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Cadernos Vicente-Floresta.

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  • VICENTECOLECO DIRIGIDA POR OSRIO MATEUS

    Quimera LISBOA 1992 | e-book 2005

    Maria Joo BrilhanteFLORESTA

  • 3Comdia chamada Floresta denganos. Foi representada ao muito altoe poderoso rei dom Joo o terceiro deste nome na sua cidade de vora.Era do Senhor de 1536 anos.Figuras dela:Um Filsofo com um parvo atado ao p, um Mercador, um homem emtrajos de viva, com a mocinha, Cupido, Apolo, rei Telebano, GrataClia Princesa, Doutor Justia Maior, a velha, um pastor, um Duquepelegrino, um Prncipe, a ventura pelegrina com outros trspelegrinos.

    Copilaam de todalas obras de Gil Vicente (1562: 114-122)

    A representao de Floresta teve lugar em 1536, em vora, no pao, emhonra do pequeno prncipe Manuel (Vasconcelos 1923, 1949: 576). Nadamais se sabe das circunstncias em que decorreu e s no prlogo encontramosreferncia ao pblico que ter assistido: gente cortesana e las muchachas queaqu estn. Trata-se do ltimo auto de Vicente que, por essa altura, estariapreparando a edio completa da sua obra, a pedido de D. Joo III. Os textosdos autos andavam dispersos e em cpias vrias. A morte, ocorrida poucotempo depois, vai deixar incompleta a recolha e o trabalho de inscrio doque fora a aco teatral correspondente a cada auto e que s Vicente saberiarestaurar.O nome do auto, dito trs vezes, designa o local que a cena representa pormomentos, mas tambm metfora para dizer que a aco consiste numasrie de enganos.So dezoito as figuras do auto e podem ser catorze os actores em cena.Vicente podia ter feito trs figuras __ o Filsofo, o Mercador e o DoutorJustia Maior __ que nunca contracenam, ou nenhuma delas, devido suaidade avanada. Ter falecido nesse mesmo ano (Braamcamp Freire 1919,1944: 316-317, 319), ou quatro anos depois (Vasconcelos 1923, 1949: 576),com mais de sessenta anos. A figura que melhor parece convir-lhe a doDoutor, em relao qual o texto refere a idade de sessenta e seis anos.Como noutros autos de Vicente, o pblico conhece o argumento desde oincio. Aqui, e semelhana de Lusitnia, em prosa, e no faz referncia aoepisdio do Doutor disfarado de negra a amassar. Retoma-se o verso paradar conta do acordar do Parvo e anunciar a entrada do Mercador, heri doprimeiro quadro.Trs episdios compem o auto: o do Mercador enganado por um escudeiro,o dos amores e enganos de Cupido e Grata Clia, o do Doutor enganado poruma moa. A organizao do texto em partes contudo outra: o episdio dosamores de Cupido e Grata Clia constitudo por duas partes cortadas peloepisdio do Doutor Justia Maior. H, pois, um desfasamento entre oargumento e o que mostra a representao. A leitura deixa entrever adinmica do teatro: os episdios de farsa com figuras do povo ou daburguesia so em portugus e pontuam a aco dos amores de Cupido e Grata

  • 4Clia anunciada como principal, que decorre na floresta. Estas personagensnobres e da mitologia falam o castelhano das comdias (cf. Vivo, Rubena,Devisa entre outros autos), marcado por inmeros lusismos (isientes 114d20,lembreos 121d16), e transmitem os valores do pblico destinatrio, a corte em1536.A eficcia teatral dos dois idiomas usados, para alm da conveno, consisteem criar um contraponto, em ritmar, e o episdio do Doutor, ao usar ocastelhano e o portugus em simultneo, que ilustra a tcnica de construodo auto. A recepo deste no ter sido afectada pela mistura de idiomas,realidade que a corte conhecia e praticava, falando a rainha Catarina ocastelhano.A ligao entre episdios no se faz sempre da mesma maneira. Por duasvezes uma personagem (Filsofo e Mercador) anuncia a entrada de outra quevai ser enganada (Mercador e Cupido), mas o episdio que corta a aventuraamorosa de Cupido em duas partes segue procedimento diferente: quemassistiu representao de 1536 no podia saber que o Doutor iria serenganado pela Moa. No lhe foi contado no argumento, nem anunciado poroutra personagem. A surpresa ter reforado a eficcia do quadro naeconomia da aco teatral. Percebe-se como a justaposio de episdios vaiilustrando o tema geral do engano. Os artifcios utilizados __ disfarces, passesmgicos __ preparam o espectador para a vitria da verdade nas relaeshumanas, em particular no amor, de que trata o quadro final. Saraiva (1942,1981: 75, 103) fala de incoerncia das cenas e particularmente da suasucesso e justifica a utilizao de resumos feitos por figurantes com anecessidade de abarcar espaos grandes de tempo e acontecimentos que seengendram uns aos outros. No existe, de facto, uma estruturao segundouma lgica temporal aristotlica. O auto articula episdios e liga-os ao temageral, por vezes atravs de aluses inscritas no discurso das personagens eque a representao se encarrega de explicitar. A ilegibilidade, hoje, podedever-se ao facto de dispormos de textos que perderam a memria da acoteatral e de operarmos com uma lgica que os autos de Vicente noconheceram.A histria da sua classificao complicada. A este auto, o argumento chamacomdia e o Filsofo anuncia una fiesta de alegra. Rvah (1951: 32)considera que os autos de Vicente se podem arrumar em trs grupos: farsas ecomdias alegricas, farsas no alegricas e comdias romanescas. EmFloresta, o casamento de Grata Clia recupera o tema romanesco das novelasde cavalaria e um conjunto de motivos que o explicitam: o amor idealizado, anobreza de sentimentos das personagens acompanhando a qualidade do seunascimento, a hostilidade dos cenrios naturais, as provaes dos heris.Para Saraiva (1942, 1981: 75), Floresta teatro alegrico porque existeexpresso visual de comparaes e imagens (a Ventura personificada).Todavia, o modelo da farsa aproxima dois dos episdios deste auto de outrosidnticos em India, Ins e Velho da Horta. Saraiva acrescenta que no seconstroem situaes, mas se assiste a um desfile de tipos fazendo os seus

  • 5nmeros. Pode no ser bem assim, como mostram a comparao com Frguae Romagem e a leitura atenta da teia de aluses entre episdios e figuras(Telebano referido no episdio do Mercador, por exemplo). Nemsio(1941: 47) prope outra classificao: gnero nobre e gnero vulgar. Massabemos que so em maior nmero as convenes que intervm nos autos deVicente: por exemplo, como o espao de representao, o momento ou fim aque o auto se destina (Natal, festa na corte) so tambm condicionantes.Em Floresta, Vicente utiliza o verso de sete slabas (redondilha maior) e aestrofe mais frequente a de dez versos. Como noutros autos, encontram-seirregularidades que podem ser devidas a erros de cpia. A rima, por vezesassonante (cf. 118c31, 118c32, 118c34), ajuda a entender a unidade de cada estrofe.

    Entra logo o Filsofo com o parvo atado ao p e diz: 114a

    . Asegn siento mis malesal discreto singulargran pena le es conversarcon los necios perenalessin lo poder escusar.los muy antigos romanoscomenzando a ser tiranosporque Roma se ofendayo por mi filosofales di consejos muy sanos

    y porque la reprensina todos es enojosame vi en grande pasiny me echaron en prisinen crcel muy tenebrosa.no bast, mas en depusdaquesto que odo habisslo por esto que digoataron ans comigoeste bobo que aqu veis

    A aco comea com a entrada de dois homens, um dos quais vem atado aop do outro. Este ltimo dirige-se ao pblico para se queixar do sofrimentodos que, sendo como ele singulares, tm de conversar com nscios. Fica oespectador tambm a saber que se trata de um filsofo, conselheiro dosantigos romanos. O discurso que introduz esta figura, e at se referir apresena de outro corpo (este bobo que aqu veis), pouco permite saber doque foi visto em 1536. Bobo pode sugerir prticas que o dilogo deixaentrever (desconversar ou disparatar a partir do discurso do Filsofo, tomarposturas inconvenientes ou acompanhar, mimando, o que aquele vai dizendo,

  • 6provocar atravs de uma cano sem sentido sobre uma padeira). comum considerar-se que estas figuras representam as duas facetas dohomem: a loucura e o bom senso. possvel entender o auto como ailustrao de um provrbio, procedimento criativo caracterstico da farsa,neste caso: De sbio e de louco todos temos um pouco. Vicenteexperimenta aqui desdobrar em dois corpos a figura mista do parvo que dizcoisas acertadas e que lembra, em Mofina, a do frade que disparata em tomsentencioso. No o nico auto com parvo produzido por Vicente e percebe--se qual pode ser o seu rendimento na aco teatral (cf. Cames 1992: 15).

    Parvo . Mi amo aqu hablar yoy cuando en casa estuviredeshabl cuanto vos quisiredesque nunca os dir de noaunque quebris las paredes.

    Filsofo . Habla por ver que dirsoh quin no sintiese msde lo malo ni de lo buenode lo suyo y de lo ajenode cuanto t sentirs.

    A aco do prlogo constri-se a partir da alternncia entre o discurso doFilsofo dirigido a esta gente cortesana e o dilogo que mantm com o Parvoque lhe chama amo. Apesar disso, as interrupes do nscio mostram que tempoder (aqu hablar yo), no s por funcionar como alegoria do castigo quepesa sobre o Filsofo, atormentando-o com os seus dislates, mas tambmporque dele depende o acesso do Filsofo ao discurso. Uma alusoastrolgica influncia da lua sobre as duas figuras vem dar uma dimensocsmica aventura individual, ao mesmo tempo que revela saberes correntesdecifrveis pelo pblico de quinhentos e preocupaes quanto interpretaodos sinais emitidos pela natureza.A razo que trouxe o Filsofo aqu (veja-se a frequncia com que este deticosurge e a sua funcionalidade na criao do espao e do tempo da acoteatral) reside no facto de poder constituir exemplo para os que o escutam.Deu conselhos aos tiranos (a palavra surgir de novo pela voz do Mercador,mas com sentido moralizante) e foi lanado na priso para, em seguida, seratado ao bobo que at morte o acompanhar. Vicente desloca para a antigaRoma o exemplo de injustia de que o Filsofo foi alvo e, apesar do lapsotemporal, obriga a uma comparao entre o passado e o presente. possvelencontrar nova referncia injustia no discurso do rei Telebano, mas aatribuda a um reino imaginrio. Formas de evitar o desagrado de quemencomenda festas com teatro na corte? O caso do Filsofo inexplicvel luz do bom senso; talvez se deva a uma causa absurda como seja a recusa decasar-se com medo de lhe caber em sorte uma mulher idiota.

  • 7. Veis que hago penitenciadesta suerte sin pecary es tanta mi pacienciasiendo tal la penitenciaque no me quiero ausentarporque la obediencia amigolas virtudes son sus puentesen tu hablar no te isientesporque te vas del abrigoal peligro que no sientes

    aunque el dao sea profanosta toma por tu guaque yo tengo al Coleo Romanoaunque me fue inhumanoobediencia todava.y encuanto la compaaque la fortuna me dioduerme anunciar youna fiesta de alegraque de nuevo se invent.

    O Filsofo atribui-se uma embajada que parece ser beneficiada pelo sono doParvo. Quando este adormece, o discurso do Filsofo perde o registolamentativo e recupera o registo sentencioso e o propsito moralizante.

    porque cualquiera pasinasegn veo y entiendoque se siente con raznni velando ni dormiendose consuela el corazn

    Trata-se de mostrar o seu exemplo de obedincia e de virtude apesar dainjustia de que foi alvo. Aconselha prudncia contra a tirania. Aluso aoperigo de falar quando a censura em Portugal j uma realidade?

    y pues me tiene dejadodel autor dir el intentoy por ir ms declaradoser en prosa el argumento.pero seores os pidoque tengis todo encubiertoen vuestro seno escondidoporque no sepa Copidoque descubro su secreto.

  • 8Anunciar, em 1536, a recm inventada fiesta de alegra, dar a conhecer oargumento e a inteno do autor parecem vir por acrscimo e no constituir aaco principal da personagem. No entanto, de crer que parte do pblicosoubesse reconhecer o momento como uma unidade informativa no interiorda aco teatral. O discurso do Filsofo estabelece um pacto com o pblicoao pedir-lhe que esconda no seu seio o segredo de Cupido que a aco vairevelar. O carcter alegrico dos amores de Cupido e Grata Clia, a metforada floresta de enganos onde essa aco decorre e as convenes que chama(lngua, cdigos amoroso e romanesco) permitem aproximar fico e sonho semelhana do que se passa com Midsummer Nights Dream de Shakespeare.

    La comedia seguiente, altos y famosos seores, su nombre es Florestadengaos y el primero engao es que un pobre escudero enga unmercader en figura de mujer veuda. El segundo engao ser quesiendo Copido enamorado de la princesa Grata Celia la cual era hijadel rey Telebano, rey de Tesalia, por lo cual siendo Grata Celia hijadeste rey y seora de la ms excelencia y estremada hermosura delmundo, no pudiendo Copido haber con ella lugar solitario, ni tiempooportuno, descanso de su angustiada vida, determin de engaar aldios Apolo, por que el dios Apolo engaase al rey Telebano. Y el reyTelebano engaado del dios Apolo llev Grata Celia engaada a lasierra Minea, adonde con grande angustia su padre la dej desterraday presa y cuando Copido hubo alcanzado y hecho su engao descendidel cielo a la tierra donde presa estaba y fue della engaado dos vecesy ella casada con el prncipe de la gran Grecia.

    Foi j dito que o argumento enumerando os jogos de engano entrepersonagens em prosa: trata-se de uma excepo que se auto-justifica por irms declarado. De facto, o efeito produzido na aco teatral excede oafirmado propsito de clareza. O corte rtmico obtido graas passagem daredondilha maior para a prosa representa um fingimento quanto naturezadesta nova aco: anunciar as aventuras que se seguiro parece no caber nodiscurso reflexivo e moralizante do Filsofo. Da que a enumerao sejaprecipitada, repetitiva, revelando a estrutura encadeada do auto, os lugaresem que decorre, as motivaes das personagens. O episdio mais divertidodo auto omitido neste relato. Pelo contrrio, aos amores de Cupido d oFilsofo grande relevo. Por respeitarem ao universo das divindades todopoderosas? Por corresponderem ao gosto do pblico corteso leitor denovelas de cavalaria? Por evidenciarem a vitria da verdade e do amor idealcontra a manha, astcia do pequeno mundo dos homens?O prlogo trabalha o binmio encobrir/descobrir anunciando a prpriadinmica da representao: engano/desengano. A ligao entre a histria doFilsofo e as aventuras subsequentes parece tnue do ponto de vista temtico.Contudo, faz-se desde o prlogo aluso aos inconvenientes da paixo, necessidade de obedincia, situao de penitncia, motivos reencontrados

  • 9no decurso da aco. Por outro lado, o processo de montagem dos episdiospermite que certas concluses moralizantes remetam para a aventura vaga eintemporal do Filsofo (veja-se o final do episdio do Mercador).

    Sai-se o Filsofo e entra o Mercador:

    . Determino de fazerminhas casas muito bemporque quem dinheiro temfar tudo o que quiser.bem contadostenho vinte mil cruzadosganhados donzenas taiscom esses pobres misteiraisque estavam necessitados

    Quando o Mercador aparece, a representao passa a ser em portugus.Atravs do ditado que fala da sua principal preocupao __ o dinheiro __Vicente sublinha os primeiros traos da personagem: a ganncia, aexplorao, a riqueza. Percebe-se que no personagem nobre e pode serreconhecvel no s pelo seu discurso mas por tiques da profisso e porindumentria de burgus de quinhentos.

    e parece-me agora 115bque vejo desta janelavir per c a senhorae segundo o ar de foraviva me parece ela.

    Moa . Hou da pousada.senhor a dona honradaest aqui pera vos falar.

    Mercador . Entre c sela mandarque eu nam fao agora nada.

    tambm ele que introduz a figura com a qual vai contracenar. V-la bastavapara distinguir idade, condio e estado (vem vestida de negro), mas oespectador pode comear por no a ver. A cena exige uma janela quefuncione talvez como fronteira entre a aco que decorre dentro de casa doMercador e a que se passa fora entre o escudeiro disfarado e a Moa.Como convm a uma dona honrada e com certo estatuto social, no ela quese anuncia: traz criada. O Mercador refere a sua disponibilidade para recebera senhora. No est a trabalhar, o que constitui mais um trao na suacaracterizao.As figuras que chegam conversam na rua e da conveno que o Mercadorno as escute. Ho-de estar afastadas e falando noutro tom.

  • 10

    Viva . Olha c mexeriqueirinhanam me descubras tu a mi.

    Moa . Nam farei por vida minha.Viva . Porque s a mor palreirinha

    que eu em minha vida vi.Moa . Que prazer

    e eu havia de dizerque reis pobre escudeirosem cavalo e sem tostoe em trajos de molherque is enganar um ladro

    guarde-me Deos e vs nam vedes 115csegredo nam no posso terse achar a quem no dizere senam essas paredes.que o costume tam acendido lumedepois que est encarnadoque at nam ser acabadonenha cousa o consume.

    Trata-se de dar a ver a preparao do engano e de criar a expectativa voltada aco da Moa (resistir ela a denunciar o logro?). O adgio acerca docostume e da sua semelhana com o lume deixa adivinhar o desfecho: cadasituao de engano trar sempre um juzo moral. Permite esta conversainicial recordar o que fora anunciado no argumento: que um escudeiro sedisfara de viva para enganar o Mercador. Confirma-se o maior saber dopblico, o que aumenta o prazer que retira da representao.

    Viva . Senhor embora estejais.Mercador . Embora venhais senhora

    que o que demandais?Viva . Eu o direi ora.

    ai coitadaque venho ora tam cansadado corpo e doutras canseiras.

    Mercador . Sentai-vos nessas cadeiras.Viva . Esse descanso nam nada

    crede que a necessidademui pouco descanso tem.

    Mercador . Assi viva eu que verdadee falastes muito bemmuito minha vontade.

  • 11

    Viva . Digo senhorque o tisoureiro mordo nobre rei Telebanome deve j do outro anoas tenas de meu suor.

    Moa . Tens tu l tenas de vento.

    O discurso da Viva faz dela uma vtima da necessidade, ou seja, deixa-a merc do Mercador. ambguo e permite ser interpretado pelo Mercadorganancioso como verdadeiro e acertado: no falam da mesma necessidade,mas a estratgia de aproximao resulta. Faz-se referncia ao rei Telebanopor ser este seu devedor? Assim se ligam episdios entre si.O aparte da Moa procedimento de farsa e mantm acesa a expectativaquanto ao seu funcionamento na aco. Constitui o elemento de risco querequerem cenas onde se prega uma partida. Ela constri um trocadilho entretenas de suor e de vento que significa a mentira sobre a qual assenta oepisdio.

    Viva . Este papel dar fque o seu conhecimento.

    Mercador . Mostrai c verei que .bem estaisso corenta mil reais.

    Viva . Senhor eu estou enforcadae se vs nam mos compraisamenh sam penhorada.

    Um papel vem servir de novo engodo e os pontos de vista das personagenscontinuam diferentes: para a Viva aquela dvida significa a sua morte, para oMercador, que ela est rica. Ao pedido de compra, o Mercador reage mal epe entraves. A quebra do segredo do negcio aflige-o, mas a Viva insinuaque ele conhece os meios de o assegurar. A corrupo parece estar na ordemdo dia pois a ela se voltar a propsito da justia. O Mercador acaba poraceitar e s por vos socorrer, propsito falsamente generoso como se verpela oferta irrisria que faz. O facto de pagar a pronto satisfaz igualmente apretensa Viva: ambos querem um negcio rpido. Da que quase no hajaaco de regatear. Apenas lamentaes dignas de viva amara. A suacontraproposta recusada e assim termina o negcio, no sem que as duasfiguras team os seus comentrios: uma para criticar os maus costumes dostempos, e Vicente refere-se de novo a Portugal, outra para insinuar talvez amelhor fortuna de um comportamento diferente.

    Mercador . Crede que quem for tiranotem seu dinheiro perdido.vamo-nos que vem Copido

  • 12

    cometer o mor enganoque nunca foi cometido.em o qualmostra o amor naturalque a Grata Clia temporm vereis que do bems vezes se segue mal.

    A Moa regressa para desenganar o Mercador e permitir o juzo moral: quemfor tirano tem seu dinheiro perdido. Matre Pathelin constitui intertexto paraeste quadro, quer pela importncia teatral de que se reveste o acto deenganar, a aco de pregar uma partida, quer pelo tema e situao volta dosquais Vicente labora: a ganncia e o furto.Cabe ao Mercador anunciar a entrada de Cupido e distinguir a aco destafigura das outras que o pblico ir ver durante a representao. Parececonstituir o maior atractivo do auto, em 1536: o mor engano.

    . A quin contar mis quejasa quin dir mi tormentoremedio por qu te alejasde ver amor que solo dejasneste trmino momento.oh justa esperanza maqu fue de m y de tisi te viese algn daya no te conoceratanto ha que no te vi

    los que me pintan ciegono es ans como convieneque amor tantos ojos tienecomo de muertes me ruegoy ninguna me conviene.oh Grata Celia alma maflor del ms florido huertopues que a tu Dios tienes muertoarrepindete algn da 116bde tan grande desconcierto

    hiere tu pecho honradosobre el bravo corazncontemplando en mi pasinvers que en el fuego en que ardome echaste sin razn.

  • 13

    O episdio trata de amores e a lio a tirar vem antes da prpria aco: pormvereis que do bem \ s vezes se segue mal. A sada do Mercador e da Moadeixara-nos aparentemente em casa do primeiro. A inexistncia, naCopilaam, de indicao de mudana de espao muitas vezes superada pelareferncia em discurso de personagem. Apolo ir revelar onde se encontraCupido, isto , na floresta.A primeira fala de Cupido fornece indicaes acerca da representao: afigura est s, no profere discurso para o pblico e o seu monlogo, quecomea por ser lamentao, passa a ter como destinatrio ausente GrataClia. A situao paradoxal porque quem sofre males de amor o prpriodeus do amor. Invoca remdio e esperana personificados, mas estesabandonaram-no. Os valores do amor corts esto patentes no discurso deCupido assim como reconhecvel o funcionamento de vtima da crueldadeda bela: y los gozos y placeres \ que recibes con mis llagas. Assinala-seigualmente o contraste entre a pintura tradicional de Cupido cego e a figuraem aco. A diferena constitui a nova inveno de Vicente a partir do lugarcomum conhecido dos espectadores.Atravs deste monlogo revela-se o ponto de vista do deus do amor sobre aaventura de que heri. Declara que Grata Clia ter que sobrepor a honra crueldade do seu corao para ver os efeitos do fogo do amor em Cupido. Soimagens petrarquistas que a lrica de quinhentos encerra e da qual Vicenteelege o arder em amor, a perda da razo, o culto do paradoxo.

    oh ingrata pecadorrasga el corazn esquivoque mataste al Dios damory para ms mi dolorme dejaste el amor vivo

    Mas o jogo, neste episdio de Floresta, far-se- entre o lugar comum dodiscurso da poesia __ morrer de amor __ e o desconcerto a que se assiste e quereside no facto de o amor perder o seu deus.Cupido apresenta, no final do seu monlogo, a situao a partir da qual irdesencadear o engano: Grata Clia es mui guardada. Mostra saber que o deusApolo vai entrar e anuncia o seu plano de usar engao. Como noutros autosde Vicente, refere-se a falta de verdade dos tempos. No discurso de Cupido,trata-se de um dado adquirido com o qual preciso contar.

    . Nhora buena estis Copido.Cupido . Apolo seas loado.Apolo . Seor eres namorado?

    Cupido . Antes traigo mi sentidobien fuera dese cuidado.

    Apolo . Pues qu haces por aqupor esta floresta dengaos? 116c

  • 14

    Cupido . Ando esperando por ti.Apolo . Que s lo que quieres de m?

    Cupido . Que vivas cuento de aos

    Chegou Apolo, conhecida divindade solar com dons divinatrios e grandecoragem. Por que pergunta Apolo a Cupido se este est namorado? A suasegunda questo pode talvez esclarecer a primeira: andar pela floresta deenganos sinal de que se est apaixonado. Apolo parece ser frequentadordessa floresta, porventura local das suas aventuras amorosas. Cupido menteacerca dos seus sentimentos e expe a razo que o trouxe at junto de Apolo:y el tu templo corre risco. Mostra saber mais que o deus das profecias: acidade corre perigo de destruio antes que pase un ao. De novo se fala emsegredo e, em Floresta, este nunca anda longe de engano. A razo dacatstrofe tambm indicada por Cupido. Grata Clia cometeu pecados queirritaram as deusas. O discurso hiperblico e as frmulas de persuasousadas pelo deus sublinham a construo do logro: tantos, tan, lo que digo escierto.

    Apolo . Pudese remediar?Cupido . El remedio est en la mano

    si hiciere el rey Telebanopor tanto mal escusarlo que te dir hermano

    Apolo revela total dependncia do saber de Cupido. O remdio exilar GrataClia na serra Minea. Vicente oferece ao pblico, atravs deste dilogo, odesenvolvimento do plano de Cupido, visto que o argumento j revelara asituao. As razes que invoca so de molde a convencer Apolo: el peligro esmuy fuerte (...) por escusar mayor fuego (...) que todo se amansar. Ao rigorda penitncia, Cupido contrape o rigor do castigo divino: perder estado,vida, reino, fazer sofrer o povo. Aconselha mesmo Apolo quanto ao mtodo autilizar para convencer Telebano a separar-se da filha. Trata-se de mandar eno de rogar. A figura do deus Apolo surge, no texto, desqualificada. Talveza representao contasse com outros recursos teatrais. Difcil restaurar ojogo que ter realizado esta relao de agressividade e de submisso.

    Apolo . Luego voy ad esto l vendr ad est.

    Cupido . Entrementes yo me voque todo se amansarcon esto que digo yo.

    A indeterminao acerca do lugar onde se ir passar o encontro entre Apolo eTelebano curiosa e pode tambm ser sinal de caracterizao de Apolo,produzindo efeito cmico. Tanto mais que dispensvel na mecnica da

  • 15

    representao, pois quem deve sair Cupido.Este, em aparte, faz juzo moral sobre a sua aco: yo bien s que erro ahora.O quadro termina, tal como o anterior, com novo aforismo acerca de elmundo triste dagora. Antes de sair, Cupido diz o que j estava a ser visto:Telebano rezando diante de Apolo. A conveno teatral da poca e a deVicente permitem esta coincidncia entre espao e tempo que tem sidoassinalada pela crtica como inpcia.O quadro com Apolo e o rei Telebano repete informao, mas omite lascosas que esto hicieron. Esta omisso no parece constituir problema porque,ainda neste aspecto, o auto no segue uma lgica da verosimilhana. oencontro entre o rei e a divindade que interessa representar aps a cenafamiliar ( usada a forma de tratamento hermano) entre os deuses.

    Vai-se Apolo e fica el rei Telebano dizendo:

    . Oh graves angustias maslgrimas della nima maoh hija de mi alegraque tales sern mis dasfuera de tu compaa.quedars en las montaasnaquella Minea sierray mis bezos y mis canasmucho en breve sern tierra.

    Telebano rei, mas coloca-se sob a vontade e a autoridade do deus. O registo srio e, tendo sado Apolo, ouvem-se as lamentaes do rei. Note-se o jogode antteses e a metfora referindo a morte. Estamos longe da fiesta dealegra anunciada no prlogo.Neste quadro surgiu pela primeira vez um discurso misgino para justificar aimpotncia de Apolo face s deusas enfurecidas. Assinale-se ainda a levecrtica aos que rezam, mas no praticam boas aces:

    Vuestra alteza rece brevey obre obras de santoque el rezar no monta tantocomo hacer lo que debe

    Trata-se de passo sempre citado para ilustrar tendncias erasmistas emVicente.

    Chega a princesa Grata Clia e diz:

    . Seor mo por qu andispensativo y amarillomuy mucho me maravillo

  • 16

    qu sents o qu pensis?Rei . Es pasin.

    Grata . No s que lgrimas sonesas que veo asomaralgn estremo pesarsiente vueso corazn

    yo contemplo ciertamentequ caros son los enojosque se estilan por los ojosde un rey tan sabio y prudente.padre vosno os congojis por Diosque el enojo muerte ordena.

    Rei . Por quitar de m esta penavamos a cazar los dos.

    Grata . Seor vamos nhora buena.

    Grata Clia, ao entrar, descreve os sinais de perturbao no jogo do actor quefigura Telebano. Esta enumerao faz com que a ignorncia da princesasobressaia e o carcter dramtico do seu destino (algn estremo pesar) fiquepatente. O engano programado realiza-se por meio de uma ida caa para aqual Telebano encontra uma explicao apropriada Por quitar de m estapena. Justifica com o seu prprio mal a razo da viagem.Antes da partida, introduzem o Doutor Justia Maior a quem se d outraexplicao: vo sozinhos a uma romaria. A figura do Doutor permiteorganizar o discurso volta do tema da justia. A oposio justia/cobiasuscita outra remisso para a actualidade de 1536: la justicia estar muerta (...)la cobdicia despierta.

    Rei . Hija vamosveremos aqu los engaosy quiz me alegrar.

    Grata . Padre yo no s qu heporque cuanto ms andamosvoy triste y no s por qu.

    veremos aqu parece querer dizer que as figuras se movem e que j esto nafloresta de enganos. Mas se Telebano se juntara a Apolo no quadro anterior,ento a aco no mudara de espao. Ver enganos pode ser distraco, dizTelebano. isso que o auto oferece ao pblico, mas convm recordar o valoralegrico que tem a aco que este ir ver e para o qual fora alertado peloargumento. A ignorncia de Grata Clia de novo assinalada atravs darelao entre a proximidade do lugar de desterro e o sentimento de tristezaque manifesta.

  • 17

    Ido el rei Telebano com sua filha abre o doutor um livro de leis e dizlendo por ele:Princeps osiui me nova per delegantem, per novaciones antiquaque.E estando o doutor assi estudando veo a moa ter com ele qual elediz:

    A frase em latim dita pelo Doutor, e de traduo impossvel. Constitui umapausa que antecede o episdio cmico no referido no argumento inicial. Otempo da aco teatral no restaurvel, mas a didasclia, ao usar gerndios,alude a uma eventual memria de representao. No se percebe a omissodeste episdio, pois existem vnculos restante aco, quer atravs dapersonagem do Doutor, quer atravs do tema do engano, recuperando-se,contudo, o registo de farsa do episdio do Mercador. O quadro emcastelhano e em portugus e volta a ter por base uma partida: desta vez a que pregada por uma jovem ao velho galanteador. Passa-se em dois locais:entrada da casa do Doutor e casa da Velha onde a Moa trabalha. So essas astrs figuras que intervm, mas h outra apenas nomeada: a negra que deviaamassar. O texto permite neste passo melhor restauro de como ter sido arepresentao e possvel imaginar muitas aces para os corpos dos actores.

    . Qu buscis ac seora?Moa . Senhor vinha-vos falar.

    Doutor . Y pues no habis dentrar?Moa . Entrarei mas nam jgora.

    Doutor . Y pues cundo ?Moa . Estais agora estudando

    s e eu sam grande j. 117dDoutor . No s qu estis recelando.

    Moa . Mas ser bem que me v.

    Os locais representados so objecto de jogo verbal e fsico. A Moa no querentrar em casa do Doutor enquanto este tenta convenc-la a faz-lo. Asrazes invocadas __ o Doutor est s e eu sam grande j __ so pista paraadivinhar a situao que o pblico desconhecia por completo. O dilogodeixa entrever a aco galante do Doutor, homem casado. Primeiro, a Moachama-lhe travesso para, de seguida, descrever o seu jogo: olhais-me detravs (...) com o barrete embicado (...) falais-me amores. So amores nadaplatnicos, estes que o Doutor projecta.

    privar con vos por ciertoen lugar mucho secretopor deciros cuanto os quiero.

    Contrastam com os amores de Cupido e Grata Clia cujo modelo platnicovem da lrica trovadoresca e dos romances de cavalaria. Tambm Cupido se

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    quer encontrar a ss com Grata Clia, mas o desejo revelado emformulaes verbais do amor corts. Aqui, o modelo a farsa, prdiga emtrocadilhos, aluses e gestos referenciando amores carnais.

    falais-me amorese nam j ora muito frios.

    Os galanteios verbais do Doutor so risveis, no tanto por estarem repletosde lugares comuns, mas por serem extemporneos: mi sagrado paraso (...)mis flores (...) ojos matadores (...) mi perla preciosa.

    yo dar juro a Diosla sentencia en vueso hechoy aunque no tengis derechotodo ello saldr por vosy haris vueso provecho.

    Moa . Muitemborasenhor minha dona agoravai-se mui cedo deitare esta noite hei-damassare bem sabeis onde mora

    ide antre as nove e as dezassoviais vs bem meu reiou tossi tamalavezque logo vos entenderei.e eu me vouque h j muito que c estou.

    Doutor . Y yo tambin me vo a jantar.Moa . Oh como hei-de enganar

    um doutor que se enganou

    alguidar ora vem ce faremos o formentoque negro contentamentoo negro doutor terdo que lhh-de sair vento

    Perante a proposta desonesta do Doutor __ dar a sentena a favor da Moa nopleito que a trouxera ali, a troco de um encontro amoroso __ esta decidepregar-lhe uma partida. O espectador pode no perceber de imediato aestratgia, embora sinais dela estejam presentes no discurso da Moa.Chama-lhe senhor e meu rei. S aps a sada do Doutor, explica ao pblico oseu plano. Atrair o Doutor at casa de sua dona onde vive e padeira,constitui apenas o comeo do plano. Outros dados importantes para a acoteatral so a hora __ entre as nove e as dez, ou seja, noite, propiciando

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    equvoco __ e a presena da dona, que se deita cedo, mas pode ser testemunhaou cmplice da partida. O plano comea a desenhar-se no monlogo daMoa. Invoca o alguidar e o fermento. Qualifica o Doutor e o prazer que eleprocura junto dela como sendo negros. O desfecho da partida tambmanunciado: h-de sair vento. So sinais de sobra para que o espectador de1536 tire prazer do seu reconhecimento durante a aco. O Doutordisfarado, pelo traje e pela fala, de padeira negra vai peneirar em vez deamar a Moa.

    enganado andais amigodias h que vo-lo digo.

    Uma cantiga alusiva ao engano amoroso serve de ligao entre preparao eexecuo da partida. Como se mudou de local? Uma hiptese consiste em serepresentarem os dois lado a lado e a Moa transitar. provvel que osadereos ajudem a transformar o espao exterior em interior: a porta de antespode ser agora a da casa da dona e o alguidar, introduzido por gesto e fala daMoa (ora vem c), apenas um dos objectos identificadores de casa onde sefaz po.O Doutor assobia como combinado, mas com pouca discrio, o que pretexto para aluso aos letrados. O jogo fsico e verbal com o espao irpartir daqui: o Doutor faz barulho ao entrar e a Moa adverte-o: sobireismuito passinho (...) nam tussais mora agora (...) falai vs passinho (...)fazei-vos mudo (...) guardai-vos que nam tussais. Imagina-se o efeito cmicoque nasce deste jogo. Compare-se com tcnica anloga em Matre Pathelinquando a mulher do advogado grita para mandar falar baixo o mercador depanos que vem reivindicar o seu dinheiro. O espao referido pelo discursoimplica dois planos verticais e um trajecto ao longo do qual preciso serguiado pela Moa: sobireis (...) vinde por onde eu for.

    tirai a loba e dai-ma cluvas e sombreiro e tudoe a beca de veludoque tudo se guardare entam fazei-vos mudo.item maisguardai-vos que nam tussaise vesti esta fraldilhae ponde esta beatilhae fazei que peneirais

    Chegados ao local onde se amassa a farinha, procede-se operao seguinteque consiste em mascarar o Doutor de padeira. Dois movimentos: despi-lodos sinais que o identificam como advogado (ou juiz) e marc-lo com osnovos sinais: fraldilha, beatilha.

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    Doutor . Y si ella dall me ve?Moa . Direi que a negra peneira

    e enquanto ela joeira 118cpeneire vossa merc.

    Doutor . Pacienciaporque juro en mi concienciaque este texto yo no lo entiendopero si yo estoy cirniendoes en loor y reverenciadel amor a que me riendo

    estas vueltas no s yodulcis amor quid me visque no se aprende en Parseste labor en que estoh amor.

    O ponto culminante da ridicularizao do Doutor atingido no momento emque este posto a peneirar: ora andai assi ao redor \ ah isso vai muito louo.O jogo cmico nasce do desajuste entre figura e aco, como afirma a Moa:

    porque em tudo o que fazemosh mister manhas assazsegundo o mundo que temos.

    Note-se o duplo sentido de tudo o que a Moa diz neste quadro. s manhasdo advogado correspondem as manhas dela: quero-vos dar a lio. A lioter permitido, em 1536, a extenso do jogo dos actores segundo reaco dopblico e francamente divertida porque aproveita manobras de seduo daMoa e frustrao do desejo do Doutor, que, alis, no esquecera o motivo dadeslocao ali (y adnde dorms?) e est exposto a grande risco: verdadeiro vosso amor \ pois vos traz per tal caminho, diz ironicamente a Moa. Esta saipara ver o que faz a dona e abre a possibilidade de o Doutor vir a serdesmascarado.A fala do Doutor, produzida para si prprio, mostra completa ignorncia datramia de que est a ser alvo. Interpreta a aventura como louvor e revernciaao amor, linguagem especializada que no domina: que este texto yo no loentiendo (note-se o logocentrismo do letrado, manifestado tambm nacitao em latim dulcis amor quid me vis). Vicente diverte o pblicoaproximando o desajuste na aco de peneirar, de idntica impercia na acode galantear.

    Moa . Peneirai senhor doutorasinha que vem minha dona.

    Doutor . Oh de las lindas coronas

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    amad a tal servidor.

    Moa . Nam vedes dona esta perrao negro jeito que tem?

    Velha . Peneirai mora bemque nam sois nova na terra.ui cadelinhaonde jeitas a farinha?nam queres falar cadela?esta pele de toninhaolho mau se meteu nela.

    Doutor . Por qu vos ma seoraestar tanto destemplado?ya tudo estar peneiradaque bradar comigo ahoraque cousa estar vs hablanda?a m llama Caterina Furnandonunca a m cadela nam.

    Velha . Seu dali tomo um tioe vs estais patorneando.

    olhade a mal entrouxada almadraque bolorento.

    Moa . Ui faze asinha o formentoe amassars de madrugadaestar o forno milhor.

    Velha . E qu daquele doutor 118dque dizes que tens aqui?

    Moa . Perto est ele de mie eu longe do seu amor.

    Velha . Est escondido?mostra messe homem perdido.

    Moa . I est ele a peneirare ele mesmo h-damassarporque a negra co marido.

    Regressa a Moa e com ela a dona. Ao aviso que lhe feito responde oDoutor com galanteios. Vicente desenvolve, em seguida, a situao decumplicidade entre a Velha e a Moa, face tentativa de manuteno dodisfarce por parte do Doutor que se pe a falar como uma negra ainda que emcastelhano. A Velha pergunta pelo Doutor e a Moa responde jogando comos termos perto/longe e com a realidade espacial para revelar a presenadeste e a tramia em que caiu. A partir do momento em que o Doutor desmascarado, o ataque das duas mulheres ser implacvel e recheado de

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    aluses quer ao ridculo dos amores serdios, quer desonestidade dosmagistrados. Tanto mais que o ttulo de Justia Maior que Vicente lhe atribuiter correspondido ao Regedor das Justias, o qual, entre outras atribuies,tinha a de substituir o Rei na presidncia que D. Joo I e D. Joo II e talvezoutros Reis assiduamente exerceram (Gonalves 1939: 241).O motivo sugerido pela padeira negra vai propiciar inmeros trocadilhos: Enegro falam os doutores? (...) negras sentenas (...) negros ouvidores (...)negra amassadura. Retratam o ambiente dos tribunais. , todavia, sobre odisfarce do Doutor que incide a chacota das mulheres. Desqualificado pelotraje, pede-se-lhe que fale da sua nova profisso em latim, lngua demagistrado, mas ele s consegue desculpar-se alegando no ser o nico apraticar tais aces.Cabe Velha desferir as acusaes mais duras, provocar fisicamente comlaivos de crueldade que se adivinham no arrancar do toucado, no descomporda vestimenta. O alvo agora a idade. Acusa-o de comear tardiamente aexercer a dupla profisso de juiz e padeira e de serem vs, no que toca aobom senso, as cs que mostra ter. Parece referir-se ausncia de princpiosquando invoca Baldo de Ubaldis, clebre jurisconsulto italiano (1324-1406)discpulo de Brtolo, a Sagrada Escritura e Nabucodonosor, rei da Caldeia eautor de sentenas filosficas (Vasconcelos 1923, 1949: 366, 380). Oalguidar mau livro; no permite estudar e aprender. Convm no esquecer(e o pblico ter sido sensvel a esta aluso) que o Doutor estudava um livro(de leis) quando a Moa lhe foi bater porta e que essa actividade tidacomo ociosa por quem desempenha tarefas fsicas.

    e moa quereis vse per quam regula micercuidou vosso parecerque j a tnheis nas pis.mana minhae nam abasta a farinhaque fazedes no julgarsenam virdes peneirara pouca que aqui tinhano fundo do alguidar.

    Faltava desmascarar a concupiscncia do Doutor. A Velha, tratando-o porsenhor, acusa-o de, sem direito a isso, querer pr a mo numa farinha que alitinha, imagem cmica para falar dos avanos tentados pelo Doutor junto daMoa.Calada, mas por certo no inactiva, cabe a esta encerrar o quadro numaapoteose de troa e de provocao fsica. Imagina-se como pode ter sidodivertida a perseguio que sofre o Doutor, e a aco da Moa procurandodanar com ele ou arrancar-lhe o disfarce. Podemos perceber qual o aspectodo Doutor pela descrio nas palavras cruas da Moa.

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    ermito que endoudeceumelhor vos estava o vuque quanto em casa trazeis.

    O Doutor acaba por fugir, para gudio das duas mulheres: oh como vai tamcorrido. Atreve-se a voltar tentando recuperar o seu trajo de magistrado, maseste fica penhorado contra o silncio da Moa. A chantagem assim sugeridano abona a favor dos princpios morais desta e talvez o que se pretendecom a incluso do episdio antes do confronto entre Cupido e Grata Clia,ilustrando em registo nobre o combate pela verdade.

    Doutor . Quin pensara nhora buenaque una rapaza de un aohiciera tan grande engaoa un doctor hecho en Sena.ser ms sanocallar hecho tan profanoy olvidar esta guerrae irme juzgar la tierraque ya el rey Telebanoahora llega a la sierra.

    Guardar segredo desta aventura a deciso sensata do Doutor, espantadoainda com a manha de uma jovem. Anuncia o regresso s suas funes dejuiz, ao mesmo tempo que informa o pblico quanto ao que se ter passadona aco entretanto interrompida: Que ya el rey Telebano \ ahora llega a lasierra. Assinale-se a simultaneidade temporal das duas aces a desmentircertos reparos acerca da estruturao dos autos (Reckert 1977: 24; Pratt 1931:47; Saraiva 1942, 1981: 75).

    Rei . Grata Celia hija masta es la sierra Mineala cual vuestra casa seade lgrimas sin alegra.

    Grata . Por qu seor?Rei . Porque yo por mi dolor

    os he trada engaadade mi casa desterrada.

    Grata . Por qu triste pecadorque yo no os hice nada?

    Rei . Mndalo Apolo diosy me meti neste afny como hizo Abrahnhago sacreficio de vos.

    Grata . Oh triste yo

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    ya s quien esto orden.Copido hizo estos daosoh mis tristes quince aosmal haya quien los mat.

    Entram Telebano e Grata Clia e a cena passa a representar a serra Minea.Como se assinalava esta mudana? Apenas atravs do discurso daspersonagens? Revela-se o engano praticado pelo rei a mando de Apolo,tirando-se partido do desconhecimento e das reaces de Grata Clia. Paraque este episdio se destaque como ncleo de todo o auto, compara-se asituao vivida por Telebano com o sacrifcio praticado por Abrao. Apermissividade justificada pelo estatuto de representao teatral est patentena contaminao entre mitologia pag e mitologia crist. O corpus dereferentes que o espectador saberia identificar e interpretar trabalhado porVicente no sentido de destacar o valor moralizante desta aventura amorosa.

    Rei . Perdonme hija vos 119cque habis de quedar presaen medio desta defesaporque ans lo manda Dios.

    Grata . Oh perdidasaquisme padre la vidade que fuistes causadorquel morir no es dolorms dolor es la guarida

    perded mancilla de my matadme seor padreque saludad de mi madreme mata ans como ans

    O quadro com pai e filha humaniza a situao (veja-se a referncia ssaudades da me). O discurso disfrico de Grata Clia, jovem de quinze anos,atinge o clmax quando esta pede ao pai que a mate. Telebano cumpre ordensde Apolo, que, por sua vez, objecto da aco enganosa de Cupido: assim seconstri uma hierarquia do divino ao humano. Grata Clia parece apenasreconhecer o poder paterno. Veremos que a sua aco junto de Cupido retiranfase ao poder divino deste. Os enganos de que os deuses so responsveisperdem eficcia perante o bom senso e os sentimentos verdadeiros dosnobres. Findo este quadro, Telebano sai definitivamente da aco, aps tercolocado Grata Clia merc de Cupido.

    Vai-se el Rei e diz Grata Clia:

    . Grata Celia qu es de tiy del vicio que tenas

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    que las noches y los daseran todos pera m.quin trajo Copido aqua escuchar las ansias mas?

    Cupido . Pues sois remedio del daoque consume mis placeresbendito seas engaoque con tu poder estraotodo acabas cuanto quieres.en ti moratodo el descanso dahorat lo das por ti se dami vida te la darpues me la diste seora.

    Grata Clia assinala a entrada de Cupido que se encontra escuta dos seuslamentos. Comea, ento, um confronto verbal que reproduz e declinafiguras do iderio do amor corts. Cupido tece louvores ao engano que lhepermitiu o encontro com Grata Clia. O discurso evidencia um jogo cultistaacerca do engano: t lo das por ti se da \ mi vida te la dar \ pues me la disteseora. O louvor a Grata Clia feito atravs de lugares comuns __ perfeio,esplendor radioso __ interrompido por esta, mais interessada em assinalar asituao em que se encontra: presa nestos fierros tristes e, por isso,impossibilitada de escapar ao discurso de Cupido. A referncia aos ferros no, por certo, metafrica, o que deixa supor a aco concreta, levada a caboanteriormente, de agrilhoar a princesa.

    Cupido . Cuntas veces me matastesy cuntas me despreciasteshasta que me despedistes.pues ahoraoh princesa mi seoracese vuesa seoraporque el dios que se enamorasi lo adoran l os adoray siempre os adorara.

    a vez de Cupido se lamentar da crueldade de Grata Clia, queixa enfatizadapela colocao verbal em fim de verso e pela progresso. O discursocaracteriza a situao actual como sendo consequncia dos maus tratos, o queconstitui diferena face ao funcionamento do amante corts. Ser estefuncionamento inadequado que servir de arma a Grata Clia. Cupido pede oamor real desta, possuindo o termo significao dupla: amor de princesa eamor em grau correspondente ao seu.

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    No confronto verbal, Grata Clia retoma o tom disfrico, atravs de umasrie de interrogativas retricas que buscam a razo de tanta injustia. O queVicente concretiza a impossibilidade do idlio amoroso desejado porCupido. Este insiste no valor do seu amor, pois morre pela amada,assinalando o despropsito daquele chorrilho de queixas. Apesar de a cenano apresentar traos de farsa, devia ser engraado o contraste entre a acodo amante procurando declarar-se e a do objecto do seu amor desconversandoem tom desesperado.

    Grata . Pues vos sois el dios Copidoque todo amor tiene en squ amor peds a m?

    Cupido . Mas que ganis vos aquen traer un dios perdido?

    Grata . Si amor de m querisaqu est esta cadenasi con ella vos prendisseor vos me cobrarisy os sacar de penanesta hora.

    Cupido . Que me place mi seoravueso cautivo me quieroy de vuestra alteza esperocumplir lo que dije ahora.

    O tom vai mudar e a ironia revela que Grata Clia passa a dominar a situao.Comea por assinalar o paradoxo que preside aos amores de Cupido: sendo odeus do amor, por que pede o amor de Grata Clia? Esta , sem dvida, ainveno atravs da qual Vicente cativa o espectador de 1536, conhecedor damitologia. Cupido o heri atingido pelo mesmo mal de que responsveljunto dos homens e tudo devido formosura de uma princesa. Que melhorelogio poderia ser feito aristocracia que assiste ao auto, em especial smuchachas que aqu estn?Grata Clia entra no jogo corts ao exigir de Cupido um comportamentodigno de amante: para ganhar o seu corao precisa de provar que a ama,substituindo-a no cativeiro. Ser cativo deixa assim de ter um valor metafricoe assume, pela aco de Grata Clia, um valor literal.

    oh qu prisiones tan tristesson las vuesas mi seora.

    Grata . Ah yo me vengar ahoradel mal que vos me hecistesque si fueravueso amor de tal manera

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    como dais a presumirescogirades morirantes que tal me hiciera.

    fue una cruda hazaaque hizo el cruel traidorporque el verdadero amora nadie jams engaa.

    Uma vez acorrentado, logo os efeitos da cadeia se manifestam: Cupido sentea tristeza que antes atingia Grata Clia. Cabe a esta a iniciativa de produzirdiscurso sobre o amor, mas ser que se trata de um amor verdadeiro que nose serve de traio e engano? Ser que a princesa prope outra filosofiaamorosa? O amante deve sentir o sofrimento da amada e sacrificar-se para aproteger de qualquer dano. Faltando a estes princpios, Cupido mostrou nosentir amor verdadeiro e vai experimentar agora, no lugar dela, o que sofrer. Assim se desmascara raposo en traje de Dios. E assim Grata Cliaengana Cupido como anunciara o argumento. Este tenta provar o seu amorassinalando o grave perigo que corre ao trocar o cu pela terra (veja-se comoVicente repete a situao vivida pelo Doutor, desta vez usando o modelo doromance de cavalaria e o reportrio das aventuras dos deuses do Olimpo).

    bendita sea la mujerque de los hombres no fay maldita la que confaen su daoso querer.y benditatoda mujer que se quitade or sus dulces engaosque doblados son los daosque dello se remerita.

    A princesa parte, evitando assim escutar o discurso amoroso de Cupido, nosem antes produzir diatribe, em jeito de prece ou de praga, acerca dosenganos em que caem as mulheres que confiam nos homens, comparados arios furiosos que tomam aspecto manso para melhor enganarem. Por dentro,no so o que parecem por fora. Vicente pe em confronto o discursomisgino de Cupido e o discurso de Grata Clia contra os homens.

    oh mujeres oh mujeresrobadoras de las vidascrueles desconocidasdestruicin de placerescoriosasufanas desamorosas

  • 28

    autorizadas moviblesy de todo envejosasque tienen cosas terribles.

    A ltima fala de Cupido pode ter sido dita depois de Grata Clia sair, masver-se- que no deixou de ser por ela ouvida. Arrependido desta vinda aoreino dos humanos, Cupido atribui ao amor a culpa pelo expediente enganosoque usou.

    Vem um pastor rstico e diz:

    . Ora eu estou espantadosendo vs sam Sodorninhocomo errastes o caminhol abaixo a par do valadoou mengano.

    Cupido . Allgate ac hermano.Pastor . Ora menganava tanto

    que cuidei que reis vs santoe vs falais castelhano

    O registo lamentativo depressa d lugar ao tom de farsa imposto pela entradado Pastor. Interpela Cupido, que toma por So Saturnino (talvez figurao dodiabo na tradio popular e tambm referido por Vicente em Fadas eFarelos), espantando-se por este ter errado o caminho. O efeito cmico evidente e o deus Cupido criado por Vicente no parece muito desenvolto nasua excurso terra. O facto de se expressar em castelhano d azo a umabrincadeira que ter sortido efeito junto do pblico falante desse idioma. Oquadro vem ilustrar o sofrimento provocado pelos sortilgios do amor,antecedendo o encontro entre Grata Clia e o Prncipe e a reposio da ordemcom a vitria da virtude.

    Cupido . Qu has?Pastor . Estou namorado.

    Cupido . De quin?Pastor . Que sei eu de quem

    senam que o amor me temo corao apertado

    e segundo a fortalezacom que maperta e namoradeve ser a mor senhoraque se criou em Veneza.

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    Cupido convence o Pastor a colocar as algemas, enganando-o com promessasde felicidade e riqueza. Espantado (Esta veo do Per, ora Deos me trouxeaqui), aceita o desgnio de um Deus generoso invocado por Cupido. Em vezdessas benesses, o Pastor passa a sentir uma paixo sem objecto. Ressurgemos lugares comuns do discurso amoroso que o modelo literrio cristalizouagora na fala de um pastor.

    cego soue nam sei quem me cegoupor nam ter cura meu malbof vs sois um enxovalmas quem em vs se fioumerece ter pago tal.

    A referncia a Veneza como local de origem do hipottico objecto da paixodeste explica-se, por certo, atravs de um mesmo corpus textual reconhecvelpelo espectador de 1536, como, alis, acontecer com a origem daspersonagens nobres que vo surgir no ltimo quadro do auto.O Pastor revela o seu bom senso ao aludir s urgentes tarefas com o gado e justeza do seu amor se for dirigido a uma pastora. Ao recordar anterioresempregos destas figuras nos seus autos, Vicente consegue realar o efeitocmico de desadequao do amor sem correspondncia social. Tambm oPastor acusa Cupido de ser um espertalho: bof vs sois um enxoval(Pimpo, 1956: 593). Est a tentar persuadi-lo a desfazer o feitio, quandoeste anuncia a entrada de Grata Clia.

    Pastor . Pardeos esta vos ela.ora olhai corpo de mimque presta a um vilo roimir amar tam alta estrela.

    eu sam indino pastorpobre, vestido de pelede ser preso em vosso amorenganou-me este senhorque m viagem faa ele.que molhais?um fraco pastor mataise nam cousa honestaque a crrega que lanais mula que carregaispesa muito mais que a besta.

    Os sinais de nobreza da personagem deveriam ser bastantes para justificar a

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    perplexidade do Pastor que se descreve como pobre, vestido de pele, fraco epor isso indigno de um tal amor. Esta fala reveste-se de dupla importncia.Por um lado, ao sublinhar o desajuste social destas duas personagens preparaa apoteose da juno do par ideal. Por outro, permite entender o trabalho deVicente na criao de uma dinmica teatral, porque atravs do discurso possvel reconhecer os efeitos a produzir pelo jogo dos actoresintervenientes: trocas de olhares, registos diferentes da voz consoante odestinatrio (para a princesa __ eu sam indino pastor __ para Cupido __ que mviagem faa ele).

    Grata . No os digo dios damorque no es nada el vuestro amarque para os esprementaros hice aquel disfavory no para os olvidar.por mi vidaque ahora a eso venay hllovos sin prisinsin congoja y sin pasinno pidis ms alegra.

    O dilogo entre Grata Clia e Cupido retomado como se o Pastor notivesse emitido os seus protestos. Percebemos que se manteve presente, maso discurso volta a adquirir o tom srio, ora sentencioso, ora lamentativo quese ajusta s duas personagens em confronto. A princesa acusa Cupido defaltar ao combinado __ sin congoja y sin pasin __ no tendo, pois, mais nada aesperar dela. O Pastor tenta chamar a ateno sobre si prprio, mas no bemsucedido: eu nam sam aqui pessoa \ solta-me desta fadiga. Trata-se de novoprocedimento destinado a fazer rir o pblico, tanto mais cmico quanto maiseficaz fosse o jogo do actor, participante involuntrio naquela disputa semqualquer resultado. A discusso relanada, os argumentos apresentadosrepetem-se: Cupido acusa a princesa de ser cruel e esquiva, ironizando acercados efeitos que a sua aco provoca: hacen estas maravillas \ y no s qu msos diga; Grata Clia recorda-lhe que sem sofrimento as virtudes no sodignas de louvor. A este discurso moralizante responde Cupido com palavraslisongeiras acerca da mulher que diz ser la perfecin del mundo. Invocamesmo o poder que detm na terra e no cu, onde apenas Deus bem maiordo que elas. Mas trata-se de mais uma manobra de seduo como deixaentrever a referncia capacidade de transfigurao do discurso pela paixo:hace decir a la lengua \ lo que niega el corazn.O deus do amor vai deixar-se aprisionar pela segunda vez. A realizaodos princpios do amor corts permitem a retirada do Pastor que sai semproferir palavra. So as lamentaes de Cupido que se ouviro at entradade novas personagens que, num breve quadro, vo repor a ordem terrenaameaada pelo deus do amor. A referncia doura deixa supor ser esse o

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    tom da fala de Grata Clia, embora possa tambm aludir submissode Cupido vontade da princesa. Nas splicas de Cupido perpassamvalores cristos tais como a compaixo, a piedade, a pacincia, a penitnciae a clemncia. Culminam com a utilizao de um epteto __ corona delas mujeres __ que possvel encontrar, nos autos de devoo, aplicado Virgem.

    Vem o Duque pelegrino e diz:

    . Muchas cosas de no crerhallo por esta florestamas maravilla como stano se vio ni se ha de ver.esto es ciertoy quin trajo a este desiertoans sola una doncellapor sierra tan sin conciertoy el amor preso por ella.

    A fala faz referncia a um espao caracterizado como maravilhoso e nico. de supor que nenhuma alterao tenha sido introduzida, pelo que a alusopodia ter como objectivo reforar o valor mgico atribudo inicialmente aoespao da floresta. E bastariam as palavras do Duque para activar aimaginao do pblico em 1536? scar de Pratt (1931: 47-48) julga que sim:Destas observaes resulta o convencimento de que, atravs de longos anosde experincia dramtica, a concepo do cenrio, na tcnica teatral de GilVicente, no chegou a revelar-se. Era ainda a imaginao do espectador quetinha de criar o ambiente em que as figuras se moviam. As aces teatrais aolongo da carreira de Vicente convocaram procedimentos to diversos quedificilmente se pode aceitar esta afirmao. Em alguns autos, comoVisitao, uma figura discorrendo preenche os requisitos da aco, noutros,como Frgua ou Cortes, foi necessria a fabricao de uma mquina e deoutros adereos que tomam parte na aco. Em Floresta, o clima mgicoassenta na mesma conveno que preside elaborao de romances decavalaria, permitindo fazer contracenar deuses e humanos, suspirar de amorsob o efeito de algemas e escutar as palavras da Ventura em pessoa. Os autosde Vicente no contam apenas com a imaginao do espectador. Pedem umaconivncia cultural que, porventura, s existiu nas cortes de D. Manuel e deD. Joo III.A fala do Duque resume aquilo que o espectador sabe e v. A questo quepe no vai suscitar um relato de Grata Clia, limita-se a realar o desajusteentre esta personagem nobre, o espao hostil e a presena de Cupido(imediatamente reconhecido, o que deixa supor a existncia de sinais deidentificao muito bvios). A pergunta de Grata Clia __ Dnde caminaisac? __ permite introduzir as personagens deste quadro, bem como o que ali

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    as trouxe. At ao final, juntam-se princesa e a Cupido cinco duques, umprncipe e a Ventura que entram a cantar:

    . Mustranos por Dios ventura 122aen esta sierra tan bellalas venturas que hay en ella.

    A cano dirigida Ventura acerca das venturas escondidas na serra celebrao encontro maravilhoso entre a princesa, vtima dos enganos de Cupido, e oPrncipe da Grcia, modelo de virtude.Apenas cinco destas personagens falam. Pelo que diz o Duque, porta-voz dogrupo, fica-se a saber que vo em peregrinao a um templo e que soguiados pela Ventura. Tamanho exemplo de virtude provoca em Grata Cliao desejo de esconder a sua vida desventurada. Cabe a Cupido, que tenta emvo persuadir a princesa a libert-lo, desvendar a identidade desta. O Duquefala de dichoso hado e de buen hora ao referir-se ao encontro entrepersonagens de tal estirpe. A euforia do seu discurso, patente na repetio debien, bendita, acentua o carcter maravilhoso que Vicente procurou criar nofinal do auto e que faz contrastar com o desentendimento entre Grata Clia eCupido, mais uma vez posto em evidncia no dilogo que preenche o tempoentre a sada do Duque e a entrada do Prncipe com todo o seu squito:

    Cupido . Seora, y este vuestro presosin remedio ha de morir.

    Grata . Y por quque amor que no tiene feno puede morir d'amores.

    Cupido . Porque no creis mis doloresque m mal claro se ve.

    Vicente trabalha ainda aqui a linguagem codificada do amor corts __ morirdamores __ para insistir na falsidade do sentimento de Cupido. O contrastecom a ausncia de discurso amoroso no encontro entre Grata Clia e oPrncipe da Grcia ter sido maior, em 1536, para um pblico formado pelatica corts.

    E acabando de cantar, diz a Ventura:

    . Oh Grata Celia princesade las princesas mayorque os hizo el dios damorque tenis su vida presa.

    Grata . Ms holgaraque ventura preguntarapues que ya me conoca

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    quin me rob el alegray las flores de mi cara.

    Ventura . Perdon que perd el norte.Grata . Oh ventura consagrada

    que siendo de mi adoradavos me distes por mi suerteventura desventurada.tal ha de serpor ser buena la mujervirtuosa sin mudanzadios de amor ha de querertomar tan cruda venganza.

    A chegada da Ventura inicia um jogo que a leitura dificilmente d a entender.S a aco teatral pode explicitar o funcionamento duplo da alegoria. Aspersonagens falam de ventura com a Ventura personificada: Grata Cliaqueixa-se de ter recebido da Ventura ventura desventurada; o Prncipeinterroga a Ventura acerca da vantagem de a ter por guia. Ao porem em causaa aco desta, as duas personagens suscitam uma explicao quedesencadear o desfecho feliz deste quadro e do auto. A Ventura dir-se- aoservio de Deus e no de Apolo ou Cupido para guiar os peregrinos,recusando qualquer ligao com divindades pags. Cita o saber do povo emsua defesa: quiso Dios y la ventura. O discurso desta personagem , alis,marcado quer por traos de humor __ Perdon que perd el norte __ quer poruma sabedoria popular com cariz pragmtico que se manifesta tambm naltima estrofe do auto.

    Grata . Contenta somas sin padre qu har yoque anque siento mi daola culpa tiene el engaomas el engaado no.

    Ventura . Cata que os viene Dios a verprincesa muy soberanano os debis de torcerque lo que se puede hoy hacerno quede para maana.no esperis ms recadopues os es honra y provechoquel casamiento alongadopocas veces se vio hecho.

    Grata Clia introduz uma nota disfrica ao recordar a ausncia do pai e os

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    danos provocados pela aco enganadora de Cupido. Este ter presenciado oencontro entre os prncipes, pois nada refere a sua libertao e sada. Para oscompiladores, o auto termina com msica e com a imagem da Venturaunindo Grata Clia e o Prncipe da Grcia, na qual podemos reconhecermodelos iconogrficos da poca.

    Cerca de 1520, Gil Vicente dirigira ao conde do Vimioso, tambm poeta doCancioneiro Geral, umas trovas nas quais anunciava estar produzindo umafarsa mui fermosa chamada Caa dos segredos. No existe outro rasto desteauto e, ao contrrio do que acontece com Jubileu de amores, Aderncia doPao e Vida do Pao, desconhece-se se ter sido concludo e representado.Existe a possibilidade de Vicente ter terminado, em data posterior, esta farsa,de a ter transformado ao gosto da poca e de lhe ter dado outro nome.Floresta de enganos seria o auto desaparecido, conjectura que pode serapoiada pelos versos de apresentao no prlogo:

    pero seores os pidoque tengais todo encubiertoen vuestro seno escondidoporque no sepa Copidoque descubro su secreto.

    De outros segredos se falar ao longo do auto: a Viva pede Moa que nodescubra o seu disfarce, Cupido diz en secreto a Apolo que o templo destecorre perigo, o Doutor combina encontrar-se com a Moa en lugar muchosecreto e decide guardar segredo desta aventura, finalmente, o Duqueperegrino sai para revelar ao Prncipe da Grcia a identidade secreta de GrataClia. O tema do engano propicia o jogo com a ocultao e a revelao.Caar segredos constitui afinal o divertimento do espectador, mesmo quandoele sabe mais do que as personagens.

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    Referncias

    Jos Cames1992 Festa.Vicente

    Lisboa: Quimera

    Anselmo Braamcamp Freire1919 Vida e Obras de Gil Vicente

    1944 segunda edioLisboa: Ocidente

    Luiz da Cunha Gonalves1939 Gil Vicente e os homens do foro

    Gil Vicente. Vida e ObraLisboa: Academia das Cincias

    Vitorino Nemsio1941 Gil Vicente. Floresta de Enganos

    Lisboa: Inqurito

    lvaro J. da Costa Pimpo1956 Gil Vicente. Obras Completas

    Barcelos: Companhia Editora do Minho

    scar de Pratt1931 Gil Vicente. Notas e Comentrios

    Lisboa: Clssica Editora

    Stephen Reckert1977 Gil Vicente: espirit y letra

    Madrid: Gredos

    I. S. Rvah1951 La comdia dans loeuvre de Gil Vicente

    Bulletin dHistoire du Thtre Portugais, tome II, n.1Lisboa

    Antnio Jos Saraiva1942 Gil Vicente e o fim do teatro medieval

    1981 terceira edioLisboa: Bertrand

    Carolina Michalis de Vasconcelos1923 Notas Vicentinas 4: Cultura intelectual e nobreza literria

    1949 Notas VicentinasLisboa: Ocidente