livro as marcas do homem floresta puc rio
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As marcas do homem
na floresta
Histria ambiental de
um trecho urbano de mata atlntica
Organizao
Rogrio Ribeiro de Oliveira
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Editora PUC-Rio
Rua Marqus de S. Vicente, 225 Projeto Comunicar
Praa Alceu Amoroso Lima, casa Editora/Agncia
Gvea Rio de Janeiro RJ CEP 22453-900
Telefax: (21)3527-1838/1760
Site: www.puc-rio.br/editorapucrio
E-mail: [email protected]
Conselho Editorial
Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Fernando S, Jos Ricardo Bergmann,
Luiz Roberto Cunha, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Miguel Pereira e
Reinaldo Calixto de Campos.
Diagramao de miolo e capa
Jos Antonio de Oliveira
Reviso de originais
Toms da Costa Batista e Gilberto Scheid
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada
em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.
ISBN: 85-87926-10-1
Republicado como e-book.
Editora PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil, 2010.
As marcas do homem na floresta: histria ambiental de um trecho urbano de mata atlntica/organizao: Rogrio Ribeiro de Oliveira. Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio, 2010.
230 p. ; il.; e-book.
Inclui bibliografia.
1. Homem Influncia sobre a natureza Rio de Janeiro (RJ). 2. Florestas tropicais Mata Atlntica - Histria. 3. Mata Atlntica - Proteo. I. Oliveira, Rogrio Ribeiro de.
CDD: 304.28098153
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Sumrio
Apresentao 7Rogrio Ribeiro de Oliveira
PrefcioAmarcadosagrado 11Denise Pini Rosalem da Fonseca
IntroduoOscenriosdapaisagem 23Rogrio Ribeiro de Oliveira
CaptuloIOespaomarcadoHistria de uma floresta, geografia de seus habitantes 37Ins Aguiar de Freitas
O espao geogrficovisto do espao orbital 51Luiz Felipe Guanaes Rego
CaptuloIIAsmarcasdasmosAs marcas das mos 65Carlos Engemann, Angela Maria Rosa da Silveira,
Maria Aparecida de Oliveira Guimares e Mirtes Cavalcanti Musitano
Magalhes Corra, o viajante do sculo XX 75Carlos Engemann, Angela Maria Rosa da Silveira
e Rogrio Ribeiro de Oliveira
CaptuloIIIAsmarcasdomachadoHistria ambiental e estrutura de uma floresta urbana 87Alexandro Solrzano e Rogrio Ribeiro de Oliveira
Consumo de recursos florestais e produo de acar
no perodo colonial: o caso do Engenho do Camorim, RJ 119Carlos Engemann, Juliano Chagas, Rogrio da Silva Santos,
Alexandre Chaboudt Borges e Rogrio Ribeiro de Oliveira
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CaptuloIVAsmarcasdaenxadaA influncia dos remanescentes agro-pastoris do macio
da Pedra Branca na dinmica hidrolgica das encostas 143Marcelo Motta de Freitas, Marcelo Vargas, Silva Castanheira
e Fernanda Rath Fingerl
CaptuloVAsmarcasdofogoResultantes ecolgicas de um incndio florestal na
produo de serapilheira de uma mata atlntica de encosta 167Rodrigo Penna Firme e Rogrio Ribeiro de Oliveira
Aspectos estruturais da paisagem da mata atlntica
em reas alteradas por incndios florestais 183Rodrigo Penna Firme, Rita de Cssia Martins Montezuma,
Renata Lopes dos Santos e Rogrio Ribeiro de Oliveira
CaptuloVIAsmarcasdafumaaContaminao e ciclagem de metais pesados na
serapilheira de uma floresta urbana 207Rogrio Ribeiro de Oliveira, Carmem Lucia Porto Silveira,
Alessandra Costa Magalhes e Rodrigo Penna Firme
EplogoOfuturonasmarcasdopassado 227Rogrio Ribeiro de Oliveira
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Apresentao
As principais propostas deste livro so o registro do legado da atividade hu-
mana na mata atlntica no Rio de Janeiro e a procura pelos signos nela im-
pressos. Organizado em torno de distintas marcas deixadas por episdios
histricos no macio da Pedra Branca, localizado na zona oeste do municpio
do Rio de Janeiro, este trabalho tem na interdisciplinaridade sua base meto-
dolgica.
Ao convidar pesquisadores de diferentes disciplinas para lanar suas
vises sobre a transformao dessa paisagem, tentou-se valorizar o sentido
diacrnico desta, evidenciando o fato de que a atual paisagem o produto de
foras geolgicas e biolgicas que se perdem no tempo, misturadas ime-
morial ao humana. Esta forma de enxergar a paisagem no absolutamen-
te nova, mas uma utopia comum a muitos pesquisadores, tanto das cincias
biolgicas, da terra ou sociais. Do local para o global, do particular para o
geral, os captulos vo formando uma viso dos processos de transformao
da mata atlntica.
O garimpo destes marcos foi a principal tarefa de seus autores. A esca-
la de trabalho variou de esforos literais de escavao arqueolgica (seja na
floresta ou em construes coloniais em suas bordas) deteco de marcas
menos evidentes (como na cultura de seus habitantes ou na poluio que se
presentifica no ecossistema). Comum a todos os estudos que compem esta
obra a tentativa de avaliar a resultante ambiental que cada episdio histrico
provocou, ou ainda provoca, na construo da paisagem. No entanto, estes
episdios por si no deixam vestgios. Estes so deixados pelo trabalho de
muitos homens ao longo de muito tempo, cuja memria annima tambm se
tenta resgatar pelos vestgios de suas aes.
Assim, este livro est organizado por grupos distintos de marcas deixa-
das ao longo do tempo neste trecho de mata atlntica. A introduo (Os ce-
nrios da paisagem) procura situar a floresta estudada no contexto do bioma
mata atlntica e de suas transformaes.
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As marcas do homem na floresta
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O captulo I (O espao marcado) traz, no artigo Histria de uma flores-
ta, geografia de seus habitantes, uma reflexo epistemolgica sobre a hist-
ria ambiental e suas mltiplas relaes com a geografia. No artigo O espao
geogrfico visto do espao orbital, a principal pergunta : ser o geoproces-
samento a principal ferramenta da histria ambiental do futuro?
No captulo II (As marcas das mos), dois artigos trazem informaes e
reflexes sobre a histria da ocupao humana deste trecho de mata atlntica.
No primeiro, seus autores trazem o produto de pesquisas histricas que forma
um quadro da ocupao colonial da rea, alheio quela viso tradicional que
resgata apenas a histria do vencedor (o homem branco) e no do vencido (o
negro e o ndio). O seguinte (Magalhes Corra, o viajante do sculo XX)
resgata a figura deste destacado historiador da regio da baixada de Jacarepagu.
O captulo III (As marcas do machado) apresenta dois estudos sobre os
impactos que as atividades descritas anteriormente tiveram sobre a estrutura
florestal da paisagem. O artigo Histria ambiental e estrutura de uma floresta
urbana constitui uma anlise fitossociolgica das resultantes estruturais da ex-
plorao de carvo em suas montanhas na dcada de 1950. O trabalho seguinte,
Consumo de recursos florestais e produo de acar no perodo colonial: o
caso do Engenho do Camorim, RJ, um desdobramento das pesquisas histri-
cas do captulo II. Aqui os documentos histricos e suas informaes ecolgicas
so confrontadas com a realidade ecolgica atual, com o objetivo de promover
uma verdadeira contabilidade ambiental da explorao dos recursos.
O captulo IV (As marcas da enxada) mostra, no estudo A influncia
dos remanescentes agro-pastoris do macio da Pedra Branca na dinmica hi-
drolgica das encostas, as conseqncias da agricultura e da pecuria no re-
direcionamento de fluxos durante a fase terrestre do ciclo da gua, contem-
plando as modificaes no comportamento hidrolgico dos solos sob usos
que transformaram o ambiente florestal anterior.
Os dois trabalhos do captulo V (As marcas do fogo) versam sobre o
day after dos incndios florestais. No estudo Resultantes ecolgicas de um
incndio florestal na produo de serapilheira de uma mata atlntica de en-
costa mostrada como (no) se d a recuperao da mata atlntica aps a
passagem de um incndio. Em uma abordagem fitossociolgica, o trabalho
Aspectos estruturais da paisagem da mata atlntica em reas alteradas por
incndios florestais apresenta, em diferentes momentos, a sucesso ecolgi-
ca que ocorre aps um incndio.
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9Apresentao
O captulo VI (As marcas da fumaa) dedicado a algo como uma hist-
ria ambiental contempornea. No trabalho Contaminao e ciclagem de me-
tais pesados na serapilheira de uma floresta urbana, a poluio da metrpole
circundante e sua deposio no ecossistema florestal so analisadas como um
ltimo captulo de uma histria ambiental voltada para a busca das marcas da
presena humana nos ecossistemas florestais. guisa de eplogo, o captulo
O futuro nas marcas do passado procura sintetizar os principais aspectos
epistemolgicos e metodolgicos discutidos.
Por fim, restam duas palavras sobre como foram feitas muitas destas
pesquisas. Em agosto de 2002, o Ncleo Interdisciplinar de Meio Ambiente
(Nima) da PUC-Rio implantou, no bairro do Camorim, o projeto Volunta-
riado Ecolgico. Com o objetivo de colocar a prpria comunidade redesco-
brindo seus valores ticos e ambientais, foram criadas diversas oficinas com
os seus moradores. As oficinas de mata atlntica e de histria, ministradas
por professores e alunos da PUC-Rio, foram compostas por donas de casa,
comerciantes, professores e estudantes, que tiveram papel fundamental em
muitas das pesquisas aqui publicadas, especialmente nos captulos I, III e V.
Essas pessoas, at ento no familiarizadas com metodologias cientficas ou
com o mundo acadmico, passaram a figurar, pela primeira vez, como co-
autores de publicaes cientficas. Mais do que um eventual orgulho acad-
mico, esses novos autores pesquisam suas prprias razes culturais, histricas
e ecolgicas, realizando um resgate de seus valores ambientais.
Essa procura por valores ticos e ambientais a mola propulsora das
diversas atividades de educao ambiental desenvolvidas pelo Nima, em arti-
culao com os departamentos de geografia e de servio social da PUC-Rio.
Com isto, os novos e os menos novos autores prestam a devida homenagem e
o agradecimento ao padre Josaf Carlos de Siqueira, coordenador do Nima,
que, ao levantar essa bandeira, talvez no tivesse idia dos frutos que colheria
mais tarde.
Sinceros agradecimentos por apoio e acolhida vo tambm para a verda-
deira comunidade de primeiros cristos da Igreja de So Gonalo do Amarante,
localizada no Camorim, a quem este livro fraternalmente dedicado. Sempre
plena do amor de Deus, tem na alegria e no acolhimento o seu grande dom.
Rogrio Ribeiro de Oliveira
Organizador
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Este um livro sobre a floresta. No uma floresta qualquer abstrata ou
mtica mas uma natureza sobrevivente, que bordeja a zona oeste da cida-
de do Rio de Janeiro, uma das maiores concentraes urbanas da Amrica
Latina.
Este um trabalho sobre homens. No homens quaisquer descon-
textualizados ou sem histria mas os construtores do legado das escolhas
humanas que sustentam a cultura local do atual bairro do Camorim.
Esta uma obra que conta as histrias do encontro desta natureza com
estes homens. No um encontro qualquer, que no tivesse deixado marcas ou
cicatrizes, mas uma realidade tangvel, mensurvel e previsvel; a histria do
que, aqui, foi possvel viver, na busca da sobrevivncia. Da sobrevivncia de
ambos homens e natureza trata este trabalho.
Mas este livro tambm se esfora para compreender o valor das mani-
festaes do sagrado, por meio das relaes dos homens com a natureza e
com eles mesmos, o que obriga, necessariamente, a tratar de histria e de
cultura.
Este um esforo para entender as incontveis confisses que fazemos
do nosso sentido de pertencimento de nossa identidade cultural e seus
valores o que obriga, necessariamente, a tratar de vida em comunidade.
Das marcas que a vida desenha sobre a natureza e sobre os homens tambm
trata este texto.
As marcas so sinais deixados pelas vivncias. No haver marcas onde
no houver histrias a serem contadas. Por outro lado, as marcas l permane-
cem para fazer lembrar os caminhos de regresso, para permitir o resgate do
que ficou perdido ou para que evitemos percursos que j se mostraram ina-
dequados ou perigosos. Falar de marcas falar dos homens e das suas aes,
PrefcioA marca do sagrado
Denise Pini Rosalem da Fonseca1
1 Professora do Departamento de Servio Social da PUC-Rio Setor de Desenvolvimento
Sustentvel do Nima/PUC-Rio: Rua Marqus de So Vicente, 225, CEP: 22453-900, Rio de
Janeiro. E-mail: [email protected]
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As marcas do homem na floresta
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pois elas so o registro do acontecer humano. E se o homem, no seu af de
sobreviver fsica, emocional e espiritualmente vai depositando marcas
sobre a natureza e cicatrizes em outros homens, como resultado ele tambm
fica marcado, com mos calejadas, corpo e alma comformados ou deformados,
segundo a qualidade das suas relaes com a natureza e com a comunidade
humana que o acolhe.
Por todas estas razes, a histria ambiental uma jovem disciplina, que
trata de refletir sobre estes aspectos em comunho tem, necessariamente,
que ser interdisciplinar e holstica. No toa que esta obra foi construda
por muitas mos, que foram imprimindo as marcas de gegrafos, bilogos,
historiadores e membros da prpria comunidade, sobre a compreenso pos-
svel da natureza e da comumunidade a identidade do Camorim. O desafio
que este trabalho deseja enfrentar o de falar sobre as aes humanas e
suas conseqncias por meio dos registros de ocorrncias que a floresta e a
cultura, cuidadosamente, conservam. A natureza destas marcas, no entanto,
obriga o observador a conhecer as suas incontveis linguagens para decifr-
las. Comecemos, ento, pelo sagrado.
Desde tempos imemorveis, a natureza associada idia de sagrado
(Sullivan, 2003, p. 234). A dessacralizao da natureza a que estamos acostu-
mados no mundo ocidental, tem a ver com o iluminismo, com os sculos XVIII
e XIX e com a fundao das cincias sociais e todo o seu corolrio de controle
social subseqente (Sullivan, 2003, p. 327). O esforo de entender como pri-
mitivas as culturas que prestam ritos de devoo natureza est fundamenta-
do na racionalidade prpria da modernidade ocidental, em que este mesmo
movimento no apenas dessacralizou a natureza, como tambm secularizou a
cultura e a prpria religio. Para o catolicismo, foi tambm no contexto do ilu-
minismo que a manuteno de uma atitude religiosa, que seguia reconhecendo
a correlao entre natureza e graa divina, abriu um fosso enorme entre pie-
dade e teologia, ou seja, entre religiosidade popular e teologia erudita (Eliade,
1996, p. 524). Em ltima instncia, ao desqualificar como primitivos os rituais
de devoo natureza aqueles capazes de constituir comunidades pela via de
confisses de pertencimento passou-se a privar o homem religioso da experi-
ncia do sagrado, em meio a um mundo materialista e profano. A este respeito
Eliade nos lembra a famosa frase de Pascal, o Deus de Abrao, de Isaac e de
Jac, e no o dos filsofos e sbios, na qual fica clara a supresso, na religio
racional, da relao do homem com a sua prpria histria e com a vivncia do
sagrado, por meio da natureza (Eliade, 1996, p. 528).
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A marca do sagrado
A experincia de uma natureza radicalmente dessacralizada um descobrimen-
to recente; ainda no acessvel mais que a uma minoria de sociedades modernas
e, em primeiro lugar, aos homens de cincia. Para o resto, a natureza continua
apresentando um encontro, um mistrio, uma majestade nas quais se podem deci-
frar vestgios de antigos valores religiosos. No h homem moderno, seja qual
for o seu grau de irreligiosidade, que seja insensvel aos encantos da natureza
(Eliade, 1998, p. 12). [Traduo nossa]
A dimenso ritual constitui, ela mesma, uma forma de confisso de um
certo pertencimento religioso, ou seja, participar de um ritual de devoo,
de acordo com as regras estabelecidas pela comunidade religiosa, um sinal de
reconhecimento do seu pertencimento quela mesma comunidade (Eliade,
1996, p. 520). Assim se organizam as religies e, dentro delas, as igrejas.
Assim se organiza a vida em sociedade. Por todas estas razes, falar de rituais
que ocorrem no seio da floresta tambm falar de homens vivendo em socie-
dade, de relaes intracomunitrias, de sentido de pertencimento, de cultura
local e, sobretudo, de preservao e sobrevivncia de homens e natureza o
objeto deste trabalho.
Em quase todas as passagens do Antigo Testamento, nas quais a figueira
mencionada, ela vem associada idia de preservao, de proteo e de
acolhimento material ou espiritual (Reis 1, 4; Marcos 2, 12; e Joo 1,
48-49). Por outro lado, em Mt 21, 18-22, Jesus amaldioa uma figueira que
no d fruto, agregando um outro significado figueira, ou seja, expecta-
tiva de frutificao da Sua obra, derivando da a nossa responsabilidade pela
preservao da criao e dos seus smbolos sagrados, dentre eles a figueira.Por todas estas razes, desde a criao do mundo, a partir da sua presena no
jardim do den, a figueira ocupa um lugar especial no imaginrio humano,
pois foi com as suas folhas que Ado e Eva se cobriram quando descobriram a
sua humanidade (Gnesis 3, 7). Reconhecida em diversas tradies culturais
como uma famlia que possui indivduos soberanos, alguns por apresentarem
copas frondosas que podem abrigar muitos, e outros por produzirem frutos
doces, abundantes e repletos de sementes, que germinaro uma profcua des-
cendncia, a figueira (neste caso, Ficus carica), na cultura judaico-crist, sim-
boliza a casa do Senhor na natureza e, portanto, uma das moradas do sagrado
na floresta do inconsciente coletivo do mundo ocidental moderno (Chevalier
& Gheerbrant, 1998, p. 427).
Muito embora estes contedos associados figueira estejam tambm
presentes em muitos outros imaginrios ancestrais como o caso das re-
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As marcas do homem na floresta
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ligies prprias do subcontinente asitico (Chevalier & Gheerbrant, 1998,
p. 427), de cuja flora nativa a figueira religiosa (Ficus religiosa) proveniente interessa a ns compreender as convergncias destes contedos na conflu-
ncia de trs tradies culturais brasileiras que sustentam o patrimnio cul-
tural fundador do Camorim: o legado judaico-cristo; as tradies ancestrais
nativas, de origem caiara; e o acervo cultural brasileiro afrodescendente.
Nas regies de ocupao caiara, como o caso do Parque Estadual da
Pedra Branca, nas franjas do qual o Camorim est localizado, quando os cam-
poneses abrem a mata para, no seio desta, instalar uma roa de subsistncia,
eles derrubam todas as rvores presentes, preservando apenas os indivduos
de um gnero: o da figueira. Aparentemente, reza na tradio camponesa
local alguma forma de sabedoria ancestral, que remete o homem simples,
muitas vezes solitrio e annimo, a um universo de smbolos, que pertencem
ao sujeito coletivo do qual ele membro, e que lhe confere identidade.2
Posto que algumas das espcies da figueira so para ns rvores exticas,
ou seja, que foram trazidas pela ao humana de alguma outra regio geogr-
fica, podemos afirmar, sem medo de errar, que elas chegaram ao Brasil junto
com a cristandade. possvel imaginar, portanto, que os mesmos homens e
mulheres que, provavelmente no sculo XVI (Engemann, 2003, p. 1), ergue-
ram a igreja de So Gonalo do Amarante, instalando casa-grande e senzalas
na regio do Camorim, tenham compartilhado, com a natureza local e seus
tradicionais habitantes, sementes de alguns saberes e plantas, bem como as
suas representaes de profano e sagrado. Aqueles eram seres forjados em
percursos diferentes, que se encontravam em uma terra fecunda, capaz de
germinar outras espcies; aquela era uma famlia de rvores que carregava
um sentido de acolhimento, capaz de fazer convergir em si mesma um con-
junto de imaginrios. dos encontros de contedos humanos, como este,
que nasce o nosso patrimnio cultural e, no caso da figueira, o imaterial se
faz tangvel no seio da natureza.
O curioso que a manuteno exclusivamente das figueiras nos cam-
pos desnudados por descendentes da mestiagem de portugueses e indgenas
2 Agradeo ao professor Rogrio Ribeiro de Oliveira, diretor do Departamento de Geografia da PUC-Rio, pela contribuio no caso da figueira como exemplo de um mito que preserva espcimes animais e vegetais e a leitura crtica deste trabalho, que garantiu o rigor das in-formaes taxionmicas nele contidas. Em trabalho de pesquisa recentemente realizado na floresta do Camorim, a equipe do professor Oliveira catalogou a presena de 15 espcies da famlia Moraceae, da qual o gnero Ficus faz parte, sendo o nico a ser preservado pelos agricultores.
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A marca do sagrado
brasileiros no apenas garante a preservao da espcie, mas tambm de uma
variedade de famlias de pssaros da regio, que se alimentam dos seus frutos,
e da fora do mito que a sustenta, ou seja: do seu poder. Para compreender
esta classe de poder, importa pouco saber se esta prtica se originou em tor-
no de uma figueira exticaou nativa, ou seja, se o mito que alimenta rvore e pssaros da regio l salmos, recita ladainhas, ou dana livre e nu pela flo-
resta. Interessa, sim, descobrir os mecanismos desta permanncia; a natureza
da fora que a retroalimenta ao mesmo tempo em que afasta a indignidade da
fome e do desabrigo.
dessa ordem de questes que se ocupa a ps-modernidade, pois at
mesmo o capitalismo, velho conhecido predador dos homens e da natureza,
em sua sanha devoradora de valores para gerar mais-valia, j se apercebeu
de que em tempos de capitalismo cultural ou bio-capitalismo (Lazzarato, 2001,
p. 91-106) so as nossas paixes, os nossos desejos, a nossa afetividade e a
nossa religiosidade, ou seja, o material impondervel da nossa subjetividade,
o bem mais precioso a ser acumulado. E se disso que advm o lucro e,
conseqentemente, a explorao bem pode ser desse mesmo poder que de-
rivem as nossas melhores oportunidades para a construo de uma insero
econmica e social mais justa e eficiente. Estamos falando das vantagens com-
parativas que podemos e devemos nos reservar por ser parte do nosso
prprio material cultural identitrio o legado cultural a que tivemos acesso
para com ele construir novas relaes de poder e uma identidade cultural
que melhor nos sirva (Castells, 1999, p. 425).
Trabalhando primordialmente nos campos da antropologia e da histria,
os estudos culturais recentes vm tentando entender a natureza dos laos de
lealdade e do sentido de pertencimento que animam as sociedades na entrada
do terceiro milnio o que tem a ver, necessariamente, com religiosidade
em que o paradigma nacional vem sistematicamente perdendo relevncia
e capacidade de promover coeso social. Embora sejamos beneficirios das
contribuies de diversos autores, por estarmos preocupados com os meca-
nismos internos de funcionamento das chamadas redes sociais de solidariedade
intracomunais, interessa-nos, aqui, comentar alguns conceitos oferecidos por
Manuel Castells, quetratou mais diretamente deste assunto. Em O poder da identidade, ele nos fala de trs formas possveis de asso-
ciaes identitrias. A primeira delas se consubstancia sob a forma de uma
identidade legitimadora, cuja origem est ligada s instituies e organizaes da
sociedade civil, pois elas surgiram e se organizaram em torno do Estado de-
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As marcas do homem na floresta
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mocrtico e do contrato social entre capital e trabalho (Castells, 1999, p. 418-420). Dentre elas esto a identidade nacional, os fundamentalismos religiosos ou tnicos e, em grande medida, os partidos polticos e as associaes sindicais. Foram estas as estruturas que, no final do sculo XX, mais perderam a sua capacidade de manter vnculos vivos com os valores das pessoas. Este tipo de identidade, portanto, no tem sido capaz de desenvolver prticas renovadoras em termos dos movimentos sociais mais recentes. Quem sabe pudssemos aqui agregar que parece ter sido ao redor destas identidades, as legitimadoras, que os maiores desastres sociais tm sido produzidos recentemente.
O segundo tipo de associao identitria seria o que o autor chamou de identidade de resistncia, que gerada por agentes sociais que se encontram em posio de excluso, sob discriminao ou que se sentem ameaados (Cas-tells, 1999, p. 420-425). Nesta categoria se enquadram muitas das formas de resistncia atual, desde o movimento feminista at o ambientalismo, pas-sando pelos grupos de resistncia homossexual e movimentos por reforma agrria. O problema aqui se d quando cada uma destas vertentes de mo-bilizao social se fecha sobre a sua prpria rede identitria e, por ignorar os contedos e premissas das outras redes correlatas, ignora tambm a teia maior que vai se formando ao seu redor e que limita a sua prpria capacidade de ao, permitindo refluxos indesejados. Por esta razo, para garantir a sua efetividade, segundo Castells, as identidades de resistncia precisam se transfor-mar, tambm, em identidades de projeto.
Uma identidade de projeto se constri quando os agentes sociais tratam de redefinir a sua prpria posio na sociedade a partir dos legados culturais a que tiveram acesso (Castells, 1999, p. 425-427). Segundo o autor, estes tipos de agentes precisam, necessariamente, ser mobilizadores de smbolos, o que equivale a dizer que, para obter sucesso, eles devem se manifestar por meio da principal corrente cultural para subvert-la em benefcio de valores alternativos. Em outras palavras, h que dar visibilidade aos conte-dos culturais historicamente silenciados, re-significando-os e criando no-vos smbolos que os representem. Alm disso, esta organizao deve, como observou empiricamente Castells, assumir uma estrutura descentralizada e integrada em rede, que ele chamou de redes de mudanas sociais, das quais o movimento ambientalista e o movimento feminista so duas das expresses mais acabadas. Trata-se de evoluir de uma perspectiva subjetivista e centrada no indivduo muito prpria da modernidade para uma viso de mundo solidria e centrada na cultura, o que vem a ser a novidade ps-moderna. Esta a perspectiva que perseguimos.
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A marca do sagrado
O conceito que desejamos explorar identidade cultural tributrio
de todas estas formulaes tericas, que o precedem e que sustentam a sua
concepo. Muito embora ele j tenha sido utilizado, principalmente por
Stuart Hall (2001), que igualmente chegou a ele por caminhos percorridos
por Hobsbawm (2000), Anderson (1991), Giddens (1991), e outros, nossa
concepo de identidade cultural est pautada na observao emprica reali-
zada nos trabalhos que desenvolvemos junto s comunidades carentes desde
1998. O contedo que associamos ao conceito, no entanto, se afasta daquele
que Hall utiliza, na mesma medida em que se distancia das preocupaes com
a questo da nacionalidade e da identidade nacional, centrando sua nfase no
sentido de pertencimento que alimenta as redes sociais de solidariedade, respon-
sveis pela diferena entre pobreza e misria.
Assumindo, com Castells, que toda identidade construo e que toda
construo de identidade implica relaes de poder (Castells, 1999, p. 426),
vale a pena uma reflexo sobre a essncia dos poderes imateriais que residem
naquelas redes e nas suas prticas cotidianas. Nosso desejo o de afastar, de
vez, a arraigada e limitada concepo de poder que carregamos por razes
histricas e culturais que se apresenta ligada s idias de constrangimento,
aliciamento, manipulao, coero e, em ltima instncia, violncia. No pla-
no religioso, a concepo de poder tem, muitas vezes, sido manipulada como
primitivo, atrasado, profano, ignorante ou no limite satnico. Estamos
convencidos de que o poder que fomenta e alimenta as identidades culturais
emana da memria do sujeito coletivo desta identidade e provm de saberes
compartilhados pelos seus indivduos, cuja natureza intangvel, qual seja: o
seu patrimnio cultural imaterial, do qual o sagrado o elemento central e
fundador.
O problema que, muitas vezes em um mesmo patrimnio cultural
imaterial, conflui um conjunto de significados provenientes de muitas identi-
dades culturais que, embora compartilhem um mesmo smbolo e sua essn-
cia, utilizam prticas de reafirmao do mito diferenciadas, como o caso da
figueira est nos ajudando a exemplificar.
Na tradio afrodescendente brasileira por sua vez uma confluncia de
pelo menos quatro tradies ancestrais africanas a figueira ocupa o lugar de
uma espcie africana a Clorophora excelsa dificilmente encontrvel no Brasil,
para representar um deus-rvore: o Iroco (Martins & Marinho, 2002, p. 34).
Por se tratar de um orix materializado sob a forma de rvore, a figuei-
ra, ou seja, o Iroco, cultuadacom devoo pelos seus protegidos e no pode
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As marcas do homem na floresta
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deixar de estar presente, assim como os demais orixs, nos terreiros gge-io-
rubanos. Conta uma histria3 que, certa vez, estando um terreiro de Pernam-
buco ameaado de invaso e destruio, todos os instrumentos rituais sagrados
foram colocados no interior do Iroco, em uma cavidade que se abriu no tronco
daquela rvore para receb-los e se fechou para preserv-los at que os perigos
passassem. Mais uma vez aparece a figueira desta vez como uma divindade
negra para cumprir o seu destino de proteo e auxlio: os contedos nela
igualmente depositados pelas tradies caiara e europia moderna.
No fica difcil entender, portanto, que, no Camorim rea de antigos
quilombos muitas vezes apaream ofertas rituais colocadas aos ps do Iroco
a figueira, que l ocorre com oito espcies ou, algumas vezes, a gameleira
branca (Ficus gomeleira) ou a mangueira (Mangifera indica) para nos fazer
lembrar dos muitos contedos culturais que convergem na figueira ou em
uma comunidade. No entanto, os elementos que fazem a fortaleza do mito,
bem como do sujeito coletivo a identidade cultural podem tambm estar
na gnese das suas fragilidades, na medida em que, no processo de negocia-
o de poder para a construo da comunidade, o sujeito coletivo venha a se
estilhaar em lutas, entre os indivduos que o compem, pelo controle dos
benefcios que dele emanam. Talvez fosse til lembrar, mais uma vez ajudados
pela figueira, que, se a ela no estivesse associado o mito independente de
seus contedos, origem e prticas no restaria um nico indivduo da sua
espcie que fosse capaz de resistir fome dos camponeses locais, como a
norma para todas as outras espcies vegetais da regio.
Durante os meses em que estivemos regularmente visitando o Camo-
rim para desenvolver com a comunidade o trabalho de resgate do seu patri-
mnio imaterial, sua revalorizao no interior da prpria comunidade e sua
re-significao extracomunitria, ficou claro para ns que o empoderamento
(empowerment) pode servir, com sucesso, s comunidades no re-conhecimento
das suas principais vocaes. O que se busca conhecer as redes sociais de soli-
dariedade para, a partir delas, apoiar a construo de identidades de projeto que
ofeream uma insero socioeconmica mais justa e que garantam o efetivo
exerccio da cidadania. Porm, esta construo de identidade cultural, ao
tocar o intangvel, desprende o poder que normalmente fica represado pelas
formas tradicionais de identidades legitimadoras, fazendo emergir no seio da
comunidade antigos contedos de medos e o seu corolrio: o dio.
3 Agradeo ao babalorix Manoel Papai, do Terreiro dos Xangs de Recife, a contribuio desta
histria sobre o poder do Iroco.
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19
A marca do sagrado
Nossa recente experincia junto s comunidades carentes da cidade do
Rio de Janeiro, da qual o Camorim faz parte, permite a ns identificar pelo
menos quatro formas tradicionais de associaes identitrias que funcionam
sistematicamente no interior dessas comunidades:
Redes familiares;
Redes religiosas;
Redes geogrficas (vizinhana); e
Redes de interesses compartilhados.
Cada uma destas formas de associao identitria possui uma lgica pr-
pria de integrao entre os seus membros e um cdigo de conduta uma
tica ou conjunto de prticas de confisso que garante a sua fortaleza como
sujeito coletivo, legitima cada um dos seus membros e define os limites dessa
identidade, definindo tambm os seus no-membros, ou seja, os seus exclu-
dos.4 Cada um desses sentidos de pertencimento responde por aspectos par-
ticulares da re-existncia material, emocional e espiritual dos seus membros.
O ncleo duro do poder que emana dessas formas de identidades legitimadoras
tem a ver com o sentido de pertencimento que elas oferecem e se apresenta
sob a forma de aceitao, solidariedade e lealdade definitivamente, con-
ceitos ligados ao sagrado. No interior de cada uma dessas formas de existir
na comunidade, a capacidade de resistir dos seus indivduos ser tanto maior
quanto mais estruturados estiverem os cdigos ticos daquela rede, indepen-
dente do valor dos seus contedos.
As redes familiares so as principais responsveis pelas prticas de prote-
o fsica e de sobrevivncia material. As redes religiosas respondem primor-
dialmente por legitimidade e oportunidades sociais extrafamiliares. As redes
geogrficas, ou de vizinhana, esto ligadas aos limites fsicos que definem
inseres socioeconmicas e percepes polticas. Por ltimo, as redes de
interesses compartilhados respondem pela sobrevivncia de valores ticos,
estticos, educacionais e comportamentais, que excedem as esferas da fam-
lia, das igrejas e das associaes de corte geogrfico.
Muito embora seja dessas redes que emanem incontestveis fortalezas
sociais, a sustentar as redes sociais de solidariedade que nos importa conhecer,
delas tambm que derivam as mais dolorosas fragilidades que propiciam o
4 Vale lembrar que no estamos aqui tratando da categoria excludos com a qual vm operando
as cincias sociais brasileiras a partir de um imaginrio francfilo.
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As marcas do homem na floresta
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exerccio de prticas cotidianas de violncia mtua, um substrato tico que
d suporte violncia maior a que todos estamos submetidos na atualidade.
Assim como o ncleo duro do poder das identidades legitimadoras tem
a ver com o sentido de pertencimento, o cerne dessas formas cotidianas de
enfraquecimento mtuo justamente o no-pertencimento que essas mesmas
identidades constroem ao seu redor por meio de disputas de poder e de pre-
conceitos de toda sorte.
No nosso entender, trabalhar com a idia de empoderamento das comuni-
dades carentes, na esperana de criar condies para uma insero mais justa
no capitalismo cultural, significa encontrar as estreitas passagens deixadas pelas
prticas sistemticas do preconceito e das disputas de poder para, por meio
delas, fazer avanar a construo de identidades culturais poderosas e trans-
formadoras. Trata-se de fazer convergir em algum smbolo escolhido pela
prpria comunidade como o caso da figueira os contedos e as prticas
de incontveis identidades para alm dos seus conflitos de tal maneira
a construir um sujeito coletivo capaz de ser senhor da sua prpria histria.
Voltemos floresta para buscar a essncia deste smbolo.
O culto a certos elementos da natureza tem a ver com a busca humana
pela aproximao do espao do divino, o local do desfrute da paz, da felicida-
de, da saciedade e da plenitude (Sullivan & Eliade, 2003, p. 166).
A existncia de centros sagrados permite o estabelecimento de um sistema
mundano, um corpo de realidades imaginadas que se relacionam entre si: duas
realidades sagradas; um axis mundi [eixo do mundo] (rvore, montanha, escada,
parreira ou coluna) que simboliza a comunicao entre duas regies csmicas; e
a extenso de um mundo organizado e habitvel que existe em torno do centro
(Sullivan & Eliade, 2003, p. 166). [Traduo nossa]
a sacralidade do objeto de devoo que se cultua, e no a sua imann-
cia a forma que ele assume no mundo. No caso da figueira, como vimos, o
sagrado o acolhimento, a proteo e o pertencimento que ela oferece aos
herdeiros dos legados de todas as tradies culturais presentes no Camorim.
Os rituais de devoo a qualquer rvore sagrada tm a ver com a demar-
cao do espao de Deus no mundo: o espao do sagrado. A diferenciao dos
espaos e tempos entre sagrados ou profanos o que nos ajuda a construir a
idia de cosmo, em oposio ao caos da homogeneidade. Sobre este assunto
Eliade nos ensina que:
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21
A marca do sagrado
Para o homem religioso o espao no homogneo, ele apresenta rupturas, cises:
h pores do espao qualitativamente diferentes das outras: No te aproximes
daqui disse o Senhor a Moiss tire os sapatos dos ps, pois o lugar onde
ests uma terra santa. (xodo 3,5) H, sempre, um espao sagrado e, por
conseguinte, forte, significativo, e h outros espaos no consagrados e, por
conseguinte, sem estrutura nem consistncia, em uma palavra: amorfos (...) a
experincia religiosa da no-homogeneidade do espao constitui uma experi-
ncia primordial, equivalente fundao do mundo (...) esta ruptura o que
descobre o ponto fixo, o eixo central de toda orientao futura (Eliade, 1998,
p. 21). [Traduo nossa]
Demarcar um espao sagrado por meio de alguma forma cultual natu-
reza construir a idia de uma passagem para a aproximao a Deus, e tem
o mesmo valor simblico que a construo de um templo. Falar de espciessagradasna floresta transportar para l a sacralidade do templo, da casa e da comunidade.
Como reflexo final, vale a pena lembrar que, com mos, machado, en-
xada, fogo e fumaa como mostra este livro provocou-se e se provoca
a fragilidade da natureza sobrevivente do Parque Estadual da Pedra Branca.
O curioso que, com o transcorrer da histria, quanto mais sutil e voltil foi
o seu agente predador, tanto mais devastador e irremedivel ele se mostrou.
Entre outras coisas, este livro permite aprender que algo to imperceptvel
quanto a fumaa pode ser portador de elementos pesados que destruam mais
que os toscos instrumentos de homens mais primitivos. E o que se observa na
natureza, via de regra, vale para a vida no interior da comunidade humana.
Quem sabe seja hora de re-sacralizar o mundo a partir dos espaos da
casa, da vizinhana e da comunidade. Quem sabe seja j o tempo de conhecer
os elementos pesados das nossas relaes, que provocam as nossas fragilidades,
para nos livrarmos definitivamente deles. Quem sabe seja agora a hora de
cultuar a solidariedade da figueira, seu poder de receber as muitas verdades
que habitam a floresta e o mundo, sua capacidade de acolher as diferenas
mundanas a partir do reconhecimento da sua unidade sagrada.
Quem sabe seja tempo de marcar os nossos espaos no mundo a partir
do que nos sagrado.
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As marcas do homem na floresta
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23
Poucos ecossistemas no Brasil apresentam uma situao de diversidade seme-lhante que ocorre na extensa formao costeira brasileira conhecida como
mata atlntica, onde a paisagem apresenta-se multifragmentada e profusa-
mente variada ao longo do litoral. Esse mosaico de florestas pluviais, pla-
ncies e montanhas costeiras, denominado em conjunto de mata atlntica,
ocupa principalmente a vertente atlntica das serranias.
No trecho da regio Sudeste, a fachada atlntica comporta uma varieda-
de de bitopos que, se por um lado apresentam similaridades geoecolgicas
entre si, por outro levam a particularidades ditadas por diferentes condies
de evoluo tanto na escala geolgica quanto em natureza e intensidade
das intervenes antrpicas. A ancianidade da mata atlntica um fator rele-
vante e presente em todas as suas manifestaes, quer biticas ou abiticas.
Segundo Leito-Filho (1987), a floresta atlntica a formao florestal mais
antiga do Brasil, sendo que a maioria das famlias de angiospermas modernas
estabeleceram-se na era Mesozica, no final do perodo Cretceo h cerca
de 70 milhes de anos (Salgado-Laboriau, 1994). As particularidades de sua
formao geolgica esto ligadas ao fato de que a mata atlntica reveste uma
ampla faixa de domnios estruturais e geolgicos, abarcando distintas formas
geomorfolgicas. Apesar da ocorrncia de solos muito distintos, uma carac-
terstica comum maioria dos mesmos a sua baixa fertilidade.
Somando-se a este fator, h o fato de que a megadiversidade caracters-
tica da mata atlntica influenciada pela variedade de bitopos: sua altitude
varia do nvel do mar a quase trs mil metros, apresentando encostas voltadas
para diferentes quadrantes geogrficos. A variabilidade de climas deste bioma
tambm intensa, seja na dimenso horizontal (alteraes ligadas amplitu-
de latitudinal), como na vertical (os gradientes altitudinais e fitofisionmicos
que a compem).
IntroduoOs cenrios da paisagem
Rogrio Ribeiro de Oliveira1
1 Professor do Departamento de Geografia da PUC-Rio: Rua Marqus de So Vicente, 225,
CEP 22 453-900, Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].
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As marcas do homem na floresta
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Toda esta variabilidade no quadro fsico forma a base para o estabeleci-
mento de ecossistemas extremamente diversos no que se refere sua bioce-
nose. Em qualquer escala em que se estude a mata atlntica, impem-se as ele-
vadas diversidades genticas de espcies, ecossistemas e da prpria paisagem.
De acordo com Joly et al. (1991), esta diversidade atinge o mximo na regio
Sudeste, decrescendo em direo ao Sul. Fato extremamente relevante para a
compreenso da riqueza deste bioma o seu alto ndice de endemismos. Entre
as rvores, mais da metade das espcies exclusiva deste ecossistema. No caso
de plantas herbceas, especialmente em relao s epfitas, este percentual
ainda muito maior. Para palmeiras e bromlias, de cada trs espcies, duas so
endmicas (Mori et al. 1981; Peixoto, 1992; Joly et al., 1991).
Em contraste com essa diversidade e exuberncia, importante levar
em considerao que mais de 70% da populao brasileira vivem no terri-
trio da mata atlntica. Alm de abrigar a maioria das cidades e regies me-
tropolitanas do pas, a rea originalmente coberta pela floresta sedia tambm
os grandes plos industriais, petroleiros e porturios do Brasil, respondendo
por mais de 80% do PIB nacional. No quadro das resultantes ambientais des-
se processo, um campo amplo de estudos o da transformao da paisagem
pela ao do homem. A paisagem atual da mata atlntica constitui um sistema
extremamente complexo, em que processos evolutivos chegaram ao presen-
te evidenciando como caracterstica uma marcada interao com a presena
humana, que alteraria para sempre seus funcionamento, estrutura e espa-
cializao. Seja qual for o recorte histrico os grupamentos de coletores-
caadores do litoral de cinco mil anos atrs; os aldeamentos indgenas que os
sucederam; as populaes tradicionais j mestiadas com o branco (caiaras,
etc.), ou os ciclos econmicos que tiveram a mata atlntica como palco, a
caracterstica principal sempre foi a substituio da paisagem natural pela
cultural. Mais recentemente, somou-se a estes a grande expanso dos cen-
tros urbanos e industriais, que acrescentou novos agentes dinmica desta
formao, como deposio de poluentes, uso intensivo de encostas, turismo
descontrolado, etc. Assim, a dimenso da presena humana na mata atlntica,
em quaisquer escalas ou recortes de tempo, parece ser um fato marcante e
constitui um processo interativo, cuja caracterstica principal apresentar
suas gnese e atuais manifestaes ligadas ao passado.
Estendendo-se nos entornos de trs macios litorneos de expresso
Pedra Branca, Mendanha e Tijuca a cidade do Rio de Janeiro apresenta
especificidades ditadas justamente por esta vizinhana. A interao desses sis-
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Os cenrios da paisagem
temas de natureza to opostos a cidade e a montanha leva ao estabeleci-
mento de uma rede de trocas entre ambos que colabora para a construo de
uma realidade geoecolgica mpar.
Numerosos aspectos fitofisionmicos contribuem para uma constitui-
o estrutural em que elementos naturais e antrpicos intervm em graus
diversos. A paisagem assim formada guarda caractersticas muito distintas.
Apesar da relativa proximidade, os sistemas montanhosos da Pedra Branca
e da Tijuca guardam dessemelhanas entre si geradas por condicionantes ge-
olgicos, geomorfolgicos, vegetacionais e por sua histria ambiental. Por
outro lado, dispe-se, sobre o macio da Pedra Branca, de um conjunto de
conhecimentos cientficos muito reduzido se comparado ao macio da Tijuca.
Esta situao ainda mais inquietante quando se considera ser a zona oeste o
plo de crescimento da cidade do Rio de Janeiro.
A ocupao da regio iniciou-se, como em boa parte do litoral sudes-
te, h mais de trs mil anos, com bandos de coletores-caadores que for-
maram vrios sambaquis (montes de conchas e restos orgnicos) na baixada
de Jacarepagu. A economia desses grupos era bastante diversificada, com
predomnio da pesca e coleta de moluscos. Apesar da dependncia dos recur-
sos litorneos, existem evidncias de que essas populaes subsidiavam seu
abastecimento com a caa na encosta do macio da Pedra Branca. Machados
de pedra encontrados na floresta atestam essa possibilidade (figura 1). Essa
cultura perdurou at o contato com o Tupi-guarani, em quase todo o litoral.
Figura 1 Artefatos lticos encontrados nas encostas florestadas do macio da Pedra
Branca.
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As marcas do homem na floresta
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Em termos de transformao da paisagem, a ocupao acelerada deu-se
no sculo XVII, com a instalao de um importante engenho nas terras da
sesmaria de Correia de S, legadas ao mosteiro de So Bento em 1667 por
d. Vitria de S. Essas propriedades foram administradas, at fins do sculo
XIX, pelos beneditinos, que criariam ali trs prsperas fazendas: as proprie-
dades de Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena, onde havia intensa
atividade agropecuria. Posteriormente, essas terras foram hipotecadas ao
Banco de Crdito Mvel. Com o crescimento da cidade, algumas modalida-
des de proteo ambiental foram estabelecidas, como as Florestas Protetoras
da Unio. A partir de 1920, o banco comeou a venda, aos lavradores, de
lotes que foram transformados em stios de destinao diversa, de acordo
com sua localizao. Na vargem, a mata do brejo serviu a indstrias de cestos
e tamancos. Nas encostas, a explorao das capoeiras para lenha e carvo teve
grande importncia para o abastecimento dos foges domsticos do Rio de
Janeiro at 1940.
Em termos de cultivos, extensos bananais recobrem at hoje os flancos
at altitudes superiores a 400 m. Espalhada em numerosos pontos do macio,
existia a lavoura branca (chuchu, milho, aipim, batata-doce, jil, maxixe, ab-
bora), feita no sistema derrubada-pousio (Galvo, 1957). Com a urbanizao
crescente do Rio de Janeiro, e com a criao, em 1974, do Parque Estadual da
Pedra Branca, estas foram praticamente extintas na vertente sul do macio e,
com o tempo, a sucesso ecolgica promoveu a cicatrizao dessas clareiras. A
explorao econmica da encosta do macio da Pedra Branca migrou das roas
de subsistncia para os bananais. Esses mantiveram-se em vastas reas, tendo os
agricultores remanescentes se adaptado nova ordem ambiental: as queimadas
foram eliminadas e o cultivo da banana assumiu um carter semiclandestino,
baseando a sua explorao mais no extrativismo do que no manejo da cultura.
Por no utilizar o fogo, essa forma de explorao se adaptou melhor s res-
tries sobre o uso da terra impostas pelo Parque Estadual da Pedra Branca.
Essa unidade de conservao tem a extenso de 12.398 ha (o que representa
16% do territrio do municpio do Rio de Janeiro), abrangendo vrios bairros,
como Campo Grande, Bangu, Realengo, Jacarepagu, Barra da Tijuca, Recreio
dos Bandeirantes e Guaratiba. Seu limite oficial a cota de 100 m, englobando,
assim, cerca de 70% do macio (Costa, 2002).
O macio da Pedra Branca vive atualmente um acelerado processo de
desenvolvimento das atividades urbanas em seu entorno e de expanso da
degradao do ecossistema florestal. O crescimento da malha urbana, o des-
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Os cenrios da paisagem
matamento e a expanso das atividades agrcolas em suas encostas impri-
mem hoje, na paisagem, grandes modificaes no arranjo espacial de seus
elementos; e definem, assim, sua nova paisagem. Por ser rea de expanso
urbana, ou seja, onde o crescimento dos ncleos de ocupao esto ainda se
processando, o macio da Pedra Branca guarda, no seu espao, traos de um
conflito rural-urbano. Dessa forma, encontra-se ainda uma atmosfera rural
em meio crescente paisagem urbana que se constri com suas contradies
sociais (Freitas, 2003). As propaladas vantagens da implantao de projetos
de desenvolvimento do ecoturismo ainda no encontraram condies prop-
cias, em funo da desarticulao de polticas nesse sentido.
Dados do Instituto Municipal de Planejamento (Iplan) do, para os bair-
ros localizados em seu sop, elevadas taxas de crescimento populacional ao
longo das dcadas de 1990 e 2000. Este se deu pelo crescimento da chama-
da cidade informal, com a proliferao de favelas e loteamentos irregulares,
avanando pela mata atlntica do Parque Estadual da Pedra Branca. Como
uma resultante desse processo, cresceram exponencialmente problemas li-
gados ao saneamento bsico. A presena do Parque Estadual da Pedra Branca
no suficiente para impedir o avano seja por favelas ou residncias de
luxo sobre as encostas da mata atlntica do macio.
Muito possivelmente, dentre as matas que compem o macio da Pedra
Branca, a floresta do Camorim local de realizao da maioria dos estudos
deste livro seja a que se apresenta mais bem conservada. Isto se deve ao
combinada de diversos fatores ambientais, como a baixa presso de visita-
o, gradientes altitudinais, orientao de encostas e proximidade do litoral.
Localizada na bacia do rio Camorim, com 1.200 ha, esta apresenta um pe-
rmetro de 17 km e tem como principais tributrios os rios So Gonalo do
Amarante e Caambe.
Em seu interior encontram-se a serra do Nogueira e a Pedra da Rosilha,
com 648 m e 480 m, respectivamente. A represa do Camorim, um lago artifi-
cial construdo na dcada de 1930, uma das suas atraes, situada a 436 m de
altitude. Um dos pontos de destaque na serra do Nogueira o Pico do Itaiaci,
com 588 m. A principal caracterstica desta elevao como tambm de vas-
tas reas no macio da Pedra Branca - a ocorrncia de um tipo particular de
floresta localizada sobre solos extremamente rasos (de 30 cm a 40 cm de pro-
fundidade) e com grande teor de matria orgnica (Oliveira & Costa, 1985).
Em termos fisiogrficos, o macio da Pedra Branca faz parte do conjun-
to de macios litorneos que compem o relevo da cidade do Rio de Janei-
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As marcas do homem na floresta
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ro. Apresenta-se com altitude moderada (1.025 m no Pico da Pedra Branca,
ponto culminante do municpio) e vertentes escarpadas, apesar de apresentar
feies de relevo menos dissecadas, comparativamente ao macio da Tijuca
(Costa, 2002).
A geologia da regio da bacia do rio Camorim caracterizada, nas
partes mais baixas, pela presena de ampla faixa de gnaisse melanocrtico,
enquanto, nas mais elevadas, por granitos de diversos tipos. No entanto, a
presena desses granitos conspcua nos trechos de baixa encosta e fundos
de vales, sob a forma de mataces oriundos de desabamentos ocorridos em
pocas diversas. Esta litologia, juntamente com o clima regional, gera os se-
guintes solos na regio do Camorim: os latossolos, nas encostas mais elevadas
do macio, que so solos rasos e aparecem associados a cambissolos, solos
litlicos e podzlicos, estes recobrindo principalmente as vertentes mais su-
aves e de menor altitude.
O balano hdrico do bairro do Camorim foi estabelecido a partir dos
dados da estao meteorolgica mais prxima (autdromo de Jacarepagu).
O tipo climtico submido, com pouco ou nenhum dficit de gua, mega-
trmico, com calor uniformemente distribudo por todo o ano. A baixada de
Jacarepagu, segundo a classificao de Kppen, acha-se includa no tipo Af, ou
seja, clima tropical quente e mido, sem estao seca, com 60 mm de chuvas
no ms mais seco, no caso, agosto. A regio, com pluviosidade de 1.215 mm
anuais, apresenta uma retirada de gua do solo igual reposio (35 mm).
As matas que revestem o grande anfiteatro montanhoso do Camorim fa-
zem parte da floresta ombrfila densa submontana e montana (Velloso et al.,
1991), apresentando-se em diferentes estgios de conservao. A resultante
ambiental do intenso processo histrico de ocupao por agricultura de sub-
sistncia uma profuso de florestas secundrias formadas pela multiplici-
dade de antigas roas abandonadas em diferentes tempos. Esta caracterstica
parece ser a principal responsvel pela fragmentao estrutural da paisagem
florestada. A esse processo de incremento e recomposio do tecido flores-
tal interpem-se os incndios florestais, que destroem periodicamente faixas
considerveis da mata atlntica. Esses distrbios vm contribuindo para a
destruio paulatina do patrimnio biolgico. Com relao flora ameaada
de extino, as seguintes espcies, presentes na lista florstica do Camorim,
fazem parte da lista oficial de espcies da flora brasileira ameaada de extin-
o: Heliconia angusta, H. farinosa, Dalbergia nigra, Cariniana ianeirensis, Dors-
tenia ramosa e D. arifolia (Ibama, 1992). Na relao de espcies ameaadas
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29
Os cenrios da paisagem
de extino no municpio do Rio de Janeiro (Secretaria Municipal de Meio
Ambiente, 2000) constam diversas espcies vulnerveis e criticamente em
perigo. Mais vulnervel ainda a situao da fauna (especialmente mamferos
e aves) no macio da Pedra Branca. A cultura de caa por parte de seus mora-
dores faz com que muitas espcies, especialmente os mamferos, encontrem-
se no limiar da extino local, principalmente na regio perifrica da floresta.
No entanto, a bacia hidrogrfica do rio Camorim apresenta locais que
podem ser considerados como verdadeiros relictos florestais, descritos a seguir.
Bacia do rio So Gonalo do Amarante
Esta bacia hidrogrfica revestida por uma floresta com um grande po-
tencial em termos de conservao. Apesar desta ser ainda muito mal conhe-
cida do ponto de vista botnico, os poucos dados disponveis so promissores.
Em primeiro lugar, h que se destacar aspectos de ordem estrutural. De uma
maneira geral, o estrato arbreo da bacia do rio So Gonalo do Amarante
apresenta altura elevada, percebendo-se claramente um dossel contnuo, ca-
racterizado por espcies de tamanhos desiguais. Em alguns casos, possvel
encontrar indivduos emergentes de grande porte, como o caso de um
jequitib (Cariniana legalis) de cerca de 45 m de altura.
Como inexistem atrativos como cachoeiras ou lagos, a visitao redu-
zida, o que contribui para que esta bacia apresente um dos melhores trechos
florestados do municpio do Rio de Janeiro. Um outro fator que concorre
para conservao da floresta a orientao da encosta que, no caso, voltada
para o sul. Esta orientao tambm promove a conservao da umidade no
interior da floresta, o que contribui para impedir a propagao de incndios.
Em termos de ocupao espacial e dominncia, a espcie que mais cha-
ma ateno a sucanga (Senefeldera multiflora). Ela dominante na floresta,
sendo tambm possvel encontr-la em todos os estgios desde indivduos
adultos at plntulas de 0,5 m de altura ocorrendo de forma onipresente
em toda esta bacia. Um padro de comportamento oposto a este pode ser
encontrado em Almeidea rubra, um arbusto que forma comunidades de ocor-
rncia extremamente pontual.
Em relao s espcies de valor econmico ou etnobotnico, podem ser
identificadas vrias madeiras de primeira qualidade, como a bicuba (Virola
oleifera) e o jacarand (Dalbergia nigra), assim como canelas de diversas esp-
cies do gnero Ocotea, alm do cedro (Cedrela fissilis), da peroba (Aspidosperma
melanocalix) e do louro-pardo (Cordia trichotoma). Outra tambm de grande
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As marcas do homem na floresta
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valor o jatob (Hymaenaea courbaril), que, alm da madeira de lei, fornece,
a partir de sua seiva, o vinho de jatob, um fortificante. Alm disso, a casca
tambm utilizada na medicina popular. De utilizao menos nobre, mas nem
por isso menos procurado, o pau-pereira (Geissospermum vellosoi), cuja casca
utilizada para condimentar a cachaa.
Pico do Itaiaci
Na mata atlntica, as classes de solo podem variar substancialmente a
intervalos de poucos metros. Solos rasos podem ocorrer ao lado de aflora-
mentos de rochas; e solos profundos, assim como solos frteis, podem estar
associados a solos pobres em nutrientes. No entanto, relativamente co-
mum, no macio da Pedra Branca, a existncia de encostas ngremes por
vezes com declives superiores a 45o revestidas por floresta densa mas com
caractersticas estruturais e de composio prprias, como por exemplo na
vertente sul do Pico Itaiaci, com cerca de 40o de declividade. Informaes de
antigos moradores atestam para este trecho a inexistncia de incndios ou da
prtica de agricultura de subsistncia e fortalecem a hiptese de se tratar de
uma floresta em excelente estado de preservao, configurando-se, portanto,
como um clmax local.
Possivelmente em funo das caractersticas edficas, a vegetao
apresenta um aspecto geral escleromrfico, sendo constituda por numero-
sas espcies helifilas, algumas tpicas de restingas, como o cacto Opuntia
brasiliensis e o gravat Bromelia antiacantha. No estrato arbreo, as espcies
mais caractersticas so Casearia sylvestris (guaatonga), Alseis floribunda, Rapa-
nea umbellata (capororoca), Myrcia rostrata (vassourinha), Hymenaea courbaril
var. altissima (jatob), Swartzia simplex var. grandiflora (laranjinha-do-mato),
Ficus enormis (figueira-da-pedra), Salacia elliptica, Guapira opposita (maria-
preta), Luehea divaricata (aoita-cavalo) e Roupala brasiliensis (carne-de-vaca).
As espcies emergentes so constitudas por Pradosia kulmanii (casca-doce),
Cryptocarya saligna e Attalea dubia (coco-indai). Em funo do raleamento
do dossel, o sub-bosque bastante denso e representado por Ceiba erian-
thus, Actinostemum communis, Sorocea guilleminiana (espinheira-santa, como
equivocadamente conhecida na regio), Erythroxylum pulchrum (arco-de-pi-
pa), Amphirrhox longifolia, Allophylus sericeus, Maytenus comunis, Cordia tricho-
clada e Opuntia brasiliensis (Firme et al., 2001). Nas proximidades das zonas
de cumeada, e em locais de solo ainda mais raso, o estrato herbceo todo
formado por comunidades de bromeliceas, como Neoregelia cruenta, Bromelia
-
31
Os cenrios da paisagem
antiacantha e Vriesea amestisthina. Esta espcie foi descoberta e descrita em
1870 por Glaziou, que depositou uma amostra no herbrio de Paris. Desde
ento, nunca mais esta espcie foi reencontrada na natureza, tendo sido dada
por extinta. Recentemente, a mesma foi redescoberta nesta rea em uma
populao muito reduzida, em funo de um incndio florestal que ocorreu
em agosto de 2000.
Floresta do prtico do Camorim
O prtico do Camorim do Parque Estadual da Pedra Branca est lo-
calizado no entorno da captao de guas do rio Camorim, construo que
data do incio do sculo passado. formado por um conjunto de construes
visando o represamento de suas guas: canalizao aberta, escada para areja-
mento e tanques de decantao e unidades de filtrao e clorao. Destaca-se
nessa rea a cachoeira Vu da Noiva, de grande beleza cnica. A floresta em
questo estende-se a montante dos tanques de decantao de gua e do Vu
de Noiva, em uma rea de aproximadamente 50 ha. Embora tecnicamente
esse trecho possa ser classificado como floresta climxica, tanto quanto a
formao anterior (a floresta do Pico do Itaiaci), desta se distingue pelos
atributos fisionmico-estruturais. Enquanto a floresta que reveste o Pico do
Itaiaci, por se tratar de formao sobre solos rasos, pouco densa e de porte
reduzido, a floresta do prtico do Camorim se diferencia por ser constituda
de rvores de grande porte. Sem dvida, trata-se de destacado patrimnio
ecolgico do Parque Estadual da Pedra Branca e de grande importncia no
contexto da conservao ambiental do municpio do Rio de Janeiro.
Os dados disponveis sobre a composio da mata atlntica nesta rea
so muito reduzidos, mas ainda assim suficientes para se ter uma noo do
potencial de biodiversidade da rea, em funo da presena em grande n-
mero de espcies tpicas de florestas conservadas. Dentre estas, destacam-se
gneros e espcies pertencentes s famlias Lauraceae, Myrtaceae e Apocy-
naceae. Somente para esta ltima, foram encontradas 12 espcies em apenas
0,1 ha (Peixoto e Oliveira, dados no publicados). Entre estas, destacam-
se Micropholis crassipedicellata, Chrysophyllum lucentifolium e Pradosia kuhlmanii,
consideradas indicadoras de florestas maduras. A carga de epfitos grande
e muito diversificada, o que tambm caracteriza florestas em estgio clim-
xico. De uma maneira geral, o aspecto que mais chama a ateno neste local
a estrutura da floresta, que se caracteriza por exemplares de grande porte,
tanto na altura como na espessura de caules, o que reflete a sua condio
-
As marcas do homem na floresta
32
prstina.
No que se refere aos flancos de deteriorizao da rea do prtico do
Camorim, o elemento de maior peso o gradual avano do capim colonio
(Panicum maximum), que aqui entra proveniente de pastagens vizinhas. J de
longa data fcil perceber que a existncia de pastagens de modo geral
clandestinas e com baixa produtividade de carne e leite apresenta-se asso-
ciada ocorrncia de incndios anuais. No intento de se conseguir pasto mais
verde no perodo da seca, os proprietrios do gado ateiam fogo pastagem, o
que resulta em gradual avano da mesma sobre as reas florestadas.
Estes trs trechos de mata atlntica constituem os mais bem conservados
de toda a bacia do Camorim, configurando-se, portanto, como formaes
climxicas. Por razes histricas diversas, foram preservados da destruio,
sendo muito possvel que o fato de se localizarem em terrenos ngremes e
distantes da baixada tenha sido objeto de menor procura para explorao. Sua
rea total de cerca de 200 ha, o que perfaz 28% de toda a bacia. Os demais
72%, alm do uso antrpico direto, so constitudos de florestas secundrias,
em vrios estgios de regenerao. As causas dessa descaracterizao de sua
condio prstina e de sua histria ambiental, e as resultantes ecolgicas desse
processo, sero vistas ao longo dos captulos que se seguem.
AgradecimentosA Luci P. Hack e Edson Fialho pela elaborao do balano hdrico e a Pe-
dro Paulo Lima-e-Silva e Mirtes Cavalcanti Musitano pela reviso do original.
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Captulo IO espao marcado
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37
Sou um gegrafo e meu trabalho repousa quase que exclusivamente numa
grande tradio: (...) a de dar sentido natureza falava-nos Stoddart em
sua obra On Geography and its History, de 1986. E esta nossa tarefa no con-
junto de captulos que compem esta obra: pensar uma floresta do ponto de
vista de sua importncia econmica e social, mas, principalmente, dar-lhe
significado histrico. Em outras palavras, falar de sua geografia a partir de sua
histria ambiental. E, neste captulo, pretendemos dar subsdios compreen-
so do que chamaremos, ao longo da obra, de histria ambiental.
No quadro atual de transformaes vividas pela geografia, a anlise da
organizao espacial tem se dado, cada vez mais, por meio de uma prtica
interdisciplinar, despertando novo interesse no estudo das relaes entre na-
tureza, cultura, sociedade e meio ambiente.
certo que tal relao sempre foi objeto de investigao de diversos
ramos do saber, desde a antigidade. No entanto, este tema encontra agora
dois novos caminhos que interessam de perto geografia. O primeiro aque-
le proposto pela histria ambiental, uma disciplina recente que considera a
natureza um agente na histria do homem. Este ramo da histria trabalha
em trs diferentes nveis: o entendimento da natureza propriamente dita; a
anlise do domnio socioeconmico; e a apreenso de percepes, valores
ticos, leis, mitos e outras estruturas de significao que ligam um indivduo
ou um grupo natureza, incluindo, conseqentemente, a questo da cultura.
O segundo caminho o proposto pela geografia cultural, apoiado naqui-
lo que a geografia h muito postula a cultura vista como a resposta humana
ao que a natureza nos oferece como base fsica. Se tais idias parecem atrela-
das a uma geografia cultural do passado, est ligada tambm nova geografia
cultural, preocupada com a influncia da cultura na organizao espacial.
Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes
Ins Aguiar de Freitas1
1 Professora do Departamento de Geografia da UERJ Rua So Francisco Xavier, 524, Rio
de Janeiro - RJ, CEP 20550-013.
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As marcas do homem na floresta
38
Temos, assim, nos dedicado a estudos em histria ambiental, principal-
mente na busca de uma interface dessa disciplina com a geografia. Inclui-se
nesses estudos o tema das relaes entre natureza e cultura e de como tais
relaes influenciam a ao dos homens sobre o meio ambiente.
Por isso, sentimo-nos vontade para tratar aqui das bases terico-con-
ceituais da histria ambiental e da questo de sua interdisciplinaridade fator
que permite um rico e intenso dilogo com a geografia (seja ela fsica ou
humana)2. Ao mesmo tempo, gostaramos de destacar que uma situao de
novidade que caracteriza a abordagem do tema para ns, gegrafos, de ma-
neira geral, no tem impedido que esses primeiros passos venham a pblico,
mesmo que ainda no existam estudos mais aprofundados ligando a histria
ambiental geografia.
Enfim, nosso objetivo principal, neste captulo, estabelecer um dilogo
entre a geografia e a histria ambiental, crendo que este muito tem a contribuir
para a compreenso da organizao espacial e, principalmente, do significado
que uma floresta urbana como a do Camorim possa ter hoje, para seus habitan-
tes e para o povo da cidade que a cerca, no caso, o Rio de Janeiro.
AgeografiaeumanovainterdisciplinaridadeSeguindo Glacken (1990), cremos que um dos temas fundadores da
geografia (ou do saber geogrfico, antes mesmo de sua institucionalizao
como cincia ou disciplina acadmica) aquele que aborda as relaes entre
natureza e cultura. Tais preocupaes tm origem na antigidade, passan-
do por todos os momentos da histria desde ento, destacando-se o sculo
XVIII (quando o tema ganha enorme importncia) e chegando aos nossos
dias, quando, entre outras coisas, buscamos nessa relao as respostas mais
urgentes para a compreenso da organizao espacial, entre elas a questo da
cultura na construo das paisagens humanas ou a busca por solues para
os problemas ambientais que hoje enfrentamos. Enfim, tal temtica nunca
abandonou gegrafos e estudiosos de muitas outras reas.
Ao longo de toda a histria da geografia, a anlise da organizao es-
pacial tem se dado por meio de uma prtica interdisciplinar. Isto inegvel.
E esta tem sido a causa de muitos problemas epistemolgicos vividos pela
2 Assim foi nos trabalhos: Histria ambiental e geografia, apresentado no Encontro Nacional de
Gegrafos; Histria ambiental e geografia na obra de Alberto Lamego, apresentado na mesma
ocasio, numa mesa redonda; e A geografia na construo de uma histria ambiental brasileira,
publicado no Boletim Goiano de Geografia (da Universidade Federal de Gois), em dezem-
bro de 2002.
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39
Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes
prpria geografia sua maior caracterstica (a interdisciplinaridade) , tam-
bm, sua maior fragilidade. E, se hoje as mais recentes propostas e pesquisas
nas diferentes reas do conhecimento tm se orientado no mesmo sentido
de uma interdisciplinaridade, esta, no entanto, no deve ser compreendida
como um conjunto, muitas vezes desarticulado, de diferentes disciplinas, em
que se tenta fundir mtodos, objetos, tcnicas e abordagens diversas. Tal in-
terdisciplinaridade estaria, sim, fundamentada pelo princpio da complexidade.
Como claramente explica Cavalcanti (2002, p. 127), no contexto desse
novo paradigma a interdisciplinaridade surge como parte da proposta de se
criar um intercmbio, uma cooperao entre diversas disciplinas, em busca da
construo de projetos com base em objetos de conhecimento transdiscipli-
nares. Alerta-nos Morin (2001, p.13) que, no quadro atual de nossa cincia
moderna h inadequao cada vez mais ampla, profunda e grave entre os
saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por
outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transver-
sais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetrios. Assim, acredita
o autor que as cincias da terra, entre as quais se d destaque geografia, con-
tribuem para a elaborao de um cenrio diferente, acreditando que
(...) o desenvolvimento das cincias da terra e da ecologia revitalizam a geo-
grafia, cincia complexa por princpio, uma vez que abrange a fsica terrestre,
a biosfera e as implantaes humanas (...). A geografia (...) desenvolve seus
pseudpodes geopolticos e reassume sua vocao originria (...), segundo o
autor, generalizadora (...) (Morin, 2001, p. 28-29).
Assim, a geografia, com seu objeto multidimensional o espao geogrfico
ainda segundo Morin, estaria apta a fazer parte dessa nova interdisciplina-
ridade, apoiada na proposta de ecologizar as disciplinas, associando-as a uma
metadisciplina (entendida como algo que vai alm da disciplina, em que a geo-
grafia se visse como parte de um todo complexo). Conhecimento distinto,
sim, mas no isolado das outras partes e do todo (Cavalcanti, 2002, p. 127).
como se dentro desse esprito de renovao de paradigmas vislum-
brssemos a possibilidade de dar incio a uma conexo ou, se preferirmos, a
um dilogo entre a geografia e uma disciplina relativamente recente, ainda
pouco conhecida no Brasil a histria ambiental, sempre perseguindo as
propostas de construo de uma nova e verdadeira interdisciplinaridade.
Cremos que a histria ambiental apresente muitos pontos de interesse
comuns nossa cincia e que, sendo assim, os gegrafos no podem deixar
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As marcas do homem na floresta
40
de estar atentos s propostas que os historiadores ambientais trazem para o
campo das idias sobre as relaes entre natureza e sociedade. No podem
tambm deixar de dar sua contribuio a essa nova disciplina. E, principal-
mente, devemos reconhecer, na produo da geografia, os autores que, mes-
mo sem saber, j tenham recorrido a objetos e formas de abordagem tpicos
de uma histria ambiental, estabelecendo alguma forma de conexo entre as
duas disciplinas.
Como dito acima, o principal objetivo deste texto estabelecer o deba-
te da geografia com a histria ambiental, a fim de que a geografia possa con-
tribuir para a compreenso (e soluo) dos problemas que envolvem, hoje,
uma floresta como a do Camorim: uma crise ambiental, uma intensa crise
urbana vivida pela grande cidade ao seu redor, a perda da qualidade de vida
que atinge quase todos os habitantes da cidade s para citar alguns deles;
problemas cujas caractersticas nos permitem apont-los como ecolgicos, sis-
tmicos, holsticos, ou metadisciplinares, no sentido conferido a esses termos por
autores como Capra e Morin, entre outros.
Se o paradigma da cincia moderna fazia fundamental que todo campo
do conhecimento tivesse seus limites bem traados, que fosse bem conhecida
a natureza de suas preocupaes, que tivesse seus objetivos bem definidos e
que, ao se fundar, toda cincia pudesse estar trazendo uma nova e real contri-
buio para a compreenso do mundo em que vivemos, os novos paradigmas,
que apontam para uma cincia sistmica, dificultam o estabelecimento de tais
limites e imposies.
Assim, se no caso da histria ambiental esta nova disciplina apia-se nos
mtodos e em alguns conceitos da histria, por outro lado devemos lembrar
que a interdisciplinaridade que a caracteriza parece abrir espao para um
grande dilogo com a geografia.
Oquehistriaambiental?A histria ambiental uma disciplina relativamente nova, praticada
principalmente nos Estados Unidos, na Austrlia e em alguns outros pases
de lngua inglesa, nascida do interesse e dos trabalhos de pesquisa de uma
pequena comunidade acadmica, formada principalmente por historiadores
e bilogos vindos de diferentes temas e especialidades.
Este novo campo do conhecimento vem sendo construdo h cerca de
15 anos, ligando a histria natural histria social. Esta caracterstica bsica
da proposta dos criadores da histria ambiental torna-se possvel devido ao
fato de a construo dessa nova disciplina se apoiar numa viso arraigadamen-
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41
Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes
te interdisciplinar, interessada em tratar do papel e do lugar da natureza na
vida humana (Worster, 1991).
Drummond (1997), um dos primeiros divulgadores da histria ambien-
tal no Brasil, indica a ns alguns nomes constituintes do grupo de trabalho
em histria ambiental nos Estados Unidos. Seriam eles: William Cronon,
Donald Worster, Richard White, Stephen Pyne, Warren Dean, Alfred Cros-
by, Joseph Petulla, Frederick Turner, Roderick Nash, Samuel Hays, Richard
Tucker, entre outros. O grupo, que possui uma associao profissional a
American Society for Environmental History e um peridico a revista Environ-
mental History tem por objetivo principal colocar a natureza na histria,
segundo palavras de William Cronon.
Segundo Donald Worster (1991, p. 198), at pouco tempo o assunto
tradicionalmente importante para os historiadores era a poltica e, conse-
qentemente, o nico campo que merecia interesse era o Estado. Ou seja,
a histria sempre dedicou sua ateno a temas relacionados com o funcio-
namento das instituies formadoras dos Estados nacionais. Mas h algum
tempo esse conceito da histria comeou a perder terreno, na medida em
que o mundo evolua para um ponto de vista mais global. Os historiadores
comearam a abandonar um pouco da sua certeza de que o passado tenha
sido to integralmente controlado ou representado por alguns poucos ho-
mens ou determinado to-somente por interesses de Estado. Os estudiosos
comearam a desenterrar camadas longamente submersas das vidas e dos
pensamentos das pessoas comuns e tentaram reconceituar a histria de baixo
para cima (Worster, 1991), valorizando cada vez mais conceitos como terri-
trio, territorialidades, enfim, aproximando-se (no caso da histria ambiental),
podemos dizer, de categorias at hoje to prprias da geografia.
nessa nova forma de se fazer histria (baseada na vida e nos pensamen-
tos das pessoas comuns) que a histria ambiental se insere. E ela vai alm,
pois considera a Terra (o meio ambiente) como um agente e uma presena na
histria. Isto impe ainda uma anlise mais global, na medida em que os fe-
nmenos que acontecem no meio ambiente no ficam restritos s fronteiras
dos Estados nacionais. E, se quisermos entend-los e associ-los evoluo
das prticas sociais, precisamos ter uma viso mais integrada do mundo, que
no fique restrita s fronteiras polticas.
Pavimentando o caminho da histria ambiental, Worster indica, como
vimos, que esta disciplina trata do papel e do lugar da natureza na vida huma-
na, lembrando que esta nova histria encontra seu principal tema de estudo
na esfera no-humana. Ou seja, em tudo aquilo que no construdo pelo hu-
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As marcas do homem na floresta
42
mano (e que normalmente chamamos de natureza), mas que exerce influncia
sobre a vida humana; aquelas energias autnomas que no derivam de ns,
mas que interferem na vida humana, estimulando algumas reaes, algumas
defesas, algumas ambies.
Haveria trs nveis de funcionamento na histria ambiental, ou, se pre-
ferirmos, trs grandes conjuntos de questes:
1. Aquele que trata doentendimento da natureza propriamente dita seus aspectos orgnicos e inorgnicos, formadores de uma histria na-
tural. Existiria sempre a perspectiva de se comear os estudos em
histria ambiental com a apresentao do passado das paisagens que
sero estudadas.
2. O segundo nvel de investigao trata dodomnio socioeconmico, na medida em que este interage com o ambiente ferramentas de tra-
balho, modos de produo, relaes sociais, instituies, decises
ambientais ou seja, est includo neste nvel o estudo do poder de
tomada de deciso de uma dada sociedade, inclusive as decises eco-
nmicas e polticas referentes ao meio ambiente. Grande parte da
histria ambiental se dedica justamente a examinar essas mudanas,
voluntrias ou foradas, nos modos de subsistncia e suas implica-
es para as pessoas e para a terra. (Worster, 1991, p. 207)
3. O terceiro nvel cuida de um tipo de interao mais intangvel e
exclusivamente humano, puramente mental ou intelectual, no qual
percepes, valores ticos, leis, mitos e outras estruturas de signifi-
cao se tornam parte do dilogo de um indivduo ou de um grupo,
com a natureza (Worster, 1991. p.202). Seria aquilo que Turner
(1990) chamou de uma histria espiritual que um povo tem com seu
territrio. (...) a natureza no uma idia, mas muitas idias, signi-
ficados, pensamentos, sentimentos, empilhados uns sobre os outros,
freqentemente da forma menos sistemtica possvel. (Worster,
1991, p. 210)
Longe de um determinismo ambiental, pode-se ver que a histria ambien-
tal uma histria que inclui a natureza como objeto, mas tambm como
resultante de processos engendrados pelo homem e pela evoluo natural da
rea, ou seja, a paisagem (Worster, 1991). Vejamos alguns exemplos do que
estudam alguns historiadores ambientais.
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43
Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes
William Cronon, um dos mais ativos participantes do grupo fundador da
histria ambiental nos Estados Unidos e que ocupa, no por acaso, a cadeira
Professor Frederick Jackson Turner3 de histria, geografia e estudos ambientais,
na Universidade de Wisconsin-Madison, nos mostra em sua obra como
importante refletirmos sobre a natureza e sobre nossas relaes fsicas com-
plexas com o mundo natural, pois
a natureza que carregamos dentro ns to importante quanto a natureza que
nos cerca, porque a natureza que est dentro de ns com certeza o motor
que dirige nossas interaes com a natureza fsica, neste contnuo processo de
transformao homem/natureza (Cronon, 1996).
O que nos traz lembrana a tese presente na obra Paisagem e memria,
de Simon Shama:
Estamos habituados a situar a natureza e a percepo humana em dois campos
distintos; na verdade, elas so inseparveis. Antes de poder ser um repouso
para os sentidos, a paisagem obra da mente... Compe-se tanto de camadas
de lembranas quanto de estratos de rocha (Shama, 1996, p. 8).
Podemos perceber aqui o tema daquele terceiro grupo de questes, apon-
tado por Worster e que nos lembra que a histria ambiental incorpora um
elemento de anlise bastante raro nas demais cincias ambientais: a constru-
o imaginria da natureza pelo homem.
Nos Estados Unidos, a histria ambiental tem como base, ainda, a his-
tria da conservao ambiental. E isto fica claro se observarmos que, em
uma de suas atuais linhas de pesquisa, William Cronon se preocupa em de-
cifrar como as comunidades hu