livro as marcas do homem floresta puc rio

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  • Reitor

    Pe. Jesus Hortal Snchez S.J.

    Vice-Reitor

    Pe. Josaf Carlos de Siqueira S.J.

    Vice-Reitor para Assuntos Acadmicos

    Prof. Jos Ricardo Bergamann

    Vice-Reitor para Assuntos Administrativos

    Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo

    Vice-Reitor para Assuntos Comunitrios

    Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio

    Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento

    Pe. Francisco Ivern S.J.

    Decanos

    Prof Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH)

    Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)

    Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC)

    Prof. Hilton Augusto Koch (CCBM)

  • As marcas do homem

    na floresta

    Histria ambiental de

    um trecho urbano de mata atlntica

    Organizao

    Rogrio Ribeiro de Oliveira

  • Editora PUC-Rio

    Rua Marqus de S. Vicente, 225 Projeto Comunicar

    Praa Alceu Amoroso Lima, casa Editora/Agncia

    Gvea Rio de Janeiro RJ CEP 22453-900

    Telefax: (21)3527-1838/1760

    Site: www.puc-rio.br/editorapucrio

    E-mail: [email protected]

    Conselho Editorial

    Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, Fernando S, Jos Ricardo Bergmann,

    Luiz Roberto Cunha, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Miguel Pereira e

    Reinaldo Calixto de Campos.

    Diagramao de miolo e capa

    Jos Antonio de Oliveira

    Reviso de originais

    Toms da Costa Batista e Gilberto Scheid

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida

    por quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada

    em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.

    ISBN: 85-87926-10-1

    Republicado como e-book.

    Editora PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil, 2010.

    As marcas do homem na floresta: histria ambiental de um trecho urbano de mata atlntica/organizao: Rogrio Ribeiro de Oliveira. Rio de Janeiro : Ed. PUC-Rio, 2010.

    230 p. ; il.; e-book.

    Inclui bibliografia.

    1. Homem Influncia sobre a natureza Rio de Janeiro (RJ). 2. Florestas tropicais Mata Atlntica - Histria. 3. Mata Atlntica - Proteo. I. Oliveira, Rogrio Ribeiro de.

    CDD: 304.28098153

  • Sumrio

    Apresentao 7Rogrio Ribeiro de Oliveira

    PrefcioAmarcadosagrado 11Denise Pini Rosalem da Fonseca

    IntroduoOscenriosdapaisagem 23Rogrio Ribeiro de Oliveira

    CaptuloIOespaomarcadoHistria de uma floresta, geografia de seus habitantes 37Ins Aguiar de Freitas

    O espao geogrficovisto do espao orbital 51Luiz Felipe Guanaes Rego

    CaptuloIIAsmarcasdasmosAs marcas das mos 65Carlos Engemann, Angela Maria Rosa da Silveira,

    Maria Aparecida de Oliveira Guimares e Mirtes Cavalcanti Musitano

    Magalhes Corra, o viajante do sculo XX 75Carlos Engemann, Angela Maria Rosa da Silveira

    e Rogrio Ribeiro de Oliveira

    CaptuloIIIAsmarcasdomachadoHistria ambiental e estrutura de uma floresta urbana 87Alexandro Solrzano e Rogrio Ribeiro de Oliveira

    Consumo de recursos florestais e produo de acar

    no perodo colonial: o caso do Engenho do Camorim, RJ 119Carlos Engemann, Juliano Chagas, Rogrio da Silva Santos,

    Alexandre Chaboudt Borges e Rogrio Ribeiro de Oliveira

  • CaptuloIVAsmarcasdaenxadaA influncia dos remanescentes agro-pastoris do macio

    da Pedra Branca na dinmica hidrolgica das encostas 143Marcelo Motta de Freitas, Marcelo Vargas, Silva Castanheira

    e Fernanda Rath Fingerl

    CaptuloVAsmarcasdofogoResultantes ecolgicas de um incndio florestal na

    produo de serapilheira de uma mata atlntica de encosta 167Rodrigo Penna Firme e Rogrio Ribeiro de Oliveira

    Aspectos estruturais da paisagem da mata atlntica

    em reas alteradas por incndios florestais 183Rodrigo Penna Firme, Rita de Cssia Martins Montezuma,

    Renata Lopes dos Santos e Rogrio Ribeiro de Oliveira

    CaptuloVIAsmarcasdafumaaContaminao e ciclagem de metais pesados na

    serapilheira de uma floresta urbana 207Rogrio Ribeiro de Oliveira, Carmem Lucia Porto Silveira,

    Alessandra Costa Magalhes e Rodrigo Penna Firme

    EplogoOfuturonasmarcasdopassado 227Rogrio Ribeiro de Oliveira

  • Apresentao

    As principais propostas deste livro so o registro do legado da atividade hu-

    mana na mata atlntica no Rio de Janeiro e a procura pelos signos nela im-

    pressos. Organizado em torno de distintas marcas deixadas por episdios

    histricos no macio da Pedra Branca, localizado na zona oeste do municpio

    do Rio de Janeiro, este trabalho tem na interdisciplinaridade sua base meto-

    dolgica.

    Ao convidar pesquisadores de diferentes disciplinas para lanar suas

    vises sobre a transformao dessa paisagem, tentou-se valorizar o sentido

    diacrnico desta, evidenciando o fato de que a atual paisagem o produto de

    foras geolgicas e biolgicas que se perdem no tempo, misturadas ime-

    morial ao humana. Esta forma de enxergar a paisagem no absolutamen-

    te nova, mas uma utopia comum a muitos pesquisadores, tanto das cincias

    biolgicas, da terra ou sociais. Do local para o global, do particular para o

    geral, os captulos vo formando uma viso dos processos de transformao

    da mata atlntica.

    O garimpo destes marcos foi a principal tarefa de seus autores. A esca-

    la de trabalho variou de esforos literais de escavao arqueolgica (seja na

    floresta ou em construes coloniais em suas bordas) deteco de marcas

    menos evidentes (como na cultura de seus habitantes ou na poluio que se

    presentifica no ecossistema). Comum a todos os estudos que compem esta

    obra a tentativa de avaliar a resultante ambiental que cada episdio histrico

    provocou, ou ainda provoca, na construo da paisagem. No entanto, estes

    episdios por si no deixam vestgios. Estes so deixados pelo trabalho de

    muitos homens ao longo de muito tempo, cuja memria annima tambm se

    tenta resgatar pelos vestgios de suas aes.

    Assim, este livro est organizado por grupos distintos de marcas deixa-

    das ao longo do tempo neste trecho de mata atlntica. A introduo (Os ce-

    nrios da paisagem) procura situar a floresta estudada no contexto do bioma

    mata atlntica e de suas transformaes.

  • As marcas do homem na floresta

    8

    O captulo I (O espao marcado) traz, no artigo Histria de uma flores-

    ta, geografia de seus habitantes, uma reflexo epistemolgica sobre a hist-

    ria ambiental e suas mltiplas relaes com a geografia. No artigo O espao

    geogrfico visto do espao orbital, a principal pergunta : ser o geoproces-

    samento a principal ferramenta da histria ambiental do futuro?

    No captulo II (As marcas das mos), dois artigos trazem informaes e

    reflexes sobre a histria da ocupao humana deste trecho de mata atlntica.

    No primeiro, seus autores trazem o produto de pesquisas histricas que forma

    um quadro da ocupao colonial da rea, alheio quela viso tradicional que

    resgata apenas a histria do vencedor (o homem branco) e no do vencido (o

    negro e o ndio). O seguinte (Magalhes Corra, o viajante do sculo XX)

    resgata a figura deste destacado historiador da regio da baixada de Jacarepagu.

    O captulo III (As marcas do machado) apresenta dois estudos sobre os

    impactos que as atividades descritas anteriormente tiveram sobre a estrutura

    florestal da paisagem. O artigo Histria ambiental e estrutura de uma floresta

    urbana constitui uma anlise fitossociolgica das resultantes estruturais da ex-

    plorao de carvo em suas montanhas na dcada de 1950. O trabalho seguinte,

    Consumo de recursos florestais e produo de acar no perodo colonial: o

    caso do Engenho do Camorim, RJ, um desdobramento das pesquisas histri-

    cas do captulo II. Aqui os documentos histricos e suas informaes ecolgicas

    so confrontadas com a realidade ecolgica atual, com o objetivo de promover

    uma verdadeira contabilidade ambiental da explorao dos recursos.

    O captulo IV (As marcas da enxada) mostra, no estudo A influncia

    dos remanescentes agro-pastoris do macio da Pedra Branca na dinmica hi-

    drolgica das encostas, as conseqncias da agricultura e da pecuria no re-

    direcionamento de fluxos durante a fase terrestre do ciclo da gua, contem-

    plando as modificaes no comportamento hidrolgico dos solos sob usos

    que transformaram o ambiente florestal anterior.

    Os dois trabalhos do captulo V (As marcas do fogo) versam sobre o

    day after dos incndios florestais. No estudo Resultantes ecolgicas de um

    incndio florestal na produo de serapilheira de uma mata atlntica de en-

    costa mostrada como (no) se d a recuperao da mata atlntica aps a

    passagem de um incndio. Em uma abordagem fitossociolgica, o trabalho

    Aspectos estruturais da paisagem da mata atlntica em reas alteradas por

    incndios florestais apresenta, em diferentes momentos, a sucesso ecolgi-

    ca que ocorre aps um incndio.

  • 9Apresentao

    O captulo VI (As marcas da fumaa) dedicado a algo como uma hist-

    ria ambiental contempornea. No trabalho Contaminao e ciclagem de me-

    tais pesados na serapilheira de uma floresta urbana, a poluio da metrpole

    circundante e sua deposio no ecossistema florestal so analisadas como um

    ltimo captulo de uma histria ambiental voltada para a busca das marcas da

    presena humana nos ecossistemas florestais. guisa de eplogo, o captulo

    O futuro nas marcas do passado procura sintetizar os principais aspectos

    epistemolgicos e metodolgicos discutidos.

    Por fim, restam duas palavras sobre como foram feitas muitas destas

    pesquisas. Em agosto de 2002, o Ncleo Interdisciplinar de Meio Ambiente

    (Nima) da PUC-Rio implantou, no bairro do Camorim, o projeto Volunta-

    riado Ecolgico. Com o objetivo de colocar a prpria comunidade redesco-

    brindo seus valores ticos e ambientais, foram criadas diversas oficinas com

    os seus moradores. As oficinas de mata atlntica e de histria, ministradas

    por professores e alunos da PUC-Rio, foram compostas por donas de casa,

    comerciantes, professores e estudantes, que tiveram papel fundamental em

    muitas das pesquisas aqui publicadas, especialmente nos captulos I, III e V.

    Essas pessoas, at ento no familiarizadas com metodologias cientficas ou

    com o mundo acadmico, passaram a figurar, pela primeira vez, como co-

    autores de publicaes cientficas. Mais do que um eventual orgulho acad-

    mico, esses novos autores pesquisam suas prprias razes culturais, histricas

    e ecolgicas, realizando um resgate de seus valores ambientais.

    Essa procura por valores ticos e ambientais a mola propulsora das

    diversas atividades de educao ambiental desenvolvidas pelo Nima, em arti-

    culao com os departamentos de geografia e de servio social da PUC-Rio.

    Com isto, os novos e os menos novos autores prestam a devida homenagem e

    o agradecimento ao padre Josaf Carlos de Siqueira, coordenador do Nima,

    que, ao levantar essa bandeira, talvez no tivesse idia dos frutos que colheria

    mais tarde.

    Sinceros agradecimentos por apoio e acolhida vo tambm para a verda-

    deira comunidade de primeiros cristos da Igreja de So Gonalo do Amarante,

    localizada no Camorim, a quem este livro fraternalmente dedicado. Sempre

    plena do amor de Deus, tem na alegria e no acolhimento o seu grande dom.

    Rogrio Ribeiro de Oliveira

    Organizador

  • 11

    Este um livro sobre a floresta. No uma floresta qualquer abstrata ou

    mtica mas uma natureza sobrevivente, que bordeja a zona oeste da cida-

    de do Rio de Janeiro, uma das maiores concentraes urbanas da Amrica

    Latina.

    Este um trabalho sobre homens. No homens quaisquer descon-

    textualizados ou sem histria mas os construtores do legado das escolhas

    humanas que sustentam a cultura local do atual bairro do Camorim.

    Esta uma obra que conta as histrias do encontro desta natureza com

    estes homens. No um encontro qualquer, que no tivesse deixado marcas ou

    cicatrizes, mas uma realidade tangvel, mensurvel e previsvel; a histria do

    que, aqui, foi possvel viver, na busca da sobrevivncia. Da sobrevivncia de

    ambos homens e natureza trata este trabalho.

    Mas este livro tambm se esfora para compreender o valor das mani-

    festaes do sagrado, por meio das relaes dos homens com a natureza e

    com eles mesmos, o que obriga, necessariamente, a tratar de histria e de

    cultura.

    Este um esforo para entender as incontveis confisses que fazemos

    do nosso sentido de pertencimento de nossa identidade cultural e seus

    valores o que obriga, necessariamente, a tratar de vida em comunidade.

    Das marcas que a vida desenha sobre a natureza e sobre os homens tambm

    trata este texto.

    As marcas so sinais deixados pelas vivncias. No haver marcas onde

    no houver histrias a serem contadas. Por outro lado, as marcas l permane-

    cem para fazer lembrar os caminhos de regresso, para permitir o resgate do

    que ficou perdido ou para que evitemos percursos que j se mostraram ina-

    dequados ou perigosos. Falar de marcas falar dos homens e das suas aes,

    PrefcioA marca do sagrado

    Denise Pini Rosalem da Fonseca1

    1 Professora do Departamento de Servio Social da PUC-Rio Setor de Desenvolvimento

    Sustentvel do Nima/PUC-Rio: Rua Marqus de So Vicente, 225, CEP: 22453-900, Rio de

    Janeiro. E-mail: [email protected]

  • As marcas do homem na floresta

    12

    pois elas so o registro do acontecer humano. E se o homem, no seu af de

    sobreviver fsica, emocional e espiritualmente vai depositando marcas

    sobre a natureza e cicatrizes em outros homens, como resultado ele tambm

    fica marcado, com mos calejadas, corpo e alma comformados ou deformados,

    segundo a qualidade das suas relaes com a natureza e com a comunidade

    humana que o acolhe.

    Por todas estas razes, a histria ambiental uma jovem disciplina, que

    trata de refletir sobre estes aspectos em comunho tem, necessariamente,

    que ser interdisciplinar e holstica. No toa que esta obra foi construda

    por muitas mos, que foram imprimindo as marcas de gegrafos, bilogos,

    historiadores e membros da prpria comunidade, sobre a compreenso pos-

    svel da natureza e da comumunidade a identidade do Camorim. O desafio

    que este trabalho deseja enfrentar o de falar sobre as aes humanas e

    suas conseqncias por meio dos registros de ocorrncias que a floresta e a

    cultura, cuidadosamente, conservam. A natureza destas marcas, no entanto,

    obriga o observador a conhecer as suas incontveis linguagens para decifr-

    las. Comecemos, ento, pelo sagrado.

    Desde tempos imemorveis, a natureza associada idia de sagrado

    (Sullivan, 2003, p. 234). A dessacralizao da natureza a que estamos acostu-

    mados no mundo ocidental, tem a ver com o iluminismo, com os sculos XVIII

    e XIX e com a fundao das cincias sociais e todo o seu corolrio de controle

    social subseqente (Sullivan, 2003, p. 327). O esforo de entender como pri-

    mitivas as culturas que prestam ritos de devoo natureza est fundamenta-

    do na racionalidade prpria da modernidade ocidental, em que este mesmo

    movimento no apenas dessacralizou a natureza, como tambm secularizou a

    cultura e a prpria religio. Para o catolicismo, foi tambm no contexto do ilu-

    minismo que a manuteno de uma atitude religiosa, que seguia reconhecendo

    a correlao entre natureza e graa divina, abriu um fosso enorme entre pie-

    dade e teologia, ou seja, entre religiosidade popular e teologia erudita (Eliade,

    1996, p. 524). Em ltima instncia, ao desqualificar como primitivos os rituais

    de devoo natureza aqueles capazes de constituir comunidades pela via de

    confisses de pertencimento passou-se a privar o homem religioso da experi-

    ncia do sagrado, em meio a um mundo materialista e profano. A este respeito

    Eliade nos lembra a famosa frase de Pascal, o Deus de Abrao, de Isaac e de

    Jac, e no o dos filsofos e sbios, na qual fica clara a supresso, na religio

    racional, da relao do homem com a sua prpria histria e com a vivncia do

    sagrado, por meio da natureza (Eliade, 1996, p. 528).

  • 13

    A marca do sagrado

    A experincia de uma natureza radicalmente dessacralizada um descobrimen-

    to recente; ainda no acessvel mais que a uma minoria de sociedades modernas

    e, em primeiro lugar, aos homens de cincia. Para o resto, a natureza continua

    apresentando um encontro, um mistrio, uma majestade nas quais se podem deci-

    frar vestgios de antigos valores religiosos. No h homem moderno, seja qual

    for o seu grau de irreligiosidade, que seja insensvel aos encantos da natureza

    (Eliade, 1998, p. 12). [Traduo nossa]

    A dimenso ritual constitui, ela mesma, uma forma de confisso de um

    certo pertencimento religioso, ou seja, participar de um ritual de devoo,

    de acordo com as regras estabelecidas pela comunidade religiosa, um sinal de

    reconhecimento do seu pertencimento quela mesma comunidade (Eliade,

    1996, p. 520). Assim se organizam as religies e, dentro delas, as igrejas.

    Assim se organiza a vida em sociedade. Por todas estas razes, falar de rituais

    que ocorrem no seio da floresta tambm falar de homens vivendo em socie-

    dade, de relaes intracomunitrias, de sentido de pertencimento, de cultura

    local e, sobretudo, de preservao e sobrevivncia de homens e natureza o

    objeto deste trabalho.

    Em quase todas as passagens do Antigo Testamento, nas quais a figueira

    mencionada, ela vem associada idia de preservao, de proteo e de

    acolhimento material ou espiritual (Reis 1, 4; Marcos 2, 12; e Joo 1,

    48-49). Por outro lado, em Mt 21, 18-22, Jesus amaldioa uma figueira que

    no d fruto, agregando um outro significado figueira, ou seja, expecta-

    tiva de frutificao da Sua obra, derivando da a nossa responsabilidade pela

    preservao da criao e dos seus smbolos sagrados, dentre eles a figueira.Por todas estas razes, desde a criao do mundo, a partir da sua presena no

    jardim do den, a figueira ocupa um lugar especial no imaginrio humano,

    pois foi com as suas folhas que Ado e Eva se cobriram quando descobriram a

    sua humanidade (Gnesis 3, 7). Reconhecida em diversas tradies culturais

    como uma famlia que possui indivduos soberanos, alguns por apresentarem

    copas frondosas que podem abrigar muitos, e outros por produzirem frutos

    doces, abundantes e repletos de sementes, que germinaro uma profcua des-

    cendncia, a figueira (neste caso, Ficus carica), na cultura judaico-crist, sim-

    boliza a casa do Senhor na natureza e, portanto, uma das moradas do sagrado

    na floresta do inconsciente coletivo do mundo ocidental moderno (Chevalier

    & Gheerbrant, 1998, p. 427).

    Muito embora estes contedos associados figueira estejam tambm

    presentes em muitos outros imaginrios ancestrais como o caso das re-

  • As marcas do homem na floresta

    14

    ligies prprias do subcontinente asitico (Chevalier & Gheerbrant, 1998,

    p. 427), de cuja flora nativa a figueira religiosa (Ficus religiosa) proveniente interessa a ns compreender as convergncias destes contedos na conflu-

    ncia de trs tradies culturais brasileiras que sustentam o patrimnio cul-

    tural fundador do Camorim: o legado judaico-cristo; as tradies ancestrais

    nativas, de origem caiara; e o acervo cultural brasileiro afrodescendente.

    Nas regies de ocupao caiara, como o caso do Parque Estadual da

    Pedra Branca, nas franjas do qual o Camorim est localizado, quando os cam-

    poneses abrem a mata para, no seio desta, instalar uma roa de subsistncia,

    eles derrubam todas as rvores presentes, preservando apenas os indivduos

    de um gnero: o da figueira. Aparentemente, reza na tradio camponesa

    local alguma forma de sabedoria ancestral, que remete o homem simples,

    muitas vezes solitrio e annimo, a um universo de smbolos, que pertencem

    ao sujeito coletivo do qual ele membro, e que lhe confere identidade.2

    Posto que algumas das espcies da figueira so para ns rvores exticas,

    ou seja, que foram trazidas pela ao humana de alguma outra regio geogr-

    fica, podemos afirmar, sem medo de errar, que elas chegaram ao Brasil junto

    com a cristandade. possvel imaginar, portanto, que os mesmos homens e

    mulheres que, provavelmente no sculo XVI (Engemann, 2003, p. 1), ergue-

    ram a igreja de So Gonalo do Amarante, instalando casa-grande e senzalas

    na regio do Camorim, tenham compartilhado, com a natureza local e seus

    tradicionais habitantes, sementes de alguns saberes e plantas, bem como as

    suas representaes de profano e sagrado. Aqueles eram seres forjados em

    percursos diferentes, que se encontravam em uma terra fecunda, capaz de

    germinar outras espcies; aquela era uma famlia de rvores que carregava

    um sentido de acolhimento, capaz de fazer convergir em si mesma um con-

    junto de imaginrios. dos encontros de contedos humanos, como este,

    que nasce o nosso patrimnio cultural e, no caso da figueira, o imaterial se

    faz tangvel no seio da natureza.

    O curioso que a manuteno exclusivamente das figueiras nos cam-

    pos desnudados por descendentes da mestiagem de portugueses e indgenas

    2 Agradeo ao professor Rogrio Ribeiro de Oliveira, diretor do Departamento de Geografia da PUC-Rio, pela contribuio no caso da figueira como exemplo de um mito que preserva espcimes animais e vegetais e a leitura crtica deste trabalho, que garantiu o rigor das in-formaes taxionmicas nele contidas. Em trabalho de pesquisa recentemente realizado na floresta do Camorim, a equipe do professor Oliveira catalogou a presena de 15 espcies da famlia Moraceae, da qual o gnero Ficus faz parte, sendo o nico a ser preservado pelos agricultores.

  • 15

    A marca do sagrado

    brasileiros no apenas garante a preservao da espcie, mas tambm de uma

    variedade de famlias de pssaros da regio, que se alimentam dos seus frutos,

    e da fora do mito que a sustenta, ou seja: do seu poder. Para compreender

    esta classe de poder, importa pouco saber se esta prtica se originou em tor-

    no de uma figueira exticaou nativa, ou seja, se o mito que alimenta rvore e pssaros da regio l salmos, recita ladainhas, ou dana livre e nu pela flo-

    resta. Interessa, sim, descobrir os mecanismos desta permanncia; a natureza

    da fora que a retroalimenta ao mesmo tempo em que afasta a indignidade da

    fome e do desabrigo.

    dessa ordem de questes que se ocupa a ps-modernidade, pois at

    mesmo o capitalismo, velho conhecido predador dos homens e da natureza,

    em sua sanha devoradora de valores para gerar mais-valia, j se apercebeu

    de que em tempos de capitalismo cultural ou bio-capitalismo (Lazzarato, 2001,

    p. 91-106) so as nossas paixes, os nossos desejos, a nossa afetividade e a

    nossa religiosidade, ou seja, o material impondervel da nossa subjetividade,

    o bem mais precioso a ser acumulado. E se disso que advm o lucro e,

    conseqentemente, a explorao bem pode ser desse mesmo poder que de-

    rivem as nossas melhores oportunidades para a construo de uma insero

    econmica e social mais justa e eficiente. Estamos falando das vantagens com-

    parativas que podemos e devemos nos reservar por ser parte do nosso

    prprio material cultural identitrio o legado cultural a que tivemos acesso

    para com ele construir novas relaes de poder e uma identidade cultural

    que melhor nos sirva (Castells, 1999, p. 425).

    Trabalhando primordialmente nos campos da antropologia e da histria,

    os estudos culturais recentes vm tentando entender a natureza dos laos de

    lealdade e do sentido de pertencimento que animam as sociedades na entrada

    do terceiro milnio o que tem a ver, necessariamente, com religiosidade

    em que o paradigma nacional vem sistematicamente perdendo relevncia

    e capacidade de promover coeso social. Embora sejamos beneficirios das

    contribuies de diversos autores, por estarmos preocupados com os meca-

    nismos internos de funcionamento das chamadas redes sociais de solidariedade

    intracomunais, interessa-nos, aqui, comentar alguns conceitos oferecidos por

    Manuel Castells, quetratou mais diretamente deste assunto. Em O poder da identidade, ele nos fala de trs formas possveis de asso-

    ciaes identitrias. A primeira delas se consubstancia sob a forma de uma

    identidade legitimadora, cuja origem est ligada s instituies e organizaes da

    sociedade civil, pois elas surgiram e se organizaram em torno do Estado de-

  • As marcas do homem na floresta

    16

    mocrtico e do contrato social entre capital e trabalho (Castells, 1999, p. 418-420). Dentre elas esto a identidade nacional, os fundamentalismos religiosos ou tnicos e, em grande medida, os partidos polticos e as associaes sindicais. Foram estas as estruturas que, no final do sculo XX, mais perderam a sua capacidade de manter vnculos vivos com os valores das pessoas. Este tipo de identidade, portanto, no tem sido capaz de desenvolver prticas renovadoras em termos dos movimentos sociais mais recentes. Quem sabe pudssemos aqui agregar que parece ter sido ao redor destas identidades, as legitimadoras, que os maiores desastres sociais tm sido produzidos recentemente.

    O segundo tipo de associao identitria seria o que o autor chamou de identidade de resistncia, que gerada por agentes sociais que se encontram em posio de excluso, sob discriminao ou que se sentem ameaados (Cas-tells, 1999, p. 420-425). Nesta categoria se enquadram muitas das formas de resistncia atual, desde o movimento feminista at o ambientalismo, pas-sando pelos grupos de resistncia homossexual e movimentos por reforma agrria. O problema aqui se d quando cada uma destas vertentes de mo-bilizao social se fecha sobre a sua prpria rede identitria e, por ignorar os contedos e premissas das outras redes correlatas, ignora tambm a teia maior que vai se formando ao seu redor e que limita a sua prpria capacidade de ao, permitindo refluxos indesejados. Por esta razo, para garantir a sua efetividade, segundo Castells, as identidades de resistncia precisam se transfor-mar, tambm, em identidades de projeto.

    Uma identidade de projeto se constri quando os agentes sociais tratam de redefinir a sua prpria posio na sociedade a partir dos legados culturais a que tiveram acesso (Castells, 1999, p. 425-427). Segundo o autor, estes tipos de agentes precisam, necessariamente, ser mobilizadores de smbolos, o que equivale a dizer que, para obter sucesso, eles devem se manifestar por meio da principal corrente cultural para subvert-la em benefcio de valores alternativos. Em outras palavras, h que dar visibilidade aos conte-dos culturais historicamente silenciados, re-significando-os e criando no-vos smbolos que os representem. Alm disso, esta organizao deve, como observou empiricamente Castells, assumir uma estrutura descentralizada e integrada em rede, que ele chamou de redes de mudanas sociais, das quais o movimento ambientalista e o movimento feminista so duas das expresses mais acabadas. Trata-se de evoluir de uma perspectiva subjetivista e centrada no indivduo muito prpria da modernidade para uma viso de mundo solidria e centrada na cultura, o que vem a ser a novidade ps-moderna. Esta a perspectiva que perseguimos.

  • 17

    A marca do sagrado

    O conceito que desejamos explorar identidade cultural tributrio

    de todas estas formulaes tericas, que o precedem e que sustentam a sua

    concepo. Muito embora ele j tenha sido utilizado, principalmente por

    Stuart Hall (2001), que igualmente chegou a ele por caminhos percorridos

    por Hobsbawm (2000), Anderson (1991), Giddens (1991), e outros, nossa

    concepo de identidade cultural est pautada na observao emprica reali-

    zada nos trabalhos que desenvolvemos junto s comunidades carentes desde

    1998. O contedo que associamos ao conceito, no entanto, se afasta daquele

    que Hall utiliza, na mesma medida em que se distancia das preocupaes com

    a questo da nacionalidade e da identidade nacional, centrando sua nfase no

    sentido de pertencimento que alimenta as redes sociais de solidariedade, respon-

    sveis pela diferena entre pobreza e misria.

    Assumindo, com Castells, que toda identidade construo e que toda

    construo de identidade implica relaes de poder (Castells, 1999, p. 426),

    vale a pena uma reflexo sobre a essncia dos poderes imateriais que residem

    naquelas redes e nas suas prticas cotidianas. Nosso desejo o de afastar, de

    vez, a arraigada e limitada concepo de poder que carregamos por razes

    histricas e culturais que se apresenta ligada s idias de constrangimento,

    aliciamento, manipulao, coero e, em ltima instncia, violncia. No pla-

    no religioso, a concepo de poder tem, muitas vezes, sido manipulada como

    primitivo, atrasado, profano, ignorante ou no limite satnico. Estamos

    convencidos de que o poder que fomenta e alimenta as identidades culturais

    emana da memria do sujeito coletivo desta identidade e provm de saberes

    compartilhados pelos seus indivduos, cuja natureza intangvel, qual seja: o

    seu patrimnio cultural imaterial, do qual o sagrado o elemento central e

    fundador.

    O problema que, muitas vezes em um mesmo patrimnio cultural

    imaterial, conflui um conjunto de significados provenientes de muitas identi-

    dades culturais que, embora compartilhem um mesmo smbolo e sua essn-

    cia, utilizam prticas de reafirmao do mito diferenciadas, como o caso da

    figueira est nos ajudando a exemplificar.

    Na tradio afrodescendente brasileira por sua vez uma confluncia de

    pelo menos quatro tradies ancestrais africanas a figueira ocupa o lugar de

    uma espcie africana a Clorophora excelsa dificilmente encontrvel no Brasil,

    para representar um deus-rvore: o Iroco (Martins & Marinho, 2002, p. 34).

    Por se tratar de um orix materializado sob a forma de rvore, a figuei-

    ra, ou seja, o Iroco, cultuadacom devoo pelos seus protegidos e no pode

  • As marcas do homem na floresta

    18

    deixar de estar presente, assim como os demais orixs, nos terreiros gge-io-

    rubanos. Conta uma histria3 que, certa vez, estando um terreiro de Pernam-

    buco ameaado de invaso e destruio, todos os instrumentos rituais sagrados

    foram colocados no interior do Iroco, em uma cavidade que se abriu no tronco

    daquela rvore para receb-los e se fechou para preserv-los at que os perigos

    passassem. Mais uma vez aparece a figueira desta vez como uma divindade

    negra para cumprir o seu destino de proteo e auxlio: os contedos nela

    igualmente depositados pelas tradies caiara e europia moderna.

    No fica difcil entender, portanto, que, no Camorim rea de antigos

    quilombos muitas vezes apaream ofertas rituais colocadas aos ps do Iroco

    a figueira, que l ocorre com oito espcies ou, algumas vezes, a gameleira

    branca (Ficus gomeleira) ou a mangueira (Mangifera indica) para nos fazer

    lembrar dos muitos contedos culturais que convergem na figueira ou em

    uma comunidade. No entanto, os elementos que fazem a fortaleza do mito,

    bem como do sujeito coletivo a identidade cultural podem tambm estar

    na gnese das suas fragilidades, na medida em que, no processo de negocia-

    o de poder para a construo da comunidade, o sujeito coletivo venha a se

    estilhaar em lutas, entre os indivduos que o compem, pelo controle dos

    benefcios que dele emanam. Talvez fosse til lembrar, mais uma vez ajudados

    pela figueira, que, se a ela no estivesse associado o mito independente de

    seus contedos, origem e prticas no restaria um nico indivduo da sua

    espcie que fosse capaz de resistir fome dos camponeses locais, como a

    norma para todas as outras espcies vegetais da regio.

    Durante os meses em que estivemos regularmente visitando o Camo-

    rim para desenvolver com a comunidade o trabalho de resgate do seu patri-

    mnio imaterial, sua revalorizao no interior da prpria comunidade e sua

    re-significao extracomunitria, ficou claro para ns que o empoderamento

    (empowerment) pode servir, com sucesso, s comunidades no re-conhecimento

    das suas principais vocaes. O que se busca conhecer as redes sociais de soli-

    dariedade para, a partir delas, apoiar a construo de identidades de projeto que

    ofeream uma insero socioeconmica mais justa e que garantam o efetivo

    exerccio da cidadania. Porm, esta construo de identidade cultural, ao

    tocar o intangvel, desprende o poder que normalmente fica represado pelas

    formas tradicionais de identidades legitimadoras, fazendo emergir no seio da

    comunidade antigos contedos de medos e o seu corolrio: o dio.

    3 Agradeo ao babalorix Manoel Papai, do Terreiro dos Xangs de Recife, a contribuio desta

    histria sobre o poder do Iroco.

  • 19

    A marca do sagrado

    Nossa recente experincia junto s comunidades carentes da cidade do

    Rio de Janeiro, da qual o Camorim faz parte, permite a ns identificar pelo

    menos quatro formas tradicionais de associaes identitrias que funcionam

    sistematicamente no interior dessas comunidades:

    Redes familiares;

    Redes religiosas;

    Redes geogrficas (vizinhana); e

    Redes de interesses compartilhados.

    Cada uma destas formas de associao identitria possui uma lgica pr-

    pria de integrao entre os seus membros e um cdigo de conduta uma

    tica ou conjunto de prticas de confisso que garante a sua fortaleza como

    sujeito coletivo, legitima cada um dos seus membros e define os limites dessa

    identidade, definindo tambm os seus no-membros, ou seja, os seus exclu-

    dos.4 Cada um desses sentidos de pertencimento responde por aspectos par-

    ticulares da re-existncia material, emocional e espiritual dos seus membros.

    O ncleo duro do poder que emana dessas formas de identidades legitimadoras

    tem a ver com o sentido de pertencimento que elas oferecem e se apresenta

    sob a forma de aceitao, solidariedade e lealdade definitivamente, con-

    ceitos ligados ao sagrado. No interior de cada uma dessas formas de existir

    na comunidade, a capacidade de resistir dos seus indivduos ser tanto maior

    quanto mais estruturados estiverem os cdigos ticos daquela rede, indepen-

    dente do valor dos seus contedos.

    As redes familiares so as principais responsveis pelas prticas de prote-

    o fsica e de sobrevivncia material. As redes religiosas respondem primor-

    dialmente por legitimidade e oportunidades sociais extrafamiliares. As redes

    geogrficas, ou de vizinhana, esto ligadas aos limites fsicos que definem

    inseres socioeconmicas e percepes polticas. Por ltimo, as redes de

    interesses compartilhados respondem pela sobrevivncia de valores ticos,

    estticos, educacionais e comportamentais, que excedem as esferas da fam-

    lia, das igrejas e das associaes de corte geogrfico.

    Muito embora seja dessas redes que emanem incontestveis fortalezas

    sociais, a sustentar as redes sociais de solidariedade que nos importa conhecer,

    delas tambm que derivam as mais dolorosas fragilidades que propiciam o

    4 Vale lembrar que no estamos aqui tratando da categoria excludos com a qual vm operando

    as cincias sociais brasileiras a partir de um imaginrio francfilo.

  • As marcas do homem na floresta

    20

    exerccio de prticas cotidianas de violncia mtua, um substrato tico que

    d suporte violncia maior a que todos estamos submetidos na atualidade.

    Assim como o ncleo duro do poder das identidades legitimadoras tem

    a ver com o sentido de pertencimento, o cerne dessas formas cotidianas de

    enfraquecimento mtuo justamente o no-pertencimento que essas mesmas

    identidades constroem ao seu redor por meio de disputas de poder e de pre-

    conceitos de toda sorte.

    No nosso entender, trabalhar com a idia de empoderamento das comuni-

    dades carentes, na esperana de criar condies para uma insero mais justa

    no capitalismo cultural, significa encontrar as estreitas passagens deixadas pelas

    prticas sistemticas do preconceito e das disputas de poder para, por meio

    delas, fazer avanar a construo de identidades culturais poderosas e trans-

    formadoras. Trata-se de fazer convergir em algum smbolo escolhido pela

    prpria comunidade como o caso da figueira os contedos e as prticas

    de incontveis identidades para alm dos seus conflitos de tal maneira

    a construir um sujeito coletivo capaz de ser senhor da sua prpria histria.

    Voltemos floresta para buscar a essncia deste smbolo.

    O culto a certos elementos da natureza tem a ver com a busca humana

    pela aproximao do espao do divino, o local do desfrute da paz, da felicida-

    de, da saciedade e da plenitude (Sullivan & Eliade, 2003, p. 166).

    A existncia de centros sagrados permite o estabelecimento de um sistema

    mundano, um corpo de realidades imaginadas que se relacionam entre si: duas

    realidades sagradas; um axis mundi [eixo do mundo] (rvore, montanha, escada,

    parreira ou coluna) que simboliza a comunicao entre duas regies csmicas; e

    a extenso de um mundo organizado e habitvel que existe em torno do centro

    (Sullivan & Eliade, 2003, p. 166). [Traduo nossa]

    a sacralidade do objeto de devoo que se cultua, e no a sua imann-

    cia a forma que ele assume no mundo. No caso da figueira, como vimos, o

    sagrado o acolhimento, a proteo e o pertencimento que ela oferece aos

    herdeiros dos legados de todas as tradies culturais presentes no Camorim.

    Os rituais de devoo a qualquer rvore sagrada tm a ver com a demar-

    cao do espao de Deus no mundo: o espao do sagrado. A diferenciao dos

    espaos e tempos entre sagrados ou profanos o que nos ajuda a construir a

    idia de cosmo, em oposio ao caos da homogeneidade. Sobre este assunto

    Eliade nos ensina que:

  • 21

    A marca do sagrado

    Para o homem religioso o espao no homogneo, ele apresenta rupturas, cises:

    h pores do espao qualitativamente diferentes das outras: No te aproximes

    daqui disse o Senhor a Moiss tire os sapatos dos ps, pois o lugar onde

    ests uma terra santa. (xodo 3,5) H, sempre, um espao sagrado e, por

    conseguinte, forte, significativo, e h outros espaos no consagrados e, por

    conseguinte, sem estrutura nem consistncia, em uma palavra: amorfos (...) a

    experincia religiosa da no-homogeneidade do espao constitui uma experi-

    ncia primordial, equivalente fundao do mundo (...) esta ruptura o que

    descobre o ponto fixo, o eixo central de toda orientao futura (Eliade, 1998,

    p. 21). [Traduo nossa]

    Demarcar um espao sagrado por meio de alguma forma cultual natu-

    reza construir a idia de uma passagem para a aproximao a Deus, e tem

    o mesmo valor simblico que a construo de um templo. Falar de espciessagradasna floresta transportar para l a sacralidade do templo, da casa e da comunidade.

    Como reflexo final, vale a pena lembrar que, com mos, machado, en-

    xada, fogo e fumaa como mostra este livro provocou-se e se provoca

    a fragilidade da natureza sobrevivente do Parque Estadual da Pedra Branca.

    O curioso que, com o transcorrer da histria, quanto mais sutil e voltil foi

    o seu agente predador, tanto mais devastador e irremedivel ele se mostrou.

    Entre outras coisas, este livro permite aprender que algo to imperceptvel

    quanto a fumaa pode ser portador de elementos pesados que destruam mais

    que os toscos instrumentos de homens mais primitivos. E o que se observa na

    natureza, via de regra, vale para a vida no interior da comunidade humana.

    Quem sabe seja hora de re-sacralizar o mundo a partir dos espaos da

    casa, da vizinhana e da comunidade. Quem sabe seja j o tempo de conhecer

    os elementos pesados das nossas relaes, que provocam as nossas fragilidades,

    para nos livrarmos definitivamente deles. Quem sabe seja agora a hora de

    cultuar a solidariedade da figueira, seu poder de receber as muitas verdades

    que habitam a floresta e o mundo, sua capacidade de acolher as diferenas

    mundanas a partir do reconhecimento da sua unidade sagrada.

    Quem sabe seja tempo de marcar os nossos espaos no mundo a partir

    do que nos sagrado.

    RefernciasbibliogrficasANDERSON, B.Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism. Londres/Nova York: Verso, 1991.

  • As marcas do homem na floresta

    22

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    Encyclopedia of Religion. v. 3, p. 166-171. Nova York: MacMillan Publishing

    Company, 2003.

  • 23

    Poucos ecossistemas no Brasil apresentam uma situao de diversidade seme-lhante que ocorre na extensa formao costeira brasileira conhecida como

    mata atlntica, onde a paisagem apresenta-se multifragmentada e profusa-

    mente variada ao longo do litoral. Esse mosaico de florestas pluviais, pla-

    ncies e montanhas costeiras, denominado em conjunto de mata atlntica,

    ocupa principalmente a vertente atlntica das serranias.

    No trecho da regio Sudeste, a fachada atlntica comporta uma varieda-

    de de bitopos que, se por um lado apresentam similaridades geoecolgicas

    entre si, por outro levam a particularidades ditadas por diferentes condies

    de evoluo tanto na escala geolgica quanto em natureza e intensidade

    das intervenes antrpicas. A ancianidade da mata atlntica um fator rele-

    vante e presente em todas as suas manifestaes, quer biticas ou abiticas.

    Segundo Leito-Filho (1987), a floresta atlntica a formao florestal mais

    antiga do Brasil, sendo que a maioria das famlias de angiospermas modernas

    estabeleceram-se na era Mesozica, no final do perodo Cretceo h cerca

    de 70 milhes de anos (Salgado-Laboriau, 1994). As particularidades de sua

    formao geolgica esto ligadas ao fato de que a mata atlntica reveste uma

    ampla faixa de domnios estruturais e geolgicos, abarcando distintas formas

    geomorfolgicas. Apesar da ocorrncia de solos muito distintos, uma carac-

    terstica comum maioria dos mesmos a sua baixa fertilidade.

    Somando-se a este fator, h o fato de que a megadiversidade caracters-

    tica da mata atlntica influenciada pela variedade de bitopos: sua altitude

    varia do nvel do mar a quase trs mil metros, apresentando encostas voltadas

    para diferentes quadrantes geogrficos. A variabilidade de climas deste bioma

    tambm intensa, seja na dimenso horizontal (alteraes ligadas amplitu-

    de latitudinal), como na vertical (os gradientes altitudinais e fitofisionmicos

    que a compem).

    IntroduoOs cenrios da paisagem

    Rogrio Ribeiro de Oliveira1

    1 Professor do Departamento de Geografia da PUC-Rio: Rua Marqus de So Vicente, 225,

    CEP 22 453-900, Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].

  • As marcas do homem na floresta

    24

    Toda esta variabilidade no quadro fsico forma a base para o estabeleci-

    mento de ecossistemas extremamente diversos no que se refere sua bioce-

    nose. Em qualquer escala em que se estude a mata atlntica, impem-se as ele-

    vadas diversidades genticas de espcies, ecossistemas e da prpria paisagem.

    De acordo com Joly et al. (1991), esta diversidade atinge o mximo na regio

    Sudeste, decrescendo em direo ao Sul. Fato extremamente relevante para a

    compreenso da riqueza deste bioma o seu alto ndice de endemismos. Entre

    as rvores, mais da metade das espcies exclusiva deste ecossistema. No caso

    de plantas herbceas, especialmente em relao s epfitas, este percentual

    ainda muito maior. Para palmeiras e bromlias, de cada trs espcies, duas so

    endmicas (Mori et al. 1981; Peixoto, 1992; Joly et al., 1991).

    Em contraste com essa diversidade e exuberncia, importante levar

    em considerao que mais de 70% da populao brasileira vivem no terri-

    trio da mata atlntica. Alm de abrigar a maioria das cidades e regies me-

    tropolitanas do pas, a rea originalmente coberta pela floresta sedia tambm

    os grandes plos industriais, petroleiros e porturios do Brasil, respondendo

    por mais de 80% do PIB nacional. No quadro das resultantes ambientais des-

    se processo, um campo amplo de estudos o da transformao da paisagem

    pela ao do homem. A paisagem atual da mata atlntica constitui um sistema

    extremamente complexo, em que processos evolutivos chegaram ao presen-

    te evidenciando como caracterstica uma marcada interao com a presena

    humana, que alteraria para sempre seus funcionamento, estrutura e espa-

    cializao. Seja qual for o recorte histrico os grupamentos de coletores-

    caadores do litoral de cinco mil anos atrs; os aldeamentos indgenas que os

    sucederam; as populaes tradicionais j mestiadas com o branco (caiaras,

    etc.), ou os ciclos econmicos que tiveram a mata atlntica como palco, a

    caracterstica principal sempre foi a substituio da paisagem natural pela

    cultural. Mais recentemente, somou-se a estes a grande expanso dos cen-

    tros urbanos e industriais, que acrescentou novos agentes dinmica desta

    formao, como deposio de poluentes, uso intensivo de encostas, turismo

    descontrolado, etc. Assim, a dimenso da presena humana na mata atlntica,

    em quaisquer escalas ou recortes de tempo, parece ser um fato marcante e

    constitui um processo interativo, cuja caracterstica principal apresentar

    suas gnese e atuais manifestaes ligadas ao passado.

    Estendendo-se nos entornos de trs macios litorneos de expresso

    Pedra Branca, Mendanha e Tijuca a cidade do Rio de Janeiro apresenta

    especificidades ditadas justamente por esta vizinhana. A interao desses sis-

  • 25

    Os cenrios da paisagem

    temas de natureza to opostos a cidade e a montanha leva ao estabeleci-

    mento de uma rede de trocas entre ambos que colabora para a construo de

    uma realidade geoecolgica mpar.

    Numerosos aspectos fitofisionmicos contribuem para uma constitui-

    o estrutural em que elementos naturais e antrpicos intervm em graus

    diversos. A paisagem assim formada guarda caractersticas muito distintas.

    Apesar da relativa proximidade, os sistemas montanhosos da Pedra Branca

    e da Tijuca guardam dessemelhanas entre si geradas por condicionantes ge-

    olgicos, geomorfolgicos, vegetacionais e por sua histria ambiental. Por

    outro lado, dispe-se, sobre o macio da Pedra Branca, de um conjunto de

    conhecimentos cientficos muito reduzido se comparado ao macio da Tijuca.

    Esta situao ainda mais inquietante quando se considera ser a zona oeste o

    plo de crescimento da cidade do Rio de Janeiro.

    A ocupao da regio iniciou-se, como em boa parte do litoral sudes-

    te, h mais de trs mil anos, com bandos de coletores-caadores que for-

    maram vrios sambaquis (montes de conchas e restos orgnicos) na baixada

    de Jacarepagu. A economia desses grupos era bastante diversificada, com

    predomnio da pesca e coleta de moluscos. Apesar da dependncia dos recur-

    sos litorneos, existem evidncias de que essas populaes subsidiavam seu

    abastecimento com a caa na encosta do macio da Pedra Branca. Machados

    de pedra encontrados na floresta atestam essa possibilidade (figura 1). Essa

    cultura perdurou at o contato com o Tupi-guarani, em quase todo o litoral.

    Figura 1 Artefatos lticos encontrados nas encostas florestadas do macio da Pedra

    Branca.

  • As marcas do homem na floresta

    26

    Em termos de transformao da paisagem, a ocupao acelerada deu-se

    no sculo XVII, com a instalao de um importante engenho nas terras da

    sesmaria de Correia de S, legadas ao mosteiro de So Bento em 1667 por

    d. Vitria de S. Essas propriedades foram administradas, at fins do sculo

    XIX, pelos beneditinos, que criariam ali trs prsperas fazendas: as proprie-

    dades de Camorim, Vargem Grande e Vargem Pequena, onde havia intensa

    atividade agropecuria. Posteriormente, essas terras foram hipotecadas ao

    Banco de Crdito Mvel. Com o crescimento da cidade, algumas modalida-

    des de proteo ambiental foram estabelecidas, como as Florestas Protetoras

    da Unio. A partir de 1920, o banco comeou a venda, aos lavradores, de

    lotes que foram transformados em stios de destinao diversa, de acordo

    com sua localizao. Na vargem, a mata do brejo serviu a indstrias de cestos

    e tamancos. Nas encostas, a explorao das capoeiras para lenha e carvo teve

    grande importncia para o abastecimento dos foges domsticos do Rio de

    Janeiro at 1940.

    Em termos de cultivos, extensos bananais recobrem at hoje os flancos

    at altitudes superiores a 400 m. Espalhada em numerosos pontos do macio,

    existia a lavoura branca (chuchu, milho, aipim, batata-doce, jil, maxixe, ab-

    bora), feita no sistema derrubada-pousio (Galvo, 1957). Com a urbanizao

    crescente do Rio de Janeiro, e com a criao, em 1974, do Parque Estadual da

    Pedra Branca, estas foram praticamente extintas na vertente sul do macio e,

    com o tempo, a sucesso ecolgica promoveu a cicatrizao dessas clareiras. A

    explorao econmica da encosta do macio da Pedra Branca migrou das roas

    de subsistncia para os bananais. Esses mantiveram-se em vastas reas, tendo os

    agricultores remanescentes se adaptado nova ordem ambiental: as queimadas

    foram eliminadas e o cultivo da banana assumiu um carter semiclandestino,

    baseando a sua explorao mais no extrativismo do que no manejo da cultura.

    Por no utilizar o fogo, essa forma de explorao se adaptou melhor s res-

    tries sobre o uso da terra impostas pelo Parque Estadual da Pedra Branca.

    Essa unidade de conservao tem a extenso de 12.398 ha (o que representa

    16% do territrio do municpio do Rio de Janeiro), abrangendo vrios bairros,

    como Campo Grande, Bangu, Realengo, Jacarepagu, Barra da Tijuca, Recreio

    dos Bandeirantes e Guaratiba. Seu limite oficial a cota de 100 m, englobando,

    assim, cerca de 70% do macio (Costa, 2002).

    O macio da Pedra Branca vive atualmente um acelerado processo de

    desenvolvimento das atividades urbanas em seu entorno e de expanso da

    degradao do ecossistema florestal. O crescimento da malha urbana, o des-

  • 27

    Os cenrios da paisagem

    matamento e a expanso das atividades agrcolas em suas encostas impri-

    mem hoje, na paisagem, grandes modificaes no arranjo espacial de seus

    elementos; e definem, assim, sua nova paisagem. Por ser rea de expanso

    urbana, ou seja, onde o crescimento dos ncleos de ocupao esto ainda se

    processando, o macio da Pedra Branca guarda, no seu espao, traos de um

    conflito rural-urbano. Dessa forma, encontra-se ainda uma atmosfera rural

    em meio crescente paisagem urbana que se constri com suas contradies

    sociais (Freitas, 2003). As propaladas vantagens da implantao de projetos

    de desenvolvimento do ecoturismo ainda no encontraram condies prop-

    cias, em funo da desarticulao de polticas nesse sentido.

    Dados do Instituto Municipal de Planejamento (Iplan) do, para os bair-

    ros localizados em seu sop, elevadas taxas de crescimento populacional ao

    longo das dcadas de 1990 e 2000. Este se deu pelo crescimento da chama-

    da cidade informal, com a proliferao de favelas e loteamentos irregulares,

    avanando pela mata atlntica do Parque Estadual da Pedra Branca. Como

    uma resultante desse processo, cresceram exponencialmente problemas li-

    gados ao saneamento bsico. A presena do Parque Estadual da Pedra Branca

    no suficiente para impedir o avano seja por favelas ou residncias de

    luxo sobre as encostas da mata atlntica do macio.

    Muito possivelmente, dentre as matas que compem o macio da Pedra

    Branca, a floresta do Camorim local de realizao da maioria dos estudos

    deste livro seja a que se apresenta mais bem conservada. Isto se deve ao

    combinada de diversos fatores ambientais, como a baixa presso de visita-

    o, gradientes altitudinais, orientao de encostas e proximidade do litoral.

    Localizada na bacia do rio Camorim, com 1.200 ha, esta apresenta um pe-

    rmetro de 17 km e tem como principais tributrios os rios So Gonalo do

    Amarante e Caambe.

    Em seu interior encontram-se a serra do Nogueira e a Pedra da Rosilha,

    com 648 m e 480 m, respectivamente. A represa do Camorim, um lago artifi-

    cial construdo na dcada de 1930, uma das suas atraes, situada a 436 m de

    altitude. Um dos pontos de destaque na serra do Nogueira o Pico do Itaiaci,

    com 588 m. A principal caracterstica desta elevao como tambm de vas-

    tas reas no macio da Pedra Branca - a ocorrncia de um tipo particular de

    floresta localizada sobre solos extremamente rasos (de 30 cm a 40 cm de pro-

    fundidade) e com grande teor de matria orgnica (Oliveira & Costa, 1985).

    Em termos fisiogrficos, o macio da Pedra Branca faz parte do conjun-

    to de macios litorneos que compem o relevo da cidade do Rio de Janei-

  • As marcas do homem na floresta

    28

    ro. Apresenta-se com altitude moderada (1.025 m no Pico da Pedra Branca,

    ponto culminante do municpio) e vertentes escarpadas, apesar de apresentar

    feies de relevo menos dissecadas, comparativamente ao macio da Tijuca

    (Costa, 2002).

    A geologia da regio da bacia do rio Camorim caracterizada, nas

    partes mais baixas, pela presena de ampla faixa de gnaisse melanocrtico,

    enquanto, nas mais elevadas, por granitos de diversos tipos. No entanto, a

    presena desses granitos conspcua nos trechos de baixa encosta e fundos

    de vales, sob a forma de mataces oriundos de desabamentos ocorridos em

    pocas diversas. Esta litologia, juntamente com o clima regional, gera os se-

    guintes solos na regio do Camorim: os latossolos, nas encostas mais elevadas

    do macio, que so solos rasos e aparecem associados a cambissolos, solos

    litlicos e podzlicos, estes recobrindo principalmente as vertentes mais su-

    aves e de menor altitude.

    O balano hdrico do bairro do Camorim foi estabelecido a partir dos

    dados da estao meteorolgica mais prxima (autdromo de Jacarepagu).

    O tipo climtico submido, com pouco ou nenhum dficit de gua, mega-

    trmico, com calor uniformemente distribudo por todo o ano. A baixada de

    Jacarepagu, segundo a classificao de Kppen, acha-se includa no tipo Af, ou

    seja, clima tropical quente e mido, sem estao seca, com 60 mm de chuvas

    no ms mais seco, no caso, agosto. A regio, com pluviosidade de 1.215 mm

    anuais, apresenta uma retirada de gua do solo igual reposio (35 mm).

    As matas que revestem o grande anfiteatro montanhoso do Camorim fa-

    zem parte da floresta ombrfila densa submontana e montana (Velloso et al.,

    1991), apresentando-se em diferentes estgios de conservao. A resultante

    ambiental do intenso processo histrico de ocupao por agricultura de sub-

    sistncia uma profuso de florestas secundrias formadas pela multiplici-

    dade de antigas roas abandonadas em diferentes tempos. Esta caracterstica

    parece ser a principal responsvel pela fragmentao estrutural da paisagem

    florestada. A esse processo de incremento e recomposio do tecido flores-

    tal interpem-se os incndios florestais, que destroem periodicamente faixas

    considerveis da mata atlntica. Esses distrbios vm contribuindo para a

    destruio paulatina do patrimnio biolgico. Com relao flora ameaada

    de extino, as seguintes espcies, presentes na lista florstica do Camorim,

    fazem parte da lista oficial de espcies da flora brasileira ameaada de extin-

    o: Heliconia angusta, H. farinosa, Dalbergia nigra, Cariniana ianeirensis, Dors-

    tenia ramosa e D. arifolia (Ibama, 1992). Na relao de espcies ameaadas

  • 29

    Os cenrios da paisagem

    de extino no municpio do Rio de Janeiro (Secretaria Municipal de Meio

    Ambiente, 2000) constam diversas espcies vulnerveis e criticamente em

    perigo. Mais vulnervel ainda a situao da fauna (especialmente mamferos

    e aves) no macio da Pedra Branca. A cultura de caa por parte de seus mora-

    dores faz com que muitas espcies, especialmente os mamferos, encontrem-

    se no limiar da extino local, principalmente na regio perifrica da floresta.

    No entanto, a bacia hidrogrfica do rio Camorim apresenta locais que

    podem ser considerados como verdadeiros relictos florestais, descritos a seguir.

    Bacia do rio So Gonalo do Amarante

    Esta bacia hidrogrfica revestida por uma floresta com um grande po-

    tencial em termos de conservao. Apesar desta ser ainda muito mal conhe-

    cida do ponto de vista botnico, os poucos dados disponveis so promissores.

    Em primeiro lugar, h que se destacar aspectos de ordem estrutural. De uma

    maneira geral, o estrato arbreo da bacia do rio So Gonalo do Amarante

    apresenta altura elevada, percebendo-se claramente um dossel contnuo, ca-

    racterizado por espcies de tamanhos desiguais. Em alguns casos, possvel

    encontrar indivduos emergentes de grande porte, como o caso de um

    jequitib (Cariniana legalis) de cerca de 45 m de altura.

    Como inexistem atrativos como cachoeiras ou lagos, a visitao redu-

    zida, o que contribui para que esta bacia apresente um dos melhores trechos

    florestados do municpio do Rio de Janeiro. Um outro fator que concorre

    para conservao da floresta a orientao da encosta que, no caso, voltada

    para o sul. Esta orientao tambm promove a conservao da umidade no

    interior da floresta, o que contribui para impedir a propagao de incndios.

    Em termos de ocupao espacial e dominncia, a espcie que mais cha-

    ma ateno a sucanga (Senefeldera multiflora). Ela dominante na floresta,

    sendo tambm possvel encontr-la em todos os estgios desde indivduos

    adultos at plntulas de 0,5 m de altura ocorrendo de forma onipresente

    em toda esta bacia. Um padro de comportamento oposto a este pode ser

    encontrado em Almeidea rubra, um arbusto que forma comunidades de ocor-

    rncia extremamente pontual.

    Em relao s espcies de valor econmico ou etnobotnico, podem ser

    identificadas vrias madeiras de primeira qualidade, como a bicuba (Virola

    oleifera) e o jacarand (Dalbergia nigra), assim como canelas de diversas esp-

    cies do gnero Ocotea, alm do cedro (Cedrela fissilis), da peroba (Aspidosperma

    melanocalix) e do louro-pardo (Cordia trichotoma). Outra tambm de grande

  • As marcas do homem na floresta

    30

    valor o jatob (Hymaenaea courbaril), que, alm da madeira de lei, fornece,

    a partir de sua seiva, o vinho de jatob, um fortificante. Alm disso, a casca

    tambm utilizada na medicina popular. De utilizao menos nobre, mas nem

    por isso menos procurado, o pau-pereira (Geissospermum vellosoi), cuja casca

    utilizada para condimentar a cachaa.

    Pico do Itaiaci

    Na mata atlntica, as classes de solo podem variar substancialmente a

    intervalos de poucos metros. Solos rasos podem ocorrer ao lado de aflora-

    mentos de rochas; e solos profundos, assim como solos frteis, podem estar

    associados a solos pobres em nutrientes. No entanto, relativamente co-

    mum, no macio da Pedra Branca, a existncia de encostas ngremes por

    vezes com declives superiores a 45o revestidas por floresta densa mas com

    caractersticas estruturais e de composio prprias, como por exemplo na

    vertente sul do Pico Itaiaci, com cerca de 40o de declividade. Informaes de

    antigos moradores atestam para este trecho a inexistncia de incndios ou da

    prtica de agricultura de subsistncia e fortalecem a hiptese de se tratar de

    uma floresta em excelente estado de preservao, configurando-se, portanto,

    como um clmax local.

    Possivelmente em funo das caractersticas edficas, a vegetao

    apresenta um aspecto geral escleromrfico, sendo constituda por numero-

    sas espcies helifilas, algumas tpicas de restingas, como o cacto Opuntia

    brasiliensis e o gravat Bromelia antiacantha. No estrato arbreo, as espcies

    mais caractersticas so Casearia sylvestris (guaatonga), Alseis floribunda, Rapa-

    nea umbellata (capororoca), Myrcia rostrata (vassourinha), Hymenaea courbaril

    var. altissima (jatob), Swartzia simplex var. grandiflora (laranjinha-do-mato),

    Ficus enormis (figueira-da-pedra), Salacia elliptica, Guapira opposita (maria-

    preta), Luehea divaricata (aoita-cavalo) e Roupala brasiliensis (carne-de-vaca).

    As espcies emergentes so constitudas por Pradosia kulmanii (casca-doce),

    Cryptocarya saligna e Attalea dubia (coco-indai). Em funo do raleamento

    do dossel, o sub-bosque bastante denso e representado por Ceiba erian-

    thus, Actinostemum communis, Sorocea guilleminiana (espinheira-santa, como

    equivocadamente conhecida na regio), Erythroxylum pulchrum (arco-de-pi-

    pa), Amphirrhox longifolia, Allophylus sericeus, Maytenus comunis, Cordia tricho-

    clada e Opuntia brasiliensis (Firme et al., 2001). Nas proximidades das zonas

    de cumeada, e em locais de solo ainda mais raso, o estrato herbceo todo

    formado por comunidades de bromeliceas, como Neoregelia cruenta, Bromelia

  • 31

    Os cenrios da paisagem

    antiacantha e Vriesea amestisthina. Esta espcie foi descoberta e descrita em

    1870 por Glaziou, que depositou uma amostra no herbrio de Paris. Desde

    ento, nunca mais esta espcie foi reencontrada na natureza, tendo sido dada

    por extinta. Recentemente, a mesma foi redescoberta nesta rea em uma

    populao muito reduzida, em funo de um incndio florestal que ocorreu

    em agosto de 2000.

    Floresta do prtico do Camorim

    O prtico do Camorim do Parque Estadual da Pedra Branca est lo-

    calizado no entorno da captao de guas do rio Camorim, construo que

    data do incio do sculo passado. formado por um conjunto de construes

    visando o represamento de suas guas: canalizao aberta, escada para areja-

    mento e tanques de decantao e unidades de filtrao e clorao. Destaca-se

    nessa rea a cachoeira Vu da Noiva, de grande beleza cnica. A floresta em

    questo estende-se a montante dos tanques de decantao de gua e do Vu

    de Noiva, em uma rea de aproximadamente 50 ha. Embora tecnicamente

    esse trecho possa ser classificado como floresta climxica, tanto quanto a

    formao anterior (a floresta do Pico do Itaiaci), desta se distingue pelos

    atributos fisionmico-estruturais. Enquanto a floresta que reveste o Pico do

    Itaiaci, por se tratar de formao sobre solos rasos, pouco densa e de porte

    reduzido, a floresta do prtico do Camorim se diferencia por ser constituda

    de rvores de grande porte. Sem dvida, trata-se de destacado patrimnio

    ecolgico do Parque Estadual da Pedra Branca e de grande importncia no

    contexto da conservao ambiental do municpio do Rio de Janeiro.

    Os dados disponveis sobre a composio da mata atlntica nesta rea

    so muito reduzidos, mas ainda assim suficientes para se ter uma noo do

    potencial de biodiversidade da rea, em funo da presena em grande n-

    mero de espcies tpicas de florestas conservadas. Dentre estas, destacam-se

    gneros e espcies pertencentes s famlias Lauraceae, Myrtaceae e Apocy-

    naceae. Somente para esta ltima, foram encontradas 12 espcies em apenas

    0,1 ha (Peixoto e Oliveira, dados no publicados). Entre estas, destacam-

    se Micropholis crassipedicellata, Chrysophyllum lucentifolium e Pradosia kuhlmanii,

    consideradas indicadoras de florestas maduras. A carga de epfitos grande

    e muito diversificada, o que tambm caracteriza florestas em estgio clim-

    xico. De uma maneira geral, o aspecto que mais chama a ateno neste local

    a estrutura da floresta, que se caracteriza por exemplares de grande porte,

    tanto na altura como na espessura de caules, o que reflete a sua condio

  • As marcas do homem na floresta

    32

    prstina.

    No que se refere aos flancos de deteriorizao da rea do prtico do

    Camorim, o elemento de maior peso o gradual avano do capim colonio

    (Panicum maximum), que aqui entra proveniente de pastagens vizinhas. J de

    longa data fcil perceber que a existncia de pastagens de modo geral

    clandestinas e com baixa produtividade de carne e leite apresenta-se asso-

    ciada ocorrncia de incndios anuais. No intento de se conseguir pasto mais

    verde no perodo da seca, os proprietrios do gado ateiam fogo pastagem, o

    que resulta em gradual avano da mesma sobre as reas florestadas.

    Estes trs trechos de mata atlntica constituem os mais bem conservados

    de toda a bacia do Camorim, configurando-se, portanto, como formaes

    climxicas. Por razes histricas diversas, foram preservados da destruio,

    sendo muito possvel que o fato de se localizarem em terrenos ngremes e

    distantes da baixada tenha sido objeto de menor procura para explorao. Sua

    rea total de cerca de 200 ha, o que perfaz 28% de toda a bacia. Os demais

    72%, alm do uso antrpico direto, so constitudos de florestas secundrias,

    em vrios estgios de regenerao. As causas dessa descaracterizao de sua

    condio prstina e de sua histria ambiental, e as resultantes ecolgicas desse

    processo, sero vistas ao longo dos captulos que se seguem.

    AgradecimentosA Luci P. Hack e Edson Fialho pela elaborao do balano hdrico e a Pe-

    dro Paulo Lima-e-Silva e Mirtes Cavalcanti Musitano pela reviso do original.

    RefernciasbibliogrficasCOSTA, N. M. Anlise do Parque Estadual da Pedra Branca por geoprocessamento:

    uma contribuio ao seu Plano Diretor. 2002. 317 f. Tese (doutorado) Pro-

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    Os cenrios da paisagem

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    Departamento de recursos naturais e estudos ambientais, 1991. 124 p.

  • Captulo IO espao marcado

  • 37

    Sou um gegrafo e meu trabalho repousa quase que exclusivamente numa

    grande tradio: (...) a de dar sentido natureza falava-nos Stoddart em

    sua obra On Geography and its History, de 1986. E esta nossa tarefa no con-

    junto de captulos que compem esta obra: pensar uma floresta do ponto de

    vista de sua importncia econmica e social, mas, principalmente, dar-lhe

    significado histrico. Em outras palavras, falar de sua geografia a partir de sua

    histria ambiental. E, neste captulo, pretendemos dar subsdios compreen-

    so do que chamaremos, ao longo da obra, de histria ambiental.

    No quadro atual de transformaes vividas pela geografia, a anlise da

    organizao espacial tem se dado, cada vez mais, por meio de uma prtica

    interdisciplinar, despertando novo interesse no estudo das relaes entre na-

    tureza, cultura, sociedade e meio ambiente.

    certo que tal relao sempre foi objeto de investigao de diversos

    ramos do saber, desde a antigidade. No entanto, este tema encontra agora

    dois novos caminhos que interessam de perto geografia. O primeiro aque-

    le proposto pela histria ambiental, uma disciplina recente que considera a

    natureza um agente na histria do homem. Este ramo da histria trabalha

    em trs diferentes nveis: o entendimento da natureza propriamente dita; a

    anlise do domnio socioeconmico; e a apreenso de percepes, valores

    ticos, leis, mitos e outras estruturas de significao que ligam um indivduo

    ou um grupo natureza, incluindo, conseqentemente, a questo da cultura.

    O segundo caminho o proposto pela geografia cultural, apoiado naqui-

    lo que a geografia h muito postula a cultura vista como a resposta humana

    ao que a natureza nos oferece como base fsica. Se tais idias parecem atrela-

    das a uma geografia cultural do passado, est ligada tambm nova geografia

    cultural, preocupada com a influncia da cultura na organizao espacial.

    Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes

    Ins Aguiar de Freitas1

    1 Professora do Departamento de Geografia da UERJ Rua So Francisco Xavier, 524, Rio

    de Janeiro - RJ, CEP 20550-013.

  • As marcas do homem na floresta

    38

    Temos, assim, nos dedicado a estudos em histria ambiental, principal-

    mente na busca de uma interface dessa disciplina com a geografia. Inclui-se

    nesses estudos o tema das relaes entre natureza e cultura e de como tais

    relaes influenciam a ao dos homens sobre o meio ambiente.

    Por isso, sentimo-nos vontade para tratar aqui das bases terico-con-

    ceituais da histria ambiental e da questo de sua interdisciplinaridade fator

    que permite um rico e intenso dilogo com a geografia (seja ela fsica ou

    humana)2. Ao mesmo tempo, gostaramos de destacar que uma situao de

    novidade que caracteriza a abordagem do tema para ns, gegrafos, de ma-

    neira geral, no tem impedido que esses primeiros passos venham a pblico,

    mesmo que ainda no existam estudos mais aprofundados ligando a histria

    ambiental geografia.

    Enfim, nosso objetivo principal, neste captulo, estabelecer um dilogo

    entre a geografia e a histria ambiental, crendo que este muito tem a contribuir

    para a compreenso da organizao espacial e, principalmente, do significado

    que uma floresta urbana como a do Camorim possa ter hoje, para seus habitan-

    tes e para o povo da cidade que a cerca, no caso, o Rio de Janeiro.

    AgeografiaeumanovainterdisciplinaridadeSeguindo Glacken (1990), cremos que um dos temas fundadores da

    geografia (ou do saber geogrfico, antes mesmo de sua institucionalizao

    como cincia ou disciplina acadmica) aquele que aborda as relaes entre

    natureza e cultura. Tais preocupaes tm origem na antigidade, passan-

    do por todos os momentos da histria desde ento, destacando-se o sculo

    XVIII (quando o tema ganha enorme importncia) e chegando aos nossos

    dias, quando, entre outras coisas, buscamos nessa relao as respostas mais

    urgentes para a compreenso da organizao espacial, entre elas a questo da

    cultura na construo das paisagens humanas ou a busca por solues para

    os problemas ambientais que hoje enfrentamos. Enfim, tal temtica nunca

    abandonou gegrafos e estudiosos de muitas outras reas.

    Ao longo de toda a histria da geografia, a anlise da organizao es-

    pacial tem se dado por meio de uma prtica interdisciplinar. Isto inegvel.

    E esta tem sido a causa de muitos problemas epistemolgicos vividos pela

    2 Assim foi nos trabalhos: Histria ambiental e geografia, apresentado no Encontro Nacional de

    Gegrafos; Histria ambiental e geografia na obra de Alberto Lamego, apresentado na mesma

    ocasio, numa mesa redonda; e A geografia na construo de uma histria ambiental brasileira,

    publicado no Boletim Goiano de Geografia (da Universidade Federal de Gois), em dezem-

    bro de 2002.

  • 39

    Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes

    prpria geografia sua maior caracterstica (a interdisciplinaridade) , tam-

    bm, sua maior fragilidade. E, se hoje as mais recentes propostas e pesquisas

    nas diferentes reas do conhecimento tm se orientado no mesmo sentido

    de uma interdisciplinaridade, esta, no entanto, no deve ser compreendida

    como um conjunto, muitas vezes desarticulado, de diferentes disciplinas, em

    que se tenta fundir mtodos, objetos, tcnicas e abordagens diversas. Tal in-

    terdisciplinaridade estaria, sim, fundamentada pelo princpio da complexidade.

    Como claramente explica Cavalcanti (2002, p. 127), no contexto desse

    novo paradigma a interdisciplinaridade surge como parte da proposta de se

    criar um intercmbio, uma cooperao entre diversas disciplinas, em busca da

    construo de projetos com base em objetos de conhecimento transdiscipli-

    nares. Alerta-nos Morin (2001, p.13) que, no quadro atual de nossa cincia

    moderna h inadequao cada vez mais ampla, profunda e grave entre os

    saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por

    outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transver-

    sais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetrios. Assim, acredita

    o autor que as cincias da terra, entre as quais se d destaque geografia, con-

    tribuem para a elaborao de um cenrio diferente, acreditando que

    (...) o desenvolvimento das cincias da terra e da ecologia revitalizam a geo-

    grafia, cincia complexa por princpio, uma vez que abrange a fsica terrestre,

    a biosfera e as implantaes humanas (...). A geografia (...) desenvolve seus

    pseudpodes geopolticos e reassume sua vocao originria (...), segundo o

    autor, generalizadora (...) (Morin, 2001, p. 28-29).

    Assim, a geografia, com seu objeto multidimensional o espao geogrfico

    ainda segundo Morin, estaria apta a fazer parte dessa nova interdisciplina-

    ridade, apoiada na proposta de ecologizar as disciplinas, associando-as a uma

    metadisciplina (entendida como algo que vai alm da disciplina, em que a geo-

    grafia se visse como parte de um todo complexo). Conhecimento distinto,

    sim, mas no isolado das outras partes e do todo (Cavalcanti, 2002, p. 127).

    como se dentro desse esprito de renovao de paradigmas vislum-

    brssemos a possibilidade de dar incio a uma conexo ou, se preferirmos, a

    um dilogo entre a geografia e uma disciplina relativamente recente, ainda

    pouco conhecida no Brasil a histria ambiental, sempre perseguindo as

    propostas de construo de uma nova e verdadeira interdisciplinaridade.

    Cremos que a histria ambiental apresente muitos pontos de interesse

    comuns nossa cincia e que, sendo assim, os gegrafos no podem deixar

  • As marcas do homem na floresta

    40

    de estar atentos s propostas que os historiadores ambientais trazem para o

    campo das idias sobre as relaes entre natureza e sociedade. No podem

    tambm deixar de dar sua contribuio a essa nova disciplina. E, principal-

    mente, devemos reconhecer, na produo da geografia, os autores que, mes-

    mo sem saber, j tenham recorrido a objetos e formas de abordagem tpicos

    de uma histria ambiental, estabelecendo alguma forma de conexo entre as

    duas disciplinas.

    Como dito acima, o principal objetivo deste texto estabelecer o deba-

    te da geografia com a histria ambiental, a fim de que a geografia possa con-

    tribuir para a compreenso (e soluo) dos problemas que envolvem, hoje,

    uma floresta como a do Camorim: uma crise ambiental, uma intensa crise

    urbana vivida pela grande cidade ao seu redor, a perda da qualidade de vida

    que atinge quase todos os habitantes da cidade s para citar alguns deles;

    problemas cujas caractersticas nos permitem apont-los como ecolgicos, sis-

    tmicos, holsticos, ou metadisciplinares, no sentido conferido a esses termos por

    autores como Capra e Morin, entre outros.

    Se o paradigma da cincia moderna fazia fundamental que todo campo

    do conhecimento tivesse seus limites bem traados, que fosse bem conhecida

    a natureza de suas preocupaes, que tivesse seus objetivos bem definidos e

    que, ao se fundar, toda cincia pudesse estar trazendo uma nova e real contri-

    buio para a compreenso do mundo em que vivemos, os novos paradigmas,

    que apontam para uma cincia sistmica, dificultam o estabelecimento de tais

    limites e imposies.

    Assim, se no caso da histria ambiental esta nova disciplina apia-se nos

    mtodos e em alguns conceitos da histria, por outro lado devemos lembrar

    que a interdisciplinaridade que a caracteriza parece abrir espao para um

    grande dilogo com a geografia.

    Oquehistriaambiental?A histria ambiental uma disciplina relativamente nova, praticada

    principalmente nos Estados Unidos, na Austrlia e em alguns outros pases

    de lngua inglesa, nascida do interesse e dos trabalhos de pesquisa de uma

    pequena comunidade acadmica, formada principalmente por historiadores

    e bilogos vindos de diferentes temas e especialidades.

    Este novo campo do conhecimento vem sendo construdo h cerca de

    15 anos, ligando a histria natural histria social. Esta caracterstica bsica

    da proposta dos criadores da histria ambiental torna-se possvel devido ao

    fato de a construo dessa nova disciplina se apoiar numa viso arraigadamen-

  • 41

    Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes

    te interdisciplinar, interessada em tratar do papel e do lugar da natureza na

    vida humana (Worster, 1991).

    Drummond (1997), um dos primeiros divulgadores da histria ambien-

    tal no Brasil, indica a ns alguns nomes constituintes do grupo de trabalho

    em histria ambiental nos Estados Unidos. Seriam eles: William Cronon,

    Donald Worster, Richard White, Stephen Pyne, Warren Dean, Alfred Cros-

    by, Joseph Petulla, Frederick Turner, Roderick Nash, Samuel Hays, Richard

    Tucker, entre outros. O grupo, que possui uma associao profissional a

    American Society for Environmental History e um peridico a revista Environ-

    mental History tem por objetivo principal colocar a natureza na histria,

    segundo palavras de William Cronon.

    Segundo Donald Worster (1991, p. 198), at pouco tempo o assunto

    tradicionalmente importante para os historiadores era a poltica e, conse-

    qentemente, o nico campo que merecia interesse era o Estado. Ou seja,

    a histria sempre dedicou sua ateno a temas relacionados com o funcio-

    namento das instituies formadoras dos Estados nacionais. Mas h algum

    tempo esse conceito da histria comeou a perder terreno, na medida em

    que o mundo evolua para um ponto de vista mais global. Os historiadores

    comearam a abandonar um pouco da sua certeza de que o passado tenha

    sido to integralmente controlado ou representado por alguns poucos ho-

    mens ou determinado to-somente por interesses de Estado. Os estudiosos

    comearam a desenterrar camadas longamente submersas das vidas e dos

    pensamentos das pessoas comuns e tentaram reconceituar a histria de baixo

    para cima (Worster, 1991), valorizando cada vez mais conceitos como terri-

    trio, territorialidades, enfim, aproximando-se (no caso da histria ambiental),

    podemos dizer, de categorias at hoje to prprias da geografia.

    nessa nova forma de se fazer histria (baseada na vida e nos pensamen-

    tos das pessoas comuns) que a histria ambiental se insere. E ela vai alm,

    pois considera a Terra (o meio ambiente) como um agente e uma presena na

    histria. Isto impe ainda uma anlise mais global, na medida em que os fe-

    nmenos que acontecem no meio ambiente no ficam restritos s fronteiras

    dos Estados nacionais. E, se quisermos entend-los e associ-los evoluo

    das prticas sociais, precisamos ter uma viso mais integrada do mundo, que

    no fique restrita s fronteiras polticas.

    Pavimentando o caminho da histria ambiental, Worster indica, como

    vimos, que esta disciplina trata do papel e do lugar da natureza na vida huma-

    na, lembrando que esta nova histria encontra seu principal tema de estudo

    na esfera no-humana. Ou seja, em tudo aquilo que no construdo pelo hu-

  • As marcas do homem na floresta

    42

    mano (e que normalmente chamamos de natureza), mas que exerce influncia

    sobre a vida humana; aquelas energias autnomas que no derivam de ns,

    mas que interferem na vida humana, estimulando algumas reaes, algumas

    defesas, algumas ambies.

    Haveria trs nveis de funcionamento na histria ambiental, ou, se pre-

    ferirmos, trs grandes conjuntos de questes:

    1. Aquele que trata doentendimento da natureza propriamente dita seus aspectos orgnicos e inorgnicos, formadores de uma histria na-

    tural. Existiria sempre a perspectiva de se comear os estudos em

    histria ambiental com a apresentao do passado das paisagens que

    sero estudadas.

    2. O segundo nvel de investigao trata dodomnio socioeconmico, na medida em que este interage com o ambiente ferramentas de tra-

    balho, modos de produo, relaes sociais, instituies, decises

    ambientais ou seja, est includo neste nvel o estudo do poder de

    tomada de deciso de uma dada sociedade, inclusive as decises eco-

    nmicas e polticas referentes ao meio ambiente. Grande parte da

    histria ambiental se dedica justamente a examinar essas mudanas,

    voluntrias ou foradas, nos modos de subsistncia e suas implica-

    es para as pessoas e para a terra. (Worster, 1991, p. 207)

    3. O terceiro nvel cuida de um tipo de interao mais intangvel e

    exclusivamente humano, puramente mental ou intelectual, no qual

    percepes, valores ticos, leis, mitos e outras estruturas de signifi-

    cao se tornam parte do dilogo de um indivduo ou de um grupo,

    com a natureza (Worster, 1991. p.202). Seria aquilo que Turner

    (1990) chamou de uma histria espiritual que um povo tem com seu

    territrio. (...) a natureza no uma idia, mas muitas idias, signi-

    ficados, pensamentos, sentimentos, empilhados uns sobre os outros,

    freqentemente da forma menos sistemtica possvel. (Worster,

    1991, p. 210)

    Longe de um determinismo ambiental, pode-se ver que a histria ambien-

    tal uma histria que inclui a natureza como objeto, mas tambm como

    resultante de processos engendrados pelo homem e pela evoluo natural da

    rea, ou seja, a paisagem (Worster, 1991). Vejamos alguns exemplos do que

    estudam alguns historiadores ambientais.

  • 43

    Histria de uma floresta, geografia de seus habitantes

    William Cronon, um dos mais ativos participantes do grupo fundador da

    histria ambiental nos Estados Unidos e que ocupa, no por acaso, a cadeira

    Professor Frederick Jackson Turner3 de histria, geografia e estudos ambientais,

    na Universidade de Wisconsin-Madison, nos mostra em sua obra como

    importante refletirmos sobre a natureza e sobre nossas relaes fsicas com-

    plexas com o mundo natural, pois

    a natureza que carregamos dentro ns to importante quanto a natureza que

    nos cerca, porque a natureza que est dentro de ns com certeza o motor

    que dirige nossas interaes com a natureza fsica, neste contnuo processo de

    transformao homem/natureza (Cronon, 1996).

    O que nos traz lembrana a tese presente na obra Paisagem e memria,

    de Simon Shama:

    Estamos habituados a situar a natureza e a percepo humana em dois campos

    distintos; na verdade, elas so inseparveis. Antes de poder ser um repouso

    para os sentidos, a paisagem obra da mente... Compe-se tanto de camadas

    de lembranas quanto de estratos de rocha (Shama, 1996, p. 8).

    Podemos perceber aqui o tema daquele terceiro grupo de questes, apon-

    tado por Worster e que nos lembra que a histria ambiental incorpora um

    elemento de anlise bastante raro nas demais cincias ambientais: a constru-

    o imaginria da natureza pelo homem.

    Nos Estados Unidos, a histria ambiental tem como base, ainda, a his-

    tria da conservao ambiental. E isto fica claro se observarmos que, em

    uma de suas atuais linhas de pesquisa, William Cronon se preocupa em de-

    cifrar como as comunidades hu