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Instrumentação para o Ensino de Física A José de Pinho A. Filho Terezinha Fátima Pinheiro (In Memorian) Florianópolis, 2010

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Page 1: Livro de INSPE [Atualizado]

Instrumentação para o Ensino de Física A

José de Pinho A. FilhoTerezinha Fátima Pinheiro (In Memorian)

Florianópolis, 2010

Page 2: Livro de INSPE [Atualizado]
Page 3: Livro de INSPE [Atualizado]

Universidade Federal de Santa CatarinaConsórcio RediSul

Campus Universitário – Trindade

Caixa Postal 476 – CEP 88040-200 – Florianópolis – SC

http://www.ead.ufsc.br – [email protected]

Reitor Alvaro Toubes Prata

Vice-Reitor Carlos Alberto Justo da Silva

Secretário de Educação à Distância Cícero Barbosa

Pró-Reitora de Ensino de Graduação Yara Maria Rauh Muller

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Pró-Reitor de Assuntos Estudantis Cláudio José Amante

Centro de Ciências da Educação Wilson Schmidt

Centro de Ciências Físicas e Matemáticas Tarciso Antônio Grandi

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Instituições ConsorciadasUDESC Universidade do Estado de Santa Catarina

UEM Universidade Estadual de Maringá

UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul

UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

UFSM Universidade Federal de Santa Maria

Cursos de Licenciatura em Física na Modalidade à DistânciaCoordenação de Curso Sônia Maria S. Corrêa de Souza Cruz

Coordenação de Tutoria Rene B. Sander

Coordenação Pedagógica/CED Roseli Zen Cerny

Coordenação de Ambiente Virtual Nereu Estanislau Burin

Comissão EditorialDemétrio Delizoicov Neto, Frederico F. de Souza Cruz, Gerson Renzetti

Ouriques, José André Angotti, Nilo Kühlkamp, Silvio Luiz Souza Cunha.

Page 4: Livro de INSPE [Atualizado]

Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenação PedagógicaCoordenação Geral: Andrea Lapa, Roseli Zen Cerny

Núcleo de Formação: Nilza Godoy Gomes

Núcleo de Pesquisa e Avaliação: Claudia Regina Flores

Núcleo de Criação e Desenvolvimento de MateriaisDesign GráficoCoordenação: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha Oliveira

Projeto Gráfico: Carlos Antonio Ramirez Righi, Diogo Henrique Ropelato,

Mariana da Silva

Diagramação: Laura Martins Rodrigues

Ilustrações: Talita Ávila Nunes, Jean Menezes, Laura Martins Rodrigues,

Ângelo Bortolini Silveira, Guilherme Vasconcellos

Design InstrucionalCoordenação: Juliana Machado

Design Instrucional: Rodrigo Machado Cardoso

Revisão Gramatical: Arlindo Rodrigues da Silva

Copyright © 2010, Universidade Federal de Santa Catarina / Consórcio RediSulNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qual-quer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordenação Acadêmica do Curso de Licenciatura em Física na Modalidade à Distância.

Ficha Catalográfica F474i Alves Filho, José de Pinho. Instrumentação para o Ensino de Física A / José de Pinho Alves Filho, Terezinha de Fátima Pinheiro. – Florianópolis : UFSC/EAD/ CED/CFM, 2010. 241p. ISBN 978-85-99379-40-0 1.Física I. Pinheiro, Terezinha de F. II. Título. CDU 53

Catalogação na fonte: Eleonora Milano Falcão Vieira

Page 5: Livro de INSPE [Atualizado]

Sumário

Unidade I – A Origem do Conhecimento Científico ............. 13

1. Elementos de epistemologia ........................................ 17

1.1 O que é epistemologia? .........................................................17

1.2 Por que conhecer epistemologia? ........................................17

1.3 O porquê da Epistemologia ..................................................19

Texto 1 - Origens da Ciência ..................................................21

Resumo .......................................................................................29

Atividades de aprendizagem .................................................... 30

Referências ................................................................................. 30

2. Origem do conhecimento científico............................. 31

2.1 A velha Grécia: berço do pensamento ocidental .................31

2.2 O racionalismo: razão e intuição ........................................ 33

2.3 O empirismo: a experiência ................................................ 34

2.4 Enfim, como pensar? Tem método? .................................... 35

Resumo ...................................................................................... 36

Texto integrante ..........................................................................37

Atividades de aprendizagem .....................................................37

Referências ................................................................................. 38

3. O método científico ..................................................... 39

3.1 A concepção do Método Cientifico (a força inglesa...) .........39

Texto 2 - A ilha utópica de Bacon ......................................... 40

3.2 A observação e a indução: os pilares do empirismo ..........41

3.3 A indução é um método confiável? .................................... 42

3.4 A observação é neutra? ........................................................43

3.5 Críticas ao “método científico” ............................................ 44

Textos integrantes ..................................................................... 44

Atividades de aprendizagem .................................................... 44

Referências ..................................................................................45

4. Rompendo com o método ........................................... 47

4.1 Novas concepções de pensar a Ciência ..............................47

4.2 O senso comum e o conhecimento científico: uma ruptura .........................................................................49

4.3 Teorias como estruturas: a presença dos paradigmas .......51

4.4 O construtivismo epistemológico ....................................... 58

Page 6: Livro de INSPE [Atualizado]

Texto 3 - A ruptura entre o conhecimento comum e conhecimento científico nas ciências físicas ...........59

Resumo ...................................................................................... 66

Atividades de aprendizagem ..................................................... 66

Sugestões de leituras ..................................................................67

Referências ................................................................................. 68

Unidade II - A Literatura Didática para o Ensino de Física ................................................69

5. Os textos didáticos para o ensino de física ................. 73

5.1 Compêndio – o primeiro livro didático .................................73

5.2 Os livros didáticos de Física no Brasil até 1960 ..................76

Resumo ...................................................................................... 83

Texto integrante ......................................................................... 83

Atividades de aprendizagem .................................................... 84

Referências ................................................................................. 84

6. Os projetos de ensino estrangeiros ............................. 85

6.1 Os projetos de ensino de Física pós 1950 ........................... 85

6.2 O Projeto PSSC ..................................................................... 86

6.3 O Projeto Harvard (Project Physics Course) ......................... 90

6.4 Projeto Piloto: Física da Luz .................................................93

6.5 O Projeto Nuffield ................................................................. 95

Resumo .......................................................................................97

Atividades de aprendizagem ......................................................97

Referências ................................................................................. 98

7. Os projetos de ensino brasileiros ...............................101

7.1 A gênese dos projetos brasileiros .......................................101

7.2 Projeto de Ensino de Física – PEF ......................................105

7.3 Projeto Física Auto-Instrutivo - FAI ....................................109

7.4 O Projeto Brasileiro de Ensino de Física - PBEF ................ 112

7.5 Grupo de Re-elaboração do Ensino de Física – GREF ....... 114

Resumo ..................................................................................... 117

Atividades de aprendizagem .................................................... 118

Referências ................................................................................ 119

Page 7: Livro de INSPE [Atualizado]

Unidade III - As Novas Perspectivas para o Ensino de Física ..............................................121

8. As concepções de ensino .......................................... 129

8.1 O ensino tradicional ............................................................129

8.2 O tecnicismo .......................................................................132

8.3 A visão crítica de Educação ..............................................134

8.4 A concepção construtivista ................................................136

Resumo .....................................................................................139

Atividades de aprendizagem ....................................................139

Referências ................................................................................140

9. Representações intuitivas ..........................................141

9.1 As representações intuitivas ............................................... 141

Texto 4 - Concepções espontâneas em física: exemplos em dinâmica e implicações para o ensino ............145

9.2 Obstáculos epistemológicos, ontogênicos e didáticos .....................................................157

Resumo .....................................................................................160

Atividades de aprendizagem ....................................................160

Textos recomendados ............................................................... 161

Referências ................................................................................163

10. Transposição didática ............................................. 165

10.1 A Transposição Didática ...................................................165

Atividades de aprendizagem .................................................... 175

Textos recomendados ............................................................... 176

Referências ................................................................................177

11. O contrato didático ...................................................179

11.1 Mas que contrato é este? ...................................................179

11.2 Efeitos do contrato didático ..............................................183

11.3 Consequências do contrato didático e seus efeitos .........187

11.4 O desafio moderno: as novas relações com o saber ........189

Texto 5 - A idade do capitão .................................................192

Resumo .....................................................................................195

Texto integrante .......................................................................195

Atividades de aprendizagem ....................................................195

Textos complementares............................................................196

Referências ................................................................................196

Page 8: Livro de INSPE [Atualizado]

12. Resgatando a história da ciência ............................ 197

12.1 História da ciência e as concepções intuitivas ................197

12.2 Representações intuitivas e períodos históricos ............ 200

Texto 6 - História e filosofia da ciência no ensino de física ................................................202

Resumo ..................................................................................... 211

Texto integrante ........................................................................212

Atividades de aprendizagem ....................................................212

Textos de apoio ......................................................................... 213

Referências ................................................................................ 214

13. Modelos científicos, modelos escolares e modelização ..........................................................215

13.1 Entendendo o mundo – um desafio .................................. 215

13.2 O que são modelos? .......................................................... 218

13.3 Modelização: construindo modelos escolares ................ 219

13.4 Conhecimento, ensino e utilidade ...................................221

Texto 7 - Construindo a realidade: modelizando o mundo através da física .....................................221

13.5 Modelização de variáveis .................................................231

Texto 8 - Aproximação entre a ciência do aluno na sala de aula da 1ª série do 2º grau e a ciência dos cientistas .......................................232

Resumo .....................................................................................239

Atividades de aprendizagem ....................................................239

Referências ................................................................................241

Page 9: Livro de INSPE [Atualizado]

Dedicatória

A versão final deste livro é dedicada à Terezinha de Fátima Pinheiro, na inti-

midade tratada por TÊ!

Este texto, de certa forma, reflete a sua constante preocupação com a prática

escolar, com o ensino de Física no Ensino Médio. Como professora de Física

do Colégio de Aplicação da UFSC, por mais de 20 anos, sempre se mostrou

atenta e, ao mesmo tempo, inquieta com a maneira de e o quê ministrar para

seus alunos de “primeira série”. Esta preocupação a levou ao mestrado, cujos

extratos de sua dissertação, inspirada em sua prática escolar, são discutidos

no último capítulo deste livro. Posteriormente, cursou o doutorado, sem nun-

ca esquecer seus alunos, aos quais dedicou ambos os trabalhos.

Ao planejar este texto comigo, TÊ exigia que ele oferecesse, pelo menos, uma

idéia geral do que um futuro professor de Física precisaria ter noção. Sabia

ela que só o tempo e o exercício diário da docência iriam suprir as lacunas

deixadas pelo curto tempo dedicado ao curso de licenciatura. Daí exigir que

fossem apontados aspectos de relevância, instigantes e desafiadores, que,

além de provocar nos leitores o desejo de superar o ensino maçante e, por

vezes, desconectados da realidade dos estudantes, levassem a um olhar mais

distante e os inspirasse o desejo de cursar uma pós-graduação na área.

Não sei se consegui, nesta versão final, colocar as aspirações da TÊ. Sei ape-

nas que, dos oito capítulos iniciais planejados, acabei escrevendo quase ou-

tro tanto. Procurei manter o combinado, planejado e desejado por ela. Espero

tê-lo feito. Se não consegui...

Este texto demorou mais tempo que o necessário. A ida prematura da TÊ pro-

vocou lacuna e,o tempo se fez necessário passar, para que eu pudesse retomar

e dar continuidade ao projeto planejado por nós.

Este livro é dedicado àquela que, além de colega de trabalho, foi minha com-

panheira.

À TÊ, onde quer que esteja! Saudades!

Pinho

Page 10: Livro de INSPE [Atualizado]
Page 11: Livro de INSPE [Atualizado]

Apresentação

Bem-vindo à primeira disciplina do conjunto de Instrumentação para o Ensi-

no de Física, conhecida por INSPE!

Três disciplinas sequenciais de INSPE (A, B e C) irão compor o conjunto da

matéria Instrumentação para o Ensino de Física, cuja principal função é a

instrumentalização de estratégias e abordagens para o ensino de Física, tal

como o uso de atividades experimentais adequadas ao ensino de Física, nor-

teadas por novas concepções epistemológicas e didático-pedagógicas.

A INSPE A tem um caráter mais teórico! Iremos transitar rapidamente pela

epistemologia (reforçando aspectos já estudados em outras disciplinas) e sua

importância para o ato de ensinar Ciência. Afinal, precisamos saber um pou-

co da origem deste conhecimento que ensinamos. Seguindo, vamos passear

pelos textos didáticos de Física do século passado, desde os “compêndios”

até os “projetos de ensino” que fizeram uma revolução no ensino de Física e

influenciam, de certa forma, até hoje este mesmo ensino. Assim, como ne-

les encontramos excelentes contribuições, temos aspectos criticáveis, mas

ambos os casos sempre serão objetos de grande valor histórico e referência

no ensino de Física. Finalmente, estudaremos tópicos que reservam certa

independência entre si, mas que, em conjunto, serão de extrema valia para

repensarmos o ensino de Física e enfrentarmos os desafios das atuais pro-

posições de ensino. Centralizaremos nossa atenção nos aspectos teóricos,

provenientes de diferentes linhas de pesquisa em ensino de Física, para então

projetarmos suas diferentes funções no cotidiano da sala de aula.

Pensar o ensino de Física é diferente de pensar em Física!

Lembre-se que “dar aula” qualquer pessoa, a princípio, pode fazê-lo, pois

basta repetir o livro. “Ensinar Física” é um pouco mais difícil, pois implica

ensinar a pensar o mundo de uma forma particular, isto é, utilizando as fer-

ramentas da Ciência e compreendendo as suas limitações. Para isto, é neces-

sário, além de saber muito de Física, saber como podemos sensibilizar nosso

aluno a aceitar e gostar de Física.

Todo o ferramental teórico estudado nesta disciplina tem o objetivo de situá-

lo no Sistema de Ensino, mostrando as possíveis interações que ali ocor-

Page 12: Livro de INSPE [Atualizado]

rem e as razões destas ocorrências. O resgate histórico dos livros didáticos e

projetos serão referências quando fizermos uso dos instrumentos de análise

como, por exemplo, a Transposição Didática. Em INSPE-A, a ênfase será em

pavimentar uma base teórica que forneça os subsídios necessários para as

duas outras disciplinas de Instrumentação (B e C).

São oferecidos, no ambiente virtual, textos complementares com o objetivo

de ampliar e complementar os assuntos ali tratados e que também serão re-

ferências para as Atividades de Aprendizagem. É muito importante que você

faça as leituras indicadas.

O texto principal direciona, à primeira vista, para um monólogo. Nós escre-

vemos e você lê. Mas não deve ser entendido somente assim. Nós falaremos

através do texto e dos autores convidados e você, caro estudante, discutirá

consigo e/ou colegas (ou até mesmo conosco, diretamente pelo Ambiente

Virtual de Ensino e Aprendizagem - AVEA) as colocações aqui postas. Sinta-

se sempre à vontade! Será um prazer atendê-lo e ter uma boa conversa sobre

os assuntos aqui tratados.

Então, fica combinado que, em um primeiro momento, nós expomos o as-

sunto e que, num segundo momento, você enriqueça a discussão, fortaleça

os argumentos, os contra-argumentos e, principalmente, avance frente às

colocações aqui postas.

Que tenhamos juntos um bom e produtivo trabalho!

Um abraço e sucesso!

Terezinha e Pinho

Page 13: Livro de INSPE [Atualizado]

A Origem do Conhecimento Científico

Unidade I

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Unidade I

A Origem do Conhecimento Científico

Esta Unidade tem como objetivo principal uma introdução ao estudo da Epistemologia. Podemos adiantar que será uma visão bastante mo-desta, apesar de o assunto ser de extrema importância aos docentes de Física. A maneira como vemos a Ciência, no nosso caso a Física, reflete em nossa prática docente. Além disto, estaremos resgatando discussões já iniciadas em outras disciplinas.

Não será feita uma revisão histórica até a exaustão, mas pontuaremos o que se fizer necessário para dar uma visão geral de como se inter-preta a construção da Ciência, suas leis e seus conceitos e, sobretudo, seus critérios de validação.

O estudo de contextos sociais de produção e validação do conheci-mento cientifico, de suas implicações sociais e éticas e de seu valor, corresponde a uma visão igualmente válida para a Ciência. Mas estes são objetos da Filosofia da Ciência que engloba a Epistemologia.

Vamos dar uma volta na Grécia para estabelecer historicamente as ori-gens do “como pensar”, isto é, elaborar conhecimento, caracterizando o racionalismo e o empirismo. De um salto iremos ter, com o nasci-mento da Ciência Moderna e a presença do “método científico”, de-fensores e críticos. Iremos encerrar com as novas concepções sobre o pensar científico e suas principais correntes já no início do século XX.

O discurso nesta unidade será de caráter reflexivo. Portanto, não es-pere respostas prontas e definitivas ou algoritmos que levem à solu-ção imediata de algum questionamento.

Ao final da Unidade oferecemos uma lista de livros que permitirá um aprofundamento do assunto.

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17Elementos de Epistemologia

Este capítulo e seus textos complementares permitirão que você possa definir epistemologia e caracterizar a sua importância na formação dos educadores, particular-mente do professor de Física – a sua formação! Saber qual o objeto de estudo da epistemologia e se iniciar em um discurso reflexivo sobre a origem do conhecimen-to. O capítulo é pequeno, de propósito, para iniciarmos de maneira lenta a introdução de assuntos não comuns em nossa área.

1.1 O que é epistemologia?

Epistemologia é uma palavra de origem grega resultante da combi-nação de episteme = ciência e logos = teoria. O termo epistemologia pode apresentar diversos significados. Também é entendida ou deno-minada por alguns como “Teoria do Conhecimento” ou “Filosofia do Conhecimento”, ou ainda “Filosofia da Ciência”. De maneira geral, a literatura que tem origem na língua inglesa utiliza o termo como sinô-nimo de Teoria do Conhecimento, ou seja, como o campo disciplinar que trata do conhecimento em geral e estuda problemas cognitivos mais gerais. Já na literatura de origem francesa costuma significar “Teoria da Ciência”, neste caso, tendo o mesmo significado de “Filoso-fia da Ciência”. (DUTRA, 1998).

Utilizaremos o termo Epistemologia ao longo deste livro com este últi-mo sentido, ou seja, como o campo de conhecimento que procura estu-dar o processo de produção e legitimação do conhecimento científico.

1.2 Por que conhecer epistemologia?

Uma boa resposta seria: Porque ensinamos Física, que é uma Ciência!

A epistemologia tem por objetivo básico a caracterização das ciências existentes, para julgar seu valor e decidir se elas se aproximam de

1 Elementos de epistemologia

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18

um ideal de conhecimento. Para tanto, ela procura compreender os procedimentos que uma determinada disciplina científica utiliza para elaborar e testar suas teorias e para estimar o valor lógico e cognitivo de tais teorias. Algumas das perguntas que são feitas: qual o grau de confiabilidade dos procedimentos de validação empregados? Em que se baseiam estes procedimentos? Como tais teorias são testadas? Qual a relação entre a teoria e o objeto por ela estudado? É possível falar em progresso científico? Em que ele consiste?

Mas a Física não é uma verdade incontestável? Para que teorizar sobre o que já se mostrou e se mostra correto há séculos? Afinal, a Física funcio-na! — poderia alguém perguntar ou afirmar.

Não devemos esquecer nunca que o conhecimento é uma interpreta-ção elaborada pelo homem para explicar sua realidade próxima. Daí podem surgir novas questões: esta explicação é a melhor? Pode ser aceita como “verdade”? Explica de fato a realidade? ...mas… e que realidade?

A presença destes questionamentos e outros tantos quase que obriga à busca de respostas. Assim, a Filosofia, abre espaço para a Episte-mologia, que torna-se um campo disciplinar específico no início do século XX. Cada vez mais as discussões oriundas deste campo inte-ressam àqueles que trabalham com o ensino de ciências. Isto porque entender a ciência é também, e principalmente, entender o que ela tem de especial em relação às outras formas de conhecimento. Des-te modo, é possível estimar melhor seu valor, sua legitimidade e seu modo de produção.

Os principais problemas que a epistemologia toma como objeto de aná-lise são em número e natureza enormes e complexos e poderiam ser reduzidos, a título didático, a seis grandes problemas fundamentais:

Objetos de análise da epistemologia:

a) as possibilidades do conhecimento;

b) os limites do conhecimento;

c) a origem do conhecimento;

d) a metodologia da produção do conhecimento;

e) a estruturas do conhecimento;

f) a verdade (do conhecimento).

Releia o capítulo 1 do seu livro Fundamentos

Filosóficos da Educação.

Page 19: Livro de INSPE [Atualizado]

19Elementos de Epistemologia

Como é perceptível, conhecer um pouco de epistemologia, em particu-lar para nós professores de Física, se faz indispensável, dado o objeto de nosso trabalho, a Física, ser uma Ciência que, em sua constituição histórica, fabrica modelos para explicar o funcionamento da nature-za. Mas são os melhores? São corretos? Explicam a realidade? Podem ser colocados em discussão? Ou devemos adotá-los como respostas finais e dogmáticas? Em uma ou outra situação, em nossa prática do-cente, estará embutida a nossa idéia de Ciência.

Além disso, as pesquisas na área de ensino da Física indicam que o modo como é entendido o surgimento do conhecimento exerce influ-ência no contexto educacional, determinando a organização escolar, a definição de currículos e conteúdos e, consequentemente, a manei-ra de ensinar/aprender. Por esta razão, a epistemologia é considerada um dos pilares da Didática das Ciências.

Vejamos a seguir como nossa “verdade Física” mudou ao longo dos séculos.

1.3 O porquê da Epistemologia

Toda epistemologia é histórica ou não é epistemologia!

Sua historicidade advém porque se constrói a partir da história do conhecimento humano e também porque se modifica com as desco-bertas científicas, com as mudanças de valores e interesses.

A busca do entendimento de como surge o conhecimento científico não é nova e é fonte de controvérsias. A história registra que o ho-mem, desde a mais remota Antiguidade, buscou explicações e pro-curou respostas sobre o que e como pensa sobre si e as coisas que o cercam. No entanto, é na antiga Grécia que encontramos registros de uma série de explicações a respeito do mundo natural, sem o uso de elementos sobrenaturais. Mais que explicações particulares sobre a natureza, as respostas dos gregos se referiam a questões amplas, ou princípios metafísicos, que se fazem presentes ainda hoje nas indaga-ções do homem a respeito do universo e de si mesmo, tais como: mo-bilidade/imobilidade, contínuo/descontínuo, finito/infinito e outros. Esses princípios inspiraram alguns cientistas importantes, embora esses nem sempre tenham admitido ou tiveram consciência dessas influências.

Na Física, Kneller (1980) identifica a presença de dois desses princípios: o atomismo e o continuísmo. Nos trabalhos de Newton encontra-se a defesa do atomismo, princípio segundo o qual o mundo é composto por unidades distintas, que ocupam pon-tos ou regiões no espaço vazio. D’Alembert, Lagran-ge e Laplace, entre outros, são também personagens importantes nesta linha de pensamento. Este princípio havia sido proposto por Demócrito, na Antigui-dade. Já o continuísmo, idéia atribuída a Parmêni-des e também defendida por Aristóteles, pode ser identificado nos trabalhos de Descartes, Leibniz, Huyghens, Faraday, entre outros. O continuísmo caracteriza-se pela aversão ao vazio, por isso, consi-dera que a matéria está presente em toda parte.

Page 20: Livro de INSPE [Atualizado]

20

A partir do século XVII, iniciou-se a constituição de um conjunto de conhecimentos que deu respostas satisfatórias a problemas antigos e que, por sua sofisticação, utilização de métodos, etc., passou a ser de-finida como Ciência Moderna. Ela se distinguiu das demais formas de conhecimento quando seus resultados passaram a ser apresentados como consequência da experimentação e da matematização. A revo-lução científica, promovida essencialmente no século XVII pela Ciência Física, exerceu forte influência sobre a atividade filosófica. Várias ten-tativas de definir o processo de construção do conhecimento científico foram propostas. As ideias que enfatizavam o método como forma de validação do conhecimento influenciaram o pensamento filosófico desde o século XVII até o início do século XX e, como consequência, a organização social, política e educacional do mundo ocidental.

No início do século XX, novas teorias no campo da Física, tais como a Teoria da Relatividade e da Mecânica Quântica, colocaram em xe-que as leis da mecânica newtoniana, que representavam o caráter absolutista da Ciência em dar respostas “verdadeiras”. Nesse período, torna-se emergente a idéia de que o conhecimento não é descoberto, mas uma construção humana transitória e dinâmica.

A História da Ciência e a Epistemologia são apaixonantes. O evoluir do pensamento humano na elaboração de explicações é algo extraor-dinário: as influências sociais, as censuras, a hegemonia de correntes filosóficas, as limitações técnicas e outras tantas interferências que ao longo dos séculos compuseram o caldo histórico em que a Ciência se estabelecia.

Nossa intenção não é esgotar este assunto neste capítulo, apenas mos-trar alguns elementos que serão importantes ao longo desta Unidade. Por certo, ler-refletir-discutir Filosofia e Epistemologia não é muito do feitio do Professor de Física – mas é de grande valor este exercício. Como vimos e veremos, é de suma importância termos consciência e conhecimento de que a “Lei de Newton”, “Conceito de Inércia”, “Cam-po magnético”… não foram meros objetos enunciados ao acaso por cientistas. Cada um deles tem uma história e sua aceitação que, por vezes, não foi lá muito pacífica.

Deve ficar claro para nós, professores de Física, que não ensinamos dogmas ou verdades absolutas, mas conhecimento científico, ela-borado historicamente pelo Homem e que, portanto, é e deverá ser (sempre!) objeto de dúvida, no sentido de sua validação, por melhor coerência e resultado que possa ter e nos fornecer “naquele/neste momento histórico”, ele é transitório.

Page 21: Livro de INSPE [Atualizado]

21Elementos de Epistemologia

Origens da CiênCia

(Extrato de: RONAN, C. A . História Ilustrada da Ciência. Rio de Janeiro:

Jorge Zahar, 1987. p. 12-20, v. I.

A ciência tem demonstrado ser uma enorme aventura intelectual. Enga-

jar-se nela requer uma vívida imaginação criadora temperada por uma firme

disciplina, baseada num corpo consistente de observações comprovadas, e

a ciência tem atraído alguns dos melhores intelectos de cada civilização que

se desenvolveu até um estágio em que lhe é possível enfrentar o desafio da

natureza. Porque a ciência não se resume apenas na coleta de fatos – embora

isso seja necessário; é um sistema de correlação lógica dos fatos que, juntos,

consolidam uma hipótese ou o corpo de uma teoria. Essa teoria é por si mes-

ma temperada pelas perspectivas proporcionadas pelos tempos em que é

formulada. A teoria deve ser sólida o suficiente para atrair intelectos treinados

no pensamento lógico e, ao mesmo tempo, bastante aberta para deixar es-

paço a desenvolvimentos e ajustamentos, à luz de descobertas mais recentes.

Tal teoria, por vezes conhecida como um paradigma, mudará, de tempos em

tempos, por inúmeras razões, como veremos. A ciência é um conjunto de co-

nhecimentos crescentes e em expansão, até o ponto em que aquelas mudan-

ças são motivadas por experiências ainda mais complexas, mas, quando estas

são provocadas por motivos religiosos, filosóficos, sociais ou econômicos, a

história se prende a todas as oscilações da história mais geral.

CiênCia: uma síntese da natureza

É impossível examinar a história ou a teoria da ciência sem se defrontar

com a magia. Esta era um complexo amálgama de espiritismo e arcano. Para

quem não tenda a imaginar a ciência moderna meramente como uma tau-

maturgia, a própria menção da magia neste contexto pode parecer estranha

ou até inaceitável. Contudo, aquilo que aparentemente constitui abordagens

totalmente disparatadas da natureza contém, na verdade, muitos fatores co-

muns. A magia foi um modo legítimo de expressar uma síntese do mundo

natural e do seu relacionamento com o homem. Quando, numa sociedade

primitiva, o mago, impostor ou curandeiro se propõe provocar chuva por

meios artificiais, ele expressa sua compreensão de uma ligação entre a chuva

e o crescimento das plantações, entre um e outro aspecto da natureza e sua

estimativa de que a sobrevivência do homem depende do comportamento

do mundo natural. Ele sente que há alguma conexão entre o homem e o

mundo que o cerca, algum entendimento primitivo de que, conhecido o pro-

cedimento correto, o homem pode controlar as forças da natureza e colocá-

las a seu serviço.

TexTo 1

Page 22: Livro de INSPE [Atualizado]

22

Quais eram as crenças essenciais da magia, tal como foi encontrada entre

os povos mais antigos e como ainda persiste em algumas culturas atuais mais

primitivas? A magia exprimiu o quem de um modo geral, era uma visão aní-

mica da natureza. O mundo era povoado e controlado por espíritos e forças

espirituais ocultas, que habitavam talvez os animais, ou as árvores, ou o mar e

o vento, e a função do mago consistia em submeter essas forças ao seu obje-

tivo, persuadir os espíritos a cooperar. Fazia invocações, lançava feitiços e pre-

parava poções, pois via um mundo de afinidades e solidariedade. Esse ponto

de vista podia conduzir à magia imitativa e complacente: comer a carne de

um animal para absorver algumas de suas qualidades, ou se vestir como os

animais e representar sua captura e morte, a fim de que sua caçada pudesse

ser bafejada pelo sucesso. Através do desenho, da pintura ou de estatuetas de

animais, o homem com a vida e com as condições que ele encontrava ao seu

redor, em um mundo onde as forças eram personificadas e tudo tinha uma

influência específica.

O mago podia ter uma visão sutil das relações existentes entre os elemen-

tos da natureza, e sues atos de manipulação, por mais errados que muitas

vezes fossem, conduziam, tal como deviam, a um certo conhecimento empí-

rico de várias substâncias. Os ingredientes das poções, por exemplo, podiam

ter sido originalmente escolhidos por suas associações mágicas, mas, gra-

dualmente, seu sucesso ou fracasso mostraria quais eram os genuinamente

eficazes. Lentamente, um conjunto de conhecimentos práticos seria reunido,

usado e desenvolvido à luz da experiência, de tal forma que, gradualmente, o

mago veio a se tornar o primeiro de uma linhagem de investigadores experi-

mentais e o ancestral remoto do cientista moderno. E quando passou a adotar

processos mais realistas a fim de obter seu bem-estar, com a construção, por

exemplo, de sistemas de irrigação, o homem começo, consciente ou subcons-

cientemente, a relegar os poderes do mundo dos espíritos a um papel mais

de cooperação que de intervenção direta. Durante milhares de anos, as duas

formas de abordagem coexistiram lado a lado num estado de relativa trégua,

e, à medida que as técnicas de controle da natureza do homem se tornaram

mais eficientes, o mundo dos espíritos foi forçado a redefinir seu papel.

Quando se pensava que o mundo era constituído de afinidades, domi-

nados por espíritos e forças anímicas, o ponto de vista mágico era um meio

apropriado de correlacionar os fenômenos do mundo natural. Mas, com o

desenvolvimento da sociedade no antigo Oriente Médio, um interesse pelos

detalhes dos fenômenos naturais deu origem a uma forma de conhecimento

mais “sólida”. Enquanto isso, a magia foi sendo lentamente rebaixada: suas

qualidades místicas foram mal empregadas para fins particulares, dando ori-

gem à feitiçaria, ou para interesse público, criando uma poderosa casta sacer-

dotal capaz de dominar os ignorantes e crédulos. Essa degradação, por sua

vez, levou os filósofos da antiga Grécia a adotarem uma orientação total con-

Page 23: Livro de INSPE [Atualizado]

23Elementos de Epistemologia

trária à magia. Assim, eles criaram a atitude de pensamento que permaneceu

central na cultura científica ocidental.

Existem aqueles que negam ter havido uma ciência genuína nos tempos

pré-históricos. Para eles, a medicina primitiva, a cirurgia pré-histórica e a tec-

nologia de então eram todas puramente práticas, sem qualquer abstração

dos princípios subjacentes. Contudo, pelo que se conhece de magia, está

claro que havia uma doutrina básica e um conjunto de princípios que esta-

beleciam que o mundo não era habitado apenas por um conjunto visível de

seres humanos, animais, plantas e minerais, mas também por um mundo

invisível de espíritos e forças espirituais. Algumas dessas forças podiam ser

percebidas por qualquer pessoa, como no caso do trovão e do relâmpago,

ou se manifestar através de um tremor de terra ou uma enchente. A doença

e a peste eram encaradas como manifestações dos espíritos do mal. Assim, os

fenômenos naturais do mundo físico eram relacionados com o mundo dos es-

píritos, e desenvolviam-se procedimentos para lidar com ambos os mundos.

Certamente, esses princípios básicos não seriam, hoje, considerados cientí-

ficos, mas, nos tempos primitivos, pressupor tais intervenções era um ato

de racionalização; oferecia um paradigma aceitável para explicar os diversos

fenômenos experimentados pelo homem.

Enquanto o conceito de um mundo divino operando no mundo da natu-

reza era o ponto de vista corrente, o sacerdote ou mago-sacerdote tinha um

aspecto científico para seu conhecimento; por um lado, ele tinha o conheci-

mento da natureza e, por outro, o acesso aos deuses. Não havia conflito entre

ciência e religião; ambas eram aspectos interligados do mundo real. Nas civi-

lizações pré-históricas e primitivas, a ciência era um amálgama de explicações

naturais e espirituais. Ela é representada aqui como ciência tanto por ser um

meio racional de correlacionar os fatos observados, como por conter pepitas

de verdade, e algumas observações e explicações que seriam gradualmente

reunidas, vindo a produzir, um dia, visão não mágica.

Os sacerdotes, como no Egito antigo, muitas vezes adquiriam poder atra-

vés de sua função como guardiães do conhecimento científico. Em muitos

lugares, como veremos, o conhecimento científico era intimamente ligado ao

calendário e ao ano agrícola; tal conhecimento, portanto, significava poder

sobre o povo, por meio de regulamentos e controles; assim, alguns aspectos

da ciência – a astronomia, por exemplo – eram, muitas vezes, segredos de

Estado solidamente guardados. A posse de tal conhecimento, secreto ou não,

era símbolo de elevado status social. Em algumas sociedades mais antigas,

como a grega, isso fez com que se desse grande ênfase ao lado intelectual

da ciência, comparado com seus aspectos mais práticos (manuais) e experi-

mentais.

Page 24: Livro de INSPE [Atualizado]

24

Qual era a essência da “nova abordagem”, cujos indícios podemos en-

contrar, por exemplo, nos tempos remotos da Babilônia? Como ela diferia do

conhecimento esotérico e manipulatório que a sucedeu? A nova síntese era

uma correlação racional de experiências, um esquema para explicar fenôme-

nos naturais, sem recorrer a quaisquer elementos ocultos ou sobrenaturais.

Ela eliminou a intervenção de seres divinos: o trovão não era a manifestação

da ira de Marduk; era, ao contrário, o resultado de alguma “força cega”, que

operava sem qualquer implicação sobrenatural. Havia deuses – a nova visão

não adotou necessariamente a ateísmo, embora seus praticantes fossem, às

vezes, acusados de professá-lo –, mas a divindade ou divindades eram man-

tidas em seus lugares. Como Galileu gostava de citar, um milênio depois, “a

Bíblia mostra o caminho que leva ao céu, não os caminhos que os céus se-

guem”. Acontecimentos naturais eram creditados a causas naturais. Padrões

gerais inflexíveis de comportamento eram procurados, verdadeiros para o

passado, o presente e o futuro, sem estarem sujeitos aos espíritos capricho-

sos, mas adequados apenas ao modo pelo qual o mundo é construído. Em

si mesmo, esse ponto de vista científico não é, necessariamente, mais lógico

que o mágico; é apenas um modo diferente de encarar a natureza, e baseia-

se em premissas diferentes. Assim, a perspectiva científica forneceu um meio

muito mais poderoso de compreender, predizer e controlar o mundo do que

o oferecido pela magia.

A luta para compreender o estranho mundo em que vivemos é nobre.

É um esforço contínuo. Nossa atual síntese científica é mais um passo na

estrada que leva a uma imagem mais ampla, mas não o último. Nossos para-

digmas serão substituídos por novos e aprimorados conjuntos de teoria. Por

exemplo, a crença universalmente aceita pelos filósofos científicos ocidentais

de que as estrelas e os planetas estavam fixos em esferas de cristal que gira-

vam em torno da Terra – crença que era suficientemente saturada de enigmas

sobre o movimento celeste para sobrepujar as mentes mais brilhantes – foi

substituída por um conceito de movimento no espaço vazio, que, por sua

vez, se transformou num novo desafio para os intelectos. Hoje, voltamo-nos

para o movimento regido pela gravitação universal em um universo relativista

espaço-temporal; isso representa o ápice do pensamento cosmológico mo-

derno. É bastante superior, em muitos aspectos, à doutrina das esferas, mas

não é a última palavra. Um novo modelo, mais abrangente, virá, sem dúvida,

substituí-lo.

Esse novo modelo não conterá qualquer magia, pois ela está desacredi-

tada. Mas, certamente, alguns indivíduos procurariam um novo modelo im-

pregnado de coloridos mágicos, de associação, de inter-relacionamento, até

de espiritismo. Eles acreditam que há fenômenos que se encontram além ou

fora do campo de ação da ciência moderna, mas tentam dar-lhes explicações

científicas. Falam de forças ou influências indefiníveis, seja porque o conceito

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25Elementos de Epistemologia

sobre elas não foi explorado adequadamente ou porque sua existência é uma

questão de fé, mais que de razão. Tais sugestões são em geral rejeitadas hoje

pela ciência, em parte porque os atuais paradigmas se mantêm inatacados e

ainda produtivos, mas, mais importante, nenhuma teoria alternativa proposta

até agora é bastante ampla nem gerou novas idéias que possam ser testadas

independentemente e provem ser verdadeiras ou falsas pela pedra de toque

da experimentação. As modernas teorias quase mágicas têm falhado até ago-

ra, não porque não se enquadram nas teorias modernas, mas porque não

são o resultado de investigação suficientemente disciplinada, intelectual ou

experimental. Porque a ciência, hoje, não é nada senão uma severa disciplina

prática e mental, na qual as hipóteses que não se possam provar somente

sobrevivem quando se mostram extremamente férteis.

CiênCia primitiva

A chamada ciência, tal como a descrevemos, brilhou inicialmente há cerca

de 10000 anos, ou mais, no Oriente Médio. Teve início quando o homem

começou a reunir conhecimentos, principalmente, mas não exclusivamente,

para a sua vida diária. Coligiam-se particularidades de plantas, mesmo das

que não tinham uso medicinal ou alimentício, e sua descrição devia-se pura-

mente a seu interesse intrínseco. Capturavam-se e catalogavam-se animais,

tanto os domésticos quanto os selvagens. E, com o decorrer do tempo, as

necessidades de sobrevivência também revelaram conhecimentos extraordi-

nários: meios para se levantar grandes pesos; descobertas de rolos, roldanas e

roda; desenvolvimento de técnicas agrícolas; curtume de peles; invenção da

tecelagem; criação da cerâmica, e fundição de alguns materiais. Houve de-

monstrações de grande engenhosidade; a primeira utilização da mandioca na

América Central é um excelente exemplo. Cultivava-se a mandioca por suas

raízes tuberosas, que são empregadas na fabricação de farinha, pão, tapioca,

goma para passar roupa e bebida alcoólica, mas, em seu estado natural, os

tubérculos são tóxicos. O veneno – uma forma de cianureto – é removido pe-

las ações combinadas de ralar, espremer e aquecer os tubérculos. Mas como

os índios da América Central descobriram essa técnica? O reconhecimento da

toxidade dos tubérculos talvez não tenha requerido muita engenhosidade,

mas a remoção do veneno e a utilização da raiz como alimento numa dieta

básica mostram uma lógica investigadora. Essa lógica foi inicialmente con-

cebida em termos de padrões de relacionamentos materiais diretos, e então,

mais tarde, em termos de idéias e teorias mais gerais.

Nos tempos pré-históricos, o homem descobriu o emprego das drogas

extraídas de ervas e, algumas vezes, adicionou outros materiais à sua far-

macopéia primitiva, ao passo que os pastores e agricultores que mantinham

rebanho – os animais foram domesticados pela primeira vez por volta de

7000 a.C. – devem ter aprendido muito acerca da reprodução dos animais

e algo sobre suas moléstias, a cura de doenças e técnicas de restauração de

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26

fraturas. O serviço das parteiras teria sido um dos mais remotos atendimentos

médicos, e estes, por sua vez, uma das primeiras profissões, embora ligados,

sem dúvida, à cerimônia religiosa.

O médico primitivo certamente empregava medicamentos feitos com

produtos de origem animal ou vegetal, mas seus serviços não terminavam aí.

Também recorria a encantamentos para afugentar os maus espíritos que se

acercavam de seus pacientes, e praticava a adivinhação. Esta podia assumir

inúmeras formas, inclusive a administração de uma forte poção a um animal

para testar sua eficácia: através desse procedimento ele podia vislumbrar a

colaboração dos bons espíritos ou a eficiência de sua magia – e de suas er-

vas. Além disso, poderia transferir a doença para outro ser vivo – exemplo

remoto do princípio do bode expiatório. Mas, quaisquer que fossem os meios

utilizados, ele estaria aumentando experiência e compilando um conjunto de

tratamentos.

Um dos mais surpreendentes aspectos do tratamento de saúde primitivo

foi a prática da trepanação, operação que consiste em perfurar o crânio. Qual

seria a razão dessa prática? É difícil responder; talvez para aliviar a pressão

causada por choques ou, possivelmente, para permitir a saída dos espíritos do

mal. Mas, não importa o motivo, essa operação era executada por pessoas vi-

vas, e só podemos presumir que se desse ao paciente uma espécie de aneste-

sia feita com ervas ou uma forte dose de álcool, que perfurar o osso com uma

broca de pedra devia ser um processo bastante demorado. A trepanação,

bem como outras cirurgias simples, abririam caminho para o conhecimento

do interior do corpo.

A transformação do conhecimento do homem daquilo que hoje chamarí-

amos ciências biológicas em uma ciência foi, porém, lenta. Durante um lon-

go tempo, ele só conseguiu coligir fatos desconexos e, vez por outra, juntar

algumas indicações detalhadas, mas a reunião de tudo isso em um esquema

coerente de conhecimentos era outro problema. Havia tantas variações, mes-

mo em animais e vegetais da mesma espécie, que se tornava difícil a sua

catalogação racional. Mas, ao se tratar do mundo da física, as coisas foram

bem diferentes. Nesse campo, a observação de causa e efeito era bem mais

fácil, e encontrar uma idéia subjacente que pudesse ser aplicada a uma gran-

de variedade de casos não era tarefa muito complicada. A idéia do número é

um exemplo.

Certamente, constatou-se bem cedo que o número pode ser aplicado

a uma grande variedade de coisas – a praticamente tudo. O homem é um

indivíduo, uma unidade; tem uma boca, um nariz, uma cabeça, um corpo.

Também possui dois olhos, dois ouvidos, dois braços, duas pernas. Há dois

sexos, que constituem uma dualidade. E há também qualidades como quente

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27Elementos de Epistemologia

e frio, seco e molhado, escuro e claro. Uma família – um homem, sua mulher

e um filho – formava uma trindade. Um banco de três pernas também exibia

um trio. A mão, com seu polegar e quatro dedos, constituía uma unidade (a

mão, o polegar), mas os dedos eram quatro, um quarteto de uns. Todos jun-

tos, o polegar e os dedos, faziam um cinco – quatro e um. Assim se chegou

aos fundamentos da aritmética.

Inicialmente, houve a idéia de contar: uma idéia abstrata que se podia

pensar sem a presença de qualquer objeto material. Podia-se pensar no um,

ou no dois, ou em qualquer número. Além disso, tais “números” pareciam

ter suas próprias propriedades. O número um era um componente de todos

eles; era universal. O dois também fazia parte de muitos números, em toda a

classe de números “pares”. Mas havia também outros números, os “ímpares”,

alguns dos quais não eram divisíveis por nenhum outro. Estes pareciam cons-

tituir números especiais, com uma individualidade única, uma significação

aparentemente misteriosa e potente, e não tardou muito para que surgisse

uma espécie de magia numérica, uma numerologia mística.

A técnica da aritmética, útil e poderosa, desenvolveu-se a par com a nu-

merologia, e logo os números aumentaram muito além daqueles que podiam

ser contados nos dedos dos pés e das mãos. Antes do surgimento da escrita,

isso apresentava algumas dificuldades; fazer entalhes em uma peça de ma-

deira era uma tarefa fácil, mas era monótono contá-los todas as vezes que

precisássemos saber o total.

A solução era usar grupos. Grupos de cinco podiam ser rapidamente re-

conhecidos; conjuntos de cinco entalhes, seguidos por um espaço antes do

próximo corte, eram fáceis de reconhecer e eliminavam a necessidade de

contar todos eles. E, naturalmente, cinco era apenas uma possibilidade de

agrupamento; havia outras. E, como veremos mais tarde, os maias escolhe-

ram o vinte, mas o grupo usado com maior freqüência era o de dez, baseado

nos dedos das mãos e dos pés.

Uma vez determinado o agrupamento ou “base” de um sistema numéri-

co, seguiu-se o desenvolvimento das quatro principais operações da aritméti-

ca: adição, subtração, multiplicação e divisão. Em especial, o conceito básico

de subtração foi o mais útil, pois com uma base podia ser mais conveniente

expressar o fato de que um número fosse, por exemplo, menor do que vinte

ou trinta ou algum múltiplo de outro grupo, do que especificar o número

contando desde o um. Assim, 29 é (30 – 1), 47 é (50 – 3), e assim por diante.

Com grupos de entalhes, ou feixe de galhos, esse método subtrativo podia ser

muito conveniente. E, certamente, contar grupos completos logo levaria da

adição à multiplicação, que é, essencialmente, uma extensão da adição, com

a vantagem de ser mais fácil e mais rápida ao lidar com números grandes.

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A astronomia talvez tenha sido o primeiro estudo distinto a incorporar

a aplicação da matemática. Para se usar o céu como relógio ou calendário,

necessita-se de números. E medir a distância entre a Lua e as estrelas e o ho-

rizonte também implica em emprego de números. Mas havia outra dimensão

para esse problema. Se se desejasse saber a que distância a Lua estava aci-

ma do horizonte, tinha-se que medir uma distância intocável. Solucionou-se

esse impasse empregando-se os seguintes métodos: esticava-se o braço e se

calculava quantos dedos comportava o espaço entre a Lua e o horizonte, ou

segurava-se um fio entre as mãos afastadas do corpo e se media a distância.

Os braços deveriam permanecer bem esticados, caso contrário, a resposta

não seria fiel. A medida era, portanto, diferente da de um comprimento co-

mum; e este foi o primeiro passo para se medir um ângulo, tipo de avaliação

que viria a se tornar de grande importância.

Tudo isso pode parecer muito bonito, mas é, em grande parte, conjectura.

Não sabemos quando o homem começou a medir ângulos, mas certamen-

te eram medidos na antiga Mesopotâmia e eram perfeitamente conhecidos

quando Stonehenge foi construída, no segundo milênio antes de Cristo. As

posições da Lua e das estrelas eram muito importantes para o homem pré-

histórico, e sua determinação implicava a medição de ângulos. Hoje, muitas

pessoas que vivem nas grandes cidades raramente, ou nunca, olharam para o

céu à noite; a Lua e as estrelas não causam nenhum impacto. Mas no campo,

longe da iluminação artificial, a situação é bem diferente, e, no Oriente Mé-

dio, o céu estrelado é particularmente notável, um traço inconfundível. Não

há dúvida de que o homem pré-histórico voltou seu olhar para o céu noturno,

e deve tê-lo feito ao mesmo tempo com espanto e curiosidade.

A aparência inconstante do céu era algo que cativava a mente e a imagi-

nação do homem primitivo. O lento e majestoso movimento do céu durante

a noite, conduzindo as estrelas de um lado a outro do horizonte, era uma

visão extraordinária. Da mesma forma, o movimento da Lua, que não apenas

se levantava e se punha, como as estrelas, mas também mudava de forma,

crescendo de uma fina linha no princípio do mês até se tornar um grande glo-

bo no céu, e depois minguar outra vez. Era também um medidor de tempo

quase ideal, pois levava apenas 29 ½ dias para completar seu ciclo de fases.

Todos os calendários primitivos eram baseados na Lua.

As próprias estrelas moviam-se como um todo através do céu, como se

toda a abóbada celeste girasse, e sua configuração, como podia ser reco-

nhecida, permanecia a mesma, noite após noite, ano após ano. Eram figuras

que uma comunidade podia identificar de forma diferente da outra, mas o

princípio básico que regia a escolha era o mesmo: reunir estrelas em grupos

que representavam animais, ou heróis e heroínas, ou os próprios deuses. Ha-

via também algumas estrelas errantes, que apareciam no céu de tempos em

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29Elementos de Epistemologia

tempos – as quais chamamos de planetas (palavra grega para “errante”). Seu

comportamento, aparentemente irregular, deve ter sido fonte de admiração

para o astrônomo pré-histórico, e seus movimentos deviam atuar como po-

deroso estimulante para a pesquisa científica.

O céu, então, apresentava um espetáculo continuamente variado, um

amálgama de regularidade e de surpresa aparente, pois não só os planetas

pareciam caprichosos, mas também o eram outros fenômenos do céu – a

aparição de estrelas que pareciam arremessar-se contra a Terra (“estrelas ca-

dentes”), a chegada imprevista de estrelas chamejantes (cometas), assim

como o arco-íris e os halos ao redor do Sol e da Lua. Nenhum homem poderia

ignorá-los ou deixar de experimentar seu fascínio. Na verdade, o céu sempre

atraiu a imaginação; as crenças inconstantes do homem a respeito dele, o de-

senvolvimento de suas idéias sobre a natureza do céu constituem um fio que

nos guia através do labirinto das diferenças culturais em várias civilizações. E,

além disso, as idéias a respeito do céu agem como um espelho, pois refletem

as crescentes atitudes científicas do homem, e serão particularmente úteis

para nós, à proporção que nossa história for se desenrolando.

Resumo

Saber da importância da Ciência em nossa vida e na sociedade não basta para que possamos ensinar Física. Faz-se necessário conhecer e entender um pouco da história deste conhecimento, isto é, como ele se organizou, portanto, conhecer a Epistemologia. Esta, como ramo da Filosofia, procura estudar a gênese do conhecimento no seu con-texto histórico-social. Adoção ou resistência a novas maneiras de in-terpretar o ato de fazer ciência é um dos seus objetos de estudo.

Lembrar que a Epistemologia é histórica e que isto nos remete ao ber-ço da elaboração do conhecimento cientifico.

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Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no capítulo, provocá-lo para uma discussão, dire-

cioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por que não, levá-lo a ponderar

sobre sua inclusão no planejamento de suas aulas. Não se sinta obrigado a

memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar uma resposta escrita consi-

derando a argumentação (prós e contras) proporcionada pelo capítulo. Bom

trabalho!

1) Faça uma reflexão sobre quais pontos a Epistemologia pode in-fluenciar no processo de ensino-aprendizagem.

2) Escreva algumas linhas justificando a um leigo que a Física “fun-ciona”, mas não é uma verdade absoluta e sim uma explicação fun-cional, transitória.

3) Comente a frase destacada contida no texto 1:

“A ciência não se resume à coleta de fatos”.

Quais argumentos você utilizaria para concordar ou discordar dela?

4) Procure o significado da palavra paradigma. Use o dicionário se necessário e contextualize o seu sentido em relação ao texto.

5) De que forma pode-se dizer que a magia e suas práticas estão na base da ciência moderna? Destaque extratos no texto que expressem esta posição e comente.

Referências

KNELLER, G. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro: Zahar; São Paulo: EDUSP, 1980.

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31Elementos de Epistemologia

2 Origem do conhecimento científico

31

A Ciência que ensinamos, ou a Física, para ficar mais claro, é fruto de uma hegemonia histórica. É comum se afirmar: Esta é a Ciências dos vitoriosos! Mas por que dos vitorio-sos? Vamos neste capítulo, muito rapidamente, pontuar alguns períodos da história com o objetivo de nos loca-lizar e permitir que possamos identificar as origens do pensamento ocidental, procurando caracterizar a cor-rente inatista/racionalista. Em particular, vamos expli-citar a formas cartesianas de chegar ao conhecimento. Uma das correntes de pensamento muito influente, para não dizer predominante até meados do século XX, é o empirismo, portanto, se faz conveniente sabermos como caracterizar a corrente empirista. Finalmente, vamos diferenciar um racionalista de um empirista.

2.1 A velha Grécia: berço do pensamento ocidental

Vem dos gregos o substrato dos conhecimentos de nossa sociedade, “eles criaram a atitude de pensamento que permaneceu central na cultura ocidental.”. (RONAN, 2001, p.14). É na Grécia que se inicia a tentativa do homem de buscar respostas não místicas sobre a natu-reza.

Partindo de crenças básicas que dirigiam suas explicações sobre a natureza, propuseram a idéia de átomo e vazio, a existência de forças de atração e repulsão e muitos dos princípios da geometria. Particu-larmente, as ideias de Platão e Aristóteles contribuíram e influencia-ram as bases do conhecimento produzido pela ciência.

Para Platão (428-347 a.C.), a Teoria das Ideias norteava as especula-ções científicas. O conhecimento verdadeiro é aquele em que a razão ultrapassa o mundo sensível e atinge o mundo das ideias, lugar dos modelos, das essências imutáveis de todas as coisas. Como consequ-ência, para ele, a matemática conseguia descrever as realidades não sensíveis e era capaz de se separar dos sentidos e da prática.

Entre todos os povos da Antigüidade ocidental, foram os gregos que não apenas colecionaram e examinaram fatos, mas também os fundiram em um grande esquema; que racionalizaram o universo inteiro, sem recorrer à magia ou a superstição. Foram os primeiros filósofos da natureza que formaram idéias e criaram interpretações que podiam manter-se por si mesmas, sem invocar qualquer deus para apoiar fraquezas ou obscurantismos em suas explanações. (RONAN, 2001, p.64)

Tudo o que se observa com os sentidos é aparência, não tem permanência. É uma imitação da verdadeira realidade, da idéia essencial, a qual é permanente e imutável.

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Por sua vez Aristóteles (384-322 a.C.) é conside-rado o filósofo que mais contribuiu para a ciência grega. Dentre sua numerosa obra, encontramos os estudos de lógica, apresentando as leis do raciocí-nio. Contrariando Platão, dava igual importância à matéria e à forma (idéia).

Aristóteles coloca o empírico em evidência e alia a indução à dedução para chegar ao conhecimen-to verdadeiro. Seu método, denominado indutivo-dedutivo, foi hegemônico por longo tempo. Sua sequência contempla os seguintes passos:

observação de um grande número de fatos, so-1) bre os quais reflito e, indutivamente, proponho uma hipótese;

a partir da hipótese, por dedução, analiso ou-2) tros fatos para checar a validade da mesma;

novos fatos são observados e submetidos à ve-3) rificação dos resultados deduzidos. Seria uma sequência do tipo observação (fatos) – indução – hipótese – dedução – fatos.

Durante a Idade Média, em uma tentativa de conciliar razão e fé, per-cebe-se forte influência das ideias de Platão na síntese de filosofia e religião, realizada no século IV por Santo Agostinho. Estabelece-se uma maneira de pensar o mundo – entenda-se aqui como explicar – seja o espiritual, seja o terreno. Esta síntese foi predominante durante vários séculos. Neste período, a obra de Aristóteles não era reconhe-cida e aceita pela Igreja. Somente no século XIII Santo Tomás de Aqui-no promoveu Aristóteles, permitindo a elaboração de uma espécie de nova síntese entre a religião e filosofia, agora considerando a obra de Aristóteles. A partir daí, outra forma de pensar o mundo é admitida e aceita, assumindo a dominância até meados do século XVI, quando já recebe as primeiras manifestações contrárias.

O contexto histórico que antecede a revolução científica do século XVII provocou modificações significativas na ordem política, social, econômica e religiosa do mundo ocidental (queda do feudalismo, criação das cidades, formação das monarquias nacionais, grandes navegações, reforma protestante, renascimento, etc). Evidentemente, estes fatos contribuíram para modificar a forma do homem pensar

Figura 2.1 - Charge extraída de: HARRIS, Sidney. A Ciência ri: o melhor remédio de Sidney Harris. Seleção e tradução de Jeses de Paula Assis, São Paulo: Editora UNESP, 2007. p. 81

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33Elementos de Epistemologia

sobre si e as coisas que o cercam. Nesse âmbito, são significativas as mudanças provocadas pelas propostas de Copérnico, Kepler, Galileu e Newton, as quais desencadeiam o início da Ciência Moderna.

A adoção do sistema copernicano significou a retirada da Terra do centro do universo. As leis de Kepler modificam a concepção do movi-mento circular uniforme dos planetas. A união entre experimentação e matemática, iniciada por Galileu, faz surgir um método de investi-gação que prioriza a descrição quantitativa dos fenômenos. As obser-vações astronômicas mostram a pequenez do planeta Terra em um sistema solar entre muitos outros. A lei da gravitação elimina a neces-sidade de explicações divinas para o movimento de esferas celestes.

Com a aceitação das explicações propostas por Newton se concretiza o rompimento definitivo com as concepções aristotélicas do universo. A nova ciência abandona a dimensão religiosa, separa razão e fé e desliga-se da filosofia, buscando seu próprio caminho; caminho este que estabelece a criação de modelos explicativos da natureza, base-ados na experimentação e matematização, instituindo-se o que se chama de Ciência Moderna.

A partir da revolução científica do século XVII, o homem passa a de-senvolver uma nova mentalidade sobre o conhecimento. Influencia-do pela revolução metodológica iniciada por Galileu, o pensamento moderno tem como preocupação a questão do método, que pode ser identificada tanto no conhecimento do ser como no problema do co-nhecimento (Teoria do Conhecimento).

Voltamos aos pontos já apresentados no capítulo anterior: mas qual o critério para se ter certeza se um conhecimento é verdadeiro? Qual a origem dos princípios racionais? As respostas dessas questões originam duas grandes correntes filosóficas, o racionalismo (também denomina-do inatismo) e o empirismo, que têm suas origens na Grécia antiga.

2.2 O racionalismo: razão e intuição

O racionalismo é a visão filosófica que salienta o poder da razão para se chegar à verdade. A fonte principal do conhecimento humano é o correto encaminhamento do pensamento. Nessa visão, a importância do método de pensamento está na necessidade de garantir que as imagens mentais correspondam aos objetos a que se referem.

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34

Os racionalistas caracterizam-se por entender que o conhecimento pode ser adquirido primariamente pelo poder do intelecto e, portanto, depende de estruturas mentais. Na relação sujeito e objeto, no ra-cionalismo, a ênfase é dada ao sujeito. O critério de verdade não é o sensório, isto é, o concreto ou a realidade objetiva, mas o intelectual e dedutivo. Em suma – a fonte de conhecimento está na razão!

O objeto (epistêmico) só existe porque o sujeito (epistêmico) o con-cebeu!

Várias foram, ao longo dos séculos, as posições racionalistas. São denominadas atualmente de racionalismo transcendente, teológico, moderno ou imanente e lógico. Platão, Santo Agostinho, Descartes e Kant representam variações dessa corrente fi losófi ca.

2.3 O empirismo: a experiência

A visão empirista caracteriza-se por admitir que a origem do conhe-cimento científi co é a experiência. Nessa visão, o conhecimento ver-dadeiro reside fora do homem e é adquirido através do que se aprende pelos sentidos. Não pode ser obtido guiado unicamente pela razão e deve se basear na observação neutra e na experimentação. Assim, na relação sujeito epistêmico-objeto epistêmico, o empirismo enfatiza o papel do objeto, do concreto, da realidade simples ou complexa. O co-nhecimento é, portanto, adquirido e pode ser descrito por termos ab-solutos como: “verdade”, “prova”, “confi rmação”, etc. Alguns autores referem-se ao empirismo como indutivismo, pelo fato dessas ideias serem baseadas no raciocínio indutivo.

Francis Bacon, um dos expoentes do empirismo, acreditando no pro-gresso e poder sobre a natureza através da Ciência, vinculou progres-so científi co ao progresso tecnológico, material e moral. Ele acreditava que o intelecto humano fazia generalizações que impediam o conhe-cimento. Por esse motivo, defendia a idéia de que o verdadeiro conhe-cimento era aquele descoberto fora do homem, por meio de observa-ções objetivas e imparciais da natureza que, por indução, resultariam em leis e teorias. Instituía assim a “neutralidade do observador”.

Locke, Hume, Comte, Hempel são nomes que representam variações da visão empirista. Auguste Comte, em particular, ao aprofundar o questionamento sobre as bases do conhecimento científi co, inaugura

Entende-se por objeto epistêmico tanto a

realidade simples como a complexa.

Entende-se por sujeito epistêmico o homem,

o cientista, enfi m, onde se localiza o poder da

razão.

Aproveite e releia o Texto 1 do livro de Didática Geral

(DELIZOICOV, 2008, p.14)

Certamente é um bom momento para reler o

texto sobre Francis Bacon no livro de Fundamentos Filosófi cos da Educação,

paginas 47 e 48.

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35Elementos de Epistemologia

a tão conhecida corrente positivista, que se tornou muito infl uente, no início do século XX, na visão epistemológica do positivismo lógico.

Se der tempo não esqueça de reler o capítulo 2 do seu livro Funda-mentos Filosófi cos da Educação, além de uma excelente revisão, au-xiliará em pontos que eventualmente fi caram dúbios.

2.4 Enfi m, como pensar? Tem método?

Qual o signifi cado de método? Tente construí-lo. Conseguiu?

Se hoje parece fácil ou aparentemente fácil propor um signifi cado, é importante que se diga que signifi cados deste tipo só se tornaram consensuais durante o século XIX, quando pareceu que se havia en-tendido como a ciência funcionava. Antes e depois deste período, muito se discutiu sobre as bases de apoio da prática científi ca, ou me-lhor, de onde viria a supremacia da ciência em relação às demais for-mas de produzir conhecimentos (em particular, sobre o conhecimento religioso e mitológico).

Na batalha entre empiristas e racionalistas (inatistas), no campo da epistemologia da ciência, os vencedores se encontraram do lado dos primeiros. Os seguidores de Bacon, Newton e outros aperfeiçoaram a forma de conceber a produção da ciência. Está concepção apresentou sua forma mais sofi sticada no início do século XX com o título de positivismo-lógico.

Assim, fi cou estabelecido, durante um bom tempo, que só poderia ser pensado como científi co aquilo que estivesse diretamente ligado à observação. Neste sentido, o positivismo lógico acaba por negar muito daquilo que nós poderíamos considerar como científi co. Con-ceitos como força, energia, campo eletromagnético, corrente elétrica e sua interpretação física não seriam legitimamente científi cos, pois não estariam diretamente ligados à observação. Você já havia pen-sado sobre isto antes? Lembre-se que em uma experiência mecânica não se mede a força de uma mola, mas a variação de seu comprimen-to (sua deformação); em uma experiência de magnetostática não se mede o campo magnético, mas a rotação de uma bússola e assim por diante. Os positivistas-lógicos vão, desta forma, defender uma ciência

Positivismo lógico: movimento doutriná-rio, fundado por Moritz Schlick, que se caracteri-zava pela valorização do cientifi cismo, associando o empirismo ao formalis-mo lógico matemático. Para os partidários desta doutrina o conhecimento verdadeiro era aquele que podia ser provado a partir de postulados científi cos.

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36

que acaba por se reduzir a grandezas mensuráveis como distâncias, tempos, velocidades, acelerações, rotações, entre outras, ou seja, a tudo o que pode ser medido. Segundo eles, tudo que não pudesse ser mensurável deveria ser considerado como forma de comunica-ção (linguagem). Deveriam ser encarados como palavras que servem para comunicar, mas que não carregam em si próprios conteúdos de verdade.

O método científico (!), segundo eles, se resumiria ao bom encami-nhamento de perguntas que pudessem ser solucionadas por medidas experimentais. Muito do que se escreveu nos livros didáticos sobre este tema é uma versão positivista do método de funcionamento da ciência. A idéia difundida por estas obras de que o cientista observa a natureza de forma neutra, levanta hipóteses e faz experiências para obter respostas demonstra o quanto tais autores foram influenciados pela concepção positivista. E quem sabe o quanto nós fomos – em nossas aulas!

No próximo capítulo, mostraremos que a idéia de que a ciência fun-ciona através de um único método é um reducionismo – que mata a essência do fazer do cientista. Na ciência existe lugar para a imaginação, para a intuição, para a criação e para várias outras componentes que estariam fora da concepção positivista. A História da Ciência tem sido uma das formas mais contundentes de mostrar o quanto os positivistas se enganaram ao procurar o valor da ciência num modelo rígido e lógico de proceder. A racionalidade que permeia toda prática científica é muito mais variada do que três ou quatro re-gras presentes na apresentação de um único método.

Resumo

Neste capítulo procuramos demarcar os gregos como os “criadores” do pensamento ocidental. Destacamos seus filósofos expoentes, Pla-tão e Aristóteles, como precursores de duas escolas de pensamento: o racionalismo, fundamentado na razão, e o empirismo, fundamentado na experiência. A cada uma destas correntes ou escolas está conju-gado um “método científico”. Faz-se menção à disputa histórica de hegemonia dos métodos, indicando a vitória do empirismo, reforçada pela doutrina positivista.

Esquematicamente poderíamos resumir assim as escolas de pensa-mento:

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37Elementos de Epistemologia

A origem das setas indica quem é responsávelpela fonte do conhecimento

CONHECIMENTOCONCEPÇÃORACIONALISTA

SUJEITOEPISTÊMICO

(RAZÃO)

CONCEPÇÃOEMPIRISTA

OBJETOEPISTÊMICO

(REAL)

Texto integrante

Para melhor compreensão do assunto leia no seu Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (AVEA) o seguinte texto integrante:

CHAUI, Marilena. A razão: inata ou adquirida?. In: Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1998. p. 69-73.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no corpo principal e nos texto integrante, provo-

cá-lo para uma discussão, direcioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e,

por que não, levá-lo a ponderar sobre sua inclusão no planejamento de suas

aulas. Não se sinta obrigado a memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar

uma resposta escrita considerando a argumentação (prós e contras) propor-

cionada pelo capítulo. Bom trabalho!

1) Explique a frase de Platão: “Conhecer é recordar”.

2) Interprete o título de uma das principais obras de Descartes: “Dis-curso do Método”.

3) Quais as duas formas, segundo Descartes, de se chegar à verdade? Explique e justifique sua resposta.

4) Descreva as etapas do método experimental proposto por Bacon.

Page 38: Livro de INSPE [Atualizado]

38

5) Por que a discussão sobre as sensações é importante para os em-piristas?

6) Para Hume, as ciências são frutos do hábito de associar causas e efeitos. Como poderia ser explicado isto a uma pessoa leiga? A ciência atual ainda se vale desta associação?

Referências

RONAN, C. A. História ilustrada da ciência. v. I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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39O método científico

3 O método científico

39

Encerramos o capítulo anterior, acerca do método cienti-fico, com o entendimento de que havia uma única forma de se chegar ao conhecimento. Agora, vamos ampliar a gama dos argumentos para discutir o método científico. Dada a sua relevância histórica e a forte defesa de um úni-co método científico, precisamos conhecer e descrever as etapas de Bacon para o método experimental de-fendido por Francis Bacon. A tradição iniciada por Bacon está sintetizada nos passos do método científico tradicio-nal, predominando desde o século XVII até o século XX.

3.1 A concepção do Método Cientifico (a força inglesa...)

A concepção de método científico está intimamente relacionada com as teses empiristas defendidas pelos filósofos ingleses. Aliás, não é por acaso que a Inglaterra é berço de boa parte do conhecimento científico produzido a partir do século XVII, da revolução industrial e do nascimento do capitalismo.

Um desses filósofos é Francis Bacon (1561-1626). Em sua obra Novum Organum ele propõe o método experimental como o elemento capaz de neutralizar os quatro ídolos responsáveis pelo insucesso da ciên-cia e permitir observações livres de erros. As experiências deveriam ser conduzidas por um rigoroso método. Seu instrumento construtivo é a indução, ou seja, partindo-se dos fatos concretos, tais como ocor-rem na experiência, chega-se até as formas gerais, que constituem suas leis e causas.

Vamos fazer uso de um texto de C.A. Ronan para dar idéia melhor deste homem que influenciou deveras o pensamento inglês, por meio da tese empirista, e que marcou a História da Ciência e a Epistemolo-gia tão fortemente.

Os quatro ídolos são: os “ídolos da tribo”, que refe-rem-se às imperfeições do intelecto da tribo humana; os “ídolos da caverna”, que correspondem à tendência do indivíduo de tomar o seu mundo particular por verdadeira realidade; os “ídolos do foro”, que referem-se aos problemas da comunicação entre os homens e os significados das palavras e; os “ídolos do teatro”, que referem-se os erros provenientes das escolas filosóficas, que substituem o mundo real por um mundo fantástico.

“Organum” significa Instrumento. Instrumento para proceder corretamen-te o pensar. Na realidade, a “Organum” é o conjunto de obras de Aristóteles, incluindo Analíticos, onde é feita uma análise do pensamento nas suas par-tes integrantes. Bacon se contrapõe a esta obra com os “novos instrumentos” – Novum Organum.

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40

a ilha utópiCa de BaCOn

(RONAN, C. A. História Ilustrada da Ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

1987. p. 275-276, v. III)

“Havereis de compreender, caros amigos, que entre os excelentes atos

daquele rei, um acima de todos teve preeminência. Foi a fundação e institui-

ção de uma ordem ou sociedade a que nós chamamos Casa de Salomão (...).

O fim da nossa instituição é o conhecimento das causas e dos segredos dos

movimentos das coisas e a ampliação dos limites do império humano para a

realização de todas as coisas que forem possíveis.”

A Casa de Salomão é o centro da vida de uma ilha utópica imaginada por

Francis Bacon, em sua obra Nova Atlântida. Ela reúne sábios e cientistas, que

desenvolvem investigações cujos resultados são aplicados na prática, a fim de

proporcionar prosperidade e felicidade à população. Nova Atlântida realiza,

mesmo que imaginariamente, todo o pensamento de Bacon.

Um ambicioso que perdeu tudo

Filho de um importante nobre da corte real, Bacon nasceu em Londres,

em 1561. Realizou estudos de direito e, em 1584, foi eleito deputado da Câ-

mara dos Comuns, iniciando a sua carreira pública. Lançando mão de intri-

gas, obteve sob o reinado de Jaime I, diversos cargos influentes, como o de

procurador-geral, de fiscal-geral, e de grande chanceler. Em 1621, porém,

acusado de ter aceitado um suborno, foi condenado, perdendo todos os car-

gos. Morreu em 1626.

A ambição que marcou a carreira política de Bacon manifesta-se também

no seu pensamento: pretendeu nada menos do que a reforma total da ciên-

cia e planejou uma vasta obra sob o título geral, não menos ambicioso, de

Grande Instauração. Desse plano, no entanto, só desenvolveu uma pequena

parte. Mas ao denunciar os procedimentos tradicionais da ciência, apontou-

lhe novos rumos.

“Saber é poder”

Na obra Novum Organum – que já no título se contrapõe ao “velho” Or-

ganom de Aristóteles –, Bacon critica os quatro ídolos responsáveis pelo insu-

cesso da ciência. Os “ídolos da tribo” referem-se às imperfeições do intelecto,

inerentes à toda “tribo” humana, que levam os homens a acreditarem inge-

nuamente que nos dados dos sentidos ou em aspectos da realidade que lhes

são convenientes.

TexTo 2

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41O método científico

Os “ídolos da caverna” correspondem à predisposição do intelecto de

cada indivíduo, que, como os prisioneiros do “mito da caverna” de Platão,

toma o seu mundo particular por verdadeira realidade. Já os “ídolos do foro”

apontam para os problemas da comunicação entre os homens: as palavras

são tidas como idênticas às coisas que designam e, além disso, raramente há

um acordo sobre o que significam. Por fim, os “ídolos do teatro” indicam as

doutrinas filosóficas que, como o teatro, não passam de invencionices espe-

culativas.

Contra esses ídolos, Bacon propõe o método experimental. Não qualquer

experiência, pois isso sempre foi feito, mas as experiências conduzidas por um

rigoroso método. Por exemplo, o fenômeno do calor: para estudá-lo é preciso

que se elabore uma tabela exaustiva descrevendo as várias circunstâncias em

que ele se verifica (a incidência dos raios solares, o sangue no corpo, etc.).

Mas isso não basta. A investigação também requer o exame dos casos em que

o fenômeno não ocorre (raios da Lua, sangue em cadáveres, etc.). Por fim,

deve-se comparar os casos de ocorrência e de não-ocorrência do calor, para

estabelecer as relações possíveis entre ambos. O exame minucioso de vários

casos particulares e da relação entre eles permite formular uma conclusão

geral, que é o conhecimento: tal procedimento denomina-se indução.

Toda essa cuidadosa investigação sobre os fenômenos e as circunstâncias

em que ocorrem não se destina apenas ao aprimoramento do conhecimento.

Para Bacon, experiência é, antes de tudo, a possibilidade de utilizar as forças

da natureza para o proveito do homem. Conhecer as condições de ocorrência

de um fenômeno é então conhecer as possibilidades de sua manipulação.

Nessa medida, a instauração de um novo espírito científico, com seu método

rigoroso, e a tentativa de fazer com que a Nova Atlântida deixe de ser utopia,

um mero sonho de nenhum lugar. O desenvolvimento posterior da ciência,

embora nem sempre favorável ao homem, iria provar que a famosa expressão

de Bacon tinha, de certo modo, fundamento: “Saber é poder”.

3.2 A observação e a indução: os pilares do empirismo

Assim, Bacon estabelece as bases do empirismo: a obtenção de infor-mações por meio de rigorosas observações neutras dos fenômenos e a determinação de características gerais dos fatos por meio da indu-ção.

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42

As críticas de Bacon em relação à obra de Aristóteles, além daquelas referentes à sua praticidade, se referiam ao método de alcançar o co-nhecimento científico. Recapitulando, Aristóteles utilizava a experiên-cia sensitiva e a indução e dedução (silogismo) para elaborar o verda-deiro conhecimento. Para Bacon, o uso da dedução era perfeitamente dispensável, pois a indução era muito mais eficiente como método de descoberta. Para ele, “as ciências devem passar por uma nova forma de indução que analise a experiência e a reduza a elementos...; a missão dos sentidos deve ser apenas julgar a experiência, de sorte que é a própria experiência que julga as coisas”. (OMNÈS, 1996, p. 88). A nova “forma de indução” para Bacon, como afirma em sua obra, era interpretada como um processo metodológico, que começa distin-guindo “...inicialmente experiência vaga e experiência escritu-rada”. A primeira compreende o conjunto de noções recolhidas pelo observador quando opera ao acaso. A segunda abrange o conjunto de noções acumuladas pelo investigador quando, tendo sido posto de sobreaviso por determinado motivo, observa metodicamente e faz ex-perimentos.Como se percebe, é extremamente forte a defesa de (uma nova) indução e o papel da observação/experiência. Aliás, Bacon é o primeiro na história a diferenciar estes dois tipos de experiência. De certa forma, ele diz que o conhecimento está ao alcance de qualquer homem, “desde que” supere o vago e vá ao escriturado.

Portanto, para Bacon, a observação se coloca como a garantia de uma racionalidade que pertence à ordem de inteligibilidade, própria aos fenômenos sob investigação. Ela é considerada como segurança de autenticidade do conhecimento. A indução, por sua vez, possibilita a determinação das características gerais dos fatos que constituem os fenômenos, partindo de informações particulares e colocando a gene-ralização como um produto posterior do trabalho de coleta de dados. Isto significa que a generalização não deve ser buscada antecipada-mente, mas constatada a partir da observação de casos concretos suficientemente confirmadores dessa realidade.

3.3 A indução é um método confiável?

Observando-se o exemplo da indução que fornecemos acima, pode-mos concluir que a generalização efetuada a partir das observações está lógica e experimentalmente justificada. No entanto, uma atenção mais cuidadosa, resultará na conclusão de que as leis da lógica não asseguram a validade do processo indutivo. Isto porque nenhum con-junto de observações de homens, por maior e mais variado que seja, é

Considere-se o exemplo: João é mortal. Antonio é mortal. Pedro é mortal. José é mortal. .... João,

Antonio, Pedro, José, .... são homens. Logo, (todos)

os homens são mortais.

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43O método científi co

sufi ciente para justifi car logicamente a lei segundo a qual todo homem é mortal. Não há contradição formal, lógica, em se afi rmar que nem todos os homens são mortais. Isso pode contrariar o senso-comum, ou as leis biológicas, mas não as da lógica.

Há problemas para justifi car a indução também do ponto de vista ex-perimental. Este aspecto foi percebido pelos próprios empiristas nos séculos XVII e XVIII. Isto porque não há garantias de que a próxima observação coincida com as anteriores. Para contornar esta difi cul-dade, eles propuseram algumas condições de modo a assegurar a validade do salto indutivo: o número de observações de um dado fe-nômeno deve ser grande; devem-se variar amplamente as condições em que o fenômeno se produz; não deve existir qualquer observação que contrarie a lei.

Mas os problemas continuam, pois, para uma proposição geral qual-quer, não importa quão numerosas e variadas tenham sido as obser-vações que lhe forneceram suporte indutivo, é sempre possível que a próxima observação venha a contrariar as anteriores, falseando a proposição geral.

3.4 A observação é neutra?

Outro problema colocado aos empiristas se localiza no outro pilar do empirismo: a observação. Uma observação cuidadosa e sem precon-ceitos não resulta em uma base segura pra obter conhecimento. O fato de haver variedade de condições de observação já nos indica que uma observação pode ser diferente da outra. Então, se não houver uma diretriz teórica para guiar as observações, estas nunca poderão ser concluídas, uma vez que haveria a necessidade de considerar uma infi nidade de fatores. O cientista, quando vai ao laboratório, sempre tem uma idéia, ainda que provisória, do que deve ou não ser observa-do, controlado, variado.

Além disso, é falsa idéia de que todo observador aces-sa diretamente o objeto observado. Mesmo que as condições permaneçam as mesmas, é possível que um mesmo objeto permita interpretações diferentes, pois o processo de percepção depende também do conteúdo mental do observador. Um exemplo simples desta dependência é apresentado na fi gura ao lado. A mesma fi gura permite experiências visuais diferentes.

Um exemplo disso é a cor de um objeto. Ela se modifi cará se o ambiente for escurecido ou se a luz do ambiente for monocromática, ao invés de branca.

Figura 3.1 - É pato ou é coelho?

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Um observador pode percebê-la como apresentando um pato. Já ou-tro observador percebê-la como apresentando a visão de um coelho com as orelhas recolhidas. Afinal, quem está certo? Daí afirmar-se que a observação não é neutra! Ela depende do observador.

3.5 Críticas ao “método científico”

Como vimos, desde a sua proposição, o método científico vem sendo questionado. A cada questionamento, novas condições eram apre-sentadas ou as condições existentes eram refinadas. Do empirismo ingênuo, iniciado no século XVII, esta corrente filosófica exerceu sua influencia na sociedade ocidental até o século XX, quando atingiu seu ápice de sofisticação no positivismo lógico.

Além dos aspectos aqui discutidos, a história da ciência é uma fonte de situações nas quais os conhecimentos produzidos não foram obti-dos em obediência ao método proposto. É interessante ainda lembrar que há casos de proposições de leis científicas estimuladas por fatores não-empíricos.

Textos integrantes

Para melhor compreensão do assunto leia no seu Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (AVEA) os seguintes textos integrantes:

CHALMERS, Alan. O que é a ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 36-40.

CHALMERS, Alan. O que é a ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1999. p. 46-63.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no corpo principal e nos textos integrantes, pro-

vocá-lo para uma discussão, direcioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e,

por que não, levá-lo a ponderar sobre sua inclusão no planejamento de suas

aulas. Não se sinta obrigado a memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar

Page 45: Livro de INSPE [Atualizado]

45O método científico

uma resposta escrita considerando a argumentação (prós e contras) propor-

cionada pelo capítulo. Bom trabalho!

1) Explique, com suas palavras, o significa o termo indução? O que viria a ser um indutivista? Utilize para sua resposta, além dos Textos indicados acima, outras fontes, como dicionários, enciclopédias, tex-tos de apoio, etc.

2) Face ao fato do indutivismo ter se mostrado incapaz de funda-mentar a produção de conhecimento científico pode-se afirmar que a indução, enquanto prática, não é utilizada pela ciência? Quais os argumentos para responder a questão?

3) Relate alguma situação de sala de aula onde um expediente in-dutivista foi utilizado para justificar alguma lei ou propriedade física. Faça uma pesquisa em livros didáticos de Física para melhor exempli-ficar sua resposta.

4) Em que medida é correto afirmar que duas pessoas observando um mesmo objeto nem sempre enxergam a mesma coisa? Procure na da rede, na página de Instrumentação, as “figuras de ilusão”.

5) Comente a frase “há mais coisas no ato de enxergar que o que chega aos olhos”. Contextualize sua resposta com exemplos ou ilus-trações baseados no conhecimento da Física.

6) Explique por que um astrônomo não se dá ao trabalho de mencio-nar a cor de seus olhos num relato de observação sobre estrelas.

7) Por que a impossibilidade de se afirmar que a observação seja neutra é importante para o ensino de Física?

Referências

CHALMERS, A. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.

HESSEN, J. Teoria do conhecimento. Coimbra (Portugal): Armênio Amado, 1987.

OMNÉS, R. Filosofia da ciência contemporânea. São Paulo: UNESP, 1996.

RONAN, C. A. História ilustrada da ciência. v. III. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

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47Rompendo com o método

4 Rompendo com o método

47

Descontentes com a concepção pregada pelo positivismo lógico, intelectuais do século XX oferecem novas formas de conceber a elaboração do conhecimento científico. Neste capítulo, você terá a oportunidade de conhecer o pensa-mento de Popper, com sua proposta de falseacionismo, de chegar às Revoluções Científicas, caracterizando o termo paradigmas no olhar de Kunh e de entender os conceitos de ruptura, obstáculos e superação de Bachelard.

4.1 Novas concepções de pensar a Ciência

No início do século XX, mesmo com os problemas que discutimos an-teriormente, a visão epistemológica dominante era o empirismo, em sua forma mais sofisticada – o positivismo lógico. Em 1934, em Viena, Karl Popper publica seu livro “Logik der Forschung”, no qual contesta as bases do positivismo lógico. Mas esta obra ficou desconhecida até 1959, quando foi traduzida para o inglês, sob o título (em português): A lógica da pesquisa científica. A discussão das teses popperianas, soma-das a outros aspectos de ordem política, social, econômica e científi-ca, promoveu um período de fecundas discussões epistemológicas e o surgimento de outras concepções a respeito da atividade científica.

A idéia central de Popper é a substituição do empirismo justificacio-nista-indutivista pelo racionalismo crítico ou por um empirismo não-justificacionista e não-indutivista, que ficou conhecido por falseacio-nismo. Popper rejeita que as teorias científicas sejam construídas por um processo indutivo a partir de uma base empírica neutra, propondo que todo conhecimento é falível e provisório. Para ele, as teorias são criações livres da mente, destinadas a ajustar-se tão bem quanto pos-sível ao conjunto de fenômenos de que tratam. Uma vez proposta, uma teoria deve ser rigorosamente testada por observações e experi-mentos. Se falhar, deve ser sumariamente eliminada e substituída por outra capaz de passar nos testes em que a anterior falhou, bem como em todos aqueles nos quais tenha passado. Assim, a ciência avança por um processo de tentativa e erro, conjeturas e refutações.

É agora! Faça uma releitura do seu livro Fundamentos Filosóficos da Educação, seção 3.3 – Popper e o princípio de falseabilidade.

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Para Popper, é a refutabilidade de uma teoria que lhe confere cien-tificidade e não sua impossível prova a partir de uma base empírica. Ele argumenta que somente as teorias passíveis de serem falseadas por observações fornecem informação sobre o mundo; as que este-jam fora do alcance da refutação empírica não possuem “pontos de contato” com a realidade, e sobre ela nada dizem, mesmo quando na aparência digam, caindo no âmbito da metafísica. O aprimoramento do conhecimento científico reside na atitude de colocar sob crítica (dúvida) todas as teorias. Alguns dos exemplos preferidos de Popper de teorias irrefutáveis e, portanto, não-científicas são a astrologia, a psicanálise e o marxismo. Você teria outros exemplos?

A visão falseacionista escapa do problema da justificação da indução porque ela não tem a pretensão de provar indutivamente as teorias. O vínculo empírico das teorias se localiza em sua refutabilidade. Deste modo, o falseacionismo explora a assimetria lógica que existe entre os processos de inferência de proposições particulares a partir de pro-posições gerais e de gerais a partir de particulares: se nenhum conjunto finito de proposições particulares pode levar logicamente uma propo-sição geral, a falsidade de uma proposição particular acarreta logica-mente a falsidade da proposição que representa a sua generalização. Outra vantagem da concepção falseacionista está em não pretender que a investigação científica comece por observações. Isso isenta o falseacionismo de várias das objeções filosóficas, especialmente da restrição relativa à necessidade de diretrizes teóricas na condução das observações (contraponto ao empirismo). Este aspecto também permite compreender alguns dos processos ocorridos na produção do conhecimento científico.

Esta posição filosófica força a formulação das teorias de maneira clara e precisa. De fato, não é fácil ver como uma teoria obscura ou impre-cisa possa ser submetida a testes rigorosos e, ainda que o seja, poderá ser sempre salva de um veredicto desfavorável por meio de reinter-pretações, de manobras semânticas, o que trai sua irrefutabilidade e, portanto, o seu caráter não-científico.

Embora represente um avanço em relação à concepção empirista, o falseacionismo também apresenta limitações. Mesmo as versões mais sofisticadas do falseacionismo não estão isentas de dificuldades, o que deu lugar ao surgimento de diversas teorias da ciência alternativas.

A dificuldade mais fundamental enfrentada pelo falseacionismo é o chamado “problema de Duhem-Quine”. As teorias reais ou de algum interesse nunca são proposições gerais isoladas, mas conjuntos de

Ou a ação de contradizer, de se opor.

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49Rompendo com o método

tais proposições, e só podem ser submetidas a testes empíricos quan-do suplementadas por teorias e hipóteses auxiliares (como as referen-tes ao funcionamento dos aparelhos de medida eventualmente em-pregados na observação), proposições acerca das condições iniciais e de contorno, etc. Se o complexo de proposições permite inferir uma proposição que conflita com alguma proposição empírica, o máximo que a lógica nos informa é que o conjunto de proposições está refuta-do, caso se assuma a verdade da proposição empírica. Mas não nos habilita indicar qual proposição é responsável por essa refutação.

O problema de Duhem-Quine incide sobre os próprios fundamentos da concepção falseacionista de ciência. Sua relevância é acentuada pelo testemunho da História da Ciência, que fornece muitos exemplos de conflitos entre previsões teóricas e observações que foram resolvidos não pelo abandono da teoria particular que levou à previsão, mas por ajustes nas teorias auxiliares solicitadas para a realização do teste.

É necessário mencionar ainda que a ênfase que dá ao processo de falseamento das teorias conduz frequentemente a uma subestimação do papel das confirmações – entendidas como evidências empíricas favoráveis.

4.2 O senso comum e o conhecimento científico: uma ruptura

“Nós não vemos as coisas como elas são! Nós vemos as coisas como nós somos !”

Foge-nos, no momento, onde encontramos a frase acima, mas seu autor foi extremamente feliz. Parece refletir com muita propriedade a sensação e interpretação que cada ser humano tem em relação às “coisas que o rodeiam”. Como tal, implica que o mesmo “objeto/coi-sa”, a princípio, possa ter inúmeras interpretações.

A convivência dos seres humanos não determina uma uniformidade de pensamento, porém leva à necessidade de, pelo menos, aproxi-mar interpretações relativas aos diferentes acontecimentos ou coisas. Dessa forma, estabelece-se, quase que obrigatoriamente, uma espé-cie de negociação que adota como referência um padrão comum para o diálogo, os sentidos e as sensações. O objetivo dessa negociação é

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50

diminuir o grau de referência individual, estabelecendo interpretações comunitárias aceitas coletivamente.

Este mundo é aquele que partilhamos com os indivíduos que

nos rodeiam e mesmo com aqueles que não nos são tão pró-

ximos. Ao nos referirmos a coisas do mundo temos certeza de

sermos entendidos, pois sabemos que nossos interlocutores

partilham do mesmo mundo que nós, inclusive atribuindo aos

objetos que neles existem os mesmos nomes e significados.

(PIETROCOLA, 2000).

O produto dessas negociações compõe um estoque de informações denominado de senso comum, conhecimento vulgar. O senso comum tem por princípio aceitar que diferentes pessoas, frente ao mesmo fe-nômeno, sempre vêem a mesma coisa.

O ser humano em seu cotidiano, desde o início dos tempos, preci-sou realizar ações e agir sobre o seu meio ambiente, pelos mais di-ferentes motivos, desde a mera sobrevivência até a competição com seus semelhantes. Enfim, é relativamente fácil imaginar algumas das inúmeras situações com as quais nossos antepassados se confronta-ram. Neste ambiente, onde os mais variados elementos, influências e circunstâncias se fizeram/fazem presentes no proceder diário do ser humano, é que se constroem as ideias que irão compor o senso co-mum. A aceitação comunitária dessas ideias as torna “verdades” que passam a ser transmitidas ao longo das gerações.

O conhecimento que compõe o ideário do senso comum é a grande produção humana, no sentido de constituir-se de explicações e com-portamentos que se incorporaram ao longo do tempo, tornando difícil seu questionamento. Aceitar novas verdades significa alterar formas de pensamento e valores coletivamente aceitos. Este processo é extrema-mente lento e por vezes leva séculos. O senso comum gera uma ver-dadeira barreira de ideias que se reforçam mutuamente e que, por sua vez, acabam elaborando “verdades” que tendem a se perenizar. Ainda hoje, por certo, encontraremos pessoas que duvidam da chegada do homem à Lua ou que não acreditam que a Terra gira ao redor do Sol.

Falar do senso comum per se é algo bastante difícil, pois sua exis-tência e complexidade tornam-se perceptíveis por haver um conheci-mento científico, entre outros conhecimentos formais, para efeito de comparação. Nesta perspectiva é possível, então, através de contras-te, elaborar uma espécie de definição do que se entende por conheci-

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51Rompendo com o método

mento do senso comum. Uma definição interessante é a que diz que o senso comum

é um conjunto de informações não sistematizadas que aprende-

mos por processos formais, informais e, às vezes, inconscientes,

e que inclui um conjunto de valorações. Essas informações são,

no mais das vezes, fragmentárias e podem incluir fatos histó-

ricos verdadeiros, doutrinas religiosas, lendas ou parte delas,

princípios ideológicos às vezes conflitantes, informações cientí-

ficas popularizadas pelos meios de comunicação de massa, bem

como a experiência pessoal acumulada. Quando emitimos opi-

niões, lançamos mão desse estoque de coisas da maneira que

nos parece mais apropriada para justificar e tornar os argumen-

tos aceitáveis. (MATALLO JUNIOR, 1988, p.15)

Essa certamente não é uma “definição” simples, mas não há de se questionar a tentativa de representar a complexidade e amplitude desse conhecimento. As entrelinhas da definição deixam entrever que o senso comum dispensa o espaço escolar para ser “construído” pelo sujeito. Pode parecer trivial e óbvia esta constatação, mas ela é deve-ras importante e precisa ser considerada pelo espaço escolar quando esse recebe o “aprendiz” que será submetido ao processo de ensino-aprendizagem do conhecimento científico. Estabelece-se, neste mo-mento, um conflito entre conhecimentos!

Mas vamos retornar ao conhecimento científico e à epistemologia. Na virada do século XIX para o XX, a Física, como ciência, acusa o golpe da limitação newtoniana para explicar certos fenômenos, posterior-mente agregados ao que se denominou de Física Moderna. A quebra do contínuo, o nascimento da Mecânica Quântica e a publicação da Teoria da Relatividade põem em xeque o reducionismo do que deve ser adotado por todas as comunidades científicas, assim definindo/determinando a mesma perspectiva para moldar linearmente o co-nhecimento científico. Esta universalização de forma ou método para elaborar a Ciência hegemônica entra em crise.

4.3 Teorias como estruturas: a presença dos paradigmas

Foi convivendo em uma comunidade constituída, em sua maioria, por cientistas sociais que Kuhn verificou a existência de padrões de con-

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duta aparentemente diferentes daqueles presentes entre os cientistas das Ciências Naturais. Em particular, ele constatou a existência de muito desacordo no que diz respeito à natureza dos métodos e proble-mas científicos legítimos entre os cientistas sociais. Essa característi-ca levava o conhecimento produzido nessa área a ter uma valoração muito relativa, visto que grupos discordavam dos padrões emprega-dos na obtenção dos mesmos, não lhes conferindo caráter absoluto. Kuhn começou a duvidar de que os cientistas das Ciências Naturais possuíssem respostas mais firmes que os outros, entretanto percebia que, normalmente, os fundamentos da Física, da Astronomia, da Quí-mica ou da Biologia não eram questionados. Foi para tentar caracte-rizar a diferença entre os cientistas da área de Ciências Sociais e os cientistas da área de Ciências Naturais que ele construiu o conceito de “paradigma” (KUHN, 1995, p. 13).

Para realizar sua investigação, Kuhn delimitou o seu campo na ativi-dade científica, deixando de lado, neste momento, discussões sobre o papel do avanço tecnológico ou das condições sociais, econômicas e intelectuais no desenvolvimento da Ciência, mesmo crendo que essas condições pudessem influenciar o desenvolvimento científico.

Utilizando a análise histórica da atividade científica, ele passou a de-fender seus pontos de vista sobre como ocorre o desenvolvimento científico. Entretanto, colocando que, embora a História possa produ-zir transformações decisivas na imagem de Ciência que se tem, não existe garantia de que através dos livros, sejam eles livros clássicos, manuais utilizados por estudantes das Ciências Naturais ou de Histó-ria da Ciência, se consiga fazer surgir um novo conceito de Ciência. Isso porque, para ele, a maioria desses livros descrevem o desenvolvi-mento da Ciência por acumulação, do qual ele discorda.

Kuhn definiu inicialmente paradigma como sendo “realizações cientí-ficas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, forne-cem problemas e soluções modelares para uma comunidade de pra-ticantes de uma Ciência”. (KUHN, 1995, p. 13). O termo paradigma é utilizado por Kuhn em vários momentos e com significações diferen-tes. Isso gerou certo número de críticas da parte da comunidade de fi-lósofos da Ciência. As respostas a estas e outras críticas constituíram-se no posfácio do livro referenciado, a partir da edição de 1969, no qual ele redefiniu mais claramente o termo, apresentando-o em dois sentidos. Num sentido mais geral, também dito o sentido sociológico do termo, é melhor designado por matriz disciplinar. São crenças (por crenças Kuhn se refere a crenças em modelos, inclusive os modelos estabelecidos por analogias e metáforas), valores compartilhados, tra-

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53Rompendo com o método

dições coerentes, constituídos por generalizações simbólicas, leis, teorias, aplicação e instrumentação, realizações científi cas universal-mente reconhecidas que fornecem problemas e soluções modelares, durante certo tempo, para um determinado grupo de praticantes de uma Ciência. Num sentido mais restrito, o termo paradigma é tam-bém entendido como “exemplares” ou exemplos compartilhados. Nes-se sentido, é defi nido como soluções concretas de “quebra-cabeças”, problemas e soluções técnicas relacionadas a um campo de conhe-cimento específi co. Para esta situação, paradigma está relacionado à resolução de problemas pelo estabelecimento de comparações com situações similares, para as quais um conjunto de pressupostos per-mitiu a solução.

Um paradigma pode ser caracterizado pelo fato de atrair um grupo duradouro de partidários e por ser fonte de problemas abertos para serem resolvidos. No conjunto paradigmático têm importância tanto as leis e teorias, quanto os procedimentos e aplicações, pois o pressu-posto de que determinados fatos ocorrerão infl uencia, conscientemen-te ou não, na decisão de utilizar um aparelho e o modo de empregá-lo. A maturidade de um campo científi co está vinculada à aquisição e ao compartilhamento de um paradigma. Isto porque seus adeptos não precisam anunciar seus pressupostos. Eles já são conhecidos. Estão nos manuais. Os trabalhos são apresentados na forma de artigos que são lidos por aqueles que o compartilham. Quanto mais sólido é um paradigma, mais distanciado das pessoas que não o conhecem fi cam os conhecimentos originados por ele, pois os leigos não detêm a lin-guagem paradigmática.

Ciência normal e paradigma são duas defi nições estreitamente vincu-ladas. O período de Ciência normal é caracterizado pela adesão estrita e dogmática dos cientistas a um paradigma. Ciência normal é defi nida como sendo o período no qual a pesquisa é fundamentada em reali-zações científi cas que são reconhecidas pela comunidade. No período de Ciência normal é inexpressivo o interesse na produção de grandes novidades, tanto no domínio dos conceitos quanto no domínio dos fe-nômenos. Para Kuhn, um paradigma não traz resposta a todos os pro-blemas, mas sim uma promessa de sucesso na solução dos mesmos.

A ciência normal não objetiva revelar novas espécies de fenôme-

nos, muitas vezes os novos nem são vistos. E os cientistas não

estão preocupados em buscar novas teorias... a pesquisa cientí-

fi ca normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos

e teorias já fornecidos pelo paradigma. (KUHN, 1995, p. 45).

Generalizações simbólicas são os componentes formais de uma matriz disciplinar, às vezes expressas de forma simbólica, que podem expressar uma lei e/ou defi nir os símbolos que nelas aparecem, como por exemplo:

ou

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54

Nesse período, os cientistas se preocupam em resolver problemas que são encarados como “quebra-cabeças”. Para esses “quebra-cabeças” o cientista converge sua atenção, preocupando-se em determinar fa-tos significativos, adequar fatos e teorias e/ou articular as teorias, de acordo com o paradigma existente.

A metáfora da Ciência normal como quebra-cabeças se esclarece pela existência do paradigma como se fosse a “regra do jogo”. Entretan-to, os paradigmas podem dirigir a pesquisa mesmo sem a existência de regras ou a explicitação delas. Em uma “Ciência madura” é fácil detectar a existência de paradigmas, mas as regras utilizadas nem sempre o são. Os cientistas podem concordar na identificação de um paradigma, mas discordar quanto a uma interpretação a respeito dele. O paradigma é um conhecimento tácito que nem sempre pode ser ar-ticulado explicitamente e que dispensa o esclarecimento de regras. A Mecânica Newtoniana é o paradigma da Física Clássica.

Kuhn acredita que a adoção de um paradigma propicia o avanço mais efetivo de um campo científico. Já numa comunidade científica em si-tuação pré-paradigmática (isto é, quando não existe um paradigma definido e há a convivência de várias interpretações) ocorre dispersão das atenções, pois cada um dos grupos se concentra nos problemas que suas interpretações podem resolver. Segundo ele, quando é ado-tado um paradigma as pesquisas avançam mais rapidamente.

A adoção dogmática de um paradigma caracteriza o que Kuhn define como “Ciência madura”, pois permite que os membros da comunidade se dediquem à ampliação e apro-fundamento contínuos do conhecimento científico. Por isso, o período de Ciência normal pode ser caracterizado como de atividade conservadora e cumulativa, porém es-sencial ao trabalho científico. A adoção de mais de um pa-radigma causaria confusão, uma vez que a interpretação sobre um mesmo objeto é diferente quando analisado por paradigmas diferentes.

A Ciência normal não se propõe a descobrir novidades ou contestar o paradigma no qual está embasada. Como o es-tudante, futuro cientista, aprende as bases de um paradig-ma e é doutrinado nele, raramente apresentará discordân-cia a respeito de seus pontos fundamentais. Entretanto, fenômenos novos e inesperados aparecem como resulta-dos das investigações e, como consequência, ocorrem as descobertas e as invenções. Essas novidades alteram o

“Sei que tudo isso não faz sentido, masé o paradigma ao qual estou preso.”

Figura 4.1 – Charge extraída de: HARRIS, Sidney. A Ciência ri: o melhor remédio de Sidney Harris. Seleção e tradução de Jesus de Paula Assis, São Paulo: Editora UNESP, 2007. p. 140

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55Rompendo com o método

conjunto paradigmático que, a partir daí, não será o mesmo de antes. O mundo do cientista se altera qualitativa e quantitativamente pelas novidades dos fatos e teorias.

A descoberta científica, segundo Kuhn, é consequência de uma Ano-malia – ou seja, de um fenômeno para o qual o paradigma não prepara o investigador. É a natureza não se comportando de acordo com as expectativas do paradigma. Esforços passam a ser dirigidos para que a teoria se ajuste ao fato. Este processo não se dá de uma hora para outra, pois “a descoberta de um novo tipo de fenômeno envolve o reconhecimento, tanto da existência de algo, como de sua natureza” (KUHN, 1995, p. 81) e o cientista apresenta certa resistência a ver as anomalias, devido às expectativas que ele tem.

Contudo, uma maior familiaridade dá origem à consciência de

uma anomalia ou permite relacionar o fato a algo que anterior-

mente não ocorreu conforme o previsto. Essa consciência da

anomalia inaugura um período no qual as categorias conceitu-

ais são adaptadas até que o que inicialmente era considerado

anômalo se converta no previsto. Nesse momento completa-se

a descoberta. (KUHN, 1995, p. 91).

A crise gerada pela impossibilidade de resposta do paradigma vigente a uma anomalia pode resultar em três situações, segundo Kuhn. A primeira delas é a resolução da anomalia pelo próprio paradigma. A segunda situação é o surgimento de um novo candidato a paradig-ma, com sua consequente batalha para ser aceito. E por último, a anomalia pode não ser resolvida por nenhum paradigma. Neste caso o trabalho para a sua solução é deixado para uma nova geração de cientistas.

Embora o período de Ciência normal se caracterize por ser um perío-do de empreendimentos não dirigidos a novidades, ele pode ser eficaz em provocá-las, pois quanto mais consolidado um paradigma, mais sensível ele será como indicador de anomalias, que aparecem mais claramente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma.

A invenção de novas teorias surge da consciência mais profunda das anomalias, num período de crise gerada pelo fracasso constante em conseguir os efeitos esperados. Nas palavras de Kuhn (1995, p. 95): “A emergência de novas teorias é precedida geralmente por um período de insegurança profissional pronunciada” causado por alterações nos problemas e técnicas da Ciência normal e destruição de paradigmas.

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Pela necessidade de estabelecer novas regras, surgem várias versões de teorias sobre o mesmo tema que competem entre si. O surgimento de várias versões de teorias pode gerar crise no paradigma de onde emergiram.

A teoria nova surge devido ao fracasso ocorrido na resolução de pro-blemas na Ciência normal. A solução do problema pode ter surgido antes da crise, mas não é percebida, pois ela ainda não ocorreu. A escolha de novas teorias ou de um novo paradigma pode ter deter-minantes históricos e externos à Ciência. Porém, uma teoria antiga com status de paradigma só é invalidada quando existe uma alterna-tiva disponível e consistente para substituí-la. “Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituí-lo por outro é rejeitar a própria Ciên-cia”. (KUHN, 1995, p. 108)

Este período de competição entre o paradigma vigente e o emergente é o que é denominado de período de Revolução Científica.

Revolução científica é, portanto, processo de mudança paradigmática. Período no qual ocorre a substituição ou mudança de paradigmas. Os questionamentos da validade de métodos e teorias geram crise, resultando no surgimento de novo paradigma, que promete solução de problemas importantes. Membros da comunidade científica resis-tem ao novo, mas se ele responde bem à solução dos problemas que o originaram, passa, pouco a pouco, a ser aceito, tornando-se então o paradigma dominante.

O período de revolução científica, segundo Kuhn, não pode ser clas-sificado como um processo cumulativo obtido através da articulação entre o velho e o novo paradigma. É um período de reconstrução!

Kuhn denominou este período de revolução pela analogia que faz en-tre um momento de revolução política e mudança paradigmática. Para ele, ambas surgem da insatisfação de um grupo com situações gera-das pelo próprio paradigma. Em ambas ocorre competição entre os campos, na qual uns defendem a permanência e outros a mudança.

Durante um período de transição, o antigo paradigma e o novo com-petem pela preferência da comunidade. Eles apresentarão concepções diferentes da natureza e proporão questões que considerarão signi-ficativas, legítimas e fundamentais. Os paradigmas rivais oferecem lentes conceituais diferentes, por meio das quais o mundo passa a ser visualizado. Do ponto de vista do novo paradigma, alguns conceitos

Reler Secção 3.4 – Thomas Kuhn e as revoluções

paradigmáticas, no seu livro Fundamentos

Filosóficos da Educação e o Texto 2 (p. 16) do

livro de Didática Geral – Revoluções Cientificas e Ciência Normal na Sala

de Aula.

O termo revolução científica é adotado

por Kuhn também para mudanças menores, não

só para alterações radicais de concepção de mundo.

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57Rompendo com o método

do paradigma antigo perderão importância ou passarão a ter signifi-cados diferentes.

Para mostrar essas diferenças em ver o mundo, Kuhn utiliza a expres-são incomensurabilidade de paradigmas, já que ele considera que os defensores de cada um dos paradigmas estarão se expressando com linguagens diferentes, o que inviabiliza, a priori, uma comunicação entre os dois grupos. Portanto, julga necessário buscar um processo de “tradução” para racionalizar os debates entre os paradigmas. Esse processo de tradução consiste na busca de um vocabulário compar-tilhado, em encontrar uma forma de estar no lugar do outro. Ao invés de fundamentadas em provas lógicas, as decisões envolvendo a es-colha entre teorias dependerão de discussões entre os membros da comunidade, os quais compartilham de valores, tais como precisão, consistência, amplitude de aplicação, simplicidade e fertilidade, que serão utilizados na comparação entre as teorias rivais.

As ideias defendidas por Kuhn desencadearam uma série de discus-sões que contribuíram para o aprofundamento de reflexões sobre o tema. Surgiram também alguns questionamentos sobre determina-dos pontos de vista de Kuhn, sendo que um deles dizia respeito à definição de paradigma. Outro questionamento foi quanto ao fato dele considerar paradigmas rivais incomensuráveis. Face às críticas que recebeu de Lakatos, Popper e Scheffler, Kuhn explicitou melhor o que queria dizer sobre incomensurabilidade de paradigmas no posfácio de seu livro na edição de 1969. (1995, p. 217).

Também causou bastante polêmica a posição de Kuhn sobre a atitude dogmática do cientista frente a um paradigma. Kuhn dá substancial importância à existência de regras claramente estabelecidas e que são seguidas pelos praticantes de uma determinada atividade científi-ca. Quando discute sobre isso, discorda do espírito aberto do cientis-ta, o investigador sem preconceitos, defendido pelo positivismo lógi-co, como também da atitude de falseamento que Popper prescrevia ao cientista. Essa última atitude Kuhn até admite que o cientista possa ter, mas apenas no período de revolução científica, quando está em busca de um novo paradigma que lhe aponte melhores possibilidades na resolução de um problema. O cientista é treinado dentro de um pa-radigma e este pressupõe a adesão dogmática a preceitos integrantes deste paradigma, bem como a crença de que os problemas com que se defronta podem ser resolvidos por ele. Para Kuhn, a existência do dogma é condição para que uma Ciência seja considerada madura. Pois, para ele, a partir da aceitação dogmática de um paradigma é que

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os cientistas podem orientar seus estudos para problemas complexos e aprofundá-los, sem se preocupar com pressupostos, já assegurados pelo paradigma adotado. Até porque é do estudo profundo dos proble-mas que surgem as anomalias passíveis de provocar uma mudança paradigmática. A adoção dogmática de um paradigma é, portanto, fator de aumento de eficiência na investigação.

Kuhn é acusado de usar a palavra dogma obtendo um efeito que re-sulta de um jogo de palavras, pois não são vistos como dogmas mui-tos dos pontos por ele caracterizados como tal. A descrição de Kuhn de comunidade científica é a de uma sociedade essencialmente fecha-da, cujos componentes estão sujeitos a paradigmas sagrados e que é constantemente abalada por colapsos nervosos coletivos quando há uma crise gerada pela falta de respostas de um paradigma a um deter-minado problema. Por esse motivo, ele foi acusado de estabelecer uma analogia entre a comunidade científica e a comunidade religiosa.

4.4 O construtivismo epistemológico

As mudanças de ideias provocadas, dentre outros fatores, pela física moderna começaram a minar a crença de que a ciência é fonte de conhecimento verdadeiro. Argumentos filosóficos, psicológicos e lógi-cos foram utilizados para demonstrar que o conhecimento não pode ser provado ou confirmado. Isto conduziu para a proposta de que o conhecimento não é descoberto, mas é uma construção humana (que é sempre subjetiva).

No início do século XX, surge a visão filosófica construtivista que, contrariando as visões anteriores, propõe que o conhecimento não é descoberto, é uma construção humana transitória, dinâmica e não é verdade absoluta. O construtivismo substitui o “absolutismo” da tradi-ção empirista e racionalista.

O construtivismo pressupõe que a teoria precede a observação e que as observações podem ser selecionadas e conduzidas somente através de expectativas teóricas (este ponto também era aceito pelos racionalistas). A construção de teorias depende de como o homem vê o mundo. A idéia de que somos prisioneiros de nossas estruturas mentais (surgida com Kant) é descartada pela visão construtivista, que assume a possibilidade do homem romper com as estruturas e construir uma nova.

Uma ênfase mais acentuada da defesa

de que a Ciência normal avança devido

à adoção dogmática de um paradigma pode

ser encontrada no seu trabalho de 1963 A função do dogma na investigação

científica (KUHN, 1974), o qual, com algumas

modificações, também integra o livro referenciado A Estrutura das Revoluções

Científicas, publicado inicialmente em 1962.

Seria interessante uma releitura sobre Kant no livro de Fundamentos

Filosóficos da Educação, página 61.

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59Rompendo com o método

Para o construtivismo o conhecimento é construído a partir de uma relação dinâmica entre o sujeito e o objeto. Popper, Bachelard, Kuhn, Lakatos e Feyerabend são epistemólogos contemporâneos que apre-sentam, no bojo da visão construtivista, diferentes possibilidades de interpretação da atividade científica. Apresentamos a seguir um texto que oferece a interpretação de Gaston Bachelard relativa a esta práti-ca e que será base para questões de aprendizagem.

a ruptura entre O COnheCimentO COmum e COnheCimentO CientífiCO nas CiênCias físiCas

(Extrato de: LOPES, Alice R. C. Bachelard, o filósofo da desilusão. Caderno

Catarinense de Ensino de Física, UFSC. Florianópolis, 1996. v. 13, n. 3,

p. 258-266)

Segundo as concepções empírico-positivistas, o conhecimento advém da

experiência: há um real dado em que a razão deve se apoiar. O real é um todo

único, composto de fatos, fenômenos que se apresentam ao experimenta-

dor e que pressupõem, portanto, uma única razão capaz de dar conta dessa

multiplicidade desconexa. Entendidas de uma maneira mais ampla, as con-

cepções realistas, campo no qual o empirismo se enquadra, compreendem o

modelo da teoria do reflexo (Schaff, 1991: 63-98). O conhecimento, enquan-

to produto do processo de conhecer, reflete o real e tanto mais objetivo e

científico será, quanto maior for o grau de reflexão alcançado.

Mesmo as concepções positivistas, que avançam ao salientar a necessi-

dade de referencial teórico, definidor da forma de interpretar os fatos, não

rompem com a concepção realista. A verdade está na Natureza, no fenôme-

no, e cabe ao pesquisador revela-la, torna-la visível aos olhos, à razão. Para o

empirismo, a construção racional só se pode estruturar a partir da experiência

sensível. Para o positivismo, a teoria é uma rede de pescar dados, mas os dados

é que orientarão a elaboração de novas teorias.

A concepção realista da Natureza, tão cara aos filósofos da matriz empí-

rico-positivista, sofre seu primeiro grande abalo com o estabelecimento da

hipótese quântica por Max Planck, em 1900. Segundo comentários de Hei-

senberg (1987: 29-30), o próprio Planck custou a aceitar o rompimento com

os pressupostos da Física Clássica, dado seu conservadorismo. Contudo, teve

que se render à necessidade de postular a descontinuidade na energia para in-

terpretação da radiação térmica de um corpo negro, trabalho que iniciou um

campo de investigação dos mais ricos neste século: a Mecânica Quântica.

TexTo 3

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60

Ao interpretar as conseqüências da Mecânica Quântica para o campo

epistemológico, o filósofo francês faz-nos compreender distinção entre real

científico e real dado. Na ciência, não trabalhamos com o que se encontra

visível na homogeneidade panorâmica. Ao contrario, precisamos ultrapassar

as aparências, pois o aparente é sempre fonte de enganos, de erros, e o co-

nhecimento científico se estrutura através da superação desses erros, em um

constante processo de ruptura com o que se pensava conhecido. Conforme

aponta Canguilhem (1972a: 52), para Bachelard a ciência não capta ou cap-

tura o real, ela indica a direção e a organização intelectual, segundo as quais

nos asseguramos que nos aproximamos do real. É no caminho do verdadeiro

que o pensamento encontra o real; a realidade do mundo está sempre para

ser retomada, sob responsabilidade da razão.

Com efeito, para Bachelard não devemos ver no real a razão determinante

da objetividade: o problema da verdade não deriva do problema da sua reali-

dade. O que entendemos por realidade faz-se em função de uma organização

do pensamento. Por isso, ele afirma que devemos colocar o problema da ob-

jetividade em termos de métodos de objetivação: uma prova de objetividade

existe sempre em relação a um método de objetivação, a objetivação de um

pensamento à procura do real (Bachelard, 1984b: 40-42).

Ao contrário, para o senso comum, a realidade objetiva é uma só: aquela

que se apresenta aos sentidos; o real aparente faz parte do senso comum.

Portanto, será essencialmente a partir do rompimento com esse conhecimen-

to comum que se constituirá o conhecimento científico.

Contra essa concepção unitária do real se colocará Bachelard:

(...) será demasiado cômodo confiar-se uma vez mais a um realismo totalitário

e unitário, e responder-nos: tudo é real, o elétron, o núcleo, o átomo, a molé-

cula, a micela, o mineral, o planeta, o astro, a nebulosa. Em nosso ponto de

vista, nem tudo é real da mesma maneira, a substancia não tem, em todos os

níveis, a mesma coerência; a existência não é uma função monótona; não se

pode afirmar por toda parte e sempre no mesmo tom. (Bachelard, 1988: 54)

Por que nem tudo é real da mesma maneira? Por que a existência não é

uma função monótona? Porque há diferentes razoes constitutivas de diferen-

tes níveis de realidade. A realidade de um objeto que se apresenta aos olhos,

que pode ser tocado, que possui lugar e forma definidos, não é do mesmo

nível de realidade de uma molécula, a qual constitui e é constituída pela

teoria molecular a ela subjacente. Todavia, é necessário deixar claro que não

se trata de uma distinção entre realidade e idealização. Moléculas, átomos e

elétrons não são idéias que podem ser utilizadas enquanto os fatos assim o

permitem, ou ainda abstrações racionais com as quais formulamos teorias.

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61Rompendo com o método

Trata-se de uma outra ordem de realidade, que não pode ser compreendida

sem o uso da razão.

A construção do objeto de conhecimento nas ciências físicas – o real cien-

tífico – é realizada na relação sujeito-objeto, mediada pela técnica. A ciência

não descreve, ela produz fenômenos, com o instrumento mediador dos fenô-

menos sendo construído por um duplo processo instrumental e teórico. Mas

não devemos atribuir a essa relação um subjetivismo inexistente. No caso, a

influência da psique individual do pesquisador sobre o objeto de pesquisa,

geradora de um relativismo sem medida. Portanto, para compreendermos a

noção de real nas ciências físicas, a partir de Bachelard, precisamos ter muita

clara a noção de fenomenotécnica.

É preciso haver outros conceitos além dos conceitos ‘visuais’ para montar uma

técnica do agir-cientificamente-no-mundo e para promover a existência, me-

diante uma fenomenotécnica, fenômenos que não estão naturalmente-na-

natureza. Só por uma desrealização da experiência comum se pode atingir um

realismo da técnica científica. (Bachelard, 1986: 137, grifos nossos)

Em Le Rationalism Appliqué é feita a análise do espectrômetro de massa

como exemplo da estreita relação entre teoria e instrumento: o próprio ins-

trumento é teoria materializada, teorema retificado. As trajetórias que permi-

tem separar íons nesse aparelho são produzidas tecnicamente, sem nenhuma

seqüência com fenômenos naturais. Existe a teoria que permite a construção

do aparelho e a teoria que permite a interpretação dos resultados; teoria essa

que só adquire valor pelo processo de aplicação experimental.

Por isso, Canguilhem (1994: 191) afirma que na ciência moderna, para

Bachelard, os instrumentos não são mais objetos auxiliares. Eles são os novos

órgãos que a inteligência se dá para colocar fora do circuito científico os ór-

gãos dos sentidos, na qualidade de receptores.

Na análise da ciência química feita por Bachelard (1972), podemos com-

preender melhor o processo de construção de fenômenos. A Química, em sua

história, rompe com o imediato e abre espaços para o construído, criando e

atuando sobre a natureza através da técnica. Ou seja, a Química transforma-se

em uma ciência elaborada sobre as bases de uma fenomenotécnica. Um bom

exemplo disso são os processos de sínteses de substâncias químicas inexisten-

tes na Natureza, produzidas a partir do objetivo de se construir determinada

propriedade. O químico pensa e trabalha em um mundo recomeçado. Se a

natureza possui uma ordem, a Química não se faz a partir dessa ordem: o

químico constrói uma ordem artificial sobre a natureza. A razão química, em

seu diálogo com a técnica, avança na realização do possível. E o possível nun-

ca é gratuito, mas já está incluído em um programa de realização, já ordena

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62

experiências para a realização (Bachelard, 1973); o possível não é o que existe

naturalmente, mas o que pode ser produzido artificialmente.

Com a diferenciação entre fenômeno e fenomenotécnica completa-se a

distinção entre real dado e real científico. O fenômeno é o dado real, o mero

evento. O real só adquire o caráter de científico se é objeto de um fenome-

notécnica. Ampliamos, conseqüentemente, a compreensão de porque Bache-

lard afirma que não podemos falar de uma função monótona do real; no real

científico é necessário o diálogo da razão com a experiência para estabelecer

o processo de construção racional, mediado pela técnica.

Na medida em que o real científico se diferencia do real dado, o conhe-

cimento comum, fundamentado no real dado, no empirismo das primeiras

impressões, é contraditório com o conhecimento científico. O conhecimento

comum lida com um mundo dado, constituído por fenômenos; o conheci-

mento científico trabalha em um mundo recomeçado, estruturado em uma

fenomenotécnica. É nesse sentido que o conhecimento comum acaba por

se constituir em um obstáculo epistemológico ao conhecimento científico,

exigindo que efetuemos o que Bachelard denomina de psicanálise do conhe-

cimento objetivo.

Bachelard aborda os obstáculos epistemológicos, especialmente em La

formation de l’ésprit scientifique. Nessa obra, ele afirma a necessidade de va-

lorização do pensamento científico abstrato e aponta a experiência imediata

como um obstáculo ao desenvolvimento dessa abstração. Na medida em que

a história das ciências é uma história julgada, esse julgamento se faz através

da análise dos obstáculos epistemológicos. Tal análise é que permite à história

das ciências ser autenticamente uma história do pensamento (Canguilhem,

1947: 8-9).

(...) nos propomos a mostrar este destino grandioso do pensamento científico

abstrato. Para isso devemos provar que pensamento abstrato não é sinônimo

de má consciência científica, como a acusação trivial parece dizer. Devere-

mos provar que a abstração desembaraça o espírito, que ela o alivia e que

ela o dinamiza. Proporcionaremos essas provas estudando mais particular-

mente as dificuldades das abstrações corretas, assinalando as insuficiências

dos primeiros intentos, o peso dos primeiros esquemas, ao mesmo tempo em

que destacamos o caráter discursivo da coerência abstrata e essencial que

nunca logra seu objetivo da primeira vez. E para mostrar melhor que o pro-

cesso de abstração não é uniforme, não titubearemos em empregar às vezes

um tom polemico, insistindo sobre o caráter de obstáculo que apresenta a

experiência, estimada concreta e real, estimada natural e imediata (Bache-

lard, 1947: 8-9).

Page 63: Livro de INSPE [Atualizado]

63Rompendo com o método

Como sempre conhecemos contra um conhecimento anterior, retificando

erros da experiência comum e construindo a experiência científica em diálo-

go constante com a razão, precisamos constantemente superar os obstáculos

epistemológicos.

Não se trata de considerar os obstáculos externos, como a complexidade ou

fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a debilidade dos sentidos ou do

espírito humano: é no ato mesmo de conhecer, intimamente, onde aparecem,

por uma espécie de necessidade funcional, os entopercimentos e as confusões.

É aí onde mostraremos as causas de estancamento e até de retrocesso, é aí

onde discerniremos causas de inércia que chamaremos obstáculos epistemoló-

gicos (Bachelard, 1947: 15)

Como já analisamos, o erro é entendido como necessário e intrínseco ao

conhecimento e justamente o conceito de obstáculo epistemológico é que

funda positivamente a obrigação de errar (Canguilhem, 1994: 204). Segundo

Lecourt (1980: 26), o obstáculo epistemológico tende a se manifestar mais

decisivamente para mascarar o processo de ruptura entre o conhecimento

comum e conhecimento científico, quando o pensamento procurar prender

o conhecimento real no aparente. Os obstáculos epistemológicos tendem a

constituir-se, então, como anti-rupturas (Parente: 1990: 62), pontos de resis-

tência do pensamento ao próprio pensamento (Lecourt, 1980: 26), instinto

de conservação do pensamento,uma preferência pelas respostas e não pelas

questões (Canguilhem, 1994: 177). A razão acomodada ao que já conhece,

procurando manter a continuidade do conhecimento, opõe-se à retificação

dos erros ao introduzir um número excessivo de analogias, metáforas e ima-

gens no próprio ato de conhecer, com o fim de tornar familiar todo conheci-

mento abstrato, constituindo, assim, os obstáculos epistemológicos.

Não podemos, contudo, considerar que Bachelard defende a impossibi-

lidade de utilização de metáforas e imagens. Sua posição é de que a razão

não se pode acomodar a elas, devendo estar pronta a desconstruí-las sem-

pre que o processo de construção do conhecimento científico assim o exigir

(Bachelard, 1970: 63). Há mesmo em sua obra uma discussão a respeito das

boas e das más imagens, as imagens indispensáveis e as imagens prejudiciais.

As boas imagens, úteis para descrever um mundo que não se vê, devem ser

empregadas em instância de redução: redução a ser feita pela matematização.

Temos que entender as imagens como uma instituição de meios matemáticos

de compreensão racional das leis e não como uma afirmação dogmática da

realidade.

Mesmo porque, a crítica às imagens em Bachelard as associa à crítica à

concepção ocularista de conhecimento, que nos faz encarar a visão como

sentido fundamental do saber: se conseguimos formular imagens de um fe-

Page 64: Livro de INSPE [Atualizado]

64

nômeno. Todavia, com o advento da Mecânica Quântica – a Física do mundo

sub-microscópico – a equivalência entre ver e conhecer se destrói. De nada

nos adiantaria ter super-olhos para enxergar esse novo mundo. Conhecemos

com a razão e as imagens devem ser entendidas como modelos de raciocínio,

nunca reflexos do real.

Acrescente-se a isso, o fato de que a obra de Bachelard é elaborada em

contraposição à teoria bergsoniana, especialmente a noção de intuição. Se-

gundo Ginestier (1968: 28), a intuição para Bergson constitui um dado ime-

diato da consciência e uma arma antiintelectualista, associada ao instinto.

Há uma incomensurabilidade entre a intuição simples do filósofo e os meios

de que dispõe para explicá-la. Bachelard considera esse entendimento de

Bergson como a autodestruição da intuição, pois um bom método não se

pode dar o direito de falar de um conhecimento que não se entende como

comunicável (citado por Ginestier, 1968: 29). Afinal, um conhecimento pre-

cisa ser comunicado para ser questionado, para se submeter às exigências da

racionalidade.

Em contrapartida, ainda segundo análise de Ginestier, a intuição bache-

lardiana é sempre comunicável – não em sua formação, mas em seus resul-

tados – e se situa em dois níveis distintos. Há intuições sensíveis e intuições

racionais. A intuição sensível corresponde à produção espontânea de imagens

sugeridas pela ausência natural de explicação para o mundo que nos rodeia.

Trata-se do conhecimento imediato daquilo que provém dos sentidos (Japias-

su, 1996: 151). As intuições sensíveis representam o estado de repouso da

racionalidade e, por isso mesmo, precisam ser combatidas pelo pensamento

racional rigoroso, precisam ser retificadas, cedendo lugar às intuições racio-

nais. As intuições racionais se formulam na superação do imobilismo, revelam

novos problemas e novas idéias, correspondem ao conhecimento mediato

dos objetos da razão.

Tal crítica à intuição, às metáforas e às imagens constitui um traço mar-

cante na obra epistemológica de Bachelard. É apenas no campo da poesia,

no trabalho com o homem noturno, que Bachelard valoriza a imaginação,

entendida não como a faculdade de formar imagens da realidade, mas sim

como a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade. É uma

faculdade de sobre-humanidade (Bachelard, 1989a: 17-18). No campo do

diurno (a ciência), Bachelard questiona a ocularidade, a partir da crítica à

atitude contemplativa diante do conhecimento. Por outro lado, no campo do

noturno, Bachelard (1989a: 1-20) introduz a noção de imaginação material,

fundamentada na recuperação do mundo como provocação concreta e como

resistência, o mundo a ser modificado pelo homem. Com isso, ele se contra-

põe à imaginação formal, fundamentada na visão.

Page 65: Livro de INSPE [Atualizado]

65Rompendo com o método

Assim sendo, as relações entre ciência e imaginário são encaradas por Ba-

chelard como restritivas tanto de um campo, quanto de outro. Se na ciência

aplicarmos a imaginação imaginante, teremos uma ciência obnubilada pela

fantasia; se na poética tentarmos ser científicos, produziremos uma limitação

de devaneios, racionalizaremos canhestramente a poesia.

Podemos, então, concluir que as faces de Apolo e Dionísio se alternam,

nunca se encontram na unidade tantas vezes sonhada pelo homem. O que

reafirma a marca pluralista da obra bachelardiana. Mas como as seduções de

Dionísio a Apolo são muitas, o espírito científico deve permanecer em vigilân-

cia constante, certo de que a racionalidade nunca começa, sempre continua,

em um eterno processo de retificação. Por isso, Bachelard afirma:

Pode-se estranhar que um filósofo racionalista dedique tanta atenção a ilusões

e erros e que sinta incessantemente a necessidade de representar os valores ra-

cionais e as imagens claras como retificações de dados falsos. Na verdade, não

vemos a menor solidez numa racionalidade natural, imediata, elementar. Não

nos instalamos de chofre no conhecimento racional; não oferecemos de ime-

diato a justa perspectiva das imagens fundamentais (Bachelard, 1989a: 7)

Nesse sentido, os obstáculos epistemológicos nunca são definitivamente

superados, uma vez que o espírito científico sempre se apresenta com seus

conhecimentos anteriores; nunca é uma tábula rasa. E amalgamados aos co-

nhecimentos estão os preconceitos, as imagens familiares, a certeza das pri-

meiras idéias.

Frente ao real, o que se pensa saber, claramente ofusca o que se deveria sa-

ber. Quando sse apresenta ante à cultura científica, o espírito nunca é jovem.

Ao contrário é velhíssimo, pois tem a idade dos seus preconceitos (Bachelard,

1947: 16)

O primeiro obstáculo a superar é o da opinião. Não podemos ter opinião

sobre problemas que não conhecemos, sobre questões que não sabemos for-

mular claramente, afirma Bachelard (1947). É preciso que formulemos devida-

mente as perguntas a serem respondidas, os problemas a serem investigados,

pois os obstáculos epistemológicos se imiscuem justamente no conhecimento

não formulado.

Segundo Bachelard (1947), a noção de obstáculo epistemológico pode

ser estudada no desenvolvimento histórico do conhecimento científico e na

prática da educação. Em ambos os casos, o trabalho se vê dificultado pela

necessidade que temos de exercer um juízo epistemologicamente normativo:

julgar a eficácia de um pensamento.

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66

Bachelard elabora também a noção de atos epistemológicos, em oposi-

ção à noção de obstáculos epistemológicos (Bachelard, s.d.: 33). Os atos epis-

temológicos correspondem aos ímpetos do gênio científico que provocam

impulsos inesperados no curso do desenvolvimento científico. A história do

conhecimento científico é, assim, a constante oposição entre os atos episte-

mológicos que impulsionam o conhecimento e os obstáculos epistemológi-

cos que entravam esse mesmo conhecimento. Ou seja, uma dialética própria

que estrutura o movimento histórico do conhecimento científico.

Resumo

Neste capítulo foram introduzidas as novas concepções sobre o cons-truir do conhecimento, rompendo com a antiga visão positivista. Bus-camos em Popper, Bachelard e Kuhn, os mais destacados e conheci-dos epistemólogos da ciência, as novas concepções epistemológicas na vertente construtivista. É importante ressaltar que, se não há um consenso na interpretação entre estes autores, o fundamento de suas ideias é o mesmo: o conhecimento é produto da interação dinâmica entre o sujeito (homem epistêmico) e o objeto. Não se reduz a visão racionalista ou empiricista. E este pensar sobre como a ciência foi elaborada irá refletir sobre a nossa prática docente.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no capítulo, provocá-lo para uma discussão, dire-

cioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por que não, levá-lo a ponderar

sobre sua inclusão no planejamento de suas aulas. Não se sinta obrigado a

memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar uma resposta escrita consi-

derando a argumentação (prós e contras) proporcionada pelo capítulo. Bom

trabalho!

1) De acordo com o texto, o que você entende por falseacionismo?

2) Explique com suas palavras a diferença entre real dado e real científico proposta por Bachelard.

3) O que significa o termo fenomenotécnica?

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67Rompendo com o método

4) O conhecimento comum é um obstáculo ao conhecimento cientí-fico? Justifique.

5) Explique por que, segundo a concepção kuhniana da ciência, um cientista não deve ser crítico em relação ao paradigma vigente.

6) Descreva o paradigma da Mecânica Newtoniana.

7) Em que medida a Teoria da Relatividade se constituiu como resul-tado de uma crise da Mecânica clássica?

Sugestões de leituras

As obras listadas a seguir oferecem um excelente reforço teórico àqueles

que querem se aprofundar um pouco mais no estudo da epistemologia. São

textos muito interessantes e devem fazer parte da biblioteca de um professor

de Física.

BORGES, R. M. R. Em debate: cientificidade e educação em ciências. Porto Alegre: SE/CECIRS, 1996

CHALMERS, A. O que é ciência afinal?. São Paulo: Brasiliense, 1993.

______. A fabricação da ciência. São Paulo: Editora da Universidade Es-tadual Paulista, 1994.

DUTRA, L. H. D. A. Introdução à teoria da ciência. Florianópolis: EdUFSC, 1998.

LUZ, J. L. B. D. Introdução à epistemologia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.

ROCHA, J. F. M. Origens e evolução das ideias da física. Salvador: EDUFBA, 2002.

Caderno Catarinense de Ensino de Física. n. 13, v. 3, 1996. Disponí-vel em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/issue/view/ 391>.

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Referências

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Tradução por Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

KUHN, T. S. A Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1995.

KUHN, T. S. A função do dogma na investigação científica. In: DEUS, J. D. (Org.). A crítica da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 53-80.

MATALLO Jr., H. A problemática do conhecimento. In: CARVALHO, M. C. (Org.). Construindo o saber: técnicas de metodologia científica. Campinas: Papirus, 1988.

LOPES, Alice R. C. Bachelard, o filósofo da desilusão. Caderno Catarinense de Ensino de Física, UFSC. Florianópolis, 1996. v. 13, n. 3, p. 258-266.

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A Literatura Didática para o Ensino de Física

Unidade II

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Unidade II

A Literatura Didática para o Ensino de Física

Nesta unidade o grande objetivo é conhecer um pouco da “história” dos livros didáticos de Física, particularmente sua história no Brasil. Parece ser extremamente simples escolher um livro didático dentre os vários oferecidos e, de imediato, lecionar. O livro escolhido, seja por qual razão que no momento não vem ao caso, é produto de uma his-tória que combina interesses acadêmicos, sociais, curriculares, esco-lares, políticas públicas e, nos dias de hoje, editoriais e gráficos. Como se observa, é uma grande responsabilidade do professor de Física a escolha do livro mais adequado aos “seus” objetivos.

Vamos iniciar lembrando um tipo de livro didático há muito aposenta-do e, por muitos, desconhecido: o compêndio ou tratado. O compên-dio ou tratado é o pai (ou seria o avô?) dos atuais livros de Física para o Ensino Médio. Depois iremos dar uma olhada nos livros de Física utilizados até meados de 1960.

Na segunda metade da década de 50, muitos dos acontecimentos que ocorriam foram desdobramentos da Segunda Guerra Mundial em solo europeu, do lançamento da bomba atômica e do muro de Berlim. Este conjunto de episódios produziu reações sociais de toda ordem e, indi-retamente ou como consequência, também vieram influenciar o en-sino de ciência, em particular, de Física. É neste momento histórico que se inicia a “era dos projetos de ensino de Física”, no bojo do mo-vimento renovador do ensino de Ciências, que se estende nos EEUU e Europa quase até o fim da década de sessenta. Falaremos também do projeto estrangeiro elaborado no Brasil no biênio 1963-64, patrocina-do pela UNESCO.

No Brasil, em janeiro de 1970, no Instituto de Física da USP/SP, realiza-se o I SNEF – Simpósio Nacional de Ensino de Física, que vem ao encontro do anseio de inúmeros professores de Física, universitários e do Ensino Médio, preocupados com o Ensino de Física no Brasil. O resultado deste encontro é a organização imediata de dois grupos que iniciam a elaboração de dois projetos brasileiros para o ensino de Física.

Passados quarenta anos desse Simpósio histórico, pode-se afirmar que o ensino de Física no mundo teve dois momentos: antes e depois do PSSC. No Brasil existe um divisor de águas: antes e depois do 1º SNEF. Até o momento já foram realizados 18 sim-pósios, cujas atas permi-tem reconstituir a evolução da pesquisa em ensino de Física no Brasil, de sua infância à sua maturida-de. Seus pesquisadores conquistaram espaço e res-peito à medida que foram implementados cursos de mestrado e doutorado da área no país.

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73Os textos didáticos para o ensino de física

5 Os textos didáticos para o ensino de física

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Neste capítulo de aparência saudosista para alguns e bas-tante curioso para outros, vamos caracterizar um com-pêndio ou tratado. Vamos mostrar seus autores, como se organizava e a que público se dirigia. A seguir, faremos uma visita aos livros de Física adotados nos cursos “co-legial” ou “científico” aqui no Brasil até metade do século passado. As datas são apenas referencias histórica. Faça a leitura deste capítulo com dois olhares: o primeiro re-gistrando o quanto de conteúdo era trabalhado e o se-gundo, o mais importante, registrando a forma como o texto didático se apresentava. Lembre do que foi discutido na Unidade I sobre Epistemologia, concepção racionalista, empírica, etc.

Será que a concepção de ciência de um autor (ou dos autores) se re-flete na sua forma de escrever um texto didático?

Estamos chamando a atenção sobre isto, pois, a partir de agora, cha-maremos a atenção para assuntos que irão requerer o que discutimos, mesmo brevemente, sobre Epistemologia, concepções de ciência, em-pirismo e racionalismo.

5.1 Compêndio – o primeiro livro didático

Os livros didáticos cumprem um papel fundamental no processo de ensino, pois oferecem ao seu público um corpo de conhecimentos que, por sua seleção e organização, refletem um determinado padrão de profundidade e extensão. Neste sentido, poder-se-ia dizer que a adoção de um dado livro didático é um indicativo do padrão de ensino na instituição escolar. Queremos deixar claro que doravante, mesmo se omitido, estaremos sempre nos referindo aos textos didáticos de Física. Comparações com outras áreas do conhecimento não serão objetos de nossa discussão.

Durante o século XIX e até as primeiras décadas do século XX, a maioria dos livros didáticos de Física era produzida na forma de “com-

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pêndios” ou “tratados”. Não podemos esquecer que tais compêndios eram dirigidos aos alunos universitários, futuros profi ssionais que ingressariam no sistema produtivo de sua época (séc. XIX), dentre estes, e em especial, os que trabalhariam em Engenharia ou ramo similar. Os compêndios são bastante carregados e volumosos se com-parados aos livros didáticos atuais, universitários ou do ensino médio. O discurso literário (isto é, a forma de escrever o texto) era mono-córdio e o conhecimento era estruturado de uma forma “descritiva”, racionalmente encadeada. Entremeados aos conceitos e defi nições, os experimentos originais (aqueles realizados pelos cientistas) eram descritos passo a passo e, sempre que possível, acompanhados de esquemas e desenhos. A maioria dos compêndios não oferecia exercí-cios, problemas ou qualquer sugestão para o laboratório. A estrutura adotada considerava ser de competência do professor a preparação e realização daqueles experimentos descritos no texto e a proposição de problemas. Em uma avaliação coloquial diríamos que estes livros são “densos e pesados”.

Um compêndio é uma obra didática elaborada, geralmente, por um único professor e autor. Sua criação tomava por base as notas de aulas preparadas por seu autor, que as organizavam com o passar do tempo, resultando num livro que atendia toda a “Física Geral ou Clássica”. Muitos compêndios demoravam mais de uma década para serem elaborados e publicados. A sequência dos assuntos segue a tradição das antigas enciclopédias, que iniciam no estudo dos movi-mentos (Cinemática) e vão até as causas do movimento (Dinâmica), Gases, Calor, etc. Os compêndios europeus, em especial os de origem francesa, dominaram a literatura universitária e dos colégios brasilei-ros por um longo tempo.

Karl Lorenz, em trabalho publicado em 1986, analisou livros didáticos de ciências do período de 1838 a 1900 utilizados no Colégio Dom Pe-dro II (RJ) e concluiu que:

Portanto, a infl uência francesa sempre esteve presente nos cur-

rículos do Colégio e foi, também, muito marcante na sala de aula

devido à adoção de livros didáticos daquele país. O que torna

este fato mais notável é que, a infl uência francesa no ensino

superior diminui durante o século [entenda-se aqui o século XX,

por causa da publicação de livros didáticos de ciências escritos

por brasileiros. (LORENZ, 1986, p. 432).

De um só tom; pouco variado (discurso

monocórdio); monótono; enfadonho.

É muito instrutivo a leitura completa do artigo de

Lorenz “Os livros didáticos e o ensino de ciências na escola secundária

brasileira no século XIX” (Ciência e Cultura, n. 38,

v. 3, março, 1986), pois apresenta em detalhes a infl uência dos diferentes

autores e livros adotados no Colégio D. Pedro II,

tomado como referência durante um período de mais de 60 anos para

grande parte das escolas nacionais.

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75Os textos didáticos para o ensino de física

Como se vê, a literatura escolar francesa, além de sua influência di-reta por longo período, foi fonte inspiradora para os livros didáticos universitários nacionais que, por sua vez, se tornaram fonte para a elaboração dos livros didáticos do curso secundário. Certamente o texto para secundaristas não era tão “denso” como os compêndios; no entanto, guardavam sua estrutura e formato na maioria das sequ-ências de conteúdo.

Grande parte dos autores do final do século XIX ou, no máximo, do início do século XX lecionavam em Escolas Politécnicas ou de En-genharia. Isto, de alguma forma, já direcionava os conhecimentos em Física, adequando-os e ajustando-os aos futuros profissionais. Tomando como exemplo os primeiros capítulos, nota-se uma ênfase acentuada na descrição de instrumentos de medida, seu potencial de uso e o modo de operá-los. O estudo de medidas, erros e limitações dos instrumentos também compunham este tópico.

Figura 5.1 – Contra capa de Compêndios – Aqui apresentamos um exemplo da página de rosto de um tratado (ou compêndio) francês. É datado de 1908 em sua 24a. edição. Possui 1158 páginas e 1032 gravuras. Seu formato é “livro de bolso”, medindo 11cm x 17cm. Seu autor é George Maneuvrier com a colaboração de M. Marcel Billard. Intitula-se “Traité élémentaire de Physique”.

O que hoje denominamos de Ensino Médio.

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Conforme já mencionamos, o discurso literário dos compêndios se-guia uma estrutura racional e linear, demonstrando um crescer de dificuldade, visto que para saber o conteúdo “B” era necessário domi-nar antes o conteúdo “A”. Em linguagem atual, seria um encadeado de pré-requisitos, estrutura esta estabelecida pela tradição e que ainda permanece.

O compêndio, com o passar do tempo, transforma-se em “livro didáti-co”, o que levou à redução do detalhamento de alguns tópicos, outros sendo eliminados totalmente, além da incorporação obrigatória de exercícios e problemas. A linguagem torna-se mais leve, suprimindo o exagero de descrição de equipamentos e experimentos, anexando informações e objetos mais contemporâneos a cada edição. Mesmo com tais modificações, a sequência dos conteúdos se mantém preser-vada.

Os compêndios de origem francesa mantiveram sua hegemonia (no ensino universitário) até os anos quarenta. Posteriormente, compên-dios ou tratados de origem italiana e inglesa vieram também a ser utilizados no Brasil. O abandono definitivo deste tipo de texto didático ocorre na década de 60, quando são introduzidos livros de origem americana, dentre eles o mais conhecido – Hallyday e Resnick. A pri-meira edição do Hallyday e Resnick data de 1966 e ainda hoje é refe-rência e texto básico em muitas instituições que mantém cursos da área de exatas (Física, Química, Engenharia, etc.)

5.2 Os livros didáticos de Física no Brasil até 1960

Se você tiver oportunidade de manusear um livro dos antigos cursos “cientifico ou colegial” e fizer uma breve leitura, poderá notar uma tendência que incentiva o professor a centrar o ensino da Física na memorização e verbalismo sendo este, por extensão, um ensino afas-tado do laboratório e das observações empíricas inerentes à própria construção da Física. Buscando argumentos para esta afirmação, va-mos analisar alguns autores que predominaram na década de 50.

Procure um livro didático de Física editado na década de 50. Certa-mente poderá encontrá-los em bibliotecas escolares ou, com alguma sorte, em algum sebo de sua cidade. Além da curiosidade, é instrutivo para nós como professores de Física.

Grau de ensino equivalente ao atual

Ensino Médio. Era dirigido às áreas das exatas (Física,

Qúmica, Matemática, Engenharia etc). Junto

ao científico ou colegial existia o clássico, também

equivalente ao Ensino Médio, mas dirigido às

áreas mais sociais (Direito, Filosofia, Letras, etc).

Page 77: Livro de INSPE [Atualizado]

77Os textos didáticos para o ensino de física

Figura 5.2 – Exemplos de páginas do mesmo compêndio francês – Ver a riqueza dos dese-nhos feitos a “pico de pena” e nos detalhes das máquinas. A figura (a) é da página 12 e ao seu lado temos a página 16. O inicio era dedidcado a “medidas” e as máquinas. Na figura (b), paginas 872 e 873, mostram esquemas de motores elétricos e descrição de transforma-dores.

A

B

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78

Os livros didáticos daquela época, para serem publicados, deveriam ter o aval oficial através da autorização do “Ministério da Educação e Saúde” (MES). O autor não poderia propor um texto organizado a seu critério. Os conteúdos tratados, em especial os editados pós 1951, deveriam respeitar as Portarias n° 66 de 21/10/51 e de n° 1045 de 14/12/51 do MES, que prescreviam os novos programas de Física para o curso Colegial. Como se nota, havia um controle bastante rígido para com a publicação de obras didáticas, pois cada exemplar deveria ostentar o número de registro da obra e, muitos deles, seu número próprio, uma espécie de controle de produção.

Vamos tomar como exemplo Aníbal Freitas, autor da coleção Física – Ciclo Colegial em três volumes, que obteve o registro n° 641 do Minis-tério citado acima. O texto era editado pela Editora Melhoramentos e, em 1950, o livro para o 1º ano colegial já registrava sua 6ª edição, cor-respondendo ao 32° milheiro impresso. O livro para o 3º ano colegial, publicado pela mesma editora, em 1960 registrava sua 11ª edição e seu 57° milheiro. Outro autor, também bastante conhecido, Francisco Alcântara Gomes Filho, publicava pela Companhia Editora Nacional (SP) e em 1956 já tinha chegado à 10ª edição do volume de Física para o 2º Colegial. Em 1958, o volume Física para o Terceiro Ano Colegial, do mesmo autor, alcançava a 4ª edição. Outra coleção bastante conheci-da é a Coleção Didática Física, da FTD, dos Irmãos Maristas, com três volumes para o Curso Colegial.

O conteúdo destes livros, se comparado aos modernos, deixa os sau-dosistas perplexos e deixaria você também. A quantidade de tópicos tratados é considerável e ampla, permitindo ao estudante, pelo menos, ter acesso a um grande conjunto de informações relativas à Física. Na leitura do índice do programa do 3º colegial encontramos temas que dificilmente fariam parte dos livros didáticos atuais. O último capítulo do livro de Alcântara Filho trata, em 42 páginas, dos seguintes itens (reproduzidos conforme índice):

Oscilações elétricas•

Ondas eletromagnéticas•

Rádio comunicação•

Radiofonia•

Televisão•

Condução dos sólidos nos gases•

Potencial explosivo•

Descargas nos gases rarefeitos•

Raios catódicos•

Oscilógrafos catódicos•

Microscópio electrônico•

Raio X•

Ampôlas de raio X•

Raios canais•

Emissão termo-iônica•

Triodos•

Efeito foto-elétrico•

Constituição de matéria•

Radiatividade•

Teoria da relatividade•

Teoria da matéria•

Teorias da Luz•

A Congregação Marista nasceu na França e, por

isso a orientação de seus textos seguia muito de perto o modelo francês

de ensino. Dos textos para o colegial desta

época, esta coleção é a que mais se aproxima das

estruturas de compêndio do modelo europeu. Poderíamos dizer, de

forma descompromissada, que seria um compêndio

simplificado.

Figura 5.3 – Índice do livro de Alcântara Filho

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79Os textos didáticos para o ensino de física

Para efeitos de comparação, tomamos o livro do 3º ano, Física, da cole-ção dos Irmãos Maristas, editado pela FTD (1966), que oferece o seguin-te conteúdo no seu último capítulo (reproduzidos conforme índice):

Campo magnético das correntes•

Indução eletromagnética•

Geradores mecânicos de corrente contínua•

Unidades elétricas •

Correntes alternadas•

Oscilações eletromagnéticas. Ondas eletromagnéticas•

Descargas elétricas•

Figura 5.5 – Índice do livro do FTD

Figura 5.4 - Capa do Livro de FISICA de Francisco Alcântara Gomes Filho, 4ª edição, 1958

Figura 5.6 - Capa do Livro de FISICA da Coleção FTD, 10ª edição, 1966

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À primeira vista, pode parecer que houve uma redução de tópicos no livro da FTD, mas se olharmos detalhadamente os subtítulos vere-mos que, sob o título maior de “Oscilações Eletromagnéticas. Ondas Eletromagnéticas” são encontrados subitens, distribuídos na unida-de e não explícitos no índice, como a TV, válvulas, tríodos, telefonia, etc., enquanto o subtítulo “Descargas Elétricas” trata de todo tipo de emissão em tubos de baixa pressão (Tubo de Crookes e semelhan-tes). O capítulo é encerrado tratando do modelo atômico e partículas. Existe, portanto, uma equivalência entre os itens tratados em ambos os livros. Com maior ou menor extensão, todos são cotejados, man-tendo o mesmo conjunto de informações. Uma diferença, a favor de Alcântara Filho, é que a publicação da FTD não faz qualquer menção à Teoria da Relatividade.

Quanto à profundidade com que os tópicos são tratados, permanece-se no nível da noção ou da introdução, o que, de certo ponto de vista, deixa a desejar; porém, de outro, permite a discussão de assuntos tidos como “atualizados” para época. A aparente superficialidade re-sulta, em tese, na oportunidade de discussão em classe, além de pro-porcionar ao estudante o conhecimento de uma outra concepção da natureza, diferente da ótica newtoniana. Além disso, permite quebrar o paradigma determinista por meio dos tópicos “Física Moderna” e “Relatividade”. Sem dúvida, se faz urgente o resgate dos conteúdos dos “antigos” textos, com a devida “modernização” de linguagem e de material instrucional. Você está de acordo?

Entretanto, ao mesmo tempo em que tratam de assuntos ditos atuali-zados, os livros didáticos daquela época incluíam tópicos que fogem totalmente das concepções modernas da Física, como, por exemplo, o tratamento do campo magnético gerado por ímãs como um fenôme-no devido à ação de “massas magnéticas”. O livro 3 da coleção FTD trata o Magnetismo e a ação entre ímãs (força magnética) como uma extensão da Lei de Coulomb para o Magnetismo, definindo o que se “entende” por massa magnética. Veja na figura 5.7 a reprodução dos textos que trata da Noção de Massa Magnética e sua Medida.

De todo modo, esta quantidade de informações, cuja profundidade pode ser questionada, deixa transparecer certa concepção de ensino, na qual prevalecia a quantidade de informações e descrições, agregan-do um processo de avaliação que valorizava a memorização e o ver-balismo descritivo. Alguns nem ofereciam exercícios/problemas para os alunos resolverem, seguindo muito de perto a tradição dos compên-dios, ou seja, transferiam ao professor a tarefa de propor problemas.

É o caso dos livros de Francisco Alcântara e Aníbal Freitas. Freitas

apresenta alguns exemplos numéricos ao longo do texto, mas não oferece problemas ao final do

capítulo.

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81Os textos didáticos para o ensino de física

Figura 5.7 – (a) Noção de Massa Magnética contida no Livro 3, (b) Lei de Coulomb aplicada a Massa magnética. (c) Mensuração da massa magnética.

A

C

B

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82

A elaboração desses livros parece ter seguido uma estrutura mais ou menos comum, herdada dos compêndios, pois explora a descrição de equipamentos e experimentos através de desenhos, esquemas, etc., artifício que, de certo modo, objetiva ao estudante “conhecer um la-boratório e equipamentos imaginários”, se assim podemos denominá-los. Veja exemplos nas páginas reproduzidas na figura 5.8.

Figura 5.8 – (a) Página extraída do livro FISICA-CURSO Colegial/segundo Volume, de An-tónio de Souza Teixeira Jr, editado em 1966. Descrição do equipamento para construção da Escala Celsius. Ao lado quadro com diversos tipos de termómetros. (b) Continuação da descrição dos diversos termômetros.

A

B

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83Os textos didáticos para o ensino de física

São indiscutíveis a representatividade e importância destas obras no ensino de Física até os anos 60. Além de direcionar o conteúdo em profundidade e extensão, também induziam uma prática didática e uma forma de avaliação que valorizava a memória e o verbalismo. Se admitirmos, a priori, que os livros didáticos são, em geral, indicadores do processo ensino-aprendizagem que ocorre em sala de aula, é fácil também concluir que o laboratório didático não foi marcante nem se mostrou significativo para o ensino da Física no “ciclo colegial”.

Este formato de livro didático e consequente forma de ensino que ocorria não só no Brasil, já apresentava desgastes junto à sociedade. Era um ensino que ainda mantinha muito do perfil do início do sécu-lo 20 e a sociedade, em plena década de 1960, já demonstrava uma modernidade incompatível com os hábitos passados. A valorização do conhecimento científico, o progresso tecnológico, a disputa ideo-lógica entre os grandes blocos do ocidente (EEUU) e oriente (União Soviética) pela hegemonia mundial, a conquista de novos mercados, etc., são razões que provocaram uma avaliação profunda na maneira de ensinar Ciências.

Este novo caldo social evidencia, nos EEUU, um movimento que bus-ca inovar o ensino de Física, como veremos no próximo capítulo.

Resumo

O livro didático assumiu a forma de “compêndio ou tratado”, dirigi-do mais diretamente ao ensino superior e, posteriormente, reduções e simplificações o transformam em texto para o ensino secundário. Lembrar que a instituição formal do ensino secundário veio muitos anos após a existência do ensino universitário. O compêndio é uma obra produzida por um único autor (no máximo dois), produto de suas notas de aula, que demandou um tempo considerável de elaboração. Este tipo de texto didático de certa forma institui uma concepção de ensino tradicional: dogmática, reprodutivista e neutra.

Texto integrante

Para melhor compreensão do assunto leia no seu Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (AVEA) o seguinte texto integrante:

Estados Unidos.

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NICIOLI JUNIOR, Roberto B.; MATTOS, Cristiano Rodrigues de. A disciplina e o conteúdo de Cinemática nos livros didáticos de física do Brasil (1801-1930). In: Investigações em Ensino de Ciên-cias. v. 13(3), pp. 275-298, 2008.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no corpo principal e no texto integrante, provocá-

lo para uma discussão, direcioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por

que não, levá-lo a ponderar sobre sua inclusão no planejamento de suas au-

las. Não se sinta obrigado a memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar

uma resposta escrita considerando a argumentação (prós e contras) propor-

cionada pelo capítulo. Bom trabalho!

1) Qual a concepção epistemológica predominante nos compêndios universitários? Justifique.

2) Quais as características que diferenciam um compêndio dos livros didáticos atuais?

3) Quais argumentos você adotaria para defender ou refutar a afir-mação: “Os livros didáticos atuais de Física são quase um espelho dos livros didáticos de meados do século XX”.

4) Você aceita a afirmação que os livros do Ensino Médio são uma simplificação dos textos universitários? Justifique e guarde sua res-posta. Voltaremos a discutir isto na terceira Unidade.

Referências

HAMBURGER, E. W. Análise dos simpósios nacionais de ensino de Física (mesa redonda). Atas do V SNEF. Belo Horizonte (MG): 1982. p. 194-199.

LORENZ, K. Os livros didáticos e o ensino de ciências na escola secundária brasileira no século XIX. Ciência e Cultura, n. 38, v. 3, março, 1986.

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85Os projetos de ensino estrangeiros

6 Os projetos de ensino estrangeiros

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Neste capítulo, faremos uma incursão pelos projetos de ensino de Física estrangeiros elaborados a partir de 1950. Você terá a oportunidade de citar as origens do PSSC e enumerar suas principais inovações metodológicas. A seguir, tomará contato com o Projeto Harvard, irá conhe-cer suas origens e poderá listar as suas diferenças e semelhanças em relação ao PSSC. Finalmente, falare-mos do Projeto Piloto da UNESCO, elaborado no Brasil, e você poderá assinalar suas bases teórica e metodológi-ca. No conjunto, poderá verificar o papel do laboratório didático em cada um dos projetos.

6.1 Os projetos de ensino de Física pós 1950

Em 1955, iniciou-se, nos Estados Unidos, um movimento de renovação do ensino de ciências experimentais que se estendeu, posteriormente, à Europa e aos demais continentes (África, Ásia e América Latina), compreendendo mais de cinquenta países. O desencadeamento deste movimento de renovação pode ser atribuído ao PSSC (como veremos com detalhes mais adiante), um dos mais reconhecidos currículos de Física do mundo.

Entre as modificações contidas nas propostas didáticas dos diferentes projetos constata-se uma nova sequência para os conteúdos; novos objetivos educacionais, agora mais explícitos; a adoção de novas me-todologias e técnicas de ensino; um laboratório didático muito ligado aos conteúdos e um comportamento mais ativo do aluno.

Antes de seguirmos, é importante esclarecermos o termo projeto. Ao contrário dos compêndios que iam se estruturando de forma lenta por meio das notas de aula do autor, levando alguns anos para tomar a forma final, o projeto era um curso de Física planejado detalhadamen-te, envolvendo um número considerável de pessoas e que, em curto espaço de tempo, tomava sua forma “final”. Outro aspecto diferen-cial é a chamada versão preliminar do projeto. Após a elaboração de uma primeira versão do texto didático, material instrucional de apoio

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(filmes, lâminas, etc.), equipamentos de laboratório, havia a aplica-ção em classes pilotos. O objetivo era verificar a clareza dos textos, a eficiência do material de apoio, a facilidade de uso do equipamento experimental, desde suas montagens até robustez e resistência. En-fim, um teste do material em todos seus quesitos que, após a devida avaliação, era alvo das necessárias correções/alterações para então ir tomar a forma final. Alguns projetos realizavam ensaios com mais de uma versão preliminar.

O período ou a “era dos projetos” foi extremamente fértil e, sob certos aspectos, poderia, guardadas as proporções, ser equiparada à “revo-lução industrial”. A dinâmica organizacional e didática que envolveu a elaboração desses projetos foi revolucionária frente ao que já se tinha feito em relação a propostas educacionais na área de ciências. A disseminação desses projetos nos mais diferentes países, com suas abordagens metodológicas quebrando a estrutura monolítica dos an-tigos textos escolares, encontrou eco junto aos professores. Por con-seguinte, promoveu um incentivo enorme às investigações em ensino, estimulando um maior número de profissionais a se dedicarem a ela. O resultado, hoje em dia, mostra uma área de pesquisa se consolidan-do cada vez mais – a pesquisa em Educação Científica – com vários cursos de pós-graduação e com um número crescente de investigado-res. Alguma vez já pensou continuar seus estudos na área de Ensino de Física? Comece a pensar!

6.2 O Projeto PSSC

O pioneiro e maior representante do movimento inovador no ensino de ciências foi o projeto de Física do Physical Science Study Commit-tee (Comitê de Estudos de Ciência Física), mais conhecido pela sigla PSSC, iniciado em 1957, nos EUA.

Na realidade, o embrião do PSSC nasceu durante o ano de 1956, quan-do alguns professores do MIT (Massachustts Institute of Technology/EUA) se propuseram a produzir filmes para ensinar Física Moderna aos estudantes. A idéia prosperou com a adesão de mais cientistas. Em dezembro do mesmo ano, numa reunião na National Science Founda-tion (Fundação Nacional de Ciência), foi constituído o referido Comitê e a alocação de financiamento para a execução do novo currículo de Física que seria testado em grande escala nas escolas dos EUA. O orçamento total destinado ao PSSC foi da ordem de cinco milhões de dólares, soma nunca antes destinada a este tipo de projeto.

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87Os projetos de ensino estrangeiros

Este orçamento total teve certo estímulo político, isto porque ainda em 1957 houve o lançamento do Sputnik pela União Soviética. Este fato causou certa apreensão na sociedade americana, pois colocava em xeque alguns valores hegemônicos incontestáveis. Vale registrar que, como decorrência, de imediato foi fundada a NASA, dando início à corrida espacial.

Se de todo verdade ou simples coincidência, o importante é que o PSSC se organizou, chegando a ter uma equipe composta com cien-tistas físicos, psicólogos, educadores, fotógrafos, historiadores, técni-cos em fi lmagem, com cerca de 280 pessoas. A ordem era produzir o mais rápido uma nova proposta de ensino de Física. Em pouco mais de um ano, a versão preliminar era utilizada em testes com as primei-ras turmas de estudantes.

O PSSC teve o mérito de modifi car substancialmente a percepção do que se entendia por ensino de Física até aquela época. Independen-te dos motivos político-ideológicos que justifi caram sua elaboração, a proposta metodológica foi revolucionária. Um texto totalmente di-ferenciado, utilizando uma linguagem moderna, apresentava um se-quencial de conteúdo novo e incorporava tópicos pouco explorados nos livros tradicionais. Questões abertas foram inseridas no próprio texto e o laboratório passou a fazer parte integrante do curso. A prá-tica experimental tinha sua inserção, à medida em que fazia a inter-relação com a teoria no desenvolvimento da Física. Como novidade, fi lmes, produzidos especialmente para o projeto, são agregados como ferramentas de ensino. O resultado do PSSC foi a produção de quatro livros para os alunos, quatro livros como Guias do Professor e um conjunto de kits experimentais que permitiam a realização de 50 ex-perimentos.

Figura 6.1 – Capas de livros do Projeto PSSC

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O conteúdo, aliado a uma dinâmica metodológica, que por sua vez fazia uso dos diferentes recursos já enumerados, se faz presente em todos os momentos do curso. Desta forma, a novidade maior do PSSC estava na pluralidade de seus meios e no sincronismo de sua aplica-ção. A participação ativa do estudante era estimulada pelas discussões promovidas pelo professor através de questões abertas, manipulação experimental, etc., recomendadas por meio do Guia do Professor.

Com relação ao programa de laboratório contido no PSSC, observa-se, para a época, um espetacular avanço. Dos cinquenta experimen-tos que compõem seu acervo básico, alguns são de natureza qualita-tiva e outros são quantitativos. É importante destacar que muitos dos experimentos, do ponto de vista didático, são novidades. Entre eles, destaca-se o “tanque de ondas”, para o estudo de ondas. São experi-mentos que, além de fugir das tradicionais experiências demonstrati-vas, são inovadores na concepção da sua “montagem”.

Uma das premissas da proposta do PSSC era fazer com que o es-tudante tivesse uma participação mais ativa em todas as atividades, exigindo que todos os alunos realizassem o experimento ao mesmo tempo. Do ponto de vista estrutural, essa exigência criou a necessida-de de produzir e oferecer equipamentos que se caracterizavam pela simplicidade e robustez. A simplicidade diminuía o custo e a robustez permitia a manipulação pelos próprios alunos. A organização final dos equipamentos resultou em pequenos kits.

Os experimentos eram acompanhados de guias de laboratório, mas com outra configuração, isto é, afastando-se das conhecidas fórmulas cook-book. Sua função era fornecer instruções explícitas sobre o fun-cionamento do equipamento, sendo acompanhado de questões que direcionavam a execução experimental, sem prender-se em demasia aos detalhes do procedimento e sem oferecer informações vagas que comprometessem o objetivo da experimentação. Pretendia-se que o laboratório fosse um meio direto de ensino, contribuindo com seu trabalho de experimentação para o desenvolvimento do pensamento físico e para apreciação do método científico.

É inquestionável o aspecto inovador e revolucionário do PSSC. O pro-grama proposto incorpora conteúdos nunca tratados nos programas tradicionais, além de incorporar toda uma gama de metodologias de ensino nunca utilizadas de maneira simultânea. Seu pioneirismo ain-da hoje deve ser respeitado pelo que representou para o ensino de Física, cuja história pode ser dividida em “antes e depois do PSSC”.

Os “kits” experimentais tornaram-se bastante

conhecidos, por se constituírem em caixas que continham o equipamento

básico necessário para os experimentos. A idéia foi adotada por diversos projetos de ensino e até

hoje é muito comum nos referirmos a kits para

conjuntos experimentais.

“Cook-books” – livro de receitas - são roteiros para a realização de experimen-to, onde o estudante deve

seguir instruções deta-lhadas e sequenciadas,

extremamente limitados pela pouca ou nenhuma flexibilidade oferecida ao

aluno.

Figura 6.2 - Tanque de ondas PSSC

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89Os projetos de ensino estrangeiros

Mesmo seus opositores não negam o seu papel instigador e promotor de novas opções metodológicas para o ensino.

O PSSC foi também, num certo sentido, um marco de incoerências. Se não obteve o sucesso esperado e desejado no ensino secundário ame-ricano, foi o projeto de Física mais disseminado por meio de inúmeras traduções, inclusive para o russo, demonstrando um sucesso mundial. Sua tradução para o português foi liderada por uma equipe de profes-sores do IBECC, entre 1961 e 1964, na Universidade de São Paulo.

No Brasil, sua porta de entrada foram as disciplinas de Instrumentação para o Ensino de Física, formando toda uma geração de professores. Muitos deles exerceriam, no futuro, grande influência no ensino e na pesquisa em ensino de Física. Se houve algum sucesso do PSSC no Brasil, ele ficou, majoritariamente, restrito aos cursos de formação de professores. Anna Maria P. Carvalho, em sua tese O Ensino de Físi-ca na Grande São Paulo, de 1972, analisa com detalhes a adoção do programa do PSSC por alguns professores de escolas da grande São Paulo. Chamam a atenção suas conclusões constatando que os profes-sores tiveram forte influência do PSSC, mas o número de adotantes foi muito pequeno. As razões são várias, mas a predominante é a falta de condições básicas como, por exemplo, salas para o laboratório, os kits experimentais, os filmes e o equipamento necessário para projeção, em suma, a infraestrutura de suporte material que o projeto demanda-va. Entretanto, chama a atenção o fato de que mesmo não adotando o PSSC, uma consulta revelou que houve uma melhoria no ensino de Física, seja pelo fato dos professores escolherem com mais cuidado o livro didático, seja por outras metodologias utilizadas em sala de aula inspiradas no PSSC. Essa mesma consulta acusou um uso mais frequente do laboratório didático e a introdução de técnicas de discus-são. Em suma, houve uma mudança de comportamento do professor, que procurou colocar em uso algumas das metodologias introduzidas no programa do PSSC. Carvalho apresentou a hipótese de que “a intro-dução do PSSC em nosso meio educacional provocou uma mudança no ensino de Física e que esta mudança ocorreu, principalmente, na metodologia empregada”, confirmada pelos resultados da pesquisa.

Outra conclusão que Carvalho apresenta diz respeito à influência do PSSC nos projetos de ensino de Física que foram elaborados no Brasil. Esta, certamente, foi a mais duradoura das influências do PSSC: aque-la exercida sobre os docentes que se envolveram em pesquisas em ensino de Física quando da produção dos projetos brasileiros.

IBECC – Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura.

Professora de Metodologia e Prática de Ensino de Física, na Faculdade de Educação da USP. Graduada em Física, foi a primeira doutora em Educação a dedicar-se à pesquisa de Ensino de Física no Brasil. Leciona na Graduação e Pós-Graduação e concentra sua pesquisa atual nos processos de aprendizagem de conceitos físicos pelas crianças do Ensino fundamental. Sua tese e publicações nacionais e internacionais podem ser encontradas na Biblioteca da FAED/USP.

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O PSSC permanecerá na história do ensino da Física. Será sempre uma das maiores fontes de inspiração de inovações e de investigações para o ensino de Física. Quem lê o PSSC será seu defensor ou opo-sitor. Mas ser a favor ou contrário à proposta do PSSC é, no mínimo, reconhecer e aceitar seu papel histórico como instrumento didático modificador de uma visão pragmática e tradicionalista no ensino de Física. A dinâmica proposta, de um curso com discussões e ativida-des dos alunos em classe, a visão moderna do conteúdo ministrado e de um laboratório didático participativo, sem dúvida demarcou novos procedimentos didáticos para serem, senão adotados, no mínimo, es-tudados para futuras propostas.

6.3 O Projeto Harvard (Project Physics Course)

Ao final de uma reunião da Fundação Nacional de Ciência, em 1963, Gerald Holton, físico, James Rutherford, professor de Física na escola secundária, e Fletcher Watson, educador, aceitaram o desafio de ini-ciar um novo projeto nacional de Física nos Estados Unidos. A idéia era elaborar uma nova proposta curricular para o ensino americano com objetivo de oferecer uma alternativa ao projeto PSSC.

Dos nomes citados, os dois primeiros já estavam trabalhando em tex-tos para o ensino secundário. Essa experiência se transformou em fio condutor, dando norte à tarefa proposta, a de romper com o ensi-no fragmentado e racionalmente sequenciado. Holton, criticando os textos e o ensino (de certa forma criticava também o PSSC), se refe-re aos grandes tópicos da Física como “pérolas”, que se encadeiam formando um “colar” que resulta na Física que é conhecida: linear e sequenciada.

Para romper essa sequência rígida, os autores propuseram um en-caminhamento diferente, procurando mostrar como a Física se de-senvolveu e abordando seu impacto social e humanístico, pontos que foram capazes de sensibilizar a grande maioria dos estudantes. Para integrar a Física como ciência ao contexto histórico e social, adota-ram o que chamaram de “abordagem conectiva”. Esta contextualiza-ção mais abrangente, que agregava História, Filosofia e Política, de-veria criar, como dizia Holton “não um colar de pérolas separadas, todas dentro de um campo, mas uma tapeçaria de conexões cruzadas entre muitos campos”. Este pensamento amenizava a idéia de que o progresso do mundo estava na mão da Ciência, mandamento hege-mônico da década de 50 e oculto na concepção de ensino do PSSC.

O termo Harvard fazia parte da denominação

original do projeto. Durante sua elaboração,

até a publicação, foi adotada em definitivo, a denominação Project Physics Course para a versão americana. No

entanto, é mais conhecido no Brasil como Projeto

Harvard.

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91Os projetos de ensino estrangeiros

Seu objetivo maior era organizar um curso de Física orientado hu-manisticamente. Duas outras diretrizes também foram incorporadas: “(1) atrair um número maior de alunos para o estudo da Física intro-dutória e (2) descobrir algo mais sobre os factores que infl uenciam a aprendizagem da ciência.” (Préfácio,1979). Ainda no Prefácio, en-contramos cinco grandes objetivos norteadores que determinavam as aspirações do projeto, valorizando os aspectos já citados e pro-piciando uma perspectiva cultural e histórica, em que as ideias da Física têm uma tradição ao mesmo tempo em que mostram formas de adaptação e mudança evolutiva. A participação ativa do aluno tinha o objetivo de fazê-lo vivenciar as difi culdades e alegrias próprias da descoberta científi ca. De uma maneira simples, deseja-se que os alu-nos se comportem como ‘pequenos cientistas’. Mesmo enfatizando o aspecto humanístico, a fi gura do aluno ‘pequeno cientista’, continua-va viva e forte.

Além do aspecto inovador da concepção humanística que orientou a elaboração do projeto, a tendência do uso de “multi-meios”, desen-cadeada pelo PSSC, infl uenciou parte do arsenal de material instru-cional elaborado. O perfi l de integração entre os diversos materiais foi cuidadosamente estruturado. Faziam parte deste arsenal o livro didático do aluno (quatro volumes), os manuais de atividades, o ma-terial para experiências, a coleção de textos suplementares, os livros de instrução-programada, os fi lmes sem-fi m (loop/super 8) e de 16 mm, as transparências, um sem número de aparelhos, o livro de tes-tes e os guias para professores. Um conjunto respeitável de material instrucional.

A presença do laboratório didático no Projeto Harvard é bastante sig-nifi cativa, contando com cerca de 50 práticas experimentais. Uma no-vidade era a alternativa de um mesmo experimento oferecer diferen-tes procedimentos. Como exemplo, citamos “A medição da aceleração da gravidade”, que pode ser realizada de seis formas diferentes. Outra novidade foi um conjunto de experimentos exclusivos para uso do professor, denominados de “Demonstrações”, para ser utilizado como instrumento de motivação para introdução de determinado tópico, ou para auxiliar na estruturação do conteúdo. O uso restrito ao professor se deve à sofi sticação do equipamento ou à complexidade de monta-gem. Além desses dois conjuntos, havia outro que, sob o título de “Ati-vidades”, oferecia o acesso dos alunos a sugestões para a construção de projetos, demonstrações e outras tarefas que estes poderiam fazer sozinhos, no laboratório ou em casa.

A Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa/Portugal, traduziu para o português o projeto com o título de Projecto de Física. Em 1978, publicou a Unidade I (Conceitos de Movimento). Nos anos seguintes, foram traduzidas as demais unidades sucessivamente. O Prefácio referenciado é repetido em todas as unidades. Neste trabalho vamos nos referir sempre a tradução portuguesa mantendo a grafi a original.

Figura 6.3 – Capas de livros do Projeto Harvard

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A participação ativa do aluno se aproxima muito daquela do PSSC e nas tarefas ligadas ao laboratório também não mais existe o relatório formal. É salientado que o principal é o registro dos dados obtidos, aconselhando ao aluno a se perguntar: “Será este um registro sufi-cientemente claro e completo, de tal modo que, daqui a alguns meses, eu possa pegar no meu caderno de notas e explicar, a mim próprio ou a um colega, aquilo que fiz?”. (Projecto de Física, Unidade I, 1978, p. 135). São fornecidas algumas regras para o registro de dados, mas são gerais e de fácil assimilação pelo aluno. Procura-se incutir que não existem resultados “errados”. O que pode ter havido são eventos que nada tem a ver com a investigação ou que podem estar misturados com outro fenômeno. “Sujar as mãos” é a regra de ouro do trabalho laboratorial, incentiva o texto.

Percebe-se que a função do laboratório didático está plenamente de acordo com o que é preconizado no projeto. O aluno terá o papel de “pequeno cientista”, afinal, para “aprender Física nada melhor que fazer Física”. Justificativas ou razões pedagógicas para a inserção do laboratório, mesmo apresentando todo um potencial poderosíssimo, não são colocadas. Somente uma transferência do “status” de cientis-ta para o aluno.

O Projeto Harvard não teve repercussão significativa no Brasil. Em 1969, houve um movimento coordenado pelo Prof. Giorgio Moscati, do Instituto de Física da USP, junto a professores ligados ao CECISP, dando origem a uma série de seminários sobre o Projeto, buscando uma adaptação do mesmo ao Brasil.

Em janeiro de 1970, durante a realização do I Simpósio Nacional de Ensino de Física, no IFUSP, o Prof. Fletcher Watson apresentou um se-minário divulgando o projeto. Na última semana de julho do mesmo ano, foi promovido na USP um curso sobre o Projeto Harvard, para um grupo selecionado de professores brasileiros, ministrado pelos Pro-fessores Bobby Chambers e Jerry Menter, ambos da equipe do Projeto Harvard. O grupo brasileiro teria a tarefa de disseminar o projeto por sua ligação com os Centros de Ciências dos vários estados brasileiros ou com escolas de graduação em Física.

O Projeto Harvard chegou a ser traduzido para o português, aqui no Brasil, pela equipe do CECISP. Por motivos e/ou problemas editoriais não foi editado, ficando restrito a um público de professores e ins-tituições do eixo Rio – São Paulo. Posteriormente, foi traduzido em Portugal.

CECISP – Centro de Treinamento para

Professores de Ciências de São Paulo, era sediado na

USP junto ao FUNBEC/IBECC.

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93Os projetos de ensino estrangeiros

Pode-se resumir o Projeto Harvard como um curso que procura mos-trar as raízes humanísticas e culturais da Física, quando isto pode ser feito, procurando desviar-se de tópicos altamente especializados. Ao fazer uso da Historia da Ciência como subsídio pedagógico, busca for-mar um aluno ciente dos aspectos humanísticos da Física. Não resta dúvida que o Projeto Harvard é uma fonte de inspiração àqueles que buscam introduzir a História da Ciência em sua prática pedagógica.

6.4 Projeto Piloto: Física da Luz

Com certeza você e muitos dos atuais professores de Física do Brasil desconhecem o fato de que em São Paulo, no IBECC/USP, entre julho de 1963 e julho de 1964, foi elaborado um projeto de Física, conhecido por Projeto Piloto, organizado e patrocinado pela UNESCO.

Em 1961, a UNESCO, interessada em reforçar suas atividades para o melhoramento do ensino de Ciências, convidou o Dr. Alberto Baez

para ser diretor da nova Divisão de Ensino de Ciências, criada dentro do Departamento de Ciências Naturais da UNESCO, e participar deste movimento renovador no ensino de Ciências.

A UNESCO, engajada neste movimento, assume a proposta de elabo-rar um Projeto Piloto fazendo uso de novos enfoques, métodos e téc-nicas para o ensino de Física na América Latina. Uma das diretrizes propostas consistia em dar uma forte ênfase na experimentação com novas técnicas, dentre elas a Instrução Programada, uso de televisão e de filmes de curta duração. Outro aspecto fundamental era a condi-ção de que o material instrucional, em especial o experimental, fosse de baixo custo para os estudantes.

O Projeto Piloto tinha como objetivo ser uma atividade piloto (daí o nome) que permitisse iniciar um processo, um ponto de partida para a melhoria do ensino de Física, utilizando novas metodologias e com ênfase no aspecto experimental, utilizando material de baixo custo. Isto foi importante para a escolha do tema (conteúdo) sobre o qual que o projeto se debruçaria. O tema proposto foi Física da Luz, esco-lhido pelo diretor da Divisão de Ensino da UNESCO, Dr. Baez, que o considerou adequado, pois satisfazia todos os quesitos iniciais, pois, como dizia ele: “mostrava-se adequado como introdução a um cur-so experimental permitindo esclarecer muito dos aspectos e princí-pios importantes da Física; o papel fundamental dos experimentos, a natureza das leis físicas, o uso da teoria para resumir e predizer, a

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, fundada em 16 de novembro de 1945.

Muito do que antecedeu e do que foi concebido como o primeiro Projeto Piloto da UNESCO foi trabalho de Alberto Baez. Físico de renome e com experiência junto ao comitê elaborador do PSSC, ele aceitou o desafio da UNESCO para um trabalho de produção educacional que deveria ter a duração de um ano, orçamento extremamente curto (140 mil dólares) e que agrupasse especialistas e professores de diversos países da América do Sul.

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estreita relação entre os diferentes ramos da física e suas limitações dos conceitos simples e diários para dar conta de fenômenos físicos complexos.”.

Dentre as decisões tomadas, a introdução da Instrução Programada como determinante de todo o processo de ensino-aprendizagem foi a mais inovadora e audaz. Inovadora porque nenhum trabalho educa-cional de ciências tinha, até então, se aventurado a adotá-la e audaz pela limitação do conhecimento e experiência sobre os novos méto-dos que seriam adotados. O processo estabelecia a auto-instrução, o que implicava produzir um material auto-sufi ciente.

Mesmo com todas as difi culdades registradas, o Projeto Piloto ge-rou uma quantidade considerável de material instrucional. O texto em instrução programada era composto de seis volumes. Oito “kits” experimentais permitiam a realização de um número expressivo de experimentos. O kit da unidade “Algumas propriedades fundamentais da luz” por exemplo, possibilitava realizar perto de 40 experimentos. Onze fi lmes mudos de curta duração (cerca de 4 a 5 minutos) mostra-vam experiências mais difíceis de serem realizadas, seja pelo custo, seja pelo equipamento utilizado. Como parte integrante do acervo ha-via ainda um fi lme sonoro de 16 mm com 30 minutos de duração (“A luz... é uma onda?”) e mais oito roteiros para programas de televisão. Em relação ao material experimental, não só foram concebidos novos materiais e/ou montagens, como também foram aproveitados equipa-mentos de outros projetos, em particular o tanque de ondas do PSSC.

A Instrução Programada adotada como matriz orientadora do proje-to tem sua fundamentação teórica na psicologia comportamentalis-ta skinneriana (behaviorismo), a qual pressupõe que a todo estímulo corresponde uma resposta associada que, se devidamente reforçada, poderá se transformar em resposta condicionada (reforço positivo). Da mesma forma, o reforço pode extinguir uma resposta comportamen-tal estabelecida (reforço negativo). Para que esta teoria fosse usada na elaboração de textos, foi necessário desenvolver uma apresenta-ção do conteúdo em pequenas parcelas, onde cada uma representas-se um “estímulo” ao estudante. A este estímulo o estudante deveria dar sua “resposta”, sendo aplicado, de imediato, o respectivo “reforço”. Seguindo estes princípios, o texto fi nal tomou uma apresentação di-ferenciada dos textos tradicionais, optando por uma distribuição de quadros.

A grande novidade do laboratório didático foi sua confi guração, adapta-da aos moldes da metodologia adotada. Todas as instruções, medidas

Cada quadro representava o estímulo, apresentado por meio de uma infor-

mação curta, que imedia-tamente solicitava uma

resposta a ser dada pelo aluno, através de uma frase a ser complemen-

tada ou de uma resposta a uma pergunta. Depois de cada quadro, o aluno

encontrava a resposta correta, seguida de um

novo quadro. A resposta cumpria o papel do reforço

que, se estivesse correta “incentivava” o estudante, se estivesse errada permi-

tia a correção e o aluno seguia adiante. Para nova

informação ou estímulo, seguia-se uma série de

quadros que apresenta-va o mesmo estímulo de

maneiras diferentes, com o objetivo de reforçar o

aprendizado.

Figura 6.3 – Capa de livro do Projeto Piloto

Page 95: Livro de INSPE [Atualizado]

95Os projetos de ensino estrangeiros

e conclusões também eram apresentadas através de quadros sequen-ciais, fazendo parte do corpo comum do texto. Não havia separação en-tre a “parte teórica” e a “parte experimental”. A sucessão dos quadros era evolutiva, de maneira que cada estudante poderia, além de estudar com velocidade própria, realizar individualmente os experimentos.

Os equipamentos, quando de sua concepção, deveriam ser de bai-xo custo e com uma resposta experimental adequada à sequência do conteúdo. Além disso, deveria permitir uma montagem rápida do experimento e, da mesma forma, possibilitar observações qualitati-vas e obtenção de dados. Isto significava que cada aluno realizaria o experimento a seu tempo e hora, isto é, dentro de sua velocidade de trabalho, o que impedia montagens complexas ou tomada de dados que demandassem um tempo relativamente longo.

Não podemos deixar de assinalar que a UNESCO e seus diretores pretendiam atingir outros objetivos através do Projeto Piloto. Como objetivo político-educacional estava a formação de líderes em edu-cação de ciências que, durante a elaboração do Projeto, adquirissem formação e experiência no uso de novas metodologias para, poste-riormente, serem os multiplicadores em seus países de origem. De certa maneira, o Projeto Piloto, se não foi o responsável direto por implementar uma nova visão no ensino de Física, em muito colabo-rou, preparando professores e habilitando-os em condições de propor outras modificações e/ou inovações no ensino de Física e Ciências, na América Latina.

Se a aceitação da proposta metodológica apresentada pelo Projeto Pi-loto no Brasil não teve o número de adeptos esperados, não significa que tenha sido um fracasso. Fracasso ocorreria se ela não despertas-se crítica dos opositores e nem incentivasse seus adeptos a mostrar a viabilidade da proposta metodológica no Brasil. Aos críticos coube o ônus de produzirem alternativas. E isto felizmente ocorreu com am-bos os grupos, como veremos mais adiante.

6.5 O Projeto Nuffield

O Projeto Nuffield foi elaborado na Inglaterra, a partir de 1962. Já era do conhecimento dos responsáveis pelo currículo de Física da esco-la secundária inglesa a existência do PSSC. Por motivos vários, foi decidido que a Fundação Nuffield elaboraria um projeto próprio para Inglaterra. Os responsáveis pelo Nuffield não negam a influência do

Outras áreas da ciência foram contempladas, nos anos seguintes, em continentes diferentes: em 1965, um projeto de Química foi elaborado na Ásia; em 1967, na África, foi a vez do projeto de Biologia e nos Emirados Árabes, em 1969, foi a vez da Matemática ter seu projeto. O objetivo era internacionalizar uma proposta inovadora de ensino, tomando como base o país líder de cada região do dito terceiro mundo, tornando-o pólo gerador do projeto. Eram convocados professores de países vizinhos que, junto com professores do país sede e sob orientação da Equipe de especialistas da UNESCO, elaboravam o projeto.

Na realidade, existiam dois Projetos Nuffield, direcionados para níveis diferentes de ensino. Um para escola fundamental e outro para escola secundária. Cada projeto tinha sua coordenação própria, cabendo a E. Rogers e J. Osborne a liderança dos grupos.

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PSSC. Comentam alguns, em tom de troça, que os ingleses não que-riam “traduzir o PSSC para o inglês”.

A Fundação Nuffield expandiu seu projeto englobando Biologia, Quí-mica e Física. Além de atender aos cinco anos obrigatórios de ensino de Ciências, como prescrevia a lei inglesa, reorganizava todo o ensino de Ciências segundo novas bases metodológicas. O esperado pelos organizadores era um currículo de Ciências que fosse “excitante” para o aluno e que pudesse levá-lo, através de suas investigações e argu-mentos, a compreender o que a ciência é e, na medida do possível, o que significa ser um cientista.

Tal qual o PSSC, o Projeto Nuffield contemplava exaustivamente novos métodos de ensino, particularmente atividades de discussão e labo-ratório. Com este último houve um cuidado especial: os experimentos foram organizados em “kits”, com uso previsto de um kit para cada dois alunos. Esta atitude visava desencorajar a simples demonstração, forçando o professor a criar condições para que os próprios alunos re-alizassem os experimentos. Os materiais que compunham estes kits eram relativamente simples e projetados para dar aos alunos a opor-tunidade de se “comportarem como um cientista pesquisando”, sem valorizar em demasia os dados obtidos. Materiais mais sofisticados compunham o acervo de demonstrações à disposição do professor. A preocupação dos realizadores do projeto era criar condições para que o aluno se comportasse como um cientista, especialmente nas atividades ligadas ao laboratório didático.

A divulgação do Projeto Nuffield ficou bastante restrita à Grã-Bretanha e suas antigas Colônias, não obtendo repercussão maior em outros países. No Brasil, em 1968, o IBECC, que já tinha sido o responsável pela tradução do PSSC, apresentou o projeto para a avaliação de uma possível tradução. O parecer foi negativo, sendo alegado ser um tex-to bastante prolixo e não adaptável às condições brasileiras. Assim como o Projeto Harvard, o Nuffield não teve maiores repercussões no Brasil, ficando apenas conhecido no âmbito de grupos com interesses maiores em ensino de Física e disponível em algumas bibliotecas.

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97Os projetos de ensino estrangeiros

Resumo

Mudanças na arquitetura social do mundo na década de 50 (década pós-guerra) também fizeram eco no ensino de Ciências e, como tais, apontaram para a necessidade de novos textos didáticos para o en-sino. Surgem os “projetos de ensino”, produto de equipes com vários professores e profissionais de outras áreas. Grandes inovações meto-dológicas e material instrucional são agregadas a estas obras. A lite-ratura didática se torna mais moderna, tópicos recentes de ciências são apresentados, filmes produzidos, o laboratório didático deixa ser de demonstração e passa a ser realizado pelo aluno, kits experimen-tais adequados para o manuseio dos alunos são confeccionados.

Os projetos estrangeiros mais conhecidos são o PSSC, pioneiro e de repercussão mundial, o Projeto Harvard de concepção mais humanís-tica, e o Projeto Piloto de concepção tecnicista que adota a Instrução Programa linear como forma de organizar o conteúdo. Sem dúvida alguma, podemos afirmar que os projetos de ensino de Física estran-geiros, elaborados ao longo de quase quinze anos (1956-1969), foram determinantes para a mudança do entendimento que se tinha do en-sino de ciências.

De relance, esses projetos parecem ser completamente diferentes. A metodologia e os objetivos podem realmente ter sido diferentes. No entanto, todos se espelhavam na Ciência e nos sucessos que caracte-rizavam sua imagem à época. O progresso refletia a importância da Ciência e de seus procedimentos para a solução de problemas tec-nológicos. O pensamento instalado e difundido popularmente sus-tentava que a ciência seria o remédio definitivo para todos os males do homem. Portanto, a ordem implícita era: todos precisam aprender Ciência. E o mais natural era fazer o estudante se comportar como um “cientista” em seu trabalho escolar.

Atividades de aprendizagemAs questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no capítulo, provocá-lo para uma discussão, dire-

cioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por que não, levá-lo a ponderar

sobre sua inclusão no planejamento de suas aulas. Não se sinta obrigado a

memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar uma resposta escrita consi-

derando a argumentação (prós e contras) proporcionada pelo capítulo. Bom

trabalho!

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1) Quais a principais inovações propostas pelo projeto PSSC?

2) Quais os fundamentos que nortearam a elaboração do projeto Harvard?

3) O Projeto Piloto da UNESCO se balizou em uma teoria psicológica. Qual foi essa teoria e quais seus princípios?

4) Qual o papel do laboratório didático em cada um dos projetos? Saberia associar uma concepção epistemológica a eles? Qual o argu-mento de sua afirmação.

Referências

Projetos estrangeiros de Ensino de Física:

PROJECTO DE FÍSICA (Projeto HARVARD) – Unidade I - Guia do Profes-sor. Trad. Maria Odete Valente (Coord). Lisboa (Portugal): Fundação Calouste Gulbenkan, 1978.

PROJECTO DE FÍSICA (Projeto HARVARD) – Unidade II - Guia do profes-sor. Trad. Maria Odete Valente (Coord). Lisboa (Portugal): Fundação Calouste Gulbenkan, 1978.

PROJECTO DE FÍSICA (Projeto HARVARD) – Unidade II - Trad. Maria Odete Valente (Coord). Lisboa (Portugal): Fundação Calouste Gul-benkan, 1978.

PROJECTO DE FÍSICA (Projeto HARVARD) – Unidade III - Trad. Maria Odete Valente (Coord). Lisboa (Portugal): Fundação Calouste Gul-benkan, 1978.

PROJETO PILOTO – UNESCO, Física da Luz. Livro 0 - Versão Prelimi-nar, UNESCO-IBECC, São Paulo, 1964.

PROJETO PILOTO – UNESCO, Física da Luz. Livro 1 - Versão Prelimi-nar. São Paulo: UNESCO-IBECC, 1964.

PROJETO PILOTO – UNESCO, Física da Luz. Livro 2 - Versão Prelimi-nar. São Paulo: UNESCO-IBECC, 1964.

PROJETO PILOTO – UNESCO, Física da Luz. Livro 3A - Versão Prelimi-nar. São Paulo: UNESCO-IBECC, 1964.

PROJETO PILOTO – UNESCO, Física da Luz. Livro 3B - Versão Prelimi-nar. São Paulo: UNESCO-IBECC, 1964.

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99Os projetos de ensino estrangeiros

PROJETO PILOTO – UNESCO, Física da Luz. Livro 4 - Versão Prelimi-nar. São Paulo: UNESCO-IBECC, 1964.

PSSC. Física – Parte I. 6. ed. São Paulo: EDART, 1970.

PSSC. Física – Parte II. São Paulo: EDART, 1970.

PSSC. Física – Parte III. Edição preliminar. São Paulo: EDART, 1966.

PSSC. Física – Parte IV. 2. ed. São Paulo: EDART, 1971.

PSSC. Guia do Professor I. v. I. São Paulo: EDART, 1967.

PSSC. Guia do Professor II. v. I. São Paulo: EDART, 1967.

PSSC. Guia do Professor III, v. I. São Paulo: EDART, 1968.

PSSC. Guia do Professor IV, v. I. São Paulo: EDART, 1970.

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CARVALHO, A. M. P. O ensino da física na grande São Paulo - Estudo sobre um processo de transformação. Tese de Doutoramento. FEUSP. São Paulo. 1972.

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LORENZ, K. M. Os livros didáticos e o ensino de ciências na escola secundária brasileira no século XIX. Ciência e Cultura. São Paulo. 38 (3). Março. 1986.

PINHO-ALVES, J. Atividades experimentais: do método à prática cons-trutivista. Tese de Doutoramento. CED/UFSC. 2000

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101Os projetos de ensino brasileiros

7 Os projetos de ensino brasileiros

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Encerrando nossa incursão histórica na literatura didá-tica de Física, vamos discorrer sobre os projetos de Físi-ca brasileiros. O período de 1970 a 75 foi o de máxima produção destes projetos. Período que demarca, além dos projetos, o início do primeiro curso de pós-graduação na área de Ensino de Física que, ano a ano, mais se consolida no Brasil. Iniciamos com a gênese dos projetos, possibi-litando localizar as razões que levaram à constituição dos grupos elaboradores. Sobre o PEF você terá poderá conhecer sua organização e identificar a metodologia adotada por seus autores. A leitura sobre o FAI permitirá verificar a influência metodológica do Projeto Piloto e seus desdobramentos. Numa rápida passagem, para marcar a história, falaremos sobre o PBEF e suas propo-sições inovadoras. Finalmente, concluímos com o GREF, bastante conhecido e utilizado nos dias de hoje.

7.1 A gênese dos projetos brasileiros

O movimento renovador no ensino de Ciências, que eclodiu em diver-sos países, a partir do PSSC, também se refletiu no Brasil, exercen-do forte influência sobre a formação de vários professores de Física brasileiros até a metade da década de 60. E esta influência provocou conflitos que vão surgir algum tempo depois, resultando na formação dos futuros grupos de ensino.

Para uma ideia mais clara é importante localizar-se a Universidade de São Paulo (USP) neste contexto. Primeiro, é a maior universidade do país e seu Instituto de Física (IFUSP) é o responsável pela formação de um grande contingente de licenciandos em Física. O IBECC, tam-bém localizado dentro da USP, propiciava um livre trânsito de seus integrantes, em particular os da área de Física, entre este instituto e o IFUSP.

No ano de 1965, com a criação dos Centros de Treinamento de Profes-sores em vários estados do país, o PSSC passa a ter um órgão de di-

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vulgação junto aos professores de Física, através de várias ações, tais como curso de férias, seminários e treinamentos em serviço. De certa forma, tudo convergia em um grande movimento para divulgação e adoção do PSSC no ensino secundário.

Além dos cursos promovidos pelos Centros de Treinamento de Profes-sores, a disciplina de Instrumentação foi um excelente veículo de di-vulgação formal do projeto em várias universidades brasileiras, como já mencionamos anteriormente. O espaço era ideal para apresentar, discutir e “treinar” a proposta metodológica do PSSC. De certa forma, a ampla divulgação do PSSC como proposta de renovação metodoló-gica no ensino de Física deixa o projeto ao alcance de seus críticos e defensores, fazendo dele referência das discussões.

É de se supor que os professores que conheciam o PSSC tentassem sua implantação na escola, mas, no momento de implantação, nas-cia um sentimento de frustração, seja pela infra-estrutura precária na maioria das escolas, seja pela dificuldade de implantar a proposta como um todo, isto é, com aulas de laboratório, discussões, filmes, etc., ou ainda pela carga horária da disciplina de Física ser aquém do mínimo desejável. Enfim, estas ou outras razões fizeram germinar, com o passar do tempo, um sentimento de rejeição por projetos es-trangeiros, uma espécie de “xenofobia”.

Este sentimento não foi de todo gratuito, ao lembrarmos o momento político que o Brasil estava vivendo. O movimento político de 64 pro-curava firmar-se, determinando diretrizes que também se refletiram na Educação. A adoção do PSSC no Brasil teve muito apoio externo, político e financeiro. Independentemente do fato de ser uma proposta inovadora no ensino da Física, altamente atraente, sua origem ame-ricana trazia consigo, mesmo que implicitamente, a marca de uma concepção ideológica que, se era atrativa para os membros do go-verno, criava certo desconforto no meio educacional. Esta mistura gerava constrangimentos e sentimentos antagônicos nos “adotantes brasileiros”.

O pólo catalisador deste conflito se formou na USP, em São Paulo. Lá estava a Equipe responsável pela adoção, tradução e divulgação do PSSC, além de seus críticos e de seus defensores mais ferrenhos. Nesta efervescência de posições, os demais projetos estrangeiros chegaram ao Brasil para serem analisados e julgados por grupos que buscavam alternativas inovadoras e oferecessem outra concepção educacional – concepção esta não muito clara, mas que deveria ser – adequada à “realidade brasileira”.

Golpe ou Revolução de 1964 foi um conjunto

de acontecimentos que marcaram o início do

período do governo Militar Brasileiro que se estendeu

até 1985.

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103Os projetos de ensino brasileiros

Estas contradições, na realidade, espelham um objetivo comum aos diferentes grupos, ou seja, a modificação no ensino de Física brasileiro, buscando uma significativa melhoria de aprendizagem. Este objetivo comum começa a induzir a formação de grupos, agora organizados, que irão liderar os projetos nacionais na década de 70. Este mesmo objetivo também passa a ser o fermento da organização de um evento histórico para o ensino de Física no Brasil: o 1º Simpósio Nacional de Ensino de Física (SNEF), que aconteceu no Instituto de Física da USP, em janeiro de 1970, coordenado por E. Hamburger.

O Boletim no 4 de 1970 da Sociedade Brasileira de Física é todo dedi-cado às Atas deste Simpósio e, em seu Prefácio, apresenta uma lista de nove moções, todas aprovadas por unanimidade. Uma entre elas é de fundamental importância para o futuro dos projetos de ensino de Física brasileiros:

“Que sejam concedidas verbas para implantação de projetos brasileiros de elaboração de textos e material de ensino de Física”.

Esta moção, por certo, reflete o espírito que permeou todo o Simpósio.

A leitura dessas Atas, organizadas por E. Hamburger, revela clara-mente o sentimento de não adoção indiscriminada de projetos estran-geiros como forma de solucionar os problemas do ensino de Física no país. E, como consequência, vai se impondo a ideia da produção de projetos nacionais. De certa forma, a tradução e divulgação do mate-rial estrangeiro não era de todo negada, pois justificava a necessidade de se conhecer e acompanhar as propostas metodológicas e o desen-volvimento tecnológico contido neste material, que poderia servir de referencial para nossos projetos.

Ainda neste Simpósio, Hamburger (1970) apresenta e defende a pro-posta da elaboração de um projeto nacional, que denominou de “Pro-jeto Inicial”. Sua proposta era desenvolver na USP, durante um período de seis meses, este Projeto Inicial. A equipe inicial seria pequena, em torno de 10 pessoas, composta de professores universitários e secun-dários de Física, para adquirirem experiência e formarem o núcleo da equipe maior que envolveria também especialistas – psicólogos, so-ciólogos, especialistas em avaliação, etc. Ao mesmo tempo, seria ela-borado um projeto maior, com uma equipe ampliada e maior tempo para execução. Bittencourt (1977), membro da equipe proponente do

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Projeto Inicial, descreve as origens desta proposta, que foi o embrião do PEF - Projeto de Ensino de Física, que discutiremos mais adiante.

Passados quase quarenta anos desse Simpósio histórico, podemos afirmar que o ensino de Física no mundo teve dois momentos: antes e depois do PSSC. No Brasil existe um divisor de águas: antes e depois do 1º SNEF. Até 2009, foram realizados 18 simpósios, cujas atas permi-tem reconstituir a evolução da pesquisa em ensino de Física no Brasil, de sua infância à sua maturidade. Seus pesquisadores conquistaram espaço e respeito à medida que foram implementados cursos de mes-trado e doutorado na área no país.

O recuperar da história, algumas vezes, é um tanto difícil, pois, ao seguirmos uma trilha, deixamos de atentar para outros eventos que ocorrem paralelamente. Ao iniciarmos a apresentação do PSSC e do SNEF como eventos pontuais e suas consequências, deixamos de lado, na trilha da narração, um fato que, com o passar do tempo, se entrelaça aos primeiros. É o caso do Projeto Piloto. Como já citamos, o IBECC, através de sua diretora, a Profa. Maria Julieta Ormastroni, liderou o grupo de professores latinos na elaboração do referido pro-jeto. Entre os professores brasileiros que dele participaram destaca-mos Cláudio Zaki Dib, pelos desdobramentos da sua participação no Projeto Piloto.

Após o término do projeto, Cláudio Dib concentrou seus esforços na proposta de cursos nos quais é explorada a utilização de multimeios. Em 1968, propõe a disciplina de Tecnologia do Ensino de Física no curso de licenciatura em Física da USP (FERREYRA, 1979). Este curso tratava dos princípios básicos da Tecnologia da Educação (Psicologia Behaviorista, Teoria de Sistema e Teoria da Comunicação, definição operacional de objetivos, Instrução Programada, etc.) discutida em relação à educação em geral e, em especial, aos conteúdos de Física. Um grande número de professores do segundo grau e de alunos de graduação frequentou o curso e, de um modo ou de outro, foi influen-ciado pela proposta tecnicista discutida no curso. Grande parte dos professores que se envolveram nos projetos nacionais cursou a disci-plina de Tecnologia de Ensino.

O curso de Tecnologia da Educação funcionou como uma espécie de catalisador, auxiliando na difusão de uma linguagem comum entre aqueles que se colocavam dentro do movimento de mudanças no en-sino de Física e já formavam uma pequena “comunidade”. A lingua-gem tecnicista, sem dúvida nenhuma, era o que se tinha de vanguarda na área educacional; foi por isso que a aceitação de termos/conceitos

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105Os projetos de ensino brasileiros

como objetivos comportamentais, operacionais e instrucionais, entre outros, tornou-se jargão e de uso corrente entre os membros da co-munidade. A disciplina Tecnologia da Educação foi, indubitavelmente, um dos espaços fundamentais que permitiu a todo um grupo de pes-soas iniciarem-se de maneira mais formal e sistemática em trabalhos educacionais.

O movimento de renovação do ensino de Física que se instalava no Brasil foi favorecido por outro fato: a oferta de um curso em nível de pós-graduação para professores e licenciados, ministrado pelo Prof. Ernst Hamburger, no IFUSP. O curso tinha por título “Tópicos de Físi-ca Clássica”, tornando-se outro espaço para discussão sobre ensino de Física. Muitos de seus alunos que tinham cursado Tecnologia da Educação fizeram desse curso um momento para reflexão e discussão sobre o ensino de Física no Brasil, questionando a adoção de projetos estrangeiros. O fruto maior deste curso foi a formação de pessoal e de grupos que iriam elaborar projetos nacionais.

O momento histórico do 1º SNEF não foi gratuito, portanto. Foi fruto de um anseio que permeava os profissionais preocupados com o ensino de Física e que não encontraram solução satisfatória para a realidade brasileira nas propostas dos projetos estrangeiros. O 1o SNEF propi-ciou o primeiro grande momento nacional de reflexão sobre ensino de Física no Brasil, tornando-se responsável pela aceleração do mo-vimento renovador no ensino de Física, que se concretiza através da elaboração dos projetos nacionais e de outras iniciativas individuais, como também se torna o marco inicial para a linha de pesquisa em ensino de Física no Brasil.

A instituição dos grupos de ensino que iriam elaborar os projetos na-cionais dá-se quase imediatamente após o SNEF, onde cada grupo assume sua diretriz de trabalho. Nosso propósito agora é resgatar o histórico de cada um dos projetos. Por razões de respeito à memória dos personagens que participaram desse momento histórico do en-sino de Física no Brasil, faremos uma descrição mais detalhada dos projetos nacionais.

7.2 Projeto de Ensino de Física – PEF

O PEF tem sua origem no “Projeto Inicial”, apresentado por Ernst Ham-burger no 1o SNEF. O Projeto Inicial, por sua vez, nasceu no ano de 1969, durante um curso em nível de pós-graduação destinado especi-

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ficamente a licenciados e professores secundários de Física. Um gru-po de “alunos-professores”, na disciplina “Tópicos de Física Geral”, ministrada por Hamburger, passa a discutir e a planejar a produção de textos e material instrucional de Física para o ensino secundário. Das discussões e planejamentos, se estrutura o Projeto Inicial que

(...) propõe-se introduzir alguns conceitos fundamentais de Me-

cânica, através de experiências simples como o pêndulo simples,

colisões, planos inclinados. Os conceitos são imediatamente

aplicados em assuntos de interesse atual: movimento de saté-

lites e de foguetes, origem da energia solar, etc. (HAMBURGER,

1970).

Também era defendido que os conceitos são, na medida do possível, descobertos pelo aluno ao realizar experiências e fazer exercícios e não ‘definidos’ a priori.

Já é possível antever, nas afirmações acima, uma ênfase no uso do laboratório didático, através de experimentos realizados pelos alunos. Mesmo se tratando de um material auto-instrutivo, ressalta-se que este mesmo material deve estimular o professor a investir em novas ações educacionais. Outra intenção é a de que o material de ensino seja simples e de baixo preço.

Este esboço de projeto e intenções somente obteve verba em meados de 1970 e foi executado no período de agosto/70 a janeiro/71. Para-lelamente à execução do Projeto Inicial, uma nova equipe, também coordenada por Hamburger, começa a trabalhar em uma proposta maior, que convencionaram chamar de “Currículo Nacional”, nome posteriormente alterado para Projeto de Ensino de Física, PEF, como ficou mais conhecido.

Os quatro pontos norteadores do Projeto Inicial foram base das deci-sões do PEF. Também era propósito dos autores que o material entre-gue ao aluno fosse completo, incluindo texto e material experimental simples e barato. Como corolário, os experimentos de Física propos-tos deveriam ser realizados por todos os alunos e não serem passíveis de omissão sem prejuízo da sequência. Chamamos atenção para o caráter obrigatório da realização do experimento por todos os alunos. Além disso, o experimento demonstrava estar estreitamente ligado ao texto, sendo que a não realização do mesmo comprometia a se-quência.

Como resgate histórico, é importante citar alguns membros desse grupo,

visto que serão os autores de projetos nacionais:

Plínio Meneghini dos San-tos, Paulo Alves de Lima, Hydeia Nakano, Antonio

Violin (membros da equipe de Mecânica do PEF),

Judite F. Almeida (futura coordenadora da equipe de Eletricidade do PEF) e Fuad D. Saad (futuro co-

ordenador do FAI) e outros que não participaram dos projetos. Maiores detalhes da composição do PEF es-tão contemplados na dis-sertação de Mestrado de

Diomar Bittencourt, 1977, na Biblioteca do IFUSP.

Da Equipe do Projeto Ini-cial, permaneceram Plinio

Meneghini, Paulo Alves, Geraldo Violin, Hideya

Nakano e Judite Almei-da. Diomar Bittencourt e Jesuína de Almeida Pacca (mais tarde coordenado-ra de Eletromagnetismo)

ingressaram no grupo formando a Equipe inicial do PEF. Outros colabora-

dores ingressariam nos anos seguintes. José de

Pinho Alves Filho ingressa na Equipe em 71 e passa a fazer parte do grupo de

Eletricidade, posteriormen-te, ingressaram também

Eliseu G. de Pieri e Joaquim N.B. de Moraes.

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107Os projetos de ensino brasileiros

Pontos norteadores:

a) O aluno deveria trabalhar com os textos, independen-temente da ajuda do professor. Para não se limitar apenas à leitura, o texto deveria ser entremeado de questões, solicitando não só a leitura, mas respostas às questões e realização de cálculos e experimentos;

b) os experimentos deveriam ser realizados pelos alunos e não apenas demonstrados, descritos ou sugeridos pelo professor;

c) o texto deveria ser escrito em uma linguagem simples, direta, coloquial, dirigida para o aluno adolescente e não para o professor;

d) o conteúdo do projeto não deveria apresentar neces-sariamente a mesma sequência e os mesmos tópicos de um currículo tradicional, além de dar ênfase à dis-cussão dos conceitos e princípios da Física e não ape-nas ao fornecimento de fatos e informações.

Discussões sobre os pontos norteadores deram origem a conclusões que assumem a função de diretrizes para elaboração do projeto. Com estas diretrizes o PEF se estrutura como uma nova proposta metodo-lógica nacional. Os autores optam por trabalhar apenas os conteúdos de Mecânica (para dois semestres), Eletricidade e Eletromagnetismo (um semestre cada). Esta decisão é tomada em função da Lei 5692/70, que reduziu o número de aulas de Física no 2o Grau (atual Ensino Mé-dio). A carga horária reduzida e a presença de Física apenas nos dois primeiros anos do 2o Grau determinaram a opção por conteúdos es-pecífi cos, visto que a metodologia proposta apresentaria difi culdades para varrer todo o conteúdo do programa tradicional.

A Equipe do PEF subdividiu-se em dois grupos: o primeiro, mais nu-meroso, era responsável pelo conteúdo de Mecânica e o segundo pelo de Eletricidade. Mais tarde, foi formado o grupo de Eletromagnetismo pelo desmembramento da equipe inicial de Eletricidade. Esta divisão possibilitou a elaboração simultânea das diferentes unidades, cada unidade concebida como um volume, e facilitou a elaboração e a “ad-ministração interna” do projeto por parte dos coordenadores gerais e de conteúdo, mas também produziu algumas diferenças. Figura 7.1 - Capas de

livros do PEF

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Entre as diferenças, apontamos a “linguagem” de cada volume. O lin-guajar escrito se apresenta em um crescente, isto é, de frases mais simples e um vocabulário menos formal, utilizado na Mecânica, pas-sando pela Eletricidade, com uma linguagem mediana, até uma lingua-gem mais sofisticada e formal, no Eletromagnetismo. Outro aspecto que diferencia os volumes ocorre entre a Mecânica e a Eletricidade. A influência do PSSC é sensível nos textos de Mecânica se comparados com os de Eletricidade e Eletromagnetismo. A Eletricidade tem sua raiz em um trabalho desenvolvido por Judite F. Almeida.

O acervo experimental do PEF reúne mais de 50 experimentos (sete de Mecânica, 25 de Eletricidade e 20 de Eletromagnetismo). O ma-terial experimental é oferecido por meio de três kits, um para cada conteúdo. O material era relativamente simples e de fácil aquisição. Estava previsto que um kit experimental serviria a grupos com quatro alunos, de maneira que uma sala padrão deveria ter cerca de 10 con-juntos, o que satisfazia plenamente um dos objetivos traçados, o de que os alunos , não o professor, deveriam realizar os experimentos.

Para as demais diretrizes serem alcançadas, a Equipe do PEF optou por produzir um texto cuja metodologia não era muito ortodoxa. O resultado foi um texto dirigido ao trabalho ativo do aluno, com uma parte individual e outra parte em grupo, esta para atividades de dis-cussão ou para a realização de experimentos. O livro se estrutura em blocos de textos discursivos, entremeados de questões a serem res-pondidas no próprio livro texto, em espaço próprio. Após um conjunto de questões, as respostas eram fornecidas ao aluno. Era sugerido que o aluno respondesse às questões individualmente e depois discutisse com os colegas, procurando as justificativas de sua resposta, para só então buscar a resposta do livro.

Os capítulos se dividem em seções e, conforme a programação pla-nejada, oferecem um tratamento teórico ou experimental de forma ininterrupta. Os experimentos são partes integrantes da sequência didática do texto, isto é, não existe em separado um guia experimen-tal. As orientações e instruções para realização do experimento, as variáveis a serem observadas, a forma e os dados a serem coletados são informados no corpo do próprio texto. O registro dos dados e os gráficos eventualmente solicitados são feitos no próprio texto, em es-paço reservado. A análise e as conclusões são analisadas através de questões que estabelecem uma espécie de diálogo com o aluno.

A incorporação do laboratório de forma concomitante com a explana-ção da parte teórica é uma inovação metodológica do PEF, realizada

“Curso sobre Condução Elétrica nos Sólidos

para o Ensino Médio”, trabalho publicado na

Revista Brasileira de Física, no 1, v.1 de 1971, em co-autoria com Ernst Hamburger. No mesmo número, Hamburger e o grupo de Mecânica

publicam “Um cronômetro barato”, equipamento

que faria parte do “kit” experimental utilizado nos ensaios da versão

preliminar do PEF-Mecânica.

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109Os projetos de ensino brasileiros

a partir de uma adaptação muito bem feita da Instrução Programa-da. Os experimentos propostos exigiam a participação ativa do aluno, para que ele pudesse dar sequência ao texto. Assim, o laboratório se tornou obrigatório para a continuidade do texto. Nenhum experimen-to poderia ser dispensado, tal a junção teoria-experimento.

O planejamento e a produção do PEF até sua versão comercial foram financiados pelo IF/USP. Ao final de 1971, foi firmado um convênio do IF/USP com a FENAME, pelo qual foram transferidos os direitos autorais e a responsabilidade de produção e distribuição da versão comercial e dos kits experimentais pela citada instituição, em troca do restante do financiamento necessário.

A FENAME era experiente na produção e distribuição de material es-colar tradicional, mas não tinha nenhuma experiência na produção de material experimental especial (kits experimentais). Por ser uma instituição pública, estava presa aos processos licitatórios legais, o que provocava atrasos enormes entre uma edição e outra e, muitas vezes, a reimpressão do material demorava mais de seis meses. Todos estes entraves criaram descontinuidades de distribuição e compro-meteram seriamente uma maior divulgação e uso do projeto, gerando frustrações nos professores que, com o passar do tempo, desistiram de utilizar o projeto, relegando-o ao ostracismo.

7.3 Projeto Física Auto-Instrutivo - FAI

Professores de Física do ensino médio de São Paulo/SP, avaliando o nível de aproveitamento de seus alunos e os recursos utilizados, concluem pela necessidade de interferir no processo ensino-aprendi-zagem, planejando situações didáticas que pudessem auxiliar o pro-fessor. Este grupo veio a constituir o GETEF – Grupo de Estudos em Tecnologia de Ensino de Física, coordenado pelos Professores Fuad Daher Saad, Paulo Yamamura e Kazuo Watanabe que, por sua vez, elaborou o projeto FAI, com a colaboração de outros 14 professores. Grande parte desses professores era efetiva da Rede Estadual de En-sino de São Paulo, seis deles eram do Instituto de Física, dois do Ins-tituto de História, um do Instituto de Psicologia e outro da Faculdade de Comunicação e Artes, todos da USP. Os demais eram convidados de outras instituições.

O GETEF dedicou-se a trabalhar dentro dos parâmetros preconizados pela Tecnologia Educacional, em especial a Instrução Programada,

Fundação Nacional do Material Escolar, instituição pública ligada ao MEC, sediada no Rio de Janeiro, com a finalidade de produzir e vender material escolar a baixo custo.

Na dissertação de mestrado de Fuad pode ser encontrada uma descrição mais completa e detalhada sobre o FAI.

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a mesma adotada pelo Projeto Piloto da UNESCO, já comentado an-teriormente. O ponto básico é o do maior envolvimento do aluno no processo de ensino-aprendizagem, o que, em outras palavras, passa a ser entendido como ensino individualizado. Os propósitos assumidos pelo Grupo para a elaboração do projeto se resumiam a sete pontos básicos.

1) Fornecer ao professor uma nova metodologia de tra-balho;

2) Propiciar ao aluno uma possibilidade de aprendiza-gem efetiva pelo trabalho realizado (auto-instrução);

3) Caracterizar o educador como elemento orientador, motivador, criador e avaliador dos resultados prove-nientes do processo de aprendizagem;

4) Elaborar um texto baseado em um método de ensino individualizado que considerasse cada aluno como um ser particular, com características próprias, e que deixasse margem para cada professor poder dar suas contribuições pessoais;

5) Elaborar instrumentos de laboratório adaptados às nossas condições de ensino;

6) Elaborar textos históricos para propiciar aos estudan-tes uma visão da forma pela qual a ciência se desen-volve através do tempo;

7) Elaborar recursos audiovisuais.

Esses pontos norteadores determinaram os procedimentos adotados pelo Grupo para a especificação dos objetivos instrucionais, do conte-údo programático e dos meios instrucionais. Neste último item estão incluídos a elaboração de textos auto-instrutivos, material de labora-tório, textos históricos, recursos audiovisuais, entre outros. Os textos auto-instrutivos foram preparados dentro das técnicas de instrução programada linear, seguindo a concepção do Projeto Piloto.

Enquanto no Projeto Piloto as informações vinham dentro de um quadro, no FAI a sequência era formada linha a linha, isto é, quando apresentada a informação/questão era fornecido um espaço para a resposta. Na linha seguinte à da “resposta do aluno” estava impressa a resposta correta.

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111Os projetos de ensino brasileiros

Fuad Saad faz uma série de considerações acerca das difi culdades envolvidas na realização de experiências nas escolas, incluindo desde a formação do professor até problemas de ordem material, mas não deixa de valorizar o uso do laboratório didático desde o 1º grau, indi-cando quais habilidades devem ser desenvolvidas. Chama atenção o trabalho do Prof. Norberto C. Ferreira, membro do Grupo, que desen-volveu kits com “material alternativo” de fácil construção pelo aluno. No contexto do FAI, o laboratório didático não se apresenta como no Projeto Piloto. Neste último, o experimento fazia parte inerente da se-quência didática e era apresentado passo a passo ao aluno, dentro do mais rígido processo de instrução programada. No FAI, os autores optaram por oferecer, ao fi m de cada capítulo, alguns experimentos simples e de material acessível. Estes experimentos, no entanto, não se confi guram como fundamentais para o aprendizado, caso não se-jam realizados.

O material instrucional fundamental do FAI se compunha de cinco volumes dirigidos para o aluno, abrangendo todos os conteúdos do 2° Grau. Como apoio, foram produzidos dois fi lmes de 16 mm e algumas sugestões para o laboratório estão contempladas no texto do aluno. Comparativamente aos demais projetos, o FAI tem o acervo mais re-duzido deles. Não teve fi nanciamento ofi cial. A equipe executora é que fi nanciou a produção e a versão preliminar. Posteriormente, os direitos autorais foram vendidos à Ed. Saraiva/SP.

O FAI foi pioneiro no Brasil por adotar a Instrução Programada em um texto didático de Física dirigido ao 2° Grau, com grande suces-so comercial. Para dar idéia deste sucesso, o volume I vendeu, entre 1973 (ano do lançamento) e 1976, cerca de 220 mil exemplares. Além do sucesso de vendas, o FAI inspirou outras disciplinas a adotarem a proposta da Instrução Programada. A mesma Ed. Saraiva publicou o MAI (Matemática Auto-Instrutiva), BAI (Biologia), PAI (Estudos So-ciais), entre outros.

Entretanto, a quantidade de textos didáticos de mesma linha metodo-lógica adotadas pelos professores, após o entusiasmo inicial, passou a dar mostra de saturação pelos alunos e professores. A partir de 1978, este formato de publicação didática passa a ser abandonada em de-fi nitivo.

Figura 7.2 - Capas de livros do FAI

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7.4 O Projeto Brasileiro de Ensino de Física - PBEF

Neste resgate histórico, não poderíamos deixar de lado o Projeto Bra-sileiro de Ensino de Físico – PBEF. Segundo Rodolpho Caniato seu autor:

As origens mais remotas desta proposta estão localizadas no

trabalho que realizamos na formação de Professores de Ma-

temática e Física, da antiga Faculdade de Filosofia e Letras da

Universidade (hoje Pontifícia) Católica de Campinas, a partir de

1957 até 1969. Desde 1957, já estavam funcionando equipamen-

tos para ensino de Física e um telescópio, montados pelo autor e

que serviram de práticas nas disciplinas de Física Geral e Expe-

rimental, Cosmografia e Mecânica Celeste, também a cargo do

autor como Professor Assistente.

No entanto, somente em 1970, Caniato inicia um trabalho sistemático de elaboração de textos e atividades com uma metodologia própria, que será comentada adiante. Neste mesmo ano, inicia seus primeiros ensaios no CECINE (Centro de Treinamento de Professores de Ciên-cias do Nordeste), em Recife, com cursos destinados aos professores de Física do ensino secundário.

Até 1973, realiza vários ensaios em escolas secundárias da região de Campinas/SP, visando à melhoria do material. Ainda em 1973, apre-senta sua tese de doutoramento, cujo título era “Um Projeto Brasileiro para o Ensino de Física”, na qual defende a metodologia de sua auto-ria aplicada ao ensino de Física para o curso secundário, apresenta-dos em dois volumes, denominados “O Céu” e “Mecânica”.

Estes dois volumes se transformaram, posteriormente, nos dois pri-meiros livros do PBEF. A divulgação do PBEF não seguiu o caminho, digamos, normal de todos os livros, pois, durante muitos anos, o autor só admitiu a venda de livros a professores que houvessem tomado o curso. A partir de 1978, os livros puderam ser adquiridos pelo público, em algumas livrarias. O projeto deveria se constituir de cinco livros/volumes: (1) O Céu; (2) Interação no Universo (Mecânica); (3) A Luz; (4) O trabalho dos elétrons; e (5) Átomos e estrutura da matéria.

Um aspecto interessante é que cada uma das unidades tem um objeti-vo ou enfoque específico, além do objetivo geral que é de proporcionar uma educação cientifica. Nesta perspectiva, nota-se uma abordagem própria, como as unidades “Céu” e “Mecânica” contemplando mais densamente aspectos históricos. A Eletricidade, por sua vez, oferece

Por razões diversas, apenas os três primeiros

volumes propostos foram editados. Os dois

primeiros volumes refletem integralmente a proposta metodológica de Caniato.

O terceiro volume, Eletricidade, foi elaborado

e editado alguns anos depois por outros autores.

Sua estrutura e linha metodológica diferem dos

anteriores, notando-se claramente a mudança de

orientação nesse texto.

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113Os projetos de ensino brasileiros

um enfoque mais prático e utilitário. Uma peculiaridade que faz o PBEF diferir dos demais projetos é que as unidades não se apresentam de forma sequencial, isto é, não configuram um ordenamento de pré-requisitos, o mesmo acontecendo com os capítulos de cada unidade. Isto permite ao professor iniciar seu trabalho com qualquer das uni-dades e do capítulo que bem desejar.

O texto é dividido em três níveis, sendo que o primeiro “apresenta uma leitura para situar o aluno no ‘cenário’ dos conceitos”. O segundo, sob o título “Se você quiser saber um pouco mais”, retoma os pontos mais importantes do primeiro nível, de forma mais detalhada. Por último, o terceiro nível, intitulado “Um pouco mais ainda”, proporciona aspectos particulares do conteúdo, com grau de exigência matemática maior. A diferença no tratamento do conteúdo, com diferentes níveis de dificul-dades, procura atender aos diferentes tipos de alunos com diferentes graus de interesse, sem perder a visão global da ciência. Cada seção do texto se fazia acompanhar de uma atividade “prática”.

Atividades propostas ao fim de cada seção fazem o papel do “labora-tório didático” associado ao conteúdo da respectiva seção. O material utilizado não é organizado nem acondicionado em kits, como em ou-tros projetos (PSSC, Harvard, PEF, etc.). Os autores optaram por um material alternativo, de fácil obtenção pelo aluno em qualquer lugar do país. Dessa forma, é transferida aos alunos a responsabilidade de aquisição ou obtenção dos mesmos. No volume “O Céu”, dedicado à Astronomia, muitas das atividades utilizam um balão de vidro com fundo esférico utilizado em Química como modelo de esfera celes-te. Tabelas, dados astronômicos, medidas de distâncias, etc., fazem parte do material deste volume. O segundo, “Mecânica”, explora ba-sicamente fotos estroboscópicas. Em “Eletricidade”, pilhas, lâmpadas, imãs e fios de diferentes calibres permitem a construção de pequenos circuitos em série e paralelo, além de um pequeno motor a corrente contínua.

Algumas atividades são apresentadas ao fim de uma de uma seção, fato já mencionado pelos autores, assumindo uma característica de “exercício”; enquanto outras são tipicamente motivadoras. Mesmo estando colocadas ao fim da seção, as atividades têm uma inserção natural, isto é, sem se diferenciar em demasia do texto principal. O questionamento sobre o experimento é feito no próprio desenrolar do texto ou como um questionário no fim do mesmo. Nenhum relatório é solicitado ao aluno, apenas os dados e conclusões devem ser registra-dos em caderno, para futuras discussões.

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A influência do PBEF foi muito restrita, quase doméstica. O acesso ao material, como já foi dito, só era disponibilizado pelo autor aos profes-sores que realizavam o curso de treinamento. Este fato restringiu em muito uma divulgação mais ampla no meio escolar.

7.5 Grupo de Re-elaboração do Ensino de Física – GREF

Mesmo não fazendo parte dos projetos históricos, faz-se necessá-rio registrar o trabalho deste grupo, não apenas por ser recente ou por ser mais uma proposta brasileira, mas, principalmente, porque o GREF se estrutura como um material concebido por “professores para professores”. “O trabalho aqui apresentado na forma de textos para professores de Física é o resultado do esforço conjunto de professores da escola pública e de docentes universitários.” (GREF, 1990, p. 14). Um dos pontos principais do GREF seria a intenção de interferir no ensino de Física sem alterar os programas oficiais cristalizados pela burocracia oficial.

Suas ideias diretoras começam a nascer em meados da década de 80, o que corresponde a mais de dez anos do auge dos projetos nacionais e quinze desde o primeiro Simpósio de Ensino de Física. Durante este intervalo de quase quinze anos, a pesquisa em ensino de Física no Brasil se estabelecia com suas linhas de vanguarda nos vários pólos universitários e a formação de mestres e doutores na área se firmava. Entretanto, enquanto a academia respondia às pesquisas sobre en-sino de Física de forma eficiente, o ensino secundário ficou um tanto quanto à margem do processo, sem uma proposta mais concreta ou com oferta de material instrucional alternativo. Muitos dos livros tra-dicionais voltaram ao mercado com roupagem nova, graças a projetos de editoração gráfica que os tornaram atraentes. Outros surgiram en-fatizando material para o vestibular, onde o conteúdo de Física se li-mita a umas poucas páginas carregadas de conceitos e/ou definições seguidas de páginas e mais páginas de questões de vestibular.

Esta ausência de propostas e material para uma educação científica no Ensino Médio forneceu o mote para o grupo paulista do IFUSP, li-derado por Luiz Carlos de Menezes, estabelecer as bases de uma pro-posta alternativa para o ensino de Física. Organiza-se então o GREF – Grupo de Re-elaboração do Ensino de Física, coordenado pelos pro-fessores João Zanetic, Luiz Carlos de Menezes e Yassuko Hosoume. O Grupo contou com a participação ativa de cerca 15 de professores

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da Rede Pública do Estado de São Paulo e de quatro colaboradores acadêmicos (pesquisadores do IFUSP). Ao longo das diversas fases de elaboração dos textos houve a participação de outros professores convidados.

Sua estrutura não segue o padrão ortodoxo dos projetos, seja estran-geiro ou brasileiro, que eram “fechados”, programados e organizados do ponto de vista metodológico, com material instrucional pronto e acabado, tanto para o aluno como para o professor. O resultado da produção didático-pedagógica do Grupo são três volumes dedicados somente ao professor. Os textos são os resultados de um trabalho de parceria entre professores universitários e professores da rede públi-ca. Sua estrutura de elaboração foge assim, em muito, daquela formal e acadêmica que balizou os “projetos tradicionais”.

A proposta educacional que permeia o GREF é dupla: tornar signi-ficativo o aprendizado científico aos alunos cujo futuro profissional não dependerá diretamente da Física e, ao mesmo, tempo permitir o acesso a uma compreensão conceitual adequada para aqueles que almejam uma carreira universitária. Os autores entendiam que

O caráter prático-transformador e o caráter teórico-universalis-

ta da Física não são traços antagônicos, mas, isto sim, dinami-

camente complementares. Compreender este enfoque permitiu

evitar tanto o tratamento ‘tecnicista’ como o tratamento ‘forma-

lista’ e, procurando partir sempre que possível de elementos vi-

venciais e mesmo cotidianos, formulam-se os princípios gerais

da Física com a consistência garantida pela percepção de sua

utilidade e de sua universalidade. (GREF)

O GREF propõe buscar no cotidiano vivencial dos alunos as informa-ções iniciais que fazem parte de seu entorno sociocultural (uma lista de “dispositivos” caseiros, por exemplo) e, partindo destas informa-ções, estabelecer elementos comuns para, então, buscar o formalis-mo científico. Esse processo ocorre no diálogo professor-aluno, daí ser o papel do professor extremamente crítico e de vital importância neste contexto didático.

O GREF não se caracteriza como um projeto de ensino na acepção que foi utilizada para os projetos já citados. Ele pode ser entendido como um projeto de educação científica, no qual o cotidiano “tecno-lógico”, dos utensílios mais simples aos equipamentos mais sofisti-cados, é o propulsor do processo de ensino. Sua proposta reavalia o

Compõem a coleção os textos de (I) Mecânica, (II) Eletromagnetismo e (III) Física Térmica e Ótica, com suas primeiras edições de 1990, 1991 e 1993, respectivamente.

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grau de importância dos conteúdos, propondo reduções de unidades que tradicionalmente são trabalhadas até a exaustão, mas que não significam mais do que meros exercícios de matemática (Cinemática e Eletrostática, por exemplo). Por outro lado, prestigia conteúdos mais abrangentes cujas relações estão mais bem concretizadas no dia a dia do estudante, como no caso da Dinâmica, Eletricidade e Máquinas Térmicas.

Pode-se dizer que, do ponto de vista metodológico, o GREF é pobre se comparado com a riqueza de procedimentos, estratégias, material preparado, kits, etc., dos projetos antes mencionados. No GREF não existe uma “receita pronta”, na qual os ingredientes são estabelecidos e dimensionados pelos especialistas. Ao contrário, ele fornece os in-gredientes básicos e deixa a cargo do Professor a dosagem e a “mistu-ra” a ser feita, com opção de adições e exclusões. Sua grande “aposta” educacional está no professor que, ao adotar a proposta, deve saber convencer os alunos não só da mudança de ordem ou ênfase de de-terminados conteúdos, mas da possibilidade de formalizar o saber científico através de outros procedimentos.

Não há recomendações especiais ao laboratório didático e nem é necessário. Os aparelhos, equipamentos e ferramentas do dia a dia tornam-se os dispositivos experimentais, para que o professor os ex-plore de forma adequada, promovendo a obtenção de dados qualitati-vos e, na medida do possível, dados quantitativos que complementem sua sequência didática. O modelo do laboratório didático tradicional, com equipamentos e instrumentos de medidas, pode ser dispensável quando da adoção do GREF. Entretanto, nada impede o professor de fazer uso do laboratório didático, concomitante ou posterior ao tra-tamento “teórico”. Dependerá não só das condições de infraestrutura que a escola ofereça, mas, principalmente, da organização didática que o professor venha a utilizar.

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117Os projetos de ensino brasileiros

Resumo

Registrando a época

Nesta Unidade, fizemos um rápido resgate histórico a respeito das principais épocas e momentos que influenciaram o ensino da Física. O resgate histórico, além de permitir situar-nos no tempo e espaço, tem certa dose de saudosismo e carinho, pois também queríamos render nossas homenagens e respeitos a centenas de pessoas que, de um modo ou de outro, estiveram envolvidas no planejamento, elabo-ração e ensaios dos diversos projetos de ensino, sejam estrangeiros ou brasileiros. Muitos professores de Física, muitos de vocês e de fu-turos professores talvez nem conheçam ou saibam da existência de tais projetos, daí se justificar o contar um pouco da história de cada um, registrando, dessa forma, os grandes movimentos inovadores do ensino de Física.

Admitimos ser o “livro texto” um indicador razoável para inferir como se processa o ensino nas escolas. Particularmente nas décadas de 40 e 50, durante as quais os alunos “deveriam ter consigo o livro didático adotado pelo professor”, encontramos alguns indicativos importan-tes. O que se verifica, com certo exagero, são descrições de equipa-mentos e experimentos, acompanhados dos respectivos resultados e conclusões de modo a possibilitar ao professor dar sequência ao en-cadeamento teórico. É um ensino calcado na transmissão (professor) e memorização (aluno).

Se falarmos do laboratório, veremos que a ocorrência de seu uso esta-va centrada no professor, cujos experimentos se caracterizavam pre-dominantemente por demonstrações ou por comprovações do con-teúdo já estudado. Tal prática remetia a um conhecimento científico pronto, completo e acabado. Prática plenamente de acordo com uma visão conservadora e reprodutivista. O processo de ensino tinha a finalidade de corroborar a construção teórica, imprimindo nesta uma aura de verdade inquestionável e terminada.

A partir dos projetos, as atenções, que antes eram todas dirigidas ao professor, são remetidas ao aluno. O uso de novas metodologias, no-vos recursos didáticos, nova redação e conteúdos no texto escolar procuram mudar a visão dos estudantes sobre a Ciência, em especial a Física. O laboratório didático é ajustado aos interesses das várias pro-postas, tanto em relação aos equipamentos como aos experimentos.

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O período dos projetos foi fecundo, de grande criatividade e de muitas repercussões. Mesmo nos repetindo, afirmarmos que a década de 70 do século XX marcou o início profissional e acadêmico para as pes-quisas em Ensino de Física no Brasil, hoje respeitado pela comunida-de internacional. Projetos de ensino (1970-75), primeiro curso de pós-graduação, na USP, em 1973, primeiros mestres e doutores compõem os alicerces da existência, hoje no Brasil, de uma grande comunidade preocupada com o ensino de Física.

A intenção desta Unidade, além da citada acima, também foi a de mostrar nas entrelinhas da história da constituição da comunidade de pesquisadores em ensino de Física do Brasil que situações que se parecem óbvias, prontas ou estabelecidas são fruto de conflitos e/ou movimentos. Para nós professores de Física é deveras importante conhecer um pouco da nossa história e do ensino de Física. Saber como se instituiu a pesquisa de ensino em Física, seus objetivos, suas correntes teóricas, promove uma visão mais real e fundamentada em discussões sobre o ensino. Muito já se fez, muito se faz e muito ainda falta ser feito. Esperamos que tenhamos logrado êxito em nossos in-tentos, mesmo concordando que apenas foram fornecidas pinceladas de “nossa história”, o que, acreditamos, permite que se tenha uma idéia geral desse processo.

Na próxima Unidade, vamos tratar das novas perspectivas para o en-sino de Física, considerando algumas áreas que são objeto de pesqui-sa e poderão auxiliar seja em uma maior compreensão do sistema de ensino, seja na preparação de suas aulas.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no capítulo, provocá-lo para uma discussão, dire-

cioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por que não, levá-lo a ponderar

sobre sua inclusão no planejamento de suas aulas. Não se sinta obrigado a

memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar uma resposta escrita consi-

derando a argumentação (prós e contras) proporcionada pelo capítulo. Bom

trabalho!

1) Qual a razão determinante que levou a comunidade de professo-res de Física a elaborar projetos brasileiros abdicando das traduções?

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119Os projetos de ensino brasileiros

2) Quais as diretrizes adotadas pelo PEF?

3) Descreva a metodologia de ensino assumida nos textos do PEF?

4) O FAI foi fortemente influenciado pelo Projeto Piloto. Qual é a base teórica que fundamenta sua proposta? Comente sobre a validade da mesma nos dias atuais.

5) O FAI se pautava em sete pontos principais. Destes, quais, em seu entendimento, seriam os mais fundamentais? Justifique.

6) O GREF sustenta sua proposta de ensino de Física inspirado no cotidiano, isto foi chamado Física do Cotidiano. O que você entende por Física do Cotidiano?

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As Novas Perspectivas para o Ensino de Física

Unidade III

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Unidade III

As Novas Perspectivas para o Ensino de Física

Esta é a última Unidade de nossa disciplina e é onde pretendemos mostrar que grande parte dos problemas encontrados no ensino de Física se origina do fato de se encará-lo com certa ingenuidade, atri-buindo-lhe uma simplicidade inexistente. Ao analisar com um pouco mais de atenção o conhecimento físico, percebemos que ele se cons-titui em uma estrutura complexa. O seu ensino deve ser capaz de ela-borar estratégias didáticas compatíveis com essa complexidade.

Antes, porém, vamos analisar com um pouco mais de cuidado o que ocorre no ambiente escolar, mais precisamente em uma sala de aula.

Você saberia dizer quantos “atores” estão presentes em uma sala de aula? Se por acaso lembrou do professor e dos alunos, por certo es-queceu de alguém.

Quem? Ora! Esqueceu do saber.

Sim, do saber, do conhecimento. Sem ele a presença do professor e do estudante não teria sentido! Não acha?

O professor, os alunos e o saber (para nós o conhecimento físico) se relacionam de forma ternária compondo um sistema que, no seu todo, não pode ser compreendido se o analisarmos somente como uma soma de relações binárias. O objetivo deste sistema é o da apro-priação de um saber que ocorre na ligação entre o professor e seus alunos. O professor tem as suas próprias concepções do que seja o processo de aprendizagem e um posicionamento com finalidade di-ferente do que tem o aluno em relação ao conhecimento. De forma direta ou indireta, as relações complexas e diversificadas travadas na sala de aula acabam por englobar um ou mais destes elementos. Para ficar mais claro, vamos adotar um possível modelo para entender a posição destes elementos e as relações entre eles, denominado de Sistema de Ensino e esquematizado a seguir. Podem existir outros modelos que expliquem o sistema de ensino, mas optamos por este, por nos parecer mais “enxuto”.

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Figura 1 – Representação do modelo do Sistema de Ensino com seus setores e rela-ções, na óptica da Didática Francesa

O Sistema de Ensino mais comum é a sala de aula. Nela, o professor procura, através de ações variadas, levar os alunos a apreenderem determinados conhecimentos. Utilizando-nos dos três elementos aci-ma podemos estabelecer algumas relações interessantes para enten-dermos melhor o processo de ensino-aprendizagem. Cada vértice do triângulo acima representa uma interação envolvendo, dois a dois, professor (P), estudante (E) e conhecimento (C) (ou saber). Desta for-ma, poderemos estabelecer três setores que congregariam ações pre-sentes na sala de aula, representados na figura pelos lados do triân-gulo: setor de estratégias de apropriação de conhecimento, setor de interações didáticas e setor de elaboração de conteúdos.

A seguir, passaremos a descrever rapidamente cada um deles.

I – Setor de estratégias de apropriação de conhecimentos

Aqui estão incluídas as relações que o aluno estabelece com o co-nhecimento com objetivo de apropriação/aprendizagem. Quando um dado conteúdo é ministrado, existe a necessidade de uma organização mental por parte dos alunos no sentido de apreendê-lo. Facilidades e dificuldades no processo de aprendizagem podem ser entendidas em função de uma maior ou menor disponibilidade mental (cognição) em processar tal organização. Quando, por exemplo, em uma aula de Mecânica procuramos fazer os alunos entenderem o conceito de Inér-

CI – Setor de estratégias de apropriação

(referência Psicológica)

III – Setor de elaboração de conteúdos

(referência Epistemológica)

PE

TransposiçõesDidáticas

SISTEMA DE ENSINO

Concepções e Obstáculos

ContratoDidático

II – Setor de interações didáticas

(referência Sociológica)

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cia, estamos, na verdade, solicitando ao aluno que produza uma nova organização mental entre ideias e conceitos já existentes, de forma a que o novo conceito apresentado, assim como suas consequências, possam aí se inserir. Quando, na mente do estudante, tal reorgani-zação se produz com a assimilação de conceitos e demais elemen-tos físicos, têm-se o pensar fi sicamente. Este último poderia aqui ser entendido como um estado mental capaz de produzir interpretações do mundo compatíveis com o conhecimento presente nas teorias físi-cas. Boa parte das difi culdades apresentadas na sala de aula decorre da difi culdade dos alunos em reorganizar suas estruturas mentais da maneira requerida por estas teorias.

Assim, tudo o que diz respeito à estrutura mental do educando, ten-do o mundo físico como objeto, pertenceria a este setor. A referência prioritária nas relações aqui expostas é de natureza psicológica, mais especifi camente do domínio da cognição. Embora esta disciplina não tenha como objetivo principal tratar deste domínio, será muitas vezes necessário realizar-lhe algumas incursões. Em caso de dúvida, releia seu livro de Psicologia Educacional.

Em particular, seremos levados a discutir as formas não-científi cas de como os adolescentes interpretarem o mundo físico. Este ramo de estudos produziu diversos resultados interessantes para planejar e lidar com as situações de sala de aula. Elas são conhecidas como Concepções Alternativas ou Representações Intuitivas.

II – Setor de interações didáticas

Se o setor acima se ocupa das relações aluno-conhecimento (saber) trata-se de uma abstração teoricamente aceitável, pois, na verdade, o processo de aprendizagem em sala de aula é geralmente mediado pelo professor. Professor e aluno podem ser vistos como atores en-cenando um enredo previamente estabelecido. Programa, conteúdos, sistema de avaliação, ano letivo, séries e demais elementos presentes no sistema educacional ilustram o enredo ao qual ambos devem se submeter. Os direitos e deveres de professor e aluno são negociados na sala de aula, tendo o sistema educacional vigente como pano de fundo. Ao professor, cabe conduzir o processo de ensino, exercer a disciplina da classe, etc., aos alunos, cabe aprender para realizar as tarefas pedidas e ter boas notas. Poderíamos dizer que se trata de um tipo de “contrato”, em geral tácito, entre as partes (professor-aluno), determinando os direitos e deveres de cada um. Estas relações são discutidas através do Contrato Didático.

Cognição: Área do conhecimento que se propõe ao estudo da estrutura e funcionamento do pensamento.

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Não devemos esquecer que, num contexto de ensino, as relações en-tre professores e alunos são também de natureza emocional e afetiva. Muitas vezes, tais relações são as que primeiro se estabelecem na sala de aula e acabam por determinar aquelas mais ligadas aos con-teúdos das aulas propriamente ditas.

A referência principal neste setor é de ordem sociológica, embora fun-damental para o entendimento do processo de ensino-aprendizagem em sala de aula.

III – Setor de elaboração de conteúdos

Em geral, aceitamos a premissa de que ao professor basta saber bem aquilo que ele vai ensinar. De forma mais simples, um professor de Fí-sica que soubesse todo conteúdo presente nos livros didáticos estaria habilitado para o exercício do magistério em nível médio. Vejamos, através de um exemplo, como um professor pode se sentir desarma-do quando seu conhecimento físico se limita àquilo que deve ensi-nar. Tomemos o conteúdo de Eletricidade. Ao introduzir o conceito de campo elétrico, o professor, em geral, o faz de maneira formal, com o uso da seguinte expressão matemática:

20

1 ˆ4

QE rr

=

A expressão indica que o campo está vinculado à existência de cargas no espaço. Além disto, é possível, através desta expressão, determi-nar a direção, sentido e intensidade do campo. Mas poderíamos fa-zer diversos outros questionamentos: como e quando foi introduzida tal ideia? Antes de sua existência como eram tratados os fenômenos elétricos? Qual a natureza do campo elétrico? Seria ela uma manifes-tação material? Em sendo uma das entidades das mais abstratas na Física, como procederam os primeiros físicos para utilizá-la e para contornar as dificuldades de interpretação?

Em geral, tais questões, apesar de pertinentes e muitas vezes motivo de indagação por parte dos alunos, não são abordadas nos livros di-dáticos, embora se revelem fundamentais para que o professor possa elaborar suas estratégias didáticas na sala de aula. Elas devem ser entendidas dentro de um contexto mais amplo, que contemple a pro-dução e validação do conhecimento físico. Ao lançarmos nosso olhar para o contexto histórico de produção da Física, estamos nos propon-do a entender o processo de construção do conhecimento. Através de uma abordagem histórica e epistemológica é possível entender os motivos, necessidades e dificuldades associadas à produção de um

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conceito científico, de uma lei ou mesmo de uma interpretação físi-ca. Muitas vezes, a falta de tais elementos impede que os alunos se apropriem dos conteúdos físicos ensinados na sala de aula. Sem jus-tificativa, os conteúdos científicos passam a ser vistos como dogmas a serem incorporados de forma a-crítica. Trataremos disso quando estudarmos a Transposição Didática.

Antes de iniciarmos uma análise mais detalhada do sistema de Ensino descrito acima, vamos revisar as concepções de ensino para compar-tilhamos do mesmo entendimento sobre como pode ocorrer o ensino em sala de aula e estabelecermos uma linguagem comum.

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129As concepções de ensino

8 As concepções de ensino

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Vamos começar o capítulo procurando estabelecer o en-tendimento que vulgarmente é dado à expressão “ensino tradicional” e o que de fato leva a caracterizar este tipo de ensino como tal. Outra concepção de ensino que teve forte repercussão no Brasil foi o tecnicismo, por isto a impor-tância de caracterizar a vertente tecnicista e sua relação com o behaviorismo. Dentre a concepções de ensino que se fazem muito presentes nos dias de hoje, está a verten-te teórico-crítica, na qual vamos encontrar os princípios educacionais freirianos. Como a mais forte concepção contemporânea: enunciar os princípios da visão cons-trutivista.

8.1 O ensino tradicional

É muito comum a comunidade dos professores utilizarem-se da ex-pressão “ensino tradicional” como sinônimo de ensino expositivo e uso de quadro e giz.

Na realidade, isso é um grande equívoco. O ensino tradicional é uma prática pedagógica, associada a uma concepção de educação, que se instituiu quando a educação formal coletiva se organizou.

Sem adentrar em detalhes históricos para precisar a data ou o acon-tecimento, podemos nos atrever a indicar a Revolução Francesa (1789) como o ponto de partida da organização embrionária do sistema es-colar, mais próxima desta em que hoje estamos inseridos. A ruptura com o sistema monárquico e a aspiração de uma nova ordem social mais igualitária direciona o povo francês a planejar e desenhar a nova organização fundamentada em seu lema revolucionário. A pretensão da revolução era defender a liberdade individual, buscar a igualdade entre os cidadãos e incentivar a fraternidade do povo.

E este sentimento é tão forte que a primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o equivalente à nossa Constituição, em seu artigo primeiro, estabelece que:

Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

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Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais não podem ser fundamen-tadas senão sobre a utilidade comum.

Os termos livres e iguais devem ser entendidos e estendidos no seu limite máximo. Significa entender que todos teriam acesso aos bens produzidos pela sociedade, e dentre eles a Educação, fato que, até a revolução, só era acessível aos mais abastados. A idéia de que todos nós, independentemente de sexo, religião, raça, nascimento ou situ-ação social, devemos ter acesso à mesma educação foi um dos mais significativos e duradouros legados da Revolução Francesa de 1789.

Chegar a ela, a essa conquista, realmente não tem sido fácil, mas o primeiro passo foi inquestionavelmente dado pela proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, e reafirmado por uma outra declaração de direitos, a de 1793, em seu artigo 22. A Revolução Francesa, também conhecida como Revolução Burguesa, defende a constituição de uma sociedade demo-crática, ou seja, a democracia burguesa. Para ascender a um tipo de sociedade baseada na tríade do lema revolucionário era imperativo vencer a barreira da ignorância. Desta forma, seria possível transfor-mar os súditos ou marginalizados (aqui utilizado como sinônimo de ignorante intelectual) em cidadãos livres, e isto era tarefa a ser de-sempenhada pela escola.

Se a utopia dos revolucionários franceses não se concretizou de ma-neira plena e perene àquela época, foi alcançada décadas à frente. Seu ideal foi um legado que se perpetuou nos objetivos de muitos povos.

Toda ordem social se inspira em um projeto de sociedade, que deverá considerar as diferentes facetas de como se organizará a sociedade e quais os objetivos e os meios de que fará uso para alcançá-los. E no bojo deste projeto social encontramos o projeto educacional, pois ele será um dos determinantes do rumo que será dado a diferentes áreas: indústria, comércio, tecnologia, ciência, letras, etc. A emancipação de um povo, fato já percebido naquele tempo, estava no domínio do conhecimento e de certas tecnologias.

Uma sociedade adotando um projeto social lutará por ele e, quando institucionalizado, com o passar do tempo, lutará muito mais pela sua manutenção. Neste momento, esta sociedade, que em seus primórdios era revolucionária, inicia o ciclo de ratificação, tradição e sustentação daquele projeto social: tornar-se uma sociedade conservadora.

Um dos temas mais fascinantes colocados

pela revolução de 1789 foi a questão da educação

popular. De certa forma, até hoje ainda se tenta,

particularmente nos países do Terceiro Mundo, levar adiante o programa dos

revolucionários france-ses, especialmente o do

filósofo Condorcet. Ele foi matemático e filósofo e um

dos líderes ideológicos da revolução. Ocupava uma cadeira de deputado pela

cidade de Paris na Assem-bléia Nacional Francesa.

Seu projeto, apresenta-do na ocasião, era uma tradução para o campo educacional dos ideais

iluministas que nortearam o processo de revolução.

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131As concepções de ensino

É neste momento que este sentimento conservador também se trans-fere para o sistema escolar, manifestando-se na sua organização ad-ministrativa e nas práticas pedagógicas do corpo docente, passando a oferecer as seguintes características:

Tornar-se um • ensino dogmático, isto é, tudo que é ensinado tem um sentido de verdade final, nada pode ou deve questionado. O saber estabelecido como verdadeiro deve ser assimilado para dar continuidade ao progresso social prescrito pela sociedade.

Desta forma, se transforma em um • ensino conservador, pro-curando conduzir os aprendizes na preservação dos valores e princípios sociais já consolidados – a manutenção do status quo.

Para que os atributos anteriores sejam alcançados e as novas •gerações defendam o projeto social inicial, necessariamente, deve ser incentivada a visão da reprodução social.

O ensino deve • valorizar o saber pelo saber, no sentido da erudição, não importando, a priori, justificar seu uso. Basta o aprendiz ter noção de que aquilo que é ensinado é importante. Conexões deste conhecimento com sua vida cotidiana não se fazem necessárias.

No ensino das Ciências, em particular, é enfatizada a • visão po-sitivista da neutralidade da ciência.

Ao • professor cabe assumir a função de detentor do saber e sua atuação pedagógica é de mero transmissor do conhe-cimento. Seu ensino é determinativo, dogmático, sem espaço para colocar em dúvida a ciência estabelecida.

Ao • aluno é reservado o papel de “sem história”, isto é, sua vida escolar desconhece sua vida diária e suas interações com o mun-do. Seu ingresso na escola admite a existência de uma mente vazia e ausente de conhecimento, a famosa tábula rasa ou folha em branco. Sua atuação é de mero receptor do conhecimen-to. A experiência relevante que o aluno deve vivenciar é a de ter acesso às informações, conhecimento e ideias, podendo, assim, conhecer o mundo físico e social. São enfatizadas as disciplinas intelectuais, para que se obtenha a atenção, concentração, si-lêncio e o esforço necessários ao bom aprendizado. A escola é o local onde se raciocina e o ambiente deve ser convenientemente austero para o aluno não se dispersar.

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Para o sucesso da preservação desta visão conservadora, o pro-•cedimento didático mais adequado é o expositivo. Oferece ao professor a oportunidade de elaborar um discurso didático que, além do conhecimento, aglutina as características citadas acima. É um discurso que legitima a visão conservadora e tra-dicionaliza uma visão de sociedade, além de ampliar e dar mais significado à sua função de transmissor dos valores estabele-cidos. O professor tem poder decisório quanto à metodologia, conteúdo e avaliação. Através da repetição de exercícios siste-máticos (lições e tarefas) busca que seus alunos assimilem as informações e conceitos. É admitido que todos os alunos estão no mesmo patamar de aprendizagem e, portanto, existe a igual-dade de tratamento, onde todos deverão seguir o mesmo ritmo de trabalho, estudar os mesmos livros e adquirir os mesmos conhecimentos. Aqui, a concepção de educação é caracterizada como produto, já que estão pré-estabelecidos os modelos a se-rem alcançados. No contraponto, o aluno, submetido ao discur-so do professor, confirma seu papel de receptor.

Frente ao que foi colocado, reafirmamos que assumir que o ensino tradicional é sinônimo de aula expositiva é muito ingênuo e equivo-cado. Ensino tradicional não é só aula expositiva, mas possivelmente uma aula expositiva traz muito de concepção tradicional. Este é um cuidado que se deve tomar. Não é renegar a aula expositiva, é renegar a mensagem subliminar, isto é, a mensagem da visão conservadora, a-crítica e isenta de valores. É não mais ignorar a vida do aluno e suas interações com o mundo real e aceitar a permanente resistência de manter-se acomodado em uma prática escolar.

Portanto, doravante, ao referir-se a “ensino tradicional” lembre-se que ele reflete muito mais que a simples aula expositiva. Reflete valores que, muitas vezes, estão impregnados em nossa prática pedagógica, dos quais não nos apercebemos.

8.2 O tecnicismo

Em meados do século XX, constata-se que o ensino tradicional não alcançou seus objetivos iniciais. Pois nem todos os que ingressaram na escola foram bem sucedidos e muitos daqueles que foram bem su-cedidos não se ajustaram à sociedade que se queria consolidar. Dito de outro modo: esta escola falhou!

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133As concepções de ensino

Surge um grande movimento para modificar os objetivos da escola, que foi denominado Escolanovismo ou Escola Nova. Não entraremos nos detalhes deste movimento, mas apenas o apontamos para sinali-zar sua existência e lembrar que também não cumpriu seus objetivos, criando a aspiração de novamente mudar-se a escola!

Neste clima de divergências e conflitos na área educacional, a propos-ta do ensino tecnicista nasce como uma possível alternativa redento-ra, na década de 70.

O ensino tecnicista é fruto das pesquisas em Psicologia Comporta-mental que se iniciaram no inicio do século passado com Pavlov, na União Soviética. A partir dele, vários pesquisadores da área, denomi-nados de behavioristas ou comportamentalistas, deram continuidade a seus trabalhos, ora corroborando-o, ora contestando-o. A base des-tes trabalhos era o princípio de que “a todo estímulo a dado organis-mo, este se manifestará com uma resposta”.

Os behavioristas ou comportamentalistas dão enorme valor à expe-riência ou à experiência planejada como a base do conhecimento. Skinner é considerado por alguns como o principal representante da análise experimental do comportamento humano. O behaviorismo ou comportamentalismo, um dos paradigmas da Psicologia, é a base de sustentação teórica da Tecnologia Educacional ou tecnicismo. Como consequência, as principais premissas desta proposta passam a ser a eficiência, a racionalidade e a produtividade. O centro de ensino não é mais o professor, nem mais o aluno, mas as técnicas. Daí o nome tecnicismo ou escola tecnicista. O ensino se reorganiza no sentido de tornar-se objetivo e operacional. Aos professores é designada a tare-fa da operacionalização dos objetivos, como instrumento para medir comportamentos observáveis, válidos porque mensuráveis e passí-veis de controle. Dissemina-se o uso do grande trunfo da Tecnologia da Educação, a instrução programada (auto-instrução), proliferam-se os testes de múltipla-escolha (utilizados até hoje), do tele-ensino e dos mais diversos recursos audiovisuais. Enfim, um sem número de novidades tecnológicas é agregado ao sistema de ensino. As escolas precisaram modificar suas estruturas de controle para assimilar a bu-rocracia de apoio ao sistema que se impõe. O destaque e importância das técnicas de ensino, a listagem dos objetivos de ensino na forma operacional, a explicitação das metodologias e as estratégias a serem utilizadas fizeram surgir formulários e todo um conjunto de papéis a serem preenchidos pelos professores, fazendo surgir um grupo de apoio na escola.

Aqui é um ótimo momento para uma pausa e retomar o livro de Psicologia Educacional: desenvolvimento e aprendizagem e ler o capítulo 9 (página 123) para fixar e relacionar com nosso texto.

O grande exemplo no ensino de Física foi o Projeto Piloto da UNESCO e o Projeto FAI, já discutidos no capitulo 7.

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Mesmo com roupagem nova, através dos novos instrumentos e téc-nicas educacionais utilizadas, a raiz ideológica do tecnicismo era a mesma do ensino tradicional difusor da democracia burguesa – di-minuir ou eliminar o número de marginalizados ou ignorantes, mas preservando os valores sociais já estabelecidos.

Os papéis de alguns personagens foram alterados. O professor, antigo transmissor, transforma-se em organizador/planejador do processo de ensino-aprendizagem, planejando as tarefas, testes, etc. Os alunos são deslocados de sua posição de receptores para uma posição mais ativa, seja na leitura do material instrucional planejado pelo professor, seja na realização de atividades de laboratório ou resolução de exercí-cios. O importante é que cada aluno siga seu ritmo próprio de apren-dizagem, progredindo ao longo do curso com velocidade compatível com suas habilidades e disponibilidade de tempo, entretanto, é crítico que ele demonstre domínio quase que completo do que foi estudado.

Esta proposta também não conseguiu atingir seu grande objetivo: co-locar no mercado de trabalho indivíduos competentes e produtivos. A proposta como um todo fracassou por motivos vários. Alguns autores justificam o fracasso pela inexperiência de articulação entre a escola e o processo produtivo. Não será objeto, neste momento, darmos continui-dade a esta discussão, mas assinalar a presença desta visão de ensino fundamentada na descrição acima.

8.3 A visão crítica de Educação

Com a esperança frustrada de que a proposta tecnicista pudesse dar conta do processo de ensino-aprendizagem, ao final da década de 1970, surgem as teorias ditas crítico-reprodutivistas. São assim cha-madas, pois, além de imputarem uma finalidade social à educação, havia uma relação de dependência, isto é, de reprodução social. Nesta vertente teórica, que não oferecia uma proposta pedagógica, havia um forte teor analítico, que tinha como princípio a compreensão de que a educação só poderia ser feita por seus determinantes sociais. Neste contexto, explicava-se o fenômeno da marginalização cultural, por se afirmar o caráter seletivo da escola, justificado na reprodução social. Aqueles que querem se aprofundar encontrarão em Bourdieu e Passeron, entre outros, seus representantes. Chamamos a atenção para o fato de que há algumas divergências entre os autores, mas, ainda assim, eles podem ser entendidos como pertencentes ao mes-mo movimento.

O Sociólogo francês Pierre Bourdieu escreveu

trabalhos sobre a temática da dominação que

contemplavam áreas como Educação, cultura, política

e outras.

Sociólogo, Jean-Claude Passeron, foi parceiro

de Bourdieu na obra La Reproducion, que tinha

como enfoque elementos de uma teoria geral para o

ensino.

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135As concepções de ensino

O fenômeno da marginalidade cultural (exclusão escolar) permaneceu sem resposta ou solução até os primeiros anos da década de 80 do século XX. Enquanto as teorias crítico-reprodutivistas ficavam restri-tas à relação da Educação com os determinantes sociais, surge, nes-te início de década, o que se convencionou chamar de teoria crítica. Esta visão de Educação, além de levar em conta seus determinantes sociais, a percebia como veículo de superação da exclusão.

Ausônia Donato resume de maneira bastante clara o entendimento da perspectiva da Teoria Crítica, quando afirma que:

Dentro desta perspectiva teórica, estamos num movimento que busca resgatar os aspectos positivos das teorias firmadas no coti-diano escolar (as teorias não-críticas), articulando-os na direção de uma transformação social. Assim, resgata-se da Pedagogia Tradicional a importância da dimensão do saber; da Escola Nova, a dimensão do saber ser, e da Pedagogia Tecnicista, a dimensão do saber fazer. Em essência, sua proposta pedagógica traduz-se pelos seguintes princípios:

o caráter do processo educativo essencialmente reflexivo, •implica constante ato desvelamento da realidade. Funda-se na criatividade, estimula a reflexão e ação dos alunos sobre a realidade;

a relação professor/aluno é democrática, baseada no diá-•logo. Ao professor cabe o exercício da autoridade compe-tente. A teoria dialógica da ação afirma a autoridade e a liberdade. Não há liberdade sem autoridade;

o ensino parte das percepções e experiências do aluno, •considerando-o como sujeito situado num determinado contexto social;

a educação deve buscar ampliar a capacidade do aluno, •considerando-o como sujeito situado num determinado contexto social;

a educação deve buscar ampliar a capacidade do aluno para •detectar problemas reais e propor-lhes soluções originais e criativas. Objetiva, também, desenvolver a capacidade do aluno de fazer perguntas relevantes em qualquer situação

Você ainda poderá rever o capítulo 5 (p. 105) do livro Fundamentos Filosóficos da Educação e rever a “Teoria critica e sua contribuição para Educação” e, no livro Didática Geral, capítulo 3 (p. 48), um texto que trata sobre Paulo Freire.

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e desenvolver habilidades intelectuais, como a observação, análise, avaliação, compreensão e generalização. Para tanto, estimula a curiosidade e a atitude investigadora do aluno;

• oconteúdopartedasituaçãopresente,concreta.Valoriza-se o ensino competente e crítico de conteúdos como meio para instrumentalizar os alunos para uma prática social transformadora.

A educação é entendida como processo de criação e recriação de conhecimentos. Professor e aluno são considerados sujeitos do processo ensino-aprendizagem. A apropriação do conhecimen-to é também um processo que demanda trabalho e disciplina. Valoriza-se a problematização, o que implica uma análise crítica sobre a realidade-problema, desvelando-a. É ir além das aparên-cias e entender o real significado dos fatos.

Cito como principais representantes desta tendência pedagógica no Brasil, Professor Paulo Freire (FREIRE, 1982), Professor Derme-val Saviani (SAVIANI, 1984, 1991), Professor José Carlos Libâneo (LI-BÂNEO 1983, 1989) e Professor Moacir Gadotti (GADOTTI, 1983).

8.4 A concepção construtivista

Uma importante contribuição para as mudanças ocorridas no proces-so de ensino-aprendizagem foi decorrência das pesquisas piagetianas. Piaget foi um dos primeiros a se dedicar à psicogênese dos conceitos e, junto com seus colaboradores, desenvolveu estudos sobre noções numéricas, noções de conservação, noção de tempo, movimento e velocidade, força, conservação e atomismo de crianças e adolescen-tes. Seu trabalho na área de epistemologia genética é reconhecido desde a década de 40. Entretanto, Piaget não formulou uma teoria de aprendizagem, mas sim uma teoria da formação do conhecimento e dos mecanismos que são utilizados pelo indivíduo para que ele ocor-ra. Entretanto, Astolfi (1995) coloca que a psicologia genética foi, des-de muito cedo, estreitamente vinculada à didática, pelo fato de Hans Aebli, já em 1951, apresentar propostas de renovação dos métodos da didática a partir das concepções operatórias desenvolvidas por Pia-get. Isso implica dizer, na concepção de Astolfi, que, desde as suas origens, a didática, tal como hoje é definida, foi o campo de aplicação da psicologia genética.

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137As concepções de ensino

Mais tarde, na década de 70, é que os resultados dos trabalhos de Pia-get passaram a ser aplicados nas pesquisas em ensino de Ciências. Os educadores e psicopedagogos buscam na obra de Piaget algo como uma caracterização de como o sujeito que aprende constrói seu pró-prio conhecimento. A utilização da teoria psicogenética fundamenta pesquisas para o estabelecimento de objetivos educacionais, para a seleção e ordenação dos conteúdos e para a proposição de métodos de ensino.

Na epistemologia genética de Piaget o conhecimento é considerado como uma construção contínua, e a aprendizagem é entendida como uma atividade do sujeito epistêmico, universal, possuidor de estrutu-ras construídas e em construção, na sua relação com o ambiente (ou com o objeto do conhecimento). A aprendizagem ocorre pela constru-ção de estruturas que caracterizam o desenvolvimento operatório.

Lembramos ainda que uma outra contribuição para a compreensão sobre o processo de ensino-aprendizagem está nos estudos de Ba-chelard. Ele propôs que o progresso do espírito científico se dá por rupturas com o senso comum, pois não se pode conhecer por meio da opinião e nada se pode construir sobre ela. Bachelard analisa as questões dos obstáculos epistemológicos para o ensino e conclui que muitos dos obstáculos epistemológicos se encontram presentes no pensamento infantil. Neste sentido, apresenta um novo significado para o erro cometido pelo aluno. O erro, na visão de Bachelard, passa a ser fonte de detecção de obstáculos, pois tinha o entendimento de que o conhecimento científico ensinado se opõe às concepções dos alunos, construídas no cotidiano.

Estas contribuições desencadearam, no fim da década de 70, o en-tendimento de que o aluno é construtor de seu conhecimento e que, no processo de ensino-aprendizagem, devem ser levadas em conta as concepções trazidas por ele. Esse novo entendimento se constitui, na área de ensino de Ciências, no movimento das “concepções alter-nativas”, aglutinando as pesquisas da área. Essa linha de pesquisa apresentou uma produção significativa nos estudos sobre esquemas conceituais alternativos. No âmbito do processo de ensino-aprendiza-gem é recente o entendimento de que os alunos pensam, isto é, que trazem para a sala de aula concepções a respeito das coisas, constru-ídas no seu cotidiano.

A partir da década de 80, tendo como base os estudos publicados por Driver (1973), Viennot (1979) e Saltiel (1980), em Didática das Ciências, se encaminharam por uma linha de investigação prioritária: o estudo

Vá ao livro de Psicologia Educacional: desenvolvimento e aprendizagem e reveja com detalhes, no capítulo 7 (p. 93), as contribuições de Piaget.

O filósofo e poeta francês Gaston Bachelard escreveu trabalhos sobre epistemologia e tem como principais obras: Le nouvel esprit scientifique (1934) e La formation de L’esprit scientifique (1938).

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das preconcepções dos alunos. Estas pesquisas, em sua maioria, se destinavam a investigar as concepções que os alunos possuem sobre determinado conteúdo do conhecimento científico e foram orientadas pela concepção construtivista, ou seja, pelo movimento de aprendi-zagem construtivista. Estudaremos (essa vertente) com mais detalhe nos capítulos seguinte.

O construtivismo educacional, de acordo com Ogborn (1997) colocou em discussão quatro aspectos importantes:

• Oenvolvimentoativodoalunoemsituaçõesdeensi-no e aprendizagem.

• A importância do respeito pela criança e por suasideias.

• A compreensão de que a Ciência consiste de ideiascriadas por seres humanos.

• O entendimento de que o planejamento do ensinodeveria priorizar a construção de significado pelos alunos, capitalizando e usando o que eles sabem, e tratando das dificuldades que surgem decorrentes da maneira como eles imaginam que as coisas sejam.

As ideias construtivistas se ampliam para muito além destas consi-derações, incluindo diferentes pressupostos e fazendo surgir várias linhas de investigação, como os construtivismos piagetiano, radical, social, sociológico, pragmático, crítico contextual, dialético, empírico, metodológico, moderado, pós-epistemológico, realista, sócio-históri-co, didático, humanístico. Estes diversos matizes de construtivismo dependem da inclusão de diferentes pressupostos oriundos da episte-mologia, da psicologia ou da sociologia e ainda da interpretação que fazem destas inclusões. Dependem também da concepção adotada a respeito do processo educacional

De acordo com Matthews (1994), o construtivismo educacional é constituído por duas correntes básicas: o construtivismo psicológico e o sociológico. O primeiro deles é localizado historicamente como originado nos trabalhos de Piaget, para quem a aprendizagem é um processo de construção pessoal e intelectual, resultante da ação do aprendiz no mundo. No interior desta corrente destacam-se o cons-trutivismo piagetiano, que mantém a tradição mais subjetiva de Pia-get, e o construtivismo social iniciado por Vygotsky, para quem a

Releia no livro Psicologia Educacional:

desenvolvimento e aprendizagem, capítulo 7

(p. 98), as contribuições de Vygotsky.

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139As concepções de ensino

linguagem tem especial importância nas construções cognitivas dos indivíduos. O construtivismo sociológico tem seu início marcado no pensamento de Durkheim, caracterizando-se por desconsiderar os mecanismos psicológicos individuais e pela tese de que o conheci-mento científico é social e contextualmente construído. Para alguns pesquisadores o construtivismo é compreendido como uma teoria da aprendizagem, enquanto para outros ele é visto como uma teoria educacional. Segundo Matthews, a maioria das pesquisas em educa-ção utiliza o construtivismo psicológico como referência.

Resumo

A intenção deste capítulo foi oferecer uma visão rápida de algumas das principiais concepções de ensino. Ressaltamos a importância do entendimento da expressão “ensino tradicional” e suas implicações em diferentes dimensões (epistemológica, ideológica, social e pedagógi-ca). A proposta “freiriana” pode ser considerada pertencente à con-cepção crítica de Educação e inspira inúmeros projetos e programas educacionais no Brasil. Finalmente, tratamos do construtivismo, por ser uma concepção mais contemporânea.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no capítulo, provocá-lo para uma discussão, dire-

cioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por que não, levá-lo a ponderar

sobre sua inclusão no planejamento de suas aulas. Não se sinta obrigado a

memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar uma resposta escrita consi-

derando a argumentação (prós e contras) proporcionada pelo capítulo. Bom

trabalho!

1) Faça um pequeno resumo de cada setor do sistema de ensino, inspirado em sua prática docente, agregando exemplos vivenciados em sala de aula.

2) Como você explicaria a um colega que “ensino tradicional” não é aquilo que ingenuamente é pensado ser “aula expositiva com quadro e giz”?

Émile Durkheim foi o fundador da escola francesa de sociologia, posterior a Marx, que combinava a pesquisa empírica com a teoria sociológica. É reconhecido amplamente como um dos melhores teóricos do conceito da coesão social.

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140

3) O que fundamenta a concepção crítica de educação?

4) Como você interpreta a visão freiriana no espírito da concepção crítica de educação?

5) Quais os princípios da concepção construtivista de ensino?

Referências

ASTOLFI, J. P.; DEVELAY, M. A didática das ciências. São Paulo: Papirus, 1995.

BACHELARD, G. A filosofia do não; o novo espírito científico; a poética do espaço. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

BACHELARD, G. Epistemologia: Trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

DRIVER, R. The representation of conceptual frameworks in young adolescent science students. Urbana: University of Illinois, 1973.

MATTHEWS, M. R. Constructivism and empiricism: an incomplete divorce. Research in Science Education, v. 22, p. 299-307, 1992.

MATTHEWS, M. R. Science teaching: the role of history and philosophy of science. New York; London: Routledge, 1994.

OGBORN, J. Constructivist metaphors of learning science. Science & Education. v. 61, n. 2, p. 121-133, 1997.

SALTIEL, E.; MALGRANGE, J.C. Spontaneous ways of reasoning in elementary kinematics. Eur. Phys. v. 1, p. 73-8, 1980.

VIENNOT, L. Spontaneous reasoning in elementary dynamics. Eur. J. Sci. Educ. v. 1, n. 2, p. 205-222, 1979.

Page 141: Livro de INSPE [Atualizado]

141Representações intuitivas

9 Representações intuitivas

141

No inicio desta unidade apresentamos a você um mode-lo do Sistema de Ensino mostrando as relações entre co-nhecimento, professor e estudante. Para efeitos da nossa discussão, vamos, neste capitulo, nos dedicar a relação “conhecimento – estudante” ou ao setor que trata da apro-priação dos conhecimentos. Para isto, será necessário ca-racterizar o que se entende por uma concepção alter-nativa ou representação intuitiva. Não podemos deixar de lado saber identificar uma representação intuitiva nas respostas dos alunos e a sua importância no processo de ensino, assim como distinguir as atitudes de um pro-fessor de transmissão daquele professor de interpretação. Não podemos esquecer de Bachelard, que também discu-te as dificuldade da aprendizagem de conceitos científicos, daí ser importante caracterizar obstáculo epistemoló-gico e sua relação com os diferentes momentos históri-cos. Caracterizar obstáculo de origem ontogênica é fundamental para sabermos organizar o ensino de modo a desenvolver estruturas cognitivas nos educandos. Não podemos esquecer de localizar obstáculos didáticos de-correntes de escolhas didáticas equivocadas para deter-minados conteúdos.

9.1 As representações intuitivas

Nas últimas duas décadas do século passado, vários estudos aborda-ram as formas construídas pelos estudantes para interpretar o mundo exterior. Dessas investigações resultou uma série de trabalhos que evidenciaram formas estruturadas de entender os fenômenos natu-rais diferentes das cientificamente aceitas. Essas estruturas foram de-finidas e denominadas como “concepções alternativas”, “concepções intuitivas”, “esquemas”, “teorias ingênuas”, “preconcepções”, “formas alternativas de raciocínio”, “representações espontâneas”, “concep-ções espontâneas”, etc., pelos diferentes pesquisadores, mas, em sua raiz, não há grandes diferenças teóricas entre elas. Nós vamos nos referir a elas como representações intuitivas.

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142

Inúmeros trabalhos foram desenvolvidos nessa linha visando a iden-tificar as características dessas concepções ou representações. Cen-trando-se em domínios particulares do conhecimento, esses estudos mostraram o perfil de representações intuitivas dos estudantes quan-do comparadas com representações ou concepções científicas. O con-ceito científico de força, estudado por Watts e Zylbersztajn (1981), en-tre outros, delinearam características importantes das representações dos alunos em relação a esse domínio conceitual. O mesmo pode ser dito sobre da noção de “referencial” nos trabalhos de Saltiel (1980). De maneira geral, esse tipo de pesquisa tem-se dedicado a inspecionar cada domínio do conhecimento científico, levantando o perfil das re-presentações construídas pelos estudantes.

Estes trabalhos indicaram que os estudantes possuem concepções acerca desses eventos que, muitas vezes, diferem das concepções aceitas cientificamente. Têm-se verificado, por meio dessas pesqui-sas, que os alunos possuem concepções sobre movimento, impulso, quantidade de movimento, calor, temperatura, etc., diferentes das con-cepções cientificamente aceitas na atualidade e que essas concepções interferem no processo de ensino-aprendizagem desses conteúdos. Em alguns casos, as respostas dos estudantes se aproximam de expli-cações que já fizeram parte do conhecimento no passado.

O sucessivo estudo sobre as representações intuitivas dos estudantes levantou a questão de se saber se eles se encontravam desconectados ou não. Pareceu estranho aos pesquisadores que tantos alunos de diferentes nacionalidades e, mais tarde, também de diferentes idades, apresentassem representações intuitivas tão semelhantes. Seria por demasiado fácil atribuir tal fato ao acaso.

Foi possível identificar que os estudantes geralmente apresentam um padrão comum de respostas para classes comuns de problemas. Para problemas que envolvem movimentos relativos, deslocamento e velo-cidade se percebe que muitos estudantes apresentam problemas em utilizar um sistema de referência específico e preferem adotar um sis-tema de referência único, absoluto, geralmente o solo. Quando se trata de explicar qualquer tipo de movimento de um corpo, geralmente os estudantes relacionam força e movimento, atribuindo, em regra geral, a existência de uma força na direção do movimento e considerando a existência de uma proporcionalidade direta entre força e velocidade.

As concepções que o estudante possui são construídas ao longo de sua existência, muitas delas baseadas nas evidências dos sentidos, na sua relação com o meio ambiente. Isso pode justificar a incidência de

Reinders Duit, em 1994, possuía um arquivo

eletrônico de referência bibliográfica no qual,

das 3500 pesquisas registradas, mais de 2500 publicações se

referem a pesquisas sobre concepções alternativas

dos estudantes.

Page 143: Livro de INSPE [Atualizado]

143Representações intuitivas

respostas semelhantes, para investigações feitas em diferentes meios sócio-culturais, isto é, diferentes países. Os resultados das pesquisas apontam para o fato de que os conceitos científicos que os estudan-tes possuem, diferentes dos que se ensina na escola, são altamente resistentes à mudança. Mesmo estudantes de maior grau de escolari-dade, e vinculados a atividades científicas, respondem a determinadas questões utilizando seus esquemas conceituais alternativos. Assim, muitos dos erros cometidos pelos alunos ao responderem determina-dos problemas deixaram de ser encarados como erros e passaram a ser fontes de detecção de concepções envolvidas nos problemas.

Do ponto de vista do ensino de Física, se evidencia a importância de se conhecer os esquemas conceituais alternativos dos estudantes por se entender que a aprendizagem de conceitos complexos ocorre pela organização e reestruturação de esquemas conceituais construídos a partir de noções intuitivas iniciais. As representações intuitivas pos-sibilitam que o estudante construa explicações e faça previsões no seu dia a dia, durante uma boa parte de sua vida. Por isso, elas apre-sentam características que devem ser consideradas no processo de ensino-aprendizagem:

As representações intuitivas são dotadas de certa coerência •interna e apresentam semelhanças com concepções historica-mente superadas.

As representações intuitivas são persistentes e não se modifi-•cam facilmente com o ensino tradicional e nem mesmo frente a experimentos que se conflitam com elas.

As representações intuitivas dos alunos não são simples cons-•truções para um único fato, tendo um relativo poder explicati-vo.

As representações intuitivas são encontradas em um grande •número de estudantes em diferentes meios e idades.

Os estudantes utilizam de linguagem imprecisa e terminologia •imprópria para expressar suas ideias.

Não se pode atribuir todas as dificuldades dos estudantes às •suas representações intuitivas.

O fato de algumas explicações dos estudantes apresentarem seme-lhanças com concepções superadas historicamente, como a teoria do

Page 144: Livro de INSPE [Atualizado]

144

Impetus e o entendimento do calor como um fluido, suscitou o levan-tamento de questões sobre a possibilidade de comparação entre o processo histórico da construção de conhecimento e o da constru-ção de um estudante. O contexto nas quais essas explicações foram formuladas é fundamentalmente diferente do contexto no qual vive o estudante de hoje. Essas semelhanças são justificadas muito mais pelo fato dos estudantes basearem seus esquemas conceituais nas evidências dos sentidos, do que numa repetição, em nível individual, do processo da construção do conhecimento científico.

Uma característica importante dessas representações intuitivas é o fato delas serem consideradas pelos estudantes como ade-quadas e satisfatórias na tarefa de interpretar os problemas aos quais eles atacam. Esse ponto não chega a surpreender, pois o contrário implicaria aceitar que um indivíduo adotaria um sistema interpretativo que ele próprio considera inadequado. Talvez, baseado nessa afirmação, fique fácil compreender por que essas representa-ções se opõem com tamanha resistência às concepções científicas trazidas pelo ensino tradicional. Na verdade, várias pesquisas eviden-ciaram que tais representações intuitivas manifestam-se mes-mo após períodos em que o aluno foi submetido ao ensino de teorias científicas, que a princípio fornecem referenciais mais adaptados para se interpretar o mundo natural. As representa-ções construídas pelos estudantes revelam-se suficientemente articu-ladas na sua mente dificultando e mesmo impedindo a incorporação de conceitos e teorias outras.

De imediato, esses resultados podem ser absorvidos na prática de ensino pelas informações que eles fornecem sobre situações que se-rão abordadas em sala de aula. Conscientes desses resultados, os professores poderiam melhorar seu desempenho, atuando advertidos. Porém, não se trata de encarar essas pesquisas como meio de obter um “inventário” das representações dos alunos, mas de procurar entender como o aluno procede na sua tentativa de interpretar o mundo físico. Lembramos que essas representações não se constituem em características fixas para todos os alunos e um inventário delas seria demasiadamente vasto e, assim, de pouca im-portância para o professor. Vale ainda enfatizar que essas represen-tações não se apresentam como estruturas acabadas na sua maioria, mas muitas vezes apenas “bases” conceituais que embasam as in-terpretações dos indivíduos em determinadas situações. Mais que o conteúdo contido nas representações, o mais importante nesses trabalhos parece ser a possibilidade de compreender o processo de

A busca e análise de semelhanças entre o modo como ocorreu a construção do conhecimento científico e os esquemas conceituais dos estudantes foi objetivo de alguns trabalhos, como

os de Piaget e Garcia (1987), Saltiel e Viennot

(1985), Saltiel (1980), Pietrocola (1993). Estas

pesquisas indicaram a impossibilidade de estabelecer paralelos

completos entre esses universos.

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145Representações intuitivas

construção dessas últimas, atentando para características gerais do conhecimento dos alunos que possam orientar ações de ensino.

O texto a seguir é extremamente didático e esclarece muito acerca das representações intuitivas e como tratá-las em sala de aula.

COnCepções espOntâneas em físiCa: exemplOs em dinâmiCa e impliCações para O ensinO

arden zylBersztajn

departamentO de eduCaçãO – ufnr

(ZYLBERSZTAJN, Arden. Concepções espontâneas em física: exemplos em

dinâmica e implicações para o ensino. Revista de Ensino de Física. v. 5, n.

2. p. 3-16, Dez., 1983.)

Professor: ... e a pedra foi lançada verticalmente para cima... quais são as

forças que agem sobre ela durante o movimento?

Aluno: Tem uma força pra cima.

Professor: Pra cima?

Aluno: É.

Professor: Bom... eu estava pensado que a pedra já abandonou a mão da

pessoa.

Aluno: Sim... é pra cima porque a pedra está indo pra cima... aí quando

ela cai a gravidade puxa ela pra baixo.

O diálogo acima é imaginário. Acredito, contudo, que diálogos semelhan-

tes ocorram comumente em aulas de Física. Professores perceptivos devem

certamente ter notado que alunos de 2º grau, e mesmo estudantes univer-

sitários, tendem a associar uma força com a velocidade de um objeto e não

com a sua aceleração. Não faltam também aqueles que, como sugere a úl-

tima frase do diálogo, pensam que a gravidade terrestre age apenas sobre

corpos em queda.

Situações como a descrita no diálogo imaginário evidenciam o fato de

que crianças e adolescentes desenvolvem espontaneamente, e trazem para

TexTo 4

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146

as salas de aula, concepções a respeito de fenômenos físicos1. Pesquisas têm

demonstrado que estas concepções, na forma de expectativas, crenças,

princípios intuitivos, e significados atribuídos a palavras cobrem uma vasta

gama dos conceitos que fazem parte dos currículos de disciplinas científi-

cas2. É igualmente verdadeiro que, para muitos, algumas destas noções são

fortemente incorporadas à sua estrutura cognitiva, tornando-se resistentes à

instrução.

Tradicionalmente, professores e pesquisadores devotaram pouca atenção

à existência de tais noções, considerando-as pura e simplesmente como erros

que seriam facilmente corrigíveis. Em decorrência, problemas relativos ao en-

sino de física têm sido mais comumente ligados ao uso de técnicas matemá-

ticas e menos às dificuldades de nível conceitual 3.

Apenas mais recentemente, pesquisadores em Ensino de Ciências pare-

cem ter se dado conta das implicações educacionais decorrentes do fato de

que alunos constróem concepções a respeito da realidade que os cercam.

Concepções estas que lhes proporcionam uma compreensão pessoal desta

1 Estas noções originam-se tanto através da experiência direta com o mundo físico, como também através de experiência indireta com o mesmo, Isto é, mediada pela interação social e linguística com o círculo familiar, comunidade e meios de comu-nicação. Neste artigo serão usadas as expressões “noções espontâneas” e “con-cepções espontâneas” para indicar a ausência de uma intenção educativa no proc-esso formativo das mesmas.

2 Os conceitos a serem tratados neste artigo referem-se a tópicos relacionados com mecânica, que tem sido a área mais explorada. Para exemplos de estudos em out-ras áreas da física ver: Termologia – E. F. Albert, “Development of the comcept of heat in children”, Sci. Educ. 62 (3), 1978; A. Tiberghien e G. Delacote, “Resultat-spréliminares sur la conception de la chaleur chez les enfants de 10 12 ans”, in g. Delacote (Ed.), “Phisics teaching in schools”, London: Taylor and Francis, 1978; G. L. Erickson, ”Chidren’s viewpoints of heat: a second look”, Sci. Educ. 64 (3), 1980. Óptica – E. Guesne, “Lumière et vision des objects: un example de representa-tion de phénomènes physiques préexistant à l’enseignement”, in G. Delacote (Ed.), “Physics teaching in schools”, London: Taylor and Francis, 1978; B. Stead e R. Os-borne, “Exploring science students’ concepts of light”, Aust. Sci. Teac. J. 26, 1980; B.Anderson e C. Karrqvist, “Light and its properties”, EKNA – report nr 8, Gote-borgs Universitet (Suécia), 1982. Eletricidade – C. V. Rhöneck, ‘Students’ concep-tions about the eletric circuit before physics instruction”, in W. Jung, H. Pfundt C. V. Rhöneck (Eds.), “Proceedings of the International Workshop on Problems Concern-ing Student’s Representatuon of Physics and Chemistry Knowledge”, Pädagogische Hochschule, Ludwigsburg ( Alemanha Federal ), 1981. Outros tópicos – S. Novick e J. Nussbaum, “Junior high school pupils’ understanding of the particulate nature of matter: an interview study”, Sci. Educ. 62(3), 1978; J. Nussbaum e J. D. Novak, “Na assessment of children’s concept of Earth utilizing structured interviews”, Sci. Educ. 60 (4), 1976.

3 Por exemplo, a constante afirmação por parte dos professores secundários de que seus alunos não aprendem Física por falta de base matemática. Este é um aspecto que não deve ser negligenciado, mas ao mesmo tempo não deve ser privilegiado em detrimento de aspectos de ordem conceitual.

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147Representações intuitivas

realidade, influindo na maneira pela qual estes alunos aprendem (ou deixam

de aprender) os conceitos que lhes são ensinados.

Atualmente encontra-se em pleno desenvolvimento uma área de pesqui-

sa em Ensino de Ciências que tem como foco a investigação destas concep-

ções. É interessante notar que tal preocupação tem-se refletido inclusive no

nível semântico. Em estudos mais antigos, noções apresentadas por alunos

que diferissem daqueles oficialmente incorporadas aos textos didáticos e cur-

rículos escolares eram dominadas por autores de língua inglesa, por exemplo,

por palavras tais como “misconceptions” ou “misunderstandings” 4. Hoje,

nota-se uma tendência entre pesquisadores em usar expressões com uma

conotação negativa menos acentuada: “alternative frameworks”5, “alternati-

ve conceptions”6, “children’s science”7, “raisonnement natural”8, 9, “conceitos

espontâneos”10.

O objetivo deste artigo é apresentar alguns exemplos de concepções es-

pontâneas bem como tecer considerações a respeito de implicações para o

ensino. Visando manter uma unidade temática na apresentação, optei por

focalizar apenas noções relacionadas com conceitos normalmente tratados

em dinâmica11.

Alguns exemplos de concepções esponTâneAs

A seleção apresentada a seguir não constitui uma cobertura extensiva ou

sistemática de resultados de pesquisas realizadas na área. A intenção é exem-

4 Significando concepção errada ou equivoco respectivamente.

5 R. Driver e J. Easley, “Pupils and paradigms: a review of literature related to concept development in adolescent science students”, Stud. Sci. Educ. 5, 1978.

6 J. K. Gilbert, “Alternative conception: which way now?”, Invited paper to the AAPT Winter meeting, New York, 1983.

7 J. K. Gilbert, R. J. Osborne, P. J. Fensham, “Children’s science and its consequences for teaching”, Sci. Educ. 66 (4), 1982.

8 L. Viennot, “Le raisonnement naturel en dynamique élémentaire”, Thèse,Université Paris VII,1977.

9 L. Viennot, “Le raisonnement naturel en dynamique élémentaire”, Thèse,Université Paris VII,1977.

10 A. Villani, J. L. A. Pacca, R. I. Kishinami, Y. Hosome, “Analizando o encino de Físi-ca: contribuições de pesquisas com enfoques diferentes”, Rev. De Ens. De Fís. 4, 1982.

11 Para exemplos de estudos abordando outros tópicos em mecânica ver: Cinemática – E. Saltiel e J. L. Malgrange, “Spontaneous ways of reasoning in elementary kin-ematics”, Eur. J. Phys. 1, 1980; e também Ref. (9) e Ref. (10). Estática – J. Minstrell, “Explaining the ‘at rest’ condition of na object”, Phys. Teac. 20(1), 1982.

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148

plificar de forma concreta certas noções identificadas em estudos realizados

entre escolares e estudantes universitários, e para as quais penso ser válido

chamar a atenção, já que é possível que as mesmas ocorram mais frequente-

mente na sala de aula12. Deve-se salientar que, provavelmente, as concepções

selecionadas não são as únicas relativas a cada um dos tópicos considerados.

Em uma sala de aula com mais de 40 alunos é possível que a diversidade de

idéias idiossincráticas a respeito de certos fenômenos físicos seja maior do que

a sugerida pelos exemplos abaixo.

fOrça e mOvimentO

A ocorrência de noções espontâneas relativas a este tópico foi objeto

de diversos trabalhos, existindo evidências convincentes de que escolares, e

mesmo universitários com formação básica em Física, tendem relacionar força

e velocidade de um corpo.

Em um destes estudos13, envolvendo 125 alunos de escolas inglesas (ida-

de 14 anos), foi empregado um questionário escrito no qual, além de res-

ponderem a itens de múltipla escolha cujas opções eram figuras, os alunos

tinham de explicar a razão de suas escolhas. Seis dos doze itens que forma-

vam o questionário, exploravam a associação entre força e movimento, sendo

que os três primeiros indagavam sobre uma pedra lançada verticalmente, e os

outros três referiam-se ao movimento de uma bala de canhão. A análise das

respostas indicou que cerca de 85% dos alunos associavam de forma consis-

tente força e movimento. Para eles, uma força dirigida para cima agia sobre

a pedra quando a mesma movia-se neste sentido; quanto à bala de canhão,

haveria uma força agindo segundo a tangente à trajetória, e no sentido do

movimento. Alguns exemplos de explicações típicas (relativas à questão da

pedra) são transcritos abaixo:

“Porque ela está se movendo para cima, portanto a força deve estar fa-

zendo ela ir para cima”.

“Porque ela está se movendo nesta direção“.

“Porque ela precisa de força para lutar contra a gravidade”.

12 Os exemplos a serem apresentados foram extraídos de estudos realizados na Eu-ropa e nos EUA em sua maioria. O número de estudos no Brasil é ainda bastante restrito, com apenas um grupo (no IFUSP) trabalhando sistematicamente no as-sunto (ver Ref. (10)). Acredito, contudo, que nossos alunos, pelo menos os de classe média urbana, apresentam concepções semelhantes àquelas exemplificadas nesse artigo. Esta é uma hipótese que necessita comprovação empírica.

13 A. Zylbersztajn e D.M. Watts, “Surveying some ideas about force – a pilot study”, IET – University of Surrey, 1980 (mimeo). Uma versão resumida deste assunto é apresentada em D.M. Watts e A. Zylbersztajn, “A survey of some children’s ideas about force”, Phys. Educ. 16 (6), 1981.

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149Representações intuitivas

“Mostra a melhor resposta porque a força da pedra está puxando para

cima contra a força da gravidade”.

Outros estudos sugerem que concepções semelhantes ocorrem também

entre estudantes mais velhos aos quais, diferentemente dos escolares da pes-

quisa acima mencionada, passaram por experiência de ensino que tiveram

como conteúdo as leis de Newton. A aplicação do questionário desenvolvido

na pesquisa mencionada na Ref. 13, a universitários portugueses e quenianos

de cursos equivalentes à nossa licenciatura, revelou resultados semelhantes aos

do estudo original14. Um trabalho realizado com um grupo de 34 calouros de

engenharia americanos15 mostrou que aproximadamente 80% dos mesmos

desenharam uma força para cima quando analisando o movimento de uma

moeda lançada para o alto. Muitas das explicações apresentadas por estes es-

tudantes, quando entrevistados, foram qualitativamente semelhantes àquelas

apresentadas pelos escolares ingleses ao resolverem o problema equivalente

do movimento da pedra13. Em um estudo mais antigo16, mais de 300 universi-

tários ingleses (de ciências e engenharia) foram solicitados a representar grafi-

camente as forças atuando sobre um veículo em movimento circular uniforme.

Menos de um terço dos mesmos representou a resultante como dirigida para

o centro da curva, e aproximadamente a metade representou a resultante se-

gundo a tangente à curva, demonstrando uma associação intuitiva entre força

e direção do movimento a despeito de anos de instrução formal em Física.

Em uma pesquisa mais aprofundada17, na qual tomaram parte centenas

de estudantes franceses, belgas e ingleses (cursando do último ano da escola

secundária ao terceiro ano da universidade), verificou-se que uma proporção

considerável dos mesmos usava uma relação linear intuitiva entre força e ve-

locidade quando analisando o movimento dos corpos. A autora do trabalho

sugere quês esta relação intuitiva pode ser expressa como F V= , levando

às conclusões de que:

Se 0 0V F= ⇒ = mesmo se a (aceleração) 0≠

Se 0 0V F≠ ⇒ ≠ mesmo se 0a =

Se 1 2 1 2V V F F≠ ⇒ ≠ mesmo se 1 2a a=

14 M.F. Thomaz, “Inquérito sobre a compreensão do conceito de força. Implicações no ensino”, Depto. de Física, Universidade de Aveiro, 1982 (mimeo); R.W. Wright, “Students misconceptions of some principles in physics”, Dept. of Physics – Keny-atta University College, 1982 (mimeo).

15 15 J. Clement, “Students’ preconceptions in introductory mechanics”, Am. J. Phys. 50 (1), 1982.

16 J.W. warren, “Circular motion”, Phys. Educ. 6 (2), 1971.

17 L. Viennot, “Spontaneous reasoning in elementary dynamics”, Eur. J. sci. Educ 1 (2), 1979. (Este artigo é uma versão resumida da Ref. 8)

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150

É interessante notar que este tipo de raciocínio emergia mais freqüen-

temente em situações nas quais a intuição física era requerida, como, por

exemplo, quando os estudantes eram solicitados a comparar, qualitativamen-

te, a intensidade das forças que agiam sobre corpos presos a uma mola, ao

passarem pela mesma posição, mas com velocidades diferentes. Por outro

lado, os estudantes tendiam a aplicar corretamente a 2º lei de Newton quan-

do confrontados com uma equação de movimento a partir da qual deveriam

calcular matematicamente a força.

Parte da pesquisa de Viennot foi reproduzida por um grupo de pesquisa-

dores em ensino do IFUSP, com estudantes secundários e universitários de São

Paulo. Em primeira aproximação os resultados obtidos foram semelhantes aos

dos estudantes europeus. Uma análise mais refinada, contudo, revelou que a

relação espontânea entre a força e a velocidade parece ser mediada por difi-

culdades com o conceito de aceleração10.

Os estudos descritos acima sugerem que a associação entre força e veloci-

dade não é prevalente entre jovens escolares, mas que também persiste, para

muitos, apesar de anos de exposição ao ensino formal de física. Vale a pena

observar que, ao menos quando o movimento de projéteis é considerado

(tanto vertical quanto composto), as concepções espontâneas detectadas são

bastante parecidas com aquelas que foram parte de teorias mais tarde supe-

radas pelo processo de desenvolvimento científico.18

açãO e reaçãO

No estudo mencionado na Ref. 13 os alunos foram também questiona-

dos sobre as forças aplicadas a uma corda durante um cabo-de-guerra dispu-

tado por duas pessoas. Observou-se que na situação em que uma das pessoas

estava vencendo, mais de 80% dos alunos supunha que esta pessoa exercia

uma força maior na corda. A noção de que, quando um sistema composto

por dois corpos em interação está em movimento, a “ação” é maior que a “re-

ação” foi também observada por Viennot entre estudantes mais velhos e com

maior experiência em física17. Tais resultados sugerem que muitos estudantes

aplicam espontaneamente um pseudoprincípio de ação e reação que poderia

ser parafraseado como:

“se dois corpos estão interagindo para gerar um estado de movimento, então

um deles deve estar exercendo uma força maior sobre o outro”.

18 No caso, as teorias medievais do “ímpetus” desenvolvidas pelos críticos escolásti-cos de Aristóteles (principalmente J. Buridan e N. Oresme). A respeito ver T.S. Kuhn, “The Copernican revolution”, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1957.

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151Representações intuitivas

Um “princípio” como este é mais intuitivo do que a 3ª lei de Newton e

pode-se especular que sua observância explicaria a dificuldade que muito

alunos sentem ao resolverem problemas que envolvem configuração seme-

lhante a figura 1. Como o sistema esta em movimento, torna-se difícil para

estes alunos imaginar 1 2F F= , já que para eles, intuitivamente 2F deve ser

maior que 1F .

F2

F1

Figura 1

gravidade

Concepções espontâneas foram também identificadas em relação ao con-

ceito de gravidade. Observou-se, por exemplo, que jovens adolescentes ten-

dem a associar a força de gravidade com a existência de atmosfera, como se o

ar fosse, de certa maneira, o meio transmissor da força atrativa 13, 19, 20. Desta

forma, é imaginado que objetos flutuam no espaço devido à não existência

de atmosfera. Aqui podemos estar frente a um exemplo de como pessoas se

valem de uma noção intuitiva (um meio é necessário para a transmissão de

uma força) a fim de interpretarem uma situação que está fora de seu domínio

de experiência mais próximo (a informação, geralmente sugerida pelos meios

de comunicação, de que “astronautas não tem peso no espaço”)21.

Observou-se igualmente que para muitos adolescentes a força de gra-

vidade parece aumentar com a altura. Assim, por exemplo, a metade dos

alunos que participaram na pesquisa tratada na Ref. (13) respondeu que uma

força maior atua sobre um carro posicionado no alto de uma ladeira do que

sobre um carro semelhante situado mais a baixo22. Na mesma pesquisa perto

19 D.M. Watts, “Gravity – don’t take it for granted”, Phys. Educ. 17 (3), 1982.

20 J. J. Moorfoot, “An alternative method of investigating pupils’ understanding of physics concepts”, Sch. Sci. Rev. 64 (228), 1983.

21 Esta explicação é sugerida por D. M. Watts na Ref. 19.

22 Nem todos estes alunos, contudo, mencionaram explicitamente que a força de gravidade aumentasse com a altura. Curiosamente, 20% do total da amostra re-spondeu que a força é maior porque no alto a ladeira é mais inclinada, quando a figura que ilustrava a questão mostrava uma ladeira com declividade constante.

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152

de 80% dos alunos responderam que, no caso do arranjo mostrado na figura

2, os corpos supostamente de massas iguais se moveriam até que atingissem

o mesmo nível.

Figura 2

A noção de que a força de gravidade aumenta com a altura é também

mencionada em outros trabalhos19, 23. Pode-se especular que esteja presente

nesta noção, em estado embrionário, uma idéia intuitiva de energia potencial

gravitacional, todavia indiferenciada do conceito de força.

Um outro aspecto interessante relacionado com o conceito de força de

gravidade que foi notado no estudo descrito na Ref. 13 foi a diversidade das

idéias sobre o papel desempenhado por esta força. A análise das explicações

dadas pelos alunos no caso da pedra lançada verticalmente mostrou que para

alguns a gravidade age durante todo o movimento; outros, entretanto, pa-

recem imaginar que a gravidade age somente durante a queda. Para alguns

poucos ainda, a palavra gravidade parece ser simplesmente um nome asso-

ciado à queda de corpos, não implicando necessariamente a existência de

uma força24.

ImplIcAções pArA o ensIno

A crescente quantidade de estudos demonstrando a ocorrência de con-

cepções espontâneas relativas a vários tópicos2, permite a pesquisadores na

área afirmarem que:

“Na realidade há um confronto entre a Física ensinada (oficial) e a espontâ-

nea e sem dúvida o objetivo do ensino é a aprendizagem da oficial; este con-

23 R. Driver, “The pupil as a scientist”, trabalho apresentado na conferência GIREP, Rehovot (Israel), 1979.

24 Note-se a similaridade desta noção com a teoria aristotélica que considerava a Terra (centro do universo) como o foco para o qual os corpos deveriam “naturalmente” tender.

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153Representações intuitivas

fronto se realiza muitas vezes de forma pouco harmoniosa e seu resultado não

é uma visão conceitual coerente e rica, mas a superposição e justaposição de

conceitos de diferentes origens e alcance, que prejudicam qualquer pretensão

de aprofundamento teórico do aluno”. (10)

Aceitando-se este ponto de vista, coloca-se então a questão prática sobre

que implicações para o ensino poderiam daí se derivar. Considerando que

sugestões de ordem geral25 (com o espírito das quais concordo) já foram

apresentadas no artigo do qual a citação a cima foi extraída, o mesmo será

tomado como ponto de partida para que algumas idéias que me parecem

relevantes no contexto em questão sejam colocadas.

A conclusão fundamental com relação ao ensino é que:

“... não é produtivo ignorar a bagagem cultural do aluno e todo conjunto de

noções ‘espontâneas’ que ele carrega ao se deparar com o ensino formal na

escola. Se não se cuidar adequadamente da ‘física espontânea’ dos alunos

sobrarão duas estruturas superpostas, entre as quais os alunos escolherão

uma dependendo do contexto; em geral quando o problema envolver muitos

elementos formais usarão a aprendizagem formal; quando o problema envol-

ver elementos do dia-a-dia e com características bem figurativas ou capazes

de estimular a percepção, usarão o esquema espontâneo”. (10)

É sugerido então a professores:

“Atentar durante o curso para o aparecimento de noções espontâneas dife-

rentes das formais que são ensinadas. Explorá-las e analisá-las para que não

constituam estruturas de conhecimento superpostas”. (10)

Quanto à forma através da qual estas noções poderiam ser exploradas é

ressaltado que:

“ ... as idéias espontâneas em geral têm capacidade explicativa limitada, e

por isso elas podem ser questionadas diretamente e facilmente, levando até

as últimas conseqüências suas previsões em física. Retomando o exemplo da

relação força-velocidade não é difícil mostrar como a relação força máxima-

velocidade máxima é insustentável quando se elimina progressivamente a re-

sistência do ar ou de meios dissipativos.” (10)

25 A maior parte dos trabalhos na área tem se direcionado para a identificação de concepções espontâneas e apresentado apenas sugestões de ordem geral para o ensino. Estes trabalhos têm a sua validade, pois além de chamarem a atenção para a problemática, fornecem aos professores exemplos concretos de noções que podem ocorrer entre seus alunos. Por outro lado, a área ressente-se da falta de pesquisas direcionadas especificamente no sentido de como trabalhar estas noções em sala de aula. Um exemplo de pesquisa com esta finalidade é a Ref. 27.

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154

A maioria dos pesquisadores na área parece estar de acordo à validade de

se estabelecer alguma forma de conflito entre predições dos alunos e resulta-

dos experimentais. É preciso, contudo apontar que a simples apresentação de

contra-exemplos (sejam eles experimentais ou teóricos), que ofereçam pon-

tos de ruptura com os limites explicativos das noções espontâneas, pode ser

de pouca efetividade no tange à superação destas noções por parte do aluno.

Professores e livros-textos vêm, de há muito, iniciando o estudo das leis de

Newton mencionando que Galileu chegou ao princípio da Inércia através da

(dês) consideração dos efeitos das forças de atrito26. “Pucks”, trilhos e mesas

de ar são parte do dia-a-dia dos laboratórios de escolas médias e universida-

des na Europa e nos EUA e mesmo assim as noções espontâneas resistem.

Como bem observou Driver:

“... alunos, do mesmo modo que cientistas, trazem para as aulas de ciências

algumas idéias ou crenças já formuladas. Estas crenças afetam as observações

que eles fazem bem como as inferências daí derivadas. Alunos, do mesmo

modo que cientistas, constróem uma visão do mundo que os capacita a lida-

rem com situações. Transformar esta visão esta visão não é tão simples quanto

fornecer aos alunos experiências adicionais ou dados sensoriais. Envolve tam-

bém ajudá-los a reconstruir suas teorias ou crenças, a experimentar, por assim

dizer, as evoluções paradigmáticas que ocorreram na história da ciência”. 27

Em nível de sala de aula, tão importante quanto a apresentação de contra-

exemplos, seria todo um trabalho inicial direcionado no sentido de induzir os

alunos a refletirem sobre as sua próprias concepções. Esta reflexão é necessá-

ria, já que, para a maioria dos alunos, as noções espontâneas (justamente por

serem espontâneas) não se encontram em um nível consciente totalmente

explícito.

Uma seqüência de atividades em sala de aula levando em conta as consi-

derações acima poderia incluir 27:

1. Criar uma situação que induza os alunos a invocarem suas concepções a

fim de interpreta-las.

26 Textos didáticos geralmente sugerem que anteriormente a Galileu o atrito não era levado em conta no estudo do movimento. Daí a necessidade de se assumir, por ex-emplo, uma força para a manutenção do movimento uniforme. Contudo, mesmo Aristóteles (que nos livros-textos é usualmente contraposto a Galileu) considerava a existência de forças dissipativas. Ver a respeito E.J. Dijksterhuis, “The mechanization of the world picture”, London: Oxford University Press, 1961.

27 N. Nussbaum e S. Novick, “Creting cognitive dissonance between students’ precon-ceptions to encourage individual cognitive accommodation and a group coopera-tive construction of a scientific model”, trabalho apresentado na Conferência Annual da AERA, Los Angeles, 1981. Ver também: N. Nussbaum e S. Novick, “Brainstorming in the classroom to invent a model: a case study”, Sch. Sci. Rev. 62 (221), 1981.

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155Representações intuitivas

2. Encorajar os alunos a descreverem verbalmente e através de figuras as suas

idéias.

3. Ajudar os alunos a enunciarem de modo claro e conciso as suas idéias.

4. Encorajar o debate sobre os prós e contras de diferentes interpretações dos

alunos.

5. Criar um conflito cognitivo entre as concepções apresentadas e algum fenô-

meno que não possa ser explicado pelas mesmas.

6. Apoiar a busca de uma solução e encorajar sinais de uma acomodação de

idéias. Encorajar a elaboração da nova concepção quando esta for pro-

posta.

Seria extremamente otimista esperar que, em geral, os alunos cheguem,

por si mesmos, às concepções curriculares aceitas oficialmente. Estas, em boa

parte dos casos, deverão ser introduzidas pelos professores, os quais terão que

sugerir aos seus alunos que suas noções, ainda que sensatas e úteis sob um

ponto de vista pessoal, podem ser substituídas por outras mais poderosas.

O fato de que as novas concepções serão introduzidas pelos professores

não invalida a seqüência de atividades sugerida acima, visto que o trabalho

desenvolvido pelos alunos nas fazer 1 a 5 pode ser instrumental no que diz

respeito à aprendizagem dos novos conceitos. As atividades podem também

se constituir em um bom exercício no sentido da estimulação da criatividade

e do debate na sala de aula. Desde que as idéias apresentadas pelos alunos

sejam tratadas de forma respeitosa pelos professores28, as atividades podem

ainda tornar os alunos mais confiantes quanto ao uso da linguagem e quanto

à sua capacidade como elaboradores de conhecimento.

A linguagem na sala de aula. Enfoques do tipo sugerido apresentam claras

implicações no que diz respeito à maneira segundo a qual a linguagem é uti-

lizada em sala de aula, visto que plenas oportunidades devem ser oferecidas

aos alunos para que os mesmos, através do uso da linguagem, dominem e re-

estruturem as suas concepções. Aulas de física convencionais, nas quais o pro-

fessor exerce o monopólio da sala, oferecem pouca chance neste sentido.

28 Um exemplo de como concepções espontâneas poderiam receber um tratamento respeitoso por parte dos professores é através de da menção, sempre que possível, de paralelos entre tais concepções e teorias que foram, no passado, aceitas pelo con-hecimento “oficial”. A teoria medieval do “ímpetus” (Ref. 18), constitui um caso em que este paralelismo não é aproveitado didaticamente: livros-textos, quando muito, após mencionarem Aristóteles (quase sempre como o “vilão” da história, e, por-tanto, a-historicamente) saltam direto para Galileu. O proposto nesta nota implica certamente na necessidade de uma formação mais adequada em história e filosofia da ciência do que aquela normalmente oferecida pelas nossas licenciaturas.

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156

Neste contexto talvez seja útil considerar a distinção entre “professores de

transmissão” e “professores de interpretação”29. “Professores de transmissão”

tendem a considerar a linguagem primeiramente um meio para comunicar

idéias (geralmente as suas). Tenderão, portanto, a conceber o discurso de sala

de aula como um modo de transmitir suas concepções para os alunos, não

percebendo que, por vezes, podem estar tentando impor sua estrutura sobre

outra já existente.

Professores de interpretação tendem a considerar a linguagem não apenas

como um instrumento através do qual o sentido é comunicado, mas também

como um instrumento através do qual pensamos, e por meio do qual o sen-

tido é construído e interpretado e o conhecimento reformulado pelo sujeito

cognoscente. A adoção de tal perspectiva implica em um deslocamento do

centro de gravidade lingüístico da sala de aula: da linguagem quase que total-

mente dominada pelo professor para o oferecimento de oportunidades que

permitem aos alunos utilizarem as suas habilidades de fala, escrita e leitura.

O trabalho prático em laboratório também poderia servir para que alunos

se conscientizassem de suas próprias idéias e das de seus colegas. Poderia

ainda facilitar a mudança conceitual e a sua consolidação, contudo para que

isto ocorra o simples contato com aparelhos não é suficiente. Mais importante

é que discussões sobre as predições e conclusões sejam estimuladas, antes e

após o “experimento”; que a leitura de materiais que requeiram a discussão

em grupo (e não de roteiros tipo receituário) seja.

Entretanto, mais do que a aplicação destas ou daquelas técnicas (o que

dependerá de uma análise de situações específicas concretas) a problemática

introduzida pelas pesquisas concernentes a noções espontâneas exigirá de

uma parte dos professores uma reavaliação do papel do aluno e, por implica-

ção, uma reavaliação do seu próprio papel como educadores.

29 D. Barnes, “From communication to curriculum”, Middlesex: Penguin, 1976.

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157Representações intuitivas

9.2 Obstáculos epistemológicos, ontogênicos e didáticos

No capítulo 4, discutimos o pensamento que o epistemólogo Gaston Bachelard tinha a respeito do progresso da ciência. O progresso cien-tífico ocorria com a superação de obstáculos, pela ruptura ou, dito de outra forma, para a construção do novo conhecimento era necessário ultrapassar e, muitas vezes, abandonar totalmente o antigo conheci-mento, vencendo as barreiras dos preconceitos impostos pelo conhe-cimento antigo.

Bachelard, analisando as questões dos obstáculos epistemológicos para o ensino, conclui que muitos dos obstáculos epistemológicos se encontram presentes no pensamento infantil. Neste sentido, apresen-ta novo significado para o erro cometido pelo aluno. O erro não é mais sinônimo de ignorância, desconhecimento, mas sim originado pela dificuldade do estudante em romper com suas representações intui-tivas e aceitar as novas explicações, adotando-as em seu repertório cognitivo.

Esta visão de Bachelard, relativa à construção da ciência e ao erro, foi retomada anos mais tarde por educadores que perceberam que as representações intuitivas dos alunos se mostravam como se fossem impedimentos para o aprendizado. Daí que, no contexto do ensino, o conceito de obstáculo epistemológico foi amplamente utilizado como forma de se entender as dificuldades que os estudantes enfrentam, de posse de seus próprios conhecimentos (representações intuitivas), ao procurar incorporar o conhecimento científico escolar. Por mais que se tente minimizar as dificuldades neste processo, existe uma ver-dadeira barreira (ou obstáculo) que separa aquilo que os estudantes sabem daquilo que ele precisaria saber em termos científicos.

Brousseau, em 1976, utiliza na Matemática a noção de obstáculo epistemológico. A noção de obstáculo fez Brousseu aperceber-se da possibilidade de modificar o estatuto do erro, mostrando que:

o erro e o fracasso não têm papel simplificado que às vezes se

lhes pretende dar. O erro não é somente efeito da ignorância,

da incerteza, do acaso, como sustentam as teorias empiristas

ou behavioristas da aprendizagem, mas o efeito de um conheci-

mento anterior que tinha seu interesse, seus sucessos, mas que,

agora, se revela falso ou simplesmente inadaptado. Os erros

desse tipo não são aleatórios e imprevisíveis, eles se constituem

em obstáculos.

Didata matemático. Estudaremos mais sobre ele no próximo capítulo.

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158

Portanto, o erro conceitual que um estudante venha manifestar pode ter suas razões, e estas transcendem aquelas a que trivialmente nos reportamos: “Não estudou” ou “Não quer nada com nada”, ou, ainda, “Não sabe Matemática” (ou Física, Química, etc.). Erros são origina-dos pelos obstáculos que não foram superados devido a resistência interna do sujeito na aceitação do novo conhecimento. Rupturas com o conhecimento antigo faltam ocorrer, o que prejudica o processo de aprendizagem. Bachelard diz com grande propriedade: “Sempre me surpreendeu o fato dos professores de ciências, mais ainda que os outros, não compreenderem que não se possa compreender. Poucos são aqueles que aprofundaram a psicologia do erro, da ignorância e da irrefl exão”.

Entretanto, para Brousseau, nem todo obstáculo tem sua origem na história ou na representação intuitiva do estudante. Para ele, é por meio da análise histórica dessas resistências que ele vai encontrar os elementos que permitam identifi car os obstáculos dos alunos, assim como os argumentos para construir as situações de ensino que vão permitir a sua superação, tomando o cuidado de não afi xar o estudo histórico sobre o estudo didático. Neste contexto, Brousseau distingue três origens básicas para os obstáculos encontrados no ensino:

Uma origem seria 1) ontogenética, correspondente aos obstáculos ligados às limitações das capacidades cognitivas dos educandos envolvidos no processo de ensino, isto é, daqueles que resultam do desenvolvimento do educando. O educando não apresenta habilidades cognitivas adequadas para a superação necessária, pois lhe faltam recursos (estruturas) mentais para tanto.

No caso da Física, o aluno pode manifestar limitações na aptidão de abstração, o que o leva a não conseguir ultrapassar a barreira do con-creto, levando o professor à necessidade de mostrar referências mais próximas a seu cotidiano. Ou, então, o aluno demonstra difi culdade na visualização tridimensional, fato muito comum quando ensinamos Eletromagnetismo, onde as grandezas físicas interagem espacialmen-te. Daí a importância de se detectar a origem do erro do estudante. Muitas vezes não é a Física a responsável, mas limitações de ordem cognitiva que se tornam impeditivas do aprendizado.

Uma outra seria de 2) origem epistemológica, para os obstá-culos ligados à resistência de um saber mal adaptado (isto é, os obstáculos ao sentido de Bachelard). Àqueles que são histo-ricamente atestados e ainda se mantém nos conceitos ensina-

Ontogênese: estruturação do

conhecimento entendido internamente

ao indivíduo, com suas etapas de

desenvolvimento cognitivo.

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159Representações intuitivas

dos. Esta origem está ligada a elaborações de explicações mal formuladas ou equivocadas contidas nos livros didáticos, que se perpetuaram de tal forma que passaram a “existir” como se fossem verdadeiras. No capítulo seguinte, estudaremos a Trans-posição Didática que nos mostra o caminho que o conhecimen-to percorre desde sua construção até chegar ao aluno. Neste caminho, sofre um processo transformador que, muitas vezes, deforma o conhecimento científico original, pois, na tentativa de se tornar claro e ensinável, faz uma reelaboração tal que con-templa os mesmos obstáculos que estavam presentes junto aos cientistas.

E, finalmente, uma 3) origem didática, para os obstáculos liga-dos à escolha do sistema de ensino, isto é, para aqueles que resultam das decisões didáticas equivocadas feitas pelo profes-sor. Não é raro um professor equivocar-se na escolha de uma sequência didática. Não significa que o professor é culpado pela opção didática, pois certamente deve tê-la feito com cuidado. Ingenuamente, aquilo que pode ser óbvio, claro e evidente para ele e está presente em seu discurso didático, não encontra eco junto aos estudantes, gerando o legítimo “diálogo entre surdos”. Seria como descrever,para quem nunca viu um pedaço de gelo como uma geladeira o produz. Muitos dos equívocos de uma situação didática mal escolhida podem ser amenizados quando, no momento de seu planejamento, é feita uma contextualização próxima ao aluno. Isto é, a partir de seu entorno social, de sua comunidade e seus costumes coletivos, encontramos o ponto de partida para o ensino do novo conhecimento.

Nesse sentido a identificação de obstáculos epistemológicos assume papel importante como elemento capaz de embasar as atividades de ensino/aprendizagem. Seja pela possibilidade de se detectar historicamente concepções que necessitaram ser ultra-passadas na evolução do conhecimento científico, seja também para apresentá-las aos alunos com o objetivo de expor a necessidade de mudanças nas concepções utilizadas nas construções de sistemas representativos. Afinal, se os cientistas também apresentaram dificul-dades no entendimento e aceitação de novos conceitos, por que um estudante – jovem e adolescente – não o teria?

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160

Resumo

Como vimos, os obstáculos, representações intuitivas ou concepções alternativas estão presentes no contexto escolar e estão fortemente agregados ao sistema de ensino. Não podemos ignorá-los ou contor-ná-los, devemos fazer deles matéria-prima de nosso planejamento de ensino. Devemos torná-los objetivos de ensino a serem superados.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no capítulo, provocá-lo para uma discussão, dire-

cioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por que não, levá-lo a ponderar

sobre sua inclusão no planejamento de suas aulas. Não se sinta obrigado a

memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar uma resposta escrita consi-

derando a argumentação (prós e contras) proporcionada pelo capítulo. Bom

trabalho!

1) Como você explicaria a um leigo o que é uma representação in-tuitiva?

2) As questões a seguir se referem ao artigo “Concepções espontâ-neas em física: exemplos em dinâmica e implicações para o ensino”:

Comente cada um dos itens da “a) sequência de atividades em sala de aula levando em conta as considerações...” exemplificando cada uma delas com um procedimento didático.

Como um “b) professor de transmissão” e um “professor de interpre-tação” trabalhariam o tópico “Inércia” em sala de aula?

Como o laboratório poderia auxiliar ao professor na conscienti-c) zação das representações intuitivas dos alunos, quando estiver tratando da unidade de ACÚSTICA?

3) Procure na relação de textos indicados 5 (cinco) exercícios que permitam verificar as representações intuitivas dos alunos. Se for possível, tente aplicá-los na classe e comente os resultados. Será um excelente (e surpreendente) exercício de investigação.

4) Caracterize um obstáculo epistemológico.

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161Representações intuitivas

5) O que você entende por obstáculo didático? Descreva uma situa-ção equivocada ocorrida com você e justifique as razões do equívoco.

6) Exemplifique obstáculos didáticos em: Dinâmica, Termodinâmica e Eletromagnetismo comentando as razões de serem obstáculos.

7) Leia o seguinte texto:

É baseado na crença que os processos de construção individuais

e coletivos (ocorridos ao longo da história) têm perfis semelhantes,

que A. Giordan propõe atividades de estruturação, onde o objetivo

é muitas vezes ultrapassar obstáculos contidos na própria forma de

conceber os conceitos previamente identificados no desenvolvimento

histórico de um certo domínio da natureza: “…observa-se nas suas

aquisições (dos alunos), as mesmas características da progressão his-

tórica das ciências. Assim, constata-se que o conhecimento é operató-

rio, mas para funcionar, ele deve se apoiar sobre simbolizações, códi-

gos: imagens ou modelos. Isso implica sobre o plano pedagógico de

atividades de “desmontagem-remontagem” (‘deshabillage - reha-

billage’). Essas atividades de estruturação acarretam necessariamente

enfrentamentos e superação, o que Bachelard denomina obstáculos

epistemológicos. (GIORDAN, 1983)

Como seria uma “desmontagem-remontagem” proposta por Giordan para ensinar Temperatura?

8) Procure lembrar, para depois listar e comentar, de alguns conte-údos de Física que você explica por diversas vezes e maneiras e os alunos ainda “erram”. (Lembre-se de Brousseau e o erro).

Textos recomendados

Abaixo são listados alguns artigos que tratam sobre representações intuitivas

de diferentes conceitos físicos e propostas de como tratá-los em sala de aula.

O ensino da Óptica na perspectiva de compreender a luz e a visão. José P. Gircoreano & Jesuina L. de Almeida Pacca. Caderno Catarinen-se de Ensino de Física. v. 18, n.1: p.26-40, abr.2001.

Sentido das forças de atrito e os livros de 8ª série. Altair L. Cunha & Helena Caldas. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v. 17, n.1: p.7-21, abr.2000.

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162

Dificuldades de Aprendizagem na terceira lei de Newton. Sérgio L. Ta-lim. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v. 16, n.2: p.143-153, ago.1999.

Física aristotélica: por que não considerá-la no ensino da Mecânica? Luiz O Q. Peduzzi. Caderno catarinense de ensino de Física. v. 18, n.1: p.26-40, abr.2001. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v. 13, n.1: p. 48-63, abr.1996.

É possível pensar sem teoria? O que veria um suposto tábula rasa teórico? Maria I. Barbosa Freire & Jenner B. Bastos Fo. Caderno Cata-rinense de Ensino de Física. v. 12, n.2: p.79-94, ago.1995.

O peso medido pela balança: ruptura e continuidade na construção do conceito. Sonia Krapas Teixeira & Jesuina L. A. Pacca. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v. 11, n.3: p.154-171, dez.1994.

Mudança conceitual no ensino de ciências. Sergio M. Arruda & Alber-to Villani. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v. 11, n.2: p.88-99, ago.1994.

Um teste para detectar concepções alternativas sobre tópicos introdu-tório de ótica geométrica. João Batista S. Harres. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v. 10, n.3: p.220-234, dez,1993.

Leis de Newton: uma forma de ensiná-las. Sonia Peduzzi. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v. 5, n.3: p.142-161, dez.1988.

Solução de problemas e conceitos intuitivos. Luiz O Q. Peduzzi. Ca-derno Catarinense de Ensino de Física. v. 4, n.1: p.17-24, abr.1987.

A teoria de Piaget como sistema de referência para compreensão da “física intuitiva”. João Filocre. Caderno Catarinense de Ensino de Físi-ca. v. 3, n.2: p.85-96, ago.1986.

A força no movimento de projéteis. Luiz O Q. Peduzzi & Sonia Pe-duzzi. Caderno Catarinense de Ensino de Física. v. 2, n.3: p.114-127, dez.1985.

Concepções Alternativas em Mecânica. Sonia Peduzzi In Ensino de Física: conteúdo, metodologia e epistemologia em uma concepção in-tegradora. Maurício Pietrocola (Org.). Ed. UFSC. 2001.

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163Representações intuitivas

Referências

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PIAGET, J.; GARCIA, R. Psicogênese e história das ciências. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987.

PIETROCOLA, M. A história e a epistemologia no ensino da física: aspectos individual e coletivo na construção do conhecimento científico, 1993. (mimeo)

SALTIEL, E.; MALGRANGE, J. C. Spontaneous ways of reasoning in elementary kinematics. In: Eur. Phys. v. 1, p. 73-8, 1980.

SALTIEL, E.; VIENNOT, L. Que aprendemos de las semejanzas entre las ideas historicas y el razoamiento espontaneo de los estudiantes? In: Enseñanza de las ciencias, p. 137-144, 1985.

WATTS, D. M.; ZYLBERSTAJN, A. A survey of some ideas about forces. In: Physics Education. v. 16, p. 360-365, 1981.

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165Transposição didática

10 Transposição didática

165

Na sequência de nossa análise do Sistema de Ensino, va-mos agora trabalhar no setor de elaboração de conteúdos, de forte influência epistemológica. Portanto, precisamos ficar atentos as eventuais referências que se fizerem pre-sentes. Neste capítulo vamos caracterizar o processo de Transposição Didática e diferenciar os saberes: sábio, a ensinar e ensinado. Será de grande importância descre-ver a noosfera e a composição de seus grupos. Veremos como definir as Práticas Sociais de Referência (PSR).

10.1 A Transposição Didática

Você aceitaria ensinar aos seus alunos que:

“Inércia é uma força interna ao corpo, a qual faz com que o estado deste corpo não seja facilmente modifica-do por uma força proveniente de fora”.

Ou então, que:

“Pressão é o esforço que as partes fazem para penetrar umas nas dimensões das outras”.

Vamos agora analisar as possíveis divergências, se é que existem, quanto à sua aceitação das afirmações acima.

Como já foi mencionado, o conhecimento físico é diferente do conteúdo físico escolar. Isso implica a existência de um pro-cesso de modificação/transformação que ocorre quando deter-minado elemento do conhecimento físico sai da esfera da Ciência dos cientistas e passa a ser um elemento de ensino da Ciência na esco-la. O conhecimento trabalhado em sala de aula é um produto que foi construído por pesquisadores profissionais utilizando processos e

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166

métodos próprios, mas, no entanto, não se apresenta na forma origi-nal, como foi concebido.

Qual a razão e como ocorre esta modificação do conhecimento?

Uma das principais funções da escola é a transmissão dos conheci-mentos produzidos pela humanidade. Para que haja esta transmis-são, é necessário que o conhecimento seja apresentado de maneira que possa ser aprendido pelos alunos. É neste ponto que se mani-festa uma das principais transformações do conhecimento, isto é, a diferença entre elementos do conhecimento produzido e elementos do conhecimento oferecido ao aprendizado. A constatação de que um conhecimento trabalhado na escola difere daquele conhecimento produzido originalmente implica a aceitação da existência de pro-cessos transformadores que o modificam. O processo transformador do conhecimento (ou saber) é denominado de Transposição Didáti-ca (TD).

A Transposição Didática é entendida como um processo no qual:

“Um conteúdo do saber que foi designado como saber a ensinar sofre, a partir daí, um conjunto de transfor-mações adaptativas que vão torná-lo apto para ocupar um lugar entre os objetos de ensino. O trabalho que transforma um objeto do saber a ensinar em um objeto de ensino é denominado de Transposição Didática”.

Em resumo, a Transposição Didática é o conjunto de ações transformadoras que torna um saber sábio em saber ensiná-vel.

Um processo transformador exige a determinação ou a adoção de um ponto de partida ou ponto de referência. O ponto de referência, ou o “saber de referência” adotado pela Transposição Didática, é o sa-ber produzido pelos cientistas, de acordo com as regras estabelecidas pelo estatuto da comunidade a qual pertencem. É o saber apresentado nas palavras originais de seus autores. Este saber de referência é de-nominado “saber sábio” (ou savoir savant, no original francês).

No ambiente escolar, o ensino do saber sábio se apresenta no formato do que se denomina de conteúdo escolar ou conhecimento científico escolar. Este conteúdo escolar não é o saber sábio original, isto é, ele

Faremos uso do termo “saber” em lugar do termo

conhecimento, seguin-do opção do autor. Os

originais franceses utilizam o termo “savoir” (saber)

pois parece traduzir mais adequadamente o objeto

do processo transformador da TD do que o termo co-nhecimento (connaissan-ce), que aparenta ser de

entendimento mais amplo e vago.

O conceito de Transposição Didática foi

proposto inicialmente pelo sociólogo Michel Verret, em 1975. Em 1982, em

um trabalho cujo objetivo era analisar e discutir o conceito matemático de

distância, Ives Chevallard e Marie-Alberte Johsua

(Un exemple d’analyse de la transposition didactique

– La notion de distance) resgatam e fazem uso

deste conceito, tornando-o conhecido e divulgado

na área de ensino de ciências e matemática.

Posteriormente, Chevallard (1985) publica “La

Transposition Didactique”, onde organiza e dá

um corpo estrutural ao conceito de Transposição

Didática.

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167Transposição didática

não é ensinado no formato original publicado pelo cientista, como também não é uma mera simplificação deste. O conteúdo escolar é um objeto didático, produto de um conjunto de transformações.

Após ser submetido ao processo transformador da Transposição Di-dática, o “saber sábio”, regido agora por outro estatuto, passa a cons-tituir o “saber a ensinar” (savoir à enseigner). Este saber a ensinar é aquele entendido como conteúdo escolar ou “(...) explicitamente como os programas escolares; implicitamente pela interpretação desses programas”. (CHEVALLARD, 1991)

O fato do saber a ensinar estar definido em um programa escolar ou em um livro texto não significa que ele seja apresentado aos alunos desta maneira. Assim, identifica-se uma segunda Transposição Didá-tica, que transforma o saber a ensinar em “saber ensinado” (savoir d’enseignement ou enseigné). Os elementos e as regras desta transpo-sição apresentam características diferentes daquelas percebidas nos saberes anteriormente definidos.

A Transposição Didática pode ser representada pelas transformações mostradas no seguinte esquema:

... → objeto do saber → objeto a ensinar → objeto ensinado

cujas correspondências se fazem relativas ao saber sábio (objeto do saber), ao saber a ensinar (objeto a ensinar) e ao saber ensinado (ob-jeto ensinado). Ou como afirma Chevallard:

“A passagem de um saber formal para uma versão di-dática como objeto deste saber pode ser chamada de Transposição Didática ‘strito sensu’. Mas o estudo cien-tífico do processo de Transposição Didática supõe levar em conta a Transposição Didática ‘lato sensu’, represen-tado no esquema (vide acima) dos quais a primeira seta indica a passagem implícita para a explícita, da prática à teoria, do pré-construído ao construído”.

Os saberes sábio, a ensinar e ensinado, também denominados pata-mares ou níveis, são o resultado da atividade de diferentes “nichos” e personagens, os quais respondem pela composição e organização de cada um deles. Estes grupos, com elementos comuns ligados ao “sa-ber”, que se interligam, coexistem e se influenciam junto com a socie-

Francis Halbwachs foi um dos primeiros que, em um artigo clássico, procurou caracterizar a física do mestre, entre a física do físico e a física do aluno. (ASTOLFI, 1997).

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dade ou seus representantes, fazem parte de um ambiente mais am-plo denominado de noosfera. A noosfera envolve pessoas, categorias de pessoas ou instituições que interferem, influenciam ou contribuem no sistema educacional. Os grupos sociais de cada patamar estabele-cem um nicho ou esfera de influência e interesses que, de acordo com regras próprias, decidem sobre o seu nível de saber. Algumas dessas esferas apresentam maior poder de influência que as demais quando há confrontos no conjunto da noosfera.

Uma das conclusões a que os autores mencionados chegaram é que a Transposição Didática faz com que um objeto do conhecimento da Ciência de referência (Ciência dos cientistas) passe por um processo de despersonalização e descontextualização até se tornar con-teúdo escolar (ASTOLFI, 1995). O processo de descontextualização e despersonalização já se iniciam na esfera do “saber sábio”, ou seja, no produto da atividade científica. O primeiro deles é denominado de efeito de reformulação, que caracteriza o processo da despersonali-zação. Este efeito é devido ao fato de que os cientistas utilizam uma lógica de exposição de resultados, nas publicações aos membros da comunidade a que pertencem e que difere das modalidades de pro-cedimentos utilizados durante a construção do saber. Isto significa dizer, de acordo com Reichenbach (1961) que existe uma reconstrução racional que diferencia o modo como um cientista constrói determi-nado conhecimento (contexto da descoberta) e como ele o apresenta aos seus pares (contexto da justificação). No contexto da justificação, os artigos são organizados de forma a eleger os elementos fundamen-tais e daí obter as consequências, reforçando o máximo possível o en-cadeamento lógico das proposições. O segundo deles é uma espécie de efeito de anulação do contexto que gerou o problema científico. A origem e o contexto são excluídos de qualquer citação nas publica-ções dos resultados.

Das publicações científicas aos manuais escolares (livros didáticos e similares) há ainda um processo específico de transposição que Astolfi (1995) denomina, tal como Rumelhard, de efeito de dogmatização, que caracteriza a descontextualização. Este efeito, considerado como tendo origem na tendência dos cientistas em valorizar a observação e a experiência no processo de obtenção do conhecimento, ocorre quando determinado conteúdo do “saber sábio” é reescrito para se tornar um “saber a ensinar” aos estudantes que seguem uma carrei-ra científica. Ao ser reescrito, este saber passa por modificações, nas quais ocorre a supressão de partes do saber sábio e, muitas vezes, a inversão da ordem cronológica de sua construção. Por exemplo, na

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169Transposição didática

exposição do efeito fotoelétrico pela maioria dos manuais franceses de Física, as leis experimentais antecedem a teoria. Acontece que a teoria do fóton de Einsten foi proposta em 1905 e as leis experimen-tais só foram propostas por Millikan em 1916. Uma das consequências do processo de dogmatização é que, nos manuais, os conceitos são apresentados como “verdades da natureza” e não como formas de resolução de questões científicas específicas, uma vez que, pela forma como são apresentados, parece que eles foram obtidos a partir dos dados da experiência.

Dos manuais específicos à formação científica aos livros didáticos destinados ao ensino de 2° grau, esse processo de descontextualiza-ção se torna mais evidente. Além de uma facilitação mais acentuada de partes do saber sábio, ocorre a inclusão de elementos que não per-tencem ao saber de referência. Para esta fase de descontextualização na definição do saber a ensinar, além dos autores de livros didáticos, contribui o poder político, o currículo, o vestibular, os especialistas e os professores, orientados de certo modo por projetos político-peda-gógicos de formação e por exigências didáticas. A inter-relação entre projeto político-pedagógico e exigência didática é analisada e definida pelos vários grupos constituintes da noosfera, num processo relativa-mente longo e amplo em termos educacionais. Isto é, geralmente esse processo ocorre por ocasião ou como consequência da definição de um plano nacional, estadual ou municipal de educação. Dependendo do momento histórico, haverá a maior influência de um dos grupos.

O fato de um saber a ensinar estar presente ou definido nos manuais e livros didáticos, na proposta curricular ou nos planos de ensino, não é garantia que ele chegue, necessariamente, até o aluno. Há, portanto, um universo mais particular – o saber ensinado. Embora tenhamos nos referenciado como um caso particular do saber a ensinar, o sa-ber ensinado é também repleto de fatores determinantes, além dos já mencionados. Para ele concorrem mais acentuadamente os grupos da noosfera vinculados à comunidade escolar, como os proprietários de estabelecimentos de ensino, os supervisores e orientadores edu-cacionais, a comunidade dos pais e os professores. São inúmeros os aspectos que concorrem para a definição do saber a ser ensinado, mas podemos identificar que ele é definido pela possibilidade de um controle social e legal da aprendizagem, atendendo, pelo menos, aos seguintes requisitos:

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1º - o conteúdo é ensinável, ou seja, pelo menos teorica-mente, ele pode ser aprendido pelo aluno a que se desti-na. Para essa definição são levadas em consideração as faixas etárias dos alunos, a especificidade do curso e da disciplina escolar dos quais fará parte.

2º - o conteúdo possibilita a elaboração de objetivos de ensino, de exercícios, avaliações ou trabalhos práticos.

Embora, na maioria das vezes, esses requisitos tenham sido levados em consideração na definição do saber a ensinar, especialmente pelos livros didáticos, destacamos a influência dos professores nessa esfera do saber. Isso porque a ênfase a determinadas unidades do conteúdo, a maneira como o conteúdo é abordado, os exercícios e a avaliação, passam necessariamente pela decisão do professor e esta depende, dentre outras coisas, da sua formação e de seu entendimento a res-peito da Ciência de referência, dos conteúdos de ensino e do aluno. Apresentaremos mais adiante uma discussão sobre a participação do professor no modo como o conteúdo é ensinado.

A Transposição Didática é uma transformação necessária para que um objeto do saber da Ciência dos cientistas passe a ser objeto do saber da Ciência dos alunos por meio da Ciência da escola. Ignorar a existência e a necessidade da Transposição Didática é entender o aluno como um “cientista em miniatura”. Isto implica, dentre outros fatores, no entendimento de que o saber a ser ensinado na escola é apenas, em última análise, uma simplificação do saber sábio. Entre-tanto ela deve contemplar elementos epistemológicos, psicológicos e sociológicos que permitam a superação dos obstáculos epistemoló-gicos, ao mesmo tempo em que impeça os efeitos da dogmatização. Nesse sentido, a exemplo de algumas experiências que vem sendo rea- lizadas na Didática das Ciências, Astolfi (1995) indica a necessidade de levar em conta, dentre outros fatores, as Práticas Sociais de Refe-rência, os níveis de formulação de um conceito e as redes conceitu-ais. As práticas sociais de referência podem ser a garantia da neutrali-zação do efeito da dogmatização, uma vez que elas podem promover uma reelaboração do saber a ser ensinado no Ensino Médio, evitando a simples redução do saber universitário ao saber secundário. Para tanto, salienta a importância de se utilizar atividades sociais diversas, como atividades de pesquisa, de produção, domésticas e culturais, como ponto de partida para o exame de aspectos relativos ao saber de referência. Para a utilização de práticas sociais de referência é fun-damental que seja respondida a seguinte questão:

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171Transposição didática

Que imagem de Ciência e atividade científica que se quer forne-cer aos alunos?

É a resposta a esta pergunta que deverá nortear a prática do ensi-no. A atenção aos níveis de formulação de um conceito pode evitar a apresentação do mesmo de forma descontextualizada e fragmentada e ainda contemplar o que os alunos já sabem a respeito de determi-nado conceito. Já a consideração das redes conceituais pode propiciar a diminuição da retificação, simplificação do saber de referência e a definição isolada dos conceitos.

Percebe-se que, de maneira idêntica à forma como é entendido o pro-duto da atividade científica, as sequências programáticas dos planos de ensino e dos conteúdos dos livros didáticos trazem a indicação dos conceitos, das definições e das “fórmulas” relativas ao conteúdo, de modo fragmentário, como se a apresentação isolada dos mesmos pudesse ser garantia da aprendizagem de uma teoria. Esses conte-údos, na maioria das vezes, se apresentam como uma simplificação dos conteúdos presentes nos livros didáticos de nível universitário.

A maioria dos livros didáticos utilizados atualmente e dos conteúdos programáticos dos planos de ensino (muitos deles sumários dos livros didáticos) apresenta o conteúdo físico em uma sequência que foi en-tendida por alguém, algum dia, como sendo a melhor. Aparentemente, essa colocação pode parecer inconsequente, entretanto, ela represen-ta o que a maioria dos professores responderá se perguntarmos a eles a razão da escolha dos conteúdos e a sequência dos mesmos. Alega-rão que tentam atender à proposta curricular da Secretaria Estadual de Educação ou similar, ao livro didático adotado e/ou aos conteú-dos solicitados nos exames vestibulares. A discussão sobre planos de ensino e livros didáticos é longa e não é o objetivo neste momento, mas temos a impressão que a eleição dessa sequência certamente foi orientada pela aparente simplicidade que o conhecimento físico passa àquele que já o domina. Elegeu-se um dos conceitos como o primeiro ou o “mais fácil” e, a partir dele, foi-se elaborando uma sequência, partindo do conceito supostamente mais simples para o mais comple-xo. Essa sequência, pouco questionada ou discutida, assume tacita-mente que o conhecimento físico é uma acumulação de conceitos de modo linear e contínuo.

Essa imagem de simplicidade aparente do conhecimento físico, inse-rido no contexto curricular, reforça o entendimento de muitos profes-sores de que é possível que os alunos compreendam uma teoria cien-tífica através da definição isolada de seus conceitos. Consideramos

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que esse fato é responsável por alguns dos problemas detectados no processo de ensino-aprendizagem de Física, pois, como já vimos, o conhecimento estruturado em redes complexas é mais que a soma de suas partes.

Os processos de obtenção do conhecimento também não são con-siderados. Fatos históricos quando são apresentados, aparecem em leituras suplementares ao final dos capítulos. Quando é apresentada alguma concepção historicamente anterior a respeito de um fenôme-no, ela é apresentada como um modo errado de entendimento sobre o mesmo, não levando-se em conta o contexto no qual essa concepção foi construída e validada.

Um exemplo disso é que, de maneira geral, quando um livro didáti-co utilizado no Ensino Médio apresenta a Mecânica Clássica, a visão aristotélica de movimento, quando aparece, é apresentada como uma concepção ingênua e incompleta, que foi superada pelo paradigma newtoniano. Força, massa, aceleração, referencial inercial são concei-tos apresentados de forma sequenciada e harmônica, como se fossem conceitos simples, que se encerram em si mesmos. Não é levado em conta que os significados desses conceitos dependem do papel que eles desempenham no interior da teoria.

Outro exemplo que pode ilustrar a reformulação, a dogmatização e a transposição de um elemento do “saber sábio” para um conteú-do físico escolar pode ser encontrado na maioria dos livros didáti-cos destinados à 1ª série do Ensino Médio, quando tratam das leis de Newton. A 2ª lei foi formulada originalmente por Newton, defi-nindo força como a derivada temporal da quantidade de movimento

(

F dpdt= ) ou, numa linguagem mais apropriada ao Ensino Médio,

como a variação do vetor quantidade de movimento com relação à variação do tempo (

F p t= ∆ ∆ ). Entretanto, na maioria dos livros ela é apresentada como sendo

F m a= . , que é a estruturação elaborada por Euler quase um século depois de Newton.

Sem dúvida nenhuma, a Transposição Didática é um fenômeno pre-sente no processo ensino-aprendizagem. Negá-la ou ignorá-la é acei-tar que os conteúdos científicos contidos nos livros didáticos são reproduções fiéis da produção científica. Ter consciência da Transpo-sição Didática é de suma importância para o professor que pretende desenvolver um ensino mais contextualizado e com conteúdos me-nos fragmentados do que aqueles dos livros textos. Isso possibilitaria uma reconstituição, pelo menos parcial, de um ambiente que permita

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173Transposição didática

ao aluno a compreensão da capacidade que tem o saber de resolver problemas reais. Também abre caminho para a compreensão de que a produção científica é uma construção humana, portanto, dinâmica e passível de equívocos, mas que, ao mesmo tempo, tem um grande poder de solução de problemas.

A Transposição Didática não é boa nem é ruim – faz-se indispensá-vel, imperativa, pois torna ensinável os saberes. Ela mostra como a didática opera para facilitar o ensino de conteúdos do saber sábio. A transformação de objetos de saber em objetos de ensino se faz im-prescindível para que ocorra de fato um processo de ensino-aprendi-zagem.

O exercício do principio de vigilância a Transposição Didática é uma das condições que comandam a possi-bilidade de uma análise científica do sistema didático. (CHEVALLARD, 1991).

É importante ter-se em conta que

A Transposição Didática tem sua utilidade, seus incon-venientes e seu papel para a construção da ciência. Ela é inevitável, necessária e de certo modo, lamentável. Ela deve ser colocada sob vigilância. (BROUSSEAU, 1986).

Ao professor, consciente da Transposição Didática, cabe a tarefa de criar um “cenário” menos agressivo ao dogmatismo apresentado pe-los livros didáticos e minimizar a diferença entre o tempo didático e de aprendizagem. Mesmo submetido às pressões dos grupos de sua esfera, o Professor deve buscar a criação de um ambiente que favore-ça o rompimento com a imagem neutra e empirista da Ciência, ima-gem que é perpassada através dos manuais e livros didáticos, deve buscar os elementos mais adequados aos seus objetivos.

A título de resumo, vamos reproduzir uma tabela elaborada por Per-ret-Clermont que apresenta os três saberes e os “atores” principais, responsáveis pela sua elaboração, os personagens das várias esferas e suas funções básicas no processo da TD, as atividades cognitivas de cada grupo e as fontes de pressão a que estão sujeitos. A clareza das informações dispensa maiores comentários.

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Atores

principais

Saber sábio

Pesquisadores

Saber a Ensinar

Autores de livros

Saber Ensinado

Professores

Grupos sociais

de referência

Colegas atuais e antigos,

com suas:

• ”escolas”,

• correntes de

pensamentos,

• publicações.

• Autores.

• Especialistas da

disciplina.

• Professores.

• Opinião pública.

• Alunos.

• Estabelecimentos

escolares e seu meio

social.

• Pais dos alunos.

• Supervisores escolares.

Foco de suas

atividades

(a que se

dedicam)

• Manter o debate

científico em um dado

ramo do saber.

• Avanço do

conhecimento da área

do saber (disciplina).

• Colocar a disposição

elementos recentes do

saber, de documentos

originais, etc.

• Transformação do

saber em proposições

de atividades de aula,

exercícios, problemas...

• Transmitir os conceitos

básicos.

• Reconhecer as

dificuldades do

“trabalho de ensinar”.

• Manter a comunicação

didática.

• Escolher e organizar a

sequência do saber.

Atividade

cognitiva

dos atores

(produção

científica)

• Trabalhar no

aprofundamento de

conhecimentos.

• Resolver problemas e

provar (demonstrar) as

soluções a seus pares.

• Integrar o

conhecimento novo ao

saber existente.

• Simplificar o saber

e procurar a melhor

maneira de expô-lo.

• Selecionar para cada

conteúdo os exercícios

para fazer.

• Decidir sobre a melhor

forma de avaliar (não

muito fácil, não muito

difícil; interessante mas

séria).

Fonte de

“pressão”

em suas

atividades

• Competição científica

e na carreira.

• Necessidade de

publicar e fazer

comunicações em

congressos.

• Justificar o horário

(período) dedicado a

pesquisa.

• Competição e

obrigações editoriais.

•Currículos, conteúdos

programáticos,

programas escolares.

• Controle mútuo entre

os autores.

• Avaliações posteriores:

de nível para nível

escolar, vestibular, etc.

• Obrigações com o

tempo didático.

• Adequação as normas

escolares estabelecidas

(julgamento da

Direção, dos pais dos

alunos, da supervisão.)

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175Transposição didática

Ah! Antes que você pergunte, respondemos:

As afirmações físicas do início do capítulo foram enunciadas por Newton!!!!

Figura 10.1 - Seria isto uma T.D. mal feita?

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo de auxiliá-lo em reflexões

acerca do foi apresentado no capítulo, provocá-lo para uma discussão, dire-

cioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e por que não, levá-lo a ponderar

sobre sua inclusão no planejamento de suas aulas. Não se sinta obrigado a

memorizar nomes, datas etc. Procure elaborar uma resposta escrita conside-

rando a argumentação (prós e contras) proporcionada pelo capítulo. Bom

trabalho!

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176

1) Escreva uma carta a um colega, professor de Física, explicando o que é a Transposição Didática como instrumento de análise.

2) Quais as Práticas Sociais de Referência (PSR) a que você está sub-metido mais de perto em sua escola? Justifique as razões.

3) Comente a afirmação:

“A Transposição Didática demonstra que a construção do saber a ensinar é

fruto de um projeto educacional incluso em um projeto social mais amplo.”

4) Diferencie os tempos: real, lógico, didático e de aprendizagem.

5) Como são entendidos os processos de: despersonalização, dessin-cretização e descontextualização?

6) Quais seriam os procedimentos didáticos adotados por você em suas aulas de Física para promover: a repersonalização, a ressincreti-zação e a recontextualização? [Nota: Para facilitar sua resposta, es-colha um conteúdo de Física e trabalhe a partir dele.]

7) Faça uma análise do saber a ensinar e saber ensinado em sua prática escolar, utilizando a TD como instrumento de análise.

8) Interprete a charge da página anterior à luz da TD.

Textos recomendados

No AVEA poderá encontrar um texto mais detalhado sobre Trans-posição Didática – Adaptação do Capítulo 4 da Tese de Doutorado: Atividades Experimentais: do método à prática construtivista, de José de Pinho Alves Filho. CED/UFSC.

Regras da Transposição didática aplicadas ao laboratório didático. José de Pinho Alves Filho. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 17. No. 2. Agosto. 2000. p. 174-188.

Eletrostática como exemplo de Transposição Didática. José de Pinho Alves Filho, Terezinha de Fátima Pinheiro e Maurício Pietrocola. In: Ensino de Física: conteúdo, metodologia e epistemologia em uma concepção integradora. Maurício Pietrocola (Org.). Florianópolis: Ed. UFSC, 2001.

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177Transposição didática

Referências

ASTOLFI, J. P.; DEVELAY, M. A didática das ciências. São Paulo: Papirus, 1995.

CHEVALLARD, Y. La transposition didactique - du savoir savant au savoir enseigné. Paris: Grenoble, 1991.

JOHSUA, S.; DUPIN, J. J. Introduction à la didactique des sciences et des mathématiques. Paris: PUF, 1993.

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179O contrato didático

11 O contrato didático

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Encerrando o estudo das relações presentes no modelo de Sistema de Ensino por nós adotado, vamos agora analisar o setor das interações didáticas que mostra as interações entre professor e aluno. Você terá a oportunidade de ca-racterizar o que é Contrato Didático e como ele se apre-senta em sala de aula. Vamos também problematizar os procedimentos dos professores em sua prática docente, na tentativa de contornar o Contrato Didático.

Primeiramente, tente responder:

“Sobre um barco há 26 carneiros e 10 cabras. Qual é a idade do capitão?”

11.1 Mas que contrato é este?

O nosso modelo de Sistema de Ensino mostrou a existência de uma ligação ternária entre saber-professor-estudante, que é indissociável, isto é, não pode ser analisada restritamente de forma binária na di-nâmica do processo de ensino em sala de aula. Sempre, todas as possíveis relações estarão simultaneamente presentes.

Por outro lado, para entendermos estas relações o fizemos aos pares, isto é, ao estudarmos as Representações Intuitivas, vimos que elas fa-zem parte das relações Conhecimento-Aluno, dentro do Setor de Es-tratégias de Apropriação (referência psicológica de caráter cognitivo). Já a relação Conhecimento-Professor, que está no Setor de Elaboração de Conteúdos, pôde ser analisada por meio da Transposição Didática, cuja referência é epistemológica.

Finalmente, vamos fechar nosso estudo sobre as relações didáticas do Sistema de Ensino analisando a relação Professor-Aluno, contemplada no Setor de Interações Didáticas, referenciado na Sociologia.

Verifique o esquemático desta relação no início desta unidade.

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Ninguém discute que em uma sala de aula o Professor deve ensinar e o aluno deve aprender. Veja que estas são ações obrigatórias espe-radas, as responsabilidades de um para com o outro. Mas quando ou quem determinou estas obrigações? Podem tais obrigações, oriundas da relação professor-aluno, ser óbvias e dispensar comentários. En-tretanto, esta clareza não é tão evidente assim. Estas obrigações re-fletem a existência de regras, acordos, comportamentos, uma espécie de contrato que está implícito na relação professor-aluno.

No início da vida escolar ou no início de qualquer ano letivo, quando professor e alunos ainda se desconhecem, há um clima de expectativa de ambas as partes. O único estabelecido explícito é que o professor irá ensinar e que o aluno deverá aprender, ou que, em outras palavras, um é portador do conhecimento estabelecido e o outro está ali para se apropriar deste conhecimento. Isto caracteriza uma forte assime-tria, seja do ponto de vista do conhecimento, seja das ações didáticas a serem adotadas na sala de aula, pois o professor tem o controle e o poder de decisão, de escolha. As opções das ações didáticas deter-minarão as relações didáticas que, por sua vez, irão fixar os papéis, os lugares e as funções de cada uma das partes, constituindo uma espécie de contrato. Os termos deste contrato mantêm-se implícitos, mas isto não quer dizer que eles não sejam conhecidos. É um tanto paradoxal, mas é desta forma que funciona.

Brousseau (1986), define o Contrato Didático como referente a:

uma relação que determina, explicitamente por uma pe-quena parte, mas, sobretudo implicitamente, o que cada parceiro, professor e aluno, tem a responsabilidade de gerir e da qual ele será responsável, de uma maneira ou de outra, em frente ao outro. Este sistema de obrigações recíprocas se assemelha a um contrato. O que nos inte-ressa é o contrato didático, quer dizer a parte do contra-to que é específica ao conteúdo.

A relação professor-aluno flui normalmente desde que não surja algo para quebrar o equilíbrio das relações didáticas e fazer aflorar um conflito e daí uma ruptura. No conflito é que emergem, se explicitam as regras do Contrato Didático. No processo de avaliação é que se fa-zem mais claras estas relações didáticas, como também é mais frágil no sentido de ruptura contratual.

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181O contrato didático

Ao professor cabe, por meio de ações didáticas, mediar o saber de ma-neira a propiciar a aprendizagem ao aluno. Portanto, sua forma, ma-neira e trato com o saber no processo de mediação refletirão em como ocorrerá o aprendizado pelo aluno. Esta colocação parece óbvia, de compreensão e aceitação imediata, e isto é verdadeiro, contudo, car-rega consigo uma série de compromissos por parte do professor.

Ao definir suas ações didáticas, entre elas a avaliação, os acordos são coletivos, com a classe toda e não individualmente. Aliás, são acordos que se estabeleceram desde os primeiros anos escolares. Ao aluno caberá responder o solicitado, desde que tenha sido tratado em sala de aula o assunto objeto da avaliação. Com o passar do tempo, com certa perspicácia, o aluno passa a perceber o que será exigido e o que se torna irrelevante, isto é, o que não será avaliado. Ao dominar este processo de percepção dos pontos mais importantes tratados pelo professor e negligenciar os demais, passa a obter êxito. Aqueles que não conseguem intuir esta diferença certamente terão dificuldade de sair-se bem em suas avaliações. Certos autores afirmam que os alu-nos que entendem as “regras do jogo” se dão bem na escola, isto não significa que se apropriaram do conhecimento, mas que simples-mente entenderam o processo. O entendimento das regras do jogo e o consequente êxito nas avaliações estabelecem para o aluno um padrão dentro da relação didática – avaliação. A manutenção deste padrão não gera conflito de espécie alguma. No momento que o pro-fessor fizer uma avaliação que foge ao padrão tradicional, tal como uma pergunta aberta sem resposta imediata, certamente as reclama-ções serão imediatas. Surge um conflito, pois ocorreu uma ruptura com o acordo inicial. Mas ocorreu em algum momento a explicitude de regras que definem como deve ser uma avaliação e o quê nela deve ser questionado?

Esta é uma das facetas que mostra a existência de um Contrato Didá-tico cujas cláusulas são implícitas até o momento do conflito. Existem outras ainda no espaço da avaliação. Certamente você, como profes-sor, se já não utilizou deste expediente pelo menos se sentiu tentado a fazê-lo quando a classe não responde às solicitações de silêncio ou comportamento adequado. Após alguns apelos frustrados, muitos professores reagem com ameaça de uma prova surpresa ou até de sua realização imediata. Isto é, também, uma quebra de contrato, pois avaliações devem ter suas datas acordadas entre professor e aluno.

Ainda sobre o conflito gerado por uma avaliação “diferente”, vemos que nela há uma ruptura com a forma anteriormente utilizada pelo

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professor. A forma de perguntar e o que pergunta determina a ma-neira que o professor trata o saber nas relações didáticas. Um ensino dogmático e imperativo ressaltará, em uma avaliação de ques-tões com forte cunho objetivo, aplicações diretas de fórmulas, uma só resposta... Enfim um questionamento que visa meramente reproduzir o saber tratado nas aulas. Quando o “jeitão” da avaliação é modifi-cado pelo professor a “regra implícita” é rompida, surge o conflito e a necessidade de negociar ou renegociar o Contrato Didático.

É importante lembrar que na relação didática o aluno assume que o professor fará as escolhas didáticas corretas e adequadas para seu aprendizado, que as perguntas feitas terão sempre uma resposta e que ele terá de responder corretamente o solicitado.

Do lado do professor, este terá de fazer escolhas didáticas adequadas à sua classe e ter como meta a aquisição dos conhecimentos pelos alunos. Se esta última não ocorre, verificado pelo não acerto das ati-vidades propostas ou pelas avaliações, poderá haver uma ruptura do contrato, onde o professor passa a reduzir os conteúdos tratados e alterar os objetivos de aprendizagem, além de facilitar as tarefas de diferentes maneiras. Estas atitudes ou práticas efetuadas pelo profes-sor são designadas pelo termo “efeito do contrato”, que veremos na seção seguinte.

Com relação ao saber (mediador da relação professor-aluno), basea-dos nas ideias de Brousseau, Moretti e Flores (2001), destacam quatro elementos importantes:

1) a idéia da divisão de responsabilidades: a relação didá-tica não é controlada exclusivamente pelo professor; a res-ponsabilidade do aluno é levada em consideração: ele deve-rá cumprir com seu papel de aluno no envolvimento com o aprender;

2) a conscientização do implícito: a relação didática funciona muito mais sobre as regras “não ditas” do que sobre aque-las formuladas e explicitadas; o contrato didático se inquieta muito mais por estas regras implícitas do que por aquelas explícitas, de todo modo, é em torno de tais regras, implícitas e explícitas, que professor e aluno são ligados;

3) a relação com o saber: o que é característico do contrato didático é a consideração da relação que cada um dos par-ceiros tem com o saber; devemos, portanto, levar em conta

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183O contrato didático

a assimetria das relações com o saber em jogo na relação didática;

4) a construção da comunicação didática: o contrato didático fixa o papel do conhecimento e da aprendizagem, constituin-do uma forma de teoria chamada “epistemologia escolar”; é mediante o contrato didático que se busca o que impede ou favorece o acesso dos alunos ao conhecimento e, ainda, o que bloqueia a entrada destes no processo da aprendizagem.

11.2 Efeitos do contrato didático

Na expectativa de que seus alunos aprendam, muitas vezes, os pro-fessores agem de maneira a facilitar ou criar situações que levem os alunos ao êxito em suas tarefas e avaliações. Estes comportamentos ou ações constituem o que se denomina de “efeitos do contrato”. De certa forma, é paradoxal, pois o professor não pode ensinar tudo ao aluno, pois, neste caso, ele não teria nada a aprender. São eles:

1) Efeito Pigmaleão

Pigmaleão, rei de Chipre, esculpiu uma estátua tão formosa que se apaixonou por ela. Pede a deusa Afrodite que lhe dê vida e conse-guido o intento casa-se com ela.

Este mito ilustra bem o que os psicólogos chamam de “fenômeno das expectativas”. Mas o que tem isto com a sala de aula?

Ao iniciar suas aulas e à medida que vai conhecendo seus alunos, o professor cria expectativas em relação a eles. Seja de sucesso ou de fracasso. Pode ser com a classe toda, alguns alunos ou ainda com um aluno em particular. A forma com que tratará a correção das tarefas, das avaliações ou do tato durante as aulas poderá definir o sucesso ou fracasso. O sucesso implica correções mais suaves e tolerantes, pois vê refletido nas respostas dadas, mesmo que parcialmente, suas expectativas de professor, daí aceitar como correta as respostas ou comportamentos de aula. De outro lado, o aluno que consegue a mes-ma nota durante algumas avaliações, certamente a terá nas seguin-tes, pois a exigência feita pelo professor, com o passar do tempo, se projeta na imagem criada da capacidade do aluno.

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Quanto ao fracasso, desnecessário tecer comentários. O rótulo de in-competente dado ao aluno dificilmente fará com que ele se recupere e venha a obter êxito ou caia nas graças do professor.

2) Efeito Topaze

Quando a cortina se levanta, o Sr. Topaze faz um ditado a um aluno.

O Sr. Topaze tem aproximadamente trinta anos. Longa barba pre-ta que termina pontuda sobre o primeiro botão do colete. Gola reta, muito alta de celulóide, gravata miserável, redingote surrado, botas com botões.

O aluno é um pequeno garoto de 12 anos.

Ele vira de costa para o público. Vê-se as suas orelhas descoladas, seu pescoço de pássaro mal nutrido. Topaze dita e, de um tempo a outro, ele se inclina sobre o ombro do garotinho para ler o que ele escreveu.

Topaze, dita passeando.

“Ovelhas... Ovelhas... estavam em segurança... em um parque.

(Ele se inclina sobre os ombros do aluno e retoma).

Ovelhas... Ovelhasss... (O aluno o olha estupefato).

Vejamos, garoto, faça um esforço. Eu disse ovelhasss.

Eram (ele retoma com fineza) erammm. Quer dizer que não havia somente uma ovelha. Haviam várias ovelhasss.”

Peça teatral Topaze - de Marcel Pagnol

Este trecho da peça teatral Topaze, analisada por Brousseau, exempli-fica uma situação didática na qual o professor procura dar “pistassss” para que seu aluno obtenha êxito no ditado, pois, havendo êxito, o professor se sentirá cumpridor de seu papel.

Se ele propusesse um ditado correto, o aluno, que pouco está interes-sado, faria mais de vinte erros por página! Topaze não pode admitir isto por causa dos pais que julgarão que ele é incapaz e parariam de pagar pelas lições. Portanto, irão se produzir os esses, um procedi-mento fonético que não leva ao reconhecimento do plural.

Em sala de aula, este procedimento ocorre de maneira similar quando o professor fornece abundantes explicações, dá truques, algoritmos e técnicas de memorização. Tais instruções evidenciam que a resposta

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185O contrato didático

do aluno já é prevista anteriormente, já que o professor escolhe ativi-dades cujas respostas podem ser dadas pelo aluno.

Por vezes, os professores fazem um pergunta curta. Como não há resposta por parte da classe, repetem a pergunta, ampliando as in-formações no enunciado. Em caso de ainda não receber resposta, re-arranjam a pergunta, agregando mais informações e assim sucessi-vamente. Ao cabo de um tempo, a pergunta torna-se uma explicação onde fica faltando uma só palavra para completar a frase. Nas aulas de Física, é bastante comum encontrarmos situações deste tipo que vão sendo elaboradas pelo professor e a seu término tem-se uma fra-se tipo: “... então, uma força agindo sobre um corpo que realiza um deslocamento realiza....??? A resposta imediata é “trabalho”. Se a frase fosse similar, mas o verbo final fosse produz, a resposta seria aceleração. Se alguém responde corretamente, o professor sente-se feliz, pois ensinou! Cumpriu o contrato!

Outra forma do efeito Topaze é o uso abusivo da analogia na rela-ção didática. Quando os alunos fracassam nas suas aprendizagens, é preciso dar nova oportunidade para se manifestarem sobre o mesmo assunto. O usual é o professor dissimular o fato de que o novo proble-ma se parece com o antigo. Nesta situação, os alunos vão procurar – e é legítimo – as semelhanças, para transportar a solução que já lhes foi dada. Em relação a esta solução, não significa que eles a encon-traram de uma forma idônea, eles a reconheceram através de sinais que o professor desejaria que eles reproduzissem. Os alunos obtêm a solução por uma leitura das indicações didáticas e não por um in-vestimento no problema. A analogia é um excelente meio heurístico quando utilizado com responsabilidade, mas muitas vezes vem refor-çar o contrato didático, pela via de seus efeitos.

3) Efeito Jourdain

O efeito Jordain é uma variante do efeito Topaze. Leva este nome ins-pirado em diversas cenas do Ato I da peça Bourgeois Gentilhomme, de Molière. O professor de filosofia revela a Jourdain o que são a prosa e as vogais.

Com o intuito de não gerar polêmica e debate de conhecimento com o aluno e, consequentemente, verificar seu insucesso escolar, aceita nas respostas do aluno certo conhecimento, um aprendizado, mesmo que este venha através de frases com significado prosaico, sem muita articulação com aquilo que foi ensinado. A resposta do aluno a uma dada pergunta, seja por palavras ou gestos, que traga alguma menção ao ensinado, é interpretado pelo professor como aprendizado.

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O efeito Jourdain pode ser observado em estratégias de ensino nas quais o professor se baseia nos comportamentos comuns do aluno, interpretando-os como manifestações de um saber sábio. O desejo de inserir o conhecimento em atividades familiares pode conduzir o professor a substituir a problemática verdadeira e específica por uma outra metafórica ou metonímica e que não dá um sentido correto à si-tuação. Muito frequentemente as duas problemáticas estão presentes, justapostas e o professor tenta obter o melhor compromisso. (MO-RETTI e FLORES, 2001.)

4) Deslocamento metacognitivo, também conhecido como Efeito Papy

Muitas vezes, quando o professor percebe que sua ação didática não está obtendo sucesso, ele transforma um meio de ensino em objeto de ensino. Em outras palavras, se o conteúdo se apresenta com cer-to grau de dificuldade, as suas explicações, seus artifícios didáticos, seus meios heurísticos assumem o lugar do verdadeiro conhecimento. Muitas vezes, uma forma de explicar determinado assunto passa a ser aceita na comunidade de professores e se torna conteúdo, escapa ao controle e se perpetua.

No ensino de Física, algumas regras ou algoritmos passam a ser mais importantes que o conhecimento a eles associado. O uso correto da regra da “mão direita” (ou mão esquerda para outros) se torna mais importante que o entendimento do fenômeno eletromagnético que exige seu uso. Moretti e Flores (2001) explicitam um pouco mais este efeito, oferecendo um exemplo famoso em Matemática:

O exemplo mais claro é, provavelmente, a utilização dos grafos na década de 60. Ao final dos anos 30, a teoria dos conjuntos deixa a sua função científica inicial para tornar-se um meio de ensino a fim de satisfazer os desejos que têm os professores de uma metamate-mática e de um formalismo fundamental. Deste fato, os professo-res começaram a exigir um certo controle semântico desta teoria (dita ingênua). Para evitar os erros, não basta aplicar os axiomas, é preciso saber do que se trata e conhecer os paradoxos ligados a certos tipos de uso para evitá-los. Este controle difere bastante do controle matemático habitual, mais sintático.

O controle semântico é confiado a um modelo que remonta a Euler (Cartas a uma princesa da Alemanha) e que apela para vários tipos de grafos (círculos de Euler, diagramas de Venn, batatas de Papy). Este, que é um meio de ensino, torna-se objeto de ensi-no para crianças cada vez mais novas.

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187O contrato didático

G. Papy preconizou o emprego sistemático de flechas (modesta-mente chamadas de papygramas) para designar as relações e apli-cações.

Ele afirmava que seus alunos compreendiam perfeitamente o que é uma relação graças a este simbolismo. Experiências efetuadas em 1972 por uma equipe do IREM de Strasbourg com alunos da 5ª série mostraram que o esquema seguinte é reconhecido por todos alunos como representante de uma bijeção.

Mas, se pedir a eles que modifiquem apenas uma flecha do es-quema seguinte

para representar uma bijeção, o índice de acerto cai para 43%.

11.3 Consequências do contrato didático e seus efeitos

Uma das regras implícitas do Contrato Didático que não nos damos conta e que se consagra pelos livros didáticos (lembrar da Transposi-ção Didática) é que todo o tratamento dado às situações físicas é ide-al. Todo corpo de massa m é rígido e tem sua massa concentrada em um ponto. Não há atrito na maioria das situações, exceto aquelas que tratam sobre o assunto. Toda carga é puntual. As forças são conser-vativas. Os fios e cordas são sem massa e inextensíveis. O sistema de referencia é inercial. Isto só para falar de Física. Em Química, vale re-gistrar que os sistemas trabalhados são totalmente conservados sem perda de energia durante as reações. Na Biologia, estuda-se sistemas padrões e regulares.

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Enfim, trabalha-se em um universo ideal que leva a uma interpretação de mundo, de situações e fenômenos um tanto longe da realidade. Mas, por outro lado, facilita o processo de ensino e... de avaliação. A relação didática se torna mais controlável e sem sobressaltos, pois tudo se ajusta aos modelos estudados, ao dogmatismo e ao tradicional.

Na forma de elaborar avaliações também encontramos regras implíci-tas, além daquelas comentadas anteriormente. Vamos analisar o pro-blema abaixo, que poderia ser dado em uma prova. É de enunciado simples, mas adequado aos nossos propósitos.

Um móvel se desloca com a velocidade inicial de 10 m/s. A partir de um dado ponto sofre uma aceleração de 4 m/s2 durante 8 segun-dos. Qual a distância percorrida desde que iniciou a aceleração?

Dadosa) – observe que neste problema todos os dados são ne-cessários para chegar-se a solução. Nenhum dado a mais é acrescentado. Os dados oferecidos são estritamente os indis-pensáveis para solucionar o problema – nunca são fornecidos mais dados. Mas por quê? Ora, para não complicar a vida do aluno, diria alguém. Ou seria porque o professor também nun-ca resolveu problemas com dados a mais, ensinando a julgar e decidir quais os dados pertinentes e quais os irrelevantes?

Soluçãob) – todo o problema tem solução e somente uma solu-ção. Não são propostos problemas com mais de uma solução. Razão? Implicaria uma discussão para decidir qual a resposta mais adequada e isto não é objeto do processo de ensino e nem faz parte do contrato. A resposta ao problema ou a uma questão teórica é única. Evita conflito.

As raras exceções dos problemas de Física que apresentam duas respostas são aqueles que, para solução, demandam uma ex-pressão ao quadrado. Se no problema acima tivéssemos forne-cido a distância percorrida e solicitado o tempo, como resposta teríamos as duas raízes da equação. Uma delas seria negativa e, como o tempo não pode ser negativo, ficaria excluída como resposta, restando apenas uma delas como correta.

Informações extrasc) – questões teóricas são propostas de tal modo que não necessitam de nenhuma informação extra. São curtas, “enxutas” e sem exigência de alguma decisão a ser to-mada, pois, como os problemas, só possibilitam uma resposta. Questões de múltipla escolha fazem parte deste universo – só

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há uma alternativa correta. Aqui a situação não é tomar deci-são, mas escolher a correta.

Problemas abertosd) – Não são apresentados, discutidos e re-solvidos problemas abertos. As razões são várias. Desde a falta de tempo, um possível tumulto em sala, até a falta de prática (de ambos os atores) e da quebra do contrato! Problemas abertos implicam conjecturas, hipóteses, organização da situação e um tomar de decisões. Sem falar que não têm a resposta – o que têm é uma resposta para cada situação organizada.

Estes são alguns pontos que fazem emergir o Contrato Didático com suas regras implícitas, seus efeitos nas ações do professor e que, prin-cipalmente, mostram o trato com o saber. Trato que reflete opções epistemológicas sobe a Ciência e o Ensino de Ciências.

11.4 O desafio moderno: as novas relações com o saber

Nesta seção, queremos encerrar nossa análise do modelo de Sistema de Ensino adotado neste texto, articulando os três últimos capítulos.

A relação aluno-saber (setor de estratégias de apropriação) tem refe-rência na Psicologia, pois é no processo cognitivo que ocorre a apro-priação do conhecimento. Isto posto, é fundamental lembrar que o aluno chega à sala de aula com um entendimento do mundo e dos fenômenos com os quais convive no seu dia a dia. Este entendimento, que muitas vezes oferece uma explicação lógica e consistente para um dado fato, pode se tornar um forte obstáculo para o aprendizado da Física. Este entendimento – Representações Intuitivas – cons-truído pelo aluno é produto de seu entorno social, mitos, crenças e informações mal interpretadas. Não podemos ignorá-lo ou evitá-lo.

A relação professor-saber ocorre no setor de elaboração dos conteú-dos de forte referência epistemológica. É neste setor que encontramos a Transposição Didática como instrumento de análise que procura explicar o processo transformador do saber produzido no âmbito dos cientistas (saber sábio) em um saber a ensinar. Ela mostra que este processo transformador ocorre sob uma ótica epistemológica de in-tensa influência positivista e que o seu produto (saber a ensinar) se apresenta de forma linear, cumulativa (do mais fácil ao mais comple-xo), dogmática e a-histórica. Dito de outra forma: o saber sábio sofre

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um processo de degradação. Esta degradação se estabelece através de uma despersonalização, uma dessincretização e uma descontex-tualização.

Finalmente, como acabamos de ver, temos o setor das interações di-dáticas (referência sociológica) que pode ser interpretado pelo Con-trato Didático. O Contrato Didático rege a forma de tratamento que é dada ao saber nas relações didáticas de sala de aula. Ele é um algo complementar à Transposição Didática ou seu gerenciador. Discuti-mos que ele se constitui por meio de regras implícitas acertadas para os diferentes momentos didáticos. A quebra destas regras leva ao con-flito e torna explícito o implícito. As ações didáticas, sob o controle do professor, dão o ritmo ao que deve ser e como dever ser aprendido. As avaliações são os indicativos documentais daquilo que foi ensinado e que deve ser aprendido. A formatação das questões, isto é, a forma de enunciá-las, dos problemas e dos assuntos avaliados, reflete a opção epistemológica adotada no saber a ensinar e saber ensinado – uma concepção de forte ênfase positivista.

Adotar e manter um ensino neste cenário é cultivar um ensino tradi-cional que carrega consigo as opções já discutidas no capítulo inicial desta unidade. É sustentar uma educação alijada do compromisso de formação ligada à cidadania, ao mundo e à sociedade moderna.

Aqueles que optarem por uma concepção tradicional não têm o que mudar. Bastam dar continuidade às práticas pedagógicas usuais, sem maiores comprometimentos educacionais. Aqueles que se vêem com-prometidos em um processo educacional e desejam uma educação formadora, conectada com seus princípios contemporâneos, deverão optar por mudança.

Como mudar? O que fazer para mudar?

É certo que mudanças não fáceis, pois demandam tempo e prepara-ção teórica e de conteúdo. É necessário olhar o modelo do Sistema de Ensino discutido e intervir em todas as relações ali presentes, levar em conta cada um dos setores citados e elaborar planejamentos di-dáticos que levem em conta aspectos psicológicos, epistemológicos e sociológicos.

Iniciar assumindo uma visão de Ciência dinâmica, isto é, uma Ciência construída, sendo construída e a se construir. Isto rompe com a idéia de uma Ciência acabada, pronta e sem interferência do momento his-tórico. Adotada esta visão, podemos pensar então em uma concepção

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191O contrato didático

de Ensino de Ciências, que por sua vez nunca poderá estar ligada a uma concepção de ensino tradicional. Assumindo uma dinâmica epistemológica construtivista para a produção cientifica, está deverá, necessariamente, se entender ao ensino. Como consequência, tere-mos de rever o “saber a ensinar” presente nos livros didáticos e, mais ainda, o saber ensinado – objeto de nosso planejamento como pro-fessores. Em suma, precisamos realizar uma “nova” Transposição Didática, agora sob a ótica epistemológica do construtivismo.

Isto feito, o próximo passo é trazer as Representações Intuitivas para o planejamento escolar, adotando estratégias didáticas que considerem este conhecimento do aluno. Que reconheçam a possibilidade destas representações serem obstáculos de aprendizagem e provocarem erros – erros de interpretação. Não evitá-las ou ignorá-las, mas fazer delas objeto presente para motivação e discussão para chegar-se ao conheci-mento científico estabelecido. Não se está propondo fazer diagnósticos sobre todos os conteúdos em cada turma, mas fazer uso da literatura que os listou e considerá-los presentes na ação didática. Discussões sobre representações intuitivas permitem mostrar a mudança de pen-samento interpretativo dos fenômenos físicos. É a face dinâmica do pensar científico – a explicação que servia durante certo tempo se mos-tra limitada, necessitando de outra mais abrangente e fundamentada.

Do ponto de vista da relação didática, observa-se que o tratamento com o saber não é mais dogmático. É assumido que o conheci-mento é “verdadeiro” até que outras explicações mais consistentes e amplas tomem o lugar da anterior. Este posicionamento didático é importante, pois inibe o entendimento e a compreensão, por parte dos alunos, de que o conhecimento é algo pronto, único e que não oferece espaço para dúvida e discussão. Esta atitude criará um am-biente didático propício para novas abordagens didáticas de caráter construtivista.

Aliando uma nova Transposição Didática e a presença das Represen-tações Intuitivas, como decorrência o Contrato Didático, teremos novas regras, novos acordos. Particularmente as avaliações não terão o aspecto de cobrança, pelo qual a resposta correta é “aquela” que o professor deseja, mas serão objeto de aprendizagem com espaço para mostrar o entendimento “acerca de”, com possibilidades de problemas abertos e questões discursivas.

Sabe-se que não será fácil assumir de pronto atitudes inovadores des-te porte, mas faz-se necessário uma preparação para tal. Nestes últi-mos capítulos, fizemos uma pequena e rápida incursão nestes instru-

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mentos de análise das relações didáticas. É um ponto de partida para quem está começando e pretende seguir esta linha de ensino. Novos textos, livros, artigos de pesquisa nas revistas da área ou apresenta-dos nos congressos devem ser consultados para fundamentar mais fortemente a base teórica e conhecer o que já foi produzido e o que é possível se aplicar em sala de aula. Caso deseje começar um planeja-mento de ensino na vertente construtivista, inicie preparando apenas uma aula. Ministre esta aula e avalie como foi – o que foi sucesso, o que ficou faltando, o que poderá ser melhorado, etc. Se tiver que voltar a seu velho estilo, volte. Mas vá preparando outra aula no moldes da primeira. Avalie... prepare uma terceira aula... avalie, aos poucos você terá confiança e adquirirá a técnica, a prática e conhecimento neces-sário para preparar todas as suas aulas desta forma. Lembre-se que irá demorar um pouco, mas, ao cabo de um ou dois anos, suas aulas estarão “prontas”. A partir daí, você terá mais tempo e mais prática para agregar uma “mais valia” a cada aula e adequá-la a cada turma e escola.

Nos dois últimos capítulos, vamos estudar dois tópicos que irão au-xiliá-lo bastante nesta nova “jornada”: História da Ciência e Modeli-zação.

Ah! Você conseguiu saber qual a idade do capitão?

O enunciado brincalhão esconde muitas verdades sobre o Contrato Didático. Leia o texto abaixo e entenderá a situação.

a idade dO CapitãO

(CHEVALLARD, Y. Sur l’analyse didactique. Deux études sur les notions de

contrat et de situation: <l’âge du capitaine>. In: JOSHUA, S.; DUPIN, J-J.

Introduction á la didactique des sciences et des mathématiques. Paris: PUF,

1993. p. 266-269)

Colocado a 97 alunos da escola elementar francesa, este problema sus-

citou 76 respostas que dão efetivamente “a idade do capitão”, utilizando os

dados que figuram no enunciado (IREM de Grenoble, 1980). Outros 5 pro-

blemas do mesmo gênero foram propostos e os resultados obtidos foram

semelhantes. De onde vem esta insensibilidade das crianças quanto à lógica?

Onde devemos procurar a origem de sua indiferença para com a pertinência

dos dados colocados na questão proposta e sua resposta? Quando e como as

crianças aprendem a pesquisar a lógica interna de um texto?

TexTo 5

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193O contrato didático

Chevallard declara de seu lado que é preciso analisar estes resultados do

ponto de vista do contrato didático. É o funcionamento deste último que

os autores das perguntas “medem” e não a suposta lógica das crianças. O

contrato comporta, de fato, uma cláusula válida para todos os problemas

propostos no contexto didático-escolar: um problema proposto possui uma

resposta e somente uma (aceitável no sentido do contrato); para chegar

a esta resposta todos os dados propostos devem ser utilizados, nenhuma in-

formação extra é necessária e a utilização adequada dos dados se faz segun-

do um esquema ou jogo de procedimentos familiares. Nesse caso, as regras

devem ser suficientemente mobilizadas e combinadas de maneira adequada

– isto que constitui, aliás, o verdadeiro campo de ação do aluno, sua margem

de manobras e incertezas.

O problema (a manobra) utilizado pelos autores de Grenoble constitui, por-

tanto, uma ruptura deliberada do contrato didático usual. Mesmo que o proble-

ma escolhido fosse próximo da realidade dos alunos (7 fileiras com 4 carteiras

cada, qual a idade da professora?) ocasionaria uma ruptura no contrato.

No entanto, o problema da pertinência é uma coisa; sua resolução local é outra.

Mas, na realidade, que pensam “verdadeiramente” os alunos das ques-

tões propostas? Chevallard revela indicações para responder esta interroga-

ção nos protocolos da entrevista. “Qual a idade do capitão? - 26 anos reponde a

criança. O que pensas deste problema? Penso que é bom, mas não vejo a relação

entre carneiros e capitão”. E ainda: “Acho que este problema é um pouco bizarro”;

“penso que ele é bobo, pois fala de carneiros e depois de capitão”. As crianças

não são, portanto, totalmente tolas. Mas então, por que os alunos mesmo

sabendo que o problema “não está legal”, ”que ele é bobo”, mesmo assim

eles lhe dão uma resposta? Há aqui duas lógicas; uma é, de alguma maneira,

selecionada pelo ritual escolar, e a outra abandonada na porta da classe. Estas

duas lógicas assumem duas funções essencialmente diferentes. Os comentá-

rios críticos, pois o aluno acompanha às vezes sua resposta, não fazem parte

de sua resposta no sentindo estrito. Somente esta última é requisitada pelo

contrato. Somente, por exemplo, ela poderá fazer o objeto de uma validação.

A resposta se integra, e deve se integrar, na lógica do contrato.

Assim mesmo, como compreender que o aluno não é mais responsável

por suas produções, ações e criações? Ë que este não é simplesmente seu pa-

pel no contrato. Este define os direitos e deveres dos alunos, assim como do

professor. O professor deve assegurar-se que o problema colocado tem uma

resposta e somente uma. O aluno tendo adquirido que o problema tem uma

resposta e só uma, deve fornecer a resposta pedida. O contrato não inclui

na tarefa do aluno de controlar a legitimidade contratual do contrato

que lhe é proposto. Uma criança do ensino elementar, a quem se propõe

o seguinte problema: “Tu tens 10 lápis vermelhos no bolso esquerdo e 10 lápis

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azuis do bolso direito. Qual é a tua idade?” responde: “20 anos”. Ela sabe per-

feitamente que não tem 20 anos e a criança replica: “Sim, mas é culpa tua, tu

não tens me dado bons números.”

Não é, portanto, o ensino como tal quem deve ser submetido a questão, o

contrato quem fixa as condições. Devemos, então, pensar em mudar por um

”bom” contrato? Isso não é tão simples, afirma o autor (Chevallard), pois a

estrutura do contrato responde a exigências bem precisas. Se, por exemplo,

considera-se o problema da pertinência, sua tarefa essencial consiste, essen-

cialmente, em mudar a cultura “profana” do aluno para uma cultura científica.

Entre as duas culturas, há uma descontinuidade radical: na cultura ordinária, a

criança se coloca (e coloca aos alunos) questões para as quais tem ou não res-

postas; na cultura “científica-escolar”, a criança vai encontrar problemas (que

ela não se põe imediatamente, pois seu caráter próprio de problema procede

de uma maneira de ver as coisas as quais ela não tem acesso espontâneo e au-

tônomo); e, a estes problemas ela vai, então, aprender a solucionar. Resolven-

do problemas, mesmo estereotipados, ela aprende, por si mesma, produzir

respostas às questões, para tanto, estas questões tomam a forma, estritamente

definidas, de problemas. A mudança é brutal. A negligência onde o contrato

didático tem o problema da pertinência é precisamente o preço a se pagar

para tirar a criança do jogo profano. O contrato didático nada mais é que um

meio extraordinário que nos permite mudar de um mundo para outro, de pas-

sar às ilhas de racionalidade científica, de participar de uma cultura que não

nos é naturalmente dada, mas que trata-se de construir a cada geração.

Empreender o trabalho ameaçando a transformação de uma questão em

um problema não é uma tarefa pequena. O professor poupa os alunos desse

trabalho. Podemos lhe censurá-lo. Podemos, também, considerar isto que,

positivamente, lhe propõem: questões que já são problemas, e que os alunos

procuram, pela própria experiência, as respostas.

É preciso, então, pouca coisa para eles aprenderem que as questões encon-

tradas ao longo da escola poderão ter respostas (quer dizer, serem constituídas

em problemas) pois a obtenção exigiria seu investimento por uma problemá-

tica científica. É preciso, ainda, pouca coisa para eles aprenderem que a maior

parte das questões têm respostas asseguradas pela autoridade ou hábito, essas

questões deveriam ser levadas incessantemente ao debate democrático.

Finalmente, afirma o autor, o conceito de contrato didático tem, assim, um

valor prático de otimismo temperado. Dando uma forma técnica precisa (e ope-

ratória) à hipótese da perfeição do indivíduo, ele nos autoriza a tomar um cami-

nho mais justo e, portanto, menos injusto - para o aluno, para o professor e para

a escola em geral – deste sistema tão complexo que é um sistema didático.

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195O contrato didático

Resumo

Vimos neste capítulo o último componente da tríade do sistema de ensino: o Contrato Didático. Ele rege as interações didáticas existentes dentro da sala de aula – os elementos do contrato. Contém as regras implícitas das relações didáticas e, principalmente, o tratamento dado ao saber. Para que o ensino tenha êxito e o aluno aprenda, o professor busca artifícios que se constituem nos efeitos do contrato.

Texto integrante

Para melhor compreensão do assunto leia no seu Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (AVEA) o seguinte texto integrante:

RICARDO, Elio; SLONGO, Ione; PIETROCOLA, Maurício. A perturbação do contrato didático e o gerenciamento dos paradoxos. In: Investigações em Ensino de Ciências. v. 8(2), pp. 153-163, 2003. Disponível em: <www.if.ufrgs.br/ienci>.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no corpo principal e no texto integrante, provocá-

lo para uma discussão, direcioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por

que não, levá-lo a ponderar sobre sua inclusão no planejamento de suas au-

las. Não se sinta obrigado a memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar

uma resposta escrita considerando a argumentação (prós e contras) propor-

cionada pelo capítulo. Bom trabalho!

1) Procure citar algumas das regras implícitas do Contrato Didático que você utiliza. O que faria para modificá-las, se é que necessário? Esta questão tem caráter bastante pessoal e certamente exigirá uma auto-avaliação de sua parte. Mas vá em frente! Não tenha receio de explicitá-las, pois desta forma terá oportunidade de propor modifica-ções em suas relações didáticas.

2) Como se manifestam nas aulas de Física os diferentes efeitos do Contrato Didático. Dê exemplos.

3) Leia o texto integrante e proponha questões e/ou problemas (uma/um para cada assunto) que contenha uma “perturbação” do Contrato

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Didático. Assuntos sugeridos: Eletromagnetismo; Leis da Termodinâ-mica; Modelo Ondulatório; Leis de Newton; Conservação de Energia.

4) Reveja o ambiente de sala de aula e analise onde o Contrato Didá-tico interfere fortemente nas relações didáticas.

5) Estabeleça regras para um “bom contrato”, justificando-as.

Textos complementares

O texto abaixo detalha um pouco mais sobre o Contrato didático e ofe-

rece um exemplo de como um professor de Física pode fazer para “perturbá-

lo”. Não deixe de ler!!!

A PERTURBAÇÃO DO CONTRATO DIDÁTICO E O GERENCIAMENTO DOS PARADOXOS. Elio Ricardo, Ione Slongo e Maurício Pietrocola. Investigações em Ensino de Ciências – v. 8(2), p. 153-163, 2003. Disponí-vel em: <www.if.ufrgs.br/ienci>.

Referências

ASTOLFI, J. P.; DEVELAY, M. A didática das ciências. São Paulo: Papirus, 1995.

BROUSSEAU, G. (1981) Problèmes de didactique des decimaux. Analyse d’une situation: l’epaisseur d’une feuille de papier. In: JOHSUA, S.; DUPIN, J. J. Introduction à la didactique des sciences et des mathématiques. Paris: PUF, 1993.

MORETTI, M. T.; FLORES, C. R. O contrato didático: ensaio. Mimeo, 2001.

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197Resgatando a história da ciência

12 Resgatando a história da ciência

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Como adiantamos ao término do capítulo anterior, vamos agora mostrar como podemos introduzir novos elementos nos planejamentos de nossas aulas e quebrar o tradicio-nalismo dogmático. O primeiro elemento é a História da Ciência (HC), onde iremos assinalar o seu papel no ensino de Física. Vamos determinar as omissões históricas na apresentação do conteúdo escolar e relacionar as repre-sentações intuitivas (RI) com os períodos históricos da Física. Finalmente, vamos evidenciar ao longo da HC as principais linhas epistemológicas, suas convergências e suas divergências.

12.1 História da ciência e as concepções intuitivas

Para situar o assunto deste capítulo, provavelmente vamos nos repetir em relação a tópicos já tratados anteriormente. Optamos por esta li-nha, pois será feita uma revisão ao mesmo tempo em que reforçamos a sua importância e contextualizamos nossos objetivos. Vale lembrar que uma característica importante do conhecimento, raramente en-focada no ensino tradicional de Física, é o seu processo de obtenção e os contextos históricos nos quais ele se desenvolve. Nos cursos e na maioria das disciplinas, opta-se, na maior parte das vezes, pelo ensi-no atemporal das teorias, raras vezes acompanhadas por discussões de natureza epistemológicas, que, quando existem, fazem apelo para um ingênuo processo de indução de leis a partir da observação de fe-nômenos. Essa característica, só para revisar, remonta de certa forma à tradição empiricista baconiana, predominante até o início desse sé-culo, que indicava que o conhecimento poderia ser obtido diretamen-te através da observação, sem uma participação ativa do homem.

Esta posição reflete uma relação de subserviência do indivíduo para com o conhecimento Físico. Como precisa Souza Cruz (1988): “… na Física estamos acostumados com o resultado de um conhecimento que funciona, que aparentemente está aí, que dá certo e no qual a gente acredita, tem fé. Uma coisa que está por detrás disto… é que o conhecimento em Física se pretende seja incorruptível, a-histórico, sem dinâmica, mais ou menos eterno.”

Participação ativa opõe-se aqui à função do indivíduo no processo empiricista, no qual ele apenas desvela, desvenda algo que já existiria previamente na natureza, que consideramos como uma participação passiva.

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As qualidades operacionais da Física, enquanto conhecimento que funciona e descreve de maneira precisa os fenômenos naturais, con-ferem-lhe status de verdade absoluta e, por consequência, atemporal. Segundo essa visão, entender as teorias passaria por dominar a es-trutura teórica acabada, operacionalizando-a nas diversas situações a que ela se propõe, a fi m de obter resultados quantitativos. Nessa prá-tica, não seria necessário (talvez nem acessível ao indivíduo comum) conhecer “como” tal conteúdo foi obtido. Na prática isto aparece na forma lacônica e desproblematizadora do conteúdo físico apresenta-do nos livros didáticos. Ocorre, neste caso, como já vimos, o fenôme-no de Transposição Didática que descaracteriza o conhecimento.

Assumindo-se o conhecimento da Física como a-histórico, nega-se qualquer tentativa de inseri-lo dentro de um contexto de construção, onde a estrutura atualmente aceita das teorias seja fruto de um pro-cesso lento de maturação e adequação aos fenômenos naturais estu-dados. Nessa visão, amputada da dimensão temporal, o conhecimen-to não é entendido como meio para alcançar um objetivo (interpretar uma série de fenômenos naturais/ resolver problemas), mas muitas vezes um fi m em si próprio. Cria-se o mito da relação direta entre o conhecimento físico e a realidade natural, onde a função humana é a de mera coadjuvante, na medida em que ela não participa do proces-so de elaboração do conhecimento, mas simplesmente intermedia a revelação do mesmo. O conhecimento científi co, subtraído momenta-neamente à nossa percepção, aguardaria somente o momento de ser descoberto, revelando-se de uma só vez.

Um refl exo claro dessa concepção aparece na apresentação dos con-teúdos, leis e teorias tratadas nas disciplinas de Física sem nenhuma referência a suas raízes históricas. Por exemplo, não se apresenta o que hoje chamamos de teoria “Eletromagnética Clássica” (aquela en-sinada nos cursos básicos de graduação) como uma etapa no proces-so histórico de interpretação de certo grupo de fenômenos físicos. Normalmente, opta-se por expô-la de forma axiomatizada, partindo de conceitos como carga e campo (ou força) e relacionando-os pelas quatro equações básicas (equações de Maxwell). Salvo exceções, em nenhum momento ela é confrontada com teorias concorrentes que propuseram sistemas explicativos diferentes (sejam estes de nature-za teórica ou metafísica), o que, sob certas condições, evidenciaria a participação do homem na construção do conhecimento.

Evita-se, por exemplo, mencionar que a lei de Coulomb, ensinada nas disciplinas de Eletromagnetismo Clássico, foi concebida dentro de um contexto muito diferente do que é hoje aceito pela Física, onde as

De descobrir: tirar cobertura, véu;

deixando a vista.

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199Resgatando a história da ciência

ações entre cargas elétricas aconteciam através de ações instantâne-as à distância. Outro exemplo flagrante é a completa omissão nesses cursos do conceito de éter eletromagnético, elemento fundamental dentro da concepção original de Maxwell, responsável justamente pela intermediação dessas ações entre cargas, elemento que a dife-renciava da linha teórica aceita na época, baseada na idéia de ação-a-distância.

Essa concepção da Física deslocada do eixo das atividades humanas existe pela propagação de uma imagem distorcida, refletindo de certa forma a inferioridade do indivíduo frente a um conhecimento que deu certo, que apresenta resultados concretos, enfim, de um conhecimen-to que funciona, o qual não poderia ser fruto direto da atividade hu-mana, tão imperfeita e provisória. Parece difícil crer que tal conteúdo possa ser apenas uma estrutura conceitual temporária, resultantes de uma série de construções parciais que se completam, ganhando num certo momento aparência definitiva e eterna. As modifica-ções são, no entanto, inevitáveis, pela força da observação de novos fenômenos, por resultados experimentais mais precisos que eventual-mente invalidem algum elemento fundamental do corpo teórico exis-tente ou por novas interpretações teóricas que propiciem descrições mais adaptadas, etc.

No tocante a esta questão, os estudos em História e Epistemologia da Ciência forneceram elementos que muito auxiliaram em reflexões mais profundas sobre a atividade científica, enfraquecendo considera-velmente o mito das verdades definitivas e do empiricismo, frisando o caráter eminentemente humano do conhecimento enquanto constru-ção. Trabalhos epistemológicos sobre a atividade científica de maneira geral, e da Física em particular (como os de Bachelard, Popper, Kuhn, Lakatos entre outros), mostraram a inviabilidade na aceitação de uma posição empiricista para explicar a produção científica, deixando claro que os processos envolvidos na obtenção de conhecimento científico são muito mais complexos. De outro lado, pesquisas históricas eviden-ciaram os processos empregados na construção de teorias científicas como a Mecânica Newtoniana, a Relatividade, o Eletromagnetismo, a Óptica Ondulatória, etc. Enquadrando-as dentro de seus contextos históricos, expondo os processos de competição entre teorias rivais, mostrando as dificuldades em adaptá-las aos dados experimentais, revelando as inúmeras reformulações teóricas necessárias para atin-gir uma forma compatível com os fenômenos estudados, analisando os obstáculos que serviram de motor e sentenciaram o abandono de concepções teóricas, os historiadores evidenciaram o caráter eminen-temente construído do conteúdo físico e o valor relativo de suas te-

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200

orias. E trabalhamos com textos didáticos que se estruturam em um discurso literário extremamente racional, linear e depurado de todo este universo de contradições e reformulações. A Transposição Didá-tica permite fazer uma boa leitura das razões deste fato.

12.2 Representações intuitivas e períodos históricos

Alguns trabalhos de pesquisa na área de ensino de ciências sugeri-ram a possibilidade de estabelecer paralelos entre as representações intuitivas dos estudantes e concepções científicas de determinados períodos históricos. Tais trabalhos apontaram resultados importantes na confrontação de concepções de alunos sobre Dinâmica/Cinemá-tica básica e desenvolvimentos científicos da Mecânica pré-clássica e clássica. Nardi (1991), na mesma linha, mostrou paralelos interes-santes entre a psicogênese do conceito de campo físico e a evolução desse conceito desde a antiguidade.

Esses trabalhos revelaram que concepções apresentadas pelos alunos, consideradas erradas do ponto de vista da ciência atual, já foram acei-tas como corretas em momentos passados. Lembre o texto do capítu-lo 9 que exemplifica a Dinâmica que demonstra que estudantes têm tendência a relacionar a existência de velocidade à aplicação de uma força, de forma muito próxima ao sistema desenvolvido por Aristóteles na Grécia Antiga. Esse fato levou alguns pesquisadores a classificar de aristotélicos grupos de alunos com essas características. Outras pes-quisas afinaram os paralelos sobre esse assunto, mostrando que seria talvez mais correto aproximar as representações intuitivas das concep-ções desenvolvidas na Idade Média, baseada no conceito de impetus.

Esses resultados foram interpretados por alguns pesquisadores como indícios de que, de alguma forma, poder-se-ia estabelecer relações estritas entre a evolução do conhecimento científico e as formas pelas quais as representações dos estudantes evoluem, indicando a possi-bilidade da História da Ciência servir como referencial para entender a evolução das representações dos alunos. Assim, no caso das repre-sentações associadas ao conceito medieval de impetus, seria neces-sário fazê-la evoluir às concepções newtonianas (Mecânica Clássica), seguindo etapas equivalentes aos passos históricos. Tal referencial seria extremamente cômodo para promover a aprendizagem, permi-tindo ao professor um domínio global do processo, pois a História da Ciência forneceria de antemão o roteiro sobre o qual desenvolver-se-ia o aprendizado do aluno, capacitando-o a antecipar situações, etc.

A Psicogênese (do grego psyche, alma; genesis,

origem) é a parte da Psicologia que se ocupa

em estudar a origem e o desenvolvimento

dos processos mentais, das funções psíquicas,

das causas psíquicas que podem causar uma alteração no

comportamento, etc.

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201Resgatando a história da ciência

Esse tipo de trabalho, realizado principalmente no início dos anos 1980, começou a diminuir quando se estabeleceu que esses parale-los não eram estritos, evidenciando que, se coincidências podiam ser estabelecidas, muitas diferenças permaneciam presentes, tornando impossível sustentar uma identifi cação total entre os processo cogni-tivos dos alunos atuais e a evolução histórica. Entre as diversas críti-cas pronunciadas contra esse paralelismo abusivo entre as represen-tações intuitivas e as concepções científi cas do passado, citamos uma contida em Saltiel e Vienot (1985) que destacam três motivos para evitá-lo:

i) paralelismos de variantes de teorias históricas não são facilmente estabelecidos com as concepções dos alunos;

ii) dá-se em contextos diferentes;

iii) Ideias históricas vão muito mais longe que as ideias dos estudantes.

Apesar da existência de traços comuns entre a evolução histórica e as concepções dos alunos, o principal argumento que inviabiliza a iden-tifi cação completa entre esses processos reside no fato de os contex-tos dentro dos quais os sábios desenvolveram suas teorias e aqueles nos quais os alunos desenvolvem seus modelos interpretativos se-rem completamente diferentes. Nossos estudantes são hoje expostos aos meios de comunicação com informações diárias que infl uenciam a maneira pela qual os conceitos serão encadeados. É baseado em argumentação dessa natureza que Piaget (citado por DOMINGUEZ, 1992.) constata que “as crianças de 11/12 anos ultrapassam a expli-cação de Aristóteles fornecendo outras próximas das existentes na idade média… graças a infl uência do sentido comum contemporâneo (formado pela indústria e habituado ao princípio de inércia graças ao maquinismo)…”. Apenas com a existência de elementos comuns entre esses dois processos, mas com uma série de situações diversas, seria pouco razoável afi rmar que o pensamento dos alunos se transforma e evolui seguindo um caminho histórico. Assim, essa discussão hoje parece ultrapassada, sendo consenso diferenciar a ontogênese da fi -logênese do conhecimento, não havendo como identifi cá-las, nem do ponto de vista epistemológico, nem do ponto de vista cognitivo.

Porém, uma questão que permanece aberta refere-se à maneira de conceber as razões que estão na origem desses paralelos, mesmo que parciais, evidenciados nas pesquisas. Será que devemos aceitá-los

Ontogênese: estruturação do conhecimento entendido internamente ao indivíduo, com suas etapas de desenvolvimento cognitivo.

Filogênese: Estruturação do conhecimento entendida enquanto cultura; dependente da sua história e do desenvolvimento social dos seres humanos.

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202

como produto do acaso e em consequência encerrar a discussão? Ou, ao contrário, negar as soluções duplamente triviais de se admitir uma dependência/independência total entre as representações construí-das pelos alunos e as concepções históricas e buscar um referencial teórico onde essas semelhanças possam ser resultado de um proces-so mais complexo? Entretanto, este referencial deve ter espaço para os paralelos históricos, porém contrabalançados por outros processos regidos pelo contexto local e pelas estruturas internas dos alunos. Eis o desafio que se apresenta atualmente para a continuidade dessa linha de pesquisa e que procuraremos abordar a seguir.

história e filOsOfia da CiênCia nO ensinO de físiCa

(Extrato de: SOUTO FILHO, Oswaldo Melo. Evolução da idéia de conserva-

ção de energia: um exemplo da história da ciência no ensino de física (Disser-

tação de Mestrado). IFUSP, 1987)

1 – análise da questãO

De nossa prática como docente e aluno de Física, pudemos constatar que

a quase totalidade dos cursos oferecidos nessa área excluem a abordagem

histórica e filosófica. Na programação dos currículos de Física é concedido na

melhor das hipóteses, um ou outro curso para tratar de temas relacionados

com a história e filosofia da ciência, sem que haja uma preocupação mais

sistemática para ampliar esse enfoque, incorporando-o à formação básica do

estudante. Em muitas instituições não há sequer alguma disposição em se

inserir esses cursos, caracterizando dessa forma o seu caráter de disciplinas

supérfluas ou dispensáveis.

Em vista disso, poderemos perguntar se é da natureza do próprio conte-

údo da ciência tornar irrelevante ou, quando muito, uma mera curiosidade

o conhecimento de sua historia assim como a reflexão filosófica dos seus

resultados.

A atividade científica, como sabemos, desenvolve-se em um meio sócio-

político-econômico e cultural muito bem determinado, sendo impossível ima-

ginar um cientista juntamente com o produto de seu trabalho sem nenhum

vínculo ou ligação orgânica com a sociedade. Um cientista em seu laboratório

ou em seu gabinete não está tão distante das expectativas sociais em torno

do seu trabalho, sendo que o financiamento para sua pesquisa bem como

o que pesquisar e de que maneira, não depende somente das necessidades

internas da comunidade científica, mas abrange toda a sociedade.

TexTo 6

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203Resgatando a história da ciência

Durante a revolução industrial, por exemplo, ocorrida na segunda metade

do século XVIII, foram feitos muitos estudos sobre a eficiência das maquinas

térmicas, que por sua vez esteve na base do desenvolvimento da termodinâ-

mica (BERNAL, 1969). Assim, as necessidades materiais do homem orientam

relativamente e condicionam o rumo da investigação da natureza dando-lhes

os contornos, os limites e muitas vezes servindo-lhes de ponto de partida.

Por outro lado, a ciência possui uma lógica interna e um movimento

próprio que só depende das interações ocorridas no nível das idéias. Nesse

sentido, a extensa influência das idéias religiosas e filosóficas nos trabalhos

científicos é algo que foi bastante ilustrado por muitos historiadores.

Alexandre Koyré, por exemplo, ao fazer uma análise da polêmica entre

Leibniz e Clark (discípulo de Newton), mostra como as concepções teológicas

constituíram o cerne da idéia do espaço e tempo tanto de Newton quanto de

Leibniz (Koyré, 1979, cap. XI e XII).

A ciência, portanto, como uma atividade humana está em interação com

duas grandes esferas que também interagem, a saber: as necessidades mate-

riais e a idéia. Dessa forma, a atividade científica não está isenta da questão

dos valores, que legitimam ou condenam o resultado e o próprio andamento

do trabalho científico. Assim, na relação entre as classes, grupos sociais e

países permeiam diferentes interesses que repercutem na pesquisa científica

implicando na impossibilidade de se tomar decisões ou direcionar trabalhos

em uma condição eticamente neutra (Gianotti, 1977).

Portanto, os problemas de se fazer ciência em um país subdesenvolvido e

dependente tecnologicamente (Varsavsky, 1968); as conseqüências ambien-

tais, políticas, econômicas e sociais da abertura de usinas nucleares; o desen-

volvimento de pesquisas ligadas à indústria bélica, fortemente subsidiada por

planos governamentais, etc.; são fatos que concorrem para demonstrar a pro-

funda imersão do cientista e de sua atividade na realidade histórica tornando

impossível a neutralidade ética tanto do cientista quanto do seu trabalho.

No entanto, é comum a atitude observada na comunidade científica de

reconhecer a ciência como um fazer apartado dos problemas de valor. Igual-

mente, é a ciência apontada como possuidora de uma racionalidade e sub-

jetividade que a distinguiria facilmente de outras formas de pensamento tais

como o mito. Essa atitude geral desconhece os caminhos que as teorias cien-

tíficas percorreram durante a sua história. Assim, as contradições, os conflitos

e as influências mais diversas como as provindas da religião, da filosofia e

também do hermetismo (Schemberg, 1984) nos evoca uma maior complexi-

dade que torna bastante simplista conferir à ciência uma racionalidade e uma

objetividade puras. Sobre isso, o físico Marcello Cini diz:

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204

(...) estou convencido de que a ciência não é determinada por este caráter

de racionalidade e objetividade pura, que lhe é comumente conferido e que

justifique essa expulsão de qualquer outro elemento do corpo da ciência. Acho

que é essencial para entender a ciência e seu desenvolvimento – e também

seu significado cultural e social – reconstruir corretamente as componentes do

desenvolvimento científico que não são recondutíveis à pura racionalidade. As

componentes ideológicas, culturais, ambientais e sociais são elementos muito

importantes nos processos de formação das idéias científicas e de construção

de novas teorias. Para entendê-los, é essencial tentar reconstruir também as

motivações e os critérios de validade que a comunidade científica adota em

cada momento para definir o que entende por ciência, por conhecimento cien-

tífico, por explicação científica. (CINI, 1981:68).

A reconstrução das motivações e dos critérios de validade adotados por

uma comunidade científica em diferentes momentos históricos, demonstra

a complexidade do conceito de ciência bem como a dificuldade em se es-

tabelecer uma fronteira nítida entre o que seja ciência e não-ciência. Assim,

uma racionalidade e uma objetividade puras que podem ser destacadas do

processo histórico e do consenso dos homens é um ideal contestado pela

história da ciência.

No entanto, grande parte dos cientistas e professores de Física parecem

compartilhar da opinião de que existe um método científico único e que este

é responsável pela objetividade inerente ao empreendimento científico. Essa

opinião, que traz implícita uma opção filosófica clara (ver Bunge, 1973:1) é

análoga à do leigo que devota à ciência um respeito e uma admiração próxi-

ma às oferecidas às coisas sagradas. Igualmente no ensino de Física, a maioria

dos textos didáticos, dos cursos e outras atividades pedagógicas, refletem

direta ou indiretamente este modo de pensar.

Poderemos explicitar essa opinião geral, que de certa forma contribui

para uma visão a-história da ciência, alinhando alguns dos seus principais

pressupostos:

Todo conhecimento científico baseia-se em fatos observáveis;a.

Os fatos constituem uma prova de verdade das teorias;b.

Novos fatos demolem teorias estabelecidas;c.

A ciência progride gradualmente, acumulando fatos e incorporando d.

as velhas às novas teorias.

O desenvolvimento e a articulação desses pressupostos – que tem seus

antecedentes na filosofia da ciência de Francis Bacon no século XVII – culmi-

naram com os trabalhos dos filósofos do Círculo de Viena, que conseguiram

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205Resgatando a história da ciência

uma ampla aceitação no meio científico a partir da década de 20 (ver Su-

ppe, 1973; Brown, 1977). Portanto, o empirismo lógico – como assim ficou

conhecido esse movimento – expressa de forma extensa e articulada aquela

opinião geral que mencionamos e que representa a filosofia da ciência aceita

tacitamente por grande número de cientistas e professores de Física. Contu-

do, é bem provável que esta relativa coincidência de pontos de vista não re-

presenta uma adesão explícita e consciente ao empirismo lógico uma vez que

é pouca a repercussão entre estes cientistas e professores de bom número

de trabalhos questionando os principais pressupostos da filosofia do Círculo

de Viena. Na verdade, a grande maioria dos cientistas e professores de Física

parecem indiferentes a esse debate. No entanto, para os nossos objetivos

aqui, interessa-nos focalizar os trabalhos que questionaram os fundamentos

do empirismo lógico e que apontam em uma direção que dá à História da

Ciência uma especial importância.

Assim, os trabalhos de Karl Popper empreenderam uma crítica demoli-

dora do empirismo lógico retomando as observações feitas por David Hume

ao indutivismo no século XVIII. A principal tese do empirismo lógico é o jus-

tificacionismo, isto é, que o conhecimento científico consiste em proposições

demonstradas e verificadas. Popper argumenta que a ciência avança simulta-

neamente através de um método hipotético-dedutivo aliado a uma constante

crítica no sentido de refutar ou de falsificar as proposições que estão sendo

testadas.

Os fatos e as experiências não podem por si só, segundo Popper, compro-

var uma lei científica. Popper diz:

As experiências podem motivar uma decisão e, portanto, uma aceitação ou

uma rejeição de um enunciado básico, mas eles não podem justificar um

enunciado básico – não podem justificar mais do que faríamos se déssemos

murros sobre a mesa. (POPPER, 1980:66).

Indo mais adiante do que Popper, autores como Lakatos, Kuhn e Feyera-

bend mostram que a própria refutabilidade ou falseamento não pode ser um

critério absoluto.

Em vista disso, Lakatos observa:

Se não se podem provar, as proposições fatuais são falíveis. Se forem falíveis,

os choques entre teorias e proposições fatuais não são “falseamentos” mas

apenas discrepâncias. Nossa imaginação pode desempenhar um papel maior

na formulação de “teorias”que na formulação de “proposições fatuais”, mas

ambos são falíveis. Assim sendo, não podemos provar teorias e tampouco

podemos refutá-los. A demarcação entre as “teorias” fracas, não provadas, e

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206

a “base empírica” forte, provada, não existe: todas as proposições da ciência

teóricas e incuravelmente falíveis. (Lakatos, 1979:120).

Os fatos, portanto, não falam por si sem a intervenção impregnada das

expectativas dos cientistas; o fato não está à espera do cientista para que ele

o colha como a uma fruta ou muito menos penetra a sua mente, posta em

tabula rasa, para lhe dar a “suprema revelação” da realidade objetiva. Assim,

é lícito dizermos que as teorias são compostas de fatos tanto quanto os fatos

são compostos de teoria.

Novos fatos não demolem teorias estabelecidas enquanto não surgem

teorias rivais que dêem conta desses fatos ou considera-os inexistente. His-

toricamente, uma teoria nunca esteve em concordância com todos os fatos

conhecidos e isto nunca causou grandes problemas. A teoria da gravitação

universal de Newton, por exemplo, conviveu durante séculos com a anomalia

do movimento de Mercúrio sem que a autoridade de Newton fosse contes-

tada. Feyerabend diz:

Passando à considerar a invenção, elaboração e utilização de teorias incom-

patíveis não apenas com outras teorias, mais, ainda, com experimentos, com

fatos e observações, podemos começar assinalando que nenhuma teoria está

jamais em concordância com todos os fatos conhecidos em seu domínio.

(Feyerabend, 1977:79).

Quanto ao ponto de vista do crescimento da ciência por acumulação gra-

dual de fatos colocando as velhas teorias como subsistemas das novas, po-

demos ver também que não resiste à análise histórica. Basta considerarmos

o episódio que envolveu a disputa entre a teoria ptolomaica e a teoria helio-

cêntrica de Copérnico, (Kuhn, 1974) ou a disputa Galileo com os aristotélicos

sobre a dinâmica terrestre (Feyerabend, 1977). O diálogo entre os competi-

dores é semelhante, como diz Kuhn, a um diálogo de surdos onde um não

pode compreender o ponto de vista do outro não por incapacidade, mas

porque não existe um critério objetivo capaz de decidir entre as duas teorias

rivais. Assim, qualquer critério de decisão está vinculado a uma cosmovisão e

conseqüentemente os fatos dentro de uma teoria ganham uma significação

que só possuem enquanto pertencentes a ela. Passar de uma teoria para ou-

tra é, portanto, como uma mudança de gestalt. Essa característica das teo-

rias é chamada por Kuhn e Feyerabend de “incomensurabilidade” (ver Kuhn,

1979:328-342 e Feyerabend, 1979:270 232). Assim, a incomensurabilidade

das teorias inviabiliza a racionalidade completa do processo de escolha de

uma teoria ou outra.

O desenvolvimento científico ocorre, segundo Kuhn (1978), através de

revoluções, onde um paradigma quando acumulado de anomalias não re-

Um dos sentidos de paradigma (Masterman,

1979) é defini-lo como um conjunto de teorias, experimentos,

procedimentos técnicos e visão de mundo que

definem um modo especial de fazer ciência. No

interior de um paradigma, uma vez aceitas as suas

regras, conjunto de teorias, experimentos, etc., o cientista passa a operar

como se tivesse resolvendo um quebra-cabeças,

cuja solução depende da habilidade do pesquisador. Essa atividade de resolução

de quebra-cabeças é chamada por Kuhn de

ciência normal. Um exemplo de paradigma é a

Mecânica Newtoniana.

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207Resgatando a história da ciência

solvidas é elevado a uma situação de crise que é o prenúncio da revolução

científica. Na situação de crise que é o prenúncio da revolução científica na

situação de crise, as teorias rivais disputam entre si a hegemonia que será con-

seguida pela teoria que obtiver maior prestígio entre a comunidade científica.

Sobre isso diz Kuhn:

Na escolha de um paradigma, — como as revoluções políticas —, não existe

critério superior ao consentimento da comunidade relevante. Para descobrir

como as revoluções científicas são produzidas, teremos, portanto, que exami-

nar não apenas o impacto da natureza e da lógica, mas igualmente as técni-

cas de argumentação persuasivas que são eficazes no interior dos grupos mui-

to especiais que constituem a comunidade dos cientistas. (Kuhn, 1978:137).

Portanto, para Kuhn, o desenvolvimento linear e gradual da ciência não

corresponde à verdade histórica. O que a História da Ciência nos fornece é,

segundo Kuhn, uma sucessão de teorias onde cada uma contém o seu quadro

conceitual característico e onde os seus elementos são plenamente compre-

endidos apenas no interior de uma dada estrutura teórica.

Não há dúvida, pelo que aqui expusemos, de que nossas crenças, valores

e convicções filosóficas influenciam direta ou indiretamente tanto a pesquisa

cientifica quanto o ensino de física. Essa influência por sua vez, não é algo que

possa ser extirpado como se fosse um tumor maligno ou combatido como se

fosse uma bactéria indesejável e nociva. Desde o momento que escolhemos

uma determinada linha de trabalho ou damos uma específica interpretação

para um fenômeno, um conceito ou um resultado experimental, estamos de

fato, quer estejamos consciente ou não, nos posicionando filosoficamente e nos

situando dentro de um determinado quadro metodológico (ver Bunge, 73).

Portanto, o fazer científico assim como o seu ensino está indissoluvelmen-

te ligado a questões de natureza filosófica mesmo que o cientista e o profes-

sor de Física não se apercebam desse fato. Consequentemente o que acaba

ocorrendo como um resultado da indiferença ou da negação sistemática do

papel da filosofia tanto pelo cientista como pelo professor de Física é, como

bem saliente Mario Bunge (1973:1), a adoção de uma filosofia da ciência im-

plícita, imatura e incontrolável. Particularmente no ensino, os efeitos dessa

postura ainda são mais desastrosos, pois este ensino que deveria apresentar

um modelo do processo real da investigação científica – transportando para

a sala de aula o clima de indagação, conflito e racionalidade que caracterizam

o processo de criação e construção de teorias – acaba mostrando uma carica-

tura muito pobre desse processo. Sendo assim, o papel do professor de Física

deveria ser também ser direcionado no sentido de possibilitar e estimular

uma reflexão filosófica consciente dos conteúdos ministrados assim como de

apresentar a gênese e evolução das idéias científicas.

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208

Portanto, a acreditamos que a História e a Filosofia da Ciência podem

e devem contribuir no ensino de Física cada vez mais, em resposta àquelas

necessidades já por nós esboçadas na Parte I precedente e que podemos

resumir como sendo principalmente de clareza conceitual e de sentido inter-

pretativo.

2 – algumas experiênCias de história da CiênCia nO ensinO de físiCa e O papel dO textO didátiCO

A preocupação de alguns físicos e historiadores em inserir no ensino

de Física a História da Ciência não é recente. É largamente conhecido o

incentivo que o físico Paul Langevin proporcionava aos estudos da História da

Ciência utilizando-a frequentemente em suas aulas e conferências (Bensau-

de-Vincent, 1982). O físico Lloyde W. Taylor destacou-se também como um

grande incentivador dessa abordagem tendo inclusive contribuído com um

texto, “Physics The Pioneer Science”, (Taylor, 1941) que ainda hoje é uma im-

portante referência para aqueles que buscam compreender os conceitos e leis

no seu desenvolvimento histórico. É digno igualmente de menção o trabalho

nos anos 40 de James B. Conant que resultou em um curso na Universidade

de Harvard utilizando um método onde eram focalizadas quatro ou cinco

experiências históricas – Harvard case – History – com todas as dificuldades

que elas apresentaram na época e a solução encaminhada pelos cientistas

(ver Conant, 1964). Esses exemplos (ver Henshaw, 1950; e Cohen, 1950) e

outros, como o livro de Holton (ver Holton e Roller, 1959), ilustram o fato de

que a utilização da História da Ciência no ensino de Física sempre contou com

a simpatia de alguns prestigiosos pesquisadores e educadores.

No entanto sempre houve resistência à admissão desse enfoque na justi-

ficativa de que são meras ilustrações, ou mesmo um empecilho ao aprendi-

zado, não jogando, portanto, um papel essencial na formação do físico. Este

modo de pensar reflete-se no ensino de física ficando bastante pronuncia-

do quando examinamos os textos didáticos que são utilizados normalmente

nos cursos. Neles, o conteúdo necessário para se aprender a estrutura está

ali presente, inda que de forma linear e compartimentada, mas a referência

histórica, quando feita, é quase sempre caricatural acabando por falsear o

verdadeiro processo de desenvolvimento da ciência. Isto de certa forma é

compreensível, dado que os manuais não têm como objetivo trabalhar com

a História da Ciência.

Um texto com o objetivo de fazer um estudo histórico deveria refletir as

contradições do processo que conduziu à construção de novas teorias. Dessa

forma, os aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais deveriam ser aí

ressaltados, e para isso é essencial a cooperação de outras disciplinas como

psicologia, antropologia, economia, etc. Portanto, não basta cronologizar os

acontecimentos para se fazer a história da ciência – (Whittaker, 1979:109) cha-

É interessante notar que Pasteur no século passado recomendava

entusiasticamente que se fizesse uso da

História da Ciência no ensino para se ter uma compreensão global do

processo de investigação (ver Ackerkncht, 1948). Quanto à preocupação

em se utilizar a filosofia da ciência no ensino de Física,

notamos que é ainda mais restrita, mas nem por isso inexistente (ver

por exemplo, Eger, 1972, Marquit, 1978, Abrantes,

1978).

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209Resgatando a história da ciência

ma este procedimento de “pseudo-história” – nem tampouco apresentá-la

como um pano de fundo “onde os fatos científi cos encaixam-se facilmente,

parecem ‘fazer sentido’ e podem ser facilmente lembrados como objetivos de

avaliação” (Whittaker, 1979:108). Este último aspecto elimina a contradição

da História da Ciência e é chamado por Whittaker de “quase-história”. Fi-

nalmente, poderíamos lembrar ainda aquela atitude triunfalista frente à Histó-

ria da Ciência onde os cientistas são vistos como “super-heróis” e o desenvol-

vimento da ciência visto como um empreendimento harmonioso, contínuo

e cumulativo. No entanto, como já frizamos em um parágrafo anterior, sabe-

mos que o objetivo principal dos manuais didáticos não é empreender uma

abordagem genética e evolutiva dos conceitos e teorias científi cas e sim o de

introduzir o aluno às idéias aceitas e utilizadas pela comunidade científi ca.

Portanto, o objetivo desses manuais usados no ensino de Física, em de-

corrência de sua função de possibilitar um conhecimento das realizações cien-

tífi cas acabadas e consagradas, possui um caráter predominante persuasivo e

doutrinário (ver KUHN, 1978:19 e 1981).

Dessa forma, não ocorre na educação científi ca o que é comum nas áreas

ditas humanas onde se recorre aos textos originais para estudá-los, criticá-los

e confrontá-los (Conant, 1978). A educação científi ca, não é feita através de

“clássicos”, é sim, quase que exclusivamente, através de manuais onde são

aceitos como paradigma soluções concretas de problemas juntamente com

as técnicas e métodos para resolvê-lo (KUHN, 1978 e 1981). Assim, no ensino

de Física, o que se faz de forma geral é treinar o aluno para que ele entenda e

domine os elementos principais de um dado paradigma. Esse esquema dog-

mático de educação sugere, como diz Kuhn, “uma rigidez profi ssional prati-

camente impossível de alcançar noutros campos, exceto talvez na teologia”

(KUHN, 1981:34). Assim, um conceito de ciência extraído dos textos didáticos

terá, como bem expressa Kuhn:

(...) tantas probabilidades de assemelhar-se ao empreendimento que os pro-

duziu como a imagem de uma cultura nacional obtida através de um folheto

turístico ou um manual de línguas. (Kunhn, 1978:19).

Essa educação dogmática, no entanto, não é para Kuhn um mal em si

mesmo e sim um refl exo da atividade mais constante da ciência que é a

ciência normal, onde os cientistas estão ocupados na resolução de quebra-

cabeças, no interior de um determinado paradigma, e não a da ciência extra-

ordinária, onde as teorias rivais disputam entre si para receber o consenso da

comunidade científi ca.

Assim, afi rma Kuhn:

Expressão usada por Kuhn (1978) para caracterizar os seguintes períodos:

Ciência normal: Período de hegemonia de um dado paradigma, durante o qual todas as atividades científi cas são por este orientadas.

Ciência extraordinária: Período revolucionário de uma ciência madura onde ainda não existe uma hegemonia de nenhuma teoria ou conjunto de teorias.

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210

Embora o desenvolvimento científico seja particularmente produtivo em novi-

dades que se sucedem, a educação científica continua a ser uma iniciação re-

lativamente dogmática a uma tradição preestabelecida de resolver problemas,

para a qual o estudante não é convidado e não está preparado para apreciar.

(Kuhn, 1981:36).

Portanto, acreditamos, como Kuhn, que a função do dogma na educação

científica é um fato a se considerar porque está ligado a imperativos internos

do próprio fazer científico. No entanto, discordamos de sua afirmativa acima

de que o estudante não está preparado para apreciar a tradição preesta-

belecida de resolver problemas, ou seja, de apreciar criticamente os resultados

e o processo do fazer científico que podem ser proporcionados pela História

e Filosofia da Ciência. Entendemos aqui o termo apreciar, no mesmo sentido

em que Paulo Freire fala de ad-mirar (Freire, 1983:43-44) quando se refere a

uma frase que é tomada com um objeto e é posteriormente submetida a uma

reflexão crítica. Assim, segundo Paulo Freire, analisar criticamente uma frase

é “perceber a relação dos seus termos na formação de um pensamento estru-

turado” (FREIRE, 83; pág. 43), o que traz como conseqüência a “apreensão mais

profunda do significado da frase” (Freire, 1983:43). Ad-mirar, neste conceito,

significa olhar a partir de dentro. Sobre isso diz Paulo Freire:

Para o ponto de vista crítico, que aqui defendemos, o ato de olhar implica

noutro: o de ad-mirar. Admiramos, e, ao penetrarmos no que foi admirado,

o olhamos de dentro e daí de dentro aquilo que nos faz ver. Na ingenuidade,

que é uma forma ‘desarmada’ de enfrentamento da realidade, apenas olha-

mos e, porque não admiramos, não podemos adentrar o que é olhado, não

vendo o que está sendo olhado. Por isso, é necessário que admiremos a frase

proposta para, olhando-a de dentro, reconhecê-la como algo que jamais po-

derá ser reduzido ou rebaixado a um simples clichê. (Freire, 1983: 44)

Portanto, em uma educação problematizadora onde a História e a Filo-

sofia da Ciência entram como instrumentos críticos, o nosso objetivo será

justamente o de possibilitar a admiração que leve um distanciamento crítico

e posteriormente à apreensão da totalidade do objeto que no nosso caso é

um conceito ou uma teoria científica. Acreditamos que este processo deve

vir seguido à apreensão estrutural e local, ou seja, o aluno deve antes “mer-

gulhar” no paradigma e dominar os seus elementos principais assim como a

sua estrutura para depois ter condições de fazer um distanciamento crítico

através da História e da Filosofia da Ciência. Portanto, este “mergulho” no

paradigma e o posterior distanciamento crítico que podem ser vistos como

dois processos relativamente independentes, sob uma ótica problematizada

são de fato complementares.

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211Resgatando a história da ciência

É dentro desse quadro e dessas colocações – que discutiremos com mais

detalhes na seção seguinte – que nos propomos a realizar um texto cujo con-

teúdo de informações históricas e reflexões epistemológicas possibilitem ao

aluno atingir um maior conhecimento do significado dos conceitos e de sua

interpretação. Assim, o distanciamento crítico poderá contribuir para uma

apreensão mais ampla da teoria física iniciada com o conhecimento dos seus

elementos principais e de sua estrutura que como vimos em parágrafos ante-

riores é fruto de uma educação de caráter dogmático.

Portanto, uma problematização do conteúdo, por nós preconizadas atra-

vés da História e Filosofia da Ciência incide no que Paulo Freire muito bem

coloca, no seu livro “Pedagogia do Oprimido” e que transcrevemos abaixo:

Pelo fato mesmo de esta prática educativa constituir-se em uma situação gno-

siológica, o papel do educador problematizador é proporcionar, com os edu-

candos, as condições em que se dê a superação do conhecimento no nível da

‘doxa’ (crença, dogma) pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá no nível do

‘logos’ (razão). (Freire, 1982:80).

Resumo

Neste capítulo, buscou-se mostrar a importância da presença da História e Filosofia da Ciência no ensino de Física. Seja como fon-te histórica para localizar os obstáculos epistemológicos seja como instrumento para promoção de uma análise crítica da construção do conhecimento.

Como você deve ter observado, a Epistemologia e a História e Filoso-fia da Ciência são ferramentas de enorme potencial para a preparação de nossas aulas. Sem elas, ou melhor, sem considerá-las no contexto do “saber ensinado” (aquele que você é o responsável) retornar-se-á a um ensino dogmático e tradicional. Elas irão auxiliá-lo tanto no pro-cesso de uma “nova” Transposição Didática (considerações epistemo-lógicas) como na melhor e mais adequada mediação entre o saber e estudante (representações intuitivas).

Procedimentos didáticos que se iniciam por problematizações histó-ricas são opções para um ensino mais crítico e mais duradouro. Es-tratégias deste tipo oferecem ao professor a oportunidade de romper com um Contrato Didático estagnado e tradicional, estabelecendo um

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212

diálogo didático de caráter construtivista, onde as verdades cientificas são postas à discussão, legitimadas e explicitadas suas limitações.

Texto integrante

Para melhor compreensão do assunto leia no seu Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem (AVEA) o seguinte texto integrante:

PEDUZZI, Luiz. Sobre a utilização didática da história da Ciência. In. PIETROCOLA, Mauricio (Org.). Ensino de Física: conteúdo, metodologia e epistemologia numa concepção integradora. 1. ed. Florianópolis: EdUFSC, 2001. p. 151-170.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo de auxiliá-lo em reflexões

acerca do foi apresentado no corpo principal e no texto integrante, provocá-

lo para uma discussão, direcioná-lo na leitura, possibilitar uma síntese e, por

que não, levá-lo a ponderar sobre sua inclusão no planejamento de suas au-

las. Não se sinta obrigado a memorizar nomes, datas, etc. Procure elaborar

uma resposta escrita considerando a argumentação (prós e contras) propor-

cionada pelo capítulo. Bom trabalho!

1) No primeiro parágrafo deste capítulo, o texto refere-se à partici-pação ativa ou passiva do homem na ciência. Explique a diferença entre as duas, apresentando um exemplo de cada tipo.

2) Na citação de Souza Cruz da primeira página do capítulo, comente a afirmação: “...é que o conhecimento em Física se pretende seja incor-ruptível, a-histórico, sem dinâmica, mais ou menos eterno.”

3) Podemos aceitar uma produção científica empirista atualmente? Justifique sua resposta. Lembre-se o que já discutimos nos primeiros capítulos.

4) Trabalhos de pesquisa, no início da década de 80, sugeriam um paralelo entre as representações intuitivas dos alunos e concepções científicas de alguns períodos históricos. Teça comentários sobre es-tes trabalhos e as críticas feitas a eles.

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213Resgatando a história da ciência

5) “A atividade científica, como sabemos, desenvolve-se em um meio sócio-político-econômico e cultural muito bem determinado.” (extraí-do do texto). Como você poderia argumentar em favor desta idéia?

6) Procure em livros didáticos três exemplos do mau uso ou banali-zação da História da Ciência. Faça uma crítica para cada exemplo e anexe cópia do texto criticado.

7) Escolha um tópico de Física. Planeje uma aula fundamentada em uma problematização histórica. Procure assinalar neste planejamento a presença de nova Transposição Didática, das Representações Intuiti-vas que os alunos poderão trazer consigo e o as regras do novo Contra-to Didático. Faça uso dos textos de apoio listados abaixo (que estão no AVEA) ou procure na Internet informações sobre o tópico escolhido.

8) Leia o texto integrante (Sobre a utilização didática da história da Ciência) e argumente os prós e contras dos onze itens que o autor lista como aqueles que a História da Ciência pode auxiliar.

Textos de apoio

Abaixo são listados alguns artigos que tratam sobre o mesmo assunto,

todos no site do Caderno Brasileiro de Ensino de Física:

http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/index

Metodologia e política em ciência: o destino da proposta de Huygens de 1673 para adoção do pêndulo de segundos como um padrão internacional de comprimento e algumas sugestões educacionais. Michael Matthews. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 18, n. 1: p. 7-25, abr. 2001.

O valho princípio de Arquimedes. A. B. Guimarães. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 16, n. 2: p. 170-175, ago. 1999.

A ciência galileana: uma ilustre desconhecida. Elder Sales Teixeira e Olival Freire Jr. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 16, n. 1: p. 35-42, abr. 1999.

A origem da inércia. Daniel Gardelli. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 16, n. 1: p. 43-53, abr. 1999.

Page 214: Livro de INSPE [Atualizado]

214

Como distorcer a física: considerações sobre um exemplo de divulgação científica. 1 – Física clássica. Roberto de Andrade Martins. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 15, n. 3: p. 243-264, dez. 1998.

Filosofia da ciência, história da ciência e psicanálise: analogias para o ensino de ciências. Alberto Villani, Elisabeth Barolli, Tânia C. B. Cabral, Maria B. Fagundes e Sergio C. Yamazaki. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 14,n. 1: p. 37-55, abr. 1997.

Física aristotélica: porque não considera-la no ensino de mecânica? Luiz O. Q. Peduzzi. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 13, n. 1: p. 48-63, abr. 1996.

História, filosofia e ensino de ciências: a tendência atual de reaproximação. Michael R. Matthews. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 12, n. 3: p. 164-214, dez. 1995.

O positivismo e as ciências físico-matemáticas no Brasil. Luis Elias Samaniego. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 11,n. 2: p. 105-114, ago. 1994.

A gênese, a psicogênese e a aprendizagem do conceito de campo: subsídios para a construção do ensino desse conceito.R. Nardi, A. M. P. Carvalho, Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 7 (n° especial): p. 46-69. jun. 1990.

Referências

NARDI, R. Campo de força: subsídios históricos e psicogenéticos para a construção do ensino desse conceito. São Paulo: Faculdade de educação/USP, 1991.

SALTIEL, E.; VIENNOT, L. Que aprendemos de las semejanzas entre las ideas historicas y el razoamiento espontaneo de los estudiantes? In: Enseñanza de las ciencias, p. 137-144, 1985.

SOUZA CRUZ. F. MESA-REDONDA: INFLUÊNCIA DA HISTÓRIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA. Cad. Cat. Ens. Fís., Florianópolis, 5 (Número Especial): 76-92, jun. 1988.

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215Modelos científicos, modelos escolares e modelização

13 Modelos científicos, modelos escolares e modelização

215

Estamos a encerrar nosso texto de INSPE-A. Neste último capítulo, discutiremos a segunda estratégia (a primeira foi a História da Ciência no capítulo anterior) que nos pos-sibilita intervir de forma mais positiva em nossa prática escolar, rompendo com a antiga prática de ensino trans-missivo. Vamos auxiliá-lo a conceber a “visão de mun-do” como um processo dinâmico que envolve multifatores e situar o papel da Escola como colaboradora na cons-trução de “visão de mundo” dos estudantes. Isto implica refletir sobre o distanciamento entre o conhecimento físico e o cotidiano. Por outro lado, há a importância de interpretar o que é “sentimento de realidade” e seu pa-pel no processo de ensino de Física. Claro que teremos de conceituar “modelo” e relacioná-lo com a realidade física, além de caracterizar tipos de modelos, tais como, modelo representacional, imaginário e teórico. Também se faz importante explicar o processo de modelização no ensino de Física e diferenciar a modelização científica da modelização didática. O capítulo é bastante denso, sem dúvida, mas é de grande importância em dois aspec-tos. Primeiro, porque oferece mais uma estratégia para uma prática escolar mais moderna e comprometida e ,em segundo,também nos prepara para uma nova discussão sobre modelização a ser feita em Instrumentação B. Vol-taremos a discutir novas concepções sobre modelização, fruto da pesquisa de outros autores.

13.1 Entendendo o mundo – um desafio

O mundo se configura como um desafio constante a todos nós. Quan-do olhamos um bebê estabelecendo suas primeiras relações com o mundo que o cerca fica mais fácil entender isto. Os primeiros passos, as primeiras palavras e outras façanhas da infância se apresentam como desafios que ele deverá suplantar no longo caminho de adapta-ção ao meio em que vivemos. Tais desafios não se limitam ao início

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da vida; diversificam-se e complexificam-se, tornando-se uma cons-tante em nossas vidas. De meramente psico-motores, passam a ser desafios à nossa capacidade de entendimento das situações que nos cercam. Se no início da vida os desafios são praticamente compulsó-rios, dada a necessidade de sobrevivência, à medida que crescemos vamos adquirindo a possibilidade de escolher aqueles desafios sobre os quais nos deteremos mais longamente. Com a acumulação de ex-periências de todo tipo, passamos a exigir não apenas o entendimento individual das situações vividas, mas também, e principalmente, um entendimento global do mundo em que vivemos.

O desafio passa a se incorporar às diversas situações vividas como parte de um todo coerente. Constrói-se então, uma visão de mun-do. Seja por interesse pessoal, por necessidades materiais, por valo-rização social ou outro motivo qualquer, ampliamos, modificamos e, eventualmente, substituímos esta visão de mundo ao longo de nossas vidas. Neste processo, buscamos dar sentido às situações vivenciadas, ou seja, aos desafios enfrentados. Mobilizamos todas as formas dis-poníveis de entendimento, incluindo-se aí crenças e ideais pessoais, tradições familiares e culturais, entre outras, num mútuo ajuste entre o mundo exterior e nosso mundo interior. Entram em jogo as diver-sas facetas da nossa consciência, sejam elas racionais, sentimentais, emocionais, mediadas pela visão de mundo já construída.

Por vivermos em grupos (família, amigos, ambiente de trabalho etc.), dirigimos nossa atenção ao mundo como um misto de interesses pes-soais e sociais. As relações de amizade na infância, assim como as de trabalho na fase adulta geram entendimentos que marcam nossas vidas para sempre, sendo determinantes no processo de construção continuada de nossa visão de mundo. Tais relações são importan-tes para o desenvolvimento de nossa capacidade de entendimento, pois aprendemos a lidar com o aspecto humano do mundo cotidiano. A vivência em comunidades ao mesmo tempo em que complexifica nossa visão de mundo, também contribui com nossa capacidade de entendimento. Incorporando boa parte do conhecimento produzido por nossos antepassados, não necessitamos reinventar todas as so-luções às situações vivenciadas. Isto é, parte do nosso mundo não é propriamente construída, mas descoberta, no sentido de apreendido enquanto uma construção sócio-cultural disponível. Os padrões de comportamento desenvolvidos frente às diversas situações presentes no mundo são incorporados às tradições de determinados grupos so-ciais e transmitidos às gerações seguintes. Esta prática pode ser enca-rada como a principal consequência da forma de vida social adotada pela espécie humana. Isto liberta nossa capacidade de entendimento

”Entendimento” é utilizado neste texto com sentido

amplo. Poderá designar o entender como “conhecer

contemplativo”, isto é, sem nenhum objetivo prático,

como também o “conhecer prático”, que gera ações

frente a problemas.

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217Modelos científicos, modelos escolares e modelização

para o enfrentamento de novos desafios. Parte deste entendimento elaborado por nós pode ser incorporado ao patrimônio cultural a ser transmitido para as gerações futuras, num ciclo interminável de in-corporação/produção/transmissão de conhecimento.

Boa parte desta tradição é disponibilizada no interior das famílias. Elas se configuram como locais de ensaio e erro, onde somos assisti-dos por nossos pais na tarefa de nos relacionarmos com o mundo. Po-rém, nem tudo desta tradição pode ser transmitido pelos familiares. A escola, em particular, tem papel fundamental na elaboração desta visão de mundo. Ela, como instituição social, incumbiu-se de boa parte da tarefa de transmissão das formas de entendimento culturalmente estabelecida em determinado momento histórico. Todo tipo de conhecimento sistematizado socialmente, ou seja, que trans-cendem o dito senso comum, fica a cargo da escola. Ela tem como um de seus papéis sistematizar a transmissão das experiências cole-tivas passadas bem sucedidas e adaptá-las às necessidades atuais, vi-sando a preparar as futuras gerações para enfrentar o mundo de hoje. O currículo materializa este ideal, propiciando formas eficientes de apreensão dessa experiência anterior, sempre visando ao crescimen-to individual, assim como a autonomia e a comunicação das pessoas no cotidiano.

Vamos, ao longo deste capítulo, analisar o quanto a escola tem cum-prido o papel de transmissora de uma tradição que auxilia os indiví-duos a adquirir uma visão de mundo adequada ao seu desenvolvi-mento pessoal e social. Ou seja, o quanto os indivíduos se beneficiam em sua vida cotidiana de tudo o que é ensinado na escola, pois disto depende o próprio progresso da sociedade e o bem-estar dos indiví-duos que dela participam. Não procuraremos focar o ensino escolar como um todo, mas especificamente o ensino de Física, embora boa parte de nossa análise possa se aplicar a outras áreas do saber, em particular ao ensino das ciências naturais. Neste sentido, o ensino de Física deve ser pensado como integrante de uma saber científico a ser transmitido dentro das condições e contextos definidos pela escola. Isto significa dizer que os objetivos do ensino de Física não se super-põem integralmente àqueles presentes no contexto científico de sua produção. A menos que se esteja pensando na formação de cientistas, o conhecimento Físico deve ser submetido às necessidades de uma educação propedêutica que permita aos indivíduos incrementarem seu entendimento sobre o mundo em que vivem.

Como o conhecimento Físico pode auxiliar a conhecer o mundo que nos cerca? De que forma o conhecimento Físico pode ser utilizado

Os critérios de seleção sobre quais elementos do saber devem ser ensinados não são totalmente claros. Eles são fortemente influenciados por critérios definidos no interior da própria sociedade.

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para gerar ações no cotidiano? Como gerar autonomia em um cida-dão moderno através da sua alfabetização científica? Questões desse tipo deveriam e devem pautar a elaboração dos currículos disciplina-res de Física.

13.2 O que são modelos?

Os modelos construídos, sejam por cientistas, sejam por estudantes, têm por objetivo a busca de uma melhor compreensão da natureza. Assim, os “construtos da natureza”, são objetos de conhecimento e representam a fonte potencial e inesgotável de fatos sobre os quais vai se construir alguma explicação e estabelecer algum tipo de relação. Os construtos da natureza nem sempre são vistos do mesmo modo pelos seres humanos. Se tomarmos como exemplo um arco-íris, um físico o verá como o resultado da decomposição da luz branca. Um poeta verá o arco-íris como fonte de inspiração para um poema e talvez até descreva cores diferentes. Um artista plástico poderá vê-lo como fonte de inspiração para um quadro. Também a concepção de uma árvore, poderá ser diferente, para seres humanos de forma-ções diferentes, como um biólogo, um físico, um artista. A “natureza bruta”, que é o construto coletivo de um objeto do conhecimento, dependendo da visão de cada indivíduo, pode se apresentar em obje-tos de conhecimento diferentes. Se considerarmos um mesmo objeto de conhecimento para um estudante e um cientista, acreditamos que um dos fatores que influenciará a construção de uma explicação so-bre esse objeto do conhecimento é o estabelecimento de condições de contorno. Essas condições são mais facilmente delimitadas pelos cientistas do que pelos estudantes.

Bunge (1974) defende que a conquista conceitual da realidade começa com as idealizações. Esta conquista ocorre quando, pela classificação de traços comuns, estabelece-se o “objeto-modelo” ou “modelo con-ceitual” de uma coisa ou de um fato e se atribui a ele propriedades possíveis de serem tratadas por teorias. A construção de uma teoria do objeto-modelo implica a construção, segundo Bunge, de um mo-delo teórico.

Bunge define modelo teórico como um sistema hipotético-dedutivo que é válido para um objeto-modelo. Ele chama a atenção para o fato de que todo modelo é parcial, já que a observação, a intuição e a ra-zão, que são componentes do trabalho científico, não permitem, por si mesmas, o conhecimento do real. Mas ele também assinala que o

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219Modelos científicos, modelos escolares e modelização

método da modelagem e da sua comprovação mostrou-se bem suce-dido na apreensão da realidade.

Para Kneller os modelos são a essência das teorias e ele faz a seguinte classificação para eles: modelo representacional, modelo imaginário e modelo teórico.

Modelo representacional• , também conhecido como maquete, é uma representação física tridimensional, como um modelo do sistema solar apresentado em museus, como o de um avião ou um modelo de bolas da estrutura de uma molécula.

Modelo imaginário• é um conjunto de pressupostos apresenta-dos para a descrição de como um objeto ou sistema seria, se fossem satisfeitas determinadas condições ou pressupostos. Um modelo imaginário pode servir para propor que a estrutura ima-ginária é semelhante à estrutura real. Um exemplo de modelo imaginário é o modelo mecânico do campo eletromagnético de Maxwell. Ele descreveu esse campo como se fosse regido pelas leis da mecânica newtoniana.

Modelo teórico• é tido como o tipo mais importante de modelo utilizado pela Ciência. É definido como um conjunto de pressu-postos que tratam de explicitar um objeto ou um sistema. (Mo-delo de bola de bilhar, modelo corpuscular da luz). Um modelo teórico atribui ao objeto ou sistema uma estrutura ou meca-nismo interno. Esta estrutura ou mecanismo é responsável por certas propriedades do objeto ou sistema descrito pelo modelo. No caso dos modelos físicos, além dessas características, ele deve ser expresso na forma de equações matemáticas.

13.3 Modelização: construindo modelos escolares

A modelização é um processo que consiste na elaboração de uma construção mental que pode ser manipulada e que procura compre-ender um real complexo. Para Larcher (1996), a modelização no ensino pode ser utilizada tanto em situações gerais, quando novos conheci-mentos são apresentados, quanto em situações particulares, quando o aluno já dispõe dos conhecimentos necessários. A autora lembra que a modelização deve sempre ser norteada por uma questão, então, a primeira condição a ser satisfeita pela atividade de modelização é fornecer uma resposta para a questão que a originou.

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As imagens, símbolos, esquemas, gráficos e maquetes são ferramen-tas que auxiliam a atividade de modelização.

A importância delas está no fato de permitirem a manipulação e a comunicação de um modelo. Entretanto, a construção de significados para estas ferramentas pode acarretar problemas. Um deles está re-lacionado com a comunicação. Na Física do Ensino Médio, é comum o aluno ter dificuldade de compreensão de um modelo devido à lin-guagem formal utilizada. Uma flecha, por exemplo, pode representar fluxo de calor ou pode representar uma grandeza vetorial. A distinção entre estes significados nem sempre é evidente para os alunos e acaba se tornando uma fonte de dificuldades. Um outro problema está asso-ciado ao fato de que uma figuração é composta de aspectos que nem sempre têm significado para o modelo. Um exemplo desta situação é a cor utilizada para representar o átomo nos desenhos que aparecem nos livros didáticos. Então, as formas de uma figura simbólicas e dos símbolos utilizadas podem ou não ter significado no modelo e a sua importância deve ser relativizada, de modo a evitar que aspectos irre-levantes sejam supervalorizados durante a modelização. E o principal: o aluno deve entender que modelo não rege o fenômeno da natureza – mas tenta explicá-lo, entendê-lo. É comum o aluno assumir o modelo como sendo a realidade, a natureza, imaginando que a natureza está submissa ao modelo. Este é o resultado de um ensino dogmático!

Os modelos não são ideias surgidas do nada. Eles são resultados de um processo. O processo de construção ou de apropriação de um modelo já construído é denominado de Modelização. Na Histó-ria da Física, temos inúmeros exemplos de modelização, dentre elas a construção dos modelos atômicos, a explicação do funcionamento de fenômenos elétricos, a explicação da propagação de calor em um corpo sólido.

Existem vários aspectos que podem diferenciar os modelos constru-ídos por um cientista e por um aluno. Um deles é o nível de sofistica-ção dos mesmos. Por meio de um modelo, o cientista procura explicar o maior número de eventos que se relacionam entre si. Já o estudan-te, muitas vezes, fica satisfeito quando seu modelo explica apenas o evento que é foco de sua atenção no momento. Além disso, embora possuidores de estruturas cognitivas essencialmente semelhantes, o estudante de modo geral não domina ou não dispõe de um fer-ramental matemático que permita estabelecer relações mais amplas sobre um determinado fenômeno. Alguns trabalhos vêm apontando as dificuldades de compreensão de conceitos físicos relacionados com a falta de domínio do ferramental matemático, tais como no uso de

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221Modelos científicos, modelos escolares e modelização

gráficos, de notação vetorial e em transitar nas diferentes formas de representação de funções (dados na forma de tabela, representação gráfica e representação analítica – equação).

Assim, a Matemática é um aspecto que diferencia tanto a capacidade de modelizar como os modelos construídos por estudantes e cientis-tas. Ela fornece um conjunto de estruturas dedutivas, por meio das quais se expressam as leis empíricas ou princípios teóricos. Neste contexto, ela é uma forma de linguagem e ferramenta, por meio da qual são estruturadas as relações entre os elementos constituintes de uma teoria.

Por ser forma de linguagem do conhecimento físico, a Matemática tem papel relevante no ensino, tanto quanto tem no processo de pro-dução. Deve-se oportunizar que o aluno conheça os modelos ma-temáticos, de modo que possa utilizá-los e interpretá-los em suas diferentes formas de representação: algébrica, gráfica, em forma de tabelas, exemplos e contra-exemplos.

13.4 Conhecimento, ensino e utilidade

COnstruindO a realidade: mOdelizandO O mundO através da físiCa

(Extrato adaptado de: PIETROCOLA, Mauricio. (Org). Construindo a Rea-

lidade: modelizando o mundo através da Física”. In: Ensino de física: con-

teúdo, metodologia e epistemologia em uma abordagem integradora.

Florianópolis: EdUFSC, 2001)

Embora essencial para entender o mundo de hoje e suplantar os desafios

ao entendimento presentes em nosso cotidiano, a ciência escolar parece mui-

to distante deste ideal. Para ter certeza disto, basta lembrar de algumas lições

presentes no ensino tradicional de Física em Nível Médio.

Tomemos por exemplo, a Cinemática, um dos primeiros tópicos tratados

neste contexto. Ele é destinado ao estudo dos movimentos de corpos e inicia-

se invariavelmente com o estudo do movimento do ponto material. Porém,

quem já teve a oportunidade de observar o movimento de um ponto mate-

rial no seu cotidiano? Na verdade, os pontos mais conhecidos aparecem nos

livros e geralmente encontram-se parados! Os alunos devem se perguntar,

‘mas que coisa é essa que meu professor quer que eu aprenda? Para que estudar

o movimento de uma coisa que na realidade sequer existe?’

TexTo 7

Page 222: Livro de INSPE [Atualizado]

222

Duas respostas imediatas poderiam vir à cabeça de um aluno: na primei-

ra, o estudo do ponto material se justificaria, pois ele “cai” na prova! Ou seja,

as regras do jogo são claras: o professor ensina, o aluno aprende e tudo é me-

dido na avaliação; o sucesso na prova possibilita o acesso às etapas posteriores

da escolarização e o reconhecimento social, manifestado principalmente no

interior da família. Outra forma de justificar o estudo do movimento do pon-

to material seria mostrar que ele é uma forma simplificada de entender o

movimento de corpos em geral. Nesse caso, situações reais presentes no coti-

diano, como o movimento de uma pedra arremessada por um estilingue, ou

o movimento de um carro numa estrada, seriam a origem e chegada desse

estudo. A complexidade das situações enfocada obrigaria a um recuo estraté-

gico visando simplificá-la para poder posteriormente tratá-la realmente.

Em geral, o aprendizado da Física se impõe na escola através da primeira

opção, ou seja, o professor faz uso do poder de gerenciar o que foi definido

como Contrato Didático introduzindo os conhecimentos a sua maneira. Em

se tratando de uma espécie de jogo estabelecido entre partes (professor e

alunos) na sala de aula, uma das regras básicas é que cabe aos alunos apren-

der para obterem sucesso nas avaliações; já ao professor, entre outras coisas,

cabe produzir avaliações dentro das possibilidades dos alunos, isto é, previ-

síveis a partir do que é ministrado na sala de aula. O mais interessante nessa

forma de abordar as relações escolares, é que, embora muito bem estabele-

cidas tais regras são tácitas.

Não é de estranhar que ao termino das avaliações, os alunos rapidamente

se “esqueçam” de tudo o que foi aprendido. Em geral, poucos dias depois das

provas, todo o conhecimento físico se esvanece como cera exposta ao Sol. Os

ainda tradicionais exames para ingresso no ensino superior, os famosos vestibu-

lares, são o exemplo mais contundente do sentimento de “tempo perdido es-

tudando Física”. Embora haja enorme esforço e dedicação de vários candidatos

em “aprender” Física para obter sucesso na disputa por uma vaga na Universi-

dade, em geral, aqueles que optam por carreiras não-científicas poucos retêm

desse conhecimento. O conhecimento físico passa a ser visto como um lastro

que deve ser rapidamente abandonado, pois já tendo cumprido sua função no

contrato didático anterior, passa a ser encarado como “cultura inútil”.

Frente a um mundo repleto de estímulos e desafios que se alternam ra-

pidamente, os conhecimentos tornam-se obsoletos rapidamente. O conheci-

mento promovido pelas aulas tradicionais de Física, por estabelecer poucas

relações com o mundo real, e vincular-se quase que exclusivamente com o

mundo escolar, é em geral visto como desnecessário. Um conhecimento cuja

função limita-se à sala de aula, em particular para a realização de provas, é

sério candidato a ser descartado. Os alunos terminam por estabelecer com

ele vínculos profissionais, pois enquanto submetidos ao contrato didático

Na verdade, o termo aprendido aqui está

mal empregado, visto que o mais comum é

aceitarmos a idéia de que o que é significativamente

aprendido não é facilmente esquecido.

Moreira (1999) oferece uma explanação

sobre aprendizagem significativa.

Page 223: Livro de INSPE [Atualizado]

223Modelos científicos, modelos escolares e modelização

portam-se como profissionais da sala de aula. Não estabelecem com o

conhecimento vínculos que extrapolem a escola e suas exigências. Enxergar

o conhecimento físico como meio eficaz de entender a realidade que nos

cerca garantiria vida pós-escolar ao mesmo, permitindo o estabelecimento de

vínculos afetivos, que seriam duradouros.

Na verdade, alguns textos didáticos e mesmo professores bem intenciona-

dos, procuram alimentar nos alunos a esperança de que aquilo que foi visto na

sala de aula de forma teórica e abstrata se relaciona com a realidade cotidiana.

Desenhos de carros de Fórmula 1 e aviões povoam os capítulos de Cinemática

dos livros didáticos, assim como motores a explosão, feixes de raios laser e

satélites de comunicação em outros tópicos. Tais referências são formas de es-

tabelecer a Física como uma ciência da natureza e mostrar que ela se debruça

sobre objetos e situações reais. Embora isto seja essencialmente verdadeiro, a

continuação dos capítulos desses livros e das aulas não mais faz referência a

estas situações reais. O que parece é que tais referências são colocadas como

simples objetos motivacionais, “chamarizes” que acabam por tornar o ensino

de Física enganoso. Os alunos aguardam ansiosamente o momento em que to-

dos aqueles conteúdos teóricos, apresentados como simplificações tiradas di-

retamente do cotidiano, ganhe realismo e lhes capacite a melhor interagir com

o ambiente em que vivem. Porém, em geral, este momento nunca chega.

O que se deve esperar de um conhecimento Físico que pouco se relacio-

na com a realidade cotidiana? Em geral, que ele sirva apenas para “passar de

ano” ou seja, para cumprir os requisitos presentes na escola.

Em geral, o conhecimento que nos acompanham por toda vida, são

aqueles que, de um lado, nos são úteis, e por outro, que geram algum tipo

de prazer. É fácil atribuir aos conhecimentos Físicos a capacidade de ser útil. A

discussão acima relacionada ao cotidiano tecnológico em que vivemos deixou

isso claro. Mas será que a Física pode ser fonte de prazer, assim como o é a

música e as artes em geral? Acredito que sim, pois se através dela pudermos

“enxergar” um mundo diferente daquele que se nos apresenta a percepção

imediata, teremos sensação de ganhar intimidade com a realidade. E as rela-

ções vivenciadas intimamente são as mais susceptíveis de gerar prazer. Veja-

mos o que diz Robilotta (1986:8) sobre este ponto:

Existem outros modos (além do racional) de conhecer o mundo físico, é possí-

vel um relacionamento do tipo sentimento. Um tal modo de conhecer é ca-

racteristicamente não formal, pode ser não verbal e acontece num mundo de

coisas às quais se atribui um certo grau de realidade. O acesso a esse mundo

é feito por meio de sensações, palavras, imagens e intuição, e a mente busca a

intimidade do objeto a ser conhecido. Neste tipo de conhecimento não existe

a clareza fria da razão.

São aqueles que não se dão em base exclusivamente racionais.

Page 224: Livro de INSPE [Atualizado]

224

Este posicionamento pode parecer “romântico” e fora dos objetivos de

um curso de ciências. Seria mais comum associar este tipo de declaração ao

ensino das artes, como teatro, música, pintura, etc. Porém, a declaração de

uma aluna da licenciatura, solicitada a se manifestar sobre a abordagem dada

ao tema “cores” num livro didático de Física, vai à mesma direção:

Essa incompleteza no entendimento [gerada pela falta de profundidade na

abordagem] acaba por desestruturar aquela que é a idéia principal em citar

coisas do dia-a-dia”, ou seja, a de “o aluno compreender a natureza, criando

uma agradável sensação de ”poder” perante isto e notar que tudo dentro

da Física é sim muito útil e se a ele [ ao aluno ] é pedido que faça muitas

contas 'chatas' [como cálculos e exercícios] é para que tenha o raciocínio de-

senvolvido o suficiente para entender muitas coisas. (Declaração de professora

participante de Curso de Aperfeiçoamento em Ensino de Física na UFSC)

Sua análise engrossa os argumentos até aqui levantados para entender par-

te dos malogros do ensino de Física. A jovem manifestou a agradável sensação

de poder perante a natureza. Talvez teria sido melhor dizer agradável sensação

de intimidade com a natureza, significando compreensão no seu nível mais

profundo, quando se conhece para além das aparências. Nesta interpretação,

intimidade com a natureza tanto pode resultar em ações transformadoras

visando a realização de projetos individuais ou coletivos, ou em “sentimento

de afeição”, resultante da busca vitoriosa de entendimento do que se esconde

por trás dos fenômenos naturais. A intimidade com a natureza gerada pelo

conhecimento Físico resulta na ampliação da visão de mundo, pois é possível

nestes casos vislumbrar uma realidade não imediata. Este tipo de sentimento

é muito próximo daquele gerado no contexto da prática religiosa ou mística;

acessa-se um nível de realidade através das práticas específicas, como a fé, a

meditação etc. O sentimento de realidade é fruto do vislumbrar de um novo

mundo coerente, plausível, mas até então desconhecido.

COnstruçãO e realidade

Mas como se ensina visando o estabelecimento de um conhecimento

do tipo sentimento com o mundo físico? Como garantir uma aprendizagem

que capacite os alunos a ganhar intimidade com o mundo através do conhe-

cimento. Parece-nos condição básica mostrar que o conhecimento nos revela

uma faceta do mundo até então desconhecida. Ou, de outra forma, parece

que a intimidade é gerada pelo sentimento de estarmos diante de algo que é

ao mesmo tempo novo e velho; velho, pois se trata do mundo cotidiano que

temos contato ao longo de muito tempo; novo pois aprendemo-lo de outra

forma, como se fosse de uma perspectiva nunca antes adotada. Isto passa

pela tomada de consciência de uma nova realidade, acessada através do co-

nhecimento físico aprendido.

Page 225: Livro de INSPE [Atualizado]

225Modelos científicos, modelos escolares e modelização

Para levarmos nossos alunos a atingirem este estado de sentimento de-

vemos ensiná-los a construir este acesso ao mundo. Se quisermos que os

alunos ampliem seu sentimento de realidade sobre o mundo através do co-

nhecimento Físico é preciso que um dos objetivos de ensino seja a constru-

ção dos pré-requisitos necessários para isto. Porém, diferentemente do que

possamos pensar, nossa apropriação do sentimento de realidade se dá de

maneira complexa. Todo acesso ao mundo é indireto, mediado por formas de

compreensão preexistentes. Num primeiro momento esta afirmação poderá

parecer absurda, pois aparentemente a realidade é algo concreto, composta

de objetos dos quais nos apropriamos diariamente de forma imediata? Onde

reside a complexidade de ações deste tipo?

Para entender isto, será necessário primeiramente promover uma peque-

na discussão acerca do termo realidade e sua significação.

O mundo cotidiano habitado pelos objetos que encontramos todos os

dias, como carros, árvores, casas, ruas, etc é o que concebemos como sendo a

Realidade existente. Ela foi escrita com letra maiúscula por que a concebemos

como única, imutável e permanente. Assim, devemos inicialmente definir o

nível de realidade que nos é mais imediato como realidade cotidiana ou rea-

lidade associada ao mundo cotidiano. Este mundo é aquele que partilhamos

com boa parte dos indivíduos com quem convivemos e percebemo-lo de

maneira pouco refletida. A comunicação no dia-a-dia é fortemente baseada

neste mundo cotidiano. O sucesso nesta tarefa evidencia que o comparti-

lhamos com os indivíduos que nos rodeiam e mesmo com aqueles que não

nos são tão próximos. Ao nos referirmos a coisas do mundo temos certeza

de sermos entendidos, pois sabemos que nossos interlocutores partilham do

mesmo mundo que nós, inclusive atribuindo aos objetos que neles existem

os mesmos nomes e significados. Ao dizer palavras como caneta, pedra, vaca,

raiz, etc., estamos na verdade exprimindo-nos sobre formas de representação

pré-estabelecidadas dentro de determinado grupo social.

Dentre os elementos que encontramos na realidade cotidiana estão pre-

sentes não somente objetos como canetas, pedras e outros. Aromas e melo-

dias, por exemplo, também são objetos reais. Sua inclusão como elementos

da realidade pode ter gerado alguma surpresa por não serem eles materiais,

entretanto fazem parte dela, na medida em que podem ser pensados en-

quanto unidades de conhecimento e significação, sendo relacionados com os

demais objetos que povoam nosso cotidiano. Por exemplo, posso me referir

às melodias que ouvi ontem no rádio ou aos aromas que lembram minha in-

fância. Ao pronunciar estas palavras estou mostrando que tais objetos são tão

reais como a pedra que chutei na semana passada e me deixou uma cicatriz

no pé esquerdo. A distinção entre coisas materiais não diminui o grau de

A discussão a seguir sobre a construção do conceito de realidade no cotidiano é inspirada nos livro de Berger e Luckmann, intitulado “A construção Social da Realidade” (1985).

Page 226: Livro de INSPE [Atualizado]

226

realidade dos objetos. No mesmo sentido, os seres vivos, sejam eles animais

como vacas, pardais e lagartixas, vegetais como árvores, rosas e samambaias,

ou seres humanos também fazem parte deste mundo real, pois convivemos

com alguns deles diariamente e podemos aprender a conhecer suas carac-

terísticas, seus hábitos, suas preferências e sensibilidades. Ou seja, algumas

de suas características importantes podem ser aprendidas e utilizadas para

reconhecê-los. Mesmo quando algumas delas se modificam no tempo, é pos-

sível continuar a considerá-las como coisas, pois as mudanças em geral não

são tão drásticas a ponto de que se tenha a sensação de se encontrar frente

a novos objetos a cada instante. Assim, temos o sentimento de viver num

mundo real e concreto no sentido de que podemos tratar tudo que lá exis-

te como coisas reais. Além disto, sou capaz de produzir ações eficazes neste

mundo real, quando, por exemplo, me desvio de um buraco ou quando evito

sair sem guarda-chuva num dia chuvoso. Sinto o mundo real quando sou

capaz de distingui-lo do que não é real. Quando sonho que roubei alguém

e ao acordar relaxo por saber que não terei problemas com a policia, estou

exercitando meu poder de distinção entre real e irreal.

Assim, temos a sensação de vivermos imersos num mundo real imediato

e único, composto de objetos imutáveis com mesmo significado para mim e

para os demais seres humanos. Porém este é apenas um nível de realidade

do mundo, pois este mesmo mundo pode de alguma forma variar. Até os

objetos materiais que povoam o cotidiano podem se modificar em função do

contexto. Por exemplo, as mesmas árvores que encontro todo dia no meu

caminho para o trabalho e que praticamente não chamam minha atenção,

têm um significado novo para um botânico. É possível que ele as agrupe

segundo características precisas; avalie seu crescimento ao longo do tempo;

acompanhe seu estado de saúde e mesmo vislumbre alguns tipos de cuidados

especiais que deveriam ser tomados. O mesmo aconteceria com uma pilha de

livros velhos e empoeirados deixados no sótão de uma casa. Um “catador”

os veria apenas como papel a ser pesado e vendido, pois disto depende a so-

brevivência de sua família. Para um historiador, poderia tratar-se de fontes de

informação inestimável, que resolveriam alguns problemas históricos cruciais.

Embora se trate sempre dos mesmos elementos, a realidade a eles associados

pode variar muito.

Tomemos outro exemplo, extraído do filme “Os deuses devem estar lou-

cos”, exibido na década passada e que fez relativo sucesso no cinema. Este fil-

me ambientado na Austrália conta a saga de um nativo que se vê incumbido

pelo seu povo da missão de devolver à civilização uma garrafa de coca-cola,.

A garrafa literalmente “cai do céu” ao ser atirada de dentro de um pequeno

avião, dando a impressão de que havia sido enviada pelos deuses. O novo

objeto passa a ser cobiçado por todos os membros da comunidade por sua

versatilidade na execução de diversas tarefas domésticas, gerando confusão

Muitas vezes ao mencionarmos o termo realidade estaremos na

verdade nos referindo ao sentimento de

realidade. Estes dois sentidos se superpõem

freqüentemente, pois em geral nos referimos à

realidade como resultante de nossos mecanismos de percepção. Neste sentido,

o que entre em jogo é o sentimento de realidade

associado ao processo de percepção. A menos que estejamos falando

de realidade no sentido ontológico, isto é da sua

dimensão última, do que ela é em si própria, estaremos identificando

realidade ao sentimento de realidade identificada.

Este filme pode ser obtido em vídeos locadoras e

serve como metáfora para as discussões envolvendo a construção da realidade e sua dependência cultural.

Page 227: Livro de INSPE [Atualizado]

227Modelos científicos, modelos escolares e modelização

na tribo. As tarefas para as quais ela é utilizada na tribo não se relacionam ao

transporte de água, como poderíamos pensar. Ela acaba sendo usada para

amassar, bater, espremer. No filme fica clara a mudança de significação e

conseqüentemente de identidade do objeto ao adentrar na tribo. Isto pode

ser entendido primeiramente pelo fato da água não ser um elemento suscep-

tível de trocas no contexto do filme, além disto por o vidro ser desconhecido

no local e finalmente pela água utilizada ser armazenada em outros tipos de

recipientes. A realidade por nós atribuída ao objeto “garrafa de coca-cola” e

seu realismo não evitaram que ela fosse susceptível de um processo de objeti-

vação específico no interior da tribo. As idéias e interesses disponíveis no con-

texto local, isto é repletos de componentes culturais pré-existentes fez com

que a “realidade” associada ao objeto “garrafa” fosse modificada quando esta

passou a ser apreendida por estes indivíduos. Por se tratar de um novo ele-

mento no seu mundo cotidiano, ele foi apreendido segundo os interesses e

idéias localmente definidas. Caso não houvesse tanta confusão gerada pelo

seu aparecimento, sua perenização na tribo poderia gerar objetivação, dimi-

nuindo com isto as formas subjetivas de apreensão pelos diversos membros

da tribo. Caso isto ocorresse, teria se produzido a standartização do elemento

garrafa, gerando o objeto garrafa no mundo cotidiano da tribo.

Em linguagem mais técnica, diríamos que inicialmente um novo elemen-

to introduzido num meio gera representações idiossincráticas (individuais)

e, por conseguinte, subjetivas na medida em que ganham sentido particular

para cada um; interesses comuns, comunicação e troca de experiências en-

tre os indivíduos presentes neste meio geram necessidade de padronização.

Disto resultou a construção de um objeto que daqui para frente passaria a

ser considerado como uma parte da realidade cotidiana desta comunidade,

integrando desta forma o mundo cotidiano destes indivíduos. A percepção

do mundo envolve, então, objetivações de processos e significações subjetivas,

pois dizem respeito a coisas com as quais temos sempre relações individuais,

porém mediadas por interesses e idéias que forjadas em coletividades. O fato

de não podermos apreender diretamente o mundo implica na impossibilida-

de de se atingir um nível de realidade absoluta. Ou seja, somos obrigados a

construir dia a dia nosso sentimento de realidade. Neste sentido, podemos

dizer que todo sentimento de realidade é fruto de processos de standarti-

zação de representações inicialmente subjetivas, que resultam em objetos a

serem considerados como reais. O mundo cotidiano seria então o resultado

deste processo de construção de objetos com validade social.

Porém se os objetos construídos enquanto partes deste mundo são im-

portantes e, portanto, carregam consigo uma parte do sentimento de rea-

lidade, eles não o esgotam. O sentimento de realidade alicerça-se também

nas mútuas relações estabelecidas entre os objetos que povoam o mundo. A

Ato de tornar algo de domínio público, acessível a um grande número de pessoas.

Page 228: Livro de INSPE [Atualizado]

228

idéia de realidade tem como atributo fundamental o fato de fazer sentido aos

indivíduos. O cotidiano em particular apresenta esta característica de forma

muito intensa. Tanto que nos referimos a ele em geral pela série de situações

que se repetem no fluxo temporal. A rotina é uma das características mais

importantes do cotidiano. Identificamos nosso cotidiano com as atividades

rotineiras que temos ao longo dos dias. Por exemplo, diríamos que o fato

de determinada pessoa sempre acordar em determinada hora, tomar café

da manhã e partir ao trabalho faz parte das atividades cotidianas do mundo

dos trabalhadores. A repetição destas atividades não causa estranheza; já sua

interrupção mereceria reflexão e busca de justificativa, quando, por exemplo,

ficamos sabendo que ele adoeceu num suposto dia de trabalho e não saiu de

casa. Esta justificativa nos parece convincente, ou seja, dá sentido ao mundo,

pois podemos entender que uma pessoa doente não pode cumprir sua rotina.

Mesmo que aparentemente a quebra da rotina modifique nossa represen-

tação da realidade cotidiana, ela é recuperada pelo fato de conseguirmos

entender a súbita mudança. Garantimos nosso sentimento de realidade ao

dizermos que é “normal” no mundo dos trabalhadores, alguém doente não

trabalhar.

Ainda seria possível conceber um mundo cotidiano diferente, embora

ainda composto por seres humanos, que dormem acordam, tomam café da

manhã e trabalham (mesmo que eventualmente). Um indivíduo que pudesse

levantar-se todo dia, tomar café da manhã e jogar tênis, poderia ser enten-

dido como pertencente a uma realidade cotidiana da aristocracia e seria en-

tendida como uma realidade diferente daquela dos trabalhadores. Embora os

objetos sejam os mesmos (pois mesmo um trabalhador pode jogar tênis!), sua

organização global resultou numa realidade cotidiana diferente.

É importante notar que a coerência entre os elementos (sejam eles ob-

jetos ou situações) presentes nessa realidade torna-se ingrediente decisivo na

constituição desse sentimento de realidade ao qual nos referimos anterior-

mente. Caso não tivesse sido possível recuperar a coerência na situação de

eventos citados no exemplo do trabalhador doente, poderia pairar dúvida

sobre o quanto ela seria real. Lembremo-nos do sonho no qual roubei. A não-

implicação criminal do meu ato foi assumida dentro de um contexto irreal,

pois admiti que o sentimento que tive ao acordar, embora parecesse real, não

era decorrente de ações num mundo real. Não havia necessidade de esperar

conseqüências coerentes decorrentes deste ato. Caso eu fosse acordado por

um policial que me indagasse sobre fatos ocorrido na noite anterior, teria

indícios de que talvez o que pensei ser um sonho tivesse algo de real. Talvez

sofresse de sonambulismo e não soubesse, o que novamente recuperaria o

sentido da realidade, isto é a coerência entre os fatos.

Page 229: Livro de INSPE [Atualizado]

229Modelos científicos, modelos escolares e modelização

Assim admitir que o mundo cotidiano no qual vivo goza de coerência am-

plia o foco de nossa discussão sobre a realidade do mundo ligada aos objetos

nele presentes para as relações existentes entre eles, tornando-o um todo

com organização coerente. A noção de realidade associada aos elementos do

mundo pode variar de indivíduo para indivíduo, em função de interesses,

necessidades e contexto social. Ao mesmo tempo, as próprias relações possí-

veis entre objetos presentes neste mundo podem fornecer níveis de realidade

diferentes.

mOdelOs físiCOs e a realidade

Mas como toda discussão acima pode ser importante para quem ensina/

aprende Física?

Isto fica mais claro quando lembramos que o Físico busca conhecer o

mundo. Ou seja, a Física constitui-se numa forma coletiva e organizada de

produzir representações coerentes sobre do mundo físico, que é parte do

mundo natural. Assim, podemos dizer que deste processo resulta um nível

de realidade, que poderíamos definir como a realidade Física. Por se tratar

de um processo de conhecimento encaminhado por seres humanos, a reali-

dade Física possui características muito semelhantes àquelas descritas acima,

para a realidade associada ao mundo cotidiano. Trata-se também de uma

construção social, porém aperfeiçoada ao longo dos últimos séculos. O social

envolvido se limita à sociedade científica que vem produzindo tal conheci-

mento, sendo também guiada por interesses e submetida a necessidades de

comunicação. Isto imprima à realidade físicas características particulares, que

a diferencia da realidade no sentido cotidiano. Pois, os interesses e a forma

de comunicação no interior da sociedade dos Físicos adquirem características

distintas daquelas da sociedade em geral.

A Física tornou-se uma das primeiras ciências a se constituir após o renas-

cimento. Encontramos nos trabalhos de Descartes, Galileu, Newton e con-

temporâneos, elementos que viriam a aglutinar uma prática de prospecção

do mundo natural que se tornaria sistemática e produziria resultados interes-

santes. A separação entre corpo e alma, ou melhor, a focalização do conheci-

mento sobre o mundo da matéria, o uso das experiências como forma de es-

tudar os fenômenos naturais, e a introdução sistemática da matemática como

forma de expressar as propriedades do mundo são alguns destes elementos.

A continuidade dos estudos científicos introduziu novos elementos, gerou

práticas regulares de conduta, ao mesmo tempo em que introduziu novas

formas de proceder. O fruto deste processo resultou numa prática científica

standartizada, ao qual muitos se referem como método científico. No entanto,

isto nada mais é do que uma forma de proceder legitimada pelo histórico de

sucessos e erros da comunidade de pesquisa.

Page 230: Livro de INSPE [Atualizado]

230

O conhecimento produzido pela aplicação deste saber científico gera

uma forma coerente de conceber o mundo. Não o mundo em sua totalidade,

mas uma parte dele, pois a forma de conhecer ditada pela ciência Física va-

loriza algumas facetas do mundo, ao mesmo tempo em que excluem outras.

Por exemplo, enquanto que o movimento da Lua é uma parte do mundo que

foi/é motivo de intensos estudos na Física, os sentimentos causados pela Lua

nos enamorados, por exemplo, já não é. Isto define um mundo físico que

pode ser objeto de estudo dos métodos atuais praticados no interior desta co-

munidade científica. Isto não significa que os efeitos sentimentais do luar não

possam vir a ser um dia objetos de estudo da Física, pois os procedimentos

científicos são dinâmicos, modificando-se constantemente.

O conhecimento científico produzido nos estudos sobre o mundo traduz

em uma forma de conhecer o mundo muito particular, revelando desta forma

uma realidade diferente daquela acessível pelo leigo. A realidade Física é então

resultado de um processo de interpretação do mundo, pautado por métodos

e técnicas que se diferenciaram ao longo do tempo das práticas cotidianas.

Esta interpretação particular do mundo, como também ocorre no caso da in-

terpretação artística, religiosa, mítica etc resulta da capacidade criativa do ser

humano. É incorreto considerar que o mundo se resuma a uma só realidade

possível, assim como é também incorreto dizer que não há realidade alguma

associada a ele. Pois tudo depende das formas utilizadas para conhecê-lo. As

realidades estando sempre condicionadas às formas que procedemos para

isto. Não há sentido em indagar-se sobre a realidade absoluta do mundo,

pois em geral não se trata de discutir sobre a realidade em si, como dimensão

ontológica do mundo, mas sobre a atribuição possível de ser feita sobre esta

realidade. A realidade cotidiana e a realidade Física associam-se ambas ao sen-

timento de real descrito no item anterior. Podemos nos referir a elas como ní-

veis de realidade diferentes, pois se a primeira é acessível a qualquer cidadão

ocidental vivendo no final do século XX, a segunda só é acessível àquele que

se proponha a incorporar os métodos de proceder da ciência Física. Portanto

a realidades são sempre noções relativas: ao conhecimento senso comum,

ao conhecimento científico, ao conhecimento artístico etc. Enquanto que o

sentimento de realidade é algo absoluto, pois não parece ser possível ao ser

humano se passar de tal sentimento. Passamos toda nossa vida alternando

nossas formas de perceber a realidade.

O conceito de modelo define com clareza este jogo entre a realidade e

o conhecimento que a torna possível sua construção. No seu estado puro,

o conhecimento se reveste de um caráter conceitual e aparentemente sem

vínculos com a realidade. Tomemos, por exemplo, o Princípio da Inércia (ou

para alguns a primeira lei de Newton). É fácil perceber que ela não se aplica

diretamente ao mundo das coisas. Os objetos em geral não se comportam

Page 231: Livro de INSPE [Atualizado]

231Modelos científicos, modelos escolares e modelização

seguindo a premissa de manterem seu movimento na ausência de resultante

de forças agindo sobre eles. Porém, podemos imaginar estes objetos como

pertencentes a uma realidade, no caso a realidade Física construída através

das leis da mecânica newtoniana. Assim objetos cotidianos pertencem às

realidades cotidianas e são dotados de propriedades condizentes com este

mundo; objetos Físicos pertencem às realidades Físicas, e são dotados de pro-

priedades físicas. No caso da realidade mecânica, tais objetos seriam comple-

tamente lisos e mover-se-iam numa situação sem qualquer interação aero ou

hidrodinâmica. Também não estaria sujeito a nenhum outro tipo de interação

física efetiva, que pudessem alterar de alguma maneira o espaço onde estão

imersos. Um tal objeto se constitui numa idealização de objetos conhecidos,

visando integrá-los na forma de conhecer da ciência. Segundo Mário Bunge,

a modificação de objetos cotidianos em objetos Físicos e a parte inicial do

processo de modelização científica, onde se produz o que ele define como

um objeto-modelo. Ou seja, um objeto com propriedades que permite que

ele seja integrado a uma teoria Física. Quando isto ocorre, o comportamento

dos objetos-modelo passa a ser completamente definido pelas leis presentes

no interior da teoria. No caso acima, o comportamento do suposto objeto do

mundo mecânico seria comandado pelas leis de Newton, pelos Princípios de

Conservação da Energia e da Quantidade de Movimento etc. Dizemos neste

caso que foi produzido um modelo Físico que diz respeito ao comportamento

de móveis presentes na nossa escala de grandeza, em baixa velocidade, longe

da ação de grandes massas. Este modelo Físico representa também um tipo

de realidade Física, a qual poderíamos chamar de mecânica, não relativística,

não-quântica, ou simplesmente Clássica.

13.5 Modelização de variáveis

Esta seção vai exemplificar como pode ser feita uma modelização com abordagem experimental. Retomando o que foi discutido na se-ção 13.3, na qual vimos que a Matemática desempenha um papel de elevada importância na constituição das teorias físicas, na medida em que é um elemento estruturador dos modelos e teorias. Devido ao modo como são construídas suas estruturas, a Matemática é utilizada para representar modelos e teorias. Uma dificuldade apontada pelos professores de Física é o pouco domínio da Matemática pelos alunos, em particular, os conteúdos que concernem a “funções”.

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232

aprOximaçãO entre a CiênCia dO alunO na sala de aula da 1a série dO 2O grau e a CiênCia dOs Cientistas

(Extrato adaptado de: PINHEIRO, Terezinha de Fátima. Aproximação entre

a ciência do aluno na sala de aula da 1a série do 2o grau e a ciência dos cientis-

tas: uma discussão. (Dissertação de mestrado). CED/UFSC, Florianópolis,

1996)

A necessIdAde de umA InTerfAce que sejA ponTo de pArTIdA

Como podemos pretender que o aluno, que ingressa no ensino médio,

compreenda toda uma rede de conceitos físicos que fazem parte da estrutura

programática desse nível de ensino, se ele não dispõe de alguns elementos

essenciais para a construção desses conhecimentos? Como trabalhar com um

conhecimento complexo e, ao mesmo tempo, propiciar a aquisição dos ele-

mentos necessários à compreensão deste conhecimento?

Se pretendemos que haja uma aprendizagem significativa dos conceitos fí-

sicos entendemos que é necessário que os alunos passem a dispor dos elemen-

tos necessários à construção desses conceitos. Nesse sentido, julgamos que há

a necessidade de etapas iniciadoras direcionadas para a aquisição desses ele-

mentos. Esses passos iniciais devem permitir que o aluno passe a ter domínio

dos modelos matemáticos em contextos que proporcionem a compreensão de

que, por meio deles, o conhecimento científico é estruturado e comunicado.

Assim, passaremos a discutir um conjunto de procedimentos que contem-

plam algumas dessas etapas iniciadoras e oportunizam a modelização de

variáveis.

Como etapas iniciadoras elas devem ser desenvolvidas no início da pri-

meira série do ensino médio, onde geralmente o conteúdo programático de

Física inclui atividades deste tipo. Na maioria das vezes, ela é considerada

como uma unidade de revisão ou síntese de conteúdos, tais como medidas,

transformações de unidades, potenciação, razões e proporções, noções de

funções etc. Portanto, é nesta unidade introdutória que podemos incluir ati-

vidades como a que vamos descrever.

Os procedimentos propostos no desenvolvimento da atividade corres-

pondem ao processo de modelização ou modelagem matemática. Bassanezi

(1994) define modelagem matemática, ou modelização matemática, como

um processo dinâmico, que consiste na transformação de problemas reais

em problemas matemáticos e na interpretação de suas soluções utilizando a

linguagem do mundo real.

TexTo 8

Page 233: Livro de INSPE [Atualizado]

233Modelos científicos, modelos escolares e modelização

O processo de modelização é constituído, basicamente, pelos seguintes

procedimentos: motivação, formulação de hipóteses, validação das hipóteses

e novos questionamentos e, enunciado.

A motivação ocorre quando se apresenta ao aluno um problema signifi-

cativo ou uma questão que se relaciona com suas experiências anteriores. É

neste momento que se orienta a atenção do estudante, para “as coisas que

mudam” ou “objetos mutáveis”, ou seja, para a identificação das grande-

zas que se relacionam com regularidade. Também deve ser enfatizado que a

identificação de cada objeto de mudança implica na existência de uma con-

ceituação prévia destes objetos. Isto significa dizer que, em algum momento,

o aluno já interagiu com estes objetos e já formulou um conceito sobre eles.

A partir da percepção da existência de mudanças e regularidades, passa-

se à formulação de hipóteses a respeito dessas mudanças. Nesse momento

explicita-se as expectativas teóricas que se tem a respeito do mecanismo de

regularidade observada”. Esta etapa corresponde a uma “aposta”, “pré-teo-

ria”, ou ainda, a uma previsão de comportamento para o objeto-modelo.

A validação das hipóteses é iniciada pela experimentação. É o ato de atri-

buir e obter dados quantitativos dos objetos que mudam, isto é, das grande-

zas que pareceram, a priori, relacionadas ou dependentes entre si. O modo

de apresentação de dados – a tabela – se caracteriza como uma das formas

de representação de uma função. Para a análise dos dados utiliza-se a cons-

trução do gráfico. E é a partir da distribuição dos pontos e da idealização do

problema que se constrói um modelo analítico ou algébrico para o mesmo.

Com base no modelo analítico se efetuam novos questionamentos para o

estabelecimento dos limites de utilização do modelo construído.

O enunciado é a etapa conclusiva da atividade experimental, onde há a

comparação entre o modelo empírico, os dados experimentais e as expecta-

tivas teóricas da “aposta”. Nesse momento, além de uma formulação verbal

do modelo construído, deve-se provocar discussões a respeito da generaliza-

ção deste modelo, de sua aplicabilidade em outros contextos, constituindo-se

num momento de listar os possíveis exemplos e contra-exemplos.

como são desenvolvIdAs ATIvIdAdes desTe TIpo

As atividades são desenvolvidas de modo que o aluno passe a ter domínio

e saiba utilizar as três formas de representação de uma função, estabelecen-

do um “modelo explicativo” para um evento. Para isso, o aluno participa de

atividades experimentais, nas quais deverá ficar explícito o que muda em

determinado evento e como se processa esta mudança.

Page 234: Livro de INSPE [Atualizado]

234

Uma atividade experimental, da maneira como entendemos, pode pos-

sibilitar o desenvolvimento de habilidades na construção de gráficos, análise

de dados, interpolação, extrapolação, generalização, bem como a compreen-

são de condições de contorno necessárias para a utilização dos modelos. Ao

final da atividade, pode ser construído um “modelo teórico” sobre o evento

enfocado por ela. Deste modo, se tenta desmistificar “as fórmulas” que, ge-

ralmente são encaradas como algo que surgiu na cabeça de alguma mente

genial e que apenas alguns “seres iluminados” podem entendê-las. Principal-

mente, espera-se que o aluno passe a conhecer e utilizar a linguagem formal

da Física e a compreender que o conhecimento é construído a partir da rela-

ção do homem com a natureza.

As atividades são previstas para serem desenvolvidas pelos alunos, entre-

tanto elas não são auto-suficientes. Os alunos podem trabalhar em grupos

pequenos e o professor funciona como um monitor que coordena a seqüên-

cia das atividades e auxilia na elaboração das hipóteses analisadas. A inter-

venção do professor é fundamental em diversos momentos, para que haja

discussão durante o desenrolar de cada atividade. A participação do professor

é fundamental, visto que a atividade em si não dá acesso ao conhecimento

e, apesar de ter embasamento empírico, não é idealizada para a obtenção de

dados. Isso implica que o professor deve ter clara a concepção construtivista

de Ciência que ele pretende compartilhar com seus alunos.

Os procedimentos descritos não se constituem em grandes novidades. É

a seqüência que se recomenda, somada às discussões que destacamos que

devam ser provocadas, que se constituem na tônica da atividade. A mudança

de atitude está na inversão do modo como o aluno entra em contato com o

conteúdo que, nesse caso, é promovido a partir de uma situação-problema,

próxima a sua realidade.

um exemplo de ATIvIdAde de modelIzAção de vArIáveIs: domInó

A atividade que será discutida é um exemplo que serve para sistematizar

uma parte do conteúdo referente à função de primeiro grau do tipo pro-

porção direta (cujo modelo matemático é representado genericamente pela

relação do tipo: y a x= ⋅ ). É a atividade dos dominós, cujo objetivo é deter-

minar a relação existente o número de peças empilhadas e a altura da

pilha.

A motivação desta atividade é iniciada com uma discussão do próprio

título. Quando se apresenta aos alunos um conjunto de oito a dez peças

retangulares que têm uns pontos brancos em uma das faces, imediatamente

eles denominam essas peças de “dominós”. Dominó é um conceito comparti-

lhado, que tem regras determinadas, estabelecidas coletivamente. Para jogar

dominó é necessário conhecê-las. Aqui se enfatiza que, assim como o jogo de

Page 235: Livro de INSPE [Atualizado]

235Modelos científicos, modelos escolares e modelização

dominó, o conhecimento científico é constituído por práticas estabelecidas

pela comunidade científica.

Após a mencionada discussão, solicita-se aos alunos que listem as qualida-

des (grandezas) que podem ser observadas e atribuídas ao conjunto de peças

de dominós. Após a listagem apresentada por eles, solicita-se que procurem

aquelas grandezas que dependem entre si (cor, comprimento, largura, espes-

sura, área, volume). Pede-se então que dirijam sua atenção à espessura das

peças. Para haver a formulação de alguma hipótese, os alunos são questiona-

dos se existe a possibilidade de se estabelecer alguma regularidade entre o

número de peças e a altura da pilha formada por elas.

De maneira geral a resposta que se tem é imediata: “quanto maior o nú-

mero de peças, maior a altura da pilha, é óbvio!” Esta resposta denota que

os alunos tem algum conhecimento sobre proporcionalidade direta, porém

de forma assistemática. É fundamental então que neste momento seja dada

ênfase ao que varia no evento, ao que se modifica (objetos mutáveis) no em-

pilhamento dos dominós, ou seja, ao número de peças e à altura da pilha.

Neste caso, existe a necessidade de discutir que as demais grandezas listadas

anteriormente não contribuem para a variação da altura da pilha.

Para a validação das hipóteses pede-se inicialmente que os alunos empi-

lhem os dominós, com sua parte mais larga apoiada sobre a mesa e realizem

a medida da altura da pilha de acordo com as quantidades estipuladas em

uma tabela. Para medir a altura da pilha eles utilizam uma régua feita com

papel milimetrado.

2 4567 9

Nº de peçasN (peças)

altura h (cm)

h

Neste momento esclarece-se aos alunos que a tabela é uma forma de

apresentar os dados obtidos em um determinado evento. A cada linha da

tabela é representada uma situação. Neste caso, para cada número de peças

empilhadas é registrada a altura correspondente. É oportuno chamar a aten-

ção dos alunos para o fato que, em locais onde se faz fotocópias, é comum

encontrarmos tabelas com o preço a ser pago pelos clientes, de acordo com

o número de cópias solicitado. Este exemplo pode contribuir para que os

alunos percebam que a apresentação de dados em forma de tabela facilita a

visualização de dados e não é algo tão distante deles.

Page 236: Livro de INSPE [Atualizado]

236

Propositadamente, não é solicitado que eles meçam a altura correspon-

dente a uma peça. Desta maneira, ao observarem os dados em suas tabelas,

nem sempre fica claro para eles a proporcionalidade direta entre a altura da

pilha e o número de peças empilhadas. Aliás, quando algum aluno percebe

a proporcionalidade direta entre as grandezas, geralmente fica incomodado

porque os dados obtidos por meio das medidas não são aqueles que ele espe-

rava. Isso porque o aluno utiliza de suas noções de proporcionalidade direta

para fazer previsões. Ele acredita que há algo errado: “Eu fiz as contas. Para

tantos dominós deveria dar tal valor e não deu”. Esse tipo de situação nos au-

xilia a discutir que os conhecimentos anteriores os levaram a fazer previsões.

Estas previsões (“as contas”) foram feitas com base em uma idealização sobre

comportamento dos dominós que eram empilhados. Nessa idealização, ou

objeto-modelo, não é levado em conta as irregularidades originadas na fa-

bricação das peças de dominó. É conveniente chamar a atenção para o fato

que, dentre os dominós que cada aluno utilizou, pode haver alguns confec-

cionados no início do dia, quando as lixas são novas e os operários estão des-

cansados. Esses dominós certamente são um pouco mais finos e bem lixados

do que aqueles feitos ao final do dia, quando a lixa já está gasta e o operário

cansado. Este tipo de comentário serve de exemplo da vasta possibilidade de

fatores que interferem em um evento e que a idealização humana não conse-

gue dar conta de todos.

Com base nos dados, solicita-se que os alunos passem para a representa-

ção gráfica dos dados da tabela. Embora eles já tenham construído gráficos

ao longo da vida estudantil, é necessário explicar detalhadamente esta forma

de representação. Dentre elas: atribuição das grandezas aos eixos, estabeleci-

mento de escalas, verificação da distribuição dos pontos. Aqui se discute tam-

bém o que é uma variável dependente e independente. É a escolha de quem

depende de quem. Esta discriminação deve ser colocada como uma escolha

efetuada pelo ser humano. No entanto é necessário deixar claro que uma de-

terminada opção implicará em uma determinada interpretação do problema.

A escolha e o traçado da “me-

lhor curva” é um momento crucial

nessa atividade, pois é aqui que fica

representado, registrado no papel,

o salto que o ser humano dá para a

construção de um modelo.

Nesse momento o ser humano abandona a “realidade” dos dados e passa

a representar sua idealização. A partir de dados discretos, quantidades inteiras

de dominós, é possível imaginar quantidades de dominós que a atividade

2 4567 9

Nº de peçasN (peças)

altura h (cm)

h

h (cm)

0 N (peças)

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237Modelos científicos, modelos escolares e modelização

não oportuniza, tais como frações de um dominó ou milhares deles. Nesta

idealização não são consideradas as diferenças de fabricação entre as peças

e os possíveis erros de medida e passa-se a ter dominós ideais. Esse dominó

ideal – o objeto modelo - representa a média dos dominós do fabricante, ou

seja, um dominó padrão.

É bom salientar que o dominó, embora idealizado, não está afastado da

realidade e é bem possível que boa parte dos dominós sejam iguais ao domi-

nó idealizado. Como exemplo de idealização e padrão, cita-se a altura média

do ser humano, que no caso dos homens é de aproximadamente 1,70m. Isto

não significa que toda a população masculina adulta do planeta tenha esta

altura. Também a nota bimestral dos alunos pode servir como exemplo.

Concluída a atividade com o gráfico, solicita-se que eles enunciem ver-

balmente o comportamento da pilha de dominós à medida que adicionamos

peças a ela. Algo como: a altura da pilha de dominós é igual a altura de um

dominó vezes o número de dominós empilhados. Feito isto, pede-se que ex-

pressem em linguagem simbólica este comportamento tal como: 1h n N= ⋅ .

Compara-se a expressão assim obtida com a que se pode construir a par-

tir da definição de tangente aplicada para dois pontos específicos: o cor-

respondente ao (0,0) e a um ponto genérico qualquer (h,N). Desse modo

discute-se o fato de que a representação gráfica tem a mesma forma lógica da

proposição apresentada verbalmente e em linguagem simbólica.

Pelo uso de relações trigonométricas no triângulo retângulo:

tg = cateto oposto/cateto adjacente

Logo: h = h1 . N

mas, tg = h1 , onde h1 é a altura média de

um dominó (constante)

tg = h − 0N − 0

tg = hN

h (cm)

Â

0N (peças)

N

h

Retornando à discussão a respeito do que muda nesta atividade pode-se

promover o entendimento sobre mudanças e permanências em um evento.

O que muda é o valor assumido por uma das grandezas quando o valor da

outra se modifica. O que permanece são as grandezas e a relação entre elas.

Ao final, lista-se os limites de utilização do modelo construído e exemplos

de eventos em que eles podem identificar semelhante comportamento entre

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238

as grandezas, tais como a relação entre o preço e o número de pães, chicletes,

quantidade de carne, de tecido comprado etc. É nesse momento que se es-

clarece a existência de um valor constante para utilização desse modelo às si-

tuações por eles apresentadas. Quando os alunos apresentam exemplos para

os quais a proporcionalidade direta não se aplica, ou seja, quando o modelo

“não se encaixa”, deixa-se para reflexão o seguinte questionamento: será que

existe algum modelo por meio do qual se pode expressar o comportamento

entre as grandezas mencionadas? O preço pago em uma corrida de táxi, o

preço pago em uma conta de bar onde há taxa de “couvert”, a área de um

disco em relação ao raio são exemplos de situações citadas pelos alunos.

É fundamental esclarecer neste momento que, ao construirmos um mo-

delo para os dominós, estamos idealizando que todos dominós são iguais,

ou seja, estamos estabelecendo um dominó ideal. Para a construção deste

modelo foram utilizados procedimentos que também são utilizados na cons-

trução do conhecimento científico. Entretanto é necessário frisar que estes

não são os únicos procedimentos adotados e que não é a partir de uma quan-

tidade discreta e singular de dados que um modelo se estabelece como co-

nhecimento científico.

Por meio desta atividade o aluno constrói um modelo explicativo para

um evento, utilizando-se das três formas de representação de uma função do

primeiro grau incompleta (do tipo y a x= ⋅ ). Também expressa verbalmente

o seu modelo e lista exemplos de eventos em que pode utilizar o mesmo

modelo matemático. Depois de concluída a atividade é que se inicia a siste-

matização do conteúdo referente à proporção direta, relacionando com os

conteúdos estudados em matemática e utilizando então a mesma simbologia

adotada por aquela disciplina.

Como mencionamos, a atividade apresentada é um exemplo de uma se-

qüência didática, constituída por nove atividades, que tem por objetivo a

modelização de variáveis. Cada atividade pretende a utilização de práticas

compartilhadas e a comunicação de resultados por meio de modelos. Acredi-

tamos que cada uma delas se constitui num meio didático para que os alunos

passem a conhecer o papel estruturador da matemática, no qual uma função

se torna um “mecanismo” pelo qual, a partir de dados discretos, o ser huma-

no consegue fazer generalizações e previsões.

É necessário deixar bem claro que, embora este seja um dos procedi-

mentos da construção do conhecimento científico, ele não é único. Mais im-

portante ainda é salientar que este trabalho, que pretende proporcionar a

construção do conhecimento pelo aluno em uma situação de sala de aula,

é uma reconstrução do ponto de vista do conhecimento humano. Muitas

pessoas contribuíram para que estes conhecimentos se sistematizassem da

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239Modelos científicos, modelos escolares e modelização

forma como hoje se apresentam. Em muitos casos, muitos anos se passaram

para que isso ocorresse. No caso dos procedimentos utilizados nas atividades

experimentais é necessário esclarecer que um conhecimento só adquire sta-

tus de conhecimento científico após ser exaustivamente discutido e testado.

Portanto, em uma atividade científica, não é com uma quantidade discreta de

dados obtida de uma só atividade experimental, que se pode construir um

modelo explicativo para um evento.

Resumo

Vimos a importância de superar as visões de mundo construídas no seio da comunidade, ou seja, o senso comum. O papel dos modelos, seu significado para o ensino de Física e as formas como se apresen-tam são de grande valia no processo de modelização. A necessidade de deixar claro aos estudantes que modelo físico não é a realidade física ou a natureza. A superação das dificuldades em funções mate-máticas, por meio de sequência de atividades experimentais, serviu de exemplo de uma modelização com abordagem experimental.

Atividades de aprendizagem

As questões aqui colocadas têm por objetivo auxiliá-lo em reflexões acer-

ca do que foi apresentado no corpo principal e nos textos complementares,

provocá-lo para uma discussão, direcioná-lo na leitura, possibilitar uma sín-

tese e, por que não, levá-lo a ponderar sobre sua inclusão no planejamento

de suas aulas. Não se sinta obrigado a memorizar nomes, datas, etc. Procure

elaborar uma resposta escrita considerando a argumentação (prós e contras)

proporcionada pelo capítulo. Bom trabalho!

1) Como você argumentaria para seus alunos a importância do co-nhecimento científico como “ingrediente” vital para a construção de uma “visão de mundo” mais abrangente e autônoma?

2) Cite no mínimo cinco situações que são utilizados como “chama-rizes” nas aulas de Física. Escolha conteúdos diferentes para compor sua resposta.

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240

3) Faça uma pequena enquete em sua classe para verificar o grau de utilidade que os alunos atribuem à Física no seu cotidiano. Comente sobre as respostas dos alunos e ofereça sugestões para melhorar o grau de importância.

4) Qual uma possível estratégia a ser utilizada em sala de aula parra desenvolver (ou aumentar) o “estado de sentimento” de nossos alunos em relação à Física? Caso já tenha vivenciado uma experiência posi-tiva, relate-a.

5) Localize elementos de Física (conceitos, grandezas...) que se fa-zem presentes no cotidiano dos alunos, mas que apresentam um sig-nificado diferente. (Lembre-se da garrafa de coca-cola).

6) Consulte seus alunos sobre quais dos substantivos abaixo são re-ais ou não reais. Não esqueça de pedir a justificativa da escolha. Não é necessário utilizar todos, escolha alguns ou opte por outros mais ade-quados à sua classe. Faça uma análise das interpretações dos alunos.

a. corrente elétrica f. luz

b. temperatura g. energia

c. massa h. som

d. velocidade i. pedra

e. densidade j. calor

7) Como se poderia explicar a um leigo o que é um “modelo”? Como seria a explicação sobre o que é um “modelo físico”?

8) Sem utilizar exemplos do texto, cite três exemplos de modelos: representacional, imaginário e teórico, utilizados no ensino de Física do Ensino Médio.

9) Escolha um exemplo de cada tipo de modelo citado na resposta anterior e descreva como você planejaria um processo de modeliza-ção para utilizar em sala de aula. Pode ser uma modelização com abordagem experimental ou teórica.

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241Modelos científicos, modelos escolares e modelização

Referências

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MACHADO, Juliana. Modelização na formação inicial de professores de física. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Curso de Pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em: < http://www.ppgect.ufsc.br/dissertacao2009/juliana_machado/dissertacao.pdf>.

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