional comprioridade.140

Esse processo, no entanto, não ocorreu pacificamente.É que, logo depois da Segunda Guerra, somaram-se asdificuldades enfrentadas pelo capital imperialista com odesenvolvimento de uma forte consciência, tanto nos paísesrecém-libertados (África e Ásia), como nos que já haviamrealizado sua independência política (América Latina), parafavorecer um processo de desenvolvimento independente nospaíses atrasados.

O imperialismo emergia da Grande Depressão dos anostrinta do século passado e da Segunda Guerra Mundial e, alémdisso, a potência que emergia mais poderosa nesse período, osEEUU, tinha que deslocar seus capitais preferentemente para areconstrução da economia européia ou para a indústria bélica.Essa realidade permitiu que os países subdesenvolvidospudessem começar um processo de desenvolvimento sem fortesconstrangimentos externos.

Por um lado, além da natural consciência independentistadas jovens nações libertas, o desenvolvimento das economiasnacionais em vários países do Terceiro Mundo que já se haviamlibertado antes forjou neles uma nova consciência nacional quese opunha aos interesses imperialistas e que haveria de resistiràs tentativas de “domesticação” por parte das potênciasestrangeiras.

Nesse período, houve um razoável desenvolvimentoindependente das economias de boa parte dessas nações, emcujo processo o Estado ocupou papel de destaque,

140 SOUZA, N. A., op. cit., p. 65-66.

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particularmente em sua intervenção na área econômica. Essabase material permitiu conformar um Estado resultante do“compromisso” entre as burguesias nacionais e as classespopulares, sob a hegemonia das primeiras. Na verdade, eramEstados burgueses mais ou menos democráticos, que, paraenfrentarem os inimigos do processo de desenvolvimento quese processava, tinham que se compor - e, portanto, fazerconcessões - com as forças populares. Os inimigos eram oimperialismo e seus aliados internos, as forças do latifúndio.

É com essa realidade que o capital financeiro dos paísescentrais, já então sob a hegemonia dos Estados Unidos, teriaque se defrontar quando, equacionados seus problemasinternos e reconstruídas a Europa e o Japão, teve que “reassumir”suas relações com as nações do Terceiro Mundo. Nesse novoperíodo, como vimos, as transnacionais passaram a ser a ponta-de-lança da internacionalização da economia. Seu processo deinternacionalização nas economias subdesenvolvidas exigia quese rompessem os obstáculos interpostos pelos Estadosnacionais conformados em boa parte desses países.

Ora, o sistema capitalista reorganizou suas relaçõesinternacionais no pós-guerra, sob a base da hegemonia absolutados Estados Unidos. A tendência ao domínio absoluto da novasuperpotência já vinha desde antes da Segunda Guerra Mundiale sua consolidação, durante e depois da guerra, deveu-se nãosó ao debilitamento das demais potências capitalistas, comotambém, e sobretudo, ao enorme poderio econômico queconseguiram no período anterior à guerra e que se manteve e seestendeu pelo período posterior.

Esse período se refletiu na participação estadunidenseno mercado mundial de mercadorias e capitais e exigiu umaexpressão, à altura, do seu Estado em nível mundial. Inclusiveinstituições internacionais, como FMI e Banco Mundial, criadaspara regular as finanças internacionais, são colocadas a serviçoda expansão e domínio da nova superpotência.

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A forma de exportação de capitais que corresponde aesse período também se modifica. Passa, por excelência, a dar-se sob a forma de capital produtivo, acompanhado deempréstimos estatais. E a política de grande potência mundialdos EUA passa não só a responder às necessidades de seudomínio, como busca consolidá-lo cada vez mais: o eixo centralda sua política exterior se constitui na tentativa de unir o conjuntodo mundo ocidental contra o que chamavam de inimigo externo,a União Soviética e os demais países socialistas.

Para dar conta dessa política, formulou-se, a partir defins dos anos de 1940, uma “doutrina de segurança” que depoisreceberia a designação de Doutrina da Contra-Insurgência, eque se materializou nas políticas de “guerra fria” e de “contra-insurgência”. Polarizava o mundo em dois grandes blocos: o“comunista”, liderado pela União Soviética, e o “ocidentalcristão”, liderado pelos Estados Unidos. O bloco comunistatinha que ser enfrentado e aos Estados Unidos, como potênciamais poderosa do bloco “ocidental-cristão”, cabia a guarda e asegurança das fronteiras ocidentais.141

Como decorrência dessa divisão maniqueísta, havia ainterpretação de que qualquer conflito social ou político sérioque ocorresse em qualquer dos países capitalistas eraexpressão daquela polarização básica. Qualquer luta democráticaou de libertação era produto da infiltração do “inimigovermelho”. A expressão “guerra interna” passou a ocupar olugar dos conflitos sociais e políticos, que passaram a serenfrentados pela prática militar da contra-insurgência e nãopelos métodos democráticos consagrados pela democraciarepresentativa.

Esse era, na verdade, o arsenal político-ideológico para“legitimar” o enfrentamento, pelo novo imperialismo, darealidade a ele adversa que se havia formado no Terceiro

141 SOUZA, N. A., op. cit., pp. 66-67.

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Mundo. Tratava-se, munido desse arsenal, de derrubar oucooptar governos das nações do Terceiro Mundo que se haviamforjado no contexto do desenvolvimento da economia e daconsciência nacional. A “domesticação” dessas nações por umdesses processos era a exigência fundamental para a nova etapada internacionalização do capital, sob a égide das transnacionaisestadunidenses.

Inaugurou-se, então, a era das ditaduras abertas,geralmente de cunho militar, nos países subdesenvolvidos. Nãoque necessariamente a “captura” dos Estados dependentes peloimperialismo e sua conseqüente “desnacionalização” tivesseque se dar sob a forma de ditadura militar. Mas essa foi a situaçãomais comum basicamente porque o imperialismo, sendo umaforça externa, ainda que se compusesse com determinadas forçasnacionais (particularmente a burguesia e o latifúndio) pararealizar a sua dominação, tinha dificuldades reais para constituirpartidos, a nível interno, capazes de governar em seu nome ecujo projeto político conseguisse penetrar em um setorimportante da sociedade a ponto de permitir sua vitória eleitoral.

Não sobrava outra alternativa à elite dominante da novasuperpotência senão recorrer às Forças Armadas dos paísessubdesenvolvidos, cujo elite vinha sendo doutrinada desde ocomeço da década de 1950 nos ensinamentos da “Doutrina deSegurança Nacional”, copiada da “Doutrina da Contra-Insurgência”.142

Na medida em que, dessa forma, se subordinam ao capitalfinanceiro dos países centrais e a seu Estado, os Estados dospaíses dependentes deixam de ser nacionais, no sentido derepresentar os interesses da burguesia ou de outros setores deseu próprio país e de atender aos interesses nacionais, e se

142 MARINI, R.M. La cuestión del fascismo en América Latina. In:Cuadernos Políticos no. 18. México, Era, out. dez/1979.

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internacionalizam, no sentido de representarem e sesubordinarem à burguesia internacional e a seu Estado.

A partir da segunda metade dos anos de 1970, com aemergência da crise mundial, a luta democrática reacende-se nomundo inteiro, rompendo com a unidade e a “paz social”construída sob a hegemonia dos EEUU. Reacende também aluta democrática e de libertação dos países oprimidos. A vitóriado Vietnam, depois acompanhada pela Revolução Sandinista,deflagra um novo processo mundial cuja tônica é a afirmaçãonacional e democrática das nações do Terceiro Mundo.

A crise econômica mundial, que vinha criando desde adécada de 1970 contradições tais e desencadeando tantosconflitos entre as potências capitalistas, acabou pondo a nu averdadeira relação de espoliação entre as grandes potências eos países periféricos e a vulnerabilidade e inconsistência daseconomias e dos Estados dos países dependentes.

A reação dos seus povos, punidos por esse processo,foi muito forte. Excluídos durante longo tempo do processoeconômico e político, cobraram o preço dessa exclusão levandoa que o conjunto ou a maioria das forças nacionais dessespaíses se unisse na derrubada dos regimes militares ditatoriaise na busca de construir regimes comprometidos com o interessenacional, com a democracia política e a justiça social.

Derrubadas as ditaduras e em meio à crise, constrói-sena América Latina um espaço democrático, que permite aintensificação da luta pela integração econômica e pela retomadado desenvolvimento independente na região.

O aprofundamento e a generalização da crise, por outrolado, cria dificuldades para o avanço desse processo. Natentativa de resolver a crise nos países centrais, os EEUUpressionam os países dependentes e, no caso, os países latino-americanos, através do FMI, dos bancos credores e dosmonopólios transnacionais, a aplicar internamente a políticaeconômica neoliberal.

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“Sanear” as economias e os Estados com a recessão, aprivatização de estatais e o arrocho salarial supostamente dariaa esses países o aval para que recebessem possíveis novosinvestimentos externos e assim pudessem retomar o seudesenvolvimento e superar a crise.

Esta fórmula estadunidense se consubstancia na maisnova tentativa dos EEUU de manter a hegemonia sobre todo ocontinente, a “Iniciativa para as Américas” proposta peloPresidente Bush em junho de 1990, mais tarde convertia emÁrea de Livre Comércio das Américas (ALCA). A IPA-ALCApropõe um “novo” relacionamento econômico hemisférico coma criação de uma zona de livre comércio que alcançaria do Alascaà Patagônia. Com essa iniciativa, ficou clara a nova estratégiaimperialista: abrir os mercados regionais, atribuir aos Estadosregionais as meras funções burocráticas e de relações exteriores,reduzir, enfim, os territórios latino-americanos a meros satélitesda economia dos EEUU, através de um bloco econômico. Essaseria uma etapa para o estabelecimento de uma “Nova OrdemMundial” sob o domínio dos Estados Unidos.

Esse “mercado sem fronteira” seria precisamente a“globalização” da economia na perspectiva neoliberal. Narealidade, significaria mais uma oportunidade de reforço dasnações imperiais e de debilitamento das nações periféricas, aoredefinir, no contexto do esgotamento da Ordem EconômicaInternacional de pós-guerra, a implantação de uma nova divisãointernacional do trabalho, novos papeis produtivos funcionaisao centro desenvolvido.

Nesse contexto, de esgotamento da ordem econômicade pós-guerra, os novos centros de polarização da economiamundial - EEUU, Alemanha e Japão - buscam responder à crisea partir de uma nova redivisão do mundo, conforme o podereconômico de cada uma dessas nações. Ao mesmo tempo emque esse processo busca reforçar os laços de dependência daseconomias periféricas, igualmente abre espaço, ao acirrar as

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disputas interimperialistas por mais espaço econômico, paraque as nações periféricas, aproveitando-se desse quadro,possam trilhar caminhos de desenvolvimento maisindependente, individual ou coletivamente.

É nesse quadro que devem ser examinadas asperspectivas do MERCOSUL. De um lado, o “Gigante do Norte”,recorrendo à IPA-ALCA, procura incrementar seu domínio sobrea região. De outro, os países da região podem aproveitar-se dosconflitos entre os “Três Grandes” para trilharem um caminhopróprio de desenvolvimento. É da solução dessa contradiçãoque dependerá o futuro do MERCOSUL.

A regionalização na América LatinaA retomada recente dos ideais integracionistas tem o

seu ponto de partida no início dos anos de 1950, quando oscinco países centro-americanos nos quais se havia fragmentadoa República Federativa da América Central expressaram o seuinteresse em “desenvolver a produção agrícola e industrial e ossistemas de transportes dos seus respectivos países, em formaque promova a integração de suas economias e a formação demercados mais amplos mediante o intercâmbio de seusprodutos, a coordenação de seus planos de fomento e a criaçãode empresas em que todos ou alguns de tais países tenhaminteresse”.143

O contexto econômico e político mundial dessa iniciativafoi, como vimos anteriormente, o quadro das necessidades derecuperação do capitalismo em nível mundial diante da crise do

5 2

143 Resolução tomada no 4º. período de sessões da CEPAL, na cidade doMéxico, 1951. In: FURTADO, Celso. A Economia Latino-Americana,3ªed. São Paulo: Nacional, 1986, p. 254.

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pós-guerra e da guerra contra a Coréia, bem como areestruturação das forças imperialistas diante da nova repartiçãodos mercados mundiais. Fatores externos e internos, ligados aoagravamento dos problemas econômicos, sociais e políticos,basicamente provocados pelo nível de dependência comerciale de endividamento externo dos pauses latino-americanos,também foram decisivos para que a América Latina tentasseretomar os ideais bolivarianos através de uma política dedesenvolvimento auto-sustentado, de emancipação econômica,de política externa independente e de fortalecimento em blocopara que os países do continente pudessem ter uma contribuiçãoefetiva no estabelecimento da Ordem Econômica Internacional.

Já a partir da década de 1930, sob a influência dos durosensinamentos da crise de 1929-1933, se vem observando, naAmérica Latina, um abandono do esquema de desenvolvimentobaseado nos setores de exportação de matérias-primas. Tambémse observa o desejo de estimular o processo de industrializaçãoa partir da substituição de produtos industriais de importaçãopor nacionais.

Se bem que, até a Segunda Guerra Mundial (e aindadurante a primeira década pós-guerra), a América Latinaconstituísse acima de tudo uma região agrária, já em fins dosanos 1950 a parte correspondente à indústria transformadorano Produto Interno Bruto (PIB) do continente superou o daagricultura: anteriormente agrária, esta região converteu-se emagrário-industrial.

Foi também importante o fato de que os países latino-americanos, gradativamente, foram tomando consciência de quea sua situação de dependência era inerente à forma como estavaminseridos na economia mundial. É que essa situação semanifestava concretamente no interior das suas economiastodas as vezes que entravam em colapso os preços das matérias-primas das quais esses países eram fornecedores do mercadomundial. Essa consciência foi acirrada com a crise de 1929-33 e

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provocou a tentativa de aumento da integração interna dessaseconomias para, assim, reduzir a dependência do sistema dedivisão internacional do trabalho.

As políticas implementadas visando reduzir adependência externa são descritas por Furtado: “A primeira linhada política referida visava principalmente a controlar os fluxosreais e financeiros, de forma a reduzir a propagação interna dedesequilíbrio externos. A segunda procurava fixar no paísrecursos que nele se geravam e orientar os investimentos parao mercado interno”.144

Estas políticas, que tiveram como objetivo reduzir avulnerabilidade externa, se generalizaram por toda a AméricaLatina e se manifestaram sob a forma de instrumentos de tipocambial, fiscal ou comercial. Eram medidas de controle de câmbio,que não se limitaram aos movimentos de capitais, masdesempenharam outras funções, sobretudo de reorientar osinvestimentos; e de modificação de políticas fiscais, por obterum maior controle da produção de matérias-primas, sobretudominerais, e para que fossem interiorizadas parcelas crescentesdas divisas geradas.145.

Assim é que a Venezuela e o México definem uma novapolítica fiscal e comercial em relação ao petróleo, Chile em relaçãoao cobre, Brasil em relação ao café e a Argentina em relação àexportação dos seus excedentes.146

144 FURTADO, Celso, op. cit., p. 304.145 Até a década de 1930, a produção de matérias primas era controladapelos próprios consórcios internacionais produtores que transferiamdiretamente as divisas a suas matrizes, nos países centrais, sem nenhumcontrole por parte do governo do país produtor.146 FURTADO, C., op. cit., pp. 213-218.

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Ao mesmo tempo em que se desenvolviam as novasconcepções de política exterior baseadas nos interessesnacionais dos países da região, formulando-se os contornos dadoutrina latino-americana de política externa independente, umimportante papel na cristalização destas tendências foidesempenhado pela Comissão Econômica para a América Latina(CEPAL), da ONU, criada em 1948, único organismo decooperação interestatal da América Latina em que os EEUU nãotinham o direito de voto decisivo.

Nela, se concentrava a elaboração teórica dos projetosde integração econômica e de outras formas de cooperação dospaíses da América Latina.

Os debates e acordos realizados sob a influência dopensamento cepalino operaram um desdobramento domovimento integracionista em duas linhas de atuação. De umlado, ativou-se a iniciativa da criação de instituições quepermitissem dar continuidade ao processo de repensar odesenvolvimento na América Latina e, de outro, promoveu-se aliberação progressiva do intercâmbio comercial entre os países.

Muito embora a CEPAL recomendasse o fomentoindustrial como forma de sustentação do desenvolvimento nospaíses da América Latina - o que, por sua vez, seria a forma deenfrentar a dependência e a subordinação aos países capitalistascentrais - e a Resolução anteriormente citada se definisse quantoa este assunto, não houve naquele momento nenhum progressono que respeita à coordenação das políticas nacionais dedesenvolvimento.

A proposta cepalina foi inaugurada na América Central,a qual cria, em 1951, a Organização dos Estados Centro-Americanos, que patrocina acordos bilaterais de livre comérciode produtos especificados, entre distintos países da região. Em1958, foi assinado o Tratado Multilateral de Livre Comércio eIntegração Econômica Centro-Americana que fundiu todos osacordos anteriores e abriu espaço para a multilateralidade.

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Simultaneamente ao Tratado, foi firmado o Convênio sobre oRegime de Indústrias Centro- Americanas de Integração com opropósito de tentar a criação de uma nova estrutura produtiva,superando o objetivo limitado de uma Zona de Livre Comércio.Este acordo suscitou fortes reações por parte dos EEUU queviam nele a intenção de criação de empresas com o apoio estatale com exclusividade do mercado regional, o que não deixava deser procedente. • O Convênio pretendia garantir os mercadosda região às indústrias classificadas como “integração”, quefossem de interesse de vários países e necessitassem, paraexpandir-se, de uma grande parte ou da totalidade do mercado.

Outros Convênios foram assinados até que, em 1960, foidado o passo decisivo no sentido de transformar a AméricaCentral numa Zona de Livre Comércio, com a criação do MCCA- Mercado Comum Centro-Americano.

O resultado concreto deste grande esforço Centro-Americano pela integração parece ter sido favorável. DizFurtado que “o valor do comércio intrazonal, que era de 33milhões de dólares em 1960, alcançou 299 milhões em 1970 e suaparticipação no total das exportações passou de 7,6 para 27,3%”.E prossegue:

Se se observam os dados macroeconômicos, constata-se que a região conheceu, efetivamente, marcadaintensificação de seu desenvolvimento no período quese sucedeu à assinatura do tratado de integração (...)O processo de integração, ao unir os pequenos paísescentro-americanos em um mercado de dimensõessimilares ao do Peru e com um coeficiente deimportação relativamente elevado - cerca de 17% em1960 -, criou condições para que se iniciasse aindustrialização em linhas similares às que haviamconhecido todos os países da região, de dimensõeseconômicas similares.147

147 FURTADO, C., op. cit., pp. 256-257.

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É importante esta demonstração concreta de que aintegração do mercado regional produz uma ativação daseconomias através da busca da plena utilização dos seuspotenciais naturais e produtivos. Produz, além disso, umareestruturação da própria produção ao ensejar a ênfase naindustrialização, em setores antes não explorados. Furtado voltaa demonstrar, com dados, esse fenômeno: “A taxa de crescimentoanual da produção manufatureira, que fora de 6,0% entre 1950 e1960, alcançou 8,7% entre 1960 e 1970. Demais, as chamadasindústrias tradicionais viram sua participação no valor daprodução diminuir de 87%, em 1960, para 73% em 1967”.148

Embora não atribua exclusivamente ao processo deintegração na América Central o relativo sucesso encontradono desenvolvimento industrial da região, visto que, em nívelmundial, a capacidade de importar também estava ativada, aconclusão de Furtado é que a industrialização naquela região, enaquele período, teve como causas básicas o crescimento dosetor exportador tradicional e a ampliação do mercado graças àintegração.

Se o grau de industrialização alcançado na AméricaCentral na década de 1960 abriu a possibilidade para que naregião pudesse desenvolver-se a industrialização numa segundafase, a da substituição de importações149, este passo importantepara o desenvolvimento sustentado e independente não seriapossível, no entanto, sem o apoio do planejamento dodesenvolvimento regional. É que, por si só, as forças do mercadotendem a concentrar a renda e a agravar as desigualdadesintrarregionais e entre zonas rurais e urbanas, o que, por suavez, tem a capacidade de gerar tensões e conflitos sociais queacabam inviabilizando a própria integração.

148 Dados do INTAL (Instituto para la Integración de América Latina). In:FURTADO, op. cit., pp. 256-257.149 O que não chegou efetivamente a ocorrer por causa do conflito entreHonduras e El Salvador ocorrido em 1969.

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Exemplo disso é a Associação Latino-Americana de LivreComércio (ALALC), criada ainda em 1960 pelo Tratado deMontevidéu. Sete países o firmaram inicialmente - Argentina,Brasil, Chile, Uruguai, México, Peru e Paraguai -, para logo emseguida aderirem a Colômbia e o Equador e, posteriormente, aVenezuela e a Bolívia.

Em 1968, portanto, a ALALC já compreendia todos ospaíses da América do Sul e o México. A proposta da ALALCnão era propriamente integracionista e sim da mera liberalizaçãodo intercâmbio na área, enfatizando os processos bilaterais eproduto por produto.

Os métodos de trabalho da ALALC revelaram-se dealcance pouco prático (dificuldades nas negociações paraelaboração das listas dos produtos comuns). Ainda que sepropusesse a facilitar o livre comércio através dos acordossetoriais, nos primeiros seis anos de vigência do Tratado apenasquatro acordos haviam sido assinados. E, mesmo considerandoa situação dos países com atraso relativo e propusesse queeles recebessem concessões não oferecidas aos demais edevessem apenas a reciprocidade parcial, os resultados práticosda ALALC foram modestos.

Embora tenha conseguido recuperar, a níveis anteriores,o comércio entre os países envolvidos, ou mesmo certa expansãodo comércio intra-regional, a partir de meados da década de1960 a evolução desse comércio foi muito irregular, evidenciandoque os mecanismos do Tratado não lograram um impacto dedesenvolvimento das economias regionais.

Segundo Furtado, considerando os nove países queformaram a Associação desde o seu início (excluindo, portanto,a Venezuela e a Bolívia), o comércio inter-regional alcançou 635milhões de dólares em 1965, contra 321 em 1959-61 e 508 em1953-55. Já no período 1961-68, “a taxa de crescimento dasexportações totais aumentava a 4,9%. A participação dasexportações intra-regionais no total alcançou 11,2% em 1968,

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dobrando praticamente a participação de 1961, que fora de 6%.Contudo estava-se apenas voltando ao nível médio de 1953-55que fora 11,7%”.150

Uma análise a posteriori do quadro do surgimento, daspropostas e dos resultados alcançados por esses Tratadosparciais de integração da América Latina nos permite entenderque o MCCA e a ALALC foram motivados tanto peloagravamento dos problemas sócio-econômicos internos, comopela forte deterioração das posições da América Latina nosmercados externos, que se fez sentir em especial depois dosurgimento de associações econômicas fechadas na EuropaOcidental.

Ao aspirar consolidar as suas posições nos mercadosexternos e, simultaneamente, a superar as limitações dosmercados internos que não lhes permitia aproveitar os benefíciosda grande produção nos novos setores industriais, os paíseslatino-americanos procediam à aplicação dos programasintegracionistas. A integração devia contribuir para odesenvolvimento industrial da região e fazer com que asimportações de terceiros países fossem substituídas porprodutos regionais.

Não é dentro desse espírito, porém, que a ALALC écriada. Ao contrário, o Tratado de Montevidéu está totalmenteconcebido dentro do espírito do GATT151 tanto em seu objetivocomo em seus métodos operacionais, e parece ter sido, narealidade, apenas mais uma tentativa dos países centrais deabrir um mercado mais amplo para os seus produtosindustrializados.

150 FURTADO, C., op. cit., p. 264.1 General Agreement on Trade and Tariffs (em Português, Acordo Geralsobre Comércio e Tarifas), criado em 1948 com o objetivo de regular asrelações comerciais em nível internacional.

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Na medida em que os processos integracionistas, noâmbito da ALALC, se viram freados e os seus resultados nãoforam dos mais animadores, países membros começaram apromover, a meados da década de 1960, novas propostas deintensificação de cooperação recíproca.

Em 1966, perceberam as disparidades econômicas entreos países do continente os governos dos países de tamanhomédio, localizados em torno da espinha dorsal da Cordilheirados Andes (Chile, Colômbia, Peru, Venezuela e Equador).Redigiram, então, a chamada Declaração de Bogotá, que foi oprimeiro passo para a criação, dentro da ALALC, do GrupoAndino. A disposição era de acelerar e intensificar o processode integração econômica por meio da cooperação multilateralno âmbito da sub-região. Esta disposição foi referendada em1969 na Colômbia, quando foi assinado o Acordo de Cartagena.

À diferença da ALALC, o Grupo Andino propunha aliberalização automática e irreversível do comércio e a criação deuma união aduaneira. À semelhança do MCCA, tinha comoobjetivo elevar as taxas de crescimento econômico por meio daintegração das estruturas de transportes e comunicações e criarcondições propícias para transformar a ALALC em mercadocomum. Isto é, fazia parte integrante do Tratado de Montevidéu,mas, ao mesmo tempo, se colocava tarefas muito mais amplas doque a simples liberalização do comércio recíproco. Emconformidade com o Acordo de Cartagena, os seus participantescomprometeram-se a suprimir, no fundamental até fins de 1980,os direitos alfandegários no comércio multilateral e a implantaruma tarifa externa unificada para terceiros países (incluindo os daALALC), definindo assim um mercado regional. Também seestipulava acelerar o processo de industrialização mediante aimplantação de programas setoriais e de cooperação industrialque compreendiam, entre outras metas, o planejamento conjuntode diferentes setores, assim como a liberalização comercial dosrespectivos países, a implantação de uma tarifa externa única, etc.

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Os países participantes do Acordo também secomprometiam a pôr em prática um regime único para empresasestrangeiras e mistas, programas conjuntos de desenvolvimentoda infra-estrutura e da produção agrícola, a coordenar medidasfinanceiras, monetárias e fiscais, etc., e a conceder, aos paísesmenos desenvolvidos do Grupo, um regime de privilégios paraa realização de todas as medidas propostas.

No seu conjunto, o programa de liberalização do comérciomultilateral no Pacto Andino é mais completo que o da ALALCe realiza-se a ritmos mais acelerados.

Os programas setoriais são considerados pelos paísesdo Pacto Andino como uma das principais linhas de integraçãoeconômica. Dispensam especial atenção à cooperação no setorprodutivo a partir dos citados programas de cooperaçãoindustrial, pois, à diferença do que ocorria com os países daAmérica Central, em 1970, estes países se encontravam numafase relativamente avançada no processo de substituição deimportações e, em nível interno, existiam melhores condiçõesde integração dos sistemas industriais, com menores resistênciasà complementaridade.

Assim, a cooperação na base produtiva contribuiu paraa formação da indústria transformadora nos Estados da sub-região, criando a base para o comércio multilateral com novostipos de manufaturas industriais e ajudando a superar uma sériede dificuldades no caminho da integrarão, concretamente, certocaráter unilateral da estrutura econômica dos países andinos eo escasso desenvolvimento dos canais de comércio recíproco.

O Grupo Andino no geral tendeu a adquirir consistênciainterna, muito embora tenha contribuído decisivamente para oavanço da integração de toda a América Latina. Contou, paraisso, com a Corporación Andina de Fomento, fundada em 1968,com sede em Caracas. A CAF desempenha, fundamentalmente,o papel de banco de investimentos dos países andinos.

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A cooperação entre os países latino-americanos noâmbito do Acordo de Cartagena vai abarcando gradualmentediversas esferas da atividade econômica. É fundamental nodesenvolvimento da integração o papel do Regime Unitáriosobre o capital estrangeiro adotado em 1970, uma espécie decódigo unificado de investimentos do Grupo Andino que tempor missão implantar um controle efetivo sobre as atividadesdas companhias estrangeiras e reservar os setores econômicosbásicos para o capital nacional, estatal e privado.152

O Pacto Andino converteu-se, pois, num dos gruposintegracionistas mais dinâmicos, não só da América Latina, mastambém do Terceiro Mundo. Na sua qualidade de organizaçãoeconômica internacional independente, ganhou autoridade ereconhecimento por parte de diferentes países e de entidadeseconômicas internacionais. Na década de 70, países importantesda América Latina (Argentina e México) criam, junto com oGrupo Andino, Comissões de cooperação financeira e técnica eo Brasil também modificou essencialmente a sua posição, antescontrária ao Pacto, passando a reforçar as negociações comparticipantes do Acordo de Cartagena sobre bases nãobilaterais.

Mas a cooperação dos países andinos, se se constituiunum dos processos mais dinâmicos, foi, ao mesmo tempo, dosmais contraditórios da integração econômica latino-americana.

As grandes dificuldades se devem, em parte, a fatoresobjetivos, que como já observamos, eram as estruturaseconômicas e de exportação unilaterais e o escassodesenvolvimento dos canais de comércio intra-regional, ao qualcorrespondiam apenas 5% do total das exportações.153

152 Ver ZAITSEV, N. América Latina: Cooperação Regional e problemasde desenvolvimento. Moscou: Progresso, 1986, pp. 181-202.153 ZAITSEV, N., op. cit., pp. 84-85.

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Os problemas mais sérios no desenvolvimento daintegração no Pacto Andino, no entanto, surgiram em meadosdos anos de 1970, quando se anunciava o início da criseinternacional. Tinham na base uma forte oposição à efetivaçãode medidas econômicas conjuntas, especialmente o regimeunitário relativo ao capital estrangeiro, por parte das corporaçõestransnacionais e dos grandes representantes da burguesianacional ligados a elas, os quais procuravam, por todos osmeios, frear as iniciativas progressistas dos governos dos paísesdo Grupo Andino. Exemplo maior é o caso do Chile, onde, depoisda chegada ao poder da junta militar, foram praticamente abolidastodas as restrições às atividades do capital estrangeiro.

Sob protestos dos países participantes, o Pacto fez váriasconcessões e o Chile acabou saindo do grupo, criando umasituação bastante complexa no âmbito da organização ecolocando aos seus participantes uma série de dúvidas quantoao desenvolvimento futuro da integração no continente.

Na segunda metade dos anos de 1970 e no início dosanos de 1980, dificuldades sérias nos acordos comerciais entreos países membros fazem com que os países andinos se afastemdas propostas iniciais e acabem esboçando, em 1983, na reuniãocomemorativa dos 200 anos do nascimento de Simon Bolívar,um programa de desenvolvimento progressivo da integração,cujas possibilidades estão muito longe de se terem esgotado.

No entanto, a cooperação entre os países latino-americanos com vistas e uma integração mais profunda de ordemeconômica e política não sofreu solução de continuidade. Odesenvolvimento de todos estes processos objetivosintegradores na região (os que analisamos foram os maisimportantes), serviram de base para a criação, em 1975, doSistema Econômico Latino-Americano (SELA), organizaçãoeconômica de novo tipo, primeira agrupação continental livreda tutela da superpotência do Norte, que desafiava o comandopolítico estadunidense de bloqueio econômico a Cuba socialistae incorporava esse país, de plena direito, àquele organismo.

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A criação do SELA foi também, em grande medida, frutodas mudanças positivas verificadas nas relações internacionaisna década de 1970: o início do desanuviamento da Guerra Fria,o debilitamento, pela crise, do poder imperial dos países centrais,especialmente os EEUU, o fortalecimento da cooperação entrepaíses com sistemas sociais diferentes e a tendência dos paísesem desenvolvimento para romper a estrutura das relaçõeseconômicas do capitalismo baseadas na exploração e nadesigualdade. Esse processo foi fortalecido pela existência degovernos mais comprometidos com o interesse nacional empaíses como o Brasil e o México.

A criação do SELA foi anunciada em outubro de 1975pelo Convênio do Panamá com a adesão de 25 países latino-americanos (em 1979 adere o Suriname).154

Já no seu período de gestação, o SELA foi consideradopelos países do continente como um meio fundamentaldestinado a impulsionar os processos integracionistasregionais. Segundo a idéia de seus fundadores, recaia sobre oSELA a coordenação e estimulação das atividades dasassociações de produtores de matérias-primas, empresasmultinacionais regionais, associações ou agrupamentossetoriais e a elaboração de um posição unitária nos forunsinternacionais.

Ao procederem à fundação do Sistema EconômicoLatino-Americano, os países da região, não obstante asdivergências existentes em numerosas questões de políticainterna e externa, foram unânimes na sua aspiração, por umlado, de superar, com a ajuda da nova organização, os efeitos

154 Segundo Jaime Moncayo, secretário do SELA entre 1975 e 1979,podem participar das atividades da organização todos os países latino-americanos e só os países latino-americanos. Ver GRANMA, La Habana,5.11.1975. Apud ZAITSEV, N., op. cit., p. 150.

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negativos da sua situação cada vez mais deteriorada no sistemade laços econômicos externos do capitalismo e contribuir paraa cooperação multilateral e, por outro, de intensificar a busca denovas vias para manter uma linha política independente a partirda ação coordenada mais enérgica no campo das relaçõeseconômicas com o exterior.

Em conformidade com as aspirações e as propostas dospaíses participantes, as principais tarefas do SELA erampromover a cooperação dentro da região com a finalidade deacelerar o avanço econômico e social do países da região e criarum sistema permanente de consultas e coordenação paraelaborar posições estratégicas comuns ante os problemaseconômicos e sociais, bem como defendê-las nas organizaçõese reuniões internacionais e nas relações com outros países eagrupamentos. Uma orientação fundamental da atividade doSELA é a elaboração de medidas para assegurar o controle daatividade de companhias transnacionais com a finalidade desubordiná-las aos objetivos do desenvolvimento econômicoda região e aos interesse nacionais dos países latino-americanos.

De fato, desde os primeiros anos de sua existência, umtraço característico da atividade do SELA foi a combinaçãoequilibrada de intervenções conjuntas orientadas para odesenvolvimento complexo das relações comerciais eeconômicas com outros países e grupos de países, notadamentea então Comunidade Econômica Européia (atual União Européia)e os EEUU, reagindo energicamente às medidas descriminatóriascomerciais e políticas aprovadas pelos países capitalistasdesenvolvidos contra os Estados da região.155

155 Ver resoluções das reuniões consultivas especiais dos países do SELAdedicadas às relações da América Latina com a CEE (novembro de 1978em Punta del Leste, Uruguai) e os EEUU (dezembro de 1981, Panamá)que visavam defender por todos os meios possíveis os interesses comerciaise políticos dos países latino-americanos. ZAITSEV. N., op. cit., p. 155.

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Ocupa ainda um lugar relevante nas atividades do SELA oapoio a determinados países da região que enfrentam dificuldadeseconômicas ou relativas a políticas econômicas externasdiscriminatórias. Nessa linha de atuação, o SELA apoiou aGuatemala, quando foi vítima de um terremoto; a Nicarágua,quando promoveu a reconstrução da economia do país depoisda derrubada do regime de Somoza e frente às conseqüênciasnegativas da redução da compra do açúcar nicaraguense por partedos EEUU; o Panamá, para que fosse cumprido o acordo com osEEUU sobre o Canal do Panamá; a Bolívia, no episódio da vendaaos EEUU de grandes quantidades de estanho, o que haviaprejudicado seriamente a economia boliviana; a Cuba, no episódioda proibição por parte das autoridades estadunidenses de expor,e posteriormente vender nos EEUU, obras artesanais cubanas; aArgentina, como proteção às conseqüências das agressõeseconômica de que foi vítima devido à crise das Malvinas.

Diante da crise sem precedentes que se instalou nosistema capitalista desde meados da década de 1970 e que vemrepercutindo, com profundidade, na economia dos países latino-americanos, podemos entender que o desenvolvimento daatuação do SELA não se realizou de forma linear e muito menossem contradições. No entanto, os resultados do seufuncionamento nas duas primeiras décadas permitem que seperceba a importância da sua atividade do ponto de vista desua contribuição para a salvaguarda dos interesses econômicosdos países da região, para o desenvolvimento da cooperaçãoregional e para a solidificação de posições coletivas face àsmais importantes questões econômicas internacionais enacionais, do ponto de vista da inserção dos países e do própriocontinente na divisão internacional do trabalho, na economiamundial, enfim.

Assim é que os países manifestam, em bloco, a suapreocupação frente às conseqüências dramáticas que odesenvolvimento capitalista e suas crises cíclicas trazem para aAmérica Latina. Os fatos concretos são o aumento dos déficitsdas balanças de pagamento; degradação das condições decomércio; conseqüências negativas do aumento brusco dastaxas de juros; diminuição da ajuda internacional ao

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desenvolvimento e do acesso aos mercados privados decapitais; aumento das barreiras protecionistas nos paísesocidentais contra as exportações dos países latino- americanose de outros países em vias de desenvolvimento; e agravamentodo problema alimentar no Terceiro Mundo.

O SELA coordenava o posicionamento da América Latinasobre a questão da diminuição dos preços dos principais tiposde matérias-primas (incluindo as agrícolas) das quais os paíseslatino-americanos são importantes exportadores: sobre a políticacomercial e comércio de produtos acabados; sobre problemasmonetários-financeiros ligados às atividades do FMI e do BIRDe dos bancos regionais no sentido de melhorar as condições deempréstimos e de acordos de reescalonamento das dívidas;sobre a industrialização e a reorganização estrutural do processoprodutivo como objetivo de se chegar a uma nova divisãointernacional de trabalho; sobre a transferência de tecnologiapara que se concluam as conversações sobre a suaregulamentação.

Enfim, o SELA subsidiava o fortalecimento da unidade ecoordenava a reação coletiva à crise através das intervençõescontinentais nas negociações econômicas multilaterais compropostas de retorno aos caminhos do desenvolvimento nospaíses latino-americanos para que, na medida em que se tornemnovamente um elemento dinâmico na economia, contribuamfavorável e necessariamente à reanimação da economiamundial.156

156 Em janeiro de 1984, em Quito, Equador, realizou-se a primeiraconferencia latino-americana preparada pelo SELA e pela CEPAL. Comoresultado dos trabalhos da Conferência, foram aprovados a “Declaraçãode Quito” e o “Plano de Ações Conjuntas para ultrapassar as conseqüênciasda crise”, em que são feitas apreciações políticas da situação da economialatino-americana e recomendações práticas para desenvolver a integraçãoeconômica, resolver os problemas de financiamento, alargar o comérciodentro da região e a cooperação no domínio da energia, assim como paraassegurar alimentos à população. Na declaração de Quito, diz-se o seguinte:“A crise exige soluções urgentes através de ações conjuntas baseadas nacooperação regional e na concordância de posições gerais que visem oreforço da capacidade dos países da região para ações de respostas”. In:ZAITSEV, N., op. cit., p. 172-173.

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PARTE3

O CONFLITO ENTRE DUASESTRATÉGIAS DE INTEGRAÇÃO

ECONÔMICA REGIONAL

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CAPÍTULO6

O PROJETO DEINTEGRAÇÃO DOS EUAE A AMÉRICA DO SUL

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Existem dois grandes projetos de integração econômicaregional no continente americano: um para a formaçãode uma área de livre comércio em todo o continente(ALCA) e outro para a formação de um mercado

comum na América do Sul (CASA). Como veremos nesta seção,esses projetos expressam estratégias e interesses distintos e,desde a origem, apresentam contradições que os tornamincompatíveis.

Nilson Araújo de Souza157

157 Nilson Araújo de Souza é Doutor em Economia pela UniversidadNacional Autônoma de México (UNAM), com pós-Doutoramento emEconomia pela Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA-USP); professor aposentado pela Universidade Federal de Mato Grosso doSul e atual professor-pesquisador do Programa de Pós-Graduação daUniversidade Ibirapuera (UNIb) e do Curso de Relações Internacionais doCentro Universitário Belas Artes (FEBASP), ambos de São Paulo; autorde vários livros sobre Economia Internacional e Economia BrasileiraContemporânea. Seu mais recente livro: Economia brasileiracontemporânea – de Getúlio a Lula. São Paulo: Atlas, 2007.

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É a partir dessa constatação que se poderá examinar,com o máximo de objetividade, as possibilidades deimplementação do projeto de integração sul-americano. Comoem qualquer fenômeno, existem limites e possibilidades nesseprocesso. As possibilidades estão dadas, sobretudo, pelastransformações que vêm ocorrendo no mundo contemporâneo,que favorecem a formação de blocos econômicos. Decorrem,também, das mudanças que vêm ocorrendo no interior da própriaAmérica Latina. Quanto aos limites, os principais são externose provêm, sobretudo, da pressão estadunidense para a formaçãoda ALCA. Comecemos pelo exame desses limites externos.

ALCA expressa interesse estratégico dos EUA

Desde os anos 1960, foram assinados vários acordos deintegração regional que resultaram em diversos blocoseconômicos ao longo das Américas: existem o NAFTA naAmérica do Norte, o Mercado Comum Centro–Americano(MCCA) na América Central, o Mercosul e o Pacto Andino naAmérica do Sul. Mas, na atualidade, os dois principais projetossão o da ALCA e o da CASA. Expressam estratégias distintase contraditórias.

O projeto de criação da Área de Livre Comércio dasAméricas (ALCA) foi lançado em dezembro de 1994, durante aCúpula das Américas, em Miami, por 34 países do continenteamericano - desde o início, os EUA exigiram a exclusão de Cuba.Segundo Paulo Nogueira Batista Jr,

a agenda de negociações, formulada basicamente pelosEstados Unidos, inclui não só a remoção de obstáculosao comércio de bens, mas a fixação de regras comuns paratemas como serviços, investimentos, compras

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Contexto em que nasceuprojeto da ALCA

Vejamos em que contexto nasceu a proposta da ALCA.A economia dos EUA, depois de haver consolidado suahegemonia no mundo capitalista no período de pós-guerra,entrou num declínio relativo ao final dos anos 1960. Isso nãosignifica que tenha parado de crescer, mas que passou a crescerbem menos do que as principais economias rivais: a da Alemanhae a do Japão. O maior aumento da produtividade nessas duaseconomias159 provocou um crescente e crônico déficit comercialnos EUA. Para cobrir esse déficit, esse país teve que recorrer asuas reservas em ouro e obrigações de outros países. Era esseo quadro no começo dos anos 1970.

Para tentar reverter essa tendência, a primeira iniciativado governo dos EUA, ocorrida em 1971, durante a gestão deRichard Nixon, foi a suspensão da paridade e da livre-conversibilidade do dólar160. A partir de então, o dólar começou

governamentais, propriedade intelectual, entre outros.Até o final de 2002, essa agenda não sofreu grandescontestações na mesa de negociações.158

O projeto de criação da ALCA expressa, portanto, uminteresse estratégico dos EUA.

158 BATISTA Jr, Paulo Nogueira. O Brasil e a economia internacional.Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 75.159 Ver nosso livro Ascensão e queda do império americano. São Paulo:CPC-UMES/Mandacaru, 2001.160 A paridade e a livre conversibilidade do dólar faziam parte dos acordosestabelecidos em Bretton Woods (EUA), em 1944, que passaram aconsiderar a moeda estadunidense como referência monetária internacional.Com o fim das reservas cambiais, os EUA já não podiam garantir a livreconversibilidade de sua moeda; além disso, com a paridade monetária,perdiam competitividade internacional.

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a ser desvalorizado. O objetivo era baratear no exterior asmercadorias estadunidenses a fim de melhorar suas exportaçõese encarecer em território estadunidense as mercadoriasestrangeiras a fim de limitar as importações.161

Mesmo assim, os déficits continuaram. Esses déficitscomerciais eram apenas a expressão de que os EUA estavamperdendo a corrida tecnológica para o Japão e a Alemanha. Foinesse contexto que se deu a segunda ofensiva do governo dosEUA. Durante a gestão de Ronald Reagan, nos anos 1980,adotou-se a elevação da taxa de juros como forma de atraircapitais externos para cobrir o déficit externo, mas, logo depois,se promoveu uma violenta desvalorização do dólar162 e umrecrudescimento protecionista163 como forma de combater essedéficit. Indiretamente, o objetivo era quebrar seus rivais nadisputa mundial. A meta de debelar o déficit não foi atingida.Quanto à quebra dos rivais, foi atingida parcialmente: o Japãofoi a nocaute e mergulhou numa estagnação que durou décadae meia164, mas a Alemanha, ao contrário, usou essa pressão paraacelerar o processo de unificação européia e assim se fortalecerna disputa mundial.

161 Quando a própria moeda se desvaloriza, os exportadores, ao receberemmais em moeda nacional, podem aceitar um preço internacional maisbaixo para seus produtos, estimulando as exportações; por outro lado, osimportadores têm que desembolsar mais moeda nacional para adquirir osprodutos no exterior, o que desanima as importações.162 Através dos “acordos” de Plaza, firmados em 1985, e os de Louvre, de1987, os EUA forçaram as demais potências a aceitar uma violentadesvalorização do dólar: um ano depois dos “acordos” de Plaza, o dólar jáhavia baixado de 250 ienes para 155 ienes e seguiu baixando até atingir 80ienes em abril de 1995 (Cf. SOUZA, Nilson Araújo de. Ascensão e quedado império americano. São Paulo: CPC-UMES/Mandacaru, 2001, p. 87).163 Ver à frente as medidas protecionistas adotadas pelo governo dos EUAa partir de então.164 Segundo Martin Wolf, “quando o iene bateu em 80 por dólar em abrilde 95 as perdas chegaram a US$ 720 bilhões” (WOLF, Martin. “Editorial”.Financial Times, 11.06.1996).

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A terceira ofensiva ocorreu ao longo dos anos 1990. Foia década em que predominaram na América Latina as políticasresultantes do “Consenso de Washington”. Em 1989, em reuniãopatrocinada pelo Instituto Internacional de Economia emWashington, com a participação de personalidades e técnicosdo governo dos EUA, do Banco Mundial, do FMI e de empresastransnacionais, foi aprovado um decálogo de medidas, quepassou a ser “recomendado” pelo FMI, Banco Mundial, BancoInteramericano de Desenvolvimento (BID) e Tesouro eDepartamento de Comércio dos EUA para os países latino-americanos. Destaca-se, entre essas medidas, a aberturaeconômica, isto é, a redução ou mesmo eliminação de barreirasprotecionistas nesses países.

Como resultado, segundo a CEPAL, a tarifa média deimportação na região caiu de algo em torno de 40% para menosde 15%.165 Isso sem contar as barreiras não-tarifárias, que tambémforam caindo uma a uma. No Brasil, o processo foi o mesmo: aproteção efetiva (que inclui subsídios ou incentivos a produtosimportados) caiu de 47,3% em 1985 para 16,5% em 1993,chegando em 1997 a 7%.166

A conseqüência dessa abertura latino-americana foi oaumento das exportações dos EUA para a região de US$ 35bilhões em 1987 para US$ 92,6 bilhões em 1994, passando a sera única região do globo em que possuía superávit comercial.167

E, para a principal economia da região, a do Brasil, as exportaçõesestadunidenses aumentaram 165,9% de 1990 a 1996, enquanto

165 CEPAL. Tendências econômicas e sociais na América Latina e noCaribe, 1996.166 OIT. Brasil: abertura comercial e mercado de trabalho. Cit. in. SOUZA,Ascensão…, p. 103.167 FMI. International financial - yearbook, 1995 e 1996; CEPAL.Economic survey of the United States in 1996, Washington. Na segundametade dos anos 1990, a situação persistiu: de 1995 a 2001, os EUAacumularam um superávit comercial com o Mercosul, incluindo osassociados Bolívia e Chile, de US$ 51,8 bilhões (BANDEIRA, Luiz AlbertoMoniz. As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (de Collor a Lula,1990-2004). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 341).

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as exportações do Brasil para aquele país cresceram apenas20%.168 Isso contribuiu para a elevação do conjunto dasexportações estadunidenses, que pularam do patamar de US$225 bilhões no período 1980-1987 para US$ 612 bilhões em 1996.Essa trajetória prosseguiu ao longo da década de 1990, levandoas exportações para o patamar de US$ 1 trilhão no ano 2.000.169

Mesmo assim, o déficit comercial crônico dos EUA nãodesaparecia. Ao contrário, somou-se ao déficit na conta deserviços - resultante do passivo externo criado pelo déficitcomercial.170 - para tornar explosivo o crescimento do déficit naconta de transações correntes: esse déficit subiu de US$ 143,5bilhões em 1997 para US$ 435 bilhões no ano 2000.171 Essadiferença corresponde aos bens e serviços que osestadunidenses consomem além de sua própria produção oucapacidade efetiva de compra e por isso são adquiridos noexterior e financiados por capitais externos, aumentando opassivo externo do país e, em conseqüência, suavulnerabilidade externa.

Nesse período, por outro lado, ocorreram dois fenômenosimportantes: a queda da URSS e a consolidação da UniãoEuropéia. E por isso o objetivo estratégico traçado pelo governoe as corporações dos EUA já não era apenas reagir à competiçãocom o Japão e a Alemanha. Já não era apenas adotar medidascom vistas à superação de seu déficit externo. Era criar condiçõespara o que o ex-presidente George Bush designara de “nova

168 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. As relações perigosas: Brasil-EstadosUnidos (de Collor a Lula, 1990-2004). Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2004, p. 13.169 FMI, op. Cit., CEPAL, op. Cit.170 Existia em 2001 US$ 6,5 trilhões de ativos financeiros nos EUApertencentes a estrangeiros, segundo informação de Rubens Ricúpero,então secretário-geral da UNCTAD, órgão da ONU para o comércio e odesenvolvimento (cit. In SOUZA, Ascensão..., p. 211).171 Ibid., p. 211.

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ordem mundial”. Queriam aproveitar-se do vácuo deixado peladesagregação da URSS para estabelecer sua hegemonia mundial.Para isso, um passo imediato seria a ocupação do espaçoeconômico no continente americano através da conformaçãode um bloco econômico que permitisse superar o bloco europeu.Daí a busca de concretizar, através da ALCA, a propostachamada de “Iniciativa para as Américas”, lançada em 1989 porGeorge Bush, e que tinha como objetivo criar uma área de livrecomércio do Alasca à Terra do Fogo.

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A proposta dos EUA para a ALCA

Os EUA não pretendem, com a ALCA, a conformação deum processo de integração econômica mais completo, isto é,que garanta a proteção externa comum (União Aduaneira) ou alivre mobilidade interna de fatores, incluindo a força de trabalho(Mercado Comum) ou ainda a unificação de políticasmacroeconômicas, incluindo a adoção de uma moeda única(União Econômica). Eles pretendem a criação de um bloco quepermaneça no primeiro estágio de integração, Área de LivreComércio, mas ao mesmo tempo propõem objetivos que,claramente, fortaleceriam a ocupação do mercado regional porsuas corporações transnacionais.

Segundo Moniz Bandeira, o projeto da ALCA é arevivificação, como corolário econômico e comercial, daDoutrina Monroe, que propugnava “a América para osamericanos”.172. Essa hipótese recebeu confirmação por partedo secretário de Estado do primeiro governo de George W.

172 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. As relações perigosas: Brasil-EstadosUnidos (de Collor a Lula, 1990-2004). Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2004. p. 119.

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Bush, general Colin Powel, ao declarar: “O nosso objetivo coma ALCA é garantir o controle de um território que vai do PóloÁrtico até a Antártida”.173

Depois de criados, no âmbito da ALCA, nove grupos denegociação em junho de 1998, o governo dos EUA divulgou emjaneiro de 2001 e fevereiro de 2003 o resumo de suas posiçõespara cada grupo e as linhas gerais de suas propostas. Queremosdestacar aqui suas propostas para investimento, comprasgovernamentais, propriedade intelectual, serviços e acesso amercados para produtos não-agrícolas.

Quanto aos investimentos, ao mesmo tempo em que cadapaís-membro teria que conceder aos investimentos oriundosde outros países-membros o “tratamento nacional” (como sefosse uma empresa nacional)174, o investidor de um dessespaíses teria o direito de recorrer à arbitragem internacional, noâmbito do BIRD ou da ONU, passando por cima da legislaçãonacional do país hospedeiro.175 Como o país da região queestaria em melhores condições de aplicar seus capitais em outrospaíses são os EUA, essa proposta visa proteger, sobretudo, oscapitais de suas transnacionais.

No caso das compras governamentais, a proposta dosEUA indica que, “para uma ampla gama de contratos de comprasgovernamentais, qualquer fornecedor de bens e serviços de umoutro pais da ALCA receberia o mesmo tratamento que osfornecedores do país”176, impedindo o uso desse instrumento -

173 Cit in BUONICORE, Augusto C. “Expansão dos EUA na AméricaLatina: origens remotas da ALCA”. Disponível em: http:/www.imediata.com/lancededados/ALCA. Acesso em: 27.07.2006, às 14h.174 BATISTA Jr., Paulo Nogueira. O Brasil e a economia internacional.Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p.86.175 Ibid., p. 88.176 Ibid., p. 90.

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compras governamentais - por parte de governos nacionais,estaduais ou municipais para a promoção da atividadeeconômica e do emprego em seu território. Que empresas de umpaís latino-americano teriam condição de competir com umaempresa estadunidense por um contrato governamental? Muitopoucas.

A proposta dos Estados Unidos para a propriedadeintelectual, segundo Batista Jr,

inclui proteção rigorosa do copyright, das patentes,de segredos comerciais, de marcas comerciais e de indicaçõesgeográficas. A idéia central é garantir dentro da ALCA omáximo de proteção para atividades tradicionalmentedominadas pelos norte-americanos, que respondem pelogrosso das inovações, patentes e marcas.177

Na área de serviços, o governo dos Estados Unidosquer que a ALCA assegure amplo acesso para serviçosfinanceiros, telecomunicações, informática, serviçosaudiovisuais, construção e engenharia, turismo, publicidade,serviços de entrega rápida, serviços profissionais (arquitetos,engenheiros, contadores etc), serviços de distribuição (atacado,varejo e franchising), certos serviços de transporte, serviçosde energia e serviços relacionados à atividade industrial.178 Paraessa liberalização, a questão central seria “a não imposição deexigências de presença local (por exemplo, um escritório derepresentação ou qualquer forma de companhia) como condiçãopara a prestação internacional de serviços”.179 Isso significariaque uma empresa de serviços dos EUA poderia prestar serviçosao Brasil sem sequer instalar uma representação aqui.

177 Ibid., p. 91.178 United States Trade Representative. Summary of U.S. NegotiatingPositions in the FTAA, 2001, Negotiating Group on Services, p. 1. Cit. inBATISTA Jr., op. cit., p. 92.179 Ibid., p. 93.

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Quanto ao acesso a mercados para produtos não-agrícolas, os EUA não aceitam discutir as medidas antidumpinge direitos compensatórios, bem como as medidas protecionistasnão-tarifárias. São exatamente esses instrumentos que elesutilizam para proteger seus setores ditos mais sensíveis, ouseja, aqueles em que o Brasil, por exemplo, tem maior capacidadecompetitiva (como aço, têxteis, calçados, suco de laranja).180

Não bastasse isso, em sua oferta inicial de 2003, estabeleceramum cronograma de desgravação tarifária em que as piores ofertasforam feitas para os países integrantes do Mercosul181, ou seja,aqueles países latino-americanos que, à exceção do México,estão em melhores condições de concorrer dentro do mercadoestadunidense.

O caso do subsídio aos produtos agrícolas, que sustentaseus agricultores, já que não têm capacidade de competir comos produtores do Brasil e da Argentina, os EUA sequer aceitamdiscutir, alegando que se trata de tema a ser tratado na OMC182,mas, quando da reunião dessa organização em Cancun (México),em setembro de 2003, contando com o apoio da União Européia,não se dispuseram a fazer qualquer concessão, o que contribuiupara inviabilizar qualquer acordo sobre esse tema ou qualqueroutro. O mesmo comportamento voltou a se repetir na reuniãode Genebra (Suíça), em julho de 2006.

Mesmo depois de uma tentativa de negociação dentrodo chamado G-6183, o resultado foi, segundo o comissárioeuropeu do Comércio, o britânico Peter Mandelson, “um

180 Ibid., p. 78-9.181 United States Trade Representative. Summary of U.S. NegotiatingPositions in the FTAA, 2001, Negotiating Group on Market Access, p. 2-3. Cit in BATISTA Jr., op. Cit., p. 89.182 Ibid., p. 89.183 Grupo que reúne os grandes compradores e os grandes vendedores deprodutos agrícolas: Estados Unidos, Brasil, Índia, União Européia, Japãoe Austrália.

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fracasso que, claro, não era desejado, mas que poderia ter sidoevitado”184. Nessa reunião, a União Européia aceitou fazeralgumas concessões185, mas os EUA se mantiveramintransigentes, o que levou seus aliados europeus nessaquestão a declarar que “os Estados Unidos não aceitaram nemreconheceram a flexibilidade mostrada por outros, e,conseqüentemente, foram incapazes de serem flexíveis naredução dos subsídios internos [à agricultura]”186. Essa opiniãofoi compartilhada por um dos líderes do G-20, o ministro doComércio e Indústria da Índia, Kamal Nath, que declarou aofinal da reunião: “Não gostaria de entrar em um jogo deacusações, mas está claro que, com exceção de um único país,a União Européia e todos os outros se movimentaram e lançaramuma proposta”.187 O impasse provocou a suspensão da Rodadade Doha, lançada em 2001 no âmbito da OMC para negociar aliberalização comercial entre os países-membros.

Percebe-se, assim, que o governo dos EUA propõe amplaliberalização para aquelas áreas em que detêm vantagenscompetitivas, como capitais, tecnologia e serviços. No casodos produtos industriais, só querem liberalizar aqueles em quepossuem vantagem competitiva, como bens de capital,componentes eletrônicos, química, eletrônica de consumo,software e informática, deixando de fora os “produtos sensíveis”,ou seja, aqueles em que não têm capacidade competitiva. No

184 “UE culpa EUA por fracasso de reunião sobre a Rodada de Doha”.Disponível em: http://www.estadao.com.br/ultimas/economia/noticias.Acesso em: 24.07.2006, às 11h42m.185 Concordava em reduzir em 39% os subsídios agrícolas, enquanto o G-20, grupo de países produtores liderado pelo Brasil, demandava 54%(“Negociação da OMC não avança”. Disponível em: http://www.swissinfo.org/por/swissinfo.html. Acesso em: 24.07.2006, às12h55m).186 Declaração do comissário europeu do Comércio, Peter Mandelson(“EU culpa EUA por fracasso...”). .187 Ver “EU culpa EUA por fracasso...”.

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EUA pregam livre comércio,mas intensificam o protecionismoVimos então que, enquanto os EUA pregam o livre

comércio, praticam o protecionismo. Segundo o economistaPaulo Nogueira Batista Jr., essa contradição antes podia serdisfarçada, mas, com sua intensificação durante a gestão deGeorge W. Bush, tornou-se mais explícita:

com o governo de George W.Bush, as perspectivas daALCA tornaram-se mais sombrias. Os Estados Unidospassaram a seguir, com uma dose de franqueza bemmaior do que a habitual, uma concepção peculiar delivre-comércio, que pode ser resumida da seguinteforma: por um lado, o máximo de abertura nos temas esetores em que os Estados Unidos a p r e s e n t a mvantagens competitivas; por outro, protecionismo, nãoraro sem disfarces, para os setores frágeis ou poucocompetitivos da sua economia.189

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caso da agricultura, em que tem desvantagem competitivaestrutural, sequer aceitam discutir. E, quanto à livre mobilidadeda força de trabalho, que seria um traço importante de ummercado comum, também não entra na sua pauta.188 Isso revelaclaramente uma contradição do governo estadunidense:enquanto, por exemplo, seus produtos penetram no mercadomexicano, graças à liberação comercial do Nafta, ostrabalhadores mexicanos que perdem o emprego devido àsubstituição de produção interna por produção importada nãopodem acessar ao mercado dos EUA. É o mesmo modelo quepretendem incluir na ALCA

188 BATISTA Jr., op. Cit., p. 78.189 Ibid., p. 94.

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Na verdade, a aceleração do protecionismo, ao lado dapregação do livre-cambismo, já vinha ocorrendo há cerca deduas décadas e meia. O ponto de inflexão foi o governo deRonald Reagan (1981-1989). Para atender à sua retórica livre-cambista, reduziu as tarifas de importação do país, mas ao mesmotempo as substituiu por medidas não-tarifárias. Pesquisa feitapelos economistas estadunidenses Sam Laird e Alexander Yeatsconcluiu que, considerando apenas as barreiras não-tarifárias,os EUA aumentaram a proteção de sua economia contra produtostêxteis de 20% em 1966 para 79% em 1986; contra equipamentose máquinas não-elétricas, de 8% para 29%; contra equipamentosde transporte, de 24% para 64%; contra alimentos, de 17% para40%; matérias-primas agrícolas, de 5% para 41%; minérios, de0% para 32%190. E, assim, “em 1986, 45% das importações dosEUA dependiam dessas barreiras”.191

Para agravar essa situação, o governo Reagan submeteuao Congresso, em 1985, tratados comerciais extremamenteprotecionistas, além de passar a utilizar em demasia o artigo 301do Tratado Comercial de 1974 com o objetivo de controlar emoutros países as práticas comerciais que considerasse lesivasaos interesses das corporações dos EUA. Logo depois, em1989, o Japão, então principal exportador para aquele país, eracolocado na lista dos “unfair traders” (comerciantesindesejados).192

Esse recrudescimento protecionista prosseguiu depois.Na virada da década de 1990 para a de 2000, o governo dos EUAeditou 40 leis e decisões executivas destinadas a aplicar sançõeseconômicas contra 75 nações, que representavam 42% dapopulação mundial.193

190 SOUZA, Nilson Araújo de. O colapso do neoliberalismo. São Paulo:Global, 1995, p. 23-4.191 SCHWARTZ, Gilson. “Protecionismo dos EUA dificulta formar bloco”.Cit. in SOUZA, op. cit., p. 24.192 SOUZA, Ascensão..., p. 87.193 Ibid., p. 103-4.

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Diz-se que os republicanos são mais liberais nos EUA,mas o retorno de um deles ao governo, George W. Bush, em2001, fez recrudescer o protecionismo. Naquele mesmo ano, aComissão de Comércio Internacional dos EUA recomendou oincremento das medidas protecionistas para a indústria do aço;em março de 2002, adotou-se um programa de defesa dasiderurgia estadunidense baseado no aumento das barreiras àimportação de aço; em maio do mesmo ano, editou-se uma farmbill, que ampliou os subsídios e outras medidas de apoio aseus fazendeiros. Em agosto, o Congresso aprovou o TradePromotion Authority (TPA), antes fast track authority, que,concebido como um mandato para o presidente negociaracordos comerciais internacionais, dentre eles a ALCA, terminoufortalecendo a onda protecionista.194 Diz o documento, dentreoutras coisas:

um dos principais objetivos de negociação [é] preservara capacidade de os Estados Unidos aplicaremrigorosamente as suas leis comerciais, inclusive as leisantidumping, de direitos compensatórios e desalvaguardas, e evitar acordos que diminuam aefetividade de restrições nacionais e internacionaisao comércio injusto, especialmente dumping esubsídios.195

As relações comerciais dos Estados Unidos com o Brasilforam profundamente afetadas por essa onda protecionista. Nocomeço dos anos 2000, segundo o então embaixador brasileiroem Washington, Rubens Barbosa, 67 produtos brasileiros tinhamacesso bloqueado àquele mercado por uma série de barreirasnão-tarifárias. Levantamento feito pela Secretaria de ComércioExterior em 2001 revelou que 60% das nossas exportações

194 BATISTA Jr., op. Cit., p. 96, 99.195 United States Congress. Bipartisan trade promotion authority act,2002, p.69.

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sofriam algum tipo de restrição nos EUA.196 Eram barreiras não-tarifárias tais como o estabelecimento de cotas, medidas decontrole fito-sanitário, medidas antidumping, subsídios aoprodutor interno, dentre outras.

A assimetria do protecionismo estadunidense é evidente.Estudo realizado pela Embaixada do Brasil em Washingtonrevelou que os 20 principais produtos brasileiros exportadospara os EUA sofriam uma tarifa de importação média de 39,1%naquele país, enquanto o Brasil cobrava apenas 12,9% sobreos 20 principais produtos exportados pelos EUA. Isso apesarde a tarifa média adotada nos EUA para o conjunto do mundosituar-se na época entre 4% e 5%.197 Ainda segundo o citadoembaixador brasileiro, no começo dos anos 2000, 130 produtosbrasileiros enfrentavam tarifas acima de 35% no mercadoestadunidense. Depois dessa constatação, concluiu odocumento da Embaixada: “Lamentavelmente para o Brasil, háuma grande coincidência entre as áreas nas quais incidem ossubsídios e o protecionismo americano e o nosso perfilexportador externo, o que atua em detrimento dos legítimosinteresses dos nossos produtores eficientes”.198

196 SOUZA, Ascensão, p 103.197 SOUZA, Nilson Araújo de. A longa agonia da dependência – economiabrasileira contemporânea (JK-FH). 2ª. Ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2005,p. 651.198 Cit. in SOUZA, A longa agonia..., p. 651.

Integração econômicae desníveis regionais

Quando deflagrou-se a discussão da ALCA, emdezembro de 1994, os países latino-americanos já haviamexperimentado um intenso processo de abertura comercial no

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bojo das políticas neoliberais que tiveram seu apogeu na décadade 1990. A região, sem contrapartida, abriu mão das barreirasnão-tarifárias e reduziu drasticamente as tarifárias. Segundo aCEPAL, a tarifa média de importação da região caiu de cerca de40% para menos de 15%199. No principal país da região, o Brasil,a tarifa efetiva caiu de 47,3% em 1985 para 7% em 1997200.

Parte expressiva do parque industrial da região nãoresistiu a essa abertura indiscriminada do mercado regional. Oresultado foi a destruição de importantes setores industriais ede emprego. Nem mesmo a economia mais forte e maiscompetitiva da região escapou. Segundo a OrganizaçãoInternacional do Trabalho (OIT), a participação do produtoindustrial brasileiro no PIB, que, em média, esteve na faixa de40% na década de 1980 e chegara a 44% em 1986, caiu para 34%em 1994.201 Se considerarmos apenas a indústria detransformação, sua participação no PIB caiu de 29% em 1993para 20,3% em 1998202. Como conseqüência, o emprego industrialcaiu 34,2% entre 1989 e 1996, fazendo a participação do empregoindustrial no emprego total, que crescera desde o início daindustrialização por substituição de importações, na década de1930, baixar de 22,8% em 1990 para 19,6% em 1995203.

Diante dessa situação, uma nova onda de aberturacomercial poderia ser fatal para a indústria da região. Osdefensores da ALCA apresentam duas razões básicas parajustificar o que consideram vantagens dessa proposta para aeconomia da região: a) com a liberalização do maior mercado do

`99 CEPAL Tendências econômicas e sociais na América Latina e noCaribe, 1996.200 SOUZA, Ascensão..., p. 103.201 OIT. Brasil: abertura comercial e mercado de trabalho, cit in SOUZA,Ascensão..., p. 105.202 Fonte: IBGE. Cit. in SOUZA, Ascensão..., p. 105.203 Idem, Ibid

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planeta, o dos EUA, aumentariam as exportações latino-americanos, beneficiando suas empresas e sua economia; b)com a abertura do mercado latino-americano para as empresasdos EUA, as empresas da região seriam expostas à concorrênciaexterna, estimulando sua modernização.

Vejamos primeiro a liberalização do mercado dos EUA.Vimos nas seções anteriores que, na discussão da ALCA, osEUA, ao mesmo tempo em que recrudescem seu protecionismonão-tarifário, propõem a abertura comercial dos demais paísesdo continente americano não apenas para bens e serviços, mastambém nas áreas de investimentos, compras governamentaise propriedade intelectual. Além disso, não se dispõem a abrirmão de barreiras não-tarifárias como subsídios, medidasantidumping, cotas, medidas fito-sanitárias, dentre outras.

Nas negociações da ALCA, os Estados Unidos procuramconcentrar a liberalização comercial na redução de tarifas deimportação. Ora, as tarifas estadunidenses para a América Latinajá são muito baixas: a média efetiva das tarifas aplicadas em1999 a produtos que importaram da América Latina foi de apenas1,1%, sendo de 2,4% para o Mercosul e de 2,6% para o Brasil204.Como vimos, os EUA já vinham, desde os anos 1980,substituindo as medidas tarifárias por barreiras não-tarifárias.Assim, a redução ou mesmo anulação de tarifas não significariaesforço algum para aquele país. Enquanto isso, os países latino-americanos praticamente acabaram com suas barreiras não-tarifárias na onda aberturista dos anos 1990. Mas, apesar dehaverem reduzido bastante suas tarifas, elas seguiram bem maiselevadas do que as dos EUA: estavam em torno de 15%; nocaso do Mercosul, no momento da constituição da UniãoAduaneira, em 1995, a tarifa externa comum (TEC) foiestabelecida em 12,3%205. Assim, sua anulação significaria um

204 SOUZA, Ascensão..., p. 104.205 BANDEIRA, op. Cit., p. 80.

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sacrifício muito maior do que a anulação nos EUA. Está claroporque os Estados Unidos não querem colocar as barreirasnão-tarifárias na mesa de negociações: é através delas que elesvêm protegendo os setores mais nevrálgicos de sua economia.

Além disso, vimos que os EUA sobretaxam os principaisprodutos que o Brasil exporta para seu mercado. Como umaárea de livre comércio pode manter tarifas protecionistas paraaté 15% de seu comércio intra-regional, são precisamente essesprodutos em que o Brasil possui elevada capacidade competitivaque os EUA, na sua oferta inicial, pretendem manter protegidos.Além disso, a pior oferta foi feita para o Mercosul, precisamenteonde estão os países com maior capacidade de competir nomercado estadunidense.

Nada indica, portanto, que, se a ALCA viesse a serimplantada, ocorreria um importante acesso àquele mercado porparte da nossa produção. Por outro lado, o mercado latino-americano seria inundado por mercadorias estadunidenses.Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),órgão de pesquisa do Ministério do Planejamento brasileiro, seas tarifas aduaneiras fossem zeradas entre os países dasAméricas, as exportações dos EUA para o Brasil cresceriamduas vezes mais do que as do Brasil para aquele país206. Essaconclusão foi confirmada por estudo da Federação dasIndústrias do Estado de São Paulo (FIESP): segundo esseestudo, caso a ALCA fosse implantada a partir de 1º de janeirode 2006, as importações brasileiras seriam incrementadas emUS$ 2,254 bilhões ao ano, enquanto as exportações sócresceriam US$ 1,252 bilhão207. Outro estudo, realizado porpesquisadores da Unicamp, por encomenda do Ministério deDesenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC),concluiu que a implantação da ALCA iria incrementar as

206 SOUZA, Ascensão..., p. 104.207 Folha de S.Paulo, 26.08.2002.

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importações brasileiras e inibir suas exportações, além depromover a desindustrialização e a desnacioanalização deimportantes setores da economia.208

Por sua vez, estudo da Secretaria da Receita Federal doBrasil de 02.05.2002 demonstrou que os Estados Unidos, oMéxico e o Canadá seriam os países mais beneficiados com aALCA.209 Por fim, a ALADI chegou à conclusão de que a ALCAtraria

mais ameaças que oportunidades para o Brasil,levando-o a perder mercado, dentro do hemisfério, paraprodutos exportados por suas empresas,principalmente nos setores de manufaturados, ou seja,máquinas e equipamentos, automóveis, papel e celulose,produtos químicos, em virtude da concorrência dosEstados Unidos e Canadá’210.

Avaliam os defensores da ALCA que essa inundação demercadorias oriundas dos Estados Unidos ensejaria umambiente de concorrência favorável à modernização daeconomia latino-americana. Cabe anotar, em primeiro lugar, que,quando se deflagrou a discussão sobre a ALCA, a economialatino-americana já havia sido invadida pela primeira onda deabertura comercial e se encontrava bastante fragilizada. Emsegundo lugar, dada a força econômica da maioria dascorporações estadunidenses, muito poucas empresas latino-americanas teriam condição de competir com elas, salvo emalguns setores intensivos em mão-de-obra e recursos naturais.

Há, por outro lado, fatores de ordem macroeconômicaou microeconômica que limitam a capacidade competitiva das

208 “Estudo da competitividade de cadeias integradas no Brasil: impactodas zonas de livre comércio”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11.12.2002.209 BANDEIRA, op. cit., p. 212.210 O Estado de S. Paulo, 13.08.2002, cit. in BANDEIRA, op. cit., p.212.

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empresas da região. Segundo Batista Jr., no terrenomacroeconômico,

diversas circunstâncias relacionadas à chamadacompetitividade sistêmica (escassez de crédito, custosfinanceiros elevados, fraqueza dos mercados de capitaisdomésticos, características do sistema tributário,deficiências de infra-estrutura, entre outros) colocamas empresas brasileiras em desvantagem na disputapor mercados externos e internos.211

Enquanto isso, no âmbito microeconômico,

as firmas dos Estados Unidos e de outros paísesdesenvolvidos são, em geral, muito superiores àsbrasileiras em termos de escala de produção,tecnologia, organização, acesso a crédito e capital,redes de comercialização, marcas etc. Há exceções, éclaro. Diversas empresas brasileiras e setores daeconomia nacional (por exemplo, siderurgia, têxteis,calçados, grande parte da agroindústria e daagricultura) demonstram capacidade de competir nomercado internacional e são por isso mesmo os alvospreferenciais do protecionismo praticadosistematicamente pelos países desenvolvidos. Masalguém pode, em sã consciência, afirmar que asnossas empresas, na maioria dos setores, têmcondições de enfrentar de igual para igual as grandescorporações dos Estados Unidos e de outros paísesdesenvolvidos?212

Costuma-se alegar que, se o Brasil e o Mercosuldeixassem de integrar a ALCA, ficariam isolados no continente.Paulo Nogueira Batista Jr. responde a essa dúvida: “é duvidoso

211 BATISTA Jr., op. Cit., p. 81.212 Ibid., p. 83-4.

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que um bloco pan-americano possa se formar com exclusão doBrasil, país que responde por 42% da população e 50% do PIBda ALCA exclusive NAFTA”213. É essa também a opinião doeconomista estadunidense Jeffrey Schott.214

Além disso, diz Batista Jr.: “Para os demais países sul-americanos, a economia brasileira é um mercado muitoimportante, às vezes mais importante do que o dos EstadosUnidos. Nenhum desses países teria interesse em se isolar doBrasil”.215

O Mercosul, por sua vez, responde por 60% dasimportações de todo o hemisfério, exclusive NAFTA.216

Portanto, o que interessa aos EUA com a ALCA é o mercado doBrasil e da América do Sul. Assim, em lugar de o Brasil e oMercosul se isolarem se não participarem da ALCA, o contrarioé que é verdadeiro: seria impossível uma ALCA sem o Brasil e oMercosul.

Por fim, a participação do Brasil na ALCA, ao privilegiaras negociações comerciais com os EUA, poderia prejudicar suasrelações comerciais com seus principais parceiros: por ocasiãodo início das negociações para a formação da ALCA, entre 1994e 1995, a Europa representava 27% do destino das exportaçõesbrasileiras, enquanto os EUA absorviam 21%.217 Além disso, osprincipais compradores de produtos industriais do Brasil sãoseus parceiros da América do Sul.

213 Ibid, p. 103.214 SCHOTT, Jeffrey. Prospects for Free Trade in the Americas. Washington,DC: Institute for International Economics, agosto de 2001.215 BATISTA Jr., op. Cit., p. 105.216 BANDEIRA, op. Cit., p. 119.217 BANDEIRA, op. Cit., p. 117.

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CAPÍTULO7

A ESTRATÉGIA BRASILEIRAPARA A INTEGRAÇÃO

REGIONAL

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Até 2002, as negociações para a formação da ALCAforam avançando, ainda que não no ritmo quepretendiam os EUA. Tanto os avanços quanto aritmo lento se deviam à posição então assumida

pelo governo brasileiro. Era de se esperar que o governo deFernando Henrique Cardoso, que se alinhara com a políticaexterior dos EUA e praticava uma política econômica nos moldesdo “Consenso de Washington”, que tinha a abertura daeconomia como um de seus postulados básicos, tenderia aacompanhar o governo dos EUA em sua proposta para a criaçãoda ALCA.218 No entanto, precisamente por haver ido longe

218 O interesse de FHC na ALCA era tão grande que, ainda como presidenteeleito, participou da Cúpula das Américas realizada em Miami, entre 9 e11 de dezembro de 1994, quando se decidiu criar a ALCA até 2005(BANDEIRA, op. Cit., p. 85).

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Governo Fernando Henrique aceitaprojeto da ALCA, mas reduz ritmo.

Essa contradição entre o projeto dos EUA e a reaçãocontrária do empresariado brasileiro se manifestava dentro dopróprio governo: de um lado, os responsáveis pela áreaeconômica do governo, tendo o ministro da Fazenda, PedroMalan, à frente, defendiam o ingresso na ALCA sem grandesnegociações; de outro, os diplomatas do Itamaraty oscilavamentre uma participação mediante um processo de negociação ea recusa a participar. A posição de não participar era defendidapelo diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais(IPRI), do Itamaraty, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.219

Diante dessas contradições, o governo brasileiroassumiu uma atitude dúbia: ao mesmo tempo em que apoiava a

demais na abertura econômica, despertara no empresariadobrasileiro, sobretudo o paulista, organizado na poderosaFederação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), areação contra uma nova onda de liberalização comercial.

219 Segundo Pinheiro Guimarães, a ALCA fazia parte da estratégia dos EUAvisando realizar “seu desígnio histórico de incorporação subordinada daAmérica Latina ao seu território econômico e a sua área de influênciapolítico-militar” (entrevista dada ao jornal Valor Econômico, 02.02.2001).

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criação da ALCA220, propunha algumas condições, como a deque só aceitaria um acordo “equilibrado”, que, na prática,dificultavam o avanço das negociações. O presidente FernandoHenrique, no discurso de abertura da Cúpula de Quebec, emabril de 2001, deixou claro o que entendia por equilibrado:

a ALCA será bem-vinda se sua criação for um passopara dar acesso aos mercados mais dinâmicos; seefetivamente for o caminho para regras compartilhadassobre antidumping; se reduzir as barreiras não-tarifárias; se evitar a distorção protecionista das boasregras sanitárias; se, ao proteger a propriedadeintelectual, promover, ao mesmo tempo, a capacidadetecnológica dos nossos países. E, ademais, se for alémda Rodada Uruguai e corrigir as assimetrias entãocristalizadas, sobretudo na área agrícola. Não sendoassim, seria irrelevante ou, na pior das hipóteses,indesejável.221

Os temas levantados nesse discurso eram, precisamente,aqueles que o governo dos EUA não queria incluir na pauta daALCA, pois constituem o âmago de seu arsenal protecionista.

220 No dia 29.01.2001, por ocasião da posse de Celso Lafer como ministrodas Relações Exteriores, o presidente Fernando Henrique Cardoso declarouque “a história nos desafia, como o fez com a Europa, à formação daComunidade das Américas” (cit. In BANDEIRA, op. Cit., p. 208). Nolivro que avalia seu governo, Fernando Henrique afirma que discordavaapenas do cronograma para a criação da ALCA, mas concordava com aproposta: “Recordo que pronunciei, em Miami, pequeno discurso deimproviso ponderando que a data fixada para a conclusão das negociaçõesda Alca, 2005, parecia irrealista. Precisaríamos de mais tempo para ajustaros interesses de nossa produção às regras da competição livre. Não obstante,estavam claros os sinais dos novos tempos. Não haveria como escapar dagrande questão: teríamos de nos integrar à economia global” (CARDOSO,Fernando Henrique. A arte da política; a história que vivi. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2006, p. 611).221 CARDOSO, Fernando Henrique. “Discurso na abertura da IIIReunião de Cúpula das Américas”, Quebec, 20.04.2001. Disponível em:www.mre.gov.br, p. 3.

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Parecia, então, que, ao propor sua discussão, FernandoHenrique estaria se colocando contra a criação do blocoregional. No entanto, apesar disso, conforme anotou PauloNogueira Batista Jr., “o Brasil foi sendo enredado, pouco apouco, em um processo de negociação que seguia,essencialmente, a agenda e o cronograma definidos pelosEstados Unidos”222. Na própria reunião de Quebec, ficouestabelecido que as negociações teriam que ser concluídas atéjaneiro de 2005 para que o bloco fosse implantado a partir dedezembro daquele ano, isto é, os prazos estabelecidos naCúpula de Miami, de 1994223.

Durante o processo de discussão, os negociadores dogoverno de Fernando Henrique procuravam, de um lado, retardá-lo o máximo possível224 e, de outro, incluir na agenda os temasque consideravam importantes para o Brasil, como o subsídioagrícola nos EUA, suas barreiras não-tarifárias e medidasantidumping. Mas, ao mesmo tempo, aceitavam a inclusão dostemas que interessavam aos EUA, como normas parainvestimento, serviços, compras governamentais e propriedadeintelectual. E, assim, as negociações iam avançando, ainda quenum ritmo inferior ao que queria a potência do norte.

O governo de Fernando Henrique dizia que a ALCA erauma “possibilidade” e que o Brasil poderia não assinar o acordose concluísse que não atendia ao “interesse nacional”.Enquanto isso, concordava com que as negociações seguissem

222 BATISTA Jr., op. Cit., p. 80.223 Idem, Ibidem.224 A forma de fazer isso foi realizada através da proposta, feita pelopresidente Fernando Henrique no Encontro de Belo Horizonte de 1997,de que as decisões só deveriam ser adotadas por consenso e de que nadaestaria decidido até que tudo estivesse decidido (BANDEIRA, op. Cit., p.141). Além disso, quando o presidente Clinton, em viagem ao Brasil em1997, tentou antecipar o início da ALCA para o ano 2000, o presidenteFHC se opôs (Ibid., p. 156).

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avançando. Evidentemente, seria muito difícil que o Brasil,depois de participar de todas as negociações, ao final serecusasse a assinar o acordo. Constatou Celso Amorim, ministrodas Relações Exteriores dos governos Itamar Franco e LuizInácio Lula da Silva, que, na lógica das negociaçõesinternacionais, não há muito espaço para que, ao final de longoprocesso de negociação de que tenha participado, um país deixede aderir ao acordo daí resultante, na medida em que, duranteas negociações, vão se cristalizando interesses ecompromissos225.

Apesar da dubiedade com que o governo de FernandoHenrique tratava a questão da ALCA - a retórica se chocavacom a proposta dos EUA, mas a prática ensejava que a agendae o cronograma deles prosseguissem -, um importante episódioindicou qual era sua opção: depois que o presidente do IPRI,embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em palestra promovida,em março de 2001, pela Associação Brasileira da Indústria deMáquinas e Equipamentos (ABIMAQ), declarou-se contrário àcriação da ALCA, foi demitido sumariamente do cargo, como aindicar uma purga no Itamaraty dos opositores da ALCA226. Apropósito, Moacir Werneck de Castro, em artigo, declarou, entreoutras coisas, “ambivalência, teu nome é FernandoHenrique”227. Um outro fato que indica a opção pela ALCA foi aassinatura, no último ano de governo, durante a Cúpula deQuebec em abril de 2002, do documento que estabelecia que oencerramento das discussões e o início da implantação da ALCAocorreriam em 2005, ou seja, no primeiro ano do governo de seusucessor.

225 AMORIM, Celso. “A ALCA e o jogo dos sete erros”, O Estado deS.Paulo, 24.08.2003. cit in Batista Jr., op. Cit., p. 122226 BANDEIRA, op. Cit., p. 208.227 CASTRO, Moacir Werneck. “A primeira vítima da ALCA”, Jornal doBrasil, 09.05.2001.

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Governo Lula mudaorientação acerca da ALCA

O novo governo brasileiro que assumiu em janeiro de2003, presidido por Luiz Inácio Lula da Silva, mudou a orientaçãoanterior no tratamento da ALCA. Registre-se que, durante suacampanha eleitoral, em 2002, Lula havia declarado que a ALCAnão era uma proposta de integração, “mas uma política deanexação, e nosso país não será anexado”228. Ficou claro quehaveria uma nova orientação já na nomeação da equipe doItamaraty. Foi escolhido para ministro o embaixador CelsoAmorim, que integra a corrente do Itamaraty que sustenta seutradicional paradigma fundado na Política Externa Independentee que, durante o governo de Itamar Franco, dera prioridade àintegração da América do Sul com a proposta da Área de LivreComércio Sul-Americana (ALCSA); e para secretário executivodo Ministério - isto é, a segunda pessoa em sua hierarquia -, oembaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que fora demitido porFernando Henrique da diretoria do IPRI por discordar da ALCA.

O governo Lula não suspendeu as negociações daALCA, como parecia dar a entender seu discurso de campanha.Decidiu que participaria das negociações, mas defendendo osinteresses nacionais “de maneira objetiva, realista epropositiva”229. E completou no discurso de posse que o Brasilbuscaria com os EUA uma “parceria madura, com base nointeresse mútuo”230. A nova orientação indicava que, ao invésde deixar as negociações prosseguirem dentro da agenda dos

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228 Folha de S.Paulo, 24.09.2002.229 Discurso de Luiz Inácio Lula da Silva no National Press Club,Washington, 10.12.2002, cit. In Bandeira, op. Cit., p.287..230 Discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Congresso Nacional,01.01.2003, cit. in. Bandeira, op. Cit., p. 287.

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EUA, dever-se-ia desde o início explicitar e resolver as principaiscontrovérsias. As negociações só continuariam à medida queessas controvérsias fossem sendo resolvidas. Batista Jr. assimresumiu o novo posicionamento:

ao longo do ano de 2003, o Brasil foi redefinindocuidadosamente a sua linha de atuação naALCA. A essência da posição que o governo brasileiropassou a adotar pode ser resumida da seguinte maneira.Os Estados Unidos insistem em excluir da ALCA,completa ou quase completamente, temas que o Brasilsempre considerou de importância fundamental,notadamente agricultura e antidumping. Em tese,Washington pretende tratá-los no âmbito multilateral.Se é assim, o Brasil também se sente no direito detransferir para a OMC, no todo ou em parte, questõesproblemáticas para o país, tais como serviços,investimentos, compras governamentais e propriedadeintelectual231.

Esse posicionamento foi assumido pelo conjunto dospaíses do Mercosul. Com base nessa concepção, o Mercosulesboçou na reunião preparatória de outubro de 2003, realizadaem Port-of-Spain, Trinidad & Tobago, e que apresentaria nareunião ministerial de novembro de 2003, em Miami, propostapara uma nova agenda da ALCA. Nessa proposta, os temas deinteresse dos EUA - como serviços, investimentos e propriedadeintelectual - seriam regulados pelas normas da OMC. Exigênciasadicionais estariam sujeitas a negociações bilaterais ouplurilaterais. Quanto aos temas de interesse do Mercosul, comomedidas antidumping e direitos compensatórios, o blocoaceitava que fossem negociados de acordo com as regras daOMC. Mas insistia na redução dos subsídios agrícolas dosEUA232.

231 Batista Jr., op. Cit., p.123.232 BATISTA Jr, op. Cit., p. 124.

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Dentro dessa concepção, os membros do Mercosul jáhaviam apresentado aos demais países do continente propostade liberalização comercial que compreendia quatro etapas, sendoque a grande maioria dos produtos (61% da pauta) só serialiberalizada na última etapa, após dez anos do início do blocoregional. Essa oferta incluía salvaguardas para indústriasnascentes e para dificuldades de balanço de pagamentos. Alémdisso, ficou condicionada à eliminação, pelos EUA, das barreirasnão-tarifárias, dos subsídios agrícolas, do uso abusivo das leisantidumping e dos direitos compensatórios233.

O Brasil e os demais membros do Mercosul haviampercebido a armadilha em que os EUA queriam enredá-los: osnegociadores desse país propunham eliminar as barreirastarifárias, quando, há já bastante tempo, seu principal instrumentode proteção não eram as tarifas de importação, mas as barreirasnão-tarifárias, como cotas, subsídios, medidas antidumping,direitos compensatórios, medidas fito-sanitárias etc.

Os negociadores dos EUA acusaram o golpe. Suaprimeira reação foi muita dura. Acusaram o Brasil e a Argentinade sabotarem a ALCA. Essa reação foi manifestada pelonegociador-chefe dos Estados Unidos para a ALCA, embaixadorRoos Wilson234. Setores da imprensa brasileira e até membrosdo governo235 ecoaram essa reação. Esses setores da imprensaacusaram a diplomacia brasileira de “rígida”, “intransigente”,

233 Ibid., p. 122.234 WILSON, Roos. “Press conference call”, USTR Chief FTAA Negotiator,FTAA Trade Negotiation Committee, Port-of-Spain, Trinidad & Tobago,03.10.2003. Disponível em: www.ustr.gov.235 Os ministros do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, e daAgricultura, Roberto Rodrigues, muito ligados ao setor do agro-negócio,chegaram a acreditar que os Estados Unidos iriam fazer concessões naárea dos subsídios agrícolas e por isso achavam que a delegação brasileiraestava agindo com intransigência.

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“ideológica”. Chegaram a propor a mudança dos negociadoresbrasileiros e a substituição da cúpula do Itamaraty236, mas essescríticos se acalmaram depois que o presidente declarou que oministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, continuava aser o negociador-chefe brasileiro para a ALCA.237

Na época, em entrevista à revista Veja, que lhe perguntousobre o que o Brasil aceitaria perder na ALCA, o ministro CelsoAmorim declarou:

não aceitamos perder a dignidade. Não vamos aceitarmodelos que vêm prontos; tudo tem de sernegociado. O que acontecia antes era uma falsanegociação. As coisas vinham vindo e, no máximo, erampostergadas. A principal barreira, os subsídios, osEstados Unidos não discutiam238.

Se os EUA mantivessem sua postura inicial, que nãoadmitia negociações, a reunião ministerial de Miami caminhariapara o impasse. A reunião da OMC em Cancun, México, acabarade redundar em fracasso. O governo dos Estados Unidos nãodesejava caminhar para uma segunda derrota em Miami. Diantedesse fato, aceitou discutir com o Brasil, antes da reunião, umprojeto mais flexível. Por esse acordo, o Brasil admitia transferirpara a OMC as questões de seu interesse - agricultura eantidumping; em contrapartida, os EUA concordavam que ostemas de seu interesse - investimento, compras governamentais,propriedade intelectual, serviços - seriam tratados de formalimitada ou não obrigatória na ALCA. O ponto central do acordofoi que os países poderiam assumir diferentes níveis de

236 BATISTA Jr, op. Cit., p. 125.237 Em discurso feito durante a abertura do Encontro Parlamentar sobre aALCA - o Papel dos Legisladores na ALCA, na Câmara dos Deputados.Cit in BANDEIRA, op. cit., p. 338.238 Entrevista à revista Veja, 28.01.2004.

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compromisso em relação aos acordos da ALCA239. Aprovou-se, no fundamental, a proposta brasileira, que passou a serconhecida como “ALCA light”, em oposição à “ALCAabrangente” proposta pelos EUA.

Mas, como sugeriu Batista Jr., esse recuo dos EUA foimeramente tático.240 Durante a própria reunião, seusnegociadores, Robert Zoellick, ministro-chefe do ComércioExterior, e Roos Wilson, negociador-chefe da ALCA, deixaramclaro seu descontentamento e anunciaram que negociariamacordos bilaterais dentro do modelo “ALCA abrangente”. Aomesmo tempo, aproveitando-se desses mesmos acordos,preparavam-se para ir à forra na reunião seguinte, que serealizaria em fevereiro de 2004, em Puebla, México. Sob a sualiderança, um grupo de 14 paises (G-14) - os quais já haviamrealizado ou estavam em processo de realização de acordoscomerciais bilaterais com os EUA241 -, procurou recolocar aproposta original de “ALCA abrangente”, rompendo, na prática,com os acordos de Miami de uma “ALCA light”. Sua propostabásica era a de que os países que relutassem em aceitar o formatooriginal da ALCA deveriam receber menos concessões emtermos de abertura de mercados de bens242. Ao mesmo tempo,propunham vincular eventuais concessões em termos desupressão de barreiras comerciais não-tarifárias nos EUA àanuência, por parte do Mercosul, com as normas propostaspelos EUA em termos de investimento, serviços, comprasgovernamentais e propriedade intelectual. No entanto, nenhumapenalidade era atribuída aos EUA por se recusarem a incluir naagenda da ALCA temas que interessavam aos países latino-americanos.

239 BATISTA Jr., op. Cit., p. 126.240 Ibid., p. 127.241 O países são, além dos EUA, os seguintes: Canadá, Chile, México,Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, RepúblicaDominicana, Colômbia, Equador, Panamá e Peru.242 BATISTA, op. Cit., p. 128-9.

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Esse endurecimento de posição por parte dos EUA,agora respaldado em um grupo de 13 países com os quaisnegociara ou estava negociando acordos bilaterais, gerou oimpasse na reunião de Puebla. Suas propostas não interessavamaos países integrantes do Mercosul. Eles aceitavam o princípiode que deveria haver correspondência entre benefícios eobrigações, mas entendiam que essa correspondência deveriaser negociada dentro de cada categoria. “Concessões em termosde acesso a mercado, por exemplo, deveriam ser negociadas emtroca de concessões no mesmo terreno”243. Segundo Batista Jr.,“cristalizou-se, assim, o impasse. Tornou-se impossível cumpriro objetivo de concluir os entendimentos dentro do prazoprevisto, até janeiro de 2005. A própria viabilidade de um acordocomeçou a ser posta em duvida”244.

A mesma opinião foi manifestada por Moniz Bandeira:“com efeito, a reunião de Puebla terminou em um fiasco, como ade Cancun e Trinidad & Tobago, e as negociações sobre aALCA chegaram a um impasse, difícil de superar até 2005, prazopara o seu encerramento”245.

Dali em diante, não houve qualquer avanço nasnegociações. Por ocasião da Cúpula das Américas realizada em2005, em Mar Del Plata, Argentina, os países do Mercosul sequeraceitaram incluir o tema da ALCA nas discussões, alegandoque a reunião fora convocada para discutir a questão dodesemprego e da pobreza. Nessa época, o presidente HugoChaves, da Venezuela, declarou que fora feito o enterro da ALCA.E até o presidente Lula, que tem usado uma linguagem maismoderada, declarou, por ocasião da Cúpula dos chefes deEstado do Mercosul, realizada em julho de 2006, em Córdoba

243 Ibid., p. 130.244 Idem, Ibidem.245 BANDEIRA, op. Cit., p. 353.

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(Argentina): “Nós, simplesmente, não falamos mais emALCA”246.

Cabe o registro de que a política exterior brasileira nagestão Lula, ao concentrar-se na integração sul-americana, emlugar de visar a integração do conjunto da América Latina, parteda avaliação de que, com a participação do México no Tratadode Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla eminglês),teria se tornado inviável a integração latino-americana,como reza a Constituição brasileira247.

A análise das perspectivas de conformação efetiva deum bloco econômico que integre o conjunto da América do Sulparte da noção de que, como qualquer processo, este também écontraditório e por isso mesmo tem seus limites e possibilidades.Só o exame desses dois pólos permite perscrutar qual a tendênciaprincipal desse processo. Comecemos pelos limites.

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Limites externos à integraçãosul-americana

O principal limite à integração sul-americana provém defora da região. Advém da ambição das corporaçõesestadunidenses de ocupar o conjunto do mercado do continenteamericano a fim de usá-lo como plataforma na sua disputainternacional por mercados, sobretudo com as corporações da

246 Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na qualidade depresidente do Mercosul, quando dava as boas vindas ao ingresso da Venezuelano bloco (cit. In Hora do Povo, 26-27.07.2006, p. 3).247 Essa avaliação é passível de reparos. Nas últimas eleições mexicanas,realizadas em 2006, o candidato presidencial favorito, Lopez Obrador,questionou, durante sua campanha, o acordo comercial com os EUA e oCanadá. Havendo perdido por apenas 0,56% dos votos, contestou naJustiça Eleitoral os resultados anunciados.

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União Européia. Seu principal instrumento para alcançar esseobjetivo é a formação da ALCA, o que tornaria realidade o sloganda doutrina Monroe: “a América para os americanos”.

Sobre isso, a secretária de Estado dos EUA do governoClinton, Madeleine K. Albright, declarou em 1997 o seguinte:“nós devemos continuar modelando um sistema global quetrabalhe para a América”248. E acrescentou que defendia essaposição porque a “obrigação primordial” do governo dos EUAera para com seus próprios cidadãos249. Albright usava umaobviedade - que a primeira obrigação de um governo é para comseus concidadãos - para justificar uma postura arrogante - a deque o mundo deveria trabalhar para os EUA. Ora, se a secretáriapretendia que o conjunto do mundo trabalhasse para os EstadosUnidos, imagine o que deveria pretender em relação à AméricaLatina. Reforçando essa opinião, a representante do EscritórioComercial dos EUA, Charlene Bershofsky, declarou que apolítica de comércio exterior dos EUA era “para sustentar aprosperidade dos EUA, os empregos nos EUA e a saúde dascompanhias dos EUA”250.

Com base nessas idéias, o governo dos EUA tentouimplantar um projeto de ALCA que cristalizasse inteiramente,sem reparos, esses seus interesses estratégicos. Ao mesmotempo, esforçou-se o máximo que pôde para anular o principalembrião da integração sul-americana: o Mercosul. Apesar de

248 Prepared Statement Before the Senate Foreing Relations Committee,as released by the Office of the Spokesman, Department of State,Washington, DC., January 8, 1997. Disponível em: http:://www.secretary.state.gov/statesment/970108a.html. Cit in BANDEIRA,op. Cit., p. 133.249 Idem, Ibidem.250 Conferência realizada por Charlene Barshefsky em House Trade Panelem 18.03.1997, U.S. Information and Texts, no. 011, 20.03.1997, p.42, cit. in BANDEIRA, op. cit., p. 136.

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esse bloco haver servido, em grande medida, aos interessesdas corporações dos EUA251, elas não se contentavam em terque repartir esse mercado com o empresariado regional. Porisso, na luta do governo e das corporações estadunidensespara criar a ALCA, têm colocado como objetivo primordialliquidar o Mercosul.

Essa tentativa de liquidar este bloco regional começoujá na origem das discussões da ALCA, ainda durante o governode Bill Clinton. Sua secretária de Estado, Madeleine K. Albright,declarou perante o Comitê de Relações Exteriores do Senadoestadunidense, ao assumir o cargo no segundo mandato deClinton, em 1997: “o Mercosul é nocivo aos interesses dosEstados Unidos”252. Reforçando essa opinião, a entãorepresentante do Escritório Comercial dos EUA, CharleneBarshefsky, depois de classificar o Mercosul como uma“unidadezinha de comércio ou sisteminha de regras próprias”,acusou-o de ter “um claro objetivo estratégico de expansãocomercial e fortalecimento nos negócios mundiais”, o que, paraela, seria totalmente inaceitável, porque representaria umaameaça à prosperidade, aos interesses comerciais e à “liderança”do EUA no hemisfério. Daí concluiu que o Mercosul deveriadissolver-se no NAFTA, como caminho para formar a ALCA253.Logo depois, defendeu abertamente a extinção do Mercosul254.

251 Porque, além de os países integrantes do bloco haverem realizado umviolento processo de abertura econômica, a tarifa externa comum queestabeleceram foi muito baixa, favorecendo a entrada massiva de produtosoriundos dos EUA. Ao ser crida a União Aduaneira em 1995, a TEC fixadafoi de apenas 12,3% (BANDEIRA, op. Cit., p. 80).252 Cit in. SOUZA, Ascensão..., p. 108. Ver também Bandeira, op. Cit., p. 132.253 Ver Conferência, p. 38-41, cit in BANDEIRA, op. Cit., p. 134-5.Vertambém SOUZA, Ascensão..., p. 108.254 CARMOS, Márcia. “Estados Unidos queriam que a ALCA extinguisse oMercosul”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20.05.1997, p. 15.

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Nessa mesma linha, seguiam outras personalidadesafinadas com a política exterior dos EUA. Richard Feinberg, ex-assessor do Conselho de Segurança dos Estados Unidos, eFred Bergsten, diretor do Instituto de Economia Internacional,definiram o Mercosul como expressão “perversa” doregionalismo. A mesma posição foi defendida por AlexanderYeats, principal economista da Divisão de ComércioInternacional do Banco Mundial.255

Uma voz dissonante nos EUA parecia ser a do antigo epoderoso secretário de Estado, Henry Kissinger. Usando amesma sabedoria com que propôs o restabelecimento derelações diplomáticas com a China, a assinatura do acordo decontenção armamentista (SALT I) com a então URSS e o fim doengajamento no Vietnam, defendeu um armistício em relação aoMercosul. Nas palavras de Moniz Bandeira: “sua sugestão foino sentido de um compromisso final, em que o Brasil anuísse àALCA, enquanto os Estados Unidos não se oporiam aodesenvolvimento do Mercosul”.256

Era um acordo impossível esse proposto por Kissingerporque a criação de uma área de livre comércio no conjunto docontinente americano, como a ALCA, seria incompatível comuma União Aduaneira - isto é, um bloco protegido por uma TEC- numa parte do continente, mas a proposta indicava que aindahavia nos EUA setores que acreditavam na possibilidade degarantir a hegemonia estadunidense nas Américas pela via danegociação, e não da imposição.

A arrogância e a intransigência do posicionamento dasprincipais autoridades dos EUA em política exterior e de comércioexterior terminaram provocando, como reação, o incremento da

255 BANDEIRA, op. Cit., p. 134.256 Ver KISSINGER, H. Does America need a foreign policy? Toward adiplomacy for the 21 st century. New York: Simon e Schuster, 2001, citin. BANDEIRA, op. cit., p. 138

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defesa do Mercosul pelo governo brasileiro. Assim, quando opresidente Bill Clinton esteve no Brasil, em outubro de 1997, oentão presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, apesarde sua posição de alinhamento com a política exterior dos EUA,o instou a acatar a existência do Mercosul. Clinton sabia dainviabilidade da ALCA sem os países integrantes do Mercosul.Além disso, sob a pressão da poderosa central sindicalestadunidense Afl-Cio, que temia a perda de emprego nos EUAse plantas industriais daquele país fossem transferidas paraouros países do continente, com a criação da ALCA, oCongresso protelava a concessão do fast track - autorizaçãopara o presidente dos Estados Unidos negociar acordoscomerciais com outros países - ao governo. E, para completar,os empresários e os sindicalistas latino-americanos, durante aIII Reunião dos Ministros de Comércio da ALCA, realizada emmaio de 1997, em Belo Horizonte, haviam resistido à pressãodos EUA para antecipar a criação da ALCA.257 Diante dessequadro, Clinton teve que aceitar, ainda que apenas formalmente,a existência do Mercosul. Ou isso, ou as negociações da ALCAnão avançariam. Posteriormente, entre os princípios adotadospelo governo Lula nas negociações sobre a ALCA, estava ochamado principio 4+1, ou seja, o Mercosul (4 países) negociariaem bloco com os EUA.

Assim, a postura intransigente dos EUA para criar aALCA, que tinha como uma de suas etapas o desmonte doMercosul, terminou por fortalecer na região o sentimento deque esse bloco deveria consolidar-se. Mais ainda, acelerou asnegociações para a ampliação do bloco para o conjunto daAmérica do Sul. O resultado foi, portanto, o contrário do quepretendia o governo dos EUA.

Isso não significa que os EUA tenham desistido detrabalhar pela extinção do Mercosul como condição para aformação da ALCA. O caminho adotado passou a ser a promoção

257 BANDEIRA, op. cit., p. 140.

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de acordos bilaterais com países latino-americanos, inclusivecom membros do Mercosul, como o Uruguai.258 Essa estratégiateve início ainda no governo Clinton, mas, mais afeito aos fatosdo que às palavras, o governo Bush a radicalizou. Tanto é que,por ocasião da Cúpula de Puebla, em 2004, já havia 13 paíseslatino-americanos que ou já haviam assinado esse tipo de acordoou estavam em processo de negociação. Sintomaticamente,foram os países que ajudaram os EUA a pressionar o Mercosula acatar sua proposta de criação da ALCA. Essa radicalização,no entanto, como vimos, em lugar de favorecer a criação daALCA, levou as negociações ao impasse.

258 Firmaram com o Uruguai um acordo sobre a proteção dos investimentosestadunidenses no país e negociam atualmente um acordo de livre comércio.Seguramente, o Uruguai, ao levar adiante essas negociações, pretendeutilizá-las como pressão para aumentar seu poder de negociação dentrodo Mercosul. Mas, quando Bush esteve no país no começo de 2007,declarou que seria difícil esse acordo porque “nós, americanos, somosmuito protecionistas”. Pouco antes, Lula havia estado no Uruguai eofereceu várias vantagens ao país, dentre elas financiamentos por partedo BNDES.

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Limites internos àintegração sul-americana

Há também os limites internos à integração sul-americana. Examinemos os principais: a) os conflitos entre osinteresses empresariais dos distintos países do bloco, sobretudoentre Brasil e Argentina; b) a acentuada desigualdade nos níveisde desenvolvimento dos países da região.

Os conflitos inter-empresariais terminam se manifestandonas políticas governamentais. Foi, por exemplo, isso que ocorreupor ocasião da reação argentina à forte expansão dasimportações oriundas do Brasil de produtos da linha branca

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após a retomada do crescimento econômico argentino a partirde 2003. As empresas similares argentinas haviam sido maismartirizadas do que as brasileiras pela política de aberturacomercial e pela maior duração do engessamento cambial. Porisso, estavam sem condição de competir com as empresasbrasileiras. A reação do governo de Néstor Kirchner, diante dainundação do mercado argentino com produtos brasileiros, oque estava levando à falência as empresas argentinas, foisobretaxar os produtos brasileiros além do que permitiam osacordos de desgravação do Mercosul.

A imprensa e parte do empresariado brasileiropressionaram o governo Lula a retaliar a Argentina, mas, dandoprioridade ao esforço pela integração regional, esse governooptou pelo caminho da negociação, o qual partiu doreconhecimento de que o lado argentino estava mais fragilizado.Se isso não fosse levado em consideração, o resultado seria odesmonte de um setor importante da economia argentina, oque, além de prejudicar a economia do principal parceiro naregião, repercutiria sobre a própria economia brasileira, aoempobrecer o segundo principal mercado mundial para asmercadorias brasileiras. Em lugar do incremento, ocorreria aretração das exportações brasileiras. Em lugar da integração,ocorreria a desintegração.

O outro limite interno à integração é o desnível econômicoentre os países da região. Como integrar economias dedesenvolvimento intermediário, como a brasileira e a argentina,com economias subdesenvolvidas, como a do Paraguai e a daBolívia? Suas empresas teriam condição de competir com asbrasileiras e as argentinas? Se o eixo da integração concentrar-se na via comercial, ela pode converter-se em desintegraçãoporque, ao debilitar ou mesmo destruir as empresas mais frágeisdos países menos desenvolvidos, pode engendrar desemprego,redução do poder de compra e, por conseguinte, estreitamentodo mercado regional.

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Um outro problema acerca desse desnível regional tem aver com o ânimo de grandes empresas dos países maisdesenvolvidos tentarem se apropriar de riquezas ou monopolizaros mercados dos países menos desenvolvidos. Foi o queocorreu com a Petrobrás em relação ao petróleo e o gás daBolívia. Havendo atingido o controle de cerca de 20% do PIBboliviano, além de beneficiar-se da maior parte dos ganhos naexploração dessas riquezas naturais, o resultado foi despertarna Bolívia o sentimento de reparação do que considerava umainjustiça, produzindo conflitos que não favoreciam a integração.Mais uma vez, apesar da instância da imprensa, o governobrasileiro preferiu resolver o conflito pela via da negociação.

A União Européia tentou equacionar esse dilema dodesnível regional através do aporte de recursos a fundo perdido,por parte dos países mais ricos, para desenvolver a infra-estruturaou viabilizar a reconversão industrial dos países mais pobres,como Portugal, Espanha, Grécia e Irlanda. No caso da América doSul, o caminho percorrido, até agora, ainda que de maneirainsuficiente, tem sido o de buscar implementar parceriasprodutivas, sobretudo na área energética, como petróleo e gás.259

259 Como exemplos, podem ser citados o acordo para a construção dogasoduto do sul, a construção da refinaria Abreu e Lima entre a PDVSA ea Petrobrás, o apoio tecnológico e financeiro da Venezuela à exploraçãodo petróleo e seus derivados na Bolívia, os acordos da Venezuela compaíses do Caribe para o fornecimento subsidiado do petróleo. .

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Possibilidades daintegração sul-americana

Vimos os limites à integração sul-americana, mas tambémexistem as possibilidades, isto é, as condições favoráveis paraconformar um bloco regional na América do Sul. Entre essascondições, destacam-se as seguintes: a) o colapso das

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negociações da ALCA; b) a tendência mundial à formação deblocos econômicos; c) a constituição de governos na regiãocomprometidos com o projeto de integração regional.

Vimos que o principal óbice ao projeto de integraçãosul-americano tem sua origem no projeto estratégico dos EUApara o continente americano: a ALCA. Isso porque aconcretização desse projeto pressupõe a não formação dequalquer outro bloco sub-regional, sobretudo na América doSul, onde está a principal economia das Américas depois dosEUA e do Canadá.

No entanto, as negociações para a implementação desseprojeto entraram em colapso em 2004, durante a Cúpula dePuebla. Isso não significa que o governo e as corporações dosEstados Unidos desistiram do projeto. Tanto é que tentampavimentar seu caminho mediante a promoção de acordosbilaterais com vários países da região. No entanto, o fato de asnegociações continentais haverem chegado a um impasse,devido, sobretudo, à intransigência dos EUA, favorece ocrescimento da consciência integracionista na região sul-americana, além de enfraquecer a posição daqueles quedefendem a “integração” continental.

Assim, sem que fosse essa sua intenção, o governo dosEUA, ao radicalizar na tentativa de impor seu projeto originalpara a ALCA, sem abrir muito espaço para a negociação,terminou por provocar o resultado contrário: aumentou aviabilidade de um projeto de integração sul-americano,atualmente através das negociações para a criação daComunidade Sul-Americana de Nações.

A tendência mundial à formação de blocos econômicostambém favorece o processo de integração da América do Sul.De um lado, porque, à medida que se formam outros blocoseconômicos, a constituição de um bloco sul-americano adquiremaior legitimidade; de outro, porque a polarização entre osblocos liderados pelas grandes potências - como a União

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Européia e o Nafta - abre o espaço para a formação de blocosintegrados por países de menor grau de desenvolvimento. Istoporque podem aproveitar as divergências entre os grandesblocos para negociar seus interesses na esfera internacional,ora com um, ora com outro bloco. O Mercosul, por exemplo, temnegociado com os dois blocos.

Por último, ainda que não menos importante, vêm seconstituindo ao longo desta primeira década do século XXInos países sul-americanos governos comprometidos com oprojeto de integração da região. Em 2003, assumiu o governodo Brasil o presidente Lula, o qual estabeleceu como prioridadeda sua política externa o processo de integração da América doSul; em 1999, o presidente Hugo Chaves assumiu o governo daVenezuela, carregando a doutrina integracionista bolivariana;em 2003, o presidente Néstor Kirchner assumiu o governo daArgentina, depois de uma profunda crise provocada pelacombinação entre a abertura comercial e o engessamento docâmbio, o que o levou a optar pelo caminho da integração260;em 2005, assumiu o governo do Uruguai o presidente TabaréVázquez, em nome da Frente Ampla, a qual, entre seus princípios,sempre defendeu a integração latino-americana261; em 2006, adirigente do Partido Socialista chileno Michelle Bacheletassumiu o governo do país sul-americano mais integradocomercialmente com os EUA, o Chile, mas, em visita ao Brasilem 2006, defendeu que seu projeto prioritário era a integraçãosul-americana; em 2006, a disputa no segundo turno nas eleições

260 Seu ídolo político, Juan Domingo Perón, havia dito nos anos 1950,quando propôs a ressurreição do Pacto A.B.C. entre Argentina, Brasil eChile, além dos demais países da América do Sul, que “no ano 2000, ouestaremos unidos ou seremos dominados”.261 Há uma pressão, por parte do governo dos EUA, para assinar umacordo de livre comércio com o Uruguai, mas não existe acordo entre osintegrantes da Frente Ampla, que dirige o governo, para levar adiante esseacordo.

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presidenciais do Peru se deu entre dois candidatos, Alan Garciae Humala Ollanta, que, em maior ou menor grau, defendiam aintegração da região262; em 2006, assumiu o governo da Bolíviao presidente Evo Morales, que também tem um histórico decompromisso com a integração latino-americana nos moldes daconcepção bolivariana.263

O fato de que haja se manifestado, num momento ounoutro, conflitos de interesses entre governantes dedeterminados países da região tem levado a imprensa a propagarque isso seria sintoma de que a integração da região não teriaviabilidade. Os conflitos, no entanto, nada mais são do queexpressão das contradições que, como vimos, caracterizam umprocesso de integração. Mas, não sendo antagônicas essascontradições, os conflitos podem ser superados através danegociação. Neste sentido, tem sido decisiva a diplomaciabrasileira, que, resgatando os princípios fundamentais da políticaexterior do País, formulados pelo fundador do paradigma quenorteia a ação do Itamaraty, o Barão do Rio Branco, estabeleceua questão da integração econômica regional como sua primeiraprioridade e a negociação como o melhor instrumento para atingirseus objetivos.

262 O candidato vitorioso, Alan Garcia, é o principal dirigente do PartidoAprista, que tem sua história ligada à integração latino-americana, aindaque, ultimamente, tenha modificado um pouco nessa posição.263 A decisão de Evo Morales de aumentar a participação boliviana nareceita do gás e de nacionalizar as refinarias de petróleo foi vista comouma ação desestabilizadora da integração sul-americana, na medida emque uma das principais empresas prejudicadas foi a Petrobrás. No entanto,ele estava apenas executando o resultado de um plebiscito que fora feitoantes da sua eleição, e que ele, durante sua campanha eleitoral, prometeracumprir. A reação do governo Lula no sentido de buscar uma saída negociadafoi, seguramente, a mais adequada nas circunstâncias. Conflitos semprehá em qualquer processo de integração, mas o processo só avança quandoa disposição de negociar prevalece.

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Ou ALCA ou Unasul

Havendo-se examinado as contradições do processo deintegração da América do Sul, mediante a avaliação de seuslimites e possibilidades, proporcionam-se os elementos paratentar trazer à luz quais as suas perspectivas e, dentro destas,qual a tendência principal. Os elementos revelados até agoraindicam a incompatibilidade entre a criação da ALCA e daCASA-Unasul.

Se a CASA vier a se constituir enquanto mercado comum,com proteção externa comum e livre mobilidade dos fatores,inclusive da força de trabalho, isso inviabiliza a ALCA, já que oprojeto dos EUA para sua constituição, além de pretenderpraticar o livre comércio para o conjunto do continente - portanto,não abrigando a possibilidade de proteção externa de uma sub-região -, não contempla a livre mobilidade de força de trabalho.

Se, por outro lado, a ALCA for o projeto vitorioso, nãohaverá espaço para a criação da CASA-Unasul, porque, aoconstituir-se uma área de livre comércio para o conjunto docontinente, não será possível, dentro dela, conformar-se umbloco sub-regional que, sendo mercado comum, proteja-se daentrada de produtos dos demais países integrantes da Área deLivre Comércio mais abrangente.264

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264 O bloco sul-americano até poderia manter a TEC para os países de forado hemisfério americano, mas isso não ajudaria muito a proteção dospaíses membros frente à competição desigual oriunda dos centros depoder econômico, já que o principal centro – os EUA – estaria dentro debloco. Além disso, os produtos dos países de fora do hemisfério teriam milformas de entradas desgravadas na região, pois poderiam ingressar atravésdos países que não estivessem protegidos pela TEC ou graças aos acordosbilateriais ou plurilaterais que realizam.

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Por essas razões, a viabilidade da CASA-Unasuldepende, primordialmente, da não consumação do projeto daALCA. No momento atual, em que as negociações da ALCAchegaram a um impasse, em que se fortalece a conformação daUnião Européia e em que se constituíram na região sul-americana governos comprometidos, em maior ou menor grau,com o programa de integração, a tendência principal é que seconforme um bloco sul-americano. Esse processo está,certamente, eivado de contradições, podendo haver avanços erecuos, mas, se os governos dos países da região souberemaproveitar as circunstâncias favoráveis, a integração regionalterminará por triunfar.

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