livro entre as goiabeiras (original, por bruno silva)

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ENTRE AS GOIABEIRAS Assista ao booktrailler https://www.youtube.com/watch?v=JHj wsTa1Rvc Bruno Silva Ilha Solteira, 2015

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Entertainment & Humor


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ENTRE AS GOIABEIRAS Assista ao booktrailler

https://www.youtube.com/watch?v=JHjwsTa1Rvc

Bruno Silva

Ilha Solteira, 2015

© 2015 de Bruno Silva

Título original: Entre as Goiabeiras

Edição: Bruno Silva

Diagramação: Bruno Silva

Revisão Ortográfica: Zenaide Auxiliadora Pachegas Branco

Capa e ilustrações: Bruno Silva

Impressão e/ou vendas: Saraiva (Publique-se!) e Clube de Autores.

Dados:

Nome do autor em citações: Silva, Bruno.

Público-alvo: Jovem-adulto.

Palavras-chave: Homossexualidade; Homofobia; Romance; Amor não correspondido;

Superação.

Ficção: Literatura Nacional (Romance).

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo

transmitida por meios eletrônicos, ou gravações, assim como reproduzida, sem a

permissão, por escrito do autor. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98.

ATENÇÃO!

Este livro contém capítulos com descrição de cenas de sexo homossexual.

À todos que estão na luta pelos

direitos da comunidade L.G.B.T.;

assim como, àqueles que respeitam

e se dedicam por um mundo sem

nenhum tipo de preconceito.

Viva a diversidade de gênero,

expressão e orientação sexual!

PARTE I

CAPÍTULO 1 "Mãe, sou gay!", relatou ele.

"O quê?", irritou-se a mãe.

Despertou. Levantou a cabeça, abriu os olhos. Seu quarto estava rutilante; pássaros

cantavam. Havia amanhecido.

Um segredo afligia-o, perseguia-o, sufocava-o. Mesmo o tempo passando, ainda

encontrava-se preso nele, acorrentado ao medo. Angústias surgiam. Era melancólico.

Ele era um tanto perturbado, quieto, silenciado, talvez a vida o tivesse moldado

assim. Não gostava de olhar as pessoas nos olhos; sentia-se incomodado quando lhe

perguntavam sobre sua opção sexual. Espere um pouco! "Opção?" Não! Ninguém opta ser

gay. Não é uma opção, é um caso de condição, a natureza que os condiciona. Diga:

orientação! Ele sempre dizia que gostava de moças, aliás, era o que todo homem deveria

dizer, nunca havia escutado o contrário, ele mesmo achava estranho pensar em relações

homoeróticas.

Augusto, apelidado como Guto por seus pais, era um rapaz de vinte e um anos — -

apesar de aparentar mais velho —, pois tinha ombros largos e uma barba negra que cobria

seu rosto pálido com traços másculos, porém, ao mesmo tempo, sensível e de olhar

penetrante. Seus olhos, assim como seus cabelos, eram castanho-escuros. Não era muito

alto, nem gordo nem magro, os anos naquele lugar fizeram bem a ele. Era forte, o trabalho

ríspido o ajudara a constituir uma beleza natural, muito apreciada pelas garotas, moças e,

até, pelos homens. O problema era que ninguém percebia isso.

Ele vivia na parte mais alta de uma colina (era um morro) cheia de plantações. Ali,

ele mesmo plantava e colhia seus alimentos. Havia alface, rúcula, abóbora, quiabo, além de

várias goiabeiras ao redor da casa — influência da plantação do fruto que percorria todo o

morro. Existia apenas sua moradia no cume da colina. Descendo-a dava para notar pessoas

que trabalhavam na plantação de goiabas, moradoras da cidade de Psidópolis, interior do

sudeste brasileiro. A colina, aliás, pertencia a Psidópolis, e desta dava para vê-la. A área

urbana situava-se em sua base. Era um caminho longo para se chegar até ela, mas nada

impossível. Guto tinha uma bicicleta, com a qual descia a colina pela estrada de terra para

chegar até a cidade; para subir, levava-a a pé, já que a altitude era mensurável, sem dizer

aquela estrada enlameada nos dias de chuva.

O morro era preenchido, em sua grande parte, por goiabeiras, como também por

algumas matas — uma vegetação nativa —, caracterizando parte do cerrado brasileiro e da

mata atlântica. A cidade era cercada por plantações, vegetação e, também, um rio ainda não

poluído — algo típico do interior brasileiro.

A casa de Augusto era pequena: dois quartos, uma sala e uma cozinha, o banheiro

ficava fora, ao lado da varanda, na parte de trás. A varanda da frente era decorada com

flores e três cadeiras de balanço. Fora construída com madeira escura e envernizada,

lembrando as construções europeias. A fachada voltada para Psidópolis dava-lhe uma vista

admirável da cidade. A casa fora deixada por seus pais, os quais haviam falecido há dois

anos.

Guto sentia muita falta deles, aliás. Estes sempre foram ótimos, deram-no de tudo

que podiam e se orgulhavam muito do filho, um homem trabalhador, honesto e

independente. Aprendeu com eles a ter respeito ao próximo, a sonhar e a amar.

Além de tudo, tornara-se um homem sensível. Sempre se pegava olhando as

estrelas e refletindo sobre a vida. Nesta constelação de pensamentos retornava à sua mente

o acidente que pusera seus pais em tal conjunto de estrelas, que foi mais ou menos assim...

Há dois anos a mãe de Guto, dona Celina, uma senhora

analfabeta e excelente dona de casa, pediu ao filho que fosse à

mercearia buscar uma lata de óleo de girassol, pois queria preparar

uma salada de rodelas de tomate com rúculas colhidas em sua horta.

— Guto! Cadê você, menino?

Ele estava sentado, encostado nos galhos grossos de uma

goiabeira — parecia mais um garoto —, enquanto devorava com

sofreguidão uma apetitosa goiaba. Ouviu a voz de sua mãe, gritou de

lá mesmo:

— Tô ocupado!

Às vezes parecia mal-educado, odiava ser interrompido.

— Ô, Guto — esbraveceu a voz — venha cá, agora! — Irritou-

se dona Celina.

Augusto pensou: "Melhor não irritar a velha". Saltou da árvore,

correu ver do que se tratava.

— Vai buscar uma lata de óleo de girassol pra mim, comprei

poucas nas compras passada — dizia dona Celina, enquanto mexia o

arroz.

Eis que fez o pedido da mãe: foi ao comércio.

Seu pai, senhor Lourenço, um homem já muito cansado, com

pouco hábito de leitura, rugas profundas e marcas de puro

sofrimento, fora levar os cães para ajudar no rebanho de ovelhas e

carneiros — tinha uma meia dúzia deles, morriam muito fácil, pois

não se adaptavam muito bem à localidade —; porém, um dos

cachorros se soltou da coleira que o prendia, e isto gerou uma grande

tragédia na vida de todos.

O cão, muito saltitante e eufórico por ter se libertado daquela

que o segurava e quase o enforcava, derrubou uma garrafa grande

que continha combustível do carro da família, o qual estava próximo

de uma fogueira ainda com cinzas acesas. O carro explodiu. Este se

encontrava ao lado da casa; a primeira a morrer junto ao cachorro

fora dona Celina e metade da construção pegou fogo. Senhor

Lourenço não quis deixar a amada esposa sendo queimada, pôs-se

então a socorrê-la, e acabou morrendo por inalar muita fumaça,

além das queimaduras graves pelo corpo. Quando Guto voltou, viu

apenas cinzas e tristeza, e um dos cães vivo, preso ao poste que

fornecia energia elétrica à residência.

Realmente aquele ano fora de extrema tristeza para ele. Com

apenas dezenove anos, encontrava-se órfão. No entanto, prometeu

cuidar da casa e daquele lugar — refazendo a parte destruída — que

seus pais tanto amavam. Desde então, teve de arrumar um emprego,

passou a cuidar menos das hortas, e a tristeza tomou conta de sua

alma.

Guto trabalhava como empacotador em um supermercado, já que não tinha

estudado muito, e este cargo era o que lhe cabia — completara apenas o ensino médio; não

possuía nenhuma qualificação. Este estabelecimento ficava a dois quilômetros da sua casa,

à base da colina. Era lá, também, o local das casas mais bonitas, as pessoas mais ricas e

influentes da cidade.

A rotina dele era um marasmo infindo. Todos os dias, tirando os domingos, ele

descia a colina, ia trabalhar, subia-a e, ao anoitecer, observava as estrelas. Depois

adormecia. Porém, sempre que terminava de olhá-las — antes de dormir —, lágrimas

corriam seu rosto, pois se sentia sozinho, isolado, sentia falta de alguém; alguém que

pudesse aquecê-lo, aquecer seu coração. Era solitário, por isso não conseguia ter um

comportamento normal frente às pessoas. Estas o chamavam de “o esquisito”; “o

antipático”; “o solitário”; enfim, eram estes os apelidos que lhe davam. Não se sabe se ele

era assim por causa do acidente que ocorrera com seus pais ou porque já nascera assim.

Alguns o consideravam misterioso, outros até o entendiam; a verdade era que seu olhar

escondia algo.

A população conhecera dona Celina e o senhor Lourenço. Todos os dias, ambos

desciam a colina para vender suas famosas hortaliças; diziam que eles eram muito

simpáticos e conversavam com todos. Não sabiam por que Augusto nascera daquela

maneira, estranho. Eram estes os boatos que corriam de boca em boca sobre ele: um rapaz

tímido que ficara assim, provavelmente, por conta da morte dos pais.

O sotaque era caipira. Quase todos da cidade falavam assim, pois Psidópolis era

uma cidadezinha pacata, localizada na base de uma colina com, no máximo, vinte mil

habitantes; contudo, tinha bares e muita festa. Como a maioria das cidades do interior, esta

também era sertaneja. Eram comuns os rodeios e músicas de viola. Os homens vestiam-se

com camisas, calças apertadas, botinas, chapéu, era tradição; o rústico estava presente nas

pessoas, na arquitetura das casas, nos lugares. Não tinha prédios, mas era uma bela

cidadezinha, considerada boa para se viver. Falando nisso, vários turistas e visitantes da

cidade grande iam visitá-la. Uma cidade camponesa, ótima para relaxar e esquecer-se dos

carros, prédios, buzinas, barulhos, assaltos, entre tantos outros incômodos.

Os habitantes da cidade eram muito preconceituosos, pensavam mal de tudo que

viam e, quando não viam, apenas suspeitavam. Era um falatório danado! Cochichos,

ladainhas de todos os tipos; típico também do interior. Pessoas com a mente fechada,

ignorantes, que não gostavam das diferenças. Acreditavam que todos deveriam seguir nos

trilhos, caso contrário, eram estopim de chacotas. Isso irritava muito Guto, pois ele sempre

era alvo de comentários, já que não se vestia como os demais homens. Usava tênis ao invés

de botinas, trabalhava no supermercado, ao contrário da maioria dos rapazes que iam para

a roça, e normalmente tornavam-se agricultores. Por conta disso, as pessoas não o

deixavam em paz — nunca mesmo! —, faziam de tudo para perturbá-lo e, quando não

conseguiam de forma imediata, acusavam-no de tudo que eram anormalidades: “Olhem o

doido passando na rua, pessoal!”, “O retardado da família da colina está aqui!”, essas coisas

sempre surgiam. Ele não tinha ímpeto algum, simplesmente aceitava tudo aquilo, andava de

cabeça baixa, não tinha forças para retrucar; mas, mal sabiam elas que todas aquelas

acusações lhe traziam muita mágoa, ressentimento e tristeza.

Vivia tentando se camuflar. Para isso, vestia uma blusa de frio, encapuzava-se com

a toca, colocava uma calça que sempre parecia a mesma e um tênis já bem usado. Queria

ser o menos notável possível — o que era impossível. Ele já estava carimbado, notado; seu

estilo o denunciava, era diferente dos demais. Podemos dizer que ele sofria o famoso

bullying. Isso, na verdade, não era de hoje, desde sua infância, quando se iniciaram seus anos

na escola, os demais alunos achavam-no estranho e aproveitavam para desprezá-lo, criticá-

lo.

Bom, deu para perceber que Augusto era um pobre rapaz. Havia crescido em um

mundo de mágoas, ressentimento, atribulação, descontentamento. Isso era horrível! E as

pessoas ainda aproveitavam de sua fraqueza.

Deveria ser muito triste viver sozinho... Não tinha pai nem mãe, não havia mais

ninguém em sua família. Ficava abandonado naquela casa onde as lembranças sempre

retornavam à sua mente, embebido em um ambiente espiritualmente carregado, cheio de

gritos, murmúrios, estalos, sofrimentos. Havia noites em que ele chorava, chorava,

chorava... O cheiro da fumaça do acidente ainda percorria seu olfato. Dias em que ele

brincava, brincava, brincava... com seu cachorro Bili, aquele que ficara amarrado ao poste

no dia do acidente. Tentava se distrair, o cão era uma das suas poucas companhias. Por que

poucas? Porque no meio desta história toda havia algo positivo: Guto tinha uma amiga, e

ela sempre estava a seu lado. Era Alice, uma linda mulher de cabelos loiros, olhos verde-

claros, uma pele branquinha parecendo seda de tão suave. Era magra, vestia sempre um

vestido de chita e era muito meiga. Na verdade, ela era apaixonada por ele, achava-o muito

bonito, o que realmente era; ele só tinha uma timidez gigantesca; era triste, sério, portanto,

sua beleza acabava passando despercebida pelos outros; não por Alice.

O que era estranho é que ele sempre a evitava. Tentava não conversar sobre

relacionamentos. Às vezes sua atitude aparentava medo. Mas por quê? Por que será que ele

agia desta maneira? Alice parecia uma boa pessoa. Era amiga, bonita, inteligente, tentava

entendê-lo — o que não era fácil —; uma verdadeira companheira. Já tinha ido até a casa

dele para animá-lo; porém, nunca fora bem-sucedida. Ele sempre tinha um semblante triste,

desamparado, um olhar ofuscado. E ela sempre ali para ajudá-lo.

Augusto nunca se quer tentou qualquer coisa com Alice, para ele ela era uma amiga,

uma verdadeira irmã. Gostava, admirava-a, pois trabalhava em um hotel numa cidade

vizinha. Tinha que se deslocar todos os dias para ir ao trabalho e ainda arranjava tempo

para ele; sempre queria vê-lo. No entanto, ela era uma pessoa apenas para falar de

bobagens, às vezes dar risadas, nada além disso. Ele nunca se abria com ninguém, sua

intimidade era guardada em segredo.

Algo muito curioso era que ele não aprovava a ida dela à sua casa. Ficava irritado

quando aparecia de surpresa. Preferia encontrá-la em uma estação de trem abandonada, no

fim da cidade, pois lá não havia ninguém, era sossegado. Falando na estação e voltando na

história, eles haviam se conhecido por lá na época em que Alice tinha brigado com o ex-

namorado. Ela estava triste quando o viu naquele dia, e logo se apaixonou. Guto foi

atencioso, meigo, respeitou seus sentimentos, sabia o que era sofrer. Isso foi algo que ela

nunca tinha recebido de nenhum homem. A conversa foi melancólica, mas tornaram- se

amigos.

Alice, hoje, sofria muito, sentia que ele não gostava dela. Queria tê-lo como seu

homem. Tentava animá-lo, deixá-lo feliz, mas tudo era em vão — o que despedaçava seu

coração. Carícias e mimos sempre fizeram parte de sua conduta para com ele; tudo sem

resultados. A única coisa que notava era que ele sentia um carinho de irmandade por ela, e

nada mais. Sofria...

O que ela sentia era amor... Muito amor... E queria que fosse correspondido. Era

seu sonho tê-lo como namorado, marido, pai de seus filhos. Fazia planos, pensava no

futuro ao lado dele, era imensurável o seu amor; no entanto, latente. Nunca o tinha dito,

sofria calada, aquele era seu segredo. Tinha medo da reação. Se contasse, corria o risco de

perdê-lo; preferia tê-lo como amigo, assim sabia que podia ficar perto, pois se se

distanciasse, morreria.

Era amor ou tudo aquilo não passava de uma obsessão?

CAPÍTULO 2 A cidade estava sendo enfeitada para uma festa. Bandeiras coloridas indicavam que

várias cidades da região viriam prestigiar o evento. Esta era intitulada “A Festa da Goiaba”.

Psidópolis era uma cidade produtora de goiaba, muito famosa por exportar toneladas do

fruto; eram considerados os melhores. Muitas pessoas da cidade estavam envolvidas com o

cultivo. A maioria da população Psidopolitana trabalhava na colina, apesar de haver

plantações em outros lugares. O clima tropical brasileiro era o que propiciava condições

para seu sucesso.

Alice logo convidou Guto para ir junto com ela.

— Guto, vamos à festa? Será nesta semana.

— Hum... não sei.

— Vamos sim! – Ordenou.

— Não quero ir, terá muita gente lá. Eu não tenho roupas – murmurou ele,

tentando convencê-la.

— Você não vai ficar sozinho aqui — irritou-se. — Não vou deixar que sua

timidez te domine. Vamos sim! Eu decidi por você, por nós — completou, efusiva.

Guto sorriu com a perspicácia da amiga. Alice acabava se irritando com a depressão

fraudulenta em que ele se metia. Nunca se achava capaz de nada, por isso fazia de tudo

para deixá-lo bem.

— Amanhã vou à loja e trago algo novo para você vestir e me acompanhar — dizia

ela. — E vou trazer aqui em sua casa.

Alice era objetiva, gostava de ordenar, tinha o famoso ímpeto. Falava bem, sabia

dizer as palavras certas na hora certa; aproveitava os momentos. Ele a admirava por isso,

sempre com bom humor, sorridente, e diferente dele. A verdade era que ela sabia esconder

seu amor muito bem, quase perdia a respiração por isso, mas mantinha-se em segredo. Seu

interior era triste, melancólico. Comparava-se a uma goiaba: às vezes aparentava estar

saudável e suculenta, mas por dentro havia uma podridão imensurável.

Augusto falou:

— Não posso aceitar... Você nem tem dinheiro.

— Lógico que pode. Eu tenho algumas economias, e quero presentear você —

redarguiu Alice.

— Desse jeito você me deixa envergonhado — ruborizou.

— Mais tímido do que você é, impossível — brincou ela.

Riram. Ele não agradeceu, sua timidez não permitia; no entanto, ficou contente.

Ainda pensava na proposta de ir à festa. Passou o dia matutando a respeito.

Pensou, pensou, pensou... Decidiu: "Sair um pouco da rotina faria bem". O pior que

pensou em voz alta enquanto empacotava compras. Todos que estavam por perto o

olharam e não entenderam nada. Ele ruborizou por instantes, abaixou o cenho e continuou

empacotando, calado.

***

Alice, ainda naquele dia, foi à loja. Escolheu tudo! Olhava cada uma daquelas

roupas pensando em seu amado. Estava entusiasmada, levaria tudo à casa dele e daria um

jeito de vê-lo prová-las. Ele era tão vergonhoso que nem ir à loja com ela ele foi. Na

verdade ele estava no trabalho, mas se não tivesse, também não iria. Porém isso não a

impediu de ficar empolgada. Olhava as camisas, as calças e os calçados, era o suficiente

para um homem ficar bem vestido. Decidiu escolher uma camisa que combinasse com o

tom escuro da barba dele. Pediu ajuda às moças atendentes e elas a ajudaram.

Saiu de uma loja, entrou em outra.

Todos devem estar pensando que Alice era rica. Comprar roupas assim, sem ainda

ter compromisso algum com Guto, era para quem tinha dinheiro. Mas estamos enganados,

ela não era rica. Tudo bem, tinha algumas economias no banco, mas não era rica; conseguia

sobreviver com seu trabalho e economizava sempre que podia, já que sua mãe falecera

quando ela ainda era criança; seu pai estava em uma penitenciária na capital. Na verdade ela

fora criada pela avó materna, uma doce senhorinha, mas que também já morrera há algum

tempo. Hoje, Alice mora sozinha em uma casa alugada na cidade. Era pequena, mas

confortável. Todas aquelas compras representavam um só sentimento: o amor que sentia

por Guto. O amor faz-nos cometer algumas loucuras, ainda mais quando é para vermos

alguém feliz. Aquelas regalias eram para impressioná-lo, queria conquistá-lo com atenção.

Dar presentes era uma boa opção. Aliás, quem não gosta de recebê-los?

Tardezinha. Lá foi ela cambeteando pela estrada da colina. As sacolas impediam

seu movimento, estavam pesadas e ainda tinha comprado algo a mais para eles: uma garrafa

de tequila. Queria descontraí-lo, relaxá-lo. A noite tinha de ser especial para que ele a

percebesse, notasse seu amor, seu carinho. Não estava usando o álcool de má-fé, queria

apenas acelerar o processo.

Logo Guto ouviu os latidos de Bili. Olhou pela janela da sala e viu Alice ofegante,

sofrendo à beça com várias sacolas.

— Você trouxe a loja até aqui? – Brincou ele. — Quanta coisa.

Quando queria ele era até brincalhão.

Ela estava esbaforida, não achou graça na brincadeira.

— E você nem pra me ajudar. — disse irritada, com tanto peso nos braços.

Ele foi ao seu encontro, mas antes que a pudesse aliviar das sacolas, Bili, que estava

num alvoroço danado, passou de forma brusca entre as pernas de Alice. Esta se

desequilibrou, pulsou-se para trás e foi para o chão. Junto, suas sacolas, inclusive a garrafa

de tequila. Vários cacos de vidro ficaram expostos, já não se tinha mais a bebida. E a cena

foi hilária.

— Me desculpe, Alice! — disse Augusto desesperado, espantando o cachorro

agitado, enquanto a ajudava a se levantar.

— Nossa, por essa eu não esperava! — brincou ela, limpando a roupa. Seu senso

de humor era incrível.

Assim que viu a garrafa em pedaços, pensou: "Droga! Conspiração divina isso".

Augusto achou estranho de ela trazer uma garrafa de bebida alcoólica. Desconfiou

de suas intenções.

— Eu pago o estrago, deve ter custado caro. — comentou, em tom preocupado.

— Não precisa! — já em pé novamente, mas com a voz triste por saber que seu

plano havia volateado.

Augusto retornou o pedido de desculpas, estava envergonhado. O cão realmente

deveria ficar preso, nunca o podia soltar, era muito eufórico.

— Guto, fica tranquilo, acontece! — simplificou, em tom compreensivo.

Depois do incidente, ele a convidou para entrar. Ela entrou ainda estonteada,

deixou algumas das sacolas no sofá e esperou em pé, pensando em como seria aquela noite

sem a tequila. Murmurou de repente:

— Vou à cozinha pegar um copo d’água.

Andava na casa com muita liberdade, parecia que tudo aquilo já lhe pertencia.

Augusto ficava bobo com sua maneira de agir. Não era tímida, gostava das atitudes e da

forma como se comportava, ficava à vontade com tudo. E seu bom humor parecia

interminável, mesmo com o susto ela ainda estava ali, radiante.

Augusto sentou-se no sofá da sala para esperá-la. Após algum tempo na cozinha,

apareceu.

— Bom, Guto... — Recolheu algumas sacolas e entregou a ele — aqui estão alguns

presentinhos que eu escolhi com muito carinho. Espero que você goste. Tinha a tequila

também, mas... – satirizando a cena anterior. Ficou ansiosa pela reação dele.

— Não posso aceitar... — Disse Augusto vermelho como um tomate.

— Abre logo estas sacolas! — ordenou como sempre — Comprei pra você, se não

aceitar vou fazer o que com tudo isso?

Ele as tomou. Em gestos lentos, foi abrindo a primeira delas. Tirou uma calça.

Ficou enrubescido, talvez emocionado, há tempos não recebia um presente.

— Ai, é linda, obrigado... Mas... Não posso. — resistiu Augusto.

— Lógico que pode. Vai ficar com tudo! — disse Alice, ríspida.

Não a contrariou mais. Ela tinha um grande senso de humor, mas esbravecia muito

rápido. Logo em seguida tirou um sapato e uma camisa das demais sacolas. Sua expressão

foi ótima, ficou muito feliz e agradeceu.

— Tudo bem, eu fico com os presentes, mas pago o estrago que Bili fez. —

ordenou Augusto, pela primeira vez.

Alice gostou da atitude, era isso que desejava dele, que fosse mais autoritário, que

acreditasse mais em si, soubesse mandar mais, que fosse homem de verdade.

— Tudo bem, já que insiste! — ela concordou feliz.

Guto sorriu. Aquela seria uma maneira de diminuir seu constrangimento. E ela

esperava que fosse ganhar um abraço, um beijo de agradecimento; porém, isso não

aconteceu. Tudo só foi dito, nada gesticulado. Soube, no entanto, que ele tinha ficado bem,

aliás, quem não ficaria feliz com presentes? Todos gostam, até mesmo ele. Fazia muito

tempo que não recebia agrados, desde a época em que seus pais eram vivos.

Ela continuou a conversa.

— Agora você vai provar tudo! — suplicou, comemorativa.

Ele a olhou estranho.

— Não precisa, Alice, sei que tudo ficará muito bem, serve sim. — desaprovou a

ideia.

— Não sei não... A calça me parece grande demais. Qual número você usa?

— 42. — respondeu Augusto, torcendo para que a do presente fosse do mesmo

tamanho.

— Hum... Esta aqui é 46. — comentou Alice com uma expressão cínica. — Eu

sempre pensei que você fosse mais gordinho na cintura. — seu semblante era de

curiosidade, queria vê-lo sem roupas, já estava ficando nítida sua intenção. Para isso tentava

convencê-lo de prová-las.

Guto já ficou preocupado, pensou: “Não acredito que ela está querendo me ver

pelado; é uma irmã para mim”.

— Bom, vou vestir em meu quarto e já te falo. — disse o outro, solucionando o

problema.

— Mas pode ficar à vontade por aqui mesmo, querido. Eu juro que não vejo nada

— virou-se de costas, com uma vontade interminável de vê-lo nu.

Alice parecia mais uma cadela no cio. Se começasse a pressioná-lo por algo, a noite

acabaria antes mesmo de começar. A garrafa de tequila já havia se quebrado, o dia não

estava propício para encontros românticos, nem eróticos. Ele era envergonhado, não tinha

costume de ficar sem camisas, sem calças perto de outra pessoa. Guto nunca namorou, era

mesmo virgem, sentia vergonha até das paredes.

Ele desaprovou a fala anterior. E no mesmo instante, ela fez um bico com a boca,

sinal de que estava chateada. Mas ainda havia a camisa, ou seja, tinha uma esperança em vê-

lo sem roupas.

Do quarto, ele gritou:

— Alice, esta calça é 42, tá na etiqueta!

Ficou enrubescida, havia mentido. Seu propósito era vê-lo sem calças. E pior: a

calça coubera perfeitamente. Ela retornou com a resposta:

— Nossa, meu astigmatismo está evoluindo, preciso procurar um médico, urgente!

Desculpa! Venha vestir a camisa!

Ele já estava desconfiando. Apesar de ingênuo, a intenção dela estava clara e óbvia,

queria-o pelado. Augusto engolia a seco só de imaginar.

— Acredito que não precisa, é do meu tamanho — respondeu, enquanto

comparava as dimensões da camisa nova com a que ele usava.

— Eu sei, mas quero saber se fica bem em você — redarguiu ela, enquanto cruzava

as pernas.

Ele pensou mais uma vez: “Alice está me flertando, seu olhar é como de uma onça

olhando para presa”. Temeu o que poderia acontecer. E por isso tomou uma decisão que

poderia parecer incompreensível para o momento.

— Está bem, eu coloco pra você ver.

Seus olhos brilharam. Apesar de estupefata com a decisão do amigo, sua ânsia pelo

desejo crescia.

Mas por que ele decidira fazer aquilo? Primeiro, porque o olhar carnívoro dela o

assustava — melhor dar o que queria do que provocar; segundo, porque ele tinha que

agradecer de alguma maneira, eram vários presentes, ficara muito feliz com eles, portanto,

tinha que agradecer. Esqueceria a vergonha por um minuto.

Ele ia levantando a camiseta que estava vestindo. Alguns pelos antes de chegar ao

umbigo se faziam presentes. Alice acompanhava tudo. Estava achando o máximo aquela

pele branca, e o abdômen naturalmente definido excitava-a. De repente ele estava sem

camiseta! Ela ficou deslumbrada. Sabia desde sempre que por baixo daquele monte de

roupas tinha um belo homem — e que homem! Guto era forte, o trabalho com as hortas e

a rotina descendo e subindo aquela colina deixaram-no com um corpo invejável.

Estava ainda mais apaixonada, e a libido altíssima.

— Fiquei bem? — Perguntou ele.

— Maravilhoso... — Elogiou boquiaberta.

Ele sorriu.

— Obrigado, vou tirá-la. — O espetáculo se repetiu. — Você vai jantar aqui?

De repente ela despertou de seu sonho erótico.

— Sim! — disse meio atrapalhada.

Ele colocou a camiseta que vestia e se dirigiu ao quarto com as sacolas para guardá-

las. Não quis calçar o sapato, tinha certeza de que serviria. Ela havia comprado tudo na

medida certa.

Alice ficou na sala à espera dele. Guto passou por ela, foi até a cozinha.

— Você fará a comida hoje! — ordenou ele, novamente.

— Eu não quero, faz você.

— Acho que você não sabe cozinhar — riu —, nunca cozinha para mim... Não

tem vergonha? — Brincou ele.

Ela ficou enfezada com o comentário.

— Ah é, então eu faço a comida hoje — sua voz era como a de um atleta ao aceitar

um desafio. — Queria apenas descansar das panelas — tomou-lhe o guardanapo das mãos

e seguiu até a cozinha.

As horas passaram, e a comida estava pronta. A proposição de Guto estava errada,

Alice sabia cozinhar extremamente bem. Enquanto se alimentavam, ela se lembrava da

garrafa de tequila... Se a tivesse, a noite seria perfeita. Lamentava em pensamentos.

O jantar acabou tarde. Alice não podia descer a colina àquela hora, seria perigoso.

Psidópolis era uma cidade calma, mas nunca se sabe. Criminosos existem em todos os

lugares. Augusto pediu que ficasse, que passasse aquela noite em sua casa. Ela adorou a

ideia.

— Você pode dormir no quarto que era dos meus pais ou aqui na sala — sugeriu o

dono da casa.

— Posso dormir com você? — Indagou ela, uma expressão enternecida e sem

bom-senso.

Ele pensou: “Mais uma vez ela está me olhando como se eu fosse sua presa".

— Acho melhor você dormir sozinha. Será mais confortável. Minha cama é

pequena — defendeu ele.

“Cama pequena seria até melhor”, ela pensou erotizada, antes de dizer qualquer

coisa.

— Eu tenho medo, Guto! — tentou convencê-lo.

— Alice, você mora sozinha há anos, não me venha dizer que tem medo de algo.

— disse Augusto, debochando daquela desculpa nada convincente.

Ela ficou emburrada, queria dormir com ele. Aliás, o que teria demais nisso?

— Está bem, Guto. Pensei que fôssemos amigos, amigos dormem juntos — tentou

mais uma vez.

Ele franziu a testa e achou graça do que disse.

— Só você mesmo pra me fazer rir! — meneou a cabeça.

— Posso dormir com você, então? — parecia uma garotinha teimosa.

— Não! Eu já disse, Alice. — irritou-se. — Somos amigos, amigos não dormem

juntos. E eu ronco muito também.

Entristeceu-se. Tinha feito tanta coisa, tantos presentes, tantas tentativas, tantos

planos para tê-lo por uma noite; queria apenas um abraço de verdade, uma carícia. Ela o

amava, era normal desejá- lo, achá-lo bonito, interessante, atraente. Mas, infelizmente,

ele se pusera contra a sua ideia. Ela acabou dormindo no quarto que era dos pais de Guto.

Quando amanheceu, ela estava atrasada para o trabalho. Da colina até a rodoviária

era mais longe, tinha que tomar um ônibus para chegar à cidade vizinha, Ribeirão Azul.

Logo cedo, pulou da cama, vestiu-se, foi até o quarto de Guto e deu-lhe um beijo no rosto.

Ele abriu um dos olhos — a intenção dela não era acordá-lo —, mas foi o que acabou

acontecendo.

— Até mais, querido! — exclamou, serena.

— Até! — sua voz embargou num sono embriagador.

Alice foi ao banheiro, fez um bochecho com antisséptico bucal, pois não tinha

levado escova de dente. Teria que passar ainda em sua casa para vestir seu uniforme e

depois ir para Ribeirão Azul. No entanto, surpreendeu-se com algo inusitado àquele

momento. Havia preservativos masculinos usados no lixo do banheiro. Ficou chocada, não

sabia o que pensar. O que aquilo significaria? Será que Guto já tinha outra mulher em sua

vida? Pensou bobagens, e seu dia tornou-se triste por isso.

***

Festa... O dia da Festa da Goiaba.

Era uma empolgação, pois este era o único grande evento que acontecia durante o

ano na cidade. As crianças não viam a hora de se divertirem nos brinquedos do parque;

adoravam a roda-gigante. As moças esperavam ansiosas para conhecerem novos rapazes.

Encontrar um namorado era um dos objetivos da festa. Os rapazes da cidade seguiam o

mesmo caminho: encontrar uma namorada, uma moça para beijar, transar. Já os casais iam

à festa para se divertirem; os que possuíam filhos se empolgavam vendo-os brincar. Os

mais idosos também gostavam, além do mais, aquela festa os acompanhava há décadas,

tradicionalíssima. Havia muitas cozinheiras em Psidópolis, que aproveitavam o dom e

faziam doces de goiaba de várias maneiras para venderem em suas barracas durante o

evento. Havia uma variedade, arriscavam combinar o fruto até com salgado, o que dava

muito certo.

A semana passou rápido. Agora era aproveitar os cinco dias de festa. Aquele era o

primeiro.

Era noite. Da colina ouviam-se os sons que ecoavam e vinham com a brisa até o

morro. Guto escutava. De lá dava para ver o parque de diversões: roda-gigante, uma

enorme montanha-russa, e outros que não eram muito bem definidos aos olhos. De

repente...

— Guto!

Ele ouviu a voz de Alice. Olhou pela janela da sala. Viera buscá-lo de táxi. Estava

linda, muito bem vestida. Seus cabelos presos, um penteado próprio àquela noite; rosto

maquiado. Usava um vestido lilás com alguns detalhes não muito precisos, mas bonito,

caía-lhe bem; calçava uma bota, típica de rodeios. Estava com alguns adereços, além de

uma pequena bolsa que levava nas mãos.

Augusto saiu na varanda da frente e pronunciou um "oi" de maneira sutil, enquanto

olhava fixamente no olhar daquela que o buscara.

— Espere, deixe-me arrumar isso aqui. — aproximou-se dele e ajustou o colarinho

da camisa. — Pronto! — saudou —, agora está perfeito! — sorriu.

Ele a olhou, e com certo estertor, disse:

— Não sei se quero ir... — a voz desanimada.

— Como você não quer ir? Vamos sim! — redarguiu Alice, já brava. — Será legal,

Guto! — agora, em tom afável — Não se preocupe com os outros, pense em você, na sua

felicidade! — sorriu, serena — Segure minha mão, venha! — encorajou-o.

Ele colocou sua mão sobre a dela, seus dedos esguios tomaram conta, esquentou-a.

Chegaram à festa, que estava muito agitada. Muitas pessoas, muita diversidade,

muita gente diferente. Os que os conheciam acharam-nos muito bonitos, o casal estava

perfeito. Os demais rapazes olhavam Alice; as moças atraiam-se por Augusto, que nem as

enxergava.

A música mais tocada durante o evento era a moda caipira de Psidópolis, um

sertanejo antigo. Tinha em todos os ritmos, desde as mais lentas e românticas às mais

agitadas e dançantes.

— Olá, Alice! — era Gisele, uma antiga amiga. Extrovertida e agitada. Parou o

casal.

— Quanto tempo! Como vai, Gisele? — Perguntou a outra, sem muito

entusiasmo.

— Estou bem, querida! — tinha uma voz irritante. — Nossa, que homem bonito

você arranjou! — Disse em tom estridente, sem conveniência.

Guto enrubesceu, constrangido.

— Ele é um amigo meu. Estamos apenas nos divertindo. — tentou explicar Alice,

já incomodada com a presença daquela que era insensata.

— Você sempre foi devagar, Alice... — meneou a cabeça. — Nossa, se eu tivesse

um desses ao meu lado teria transado com ele há muito tempo. Que calor! — abanava-se,

fitando Guto.

A moça era mesmo muito regateira.

Alice, depois de ouvir aquilo, despediu-se. Achou o comentário desnecessário.

— Foi bom te ver! Nos vemos por aí.

Gisele desapareceu em meio à multidão. Augusto ficou constrangido, queria ir

embora; enterrar-se-ia de tanta vergonha.

— Guto, não fique envergonhado! Eu te peço desculpas. Ela estudou comigo, era

uma biscate na escola, não fazia nada, adorava colar, só queria namorar... Já se esperava isso

dela — Tentou acalmá-lo.

Após algum tempo, ele perguntou:

— Vamos embora que horas?

Alice ignorou sua pergunta. Ele retornou:

— Tem muita gente, Alice, não sou acostumado com isso. Não consigo nem andar.

— Guto, acabamos de chegar, não podemos ir embora. Vamos ficar ao menos

algumas horinhas — dizia enquanto admirava a festa. — Olhe cá, levante a cabeça — ele a

olhou —, observe essas pessoas, todas felizes, se divertindo, estão todos bem, vamos ficar

bem também. Não tem sentido você ficar triste, de cabeça baixa. Olhe pra frente, enfrente

as pessoas. Você é lindo, qualquer garota daria tudo por você... Então aproveite.

Não se sabe se aquilo havia melhorado ou piorado a situação. Ruborizou-se depois

do que ouviu. Ele era muito desanimado para ir a festas, e nesta não era diferente: sempre

de cabeça baixa, não gostava de olhar nos olhos das pessoas. Alice o estimulava, mas o

trabalho era árduo.

No entanto, por um instante, ele retirou sua mão de cima da dela, ergueu a cabeça,

olhou tudo aquilo, aquelas luzes, aquelas pessoas — havia muitas —, era lindo, era

maravilhoso ver como se davam as relações humanas. Olhava para um lado, via crianças

brincando, correndo, pulando, se divertindo nos brinquedos do parque; olhava para outro,

via homens, mulheres, idosos, jovens, casais de namorados, alguns abraçados, outros se

beijando, muitas pessoas diferentes conversando, várias de outras cidades. Sabia agora que

Psidópolis tinha duplicado sua população. As luzes davam um toque especial àquele lugar,

os brinquedos funcionavam todos ao mesmo tempo, ouviam-se gritos histéricos, as pessoas

na montanha-russa erguiam os braços para o alto a fim de liberarem energia; desabafavam.

Por todo lado havia barracas, tanto de alimentação como de venda de bugigangas, de

roupas, de quadros de arte. Do outro lado do recinto, ouvia-se sons de viola, uma dupla

sertaneja tocava uma música caipira, as pessoas aplaudiam sempre pós-apresentação. Guto

ficou encantado.

Seus pensamentos flutuaram por um tempo, pensando que deveria mudar, deveria

deixar de lado a timidez, pois o mundo se aproveitava disso, os mais acanhados sempre

sofriam. Era tão melhor ser corajoso, objetivo, destemido, audacioso, ousado. A vivacidade

era importante, saber lidar com os outros era essencial, o mundo cobrava estas relações.

Andava em passos curtos, segurando a mão de Alice e pensando nestas questões,

até que presenciou uma cena muito próxima dele: um casal de mulheres — lésbicas — se

beijava. Estavam ambas sentadas em banquinhos trocando carícias. Ficou fixo no olhar.

Observava os gestos, a ousadia que elas possuíam, a coragem. Não eram tímidas. Ficou um

pouco encabulado ao vê-las.

Alice surgiu com um comentário ao vê-las também:

— Que nojo! Olha aquilo, Guto. — sua voz era inteiramente preconceituosa.

Ele não soube o que dizer. Apenas a olhou coagido.

Foram acompanhando o fluxo de pessoas até que pararam numa barraca próxima

ao palco. Acontecia uma apresentação de viola, o som era animado. Não tinha como ficar

parado. As pessoas dançavam. Sempre alguém chamava um parceiro e ambos iniciavam

toda uma ginga própria, alguns tinham mais swing, outros calejavam o pé do parceiro. Alice

decidiu chamá-lo para dançar. Ele não aceitou. Ela insistiu.

— Vamos, Guto! — Implorou.

— Está louca. Nunca! — Disse indignado.

— Vamos, sim! Venha! — puxou-o pelo braço.

Saiu titubeando entre as pessoas e pedindo desculpas. Começaram a dançar. Era

enferrujado, não conseguia nem movimentar os pés, parecia as primeiras estátuas gregas

naquela posição ereta. Ela tentava conduzi-lo, ia ensinando um passo aqui, outro ali, e ele

morrendo de vergonha. Olhava para ela rubro, voltava o olhar para todos ao redor, e pedia

que parasse com aquilo.

Após certo tempo, depois de muitas risadas e gozar de Guto, do belo dançarino

que era, Alice foi buscar uma bebida para aquecê-los e tentar descontrair seu amigo. Ele

ficou sentando em uma cadeira de uma das barracas. Era um lugar mais livre, o fluxo de

pessoas era menor. Enquanto ela fazia o pedido na barraca de bebidas, ele ficou por ali.

Levantou a cabeça, começou a olhar toda aquela gente brincando, dando risada, gritando,

se abraçando, alguns casais se beijando, outros sentados e quietos e até algumas brigas

corriqueiras ocorrendo nas outras barracas. Relembrou a cena entre as duas mulheres, da

maneira como elas se beijavam, como se tocavam. Parecia ser tão normal para elas. De

repente, seus pensamentos foram interrompidos... Viu em uma barraca de churros de

goiabada oposta a sua, uma pessoa o olhando; ela estava de pé. Era um homem. Estava

encostado na barraca; usava um chapéu que projetava uma penumbra, o que dificultava a

visualização do seu rosto. Às vezes erguia e baixava a cabeça; quando erguia, podia vê-lo.

Sua mão estava ocupada com um copo, bebia algo; a outra estava livre, mas não fazia

nenhum gesto com ela. Era alto; as luzes refletiam seus olhos azuis; tinha uma barba clara;

parecia ser loiro e estava muito bem-vestido. Era jovem.

As pessoas passavam em sua frente. Guto não conseguia observá-lo bem. O

homem levava lentamente a bebida até os lábios e, concomitantemente, olhava para Guto.

Era como se o achasse interessante. Guto pensava: "Quem será? Nunca o vi por estas

bandas. Por que não para de olhar nesta direção? Talvez eu esteja maluco. Talvez ele nem

esteja olhando. Há tantos passando em minha frente...".

Achou estranho; porém, não tirou o olhar, ficou ali o observando também. Alice

estava numa fila gigante, ia demorar. De repente, tal moço, depois de olhar tanto,

cumprimentou-o com a cabeça, quando o fluxo de pessoas diminuiu. Guto retribuiu com o

mesmo sinal, meneando a cabeça rapidamente e, ao fim, o suposto loiro deu-lhe um sorriso

— formado no canto da boca — em que sua pele contraiu, sua barba se movimentou e sua

face ficou mais simpática, tudo num pequeno instante. Marcante! Mas logo Alice chegou e

interrompeu a cena oferecendo a bebida. E disse mal humorada:

— Nossa! Quanta gente pra comprar bebida! Deveriam distribuir melhor estas

barracas, uma distante da outra. Que má organização. — enquanto entregava o copo.

— Não quero! — exclamou o outro, tentando encontrar o do sorriso marcante,

desviando o olhar, esticando a cabeça para enxergá-lo, mas desaparecera.

— Como assim, não quer? — ralhou Alice — Eu fiquei até agora naquela fila.

Tome, beba! — Ordenou.

Pegou o copo ainda sem querer, sua atenção voltada à barraca de churros. E Alice

propôs entusiasmada:

— Vamos sair daqui? Vamos ver a barraca do beijo? — Augusto concordou sem

mesmo prestar atenção.

Era estranho, mas Guto não sabia o que havia acontecido, não sabia mesmo. Ele

nunca havia visto aquele homem em Psidópolis, provavelmente era um estrangeiro — era

assim que os habitantes de Psidópolis chamavam as pessoas que vinham visitá-los. Ele não

parava de pensar naquele homem, naquele que possuía um lindo par de olhos azuis — para

ele eram azuis; a luz havia refletido esta cor. Além de serem azuis, prendiam-no, congelava

tudo. Era um magnetismo incrível, só conseguia olhar para ele. Ficou relembrando o

momento.

— Guto, você está bem? — Perguntou Alice, percebendo que seu amigo calara-se

desde a hora que saíram da barraca de bebidas.

Ele não respondeu.

— Guto? Oi? O que está acontecendo? — Tentava despertá-lo.

Ele estava viajando na imaginação, devaneando longe...

Ela, mais uma vez, tentou chamar sua atenção. Gritou-lhe ao ouvido:

— Guto!

Num sobressalto, ele respondeu assustado:

— O que foi? Nossa! Por que gritou?

— Eu que pergunto. Você parecia estar viajando no espaço sideral. — repreendeu

Alice. — Está bem?

— Sim, estou. — respondeu ele, aparvalhado.

Achou estranho. Pensou: "Será que ele estava pensando em outra mulher?". Queria

perguntar sobre os preservativos, ademais, tinha que descobrir algo; mas não teve coragem

naquele momento.

— Você nem tomou toda a bebida ainda. — repreendeu Alice.

— Estou tomando, calma! — redarguiu Augusto.

Em um rompante, ela parou em outra barraca antes de chegarem à do beijo.

— Vou comprar pastel Romeo e Julieta. Quer? — perguntou ela.

— O que é pastel Romeo e Julieta? — estranhou ele.

— Não acredito que você não sabe o que é! — zombou. — Bom, é um pastel com

queijo e goiabada — explicou, diretamente.

— Vou experimentar. Tome o dinheiro. — retirando uma nota da carteira.

Uma, duas, três mordidas. Aparentemente gostou, a mistura era interessante.

Andaram mais um pouco, até que chegaram a tal barraca do beijo. A fila de

mulheres era enorme.

— Não vou entrar nesta fila, muito grande. Já basta aquela. — resmungou Alice.

Guto achou engraçado aquele bando de mulheres tentando acertar um alvo,

pagando dinheiro, a fim de receber um beijo. Era mesmo algo muito banal.

De repente ouviram uma voz estridente e já conhecida.

— Alice! — acenava-lhes a mão. Era Gisele. — Aqui! — Gritava e acenava da fila.

Estava quase para ser beijada, seria a próxima.

Alice procurava de onde vinha a voz. Guto a encontrou primeiro.

— Ali, Alice, aquela sua amiga.

— Ai... Só o que me faltava. — resmungou. — Eu bem que deveria saber que ela

estaria nesta fila.

Dirigiram-se até ela.

— Amiga! — disse Gisele, animada — Entre aqui na minha frente, corte a fila. Elas

nem vão perceber. Venha logo! — puxou-a pelo braço.

Alice entrou na fila de forma inesperada. Assustou-se. Guto achou a cena muito

engraçada. Aquela mulher era realmente descompensada.

Elas estavam ali para receber um beijo de um dos homens mais lindos da cidade:

Diogo. Um moço forte, sarado, muitas horas na academia; uma expressão de cafajeste que

as mulheres adoravam. Era aquele tipo de homem fútil, que fazia qualquer serviço por

dinheiro. Beijar seria um prazer.

Ainda na fila, Gisele perguntou sobre Augusto para Alice:

— Amiga, ele é mesmo seu amigo?

Assim que ouviu a pergunta, um pensamento lhe tomou a mente: "Pensei que ele

fosse ficar com ciúmes de mim, mas percebo que nada, nem se quer ficou bravo por eu vir

até a barraca do beijo. Até parece que está alegre. Estranho... Guto parece estar procurando

alguém, não para de olhar para os lados". Depois respondeu desconsolada:

— Sim, só amigo.

— Então vamos aproveitar! — Exaltou. — Se não fosse eu, você ia ficar andando

com ele o tempo todo, nem ia se divertir. Agradeça! — gargalhava e pulava com um copo

de cerveja na mão.

Gisele era uma mulher alegre, com uma autoestima elevadíssima, mas era aquele

tipo de pessoa que não tinha senso médio de convivência social, a famosa "sem noção".

Era vergonhoso ficar ao seu lado. Alice esperava nunca mais vê-la.

Agora era a vez de puxar assunto com Augusto.

— Por que você não vai até a outra fila? — era Gisele. Guto não entendeu. Ela

continuou. — Tem vários homens querendo beijar Maira. Você a conhece? — ele fez que

não. — Então, deixe-me explicar, ela é a moça da barraca do beijo dos homens — agora

ele entendera. — Parece ser bonita, os rapazes morrem por ela. — finalizou com desdém.

Guto ficou ruborizado. Já era tímido e ainda aquela mulher desvairada fazia estas

perguntas e objeções a ele. Não soube responder, gaguejou várias vezes, até que Alice

interrompeu:

— Ele não vai à barraca nenhuma. — vociferou. — Guto é um tipo de homem

diferente — indignou-se com a pergunta de Gisele, que expressou uma face debochada e

ficou calada por um tempo.

Depois daquilo, Augusto não estava se sentindo bem ao lado de Gisele — que era

muito bisbilhoteira e não parava de falar. Pediu licença, precisava ir ao banheiro.

Mesmo estando mais acostumado com a festa, ainda não enfrentava as pessoas de

cabeça erguida, mas estava se saindo melhor. Sua sorte era que o banheiro masculino ficava

próximo à barraca do beijo.

Entrou no banheiro. Este era grande, tinha vários mictórios e repartições com

vasos sanitários, mas não era o suficiente para a demanda de pessoas. Estava lotado. O que

restara era urinar em um dos mictórios livres. Pensou em não fazer, sair e ir embora, deixar

para urinar em sua casa, pois tinha vergonha de se expor. Via aqueles homens — falantes e

risonhos —, que brincavam um com outro, pareciam se conhecer bem, e a vergonha lhe

atingia as vértebras. Estava muito apertado, porém, mesmo acanhado, urinou ali mesmo.

Desabotoou a calça, segurou o pênis e pôs a curtir aquela sensação maravilhosa. Urinar era

muito bom. De repente, um homem desabotoou a calça, segurou o pênis e ficou ao seu

lado urinando. Era alto, produziu uma sombra, mas Guto não olhou para ver quem era,

ficou de cabeça baixa, fazia de tudo para que a urina acabasse logo; estava incomodado,

queria sair dali o mais depressa possível.

No entanto, sem que esperasse, uma voz ecoou.

— Como se chama? — era o homem ao seu lado. Aliás, era o mesmo que o havia

encarado antes na barraca de churros. Tinha uma voz grave, mas também suave e

agradável.

Guto olhou para o lado, reconheceu-o, era o homem com os olhos azuis. E agora

estava certo, eram realmente azuis, muito mais instigantes, mais flamejantes e deturpadores.

Estavam próximos. Olhou-o, tudo parou, foi o momento de um olhar penetrante, que

vasculhava sua alma, sua vida inteira, como se aquele homem tivesse o poder de conduzi-

lo, de guiá-lo a outro mundo; um olhar vibrante. Durou segundos. Logo Guto ficou

intimidado, enrubescido. Recolheu o pênis, abotoou a calça, não respondeu de vergonha e

saiu do banheiro assustado, parecendo ter visto um fantasma. O moço não entendeu nada

de sua reação. Tentou sair o mais depressa, mas quando chegou à multidão, já não o

avistara mais. Ficou plantado em frente ao lugar tentando localizá-lo, mas seria impossível

achá-lo novamente.

Guto saiu sem direção. Estava sem fôlego. Olhava para todos os lados e não

encontrava Alice, queria ir embora, estava incomodado, e não desejava ser reencontrado

por aquele homem.

Encontrou-a. Santo milagre! Estava encostada de braços cruzados numa barraca

com o cenho emburrado.

— Nossa! — estava brava —, pensei que você nunca mais fosse sair do banheiro.

O que tanto fazia? — Disse irritada. Na verdade, havia saído da fila da barraca do beijo

porque não aguentara ouvir as babaquices de Gisele. Ela era insuportável! Acabou ficando

com raiva. Nem notou que Guto estava incomodado e sem fôlego.

Alice irritada, Guto acabrunhado, só queriam uma coisa: ir embora. E assim

fizeram. Cada um se dirigiu a sua casa. Depois de uma parte do caminho, ele seguiu

sozinho. Despediu-se da amiga, que ainda estava encolerizada, e andou pela estrada de

terra. Sua mente estava como uma folha de papel em branco. Pensamentos desorganizados

tomavam-no, e por mais que se esforçasse em não pensar, as imagens daquela noite vinham

e ele ficava aturdido.

Chegou a sua casa; foi logo tomar um banho. Vestiu-se, abriu a janela do quarto

para conseguir ver as estrelas que tanto amava. Deitou-se em sua cama. Ficou ali pensando

naquele rapaz, naquele homem que tinha um lindo par de olhos. Pensando na maneira

como se olharam, na beleza reluzente que ele tinha e na voz marcante. As estrelas

brilhavam no céu; os olhos captavam toda aquela emoção; estava em transe com sua alma;

tinha ficado desconcertado com aquele encontro. O que seriam aqueles sentimentos? Ele

nunca havia sentido aquilo... Será que poderia contar aquilo a Alice? Será que poderia

contar o que havia acontecido a alguém? Seria normal aquela sensação?

Adormeceu.

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