floresta simbolica

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Livro escrito pelo autor Guido Viaro.

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  • 1Encenaremos uma pea teatral que coincidir com nossa jornada pela mata. O improviso comandar o espetculo, que ser diferente daqueles apresentados anteriormente. Essa verso depois de iniciada no ter final, as mortes dos atores faro parte do enredo, e a falta de comediantes ser suprida pelos nascimentos que acontecerem. Haver dois papis reservados para vocs, o de um rei e o de uma rainha. Na condio de pioneiros de nossa civilizao, compusemos personagens que estivessem a altura de vossa tradio, e que talvez continuassem a contar suas histrias de maneira digna. Mas, como sabem, o improviso pode apresentar grandes surpresas, e apesar de nossas intenes serem as melhores, nada podemos garantir sobre o que acarretar a fuso de um homem ou uma mulher com seres, at certo ponto, fictcios.

    Escritor curitibano nascido em 1968, tambm autor dos romances

    O quarto do universo, Glria, A mulher que cai, A praa do

    diabo divino, Embaixo das velhas estrelas, No zoolgico de Berlim

    e Flores Coloridas.

    Incidentes atrasam a partida da trupe, que continua apresentando

    a cada noite, para sua pequena plateia (o homem e a mulher),

    novas verses da pea. O improviso conduz os atores a

    revelaes, a plateia mistura seu destino ao daqueles que encenam.

    Nasce uma civilizao. O vento fluido que tudo borrifa ataca

    tambm esse novo mundo. Iluses se dissipam e pginas em branco

    so escritas. O boto nascente de uma rosa cor de alegria

    perde suas ptalas, enquanto os passos pesados de um ancio marcam o cho molhado, que

    as folhas cadas das rvores no conseguiram cobrir.

    www.guidoviaro.com.br

    Guido Viaro

    Guido ViaroA natureza o cenrio onde o tempo se projeta. O homem seu espectador. A vida espalha seus smbolos por florestas de todos os tipos. Um homem e uma mulher se encontram no meio da mata. Suas histrias de vida so manhs nubladas. Ambos pertencem a mundos que no existem mais. Eles sobrevivem aceitando os dias que apenas acontecem. Alguns saltimbancos perdidos, chegam ao local onde ele e ela tinham construdo suas cabanas. Trazem seus cavalos esperanas e crianas. Em agradecimento pela acolhida, oferecem uma representao teatral baseada no improviso, onde o acaso se encarrega do texto, e a vida molda o enredo e enche de contedo os esqueletos dos personagens.

    FLORESTAA

    Gui

    do V

    iaro

    A F

    LOR

    EST

    A

    ISBN 978_85_61649_04_3

    9 788561 649043

  • DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAOBIBLIOTECRIA RESPONSVEL: Mara Rejane Vicente Teixeira

    Viaro, Guido, 1968 A Floresta Simblica/ Guido Viaro. -- Curitiba : Ideale, 2010 166 p. ; 21 cm

    ISBN 978-85-61649-04-31. Fico brasileira -- Paran. I. Ttulo.

    CDD (22 ed.) B869.3

    p r o j e t o g r f i c oIdeale Comunicao e Design

    d i r a o d e a r t eAlessandra Nogueira Saltori

    d i a g r a m a oRenato Nogueira Saltori

    f o t o c a p aAlessandra Harowww.fotocio.blogspot.com

    r e v i s oMarisa Karam Saltori

    i m p r e s s oSerzegraf

  • c u r i t i b a . 2 0 1 0

    i d e a l e c o m u n i c a o

    GUIDO VIARO

    FLORESTAA

    1 e d i o

  • 5Por todos os lados, at onde os mais poderosos olhos enxer-gam, h uma grande massa verde, composta por abetos, casta-nheiras, faias e teixos. Como os galhos acabam se encontrando, a impresso que fica que toda a floresta composta por uma

    imensa rvore, cujo tronco ficaria encoberto pela vegetao e po-deria estar em qualquer lugar, ou at em lugar algum.

    Sobre as densas ondas verde-escuro outros mundos acon-tecem. Como as ramagens bloqueiam grande parte da luz, essas outras realidades conhecem vrias tonalidades de sombras e co-res. Aceitam o meio termo e abrem espao para surpresas, como quando uma bola dourada vinda de cima mancha o cho coberto de folhas escuras.

    Os meio-tons dominam todo o territrio abaixo das copas. Galhos e folhas formam um tapete marrom-esverdeado que parece cobrir toda a extenso da floresta. Alguns raros buracos nessa co-bertura mostram como escura a terra que nutre as razes. Os tons pasteis da forrao vegetal parecem escurecer quando atingem a base dos troncos. Quanto maior uma rvore mais escura e rugosa sua casca. E essas reentrncias e elevaes parecem querer contar uma histria de vida, que estaria apenas disponvel para aqueles que fossem alfabetizados na linguagem dos smbolos vegetais.

    A mata, entretanto, no uma soma exata. As excees esto por todos os cantos, to espalhadas que quase chegam a consti-tuir uma regra. Destruindo a unanimidade do marrom, ergue-se um grande cogumelo vermelho coberto por pintas brancas. Um grande tronco cado est envolvido por uma camada de musgo esverdeado, e sobre o miolo do tronco, que comea a se dissolver, nascem fungos de formas diversas, que parecem representar um exerccio visual de criatividade da natureza.

  • 6 A rvore cada revela parte do que era escondido pelas sisudas cascas. A madeira que ficava encoberta era mais clara que a parte

    exposta. E agora que ela se dissolve, tambm colabora para que as excees diminuam a predominncia de cores mais escuras.

    Os ciclos vitais acompanham os cromticos e nunca, nem mesmo quando no h qualquer brisa, a floresta deixa de se mo-vimentar. H sempre galhos e folhas caindo, plantas crescendo ou folhas apodrecendo.O movimento algo mais presente do que os troncos escuros ou as folhas verdes. O vento redesenha a cobertu-ra vegetal do solo. Os detritos so transportados e parecem querer contar uma nova histria, repleta de pginas provisrias. Os gros-sos pingos dgua atuam como esptulas, usadas para espalhar e acumular cores, em um ou vrios cantos da composio. Quando a terra seca, parece sugar tambm um pouco da sofisticao do

    painel simblico que abrigava. s vezes, quando o cu escurece e o vento sopra forte, as rvores mais altas parecem assobiar. Seus grandes troncos escuros alertam o resto da floresta sobre a tem-pestade que se aproxima. O ar se torna cinza ou marrom e as pe-quenas plantas preparam-se a seu modo que venha o inevitvel.

    Indiferentes s ameaas climticas, ignorando at mesmo a existncia das grandes rvores, um grupo de formigas avana por entre as folhas que o vento levou. Para elas, so as folhas que constituem sua floresta, seus desafios so proporcionais a seus

    tamanhos. O resto, o imenso, torna-se minsculo. As formigas avanam em fila, algumas carregam pedaos verdes maiores que

    seus corpos, outras parecem atentas a predadores. Todas elas es-to imbudas de misses, que mais do que genticas, parecem a prpria essncia de suas vidas.

    No longe dali uma outra vida, essa com muito menos certezas, corre entre duas rvores. A lebre branca tem os olhos muito vermelhos e parece estar procurando comida. Continua

  • 7sua corrida at parar sobre um velho teixo, seus olhos se movi-mentam, perto dela h algumas bolotas cadas, no longe dali um figo e ervas comestveis. Os olhos vermelhos enxergam essas

    comidas, mas a lebre no toma nenhuma atitude

    Dias e noites se alternam, trazendo orvalho, sol, nuvens e pssaros. E eles, apesar de terem a capacidade de se elevarem mui-to acima da floresta, preferem passar a maior parte do tempo nos

    galhos mais finos do alto das copas. Alguns frutos se desprendem

    e mancham de vermelho-sangue o cho, essa cor imediatamente atrai os pssaros para um banquete, em pouco tempo s restam as cascas do fruto que se camuflam no meio das outras folhas cadas.

    O mesmo acontece quando algum passarinho morre, ele logo per-de sua aparncia animal e adquire uma vegetal. A terra parece no querer que nada alm de folhas cubra sua superfcie.

    Uma colmia colore de amarelo e trabalho um canto escuro da floresta. Sob um galho enrugado e coberto por liquens as abe-lhas construram sua sede, que mistura moradia, trabalho e sen-tido de vida. A fuso parece ainda mais perfeita que no caso das formigas. Elas atravessam a mata a procura de flores, normalmen-te o que encontram so pequenos botes que nascem sobre a relva, quando essa encontra espao para brotar.s vezes algumas abe-lhas tem sorte e descobrem uma grande flor vermelha nascendo

    sobre um tronco apodrecido ou ao lado de um grande cogumelo.

    Mas no so apenas as cores ou a morte que por vezes que-bram o padro repetitivo da floresta. Um lago atrai os barulhos

    da noite. Patas com cascos pisam as folhas para vir beber gua, ariscos, esses animais preferem o escuro, e so uma grande sur-presa, tanto para as outras espcies quanto para a prpria mata. Menos misteriosos e mais extravagantes, os esquilos saltam de rvore em rvore a procura de comida. Seus movimentos rpi-dos, seguidos de perodos de total imobilidade, parecem dizer

  • 8que eles so animais de extremos. Diferentemente, os pacficos

    cervos caminham lentamente em busca de brotos frescos de fo-lhas. Nada os incomoda, e eles parecem ter nascido para aquela meia luz, repleta de verdes e marrons. Os cervos tm cascos e bebem gua no lago. Pode at ser que sejam os nicos habi-tantes da mata responsveis pelas surpresas e inquietao das espcies menores. Pode ser, porque nem tudo to evidente quanto parece.

    A mata guarda outros tipos de pegadas, contornos de ps que desapareceram e ressurgiram. Marcas que indicam muitas direes, tamanhos e pocas. O cho da floresta j foi pisado por

    amerndios, vikings, nababeus, romanos, gregos, chineses, egp-cios, africanos, citas, assrios, mesopotmios, ps que se derre-teram, se condensaram, se reproduziram, suaram e sangraram. Todas essas marcas so invisveis, mas isso no significa que

    desapareceram. Suas vidas impregnaram o solo da floresta com

    detritos imateriais. A histria de cada indivduo e a do conjunto de todos eles descobriu uma maneira de manter-se viva, porm incgnita. O ar, a terra, a gua, as plantas e os animais foram os agentes dessa transformao. Talvez algum dia, quando no existirem mais plantas nem bichos, todos eles podero continuar existindo ocultos, dentro de um imenso grupo de homens que viver num grande mundo cinzento.

    Tudo na mata cclico, o fruto maduro que cai no cho apo-drece e acaba nutrindo as razes da rvore que o gerou. Por isso as folhas secas que cobrem o cho podero voltar a serem pisa-das por muitos tipos de patas, ps, ou at outros pedestais de vida que hoje permanecem incgnitos.

    A lebre desconhece o destino das abelhas e essas, do cervo, e todos, includo a os abetos, as formigas, as serpentes e o ho-mem, ignoram seus prprios destinos.

  • 9 Silenciosa, uma longa cobra marrom passeia quase invisvel sobre as folhas cadas. De todos os animais, o que parece mais perfeitamente se adaptar aos contornos e s cores do terreno. E ela no possui ps. Talvez a sabedoria fsica dos animais evolua na direo da integrao de todas as formas de natureza, e para isso v eliminando todo o suprfluo. O futuro pertenceria a ci-vilizaes que rastejariam pela terra escura. Homens-lees sem membros, disputariam com cobras as mesmas mas, depois de escalarem a mesma rvore.

    A cobra encontra uma elevao, quase inteiramente coberta por fungos e musgos. Seu corpo acompanha o formato da antiga rvore. A vegetao parece tentar estrangular a planta que no vive mais. A madeira comea a se esfarelar, e no difcil imagi-nar como ser o resto do processo. Nada restar de sua aparncia original, tudo se transformar em outra coisa.

  • 10

  • 11

    O ENCONTRO

    Alguns pequenos arbustos da mata se mexiam, mas no ventava. Na verdade se moviam como fazem quando um animal atravessa seus galhos, mas todos os bichos estavam distantes. Uma brisa indecisa agitava em sentido oposto os ramos mais al-tos das rvores. Em outra parte da floresta alguns animais agiam

    como se uma grande tempestade estivesse prestes a despencar, mas o cu estava completamente azul. Os grandes carvalhos co-mearam a assobiar, o sopro interrompido fazia com que eles parecessem estar cantando, ou ento tentando falar.Essa voz car-regava a angstia daqueles que tentam sem sucesso se exprimir. Havia tambm na voz o receio de que as poucas palavras que conseguisse exprimir pudessem ser emudecidas

    Entre os alternados gritos dos carvalhos, um outro som comeou gradualmente a invadir a floresta. Era algo estranho,

    como o berro desesperado de um animal ferido. Assim como com o barulho das rvores esse rudo no era constante. Cada vez que recomeava parecia mais cheio de melancolia.

    Os animais procuravam fugir da origem do barulho. Esse imenso ser de duas cabeas, com metade do corpo feito de ma-deira pintada de vermelho-sangue, representava para os bichos uma ameaa muito maior do que a pior das tempestades. Esse monstro, entretanto, no conseguiria perseguir nem o mais len-to dos animais. Avanava com extrema dificuldade por entre a

    vegetao. Conforme a densidade de obstculos de cada regio, esse ente dividia-se em dois, e uma das cabeas se transferia para trs para empurrar a parte mais pesada de seu corpo. Esse era o ponto de vista dos animais.

  • 12

    O homem lutava contra a natureza. Cada metro que vencia era uma conquista. Sua pesada carroa coberta no tinha sido projetada para esse tipo de terreno. Seu cavalo resfolegava e pre-cisava apanhar muito para obedecer as ordens de seu dono. Seus gritos de dor e rebeldia constituam o terceiro tipo de som que invadia a floresta . Todos os outros pareciam ter cessado.

    No era s o cavalo que sofria, o homem tambm parecia ter dispendido todas suas foras nessa tentativa de fazer sua car-roa avanar. O suor empapava suas roupas e seus pulmes pa-reciam que trabalhavam no limite extremo de sua capacidade. As grandes rodas de madeira destruam arbustos e passavam por cima de troncos, esforando-se muito alm de seu limite. Lia-se na fisionomia do homem que isso o preocupava, caso alguma

    roda se quebrasse sua viagem teria de ser interrompida. Por isso ele se parecia com os ventos, que nesse dia balanavam em di-rees conflitantes os galhos mais altos das rvores. Precisava

    avanar mas no podia fazer com que o avano fosse justamente o que o impedisse de continuar.

    Mantinha um olho sempre fixo nas rodas, desviava de qual-quer objeto que julgasse representar um esforo excessivo para elas. Ziguezagueava entre troncos mortos e subidas ngremes, isso acabava exigindo de seu crebro tanto quanto de seus msculos. Eventualmente parava para descansar, mas seus olhos nervosos indicavam que era apenas seu corpo que repousava. Era preciso decidir por onde seria mais fcil a carroa passar e onde o cava-lo corria menos riscos de se machucar. Essas pausas deixavam-no mentalmente sobrecarregado. Quando estava em movimento dis-traa-se com os eventos mais prximos, sem se preocupar muito com aqueles que estavam alm de seu campo de viso.

    Um tronco apodrecido dissolvia-se bem a frente de sua car-roa, ele se aproximou para ver se era melhor desviar ou passar

  • 13

    por cima. Acabou decidindo que a madeira podre seria um obs-tculo fcil. Avanou, e o que aconteceu foi que uma das rodas fi-cou presa no meio do tronco. Primeiro tentou chicotear o cavalo, depois empurrar a carroa, mas a roda continuava girando em falso. Ento colocou alguns galhos secos onde ela ficara presa, e

    com uma mo puxou com toda fora um dos aros, com a outra conseguiu chicotear o cavalo para que ele avanasse. Funcionou, a carroa se moveu, mas alguma coisa acabou cortando sua mo. Sobre o p esbranquiado da rvore decomposta pingavam gran-des gotas de sangue. Sua primeira preocupao foi com a carro-a, segurou o cavalo e o amarrou em uma das rvores, depois examinou o ferimento. O corte estava encoberto por uma grande quantidade de sangue que saa da parte lateral da mo e cobria o pulso. Apanhou algumas folhas no cho e cobriu o ferimento, parecia que alguma farpa metlica da roda tinha lhe rasgado a pele. Sentia o pulsar do corao no local do corte. A dor o inco-modava, mas o pior desse acidente ficava por conta das preocu-paes as consequncias... conseguiria prosseguir... a ferida no poderia se alastrar?. Depois de limpar o corte viu que a situao no era to grave. Apalpou a regio para ver se algum fragmento de metal ou madeira havia entrado em sua pele, nada encontrou. Mexeu todos os dedos, a mo e o pulso, os movimentos estavam preservados. Desamarrou o cavalo e prosseguiu, por sorte o ter-reno frente no tinha grandes obstculos e ele no precisaria forar a regio ferida. As grandes rvores comearam a rarear e a carroa ganhou velocidade. Chegou no lago que mata a sede de toda a floresta. Antes de lavar seu ferimento fez questo de

    dar de beber ao cavalo. Depois que o animal se fartou ele o de-satrelou e deixou caminhar pelas bordas do lago. Lavou o corte, bebeu gua e sentou-se com os ps dentro dgua. Olhou para a vegetao ao redor, o lago era todo cercado por arbustos e relva, s um pouco mais longe que comeavam as grandes rvores.

  • 14

    Pensou sobre se deveria cobrir seu machucado com algum tipo de folha, decidiu deix-lo respirar at que cicatrizasse. Reparou que a noite no tardaria a chegar. As guas do lago comeavam a receber os raios oblquos de um sol pronto para sumir no hori-zonte. Aquele seria um bom lugar para passar a noite. Amarrou o cavalo no p de um arbusto e logo que a noite caiu acendeu uma fogueira, nela assou um pedao de carne que trazia. Depois de comer ficou assistindo os reflexos do fogo nas guas do lago.

    Escutou alguns barulhos de animais mas no conseguiu enxer-gar nenhum, a fogueira certamente os afugentou. Antes que as chamas se extinguissem e que s o que ficasse refletido no lago

    fossem as estrelas, entrou na carroa para dormir.

    Acordou quando a luz do dia invadiu seu refgio. A noite restaurou suas foras e foi s bem depois de se levantar que se lembrou de seu ferimento, que parecia uma preocupao enve-lhecida, algo que em uma semana estaria esquecido. Por preven-o lavou-o novamente nas guas do lago. Perto da margem viu algumas pegadas que deveriam ter sido feitas enquanto dormia. Como o bicho pisara um terreno enlameado, ficava difcil desco-brir de qual espcie eram aquelas marcas.

    Deu de beber ao cavalo e saiu a p para explorar as redon-dezas. Encontrou algumas outras pegadas que atribuiu a algu-ma espcie de cervo. A regio do lago recebia os primeiros raios de sol de um dia sem nenhuma nuvem. Afastando-se um pouco dali, quando voltavam as grandes rvores, as luzes tornavam a envelhecer, espalhando-se sem convico por toda a mata. Per-cebeu tambm que em poucos metros desaparecia o suave calor, que se transformava numa temperatura agradvel para dormir.Avanou mais um pouco tentando descobrir qual seria o melhor caminho para continuar de carroa. Encontrou um longo trecho onde o espao entre as grandes rvores era mais do que suficiente

    para que sua carroa passasse. Alm disso no havia muitos ou-

  • 15

    tros obstculos no cho, apenas uma fina camada de folhas mor-tas. Quando se preparava para voltar deu de cara com uma velha figueira carregada de frutos. Os figos pareciam estar no ponto

    exato para o consumo, em poucos dias o cho deveria estar co-berto por frutos apodrecidos. Cheirou-os, comeu um e levou o quanto pode consigo. No caminho de volta viu um teixo tambm carregado de frutos, mas j no tinha como levar mais nada. En-quanto atrelava o cavalo pensou, que caso desejasse, talvez no fosse difcil extrair seu sustento da floresta. Alm das frutas e

    castanhas deveria haver muitos animais para a caa. Depois foi verificar como andava seu estoque de comida e ficou contente

    com o que viu.

    Entrou na penumbra da mata, avanava devagar, mas ne-nhum obstculo o fez ter de descer para empurrar. Quando pu-xava as rdeas sentiu uma leve fisgada na mo, que no chegava

    a tirar a concentrao que precisava para no raspar as rodas nas rvores. Mesmo com o terreno pouco acidentado e sem muitos obstculos no cho, aquele percurso tenso acabava exigindo bas-tante de seu corpo. Aps algum tempo decidiu descansar e viu como o cavalo suava e bebia gua de uma poa. Sentado, pode ver que dois passarinhos vermelhos se alimentavam de um fruto ca-do. O cavalo tinha parado de resfolegar e por instantes o homem se concentrou em escutar a floresta. De olhos fechados procurou

    perceber as vrias camadas sonoras que existiam, os pssaros, a brisa soprando nos galhos mais altos, o zumbido dos insetos... havia tambm alguns outros rudos que vinham de longe e por isso formavam uma mistura difcil de identificar. Sua meditao

    foi interrompida de repente, um galho seco caiu assustando-o, dando-lhe por um instante, a impresso de que uma pessoa se aproximava. Montou na carroa e continuou seu percurso, os raios de sol comearam a entrar inclinados por entre as rvores e pareciam que poderiam ser tocados. Essa luz esquentou todas as

  • 16

    tonalidades de verde que enxergava. O terreno comeou a ficar

    menos plano, mas por enquanto conseguia vencer as pequenas subidas e descidas sem ter de descer da carroa. Sobre o tronco de uma velha rvore que no sabia o nome, viu uma grande bola amarelada que em pouco tempo estaria dourada. O dia comea-va a ir embora. No tinha comido nada alm de uns poucos figos.

    Decidiu que continuaria mais um pouco. Algum tempo depois chegou a uma espcie de clareira. As rvores ficavam bem afas-tadas umas das outras e o cho era coberto apenas por relva. A floresta lhe dizia que aquele seria o lugar onde passaria a noite.

    Amarrou o cavalo e foi preparar sua comida. Antes de acender o fogo foi surpreendido pelas luzes mgicas do dia que terminava. Decidiu que seus olhos teriam prioridade sobre seu estmago. A no ser por uns poucos rudos de pssaros, parecia que toda a floresta ficara em silncio para contemplar o pr-do-sol. As luzes

    pintavam o que queriam sobre os grandes troncos envelhecidos. Em poucos instantes o escuro avanava sobre o amarelo, tudo era muito transitrio. A penumbra j cobria todo o cho, e como ele estava sentado, envolvia-o com sua serenidade. Nesses ins-tantes ele apenas olhou para os lados sem pensar em nada.

    Essa paz foi interrompida por um rudo. Novamente teve a impresso de que alguma coisa se aproximava. Por um instan-te o barulho lhe pareceu o de uma pessoa pisando folhas secas. Achou que o mais provvel seria um animal de grande porte em busca de caa. Arrependeu-se de ainda no ter feito fogo e correu para dentro da carroa. Quando j estava abrigado se lembrou de seu cavalo. No poderia permitir que uma fera o devorasse. Amarrou-o junto carroa, sacou de sua espada e esperou pela besta. Por um instante os rudos cessaram para logo recome-ar. O animal devia estar perto e talvez o observasse. A tenso cresceu e o cavalo parecia ter sido contaminado, pois comeou a relinchar. O homem conseguiu acalm-lo mas no a si mesmo.

  • 17

    Talvez aquele bicho estivesse esperando apenas a noite cair para atacar. Como em pouco tempo estaria escuro, ele no teria como prosseguir sua jornada sem enxergar nada. Teria de passar a noite acordado e prosseguir pela manh. Comeou a sentir raiva daquela criatura que lhe feria os nervos. Com um movimento testou sua es-pada, que ficou cravada bem fundo no tronco de uma castanheira.

    Depois de hesitar algumas vezes o rudo parecia ter se de-cidido e se tornava mais forte. O homem montou no cavalo para esperar a fera. Pensou em fugir e voltar depois para recuperar a carroa. Mas j no daria tempo. Quando faltava pouco para a noite cair por completo os rudos tomaram forma fsica.

    De espada em riste e preparado para batalha ele viu aquilo que nunca esperava. Aos poucos a espada foi baixando at cair no cho. O animal que tanto temia tinha pele verde e chegava a confundir-se com a vegetao. Essa cor era do veludo do vestido da mulher que caminhava pela floresta. Ao contrrio do que ima-ginava ela no o espiava. Olhava para os lados mas nem chegou a perceber a presena do homem. Quando a espada caiu no cho ela levou um grande susto.

    O senhor tenha piedade de mim, me poupe de maus tratos... lhe rogo em nome de...

    No se preocupe, no lhe farei mal, no tenha medo... mas o que a senhora faz sozinha no meio da floresta?

    Obrigada cavalheiro... eu caminho, isso que fao, e j faz um bom tempo que s o que fao.

    Mas para esses lados a mata se estende at onde o olho no alcana... so poucas as clareiras como essa, no resto o que h so grandes rvores, folhas secas e animais selvagens.

    Senhor... no foram poucas as dificuldades que enfrentei at

    aqui... de onde venho os percalos jamais deixaram de existir, e eles nunca diminuram, no importando a rota que eu escolhesse.

  • 18

    Se incomodaria de me dizer de onde vens?

    De uma aldeia distante. Um dia acordei e todos os habi-tantes, como que por encanto, desapareceram. Eu me vi como nica habitante daquela cidadela. Procurei pelos cantos e as ni-cas almas que encontrei foram as das vacas e das cabras, que acu-mulavam leite que pedia para ser ordenhado. Ento, por alguns dias enchi muitos baldes que comearam a se acumular sem que houvesse consumidores. Percebi que aquilo no teria fim, e que

    cada dia gasto daquela forma apenas faria girar uma roda que necessitava de mim para se movimentar. Decidi que preferiria me movimentar de maneira independente e abandonei os ani-mais, os baldes cheios, e aqui estou.

    Mas... a mata est cheia de perigos, h os bichos, os cogu-melos venenosos, como ir se alimentar? Trouxe comigo um bom estoque de comida e mesmo assim meu corao tem palpitado de preocupao cada vez que vejo as reservas diminurem. Gos-taria de prosseguir junto comigo? A senhora poder dormir na carroa e eu me arranjo com meus cobertores junto fogueira.

    Na manh seguinte a mulher demorou muito para acordar. O homem chegou a ficar preocupado. Quando acordou estra-nhou bastante o interior da carroa, as memrias da noite ante-rior estavam nubladas e s quando viu o homem foi que se loca-lizou. Agradeceu-o pela hospedagem, mas pensava em voltar a caminhar sozinha. Ele insistiu at que ela cedesse. Sentada a seu lado a fisionomia dos dois no podia ser mais diferente. Enquan-to ele se esforava com as rdeas na mo, desviando dos obs-tculos e gritando para o cavalo, ela permanecia absolutamente impassvel. Nenhuma emoo era lida em seu rosto.

    Fizeram uma pausa para comer, ele lhe ofereceu alguns bo-cados de carne seca e po. Ela disse que no comia animais e mordiscou uma fatia de po. Ele se lembrou dos figos que tinha

    colhido e ela completou sua refeio comendo dois frutos.

  • 19

    Depois disso prosseguiram, sem se falar, as nicas palavras ditas eram por ele para o cavalo. De repente aconteceu aquilo que ele mais temia, o estrondo que lhe causava pesadelos. Um robusto toco de alguma rvore cada destruiu uma das rodas tra-seiras da carroa.

    Ele saltou ainda em movimento, mas o cavalo parecia ter percebido a gravidade da situao e depois que o homem desceu no deu mais do que trs passos. A roda havia rachado ao meio e a maioria dos aros estavam quebrados. No havia conserto. Ele sentou-se no cho sem saber o que fazer, mais do que tristeza o que se lia em seu rosto era desencanto. A mulher percebeu isso e lanou-lhe um olhar de solidariedade. Sem dizer nada ela com-parou essa situao com a que viveu quando percebeu que todas as pessoas de seu vilarejo tinham sumido. Aquele homem devia estar perdido. Com os olhos ela disse que lamentava o acidente e que prosseguiria sua caminhada sozinha. Com a boca ele pediu para que ela ficasse.

    A senhora no pode continuar sozinha... so muitos os perigos da floresta... o cavalo forte o suficiente para ns dois.

    Acredita que os perigos desapareceriam se eu prosseguisse em sua companhia?

    Ao menos seramos dois pares de olhos...

    Ser que o acidente no um grito do destino nos dizendo que cada um dever prosseguir numa direo... se no nos ti-vssemos encontrado o senhor provavelmente ainda estaria com sua roda intacta.

    E a senhora provavelmente estaria faminta e desesperada atrs de algum alimento. Terei de abandonar a carroa aqui e car-regar s o essencial. Eu puxarei o cavalo e ele te carregar junto com meus pertences.

    Parece que o senhor j decidiu meu futuro.

  • 20

    No me leve a mal, no quero for-la a nada, mas no pa-rece haver outra soluo mais lgica.

    Como podes afirmar isso quando desconheces meu desti-no final... e se eu j tiver chegado onde desejava?

    E a senhora, no tem curiosidade para saber at onde me dirijo?

    Parece que nesse ponto nossos interesses convergem... montei em sua carroa sem que ao menos o senhor perguntasse meu nome.

    Talvez seja melhor comearmos a caminhada amanh. Vou tirar as outras rodas para que possa dormir com mais conforto.

    Quando acordou ele ainda levou um bom tempo at se lem-brar do acidente. No alto das rvores encontrou rasgos de um cu sem nuvens. Mas ele permanecia entristecido e cheio de dvidas. Ela novamente dormiu at tarde e quando acordou ficou contente

    com o dia bonito que fazia. Esse leve sorriso foi a primeira mani-festao de emoo que ele conseguiu ler em seu rosto. Essa sutil alegria o contaminou e desenhou uma mudana em seus lbios.

    Quando percebeu que ela se afastava da carroa ele entrou para esvazi-la. Colocou todos seus pertences no cho para ava-liar o que precisaria e o que poderia abandonar. Decidiu que le-varia alguns cobertores, a comida e sua espada. Com uma manta e dois pedaos de corda tentaria improvisar uma cela. Enquanto ele fazia esses preparativos ela o olhava curiosa, por sua fisiono-mia no parecia se lembrar que no dia anterior ele lhe propusera continuarem suas jornadas, ele a p e ela a cavalo. Quando termi-nou virou-se para cham-la, mas no a encontrou. Percorreu toda a clareira sem sucesso. Montou no cavalo, avanou na direo oposta daquela por onde a havia visto chegar. Parou e procurou escutar a floresta, ouviu os mesmos rudos que o atemorizavam

    quando ainda no a conhecia. Ela devia estar por perto. Ele escu-

  • 21

    tou seu chamado, ela estava imediatamente atrs de seu cavalo, e no tinha sido a origem dos rudos que ele escutara.

    A senhora me assustou. Estou pronto para partirmos...

    Da mesma maneira que o senhor me convida para partir eu o convido a permanecer aqui... me cansei de caminhadas.

    Mas para que servem as noites seno para restabelecermos nossas foras para as caminhadas do dia seguinte?

    Poderia dormir trs dias seguidos que nem isso traria de volta minha vontade de voltar a caminhar.

    Os dois passaram um dia confuso. Voltaram para perto dos destroos da carroa, mas ele no quis recolocar seus per-tences dentro dela. Apesar de dizer que estava cansada ela pas-sou o dia todo indo de um lado para outro, crculos que a man-tinham a pouca distncia do homem. Ele passou a maior parte do dia deitado sobre um cobertor olhando para o cu azul. Apesar da proximidade no trocaram uma palavra. No final

    da tarde ele se afastou por um bom tempo do acampamento, achou que o convite para que ficassem tinha sido uma tentativa

    para despist-lo, e que dessa vez ela havia partido. No fim da

    tarde ele decidiu que s continuaria sua jornada no dia seguin-te. Foi quando ela voltou trazendo enrolado em um pano cas-tanhas, algumas bolotas e cogumelos que assegurou serem co-mestveis. Fizeram fogo e o jantar foi feito com o que a mulher colheu. Aps a refeio ela trouxe um ramo de framboesas que serviram de sobremesa. Quando a noite caiu cada um foi para seu canto e permaneceram em silncio. A mulher pensava sobre como a floresta era capaz de prover todas suas necessidades.

    O homem era s preocupao. Estavam prximos a um lago, mas agora sem a carroa no teriam como carregar uma grande quantidade de gua no cavalo. Temia no conseguir acumular gua da chuva o suficiente para sobreviver.

  • 22

    noite, enquanto ela dormia profundamente, sonhando que ainda morava no vilarejo, e que todos os habitantes continu-avam l, ele permanecia acordado, escutava o canto da cigarra e procurava descobrir, por trs dele, os rudos desconhecidos que se pareciam com pegadas humanas. Como demorou a dormir, quando ele acordou, ela j tinha acendido o fogo e lhe preparado uma xcara de ch com algumas ervas que encontrara. Percebeu ento, que havia esquecido seu cavalo a noite toda carregado com seus pertences. Apressou-se para alivi-lo do peso. O cavalo estava cansado e ele decidiu que lhe daria um dia de folga e s partiria no dia seguinte. A mulher desapareceu e quando voltou tinha os cabelos molhados e trazia mais algumas iguarias que havia encontrado na mata. Eram frutas que ele desconhecia e al-guns figos comestveis.

    A gua do lago est deliciosa, o senhor deveria experi-mentar.

    Ele caminhou sozinho at a beira, tirou os sapatos mas no entrou. Sentado conseguiu enxergar a gua e o cu, que hoje esta-va parcialmente nublado. As nuvens refletiam no lago e por um

    bom tempo ele apenas observou o movimento desses reflexos. A

    nuvem ia aos poucos se transformando, unindo-se a outras, se dividindo, e essas mudanas ganhavam uma nova dimenso: a profundidade das guas do lago. Depois dessas percepes ele decidiu se refrescar. Tirou as roupas e caminhou at que seus ombros fossem encobertos. Dessa posio no conseguia enxer-gar os reflexos, mas deduziu que deveria estar bem no meio de

    um deles. Mergulhou e tentou abrir os olhos, pouco conseguiu enxergar. Secou-se ao sol, chegou at a cochilar, vestiu-se e vol-tou para o acampamento. Sentia suas energias renovadas, o ba-nho parecia que no apenas lavara seu corpo, mas retirara algu-mas impurezas que vinham se acumulando em sua mente.

    Te peo que no me trate mais por senhor.

  • 23

    Peo o mesmo.

    Voc refletiu melhor, ir prosseguir comigo?

    E voc, no acha que em qualquer lugar que formos tere-mos tudo aquilo que precisarmos?

    Mas o homem no foi feito para se conformar... o movimento, mesmo sendo ele iluso, sinto sua falta.

    Hoje almoaremos cores: fungos, cogumelos e castanhas, se o verde o cu os outros tons so as nuvens.

    A que voc atribui o desaparecimento de teus conterrneos?

    No sei...uma vez ouvi dizer que isso no uma coisa to incomum quanto parece.

    Mas para onde poderiam ter ido?

    Talvez cada um tenha decidido caminhar numa direo.

    Comeo a entender porque no quer continuar a caminhada.

    A refeio da noite foi especialmente saborosa. Uma combi-nao de frutas, razes, fungos e castanhas. Os sabores sutis no se comparavam com o que ele estava acostumado a comer desde que iniciou sua jornada. Alm disso, sentia que o estmago no lhe pesava quando consumia os frutos da floresta. Verificou o pe-dao de carne seca que carregava como reserva e pela primeira vez sentiu um cheiro que indicava deteriorao. Com uma faca fez um corte e encontrou alguns vermes gordos. Por um instante pensou em tir-los dali e embrulhar a carne. Acabou jogando fora, depois voltou l e enterrou o que antes iria comer. Algumas gotas de arrependimento pingaram sobre sua nuca. Enxugou-se olhan-do para as grandes rvores, respirou fundo o ar parado da floresta

    e teve a certeza de que a natureza seria generosa o suficiente para

    lhe prover o sustento.

    Outro dia se passou, o cavalo j estava descansado e ele poderia ter partido, mas s o que fez foi tentar descobrir essas

  • 24

    pequenas delcias coloridas que a floresta escondia pelos cantos.

    Selecionou algumas que acabaram descartadas pela mulher, que suspeitava que cores muito vivas pudessem esconder venenos.

    Sete dias se passaram e depois outros sete. Os dois continu-aram com suas rotinas que inclua a procura e o preparo de ali-mentos, o cuidado com o cavalo e banhos no lago. A mulher con-tinuava dormindo dentro dos destroos da carroa e o homem ao relento. Mas em nenhum momento ele havia oficialmente desisti-do de prosseguir sua jornada, vivia o instante, que por enquanto acontecia sem que precisasse caminhar floresta adentro. Entre-tanto havia algo que comeava a perturb-lo, j h alguns dias comeava a fazer frio durante a noite, e por mais que se enrolasse em suas cobertas sentia dificuldade para dormir. Sentia-se emba-raado em pedir para passar as noites dentro da carroa, ento resolveu construir para si um abrigo.

    Com grandes dificuldades cortou com sua espada uma r-vore de porte mdio e dividiu o tronco em pequenas tbuas irre-gulares. Quando a mulher o viu trabalhando e quis saber do que se tratava, sugeriu que seria mais fcil usar as tbuas j cortadas da carroa. Por duas semanas os dois tiveram de suportar o relen-to da floresta, mas depois disso cada um ganhou seu abrigo cons-trudo de madeira e coberto por folhas. Os dois casebres usavam como suporte o tronco de grandes rvores, que acabava sendo a parede de fundo das habitaes.

    O sono passou a no ter mais obstculos para que se rea-lizasse. Isso afetou o humor de ambos, que noite, depois de encerradas as atividades do dia, passavam longas horas beira da fogueira contando histrias. Eram lendas, fbulas, s vezes um dos dois declamava alguma poesia ou contava o sonho da noite anterior, mas nenhum deles falava muito sobre suas vidas pessoais. A vida antes da entrada na floresta no era algo de

  • 25

    que se envergonhavam, era na verdade alguma coisa que ambos pareciam conceder pouca importncia.

    Outro passatempo noturno era escutar os barulhos da na-tureza, com o tempo aprenderam a distinguir os rudos dos ani-mais. Podiam identificar a que distncia estava o cavalo quando

    saa para seus passeios noturnos. Distinguiam tambm os passos receosos e suaves dos cervos, os nervosos e rpidos das lebres, reconheciam os barulhos das corujas e dos esquilos. Muito ra-ramente escutavam aqueles rudos que se pareciam com passos humanos, e que faziam sonhar que grandes olhos escondidos atrs das rvores os observavam. Sempre quando isso acontecia o homem acordava cedo para ver se descobria rastros ou pega-das, mas nunca encontrava nada.

    Vestidos longos no foram feitos para se usar na floresta,

    com o passar do tempo a barra foi rasgando e a mulher passou a usar apenas farrapos. O homem lhe deu algumas de suas rou-pas, que com alguns ajustes passaram a vesti-la de maneira mais adequada para o trabalho dirio.

    O tempo flua como um riacho silencioso que no conhece

    obstculos. Tanto o desejo de avanar mata adentro, quanto tudo que tinham vivido antes de entrar na floresta, pareciam recorda-es nubladas que no teriam foras para movimentar desejos ou alimentar nostalgias. Constatando em si esse fato, o homem se perguntava se a mulher estaria vivendo algo semelhante. Ela tinha uma aparncia de serenidade que no chegava a desenhar em seu rosto traos de felicidade.

    Aos poucos eles foram conhecendo melhor as redondezas. Descobriram que do outro lado do lago havia um riacho que despejava suas guas nele. Com pouco mais de um palmo de profundidade esse crrego tinha guas totalmente cristalinas onde se enxergava pequenos peixes amarelos e vermelhos. Essa

  • 26

    passou a ser a fonte de gua deles, que durante as noites mais quentes dormiam nas margens para que o borbulhar da corren-teza embalasse seus sonos.

    O acampamento principal comeou a receber alguns vi-sitantes fixos. Era um cervo e uma famlia de esquilos, para os

    quais sempre se reservava alguma comida.

    s vezes a mulher desaparecia pela manh e s voltava quando a noite estava estrelada. Ficava a beira do riacho, ou en-to caminhava at descobrir um novo refgio onde pudesse ficar

    sozinha. Cantava algumas msicas que aprendera quando crian-a, falava sozinha, descansava. Apesar do recolhimento, e das menes que fazia ao perodo anterior floresta, nada em seu

    rosto indicava que aqueles momentos alimentavam sentimen-talismos. Ao contrrio, parecia que nesses instantes reservados, sorria mais do que quando estava acompanhada. E quando vol-tava de suas caminhadas estava sempre de excelente humor.

    Um dia o homem props construir uma casa maior para os dois, teria dois quartos e seria feita com madeira de melhor qua-lidade, teria assoalho e janelas. Ela preferiu permanecer em sua cabana e disse que se ele quisesse construir outra morada que se sentisse livre, mas que ela no iria ajud-lo pois no precisava de nada alm daquilo que possua. Num primeiro instante ele ficou

    um pouco chateado com essa resposta, e foi sua vez de passar um dia inteiro beira do riacho. Mas enquanto jogava pedrinhas nas guas chegou concluso que ela estava certa, e que a ideia que teve era fruto da mentalidade anterior floresta. Quando

    percebeu isso sua mgoa se dissolveu imediatamente. Nesse ins-tante enxergou um grande sapo verde beira do crrego, o bicho tinha olhos amarelos e parecia olh-lo fixamente. A cor de sua

    pele se confundia com a vegetao ao redor. Com um salto ele entrou no riacho e lentamente se deixou levar pela correnteza,

  • 27

    mas at que desaparecesse atrs de uma curva, manteve os gran-des olhos amarelos voltados para o homem.

    Numa outra ocasio ele acordou e reparou que seu cavalo estava amarrado em uma rvore. Isso sempre acontecia quando a mulher se ausentava e no queria que o cavalo acabasse se per-dendo na floresta. Ele no se inquietou e comeou o dia cortando

    lenha. Entre um golpe de espada e outro, comeou a ouvir um rudo que no conseguia identificar. Na ponta dos ps procurou

    caminhar na direo da origem do barulho. Descobriu, sem que fosse percebido, que aquilo era o som do choro da mulher. Sen-tada no cho, atrs de um grande teixo, ela derramava lgrimas que ficavam encobertas por suas mos. Primeiro ele tentou des-cobrir qual seria a origem daquele sofrimento, depois se questio-nou se deveria revelar sua presena e tentar consol-la. Apesar de no ter descoberto a origem do pranto, sentiu-o como algo completamente natural. Ento apenas deixou com que a chuva continuasse molhando a terra ou as flores derrubando as ptalas.

    Nessa noite ele fez uma fogueira e preparou uma sopa de er-vas. Os dois ficaram conversando por um bom tempo, ela estava

    animada e falava bastante. Ele no conseguiu enxergar nenhum trao daquela tristeza que pouco tempo atrs parecia inund-la. As lgrimas tinham cumprido sua misso.

    Lembrou-se que h alguns dias atrs quando estava sozinho na beira do lago, sentiu sem nenhuma razo concreta, que sua gar-ganta formava um n que logo transbordaria em lgrimas. Mas ele procurou se movimentar para no deix-las escorrer.

    Ontem enquanto fazia comida me ocorreu um pensamen-to estranho, a floresta composta por muitas vidas, tanto ani-mais quanto vegetais. Mas a soma de todas essas individuali-dades tambm formam um outro ser vivo, que tambm possui desejos.

  • 28

    Interessante... falas de vida e desejo... mas qual seria o de-sejo de uma rvore ou de um cogumelo?

    Nesses casos a existncia tem o mesmo tamanho do desejo, ambos esto to entrelaados que aparentam ser a mesma coisa... conforme aumentam os nveis de conscincia, as duas realidades se afastam. A entidade floresta seria como um parlamento, com-posta dos mais diferentes representantes. Olhos mopes, cegos e eficientes, desejos aguados e neutralizados pelo peso do apenas

    existir, idades, cores, tamanhos, formatos, seriam muitos os ti-pos de tijolos que construiriam esse grande ser em que estamos

    mergulhados. E tambm ns, queiramos ou no, passamos a ser clulas desse grande corpo.

    De vez em quando escuto uns barulhos que no consigo atribuir a nenhum animal, parece que passos cercam o acampa-mento e que olhos nos espiam. No seriam os sons desse ser que me sugeres existir?

    Depois dessa noite, esses pensamentos que saram da cabe-a da mulher acabaram contaminando a do homem. Ele passou a ficar mais calado e sozinho. Aparentemente vivia momentos de

    tristeza ou melancolia, no fundo, estava apenas mais reflexivo,

    as ideias plantadas pela mulher germinaram, transformando-se em outras. O silncio o ajudava a tentar cuidar dessas plantas de todos os tipos, que nasciam dentro de sua cabea. Esse jardim era composto por grandes rvores frondosas, cujo tronco sli-do resistiria a qualquer tempestade, por flores efmeras e ervas

    daninhas. Como no tinha experincia com jardinagem, deixava que todas elas tivessem direito vida e espalhassem livremente suas razes.

    Em seus momentos de isolamento passou a cultivar o h-bito de verbalizar em voz alta suas ideias para que a solidez da palavra pronunciada o ajudasse a hierarquizar seu raciocnio:

  • 29

    Se a conscincia da floresta era composta pela soma de

    muitas outras, por que as outras no poderiam, por sua vez, tambm serem compostas por clulas de conscincia com vida independente?

    Esse seu desabafo comeava com questes complicadas, mas prosseguia de maneira mais leve, falava sobre coisas do co-tidiano, sobre seu estado de humor, uma nova planta que havia descoberto ou algum animal avistado. Isso acabou se tornando um hbito e ele passou a ir sempre no mesmo lugar, sentava-se num tronco cado prximo da beira do riacho e conversava con-sigo mesmo. s vezes, se lembrando do que a mulher uma vez lhe dissera, reparava que sua mente parecia se distanciar cada vez mais de seu corpo. Cada dia que passava ele se separava da-quilo que as rvores so.

    A vida continuava... as manhs se sucediam com uma le-veza que ele nunca conhecera. Antigamente o tempo parecia o tronco rugoso de um grande carvalho, hoje se parecia com a li-sura de um bambu. Numa dessas manhs, que sentia como se fosse a continuao das anteriores, ele se lembrou que h algum tempo atrs, estava ansioso para partir, precisava seguir adiante. Enquanto caminhava de ps descalos, procurou se lembrar das razes pelas quais desejava prosseguir. No conseguiu.

    Ontem enquanto caminhava perto do riacho, me lem-brei daquele barulho que voc me disse que escutava de vez em quando. Mas o que ouvi no foram passos, a impresso que tive que muito distante uma carroa se aproximava. O barulho de repente sumiu.

    Sem responder, o homem escutou a observao da mulher e foi caminhar na mata. Ela ficou pensando se o que dissera po-deria t-lo assustado, depois tentou se lembrar se o que escutara no seria outro tipo qualquer de rudo. A mata, s vezes, soprava

  • 30

    algumas brisas inesperadas, e ela normalmente se deixava con-duzir na direo desses ventos. Molhava o dedo para perceber a exata rota, e caminhava obedecendo s vontades elicas. Des-sa vez o caminho apontava para onde a mata era mais fechada. Com dificuldades ela avanou por entre a vegetao compacta

    que beliscava suas calas e cabelos. Quando no sentia mais que a brisa a conduzia, resolveu parar. Bem aos seus ps encontrou um grande cogumelo, todo azulado com alguns detalhes em amarelo. Sentiu que o objetivo de sua caminhada era ter encon-trado aquele cogumelo. Admirou-o e percebeu como suas cores contrastavam com o tapete de folhas mortas que cobria o cho. O ar estava parado, mas sentia que uma outra fora a conduzia, ela deveria prosseguir, mas no precisava caminhar. Seu caminho era o cogumelo, ela estava ali para com-lo. Em uma outra situa-o aquelas cores fortes nunca permitiriam que ela o fizesse. Mas

    agora no havia alternativas e no sentia o menor receio.

    Na primeira dentada um gosto amargo contaminou sua boca, lentamente continuou mastigando e mordendo at que nada sobrasse. Depois de engolir ficou parada esperando algum

    eventual efeito. Nada aconteceu. Chegando ao acampamento to-mou bastante gua para tirar da boca o amargor. Quando vol-tou de sua caminhada o homem chamou por ela e a encontrou dormindo profundamente. noite, sentado sozinho beira da fogueira, escutou os barulhos da mata, que nesse dia parecia particularmente movimentada. Iluminada pelo fogo, percebeu quando uma lebre atravessou correndo. Um pssaro desconhe-cido batia as asas muito acima das rvores mais altas. O longo dia repleto de impresses, pedia para que ele verbalizasse o que vivera, a mulher dormia e a ocasio para falar era clara. Os ns de madeira estalavam no fogo, a fumaa trazia um cheiro adoci-cado de resina, em silncio caminhou para longe do fogo. Saindo da clareira entrou na regio onde a vegetao era mais cerrada.

  • 31

    Sentou-se no cho e sentiu a noite. De longe, percebeu os suaves contornos amarelados com que o fogo envolvia algumas plantas. O ar mido da noite se modificou, assim como a luz. Tambm de

    forma sutil, a floresta recebia o cheiro de madeira queimada.

    Na manh seguinte a mulher acordou com as energias re-novadas. O cogumelo azul, ou os ventos, ou a floresta toda, ti-nham encontrado uma maneira de faz-la esquecer de uma srie de pequenas preocupaes. Sentia-se mais leve e conseguia en-xergar um belo cu azul atrs das nuvens cinzentas que continu-avam despejando uma garoa fina e fria.

    Nada contou ao homem. Durante toda a manh eles permane-ceram em silncio apesar de estarem muito prximos um ao outros. Ele cortava lenha e ela lavava algumas roupas. Ambos trabalhavam em pensamentos distantes, mas nenhum dos dois questionava a permanncia na floresta. As recordaes do passado e as expecta-tivas futuras haviam se fundido num profundo instante presente, que a cada momento colocava a ao que estivesse acontecendo como a nica realidade. Mesmo que seus pensamentos no se ocu-passem exatamente daquilo que estavam executando, as distncias entre seus mundos mentais e fsicos diminuam a cada dia. Se ele cortava madeira lembrava-se de que um dia quando criana, apa-nhou um machado para cortar lenha e acabou se machucando.

    Aquele homem e aquela mulher estavam dia a dia ficando

    mais parecidos com rvores. Os dois tinham conscincia dessa modificao e permitiam que ela acontecesse. Talvez fosse por

    isso que falavam cada vez menos.

    Descobri que alguns brotos do excelente aperitivo. Quan-do o tempo firmar vou escalar as grandes rvores atrs dessas

    folhas tenras.

    Eu vi uma que tinha folhas verde e marrons espalhadas por seus galhos. Sabe o que deduzi disso? Era uma rvore grisalha.

  • 32

    O cu azul fez o homem escalar em busca das iguarias. Quando subiu na copa da primeira se surpreendeu. Aquele era um mundo parte. Reparou como os galhos se comunicavam com as rvores vizinhas, e como isso acabava formando uma outra floresta, quase independente daquela do cho. Chegou a

    cogitar se seria possvel encontrar uma regio onde os galhos fossem fortes o suficiente para aguentar seu peso, e ele pudes-se, assim como fazem os esquilos, atravessar de um galho para outro sem nunca precisar descer. Comeria os frutos e construiria um abrigo, o cho seria uma pgina virada em sua vida. O sorri-so que tinha nos lbios enquanto cultivava esses pensamentos foi interrompido por um grito de dor.Uma abelha o picou bem na ponta do nariz. Descobriu uma grande colmia prximo de onde estava. Corria perigo, e voltou para o mundo anterior. Contou para a mulher sobre as abelhas e disse que dali poderia extrair mel. Ela o desencorajou e exigiu que ele as deixasse em paz.

    noite seu sono atrasou. O alto das rvores representava uma nova camada de realidade. Cada par de olhos via o mundo de um jeito, o que acabava fazendo que no existisse apenas um, mas os mundos eram tantos quanto a quantidade de olhos. O sono parecia que havia esquecido de procur-lo, a noite j estava perdendo sua escurido quando ele props para si mesmo, como experincia, que tentaria enxergar o mundo com os olhos de uma mulher. Nada revelaria a ela, faria tudo por sua conta e risco, e depois examinaria os resultados de sua tentativa.

    O sol nasceu e seus olhos comearam a pesar. Ficou com medo que a ideia que teve fosse completamente apagada pelo sono. Antes de perder a conscincia escutou um rudo parecido com o da roda de uma carroa.

    Quando acordou percebeu que a mulher andava de um lado para outro e aparentava estar preocupada. Decidiu que passaria

  • 33

    o dia longe do acampamento e caminhou at o riacho. Assim que partiu a mulher se acalmou, ela estava nervosa porque pela manh havia escutado os rudos de rodas de carroa que tanto preocupavam o homem. Ela mesma no temia aqueles barulhos, inquietava-se apenas por ele. Sabia onde ele tinha ido e decidiu espi-lo. Chegando no riacho ela se ocultou atrs de uma rvore que estava perto dele o suficiente para que conseguisse enxergar

    sua expresso facial. Havia um certo desnimo em seus traos. Sentado no cho, prximo da margem molhou as mo na gua e passou-as no cabelo. Suspirou de um jeito diferente de tudo o que ela conhecia. Apesar de ser a primeira vez que o espiava, ela sabia que durante seus perodos de recolhimento ele costumava falar sozinho. E eram nessas palavras que ela estava interessada. Mas elas pareciam que naqueles dias no seriam pronunciadas. Se isso existisse, ela poderia sentir o forte cheiro de silncio que se espalhava ao redor dele. O homem tinha os olhos fixos no mo-vimento das guas, e os olhos fixos da mulher de repente se arre-galavam: ele chorava.

    Na noite anterior havia prometido para si mesmo tentar enxergar a vida atravs dos olhos de uma mulher. Isso no ha-via acontecido, o que se passou foi que a tentativa de realizar esse desejo acabou conduzindo-o a estados mentais diferentes do que estava habituado desde que comeou a morar na floresta.

    Uma ideia o conduziu a outra, e ele acabou distanciando seu cor-po fsico de seu mundo mental, e quanto maior sua distncia, maiores so as dores psquicas. O cheiro de silncio parou de ser sentido quando o choro condensou-se em um soluo.

    Assim como aconteceu quando ele a assistia chorar, ela che-gou a pensar em sair de seu esconderijo para consol-lo. Mas

    nada fez, apenas esperou que os prximos soluos viessem para abafar os rudos de seus passos e ela pudesse retornar oculta

  • 34

    para o acampamento. Quando terminou suas lgrimas, o homem se sentia melhor. Lavou o rosto e aproveitou para tomar banho. Enquanto secava ao sol, um esboo de sorriso apareceu em seus lbios, ele ria da fragilidade de seu equilbrio.

    No acampamento, a mulher voltava a caminhar de um lado para o outro olhando para o cho. O barulho das rodas de uma carroa, no apenas era constante, quanto nunca parecera to prximo. Pela primeira vez ela passou a temer as consequncias desses rudos.

    Indiferente a esses pressentimentos, ele caminhava pela mata procurando frutos e castanhas. Estava preocupado com a prxima refeio que, sem saber a razo, ele gostaria que fosse a mais colorida possvel. Encontrou alguns arbustos que tinham pequenas frutas roxas. Desconfiou da cor excessiva, cheirou-os e

    decidiu arriscar. Abriu um e com a ponta da lngua experimen-tou o sabor. Para sua grande surpresa o fruto era muito doce, to doce quanto a vida deveria ser foi a frase que disse em voz alta. Terminou de comer, e por preveno, esperou bastante tempo antes de engolir o segundo. Enfiou o quanto pode desses

    frutos nos bolsos de suas calas e camisa. Agora precisava encon-trar uma outra cor que formasse com o roxo uma bela compo-sio. Sem precisar procurar muito, encontrou uma rvore que dava uns pequenos frutos alaranjados. Ele j havia experimenta-do essas bolinhas que tinham um gosto um pouco amargo, mas que compensariam o doce dos frutos roxos. Encontrou tambm framboesas muito vermelhas e castanhas marrom-escuro. Tirou a camisa para enrolar tudo o que colhera. Enquanto caminhava para o acampamento um sorriso discreto apareceu novamente em seu rosto. Umas frutinhas coloridas tinham sido suficientes

    para tir-lo de um estado depressivo e coloc-lo no mesmo esta-do de nimo que vivia antes da melancolia. A criana que chora-va havia sido destruda por seu brinquedo e agora sorria, e em

  • 35

    seu sorriso nada indicava que essa felicidade pudesse algum dia ter um fim.

    Sobre sua cabea os tentculos vigorosos das rvores es-tavam ali para proteg-lo e oferecer-lhe tudo o que precisasse. Os troncos e arbustos eram seus companheiros, os animais seus parentes e a floresta era o nico lugar possvel para se estar. Por

    alguns momentos teve a certeza de que no mais abandonaria a mata e que todo o tempo que passou fora dela havia sido apenas uma preparao para que um dia pudesse nela entrar.

    A floresta exalava um cheiro agradvel, o odor era uma

    mistura do que se sente depois da chuva, com o que alguma es-pcie de flor desprende. No se lembrava de chuva nos ltimos

    dias, chegou at a olhar para o cu e s encontrou umas poucas nuvens esparsas. Tambm no viu flores, apenas aceitou o que

    suas narinas sentiam sem se preocupar com as origens. O tron-co de uma grande rvore estava manchado por algumas gotas transparentes de seiva endurecida. Elas se colavam a seus de-dos e o fizeram se lembrar da mulher ...rvore grisalha, ele

    encontrara uma rvore ferida. Enquanto limpava seus dedos ouviu uma sutil movimentao no tapete de folhas do cho, no precisou procurar muito at encontrar uma cobra verde que o olhava mostrando a lngua. Ela parecia que estava to surpresa e assustada quanto ele. Ambos silenciosamente selaram um pac-to de no agresso, e avanaram cada um para um lado. Mas a apario da cobra acabou quebrando um pouco o clima de har-monia com a floresta. Mesmo que ela fosse to representante da

    natureza quanto uma fruta ou uma flor, havia algo nela que a

    fazia parecer intrusa, uma rachadura que poderia se transfor-mar em fenda, por onde escorreria toda a harmonia que possua o restante da natureza. Por diversas vezes presenciara animais devorando outros, corpos em decomposio, mas mesmo essas cenas desagradveis pareciam pertencer ao ciclo natural da re-

  • 36

    novao. A morte no era uma rachadura, era algo indispensvel. O que sempre o perturbara no eram as cobras em si, se avistava o corpo de uma desaparecendo em sua toca, ou se a via de longe enrodilhada se preparando para um bote, isso no tinha sobre ele qualquer efeito. Afetava-o enxergar os olhos do animal. Eles pareciam dois pequenos poos de maldade, guardavam um ligei-ro aspecto humano, como que nos informando que dispem de inteligncia suficiente para que o mal consiga desenvolver suas

    razes. So tambm olhos que jamais esto a altura dos olhos dos homens, normalmente miram canelas ou calcanhares, e que por isso esto em condio de superioridade, valem-se da surpresa e nutrem-se do medo. Esses olhos so uma rachadura nas certezas humanas, buracos por onde o medo profundo se alimenta.

    Continuou caminhando e lutando para voltar ao estado de nimo que vivia antes de ver a cobra, mas a floresta j no pa-recia a mesma. No suspiro que deu havia tdio e uma ponta de nervosismo. Mas de todos os olhos de cobra que j vira, havia um tipo que era pior do que os outros, eram os avermelhados. Neles parecia que o medo flutuava numa grande poa de sangue, que

    por sua vez representava lagos de sofrimento.

    No cu trs grandes pssaros flutuavam em crculo levados

    pelas correntes de ar. Deviam ter encontrado algum animal morto. O cheiro que sentira anteriormente parecia que havia se fundido com um outro, no longe dali algo comeava a se deteriorar. De-cidiu voltar para o acampamento, grandes gotas de suor cobriam seu rosto e pescoo, alguns mosquitos zumbiam ao redor de sua cabea. Reconheceu algumas rvores que indicavam que no es-tava longe de sua cabana. Acelerou o passo, por hoje a caminhada na mata tinha sido suficiente, queria conversar, comer e dormir, o

    sono apagaria os pensamentos ligados aos olhos da cobra.

    Caminhava olhando para o cho, seguia por uma trilha

  • 37

    conhecida e sabia que quando a luz aumentasse era sinal que ele havia chegado na clareira do acampamento. Quando isso aconteceu sua boca se abriu e seu queixo caiu. O acampamento estava cheio de gente. Viu homens, mulheres e crianas. Viu uma grande carroa puxada por dois cavalos brancos. Ela era vermelha e sobre a lateral havia alguns desenhos mostrando cenas de representaes teatrais. Havia tambm alguns cavalos amarrados nas rvores.

    Todos pareciam muito vontade, os homens conversavam entre si enquanto as mulheres se ocupavam das crianas meno-res, as maiores corriam e brincavam. Depois de observar a trupe de longe, ele decidiu se aproximar. Caminhou por entre as pesso-as mas ningum parecia notar sua presena. No se sentia inva-dido, estava curioso para saber o que estava acontecendo. Ainda no vira sua companheira de acampamento, e isso comeava a perturb-lo. Chegou a pensar que havia se enganado e que po-deria ser ele quem fazia uma visita sem ser convidado. Mas logo viu as duas cabanas. Eram os outros os visitantes.

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  • 39

    AS DESCOBERTAS

    Ele entrou na cabana da mulher e ela estava penteando os cabelos de uma criana. Eles trocaram olhares, mas como no sabia qual pergunta fazer primeiro, ele permaneceu calado e ela ocupando-se da menina.

    Observou a cena por alguns instantes e saiu da cabana.

    O senhor deve estar nos julgando um bando de intrometi-dos. o que eu faria se me deparasse com tanta gente invadindo meus domnios. Mas fique tranquilo, somos uma trupe teatral

    que est s de passagem.

    Fiquem vontade essa mata to minha quanto vossa.

    Obrigado pela gentileza, o senhor saberia me dizer se ain-da falta muito para atravessarmos a floresta, estamos vindo do

    sul e nosso objetivo so alguns vilarejos ao norte, prximo das margens do grande rio.

    No tenho a menor ideia da extenso da floresta, talvez

    atravess-la leve um dia, talvez a vida toda.

    O dia transcorreu entre conversas e gentilezas de ambas as partes. Logo o sentimento de ter seus domnios invadidos desa-pareceu, e o homem at desejou que a trupe permanecesse por mais tempo. A tarde estava na metade e ele sugeriu que eles es-perassem o amanhecer para partir. noite os visitantes provi-denciaram um grande banquete que inclua pes, queijos, frutas

    secas, castanhas e vrios tipos de carnes. O homem e a mulher co-meram de tudo mas no tocaram nas carnes. Em troca ofereceram uma seleo de cogumelos coloridos que foram muito apreciados pelos visitantes. A mulher no largava a menina loirinha qual penteara os cabelos. Terminada a refeio, o homem que parecia

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    ser o comandante do grupo disse que em retribuio hospitali-dade do casal, gostaria de oferecer um espetculo teatral.

    Acenderam-se duas grandes fogueiras que davam ao ptio da clareira uma colorao quase irreal. O movimento das cha-mas se transformava em sombras que pareciam fazer com que a vegetao se movesse. Em turnos, os atores entravam na carroa e quando saiam estavam vestindo os figurinos dos personagens

    que interpretariam. At a menina loira foi retirada dos braos da mulher e saiu da carroa vestindo uma tnica branca e um par de asas de anjinho.

    Quando todos estavam prontos enfileiraram-se lado a lado

    para saudar a pequena plateia. Nesse instante o casal pode ver que alm do anjinho, havia um prncipe, uma princesa, um bobo da corte, um padre, um pajem, duas damas de companhia, e a mais impressionante de todas as figuras, um velho diabo. Seu

    rosto todo pintado de vermelho tinha alguns traos escuros junto aos olhos representando rugas, sua barbicha postia tinha fios

    grisalhos. Talvez aquela figura vista luz do dia no causasse

    nenhuma impresso, tornando-se at mesmo ridcula. Mas ilu-minada pelo fogo, o diabo envelhecido transformava-se em algo to assustador quanto olhos de cobras. Por instantes o homem esqueceu os outros personagens e s teve olhos para aquela fi-gura avermelhada, que no parava de fazer caretas e levantar o grande tridente que carregava. Todos os atores se curvaram em agradecimento como normalmente se faz nos finais de apresen-taes. Um tambor soou, a pea comeava:

    O bobo da corte aproxima-se do prncipe que estava senta-do em um tronco improvisado com um toco de rvore.

    Dentre todos os reinos que existem, daqueles perdidos em terras sem nome, escondidos entre montanhas eternamente cober-tas de gelo, daqueles comandados por mulheres guerreiras, por

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    homens sbios, ou por cruis canibais, dos reinos sem reis ou prncipes, onde so os sditos que em igualdade de condies to-mam as decises, dos reinos dos sonhos, onde as consequncias dos atos dos soberanos tm poderes mgicos, e podem num esta-lar de dedos construir maravilhas ou instalar pesadelos, de todos os mundo e todas as formas, dos reinos vegetal, animal e mineral, vosso reino majestade, de todos, o mais perfeito e o mais justo.

    O prncipe levanta-se de seu trono, aproxima-se da foguei-ra, em seu rosto no h um pingo de alegria pelos elogios rece-bidos. Seus lbios voltados para baixo e seus olhos mirando o cho, mostram desencanto.

    Quisera eu possuir tuas simples certezas.

    Vossa majestade tem os olhos to voltados para as alturas, que por vezes incapaz de enxergar as maravilhas que realiza.

    O prncipe nada responde, aproxima-se da fogueira e sua fisionomia ganha pitadas de desespero. Seus olhos incandes-centes se fixam no exato instante em que a madeira entra em

    combusto. A princesa aproxima-se, est acompanhada por duas assistentes, toca os ombros do prncipe:

    Sinto-o perturbado, dentro de teu peito h algo que queima...

    verdade, uma fogueira devora minhas energias. Mas tambm tu e tuas damas possuem fogos perenes, o que acontece que minhas chamas atingiram a altura de meus olhos.

    A princesa e as damas se afastam do prncipe e o bobo da corte se aproxima. Depois de uma srie de cambalhotas che-ga aos ps do prncipe, abre os braos como se estivesse come-morando um grande feito. Quando se aproxima da fogueira os dois integrantes da plateia percebem que sua maquiagem branca comea a escorrer e mistura-se com as linhas pretas que demarcam seus olhos. Tudo isso, iluminado sob a luz vacilante

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    da fogueira, d ao ano um aspecto ainda mais repugnante que o do velho diabo. Uma das trs pontas de seu chapu est a poucos centmetros das labaredas, e tanto o homem quanto a mulher, e at os outros atores, parecem perceber isso e no fazem nenhum esforo para alert-lo. Talvez o ponto mximo na carreira de um bobo da corte seja arder em chamas correndo em busca de gua. Essas seriam as maiores risadas que poderia proporcionar aos ou-tros. O nico que no repara no risco que o bobo corre o prnci-pe, que s tem olhos para as cores hipnotizantes das chamas.

    O bobo d dois passos para longe da fogueira, para sutil de-sapontamento de todos. Depois de algumas firulas e cheio de em-pfia ele diz:

    Sua majestade, as trevas que circundam esse fogo esto re-pletas de espritos malignos. E s minha graa capaz de afugen-t-los. Vosso poder imenso, e dentro dele sua sabedoria quase no tem fim, mas seu reino estende-se apenas at onde os olhos

    enxergam. Das trevas vossa majestade desconhece os limites e o contedo, e sou eu, esse teu pequeno e fiel servidor, que vos pro-teger contra as flechas invisveis e os feitios secretos.

    Meu pequeno e ridculo companheiro, h muitos perigos invisveis que no precisam das trevas para se esconder. Engana-se quando dizes que meus poderes so imensos. Sou to poderoso quanto tu ou quanto um cervo que se alimenta de folhas. Sou to senhor das trevas quanto tu s das luzes. No posso te proteger ou ferir, e o mesmo vale de ti em relao a mim.

    O bobo sai de cena contrariado e desaparece na escurido. O prncipe afasta-se da fogueira e caminha de um lado para outro como se estivesse repleto de dvidas. Um pajem se aproxima:

    Vejo que vossa majestade pareceu inquieto, o que o est afligindo?

    O que me perturba justamente desconhecer a razo de

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    minha agonia. No reconheo legitimidade no poder que exer-o, ento toda a maneira como o mundo est organizado me parece falsa.

    Mas, majestade, vosso poder foi concedido diretamente por Deus, e nem mesmo o senhor tem o direito de question-lo. O que deve fazer exerc-lo da maneira mais sbia possvel. Todo o resto so apenas consequncias do exerccio desse direito.

    O prncipe parece mais aflito, saca de sua espada e a crava

    em uma rvore.

    Mentiras, palavras vazias, sementes que geram rvores ocas.

    O pajem sai de cena e o prncipe volta a se aproximar da fo-gueira, passa a mo sobre a chama procurando aguentar o calor o mximo que pode. At que explode em um grito de dor e de-sespero. Ajoelha-se e passa terra molhada sobre a mo queima-da. Ele tem os olhos transbordantes de lgrimas e a voz profunda atravessa a floresta:

    Preciso acreditar... quero algumas certezas, a luz queima e as trevas curam, eu sou contradio, e assim sendo, no pos-so comandar um mundo que a despreze. O que me impede de amar minha destruio e tambm as formas que me constroem? Mesmo agindo assim posso ser grande e sbio justamente por ser contraditrio. Mas o reino que comando no admite esse tipo de lgica, a luz deve lutar contra as trevas, qualquer mistura deve ser ignorada.

    Mentiras, palavras vazias, sementes que geram rvores ocas... meu reino no foi feito para homens e sim para bonecos autmatos recheados de palha e engrenagens. Seres mecnicos, sditos do absoluto.

    Se vossa majestade descr do mundo como est constitu-do, acabar minando seus prprios poderes...

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    Que se dissolvam meus poderes, que virem p, que ser varrido pelo vento e desaparecer. Que no lugar onde estavam as razes de minha autoridade brote uma nova planta que...

    ...afrontando Deus... nem vossa majestade tem esse direito. Raciocine senhor, todos ns passamos por momentos de dificul-dades onde acabamos tomando decises precipitadas. Mesmo o senhor em sua sabedoria no est imune a essas fraquezas. Se o mundo do jeito que , porque Deus o deseja assim. Muitas incoerncias e injustias podem ser virtudes disfaradas. difcil para ns simples mortais termos independncia suficiente para

    analisarmos os fatos da vida, as aparncias so frgeis indicado-res, parentes distantes da verdade. No fundo, o que possumos de mais slido o que est estabelecido, a tradio. Nossos an-tepassados tambm duvidaram e desejaram mudanas, e o que mudou foi apenas aquilo que teve foras para suplantar as dvi-das. Assim foi e assim ser.

    Suas palavras tm cheiro de sabedoria, mas nem sempre o odor indica o estado interno do fruto. Afora as dvidas que te-nho, no enxergo em mim ou em meu reino, qualquer movimen-to. Tudo me parece to inerte quanto um corpo que jaz no campo de batalha atravessado por uma lana. Chega a ser irnico, o que meu reino possui de mais vivo, aquilo que deseja destru-lo.

    Sua majestade precisa de uma boa noite de sono repleta de sonhos agradveis. Suas energias se restabelecero solidificando

    suas certezas.

    O pajem sai de cena, o prncipe comea a bocejar e deita-se prximo da fogueira, antes que ele adormea a princesa se aproxima:

    Meu prncipe, j h algum tempo te sinto ausente. Percebo que algo te incomoda e que j no tens mais a alegria de quando te conheci.

  • 45

    Bocejando ele diz:

    Os dias no so todos ensolarados e as gotas de chuva tambm so importantes.

    H tempos que quero conversar com voc... j no sou mais uma mulher to jovem, e voc sabe que ningum eterno, o reino precisar de sucessores, e cabe a ns providenci-los.

    No tempo certo eles viro, e podero por sua vez ter seus descendentes, e perpetuar esse reino at o dia em que as pedras se tornem p.

    Ele adormece e a princesa se retira contrariada com a res-posta que escutou.

    Entra em cena a menina loirinha vestida de anjo. Ela cutuca o prncipe e ele abre os olhos.

    Voc abriu seus olhos mas continua dormindo, se forar as vistas at conseguir enxergar seu corpo adormecido.

    Tem razo, eu estou aqui e l ao mesmo tempo. Mas como isso possvel, e quem voc?

    No tenho respostas para tuas perguntas, sou algum que gosta de conversar com as pessoas que dormem, alm disso nada sei sobre mim.

    Voc tem asas, no ser o esprito de minha filha que ainda

    no nasceu? Ou ento o anjo que me aparece em sonho para me soprar ao ouvido respostas sobre dvidas que me corroem?

    Posso ser as duas coisas ou nenhuma delas. Sei de mim pouco mais do que voc sabe. Quando acordas deixo de existir, mas ao mesmo tempo continuo sendo eu mesma, e talvez um pedacinho de mim te acompanhe durante todo o dia. Acho que prefiro escutar do que falar. Por favor, conte-me de seu dia...

    Meu dia... eu no sei... um grande desnimo me invade, sinto que o mundo um grande jogo de armar onde todas as pe-

  • 46

    as ficam sem encaixe... e incompleto esse universo aberto pros-segue, pulsando como uma veia que derrama sangue vermelho na terra escura. Mas minha dor vem do fato de eu acreditar que o sangue existe para circular e nutrir o grande organismo, e no se misturar ao barro formando uma lama avermelhada.

    O senhor tem lgrimas por todo corpo, deveria deix-las escorrer. A lama salgada menos dolorida que a vermelha.

    Minha criana, no sabe como difcil para um homem deixar com que seus olhos molhem o cho. Meninos devem ser valentes, e as lgrimas que produzem devem rolar nos olhos alheios.

    Mas, dessa forma, no sobrariam homens capazes de reter lgrimas, pois todos se ocupariam de fazer com que elas rolassem sobre os rostos alheios, logo, as que enxergo dentro de ti no exis-tiriam.

    Sua lgica infantil muito sofisticada para mim.

    E eu no compreendo sua lgica de adulto.

    O prncipe caminha pelo terreiro.

    Ser que quando eu acordar me lembrarei dessa conversa...

    Vira-se de costas para a criana e continua falando.

    ... o que teu corao puro me diz das dvidas que tenho... que legitimidade tem um prncipe que duvida de sua prpria au-toridade? Duvida mesmo dos poderes que me foram concedidos... como posso ter convico em meus atos e como poderei contrapor aqueles que eventualmente contestarem minhas decises?

    Sem obter respostas o prncipe vira-se e com um grito deses-perado demonstra todo seu pavor. A menina havia desaparecido e no lugar dela est o velho demnio, que sentado no cho, ri bastante da reao que causou ao prncipe. Depois de recuperar-se do susto o prncipe saca de sua espada.

  • 47

    Quem voc criatura medonha, o que fizeste com aquele

    anjo?

    Fique tranquilo meu soberano, a menina est onde sem-pre esteve.

    Ainda no me disseste teu nome e a que vens?

    Garanto que se quisesse poderia me fazer perguntas mais teis.

    Teu cheiro me enjoa e sinto algo de maligno em tua presena.

    Podes encontrar pores de meu cheiro e de minha pre-sena dentro de ti... por isso bom no vasculhar muito, seno acabar no conseguindo conviver consigo mesmo.

    O que queres?diz o prncipe irritado.

    Estou aqui para te escutar.

    H pouco era um anjo de bondade que me oferecia os ou-vidos para que eu falasse de minhas dvidas...

    Que diferena faz a aparncia de quem te escuta?

    No confio em voc.

    Olhe para o cho, veja teu corpo dormindo, no se esquea que aquele anjo to real quanto eu. Que espcie de nobre o senhor, que em terras desconhecidas julga os outros apenas pelas aparncias? Se quiser pode se afastar para me contar o que quer, assim meu cheiro no te incomodar.

    Voc muito astuto e vai acabar conseguindo o que deseja.

    Talvez seja vossa majestade, que o tempo todo desejou que eu estivesse aqui para escut-lo, e secretamente arquitetou uma maneira de me fazer presente.

    Maldito! Acha que se eu quisesse abrir meu corao esco-lheria algo como voc?

    O prncipe saca novamente de sua espada:

  • 48

    No me custa nada te cortar em pequenos pedaos fedo-rentos de carne vermelha.

    O demnio comea a se afastar em direo da escurido.

    Se fizesse isso o prncipe estaria furando todos os tmpa-nos capazes de escutar a voz de teu corao.

    O prncipe percebe que o demnio comea ir embora e de-sespera-se.

    Escute aqui, peo-te perdo pelas ofensas. No se v, pre-ciso de voc, de tua voz e de teus ouvidos, de tua cor e teu cheiro. As chamas da fogueira logo se extinguiro e ento s sobraro eu e a noite.

    O demnio continua se afastando de costas, sem dizer uma palavra e com um sorriso no rosto, at sumir completamente.

    O prncipe parece inconsolvel, olha para o cu coberto de estrelas mas elas s parecem aumentar seu desespero. Volta-se para o fogo, e por um instante parece querer atirar-se dentro das chamas. Acaba deitando-se ao lado da fogueira e encolhendo-se em posio fetal.

    Um contra-regras vestido de preto para no ser visto, apaga as chamas com um balde de gua e a apresentao teatral acaba.

    Ainda no escuro o casal aplaude com entusiasmo. O ator que interpretava o bobo da corte se encarrega de acender novamente o fogo e em pouco tempo o grupo volta a ser iluminado pela luz vacilante, que se ergue contra o peso da escurido. O diabo ainda maquiado senta-se sozinho em um canto para fumar cachimbo. A menina loirinha, j sem asas, dorme no colo de sua me. Os outros atores esto comendo e bebendo ao redor da fogueira.

    O homem e a mulher que formavam a plateia parecem des-locados da comunidade de atores que conversam animados. O homem resolve se aproximar do grupo:

  • 49

    Bela apresentao, o fogo ajuda a criar o cenrio e comple-ta o texto.

    O fogo, as estrelas, o cheiro da mata, o barulho dos ani-mais. Ns sempre nos apresentamos ao ar livre, e nunca um es-petculo igual ao outro.

    Quer dizer que vocs modificam o texto?

    No possumos roteiro fixo, apenas um esqueleto geral,

    com algumas situaes, possibilidades cnicas e personagens simblicos... cada noite a histria decide de que maneira vai se contar, os encaixes nunca so os mesmos, mas no final nada fica

    sem seu devido complemento. Os atores sentem para onde a noi-te os est conduzindo.

    Enquanto os atores convidavam o casal para um brinde, o homem reparava na figura solitria do diabo, que continuava fu-mando seu cachimbo e olhando para a mata escura. Os olhos da mulher se fixavam na criana que dormia. Enquanto isso ela se

    lembrava do enredo da pea ... quando acordas deixo de existir, mas ao mesmo tempo continuo sendo eu mesma, e talvez um pedacinho de mim te acompanhe durante todo o dia.

    Um dos atores comeou a tocar um bandolim e outro um pandeiro, duas mulheres cantavam uma cano circular que parecia no ter comeo. Todos se serviam de grandes doses de aguardente, e algum jogou algo na fogueira que fez o fogo crescer at a altura de dois homens. Essa exploso de luz re-velou todos os detalhes dos rostos que a maquiagem escondia. O mesmo aconteceu com os nimos, que por causa da bebida perderam todos seus disfarces, mostrando os contornos menos aparentes. Enquanto a euforia no o contaminava por completo, o homem se lembrou do que um dos atores havia lhe dito, cada dia eles encenavam uma pea diferente, utilizando-se apenas de alguns produtos bsicos, mas no final a receita acabava-se

  • 50

    provando comestvel, no importando a ordem dos ingredientes.

    Depois disso a embriaguez apagou qualquer continuidade nesse raciocnio. Pela manh algumas brasas ainda brilhavam onde antes arderam as grandes chamas. O homem acordou com dor de cabea e levou algum tempo at conseguir se localizar. Os atores ainda dormiam mas j estavam despidos de seus figu-rinos. Caminhou por entre eles, e apenas por algumas manchas avermelhadas na testa foi que reconheceu o ator que representa-va o diabo.

    A mulher, entretanto, j estava acordada e olhava fascinada os desenhos da carroa. Ele adivinhou que tipo de ideia passava por sua cabea. Eles trocaram olhares sem se falar. Aos poucos os atores foram acordando. A ressaca era visvel em seus olhos, os movimentos eram lentos e muita gua foi consumida.

    Pela primeira vez desde a chegada dos visitantes o homem se sentiu incomodado. Sem aviso afastou-se dos outros e embrenhou-se na mata. Caminhou sem direo e sem medo de se perder, at en-contrar uma curva do riacho que ainda no conhecia. Passou quase todo dia l, comendo frutinhas e deixando o pensamento borbulhar sem destino. No final da tarde voltou para o acampamento e no

    ficou muito contente quando percebeu que a trupe de atores ainda

    estava l. O fogo ardia e um caldeiro borbulhava sobre ele. O ator que representou o prncipe recebeu-o com entusiasmo.

    Venha servir-se, como sabemos que vocs no comem car-ne preparamos um cozido vegetariano. Peo desculpas ao senhor, nem pedimos licena para ficar mais um dia, mas deve ter perce-bido que acordamos tarde... e longe de estarmos bem dispostos.

    No se preocupem, como j disse, a floresta tanto minha

    como vossa.

    Hoje dormiremos cedo e logo que o sol raiar seguiremos nosso caminho.

  • 51

    A noite caiu e o ator que interpretara o bobo da corte come-ou a fazer malabarismos com algumas bolas coloridas de madei-ra. Tinha grande habilidade e conseguia fazer girar at cinco bolas ao mesmo tempo. Um outro ator iluminou a noite com uma apre-sentao onde cuspia e engolia fogo, depois disso vieram algumas canes, um pouco de dana e bebida, em quantidade bem menor que na noite anterior. A dona de uma das duas cabanas parecia uma das mais animadas e danava puxando pela mo a criana loira. Seu companheiro de acampamento parecia inicialmente um pouco deslocado, sem compreender qual seria a origem daquela alegria, mas acabou se contaminando pela alegria sem muito refle-tir. Uma nica ideia lhe atravessou, o ator havia lhe dito ... logo ao raiar do sol seguiremos nosso caminho. aquela frase repercutiu e transformou-se, o riacho de pensamentos fez vrias curvas at desaguar num lago tranquilo: desde que instalara-se na clareira aquela era a primeira vez que voltava a perceber o fluxo do tem-po. A calma das guas durou apenas um instante e logo o barulho das canes e a bebida alcolica dissolveram sua percepo, e ele acabou se tornando o mais animado participante da noitada, con-seguindo estender as canes at quando todos os atores j tinham o cansao estampado no rosto, e acabaram um a um adormecendo no exato lugar onde estavam.

    No dia seguinte o homem acordou quando o sol marcava a metade do dia. Olhando ao redor no viu ningum, mas se decepcionou quando percebeu que a carroa dos atores estava estacionada no mesmo lugar. Caminhou na direo do riacho e quando estava se aproximando escutou as vozes dos atores. De-cidiu ento ir no sentido oposto, escolheu um lado onde a mata era mais fechada e ele raramente ia. Levou um grande susto quando com o canto dos olhos percebeu um vulto. Era sua com-panheira de acampamento que ou estava mentindo, ou estava l para colher frutas silvestres. Ela desconfiou que ele buscava o

  • 52

    isolamento pelas mesmas razes. Nenhum dos dois soube muito bem o que dizer ao outro. A dissimulao os fez procurar peque-nas justificativas em forma de descobertas alimentcias. Alguns

    fungos e frutinhas suspeitas de veneno foram colhidas com entu-siasmo para depois serem ignoradas. O que restou a ambos foi o retorno para o acampamento. Aguardavam-nos a trupe artstica. Depois de se refrescarem eles se preparavam para partir. Todos ajudavam a guardar os utenslios domsticos e material cnico. Fizeram questo de limpar todo o terreno procurando deix-lo exatamente como o encontraram.

    Quando os cavalos j estavam atrelados e a trupe pronta para se despedir, a mulher percebeu que o sol entrava no seu quarto descendente, ento sugeriu que o grupo esperasse nova-mente pela manh, pois a noite no tardaria a chegar e aquelas rvores eram um perigo para as rodas das carroas. Meio a con-tragosto o grupo concordou. Nesse instante o homem pareceu engolir algumas emoes e seu rosto conseguiu no transmitir nenhuma delas.

    Os atores fizeram descer apenas o suficiente para uma noi-te, lia-se nos rostos de alguns que preferiam prosseguir. Algum constrangimento foi gerado de ambas as partes, e desde que che-garam nunca o acampamento havia parecido algo to privativo.

    O homem percebeu que se seu rosto continuasse sem de-monstrar emoes, isso apenas tornaria a noite mais longa e em-baraosa, por isso forou alguns sorrisos que custaram a vingar e nunca pareceram verdadeiros.

    A mulher conversava com todos os membros da trupe e seu sorriso genuno compensava a figura desconfortvel do homem,

    e tornava o ambiente mais leve. Alguma comida foi providencia-da e a fogueira acesa. A noite chegou cheia de estrelas e o grupo dividiu-se em dois. De um lado o homem e a mulher, as mulheres

  • 53

    da trupe e as crianas, do outro todos os atores. A um dado mo-mento as atrizes foram chamadas para participar da conversa e o homem e a mulher ficaram sozinhos, sem se falar, acompanha-dos apenas pelas crianas.

    O grupo debateu algum assunto, e pelas expresses faciais e corporais parecia haver opinies discordantes. Depois de al-gum tempo chegaram a um consenso, os discordantes engoliram suas escolhas e um dos atores se aproximou do casal. As crianas pareceram entender o que estava acontecendo e correram para suas mes.

    Senhora e senhor, as circunstncias acabaram fazendo com que permanecssemos mais um dia ao vosso lado. Para ns um grande prazer, mas percebemos e compreendemos que pertur-bamos suas privacidades. Gostaramos de vos propor uma com-pensao pelo desconforto, e o que temos para oferecer o que est ao nosso alcance. Giraremos a roda das circunstncias para ver o que o teatro deseja vos contar essa noite. Vocs podero comparar com a apresentao anterior e tirar suas concluses, isso se desejarem... peo que aceitem nossa humilde oferenda.

    A mulher aplaudiu efusivamente e disse que seria um imen-so prazer assistir a uma segunda apresentao. O homem repetiu as mesmas palavras que ela mas com a metade do entusiasmo.

    Dessa vez todo o processo foi bem mais gil, os atores se vestiram rapidamente e pouco se maquiaram. Os personagens pareciam ser os mesmos da apresentao anterior, mas ficava

    claro que suas personalidades no precisavam de tantos detalhes externos para serem compreendidas, tanto que o diabo tinha o rosto liso com apenas dois traos vermelhos pintados em cima das sobrancelhas. A criana usava o mesmo vestido com que pas-sara o dia todo, e muitos detalhes do figurino de vrios atores

    foram abolidos.

  • 54

    Antes da representao comear a mulher se perguntou, se caso eles no tivessem assistido representao anterior, essa ausncia de marcas mais fortes nos personagens influenciaria na

    compreenso do espetculo. Depois ela se lembrou que confor-me o prometido, o que estavam prestes a assistir era outra pea ...giraremos a roda das circunstncias para ver...

    Os atores se ausentaram. Um contra-regras entrou e acen-deu uma pequena fogueira, bem menor do que a da noite ante-rior mas que era suficiente apenas para que a plateia conseguisse

    enxergar a fisionomia e uns poucos contornos dos atores. Aps

    alguns instantes, em que s se viam as chamas consumindo a madeira, entra a atriz que na apresentao anterior havia inter-pretado a princesa. Dessa vez ela veste uma tnica transparente que lhe deixa os seios mostra. Aproxima-se da fogueira e ape-sar da pouca luz, a plateia consegue perceber exatamente o que ela est sentindo. Seu rosto fala de uma dor causada por um mal eminente, mas que ainda no aconteceu. A impotncia pesa-lhe sobre os lbios e sobrancelhas. Ela afasta-se da luz e deixa com que a tnica que veste caia. Nua, abaixa-se e apanha um objeto que a escurido encobria. Sentada no cho manipula-o sem que quem assiste pea consiga identificar o que seja. O fogo ilumina

    apenas sua cabea sem deixar enxergar os traos fisionmicos.

    O nico rudo que se ouve o pio solitrio de uma coruja que o acaso colocou ali para completar a cena.

    A mulher se levanta e se aproxima da fogueira, o objeto que encontrou revela sua identidade, uma espada. Ela a empunha e coloca a ponta da lmina no fogo. Aos poucos seu rosto vai se transformando com o calor que a lmina transmite, at que ela explode em um grito desesperado que atravessa a floresta e faz

    at a coruja se calar. Ela solta a espada no cho e espera alguns instantes at conseguir empunh-la novamente. A ponta da l-

  • 55

    mina ainda est em brasa e ela aproxima o ferro avermelhado de seu ventre. Seu rosto novamente se transfigura, seu maxilar

    treme e seus olhos escorrem.

    O que fazer com um ventre intil, incapaz de gerar des-cendentes para um reino? Devo destru-lo para que outra tome meu lugar e cumpra a misso que me foi destinada, e para a qual fracassei? Devo atravessar-me com esse ferro incandescente, transformando dor em generosidade, renunciando a meu papel de viva para que um imprio ganhe vida?

    A atriz deixa cair a espada no cho e olha a mo que a em-punhava, seus dedos tremem.

    Minha carne j foi ferida pelo calor das chamas. No con-sigo fechar a mo