livro e letramento cibercultural

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O trabalho apresenta conceitos ligados ao campo da Comunicação e questões acerca do letramento necessário para se ter acesso às múltiplas camadas de sentidos gerados e veiculados nos meios eletrônicos típicos da atualidade. O livro é estudado como meio em mutação, aberto a novas possibilidades de configuração estética. Acena-se, finalmente, para o desafio que a cena contemporânea, multicultural e multimídia, representa para o campo da educação e das visualidades.

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LIVRO E LETRAMENTO NA CONVERGÊNCIA COMUNICACIONAL TECNOLóGICA

Ana Beatriz [email protected]

Universidade de Brasília – UnB

Sinara Bertholdo de [email protected]

Universidade de Brasília – UnB

ResumoO trabalho apresenta conceitos ligados ao campo da Comunicação e questões acerca do letramento necessário para se ter acesso às múltiplas camadas de sen-tidos gerados e veiculados nos meios eletrônicos típicos da atualidade. O livro é estudado como meio em mutação, aberto a novas possibilidades de configuração estética. Acena-se, finalmente, para o desafio que a cena contemporânea, multi-cultural e multimídia, representa para o campo da educação e das visualidades. Palavras-chave: multiculturalismo, comunicação, educação, letramento, livro

AbstractThe paper presents concepts related to the field of communication and problems of literacy, necessary to gain access to the multiple layers of meanings generated and disseminated in electronic media. The book is studied as a medium in muta-tion, unclosed to new possibilities of esthetic configuration. It shows, finally, the challenge that the contemporary multicultural and multimedia scene represents to the field of education and visualities.Keywords: multiculturalism, communication, education, litteracy, book

Esse texto visa trazer à reflexão alguns elementos conceituais que con-sideramos relevantes para o desenvolvimento de materiais didáticos eletrôni-cos, especialmente ligados ao campo das artes visuais, voltados para circulação no meio virtual constituído por inúmeros aparelhos portáteis de comunicação: telefones celulares, tablets, micro computadores. Interessa-nos particularmen-te pensar algumas possibilidades para o livro nesse meio fragmentado, pois é o livro que se estabeleceu ao longo do tempo como meio de comunicação de cultura por excelência. Quem trabalha na área cultural, seja como artista, como professor ou como pesquisador, tem no livro um velho e bom amigo, cujo valor, inestimável, procura se expandir através das novas tecnologias informacionais. Não se trata, portanto, de questionar a durabilidade desse meio, nem de alardear seu fim, posto não termos razões para nele crer, mas de levantar questões que

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possam orientar nossas pesquisas acerca das novas formas que o livro e a cul-tura que ele carrega vêm adquirindo na contemporaneidade.

Para tanto, não propomos nesse momento, nenhum mergulho na história do livro. Este mergulho enriqueceria nossa percepção da problemática e deve ser feito, sem dúvida, mas pensamos aqui em algo mais modesto. A idéia é te-cer abordagens fundamentadas em teorias da Comunicação e da Lingüística, de modo a apreender o valor cultural do livro e o leque de flexibilidade formal que seu valor potencialmente apresenta. Operaremos, assim, por analogias, a fim de enxergar com clareza o contexto em que este velho objeto de comunicação pode assumir novas feições. Embora estejamos a falar do livro, não é ele o objeto de estudo deste trabalho, mas sim, a propósito, o texto e o contexto propriamente dito onde o livro pode vir a encontrar uma nova vocação estética. Não é novidade para ninguém a abundância de sites, blogs educativos, jogos inteligentes, usos criativos do twitter e comunidades de aprendizagem na rede mundial de compu-tadores. Em que medida essas quantas configurações podem ser tomadas por livros abertos, escritos por múltiplas mãos, a explorar inúmeros aspectos cultu-rais e a proporcionar experiências estéticas e visuais relativamente inéditas?

Não forcemos o conceito ao extremo, livro é livro, blog é blog, site é site, sabemos, mas usemos a observação desse fenômeno de comunicação cultural ímpar e historicamente único, para pensar em como o valor do livro, sua essên-cia, pode então se manifestar na atualidade. Se este valor consiste, basicamen-te, no caso dos livros em que estamos aqui muito naturalmente a pensar dado o contexto em que esta argumentação se constrói, quais sejam, livros voltados para educação em artes visuais, se o valor desse livro consiste no seu caráter comunicacional, a primeira questão que se coloca é a definição do que seria esse caráter.

1. O livro como meio de comunicação cultural

Duas noções teóricas nos acodem nesse quesito. A primeira diz respeito ao conceito de meio de comunicação e a segunda, a uma das principais caracte-rísticas desses meios. Em algumas correntes teóricas1, para que um meio seja considerado meio de comunicação é necessário que ele garanta, simultanea-

1 Vide HOHLFELDT, Antônio; MARTINO, Luiz C; FRANÇA, Vera Regina. Teorias da comunicação: conceitos, escolas e ten-dências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

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mente, a precisão da informação e sua permanência. Em outras palavras, é ne-cessário que o meio preserve e seja capaz de restituir a clareza da mensagem. Quando um meio apresenta uma só dessas qualidades – precisão e fixação – é mais corretamente designado como proto-meio. Um exemplo de proto-meio são os conjuntos de códigos partilhados por grupos culturais específicos, que os usam sem qualquer preocupação em fixá-los, como uma cadência ritmada de silvos indicando a presença de um inimigo. Nesse caso, embora a mensa-gem seja clara entre os que comungam desse código, ela não possui qualquer robustez que a faça ser compreendida uma vez desaparecidos os membros daquele grupo. Eis o ponto frágil das culturas de base oral: elas dependem da existência de indivíduos que as transmitam a outros, seja de uma outra cultura e localidade, seja de uma outra geração, de um outro tempo. O contrário tam-bém pode acontecer, em se tratando de proto-meios, quando o suporte da men-sagem fixada permanece, mas se perde alguma chave de decodificação que nos dê acesso aos sentidos que ela encerra. De acordo com essas correntes, a escrita é o primeiro meio de comunicação propriamente dito da humanidade, é ela a tecnologia comunicacional que vai nos permitir aceder a outras culturas, de outras épocas e lugares, e expandirmo-nos epistemologicamente no tempo e no espaço.

Em recente viagem ao México, ouvimos a explanação de um guia turísti-co sobre os Olmecas no famoso Museu de Antropologia. Dizia ele que a cultura desse grupo étnico, anterior aos Astecas, teria sido, provavelmente, tão ou mais complexa que a destes, do que dariam prova os vestígios por eles deixados: construções (já erigiam pequenas e grandes edificações, como casas, e, claro, as magníficas pirâmides, em um tempo onde os demais grupos viviam em caver-nas ou abrigos naturais), objetos, pinturas parietais, organização social. Porém, deles não se tinha nada além desses signos, monumentais, evidentemente, mas herméticos em suas múltiplas camadas de significação. Já dos Astecas tínhamos mais notícia e, consequentemente, muito mais conhecimento, pois deles, além de vestígios objetuais, ficara-nos os códices, espécies de ancestrais dos livros, onde figuras e elementos visuais repetidos observam rigorosa composição, ge-rando uma ordem, que, uma vez decifrada, produz sentido. Dessa mesma ordem ancestral é a escrita hieroglífica, de um povo também construtor de pirâmides, os egípcios. Assim como nos códices astecas, um amálgama de pictogramas e signos visuais arbitrários, mas sistematicamente ordenados, permitiram que muitos séculos após o desaparecimento daquele povo tivéssemos acesso a sua cultura – seus costumes, suas maneiras, crenças e cosmogonia.

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Códice Asteca. Imagem de domínio público

A Linguística clássica nos ensina que a escrita, desde essas antigas até as mais atuais, pautadas no alfabeto fonético ou no ideogramático, situa-se aquém da oralidade2. É essa, rigorosamente, que interessa o lingüista. A língua falada é seu principal objeto de estudo, pois a língua escrita, sendo um sistema de representação dos sons associados às idéias que condensam, estaria em posi-ção secundária. Nessa transposição, do oral para o escrito, algo se perde e ao estudioso interessaria o sistema mais rico, mais aberto à exploração, o sistema original, do qual o outro descende.

Esse posicionamento nos leva a esclarecer a razão pela qual a linguagem humana e consequentemente as línguas que falamos não poderem ser considera-das meios de comunicação. Isso por vezes causa estranhamento, mas a questão é simples. Afirmar que a linguagem é meio de comunicação implica em reduzir, despudoradamente, seu real sentido. Ora, a linguagem humana é muito mais que meio de comunicação porque ela está na base mesma do que compreendemos por ser humano. Ela é intrínseca a esse ser. Não é algo que pode ser desconectado dele, não é algo que lhe seja exterior, que ele pode fazer e usar como uma ponte, pois não está claro historicamente até que ponto é ela, a língua, que o faz, como ser humano e como pessoa. Muito pelo contrário, a linguagem3, no grau de complexi-dade que ela se manifesta em nós, é o que nos distingue das demais espécies ani-mais mamíferas, que nos permite desenvolver isso a que chamamos pensamento, que nos permite ensinar e aprender, trocar, herdar e transmitir cultura.

2 Cf. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. 26 ed. São Paulo: Cultrix, 2010.3 Para que não haja confusão, cabe esclarecer a sutil distinção entre língua e linguagem. Esta é compreendida como o siste-ma, no fundo, qualquer sistema de articulação de signos, e aquela – a língua – como o que nos permite operar este sistema, vivificá-lo.

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Há casos de chimpanzés e outros primatas que, após longos anos de trei-namento, conseguem aprender a falar e adquirem um pequeno conjunto lexical humano que empregam com relativa propriedade. Não há notícia, porém, que eles o transmitam à sua descendência. O que foi arduamente aprendido, em ter-mos lingüísticos nesse caso, morre com o indivíduo que o aprendeu. Claro é que há uma linguagem própria de sua espécie, observável em grunhidos, em gestos, comportamentos, escolhas e em todo o composto a que designamos instinto, e que se transmite geracionalmente, através do contato e da convivência entre mãe e filho, entre os pares e membros do mesmo grupo, mas essa linguagem está longe de apresentar o grau de complexidade da linguagem humana e de permitir aos indivíduos de uma mesma espécie, como acontece conosco, compartilhar experiências, aprendizados, hipóteses, pensamentos, emoções etc através do es-paço e do tempo e tecer com isso uma espécie de segunda natureza, uma rede propriamente cultural e tecnológica espalhada sobre o planeta, hoje facilmente percebido como aldeia global4.Tal teia ou malha cultural é que faz a mediação, desde o princípio, de nossa relação com o meio ambiente e com o meio social5.

Essa ligação da linguagem com o conhecimento, da linguagem como algo que, estando dentro de nós nos permite criar entendimento e provocar altera-ções substanciais no meio que nos é exterior, constitui-se, para nós, em um de seus mistérios mais encantadores. A fala, o falar, as palavras e, depois, a escrita, o livro, as diversas linguagens artísticas nas quais podemos pensar e, ao mesmo tempo, expressa-nos, sair de dentro de nós para fora, aceder ao solo comum de uma cultura, partilhar universos íntimos, trocar com os outros nossas interpre-tações da realidade, essas diversas linguagens e os meios que elas usam para acontecer ou efetivar-se, representam, em última instância, chaves de conheci-mento fenomenais. Com essas chaves fomos abrindo portas e portas dentro e fora da matéria, entrando e saindo de mundos e sonhos, coordenando ações, organizando-nos em sociedades, soerguendo-nos em civilizações. Aqui, além de expormos o fascínio que em nós tudo isso desperta, recordamo-lo sobre tudo para tocar no segundo ponto teórico que nos interessa nessa reflexão sobre o caráter comunicacional do livro.

4 O termo foi cunhado por Marshall McLuhan nos anos 60 e, à época, chamava a atenção para a transformação que os meios de comunicação eletrônicos, rádio, televisão e cinema, vinham provocando na percepçnao que tínhamos do mundo. Com as transmissões ao vivo via satélite, nosso mundo, vasto mundo, encolhia-se, e nosso ser raimundo (viva Carlos Drumond de Andrade!) talvez se ampliasse. 5 Cf. SARTRE, Jean Paul. Les Mots. Paris: Gallimard, 1964. Neste belo livro autobiográfico o autor nos conta como se deu sua infância em meio aos livros da biblioteca de seu avô. Conta-nos como, por isso, sua relação com a realidade foi marcada pela mediação. Só mais tarde ele veio a ter experiências diretas com a natureza, com as pessoas, com a cidade, e essas experiên-cias lhe pareceram inferiores, sem graça, comparadas às que a leitura lhe propocionara.

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2. A comunicação no livro

Procuramos deixar o conceito de meio de comunicação claro ao contrapô--lo à noção de linguagem – se a língua é o zero, a escrita é o um, isto é, se não podemos dizer que a língua é um meio de comunicação, pelas razões acima expostas, podemos perceber sem maiores dificuldades a escrita (e tantos outros meios dela derivados, o livro, por exemplo) como sendo o primeiro dos meios e assim defini-los como algo que nos é exterior e que usamos para estabelecer relações de troca múltiplas, ora de si para si – no caso dos diários, das anota-ções, dos livros em que se explora um objeto de estudo a fim de sistematizar o conhecimento adquirido –, ora interpessoais, subjetivas ou objetivas. No caso dos meios de comunicação de massa, popularmente conhecidos como a mídia, a relação de troca que se estabelece extrapola o campo da interlocução e se dá em modos unidirecionais no caso dos meios claramente massivos – rádio, cinema, televisão –, onde a mensagem segue de um (grupo, empresa, partido político etc) para muitos, e em modos multidirecionais, como ocorre atualmente na internet, onde a mensagem circula descentralizada, de todos para todos. Basicamente, assim se definem os meios, que conhecem ainda uma já clássica disposição em duas grandes famílias, a dos impressos e a dos eletrônicos, que dispensam ex-plicação, dada a familiaridade que temos com ambas.

Cumpre agora dizer o que caracteriza sobremaneira um meio de comu-nicação. Qual seria seu traço marcante? Recorremos, para tanto, a um teórico cujas idéias causaram sérias polêmicas quando da sua aparição. Trata-se de Mar-shall McLuhan, hoje já bastante assimilado pelos estudiosos do campo. Dentre as várias teses que ele sustenta, há uma especialmente cara à compreensão da natureza dos meios, onde se afirma serem estes extensões humanas. Os meios prolongariam, e neste prolongar ampliariam, alguns de nossos sentidos e capaci-dades intelectuais. Assim, no caso do meio de comunicação que nos interessa de perto, o livro, esse seria, segundo essa tese, uma extensão do tato e da visão, em termos de sentido, e uma extensão da memória, da percepção e da imaginação, no tocante ao intelecto.

Nessa perspectiva, segue uma outra idéia mcluhiana, que aqui relembra-remos a fim de elucidar o caráter comunicacional do livro. Essa idéia é a de que, como extensões humanas, os meios são a mensagem6. Interpretada sob uma

6 Cf. MCLUHAN, Marshall; FIORE, Quentin; AGEL, Jerome (Coord.). O Meio são as massa-gens. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1969.

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certa óptica, essa espécie de fórmula, que paira ainda hoje como enigma ou pro-vocação7 e que conhece na literatura especializada inúmeras análises, quer dizer pra nós que o meio em que algo é comunicado conta tanto quanto isso mesmo que nele se comunica. O meio, dada a alteração que ele provoca no equilíbrio psíquico humano, ao acentuar ou sobrecarregar um ou outro de nossos sentidos e de nossas faculdades mentais, já é a mensagem. Cabe complementar que, na época em que isso foi dito, anos 60, os estudos de comunicação debruçavam-se sobre o conteúdo veiculado pelos meios e com os efeitos na formação moral, política ou cidadã, que eles provocariam na população, especialmente nas crian-ças, extremamente expostas à televisão, grande novidade mediática do momen-to, ainda recém-nascida.

A frase enigmática de McLuhan toca em um dos pontos mais delicados da comunicação (e não só dos meios de comunicação) que é o amálgama da forma e do conteúdo, do modo como se diz o que se diz, a conjunção última e misteriosa, já observada na unidade básica do signo linguístico, a palavra, entre significado e significante, e sua relação com o referente ele mesmo, a coisa, o tema, idéia ou sentimento sobre o qual se fala. Quanto menos utilitária e pragmática é nossa percepção, tanto da linguagem humana, como dos meios de comunicação por nós criados, mais damos razão a McLuhan. Quanto mais nos aproximamos da linguagem da arte, onde os meios de expressão e de comunicação são desnatu-ralizados, uma vez que se voltam para, ou se originam do, estranhamento, mais clara se torna a relação de dependência mútua que se estabelece entre forma e conteúdo.

Certa vez, em um programa de entrevista na televisão, um cineasta, que ali estava justamente para falar do seu novo filme, recusou-se, num dado mo-mento, a falar. Quem o entrevistava era Jô Soares e, para concluir a conversa, pediu que ele contasse para os telespectadores, em algumas poucas palavras, a história do filme. O artista refletiu, refletiu, e formulou a seguinte resposta: ora, Jô, se eu pudesse contar assim, em algumas frases e minutos, minha história, eu não teria gasto duas horas para fazê-lo8. A passagem ilustra o que queríamos dizer a respeito dos meios de comunicação, marcados pelo condicionamento

7 Nam June Paik, considerado um dos pais da videoarte, tem uma obra cujo título retruca a famosa frase, quase slogan, de McLuhan. Trata-se de The medium is the medium. A ironia fina do artista fica evidente quando se sabe que sua obra como um todo brinca sobremaneira com o meio em si, com seus sinais e elementos de linguagem, gerando circuitos metalingüís-ticos que parecem confirmar o contrário do que se diz naquele título. Tudo se concentra no meio, ele é a mensagem que o artista nos propõe, e inútil seria buscar um conteúdo que se sobrepusesse à forma. Esta já o contém. 8 Foi uma entrevista vista há muito tempo, mas que guardamos na memória em função do brilhantismo, honestidade e cora-gem da resposta. Lamentavelmente não temos nenhuma referência comprobatória do episódio.

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da mensagem às limitações e potencialidades do meio. Não se diz no rádio o mesmo que se diria na televisão, nem do mesmo modo, não é possível. Não se escreveria um livro se o conteúdo do mesmo coubesse em um jornal. Ainda que sejam comuns os casos de adaptação de um meio e de uma linguagem a outros9, sempre há nessa transição, perdas e ganhos. Cada meio molda a mensagem que carrega e, ao fazê-lo, confunde-se com ela. Soma-se a isso o fato de, pela própria presença, esse meio massagear nossos gens (claro, trata-se aqui de linguagem figurativa10) ou alterar de modo sutil, mas talvez irreversível, nossa proporciona-lidade sensitiva ou equilíbrio psíquico.

3. O livro e o leitor na convergência comunicacional tecnológica

Nesse ponto, voltamos à questão que nos ocupava no início, o problema do texto e do contexto possível para novas experimentações estéticas do livro na atualidade, onde diversos meios de comunicação convergem em um aparelho, normalmente portátil, e onde há vários aparelhos (poderíamos dizer tecnologias) viabilizando essa conjunção. Nessa convergência comunicacional, sonhamos com ma estética do livro, meio de comunicação de cultura, operando um outro tipo de conjunção, que chamaremos de multicultural. O termo não é novo, mas cabe explorá-lo. Se meio e mensagem são de fato instâncias amalgamadas, como mostramos, podemos ver naquela convergência um ambiente cultural único na medida em que nele temos, potencialmente, acesso a várias culturas e de vários modos, além de nele vivenciarmos um tipo específico de cultura, simultanea-mente cibernética e caótica, onde controle e subversão alternam-se velozmente. Sendo assim, como usar a potencialidade dessa convergência comunicacional na educação em artes visuais? Como adotar essa malha mediática como imensa biblioteca, aberta, multiforme, infinita e instável? E como, nela, ler e escrever livros, a fim de compartilhar e interagir com outros universos epistemológicos?

Não iremos responder essas questões aqui, pois constituem-se objeto de uma pesquisa ainda em andamento. Pretendemos, contudo, chamar a atenção

9 Em relação aos livros, é bom lembrar que grandes clássicos da literatura tiveram origem em páginas de jornal. Isso vale para Dostoiévski, para Machado de Assis, para Fernando Pessoa. Recentemente li que o dramaturgo Gerald Thomas acaba de lançar um livro que nada mais é que uma coletânea bem selecionada dos textos que escreve diariamente, quiçá despre-tensiosamente, em seu blog. A lista seria enorme e, maior ainda, se citássemos as adaptações de grandes romances para o cinema. Esses exemplos, contudo, não invalidam a argumentação exposta, pois a própria idéia de adaptação implica em uma remodelagem do amálgama conteúdo-forma e, no caso das transposições mais simples, de um meio a outro, essas guardam o charme do distanciamento quase folclórico do original, que experimentamos, por exemplo, ao ler as cartas de Van Gogh a Theo, ou o diário de Frida Khalo, em livros. 10 Aludimos ao título de um livro de McLuhan, Os meios são as massa-gens, supracitado.

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para a o outro lado da moeda e lembrar que de nada nos adiantaria construir, ainda que experimentalmente, novas estéticas do livro se não houvesse sensibi-lidades capazes de percebê-las, isto é, se não houvesse leitores dispostos a com ela interagir. Estes leitores, de certo modo, já estão em formação, cabe a nós enxergá-los mais de perto.

Passamos, assim, a refletir acerca da necessidade da aproximação da uni-versidade com o meio virtual. Se as mídias virtuais (blogs, redes sociais e sites) são uma realidade muito explorada como meios em que se busca informações e conhecimento, é de suma importância investigar essas mídias para nelas veri-ficarmos as diferentes formas, não só de construção e divulgação dos saberes, mas também de leitura e interpretação dos mesmos. No contexto contemporâ-neo, em que a cultura do papel e a cultura das telas coexistem e convivem na vida acadêmica de qualquer estudante, faz-se necessário analisar os discursos contidos nas mídias virtuais e perceber as diferentes culturas presentes nesse meio. Apreender tais culturas, em sua extensibilidade, exige um trabalho de le-tramento virtual, uma espécie de alfabetização em múltiplos meios, linguagens e universos referenciais, que torne a pessoa capaz de gerar entendimento a partir de um texto, não só de matriz escrita, como ocorre no contexto do letramento tradicional11, mas também a partir de um texto multimídia, onde a trama semân-tica conhece outras sintaxes, próprias de outros meios, como os audiovisuais, os musicais e os imagéticos, por exemplo.

O letramento é um conjunto de práticas sociais que usam a escrita enquan-to sistema simbólico (KLEIMAN, 1985) e é imprescindível aos processos de edu-cação, sejam eles formais, não-formais ou informais, na medida em que ela tam-bém se constitui como um sistema simbólico, onde se refletem as práticas sociais estabelecidas em determinados contextos, onde fica clara a “mobilidade social das pessoas, o que configura especificidades discursivas que delineiam perfis” (Silva, 2008, p.76) culturais e comunicacionais. Daí a necessidade de se investigar o problema do letramento, tanto no contexto educacional, quanto no mundo vir-tual, onde pessoas de diferentes origens, histórias, valores e referências culturais convivem e trocam, não só informação, mas também conhecimento.

O letramento, como conjunto de práticas sociais e concepções de leitura e escrita, ganha por isso novos contornos na cultura virtual e lançam o educador

11 O termo letramento é empregado para designar “práticas sociais e concepções de leitura e de escrita” (STREET, 1984, p. 1) adquiridas por uma coletividade.

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na busca do entendimento acerca dos processos de significação reais e possíveis nessa cultura. Dela, cabe ressaltar, fazem parte sujeitos que têm acesso diário e corriqueiro aos meios eletrônicos e computacionais, onde se delineia o discurso do acesso universal. Apesar da beleza desse discurso, sabe-se que o acesso uni-versal não se realiza espontaneamente, mas que exige educação e letramento, a fim de que seja entendido em sua dimensão propriamente discursiva, como

prática social, ou seja, como discurso – discurso tomado como um veicu-lador de significações e ideologias que constroem a realidade, por meio das várias dimensões das práticas discursivas –, podem favorecer as transformações, ao veicular um sentido fortalecedor e emancipatório” (Silva, 2008, p. 78).

No contexto contemporâneo, onde se observa o relacionamento dos meios comunicacionais com os meios educacionais, podemos explorar a potencialida-de da convergência comunicacional na educação em artes visuais, levando em conta o impacto da relação das mídias virtuais com a educação, que não se res-tringe apenas ao evento sala de aula, mas está presente nos mais diversos meios informáticos, proporcionando novas significações dos saberes sociais.

4. A necessidade de um letramento diferenciado

Anteriormente, questionamos como adotar essa malha mediática como imensa biblioteca, aberta, multiforme, caótica e instável. É importante perceber que o meio virtual, como um sistema escrito por uma sociedade complexa e definido por múltiplas culturas, acolhe diversas ferramentas disponíveis na cria-ção constante de saberes, abrindo, assim, à pessoa uma gama de possibilidades expressivas até então inédita. Portanto, adotar o mundo virtual como biblioteca é um trabalho que exige a interação entre conhecimento tecnológico, letramento e conhecimento das práticas sociais para que o leitor virtual possa realmente aprender em contato com esse texto, infinitamente mais complexo que um texto impresso em papel.

Se o letramento é a conseqüência social e histórica da introdução de uma escrita em uma sociedade, a convergência comunicacional pode significar para uma sociedade virtualmente letrada uma transformação dos moldes de ensino--aprendizagem, onde se aproveite o máximo dos saberes disponíveis no meio virtual em diferente contextos educacionais, esclarecendo a influência da prática social do meio virtual nos discursos vigentes nessas mídias sociais e na intera-

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ção desses discursos com a construção dos diversos saberes sociais e acadê-micos, formais, não-formais e informais, posto que “diferentes tecnologias de escrita geram diferentes estados ou condições naqueles que fazem uso dessas tecnologias” (Soares, 2002, p. 14). Levando em consideração que o uso da leitura e da escrita são habilidades necessárias para uma participação ativa e competen-te em situações que exijam competências discursivas e cognitivas, poderemos averiguar como se compartilha informações e conhecimentos em ambientes vir-tuais, em weblogs, comunidades, redes etc.

É que estamos vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e incipientes modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propi-ciadas pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o compu-tador, a rede (a web), a Internet. (Soares, 2002, p. 4)

Há evidente dificuldade em integrar o ambiente virtual aos ambientes for-mais de sala de aula, tendo em vista as próprias condições espaciais e temporais em que cada realidade acontece. Porém, as novas tecnologias trouxeram signi-ficativas mudanças na recepção do texto, nos gêneros discursivos, nas funções textuais, nas representações simbólicas e nas falas, o que influencia, diretamen-te, a prática da escrita das pessoas letradas.

Para Soares (2002, p. 6) “as tecnologias intelectuais não determinam, mas condicionam processos cognitivos e discursivos”, o que demonstra a significativa transformação na necessidade de letramento desses estudantes, já habituados ao meio virtual e que, por conseqüência, são influenciados em seus escritos pe-las diversas leituras hipertextuais, distinta da leitura forjada na cultura do papel, do livro impresso. Além de levar em consideração um esquema muito mais pró-ximo do sistema mental do ser humano, o hipertexto multimídia perpassa dife-rentes linguagens, e não apenas a verbal, levando o leitor a percorrer diferentes campos: semióticos, artísticos, estéticos, conceituais e intertextuais. Portanto, este leitor está imerso em um multiculturalismo que exige um multiletramento, para que ele se torne intérprete, interlocutor e escritor desse texto eletrônico. Sua escrita, hipertextual, não é algo singular, mas sim plural, pois é composta por diversos gêneros discursivos.

A cultura em que esses textos estão imersos delineia esses gêneros dis-cursivos na rede mundial de computadores, onde pessoas de culturas com-pletamente distintas conversam e interagirem por meios dessa escrita virtual, multimídia e hipertextual, criando e transformando, constantemente, práticas discursivas, conceitos, valores, signos e simbologias. Tudo isso transforma e

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modifica as necessidade de letramento na atualidade, já que “o espaço de escrita condiciona, sobretudo, as relações entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto”. (Soares, 2009, p. 7). Nessa relação entre o leitor e a escrita na Internet, percebemos como diversas culturas estão interagindo nesse universo onde se encontram indivíduos com diversos níveis de letramento, inclusive os letrados não-formais.

Assim, propomos uma contraposição entre o multiculturalismo, próprio da rede mundial de computadores e dos demais aparelhos eletrônicos portáteis atuais, ao etnocentrismo (visão de mundo de uma etnia dominante que se toma por mais importante que as demais), característico dos meios impressos e eletrô-nicos anteriores, como o livro tradicional, o rádio, o cinema e a televisão. Nossa proposição visa fazer convergir uma política multicultural imaginária com uma prática de letramento multimídia como forma de ensinar e aprender com a he-terogeneidade epistemológica, lingüística, comunicacional e educacional típica da cibercultura. Pensamos que tal convergência, não só tecnológica, mas sobre tudo, conceitual, poderia enriquecer as bases teóricas para o ensino-aprendiza-gem das artes visuais no contexto contemporâneo e abrir novas possibilidades experimentais para a estética do livro virtual didático e artístico.

Referências

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BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas, SP: Pontes Editores, 2005.

BUZATO, M. E. K. (2001) “Sobre a Necessidade de Letramento Eletrônico na Formação de Professores: O Caso Teresa.” In: Cabral, L.G, Souza, P., Lopes, R. E.V. & Pagotto, E.G (Org.) Lingüística e Ensino: Novas Tecnologias . Blumenau: Nova Letra: 229-267.

HOHLFELDT, Antônio; MARTINO, Luiz C; FRANÇA, Vera Regina. Teorias da comunica-ção: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.

KLEIMAN, A. B. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.

MCLUHAN, Marshall; FIORE, Quentin; AGEL, Jerome (Coord.). O Meio são as massa--gens. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1969.

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SARTRE, Jean Paul. Les Mots. Paris: Gallimard, 1964.

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e Processos de Mediação

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. 26. edição. São Paulo: Cultrix, 2010.

SILVA, Luzia Rodrigues. Análise de discurso, crítica, letramento e gênero social. http://www.revistas.ufg.br/index.php/sig/article/viewFile/3637/3395

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 2009.

STREET, V. B. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

Currículos das autorasAna Beatriz Barroso é doutora em Comunicação, mestre em Arte e Tecnologia da Imagem, especialista em Arte Educação e bacharel em Comunicação pela Universidade de Brasília. Desenvolve pesquisa de cunho teórico-prático na linha de educação em artes visuais acerca das possibilidades de realização didática em livros virtuais abertos na rede mundial.

Sinara Bertholdo de Andrade é mestranda em Lingüística pela Universidade de Brasília e graduada em Letras, Português, pela mesma universidade. Lecionou Linguística na UEG – UNU Formosa no ano de 2010. É membro do Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade da Universidade de Brasília e do grupo de pesquisa ligado à construção do AcervoVIS, IdA, UnB.