o demonio em carne viva. anatomia simbolica da possessao

26
95 Lusitania Sacra. 23 (Janeiro-Junho 2011) 95-120 A N T Ó N I O V Í T O R R I B E I R O Bolseiro de Pós-Doutoramento da FCT no Centro de História da Sociedade e da Cultura O demónio em carne viva: a pele e a anatomia simbólica da possessão Resumo: Este estudo incide sobre a função simbólica desempenhada pela pele no fenómeno da possessão em Portugal durante a Época Moderna. Partiu-se de uma análise iconográfica e hagiográfica da figura de S. Bartolomeu, intimamente ligada à possessão, através de uma arqueologia dos motivos pictóricos e mitológicos aí presentes. Tal permitiu recuar até à dualidade entre Apolo e Dioniso, representada através do mito do esfolamento do sátiro Mársias. Ao determinar uma equiparação simbólica pele-alma no contexto da Antiguidade, principiou-se uma análise comparativa entre os comportamentos dos possuídos no Portugal da Época Moderna e o que se verificava naquele período, particularmente no culto dionisíaco. Paralelamente verificou-se que essa função simbólica da pele está presente no platonismo e que foi representada, ao longo dos séculos, de várias formas e em vários níveis culturais, desde o folclore e cultura popular, até à representação de S. Bartolomeu no tecto da Capela Sistina. Palavras-Chave: pele, possessão, culto dionisíaco, Inquisição, Miguel Ângelo. Abstract: This study focuses on the symbolic function played by the skin concerning the phenomenon of spirit possession in Portugal during the Modern Period. It begins with an iconographic and hagiographic survey of the figure of St. Bartholomew, intimately connected to possession, through an archaeology of its pictoric and mythologic motives. Such procedure has allowed us to recede historically to the ancient duality between Apollo and Dionysus, symbolically represented in the myth of the flaying of the satyr Marsyas. By determining a symbolic assimilation skin-soul within the historical context of Antiquity, one has begun a comparative analysis between the behavior of possessed people in Modern Portugal and in Antiquity, especially those documented in the dionysiac cult. At the same time, it has been verified that this symbolic function of skin exists also in platonism and have been represented along the centuries in different ways and in diverse cultural strata, from folklore to the ceiling of the Sistine Chapel. Keywords: skin, possession, dionysiac cult, Inquisition, Michelangelo.

Upload: albert-lance

Post on 29-Sep-2015

13 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

artículo

TRANSCRIPT

  • 95

    Lusitania Sacra. 23 (Janeiro-Junho 2011) 95-120

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    Bolseiro de Ps-Doutoramento da FCT no Centro de Histria da Sociedade e da Cultura

    O demnio em carne viva: a pele e a anatomia simblica da possesso

    Resumo: Este estudo incide sobre a funo simblica desempenhada pela pele no fenmeno da possesso em

    Portugal durante a poca Moderna. Partiu-se de uma anlise iconogrfica e hagiogrfica da figura de S. Bartolomeu,

    intimamente ligada possesso, atravs de uma arqueologia dos motivos pictricos e mitolgicos a presentes.

    Tal permitiu recuar at dualidade entre Apolo e Dioniso, representada atravs do mito do esfolamento do stiro

    Mrsias. Ao determinar uma equiparao simblica pele-alma no contexto da Antiguidade, principiou-se uma anlise

    comparativa entre os comportamentos dos possudos no Portugal da poca Moderna e o que se verificava naquele

    perodo, particularmente no culto dionisaco. Paralelamente verificou-se que essa funo simblica da pele est

    presente no platonismo e que foi representada, ao longo dos sculos, de vrias formas e em vrios nveis culturais,

    desde o folclore e cultura popular, at representao de S. Bartolomeu no tecto da Capela Sistina.

    Palavras-Chave: pele, possesso, culto dionisaco, Inquisio, Miguel ngelo.

    Abstract: This study focuses on the symbolic function played by the skin concerning the phenomenon of spirit

    possession in Portugal during the Modern Period. It begins with an iconographic and hagiographic survey of the

    figure of St. Bartholomew, intimately connected to possession, through an archaeology of its pictoric and mythologic

    motives. Such procedure has allowed us to recede historically to the ancient duality between Apollo and Dionysus,

    symbolically represented in the myth of the flaying of the satyr Marsyas. By determining a symbolic assimilation

    skin-soul within the historical context of Antiquity, one has begun a comparative analysis between the behavior of

    possessed people in Modern Portugal and in Antiquity, especially those documented in the dionysiac cult. At the

    same time, it has been verified that this symbolic function of skin exists also in platonism and have been represented

    along the centuries in different ways and in diverse cultural strata, from folklore to the ceiling of the Sistine Chapel.

    Keywords: skin, possession, dionysiac cult, Inquisition, Michelangelo.

  • 96

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    No ano de 1596 os ingleses invadiram Cdiz e Faro. O cenrio ter sido, prova-velmente, o habitual nestes casos: saque, pilhagem, destruio. A 24 de Agosto desse ano, dia de S. Bartolomeu, o jesuta Incio Martins pregava e lamentava as profanaes dos hereges ingleses. Para Martins, a ocorrncia signicava a materializao do Inferno sobre a Terra. Num certo sentido, era-o, de facto.

    Dadas as circunstncias e a natureza do assunto, compreende-se a escolha que o jesuta fez, ao seleccionar o dia de S. Bartolomeu para pregar. Uma longa tradio popular considerava ser esse o dia em que as portas do Inferno se abriam e os demnios caminhavam pelo mundo1. Coincidncia ou no, fora nesse exacto dia, 24 anos antes, que se dera o famoso Massacre de S. Bartolomeu, a chacina dos huguenotes s mos dos catlicos em Frana.

    Em nais do sculo XIX, era ainda esse o dia escolhido para livrar as mulheres endemoninhadas ou possudas pelos espritos dos mortos, atravs de exorcismos. Veja-se o que diz Telo Braga acerca de uma romaria em dia de S. Bartolomeu, ocorrida em Ponte de Cabez, nas margens do Tmega:

    Esta romaria a So Bartolomeu muito querida das pessoas endemoninhadas. Oferece a romaria trs espectculos todos burlescos, que de tempos antigos a tm tornado notvel e famigerada. O primeiro a gritaria infernal e terjeitos mais ou menos graciosos, que logo ao avistar a capela faz grande nmero de mulheres, que se dizem endiabradas, e afectadas por espritos malignos! curiosssimo ver como estas megeras, gritando e esperneando sempre, so arrastadas a seu despeito at ao altar do Santo, onde, depois de muito gritar e muito saltar, ngem vmitos violentos, que, segundo elas, so o sinal certo da despedida do esprito que as trs inquietas!2

    Esta descrio apresenta analogias com um documento extraordinrio, existente no arquivo da Inquisio de Coimbra. Em trabalho recente no pude deixar de manifestar perplexidade face natureza dos factos a narrados3. Trata-se de um caso em que duas jovens raparigas, Maria e Francisca, de 20 e 15 anos respectivamente, convenceram um grande nmero de membros da sua comunidade, no caso em apreo a freguesia de Serpins, perto da Lous, de que os seus corpos tinham sido possudos pela Virgem do Rosrio e por Santa Quitria.

    Os factos remontam ao ano de 1658. Pelos documentos possvel vericar como se organizaram procisses durante vrios dias, nas quais participaram muitas pessoas. A, as raparigas eram levadas como imagens vivas, transportadas para uma ermida onde davam sinais da sua santidade. Francisca, a jovem que se dizia possuda

    1 Segundo o dito popular, no dia de S. Bartolomeu anda o diabo solta, ver MARTINS, Mrio Os Actos de Bartolomeu em

    Medievo-Portugus. Brotria. 74 (1962), p. 179.

    2 BRAGA, Tefilo O povo portugus nos seus costumes, crenas e tradies. Volume II. Lisboa: Dom Quixote, 1986, p. 220.

    3 Ver o captulo O xam, a pele do lobo e o apelo da noite in RIBEIRO, Antnio O Auto dos msticos. Alumbrados, profecias,

    aparies e inquisidores (sculos XVI-XVIII). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009, (edio policopiada).

  • 97

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    por Santa Quitria, vomitou, segundo aanou uma testemunha, duas contas brancas de osso e hum coral com outras couzas a que chamava lagrimas de Nossa Senhora que depois ouvio elle denunciante dizer que ero moutinhos verdes. Por seu lado, Maria, alegadamente possuda pela Virgem do Rosrio, deitou pela boca hum papel branco em que vinho embrulhados em algodo alguns pedacinhos de Agnus Dei do tamanho de graos de pimenta4.

    Comparando este relato com o de Telo Braga, escrito mais de 200 anos depois, as analogias so evidentes. A romaria, a chegada ermida, o vmito de objectos. Uma diferena, porm. O caso da Lous parece uma verso divina da possesso demonaca de Ponte de Cabez. Este um elemento importante quando se estuda a possesso na poca Moderna: a ambiguidade. Com efeito, a distino entre possesso demonaca e experincia mstica foi, na feliz expresso de Barbara Newman, uma linha to absoluta na sua polaridade moral quanto indistinta na sua fenomenologia emprica5.

    Para alm desta relao em negativo entre os dois relatos, h um ponto de interseco. Uma das testemunhas do caso da Lous referiu que as raparigas desde dia de So Bertholameu proximo passado comearo a mostrar se assombradas do diabo fazendo varios gestos e vizagens e dizendo que fallava nellas o Espirito de hum homem ja defunto havera sinco ou seis annos chamado Manoel Carvalho, apateiro da Louzam6. Novamente S. Bartolomeu e os efeitos nefastos do dia que lhe foi consagrado. Assim, a histria iniciou-se com a possesso pelo esprito de um morto, em que as raparigas se diziam assombradas do diabo e evoluiu para um caso de possesso divina culminando numa cerimnia de comunho mstica que envolveu parte signicativa da comunidade. A ambiguidade no existe apenas quando comparamos os dois casos, ela revela-se no seio do prprio caso de Serpins.

    Regresse-se a 1596. Incio vinca bem a iniquidade dos hereges ingleses. Ico-noclastas, brbaros que em Faro derribaro treze egrejas, despedaaro as imagens, profanaro os ornamentos, e das estolas e manipolos zero ligas das calas7.

    4 ANTT Inq. Coimbra, Cadernos do Promotor, liv. 311, fl. 206. Elena Brambilla, citando um caso passado em Cremona em 1746, de

    uma rapariga que vomitava objectos estranhos, refere que esse facto era comum a endemoninhados e santos, o que confundia o

    diagnstico. A mesma autora, apoiando-se em Lvi-Strauss, refere que esses objectos correspondem, na terapia xamnica, a uma

    objectivao e materializao da possesso, ver BRAMBILLA, Elena La fine dellesorcismo: possessione, santit, isteria dallEt

    Barroca allIluminismo. Quaderni Storici. 112 (2003) p. 120. De referir que alguns santurios exibiam verdadeiras coleces de

    objectos vomitados por possudos, um hbito que comeou a ser combatido no sculo XVII, ver SLUHOVSKY, Moshe Believe not

    every Spirit. Possession, Mysticism and Discernment in Early Modern Catholicism. Chicago, London: University of Chicago Press,

    2007, p. 59.

    5 NEWMAN, Barbara Possessed by the Spirit: Devout Women, Demoniacs, and the Apostolic Life in the Thirteenth Century.

    Speculum. 73 (1998) p. 735. Sobre esta questo da ambiguidade da possesso e discernimento de espritos ver ainda CACIOLA,

    Nancy Mystics, Demoniacs, and the Physiology of Spirit Possession in Medieval Europe. Comparative Studies in Society and History.

    42 (2000) 268-306.

    6 ANTT Inq. Coimbra, Cadernos do Promotor, liv. 311, fl. 204.

    7 O texto do sermo encontra-se em Sermo de S. Bartolomeu, BN Cdice 3502, fls. 137 e ss. Para a passagem referida, ver fls.

    139-40.

  • 98

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    precisamente o desprezo dos invasores pelas imagens e ornamentos que serve de mote dissertao de Incio sobre a iconograa de S. Bartolomeu, a qual, armava o jesuta, se pinta com o Evangelho e facqua na mo e com o demonio debaixo dos pes. A faca como instrumento da rapina, o demnio como personicao do invasor e o Evangelho como a grande merc de Deus. Assim desenvolveu, recorrendo a uma erudio por vezes fastidiosa, a sua argumentao. Para alm destes, contudo, existia um outro elemento, fruto de uma amarga ironia, que fazia concordar a imagem do santo com a dramtica situao que se vivia. Os demnios tinham chegado pelo mar. E desta relao, como se ver ao longo deste artigo, dicilmente Incio Martins poderia ter conscincia.

    A iconograa de S. Bartolomeu , de facto, a chave para a compreenso de algumas das formas de que se revestia a possesso na poca Moderna. Para compreender ambos, iconograa e possesso, necessrio ver que entre as duas se tece uma teia de relaes simblicas profundas, nas quais se revelam conceitos metafsicos sob a mscara de crendices irracionais. E o termo mscara vem, como se ver, muito a propsito.

    Como seria de esperar, a iconograa ilustra a histria do santo. Melhor ser dizer, a lenda, porquanto de factos rigorosos a sua biograa parca. Bartolomeu era um dos 12 discpulos, e fora trazido presena de Cristo a convite de Filipe. No evangelho de S. Joo, contudo, a designao Bartolomeu substituda por Natanael8.

    No entanto, como referi, a tradio bastante mais extensa do que a biograa. So-lhe atribudas viagens ao oriente: ndia, Imen, Armnia e Licania. A mesma tradio atribui-lhe qualidades especiais na cura de indivduos possudos por espritos demonacos. Um desses espritos, Astaroth, um demnio que era consultado no seu orculo numa cidade da Armnia, governada por um rei chamado Polmio, emudeceu e foi expulso pelo santo. expulso de Astaroth seguiu-se a destruio de todos os dolos existentes nesse reino. Um irmo de Polmio, Astiages, que governava um reino vizinho, t-lo-ia ento convidado para vir sua presena, onde o submeteu a um suplcio atroz: o esfolamento9.

    Nos Actos de Bartolomeu, um texto medieval portugus, o demnio Astaroth comeou a dar braados muy grandes, de dentro da omagem, armando que estava preso e ligado, com cadeas de ferro ardentes, suplicando que o deixassem ir para longe e em paz. S. Bartolomeu decidiu ento libert-lo, enviando-o para os ermos, dizendo-lhe: vayte por a terra herma, hu non mora homem nem molher, nem ave nem besta nem al. O padre Mrio Martins viu, a meu ver correctamente, neste passo

    8 SOARES, Franquelim Neiva A romaria de S. Bartolomeu do Mar e o seu Banho Santo. Passado e Presente. Esposende: Centro

    Social da Juventude de Mar, 1988, p. 20.

    9 Para a hagiografia de S. Bartolomeu ver VORAGINE, Jacques de La lgende dore. Paris: Librairie Acadmique Perrin, 1925,

    (introduo e notas de Teodor Wyzewa), pp. 453-59.

  • 99

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    dos Actos, uma ligao concepo popular de que no dia de S. Bartolomeu o demnio andava solta10.

    Como se disse, toda esta tradio se projecta na iconograa do santo. Nesta, dois factos aparecem como estruturantes: o esfolamento e a ideia de acorrentar o demnio. Foi daqui que nasceu a imagem que o jesuta Incio Martins refere na sua prdica, com a faca na mo e o demnio acorrentado aos ps. A faca, instrumento do suplcio a que S. Bartolomeu teria sido sujeito o nico elemento omnipresente e o que autoriza um imediato reconhecimento. Os outros podem aparecer ou no.

    frequente a representao do demnio acorrentado aos seus ps. Neste caso, o demnio geralmente retratado sob a forma de co ou lobo. Pode dar-se o caso de surgir uma simples representao do santo com a faca do esfolamento numa mo e um livro na outra, simbolizando a difuso do Evangelho, levado por Bartolomeu s partes orientais. A aluso ao esfolamento pode ser feita representando o santo nas mos dos seus algozes, numa verso realista, ou pode ser objecto de uma aluso simblica, gurando-se com a faca numa mo e segurando a sua prpria pele na outra. Foi assim que o imaginou Miguel ngelo, quando fez de Bartolomeu uma das guras centrais dos frescos da Capela Sistina11.

    No deixa de ser estranho o olhar vagamente hostil que Bartolomeu lana a Cristo na obra-prima de Miguel ngelo. Tambm no passou despercebido, logo no perodo da concluso da obra, o facto de o rosto que est representado na pele no corresponder ao do santo que a carrega. De facto, numa carta ao seu amigo Giorgio Vasari, datada de 1 de Maio de 1545, Don Miniato Pi)i, um clrigo *orentino, fez notar que a face exibida na pele estava barbeada, ao passo que o santo apresentava uma longa barba12. Na verdade, o rosto na pele descarnada era o auto-retrato do prprio autor, um facto que s viria a ser descoberto em 1925 pelo mdico italiano Francesco La Cava13. Este desdobramento no inocente nem inconsequente.

    Segundo Robert Liebert, o fresco do Juzo Final representa o drama pessoal do prprio autor14. Neste, as guras centrais so a Virgem Maria, Cristo e S. Bartolomeu. Este ltimo, desempenhando o papel de alter-ego do genial criador, lana para cima, para a Virgem, representada junto a Cristo, um olhar de reprovao que mais no do

    10 Ver MARTINS, Mrio Os Actos de Bartolomeu... cit, p. 179.

    11 Ver o guia iconogrfico DUCHET-SUCHAUX, Gaston; PASTOUREAU, Michel The Bible and the Saints. Paris: Flammarion, 1994, p.

    58.

    12 BARNES, Bernardine Metaphorical Painting: Michelangelo, Dante and the Last Judgement. The Art Bulletin. 77 (1995) p. 68,

    nota 21.

    13 CAVA, Francesco La Il volto di Michelangelo scoperto nel Giudizio Finale: un dramma psicologico in un ritratto simbolico. Bologna:

    Zanichelli, 1925.

    14 LIEBERT, Robert S. Michelangelo. A Psychoanalytic Study of his Life and Images. New Haven; London: Yale University Press, 1983,

    p. 345-48.

  • 100

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    que o olhar de Miguel ngelo dirigido sua prpria me, que o abandonou quando ele era ainda criana15.

    Da interpretao psicanaltica desenvolvida por Liebert interessa a este estudo apenas uma parte, a que se liga ao signicado da pele de S. Bartolomeu. Liebert cita a anlise de Edgar Wind acerca do simbolismo pago na arte do Renascimento. E foi este ltimo autor quem viu por detrs da hagiograa de S. Bartolomeu o mito do esfolamento do stiro Mrsias por Apolo. Viu mais ainda. Na gura do stiro, Wind descortinou a mscara da entidade que verdadeiramente o inspirava: Dioniso16. luz desta anlise, a imagem de S. Bartolomeu com o demnio caniforme acorrentado seria uma forma cristianizada do ancestral dualismo entre a ordem apolnea e o caos dionisaco. Por outras palavras, a velha polaridade csmica das trevas contra a luz.

    um facto que, semelhana de S. Bartolomeu, Apolo era tambm representado com uma faca na mo. Tal sucedia, por exemplo, no santurio de Delfos17. Outro elemento importante a ligao de Apolo gura do lobo, de quem se dizia que tinha assumido essa forma para se unir com a ninfa Cirene18 ou que tinha ele prprio nascido de uma loba19. Finalmente, a assimilao do demnio acorrentado gura de Dioniso corresponde de forma perfeita quilo que se conhece do culto desta divindade, no qual a possesso desempenhava um papel central20. Uma tal ligao tornaria ento perfeitamente inteligvel a relao estreita que a gura de S. Bartolomeu e o demnio acorrentado tm com a gua em geral e com o mar em particular. que o mar era tambm o local da epifania dionisaca, a via pela qual Dioniso chegava para distribuir a sua loucura, manifestando-se sob a forma de um touro21. Para isso regressava periodicamente do seu refgio marinho, o local para onde, segundo Homero, ele tinha fugido, perseguido por Licurgo, o homem lobo22.

    15 LIEBERT, Robert S. Ob. cit., p. 347. Liebert desenvolve a partir desta ideia uma interpretao discutvel, estabelecendo uma relao

    geomtrica entre a coroa de espinhos e a chaga no peito de Cristo, a faca de S. Bartolomeu, a face de um pecador arrastado para

    o Inferno e a figura de Minos, o rei do Inferno, cujo pnis aparece a ser mordido por uma serpente (pgs. 347-48). O objectivo

    demonstrar a centralidade da figura de S. Bartolomeu e, atravs deste, do drama pessoal do autor.

    16 Ver o captulo El desollamiento de Marsias in WIND, Edgar Los misterios paganos del Renacimiento. Barcelona: Barral, 1972,

    pp. 173-191.

    17 DETIENNE, Marcel Apollon, le couteau a la main. Une approche exprimentale du polythisme grec. Paris: Gallimard, 1998; ainda

    sobre a uso da faca no sacrifcio a Apolo ver BURKERT, Walter Homo Necans. The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual

    and Myth. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1983, pp. 118-119.

    18 WAGNER, Carlos G. El rol de la licantropia en el contexto de la hechicera clsica. Anejos de Gerin. 2 (1989), p. 88.

    19 BURKERT, Walter Homo Necans... cit., p. 121.

    20 Sobre este assunto a bibliografia quase inesgotvel. So referncias importantes as seguintes obras: ROHDE, Erwin Psych. Le

    culte de lame chez les grecs et leur croyance a limmortalit. Paris: Payot, 1928; JEANMAIRE, H. Dionysos. Histoire du culte de

    Bacchus. Paris: Payot, 1970; OTTO, Walter F. Dionysos. Le mythe et le culte. Paris: Mercure de France, 1969; DODDS, E.R. Introduo

    in EURIPIDES Bacchae. Oxford: The Clarendon Press, 1953, pp. ix-lv; BREMMER, Jan Greek Maenadism Reconsidered. Zeitschrift

    fur Papyrologie und Epigraphik. 55 (1984) 267-286.

    21 DARAKI, Maria Dionysos. Paris: Arthaud, 1985, p. 35; OTTO, Walter F. Dionysos cit., p. 86 e ss.

    22 Jeanmaire interpreta esta oposio entre Licurgo, o homem-lobo, e Dioniso em dois sentidos complementares. Por um lado

    representaria a dialctica do curso do ano, com o Inverno a suceder ao Vero. Por outro lado invocaria a luta entre a vida e a

    morte, as trevas e a luz, ver JEANMAIRE, H. Dionysos... cit., p. 66.

  • 101

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    A gua marca tambm uma analogia simblica entre a lenda de Mrsias e a de Bartolomeu. O corpo de Mrsias, depois de esfolado, transformou-se num rio, enquanto que o do apstolo, aps lhe terem arrancado a pele, foi deitado ao mar23.

    Segundo Pausnias, na Becia, as mnades, as mulheres que se dedicavam s prticas extticas do culto de Dioniso, tomavam um banho ritual de puricao no mar, uma prtica que no se restringia ao culto dionisaco mas que era frequente na generalidade dos cultos mistricos24. A mesma prtica do banho santo ritual que ainda hoje se pode ver em Esposende, a 24 de Agosto, dia de S. Bartolomeu25.

    A frmula mais comum de exorcismo popular em Portugal incita os demnios a voltar para as para as ondas do mar coalhado. Antnio Fernandes (1654), um homem de virtude da Quinta das Pousadas, junto da Guarda, utilizou essa frmula num exorcismo colectivo, onde estava muita gente, entre a qual estavo muitos asombrados26. Quando um desses asombrados caiu no cho Fernandes meteu-lhe a mo no estmago e comeou a soprar-lhe na boca. Depois dirigiu-se aos demnios que alegadamente lhe possuam o corpo: falai porcos, que quereis a este peccador? Quem sois? Da boca do possudo saiu a resposta: Brazebu, Satanas, Lusifer e Barrabas. Para onde quereis ir?- perguntou Fernandes. Pera o Inferno, respondeu a voz. O exorcista instou ento os demnios: pois ide logo sob pena de vos dar muito couce e de vos degradar para o mar coalhado.

    Frmula semelhante utilizou um lavrador de Mondim, Joo Pinto (1759). Ao tentar curar um problema o

  • 102

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    demonaca, armou: cessa co perro, vai pera essas ondas do mar, que tens esta mulher enfeitiada e cega de todo27. Mais arrojado, Joo Baptista de So Miguel (1732), outro homem com pretenses de virtude, transformou a metfora aqutica e canina num facto positivo. Vindo de Marvila, aps ter ido ver uma mulher doente, saiu-lhe ao caminho hum con muyto grande com a boca aberta que era o demonio e pondo se lhe diante delle lhe pusera o pe em sima adiantando se o co para diante entrou pello mar dentro fazendo grande ruido28. Maria da Costa, uma mulher do Porto que dizia ser santa e ter vrias aparies da Virgem, armou que certa vez lhe aparecera a gura de um homem, quando andava a fazer a Via Sacra, o qual lhe adivinhara o pensamento e dissera que estivera couza de doze annos no mar coalhado donde Nossa Senhora o tirara com os braos e estava ento a caminho pera Jerusalem29. Um outro curandeiro, Joo Lus (1750), do lugar de Souto da Carpalhosa, perto de Leiria, curava gado mordido por ces danados. Explicou aos inquisidores que o seu mtodo de cura lhe fora revelado por inspirao divina. Um mtodo que implicava ajoelhar-se em direco a cada um dos quatro pontos cardeais dizendo alagado seja o mal, e o que car va para o mar coalhado, para ca nunca mais tornar, no empear em ns, nem em Christandade nem em Mouro convertido, nem em animal de qualquer qualidade que seja. Em seguida bafejava o ar30.

    Em Portugal, o termo mar coalhado era utilizado para designar a terra dos mortos pelo menos desde o sculo XV. possvel que tal designao seja muito mais antiga31. Pela iconograa de S. Bartolomeu e as suas razes igualmente possvel postular uma origem remota gura caniforme do demnio. Por detrs de gura de S. Bartolomeu est Apolo, por detrs do demnio acorrentado est Mrsias. Por detrs de Mrsias est a gura, a um tempo terrca e sedutora, de Dioniso. Como pano de fundo, o mais irredutvel dos dualismos.

    Uma questo se coloca porm. A mscara do lobo-demnio esconde a gura de Dioniso. Contudo, como j foi referido, o lobo surge muito mais ligado gura de Apolo do que de Dioniso, se exceptuarmos o episdio do homem-lobo Licurgo a perseguir um Dioniso-criana que se viu obrigado a refugiar-se nas profundezas do

    27 ANTT Inq. Lisboa, proc. 7541, fl. 79.

    28 ANTT Inq. Lisboa, proc. 18, fl. 20.

    29 ANTT Inq. Coimbra, Cadernos do Promotor, liv. 345, fl 28.

    30 ANTT Inq. Lisboa, proc. 1079, fl. 36.

    31 Num cdice alcobacense quatrocentista surge um relato denominado O conto de Amaro, no qual Santo Amaro abalou com

    quinze fortes mancebos para o mar. A histria uma variante da literatura apocalptica de viagens ao Alm. A dada altura pode

    ler-se que os heris ficaram presos no mar quoalhado, num cenrio horrendo em que feras marinhas, em numero infinito

    comiam os marinheiros mortos doutras naus presas nos gelos. E eram tantas que nom ha homem que as podesse contar, e

    pelejavam sobre aquella carne daquelles homens mortos, ver MARTINS, Mrio Viagens ao Paraso Terreal. Brotria. 48 (1949)

    529-544. claro o paralelo entre este mar quoalhado e as descries dos infernos e dos demnios atormentadores das almas

    que constam do imaginrio infernal medieval e moderno. A noo de mar coalhado como um oceano glacial, parado,

    tambm referida na segunda metade do sculo XIX como estando muito espalhada no povo, ver COELHO, F. Adolpho Revista

    dEthnologia e de Glottologia. Fascculo I (fascculo nico). Lisboa: Typographia Universal, 1880, p. 154.

  • 103

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    mar. Por outro lado, o apstolo Bartolomeu surge alternativamente representado a segurar a sua pele no brao ou segurando um demnio acorrentado. Como se ver, pele e demnio tm o mesmo valor simblico no que diz respeito possesso. A pele do Bartolomeu-Apolo representa a pele do lobo. O mesmo lobo que pretende representar o stiro Mrsias ou Dioniso. H como que uma desconcertante fuso das duas guras, Apolo e Dioniso.

    Foi a partir desta ideia que Marcel Detienne partiu para uma interessante reescrita da noo de politesmo. Mais do que de oposio, estamos em face da complementaridade entre facetas diferentes de uma mesma unidade. Detienne coloca esta questo na problemtica ancestral da luta entre o uno e o mltiplo, apresentando-a da seguinte forma: os diferentes deuses so representaes re*exivas que alimentaram nos modernos a convico de que toda a gura divina dotada de uma essncia autnoma, e ao mesmo tempo a certeza de que cada deus signica uma experincia exemplar do homem no mundo32. O prprio culto mntico de Apolo em Delfos teria sido, segundo a generalidade dos autores, uma herana de Dioniso33. Segundo Edgar Wind, Dante tinha expresso este *uxo entre Apolo e Dioniso (aqui na gura de Mrsias), no canto I do Paraso. Na interpretao daquele, para obter o amado laurel de Apolo, o poeta deve passar pela agonia de Mrsias34.

    De que forma que estes dois smbolos, pele e lobo, se manifestavam na possesso concreta, a que se revelava no quotidiano das pessoas? A expresso pode parecer paradoxal, tal a excepcionalidade que assume nos dias de hoje um fenmeno to desconcertante. Na realidade, em face das centenas (eventualmente milhares) de casos existentes nos arquivos inquisitoriais portugueses, no arriscado armar que a possesso era um fenmeno normal, recorrente, quase corriqueiro. A sua funo era ritualizar a mediao entre vivos e mortos, uma relao tensa e ambgua. Num certo sentido, atravs desta ritualizao, pode armar-se que, no Portugal da poca Moderna, eram os mortos quem governava os vivos.

    A maior parte dos casos no chegaram ao papel do Tribunal da F. Muitas vezes, quando um exorcista, popular ou clerical, era chamado mesa, referia genericamente

    32 DETIENENE, Marcel Apollon, le couteau a la main... cit., p. 12. Num outro trabalho, Detienne apresenta a oposio entre Apolo

    e Dioniso como o mesmo deus com dois nomes diferentes. E um pouco mais frente fala da montanha santa onde o deus

    do retorno ao uno, Dioniso, nas suas metamorfoses se mostra mais semelhante ao Apolo mntico, ver DETIENNE, Marcel Un

    polythisme rcrit. Entre Dionysos et Apollon: Mort et vie dOrphe. Archives de sciences sociales des religions. 59 (1985), p. 74.

    Sobre o mesmo assunto til consultar um outro texto de Detienne: DETIENNE, Marcel Forgetting Delphi Between Apollo and

    Dionysus. Classical Phililogy. 96 (2001) 147-158. Embora seja uma proposta inovadora, a viso de Detienne vem no seguimento de

    uma srie de autores anteriores que tinha escrito sobre a complementaridade entre Apolo e Dioniso: OTTO, Rudolph Dionysos...

    cit., pp. 211 e ss.; JEANMAIRE,H. Dionysos... cit., pp. 187 e ss.

    33 ROHDE, Erwin Psych... cit., p. 311; KERNYI, Carl Dioniso. Imagem arquetpica da vida indestrutvel. So Paulo: Odysseus, 2002,

    p. 183.

    34 Wind, num argumentao bem estruturada, recorre a uma frase da Divina Comdia na qual esta ideia aparece de forma bastante

    evidente: Penetra o meu corao e infunde-me assim com o teu esprito, como fizeste com Mrsias quando lhe arrancaste a

    pele dos seus membros (Paraso I, 13-21), ver WIND, Edgar Los misterios paganos... cit., pp. 175-176.

  • 104

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    as curas que fazia, s quais assistiam, nalguns casos, dezenas ou centenas de pessoas35. Era um manancial de dados impossvel de gerir at para uma estrutura com forte organizao burocrtica como era a Inquisio. Contudo, o que nos chegou suciente para ter uma boa perspectiva do fenmeno. E para ver a marca do complexo simblico corporizado na gura do Bartolomeu-Apolo.

    Num trabalho anterior referi um conjunto de casos de possesso demonaca em que as pessoas assumiam comportamentos semelhantes a ces e a lobos. Mulheres que fugiam de noite para o mato a ladrar, ou que alegavam que o demnio as vinha buscar de noite e as levava para o mato, onde acordavam nuas, entre outros36. Trata-se de um conjunto de casos que considerados isoladamente e sem referncia mecnica simblica referida acima carecem de signicao, apesar da riqueza do pitoresco.

    A pesquisa posterior levou a um alargamento do nmero de casos. Dois em particular tm a vantagem de oferecer uma descrio do comportamento dos possudos no decurso dos exorcismos que lhes foram ministrados, algo que no existia nos que foram referidos anteriormente.

    O primeiro o do moleiro Jos Antunes (1768), 30 anos, um homem com uma histria de sucesso como exorcista e benzedor. Numa das cartas de denncia com que abre o seu processo, pode ler-se que Antunes era pessoa rustica e sem estudo de letras37. Tal no impediu que andasse com a maior publicidade curando de todos os achaques enfermidades e feytios por todas estas terras e villas circunvezinhas de modo que he um continuo concurso de gente a procurallo. As pessoas vinham ter com ele ao seu moinho, denominado o moinho do cubo, perto de Cernache do Bom Jardim. Um desses indivduos era, segundo a mesma denncia, hum homem das partes de =omar endemoninhado, que ladrava como cam e fugia do moleyro.

    O outro caso o do padre Jos de Sousa Azevedo (1731), denunciado por organizar sesses de exorcismo em Lisboa, na Rua das Canastras, perto da S. Eis o testemunho de um dos assistentes s prticas do referido padre:

    ...no acto do exorcismo que fazia, a criatura estava quieta e socegada, mas se o exorcista lhe punha a mo na cabea logo comeava a latir como co e dar urros como jumento dizendo o tal clerigo a huma pessoa para a qual no era chamada que tambem estava enfeitiada,

    35 exemplar o caso do moleiro exorcista Jos Antunes, o qual estando a explicar aos inquisidores a sua iniciao como saludador,

    ou seja homem de virtude, referiu o mtodo que usava nos exorcismos afirmando a dada altura que posto elle confitente de

    joelhos com as mais pessoas que estavo presentes que as vezes passario de cem elevava elle os olhos ao ceo e bafejando a

    agoa pedia a bensao a Deos, ANTT Inq. Lisboa, proc. 221, fl. no numerado, interrogatrio de 17 de Agosto de 1768. Jos Pedro

    Paiva refere tambm exorcismos colectivos, feitos por uma mulher de Braga, Teresa Mendes de Oliveira, em que esta entrava

    numa espcie de transe, muitas das vexadas desmaiavam, agarravam-se a ela, tudo no meio de grande gritaria, ver PAIVA,

    Jos Pedro Bruxaria e superstio num pas sem caa s bruxas (1600-1774). Lisboa: Editorial Notcias, 1997, p. 138.

    36 RIBEIRO, Antnio O complexo totalizante simblico: religio popular, xamanismo e psicanlise nos arquivos da Inquisio

    portuguesa. Revista de Histria da Sociedade e da Cultura. 9 (2009) pp. 99-100.

    37 Os elementos aqui referidos encontram-se em ANTT Inq. Lisboa, proc. 221, fls. 6-6v.

  • 105

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    e respondendo lhe a mesma que nenhum mal padecia tambem lhe pos as maos e logo comeou a dar os referidos sinais...38

    Para alm destes h um terceiro caso que re*ecte de forma bastante completa o complexo simblico da possesso em Portugal.

    Catarina Fernandes era uma rapariga perturbada, lha de um lavrador, moradora no lugar de Mouros, perto de Monforte, bispado de Miranda. Saiu penitenciada em auto-da-f celebrado em Coimbra em 1728, condenada com um degredo de 5 anos para Angola. A pena pode ser considerada excepcionalmente pesada comparativamente ao que era geralmente aplicado a este gnero de casos39.

    Catarina tinha um comportamento tal que entrando na igreja ero taes os estrondos e terremotos que fazia... que o povo a tinha por indemuninhada. Na igreja submeteram-na a exorcismos, durante os quais ladrava como co, berrava como cabra, e, com a ocasio e pretexto de estar possessa do demnio, profanava e cospia as imagens e reliquias sagradas40.

    A rapariga confessou uma srie de vises e aparies. Estas ter-se-iam iniciado quando ela tinha a idade de sete anos. Revela-se aqui o primeiro aspecto interessante do caso. Era aos sete anos que os saludadores, um tipo de curandeiros populares existente na Pennsula Ibrica durante a poca Moderna, armavam entrar em contacto com o mundo dos mortos, em alguns casos atravs de um xtase em que a sua alma era levada ao contacto com as almas dos defuntos41. Estes ltimos ensinavam ento o iniciado a curar, atribuindo-lhe ento uma graa especial para a terapia dos males do corpo. Mas era aos sete anos tambm, e neste aspecto o caso de Catarina Fernandes no nico, que algumas raparigas armavam comear a ter contactos com o demnio42. Nestes casos, o padro de comportamento inclua a fuga nocturna para um monte. H episdios em que o demnio em forma de co conduz a rapariga ou, noutros casos, so as prprias raparigas que adoptam um comportamento de co ou lobo43.

    38 ANTT Inq. Lisboa, proc. 9559, fl. 6.

    39 ANTT Inq. Lisboa, proc. 16312. O que sobreviveu do processo resume-se sentena onde se pode encontrar um breve sumrio

    do caso. Pelo sumrio no arriscado conjecturar que se ter tratado de um processo bastante extenso.

    40 ANTT Inq. Lisboa, proc. 16312, fl. 1v. Todos os elementos aqui referidos se encontram nos flios 1 e 1v.

    41 Ver o captulo A pelo do lobo e o apelo da noite em RIBEIRO, Antnio O Auto dos Msticos... cit. Nesse captulo exponho

    comparativamente dois casos que me parecem exemplares. O do curandeiro aoreano Amaro Fernandes, cujo processo se

    encontra na Torre do Tombo, ANTT Inq. Lisboa, proc. 4782 e o da freira castelhana Mara ngela Astroch, citado em HALICZER,

    Stephen Between Exaltation and Infamy. Female Mystics in the Golden Age of Spain. Oxford: University Press, 2002, p. 3-4. A

    similitude entre os dois casos a respeito do processo inicitico seguramente mais do que mera coincidncia.

    42 A ttulo de exemplo ver o caso de Maria da Ascenso, de Castelo Novo, a qual disse que com a idade de 7 annos se cazara com

    o demonio e... se fingia insana e caminhava para a serra da ditta villa..., ANTT Inq. Lisboa, Cadernos do Promotor, liv. 277, fl.

    468; veja-se ainda o caso de Catarina Rodrigues, que confessou que aos sete anos comeou a sofrer vexaes do demnio e que

    o mesmo demnio a guiava pelos campos. ANTT Inq. Coimbra, proc. 4653, fl. 13.

    43 Estes casos j foram apresentados no artigo citado acima e no os irei retomar aqui em detalhe. De notar que a fuga nocturna

    a cavalo de um lobo aparece em vrios processos que tratam de sabbaths em vrias partes da Europa. Veja-se um processo de

    uma bruxa, ocorrido em Lucerna, em que a mulher era acusada entre outras coisas de andar debaixo de chuva sem se molhar

  • 106

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    Este aspecto da idade de iniciao , semelhana do que foi visto para o vmito de objectos chegada a um local sagrado, mais um exemplo da j referida ambiguidade entre possesso demonaca ou divina. A comparao entre saludadores em estado esttico e exttico, por um lado, e possudos em frenesim, por outro, coloca tambm em evidncia a analogia simblica e a homologia de funes entre a fuga nocturna do possudo para um monte e a ascenso da alma ao cu. O assunto merece, por si s, um estudo autnomo. Na realidade, a montanha simboliza um axis mundi, um eixo do mundo que serve de ligao entre a terra e o cu44.

    Catarina Fernandes revelou diversas aparies que o demnio lhe fazia nas mais diversas formas, animais ou humanas, bem como a consumao de um pacto e de cpula. Em certa ocasio apareceu-lhe sob a forma de Cristo crucicado, mas exibindo cornos na cabea e ps de bode. Numa noite fugiu de casa, conduzida pello mesmo demonio que a levara a hum monte, em o mais aspero e oculto delle a escondeo em huma cova, adonde viveo sepultada por alguns dias. Este chamamento nocturno para a serra, monte ou montanha est omnipresente nos casos de possesso feminina em Portugal. E ser uma das linhas de pesquisa que far a ligao ao complexo Bartolomeu-Apolo ou, se se preferir, co-demnio-Dioniso.

    A possesso e o chamamento para uma montanha constituem traos caracte-rsticos do culto dionisaco. O ritual, de periodicidade bienal, desenrolava-se no pico do Inverno e designava-se oreibasia45. Durante a subida, as mnades gritavam eis oros (para a montanha), de forma ritmada e permanente, uma frmula que levou alguns autores a descortinar uma tcnica de produo de estados alterados de conscincia, semelhante das sesses xamnicas de repetio de uma nica palavra46.

    Contudo, basear neste detalhe a identicao da realidade vericada nos casos portugueses com o culto dionisaco apresenta ainda problemas. A principal questo prende-se com o facto de a forma de possesso detectada em Portugal ser individual,

    e de andar a cavalgar um lobo num cemitrio, ver KIECKHEFER, Richard European Witch Trials. Their Foundations in Popular

    and Learned Culture, 1300-1500. London, Henley: Routledge & Kegan Paul, 1976, p. 71. De resto, a metamorfose em lobo surge

    num texto de um cronista de Lucerna, Hans Frund, o qual, segundo Martine Ostorero, o primeiro texto a descrever aquilo a

    que poderemos chamar um imaginrio do sabbath, ver ANHEIM, tienne; BOUDET, Jean-Patrice; MERCIER, Franck, OSTORERO,

    Martine Aux sources du Sabbat. Lctures croises de limaginaire du Sabbat. dition critique des textes les plus anciens (1430

    ca-1440 ca). Mdivales. 42 (2002), p. 154.

    44 Para uma perspectiva do conceito de Axis Mundi, desenvolvido por Eliade, e a sua relao com as montanhas ver KOROM, Frank

    J. Of Navels and Mountains: A further Inquiry in the History of an Idea. Asian Folklore Studies. 51 (1992) 103-125. No contexto

    particular da Grcia, o encontro entre o humano e o divino d-se geralmente na montanha, ver BUXTON, Richard Imaginary

    Greek Mountains. The Journal of Hellenic Studies. 112 (1992), p. 9.

    45 Em algumas regies da Grcia, como em Atenas ou Delfos, a oreibasia manteve-se at ao sculo II d.c., embora a sua desagregao

    se tivesse iniciado ainda no perodo helenstico. Teria sido precisamente essa progressiva desestruturao do ritual que levou ao

    aparecimento do moderno Carnaval, ver HENRICHS, Albert Greek Maenadism from Olympias to Messalina. Harvard Studies in

    Classical Philology. 82 (1978) 121-160; Sobre o mesmo assunto, ver ainda DODDS, E.R. Maenadism in the Bacchae. Harvard

    Theological Review. 33 (1940) 155-176.

    46 BREMMER, Jan Greek Maenadism Reconsidered. Zeitschrift fur Papyrologie und Epigraphik. 55 (1984), p. 277.

  • 107

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    solitria e desordenada ao passo que o ritual dionisaco era uma celebrao colectiva devidamente calendarizada.

    No seu estudo sobre tarantismo e possesso no sul da Itlia, Ernesto de Martino demonstra de forma clara os dois nveis presentes nesse culto de possesso: o patolgico e o ritual. A dada altura, na sua obra clssica La terra del rimorso arma acerca do ritual dionisaco:

    ...no menadismo, e em geral nos cultos orgisticos femininos, encontramos a violenta secesso da comunidade civil, a fuga em direco solitude arbrea e aqutica, a errncia num estado de furor alucinado... mas encontramos tambm uma canalizao dirigida para o controlo da desordem e a resoluo da crise, para o local onde se encontra institucionalizado um local de culto na spera solitude montanhesa e selvagem...47

    Como teoria geral, de Martino v no menadismo uma forma de canalizar situaes de histeria e patologia, enquadrando-as num horizonte ritual48. Sabe-se ainda que estas situaes de fuga nocturna para zonas ermas e montes existiam tambm a um nvel individual na Grcia e que afectavam essencialmente raparigas no casadas, o que oferece um curioso paralelo com o caso portugus49.

    Mas existe um paralelo ainda mais surpreendente. Na Antiguidade grega, nos casos de possesso individual como na possesso por Dioniso, o possudo sente-se muitas vezes impelido pela entidade possessora a cometer suicdio. E esse acto parece estar igualmente sujeito a uma prescrio ritual: deve assumir a forma de afogamento na gua ou enforcamento50. esta a regra. Surpreendentemente, no caso portugus o padro exactamente o mesmo51.

    Esta tendncia suicida da possesso, obedecendo a formas estipuladas, parece apontar, como referi, para uma certa ritualizao. Ernesto de Martino viu no padro afogamento/enforcamento um horizonte ritual bem denido. Para este autor, por detrs

    47 DE MARTINO, Ernesto La terra del rimorso. Contributo a una storia religiosa del Sud. Milano: Il Saggiatore, 1961, pp. 206-7

    (traduo da minha autoria).

    48 Dodds, na sua introduo s Bacchae de Eurpides, traou uma hiptese semelhante, com a diferena de que em vez de falar de

    um enquadramento ritual para pulses histricas individuais, fala de um enquadramento ritual de casos de histeria de massa,

    apoiando-se na comparao com casos ocorridos no Ocidente Medieval, ver DODDS, E.R. Introduo in EURIPIDES Bacchae...

    cit., p. xiv.

    49 O tratado de Hipcrates A doena das virgens descreve uma srie de condies provocadas pela reteno do sangue menstrual,

    ver SIMON, Bennett Mind and Madness in Ancient Greece. The Classical Roots of Modern Psychiatry. Ithaca; London: Cornell

    University Press, 1978, p. 243.

    50 Para o suicdio provocado pela possesso de Dioniso, ver SABATUCCI, Dario Essai sur le mysticisme grec. Paris: Flammarion,

    1982, pp. 61-2; para os casos individuais ver SIMON, Bennett Mind and Madness... cit., p. 243.

    51 Os casos em que o possudo afirma que o esprito possessor (demnio) o convida a enforcar-se no um exclusivo portugus nem

    da Antiguidade grega. Barbara Newman apresenta casos semelhantes para a Idade Mdia (NEWMAN, Barbara Possessed by

    the Spirit... cit., pp. 747-8) e Erik Midelfort relata um outro na Alemanha da poca Moderna (MIDELFORT, Erik The Devil and the

    German People: Reflections on the Popularity of Demon Possession in Sixteenth-Century Germany in OZMENT, Steven Religion

    and Culture in the Renaissance and Reformation. Sixteenth Century Essays & Studies, vol. 11. Kirksville: Sixteenth Century Journal

    Publishers, 1989, p. 116).

  • 108

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    do gesto irracional de a pessoa se lanar agua est a imerso catrtica, presente nos cultos de possesso, ao passo que o enforcamento remete para o ritual da altalena, um rito em que as raparigas solteiras agitavam bonecas nos ramos das rvores durante o festival dionisaco das Anthesterion, uma festividade dos mortos. Este autor interpretou o ritual como uma forma de sublimar os instintos suicidas das raparigas52.

    No dia 27 de Maro de 1760, Frei Joaquim de Santa Ana, leitor de Moral no seminrio da Guarda escreveu ao Santo Ofcio acerca de uma epidemia de possudos que frequentavam a S buscando alvio para os tormentos que o demnio lhes dava. Refere que uma dessas pessoas, sem especicar se se tratava de homem ou mulher, se queixava que o Demnio a levava dali longe e atormentava, levando a a huma ponte dali a huma legoa53. O autor da carta revela que esses indivduos faziam desacatos na S e que se querio enforcar com huns baraos e sabendo que os confessores acudio para que o no zessem entendi ser nelles ignorncia.

    So vrios os registos em que a gura do possudo surge ligada ao enforcamento. Tal podia assumir um tom persuasivo, como no caso de Joana Roldo (1683), a quem o demnio tentou convencer de que se queria ter descano nos trabalhos que padecia e ir gozar a bem aventurana na outra vida se afogasse com o leno que tinha na cabea54. Ou como no caso de Antnia Rodrigues (1675), de Abrantes, a quem o demnio aparecia na forma de mulher:

    ...o@erecendo lhe por varias vezes cordas e cordois para se enforcar, metendosse dentro nella contente, e quando entrava nella sentia a modo de huma cobra que lhe fazia inchar o estomago com tal aperto e ania que pegando nella contente quatro ou sinco pessoas a no podio sigurar, e neste tempo dezejava ella contente sair se de caza, e ir se afogar no Tejo ou enforcar como a di)a mulher lhe dizia...55

    Noutras situaes o tom era de ameaa. Foi o caso de Joo Morato (1580), a quem o demnio pediu a prpria lha. Ao ver o seu pedido recusado, lanou-lhe uma corda aos ps dizendo-lhe que se enforcasse com a corda porque aquillo lhe avia elle de dar. J no caso da visionria Engrcia Pires (1621), da Sert, foi ao passar junto de um ribeiro que ouviu uma voz que lhe disse que a havia de enforcar56. Um outro exemplo: o caso de Bento dAssuno (1697), a quem o demnio apareceu em forma de burro sem orelhas e muito grande que nem era branquo nem preto como hum tacho em mareado, o qual trazia huma corda dizendo lhe que o havia de afogar57. A ameaa

    52 DE MARTINO La terra del Rimorso... cit., p. 209 e ss. de notar que quer o elemento gua, quer o elemento suspenso numa

    rvore, esto presentes no mito de Mrsias.

    53 ANTT Inq. Lisboa, Cadernos do Promotor, liv. 313, fl. 280.

    54 ANTT inq. Lisboa, proc. 5187, fl. 8.

    55 ANTT Inq. Lisboa, proc. 9577, fl. 49.

    56 ANTT Inq. Lisboa, proc. 7879, fl. 10.

    57 ANTT Inq. vora, proc. 5111, fl. 18.

  • 109

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    poderia ainda surgir quando a pessoa estava num estado de xtase, como aconteceu a Maria de Faria (1587), uma rapariga de vinte anos, residente em Lisboa, a quem o demnio apareceu sob a forma de um co negro. A partir desse momento comeou a ter acidentes, ou seja, caa num estado de letargia. Durante esses momentos via a gura de um eremita que chamava por ela e lhe dizia que a queria enforcar58.

    Como se disse, a outra vertente do suicdio demonaco referia-se ao afogamento na gua. O modelo mais comum era o convite do demnio a que a pessoa se lanasse a um poo, como se passou com uma Clara Varela (1720), de Arraiolos, a quem sendo rapariga de onze annos pouco mais ou menos, o demonio a instigava a que se lanasse a hum poo59. Foi igualmente o caso de uma outra Clara, moradora em Coimbra, antiga lha espiritual do famoso missionrio Bartolomeu do Quental, a quem o demnio apareceu em forma de porco dentro de um poo convidando-a a que se aproximasse60.

    Como se v, os pontos de contacto entre as formas de possesso da Antiguidade e as que se vericam no perodo Moderno em Portugal parecem acompanhar a leitura feita no incio deste artigo acerca das razes ocultas da iconograa de S. Bartolomeu. Uma questo, porm, permanece: que signicado atribuir questo da exibio da pele? No incio desta pesquisa apresentou-se em traos gerais a ideia de que a pele, enquanto revestimento, consagra a fronteira e encerra no seu interior a totalidade do eu. Por oposio, pode pensar-se que uma pele que no seja a prpria nunca neutra. Sendo pele, corresponde identidade do outro. Logo, quando se veste uma pele est-se a assumir uma outra identidade. E se for uma pele de animal est a assumir-se uma identidade animal61.

    Na Antiguidade latina, o termo versipellis signicava aquele que muda de pele sua vontade e tinha como signicado, entre outros, homens que assumiam identidades animais, especicamente a de lobo62. Na sua vertente popular, porm, versipellis podia adquirir uma designao ligeiramente diferente. No signicava apenas mudar de pele mas podia referir-se pele invertida, ao uso da pele ao contrrio, com a parte de dentro para fora63.

    Em 1884 foi publicado em Portugal um relatrio acerca das condies em que estavam instalados os alienados em Portugal. O relatrio, bastante amargo e crtico da

    58 ANTT Inq. Lisboa, proc. 9862, fls. 8-8v.

    59 ANTT Inq. vora, Cadernos do Promotor, liv. 258, fl. 177.

    60 ANTT Inq. Coimbra, Cadernos do Promotor, liv. 327, fl. 204, (a referncia a Bartolomeu do Quental aparece no flio 202).

    61 No xamanismo siberiano, por exemplo, a iniciao comporta um momento de xtase em que o xam visitado por animais que

    lhe so enviados por espritos. O objectivo que o nefito confeccione um fato com as suas peles para que possa assumir uma

    nova identidade, ver ELIADE, Mircea Le chamanisme et les techniques archaiques de lextase. Paris: Payot, 1978, p. 102.

    62 BATTAGLIA, Salvatore La coscienza letteraria del Medioevo. Napoli: Liguori, 1965, p. 368, nota 1.

    63 SMITH, Kirby F. An historical study of the Werewolf in Literature. Publications of the Modern Language Association. 9 (1894),

    p. 9.

  • 110

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    situao vigente, era da autoria do clnico Antnio Maria de Senna. Na introduo o autor louvava a ilustrao que os tempos modernos trouxeram ao estudo das patologias mentais, lamentando o obscurantismo e barbrie dos sculos precedentes. Sem referir a maior parte das suas fontes, o autor vai fazendo uma resenha acerca da forma como a patologia mental era tratada no passado:

    ... um doente julgava-se sem cabea, punham-lhe um bon de chumbo para ver se o augmento de peso lhe mostra a falsidade da sua convico. Uma hysterica imaginava ter uma serpente no estomago, davam-lhe um vomitivo e lanavam-lhe subrepticiamente um lagarto no vomito... um desgraado de Pdua cr-se lobis-homem e com a pelle virada para fora, golpeam-lhe os braos e as pernas para o convencer do contrrio e morre de hemorragia...64

    Este texto tem um interesse duplo para o estudo da questo da possesso em Portugal. que a crena de que se tem uma cobra no estmago, que se contorce e faz inchar a barriga corresponde simbolicamente possesso pelo esprito de um morto, como j tentei demonstrar noutro artigo65. Por outro lado, e esse o elemento central para a pesquisa que aqui est em causa, temos a ideia da pele do avesso. o prprio licantropo que o arma. Trata-se de um alienado de Pdua, mas esta ideia de inverter a pele est tambm presente no folclore portugus concernente aos lobisomens. Segundo Consiglieri Pedroso, uma das formas que o povo preconizava para quebrar o encanto aos lobisomens voltar lhe o fato do avesso. Numa outra verso, apresentada pelo mesmo autor, o lobisomem deveria ser agarrado, sentado numa pedra branca e vestido com uma camisa virada ao contrrio66. A identicao entre pele e fato aqui bastante bvia.

    A pele , portanto, um elemento fundamental da possesso. Atestam-no os testemunhos, muitas vezes directos e em primeira mo, de licantropos que armam receber uma pele de lobo directamente das mos do demnio, de que, vestindo-a, resulta uma transformao animalesca67. Caroline Oates, estudando o fenmeno da licantropia

    64 SENNA, A.M. de Os alienados em Portugal. I. Historia e Estatistica. Lisboa: Administrao da medicina contempornea, 1884,

    pp. x-xi.

    65 Nesta forma de possesso aparece muitas vezes a crena de que da mesma pode resultar uma gravidez e um parto de uma figura

    extraordinria, simultneamente messinica e ligada ao mundo dos mortos, ver RIBEIRO, Antnio O complexo totalizante... cit,

    pp. 95-96. Curiosamente, altura da redaco deste artigo ainda no tinha conhecimento do texto de Antnio Maria de Senna.

    66 PEDROSO, Consiglieri O lbis-homem. O Positivismo. 3 (1881), pp. 251-52. A ideia de usar roupa virada ao contrrio como

    forma de marcar um estdio de alteridade, de mudana, de ruptura com o estado natural das coisas existia na cultura popular

    em diversas partes da Europa, ver CLARK, Stuart Thinking With Demons. The Idea of Witchcraft in Early Modern Europe. Oxford:

    Clarendon Press, 1997, p. 18.

    67 Veja-se o caso de Jean Grenier, julgado como pretenso licantropo em Bordus em 1603, acusado de um conjunto de homicdios,

    e que afirmou ter recebido uma pele de lobo das mos do Senhor da Floresta, MANDROU, Robert Possession et sorcellerie

    au XVIIe sicle. Textes indits. Paris: Fayard, 1979, pp. 43-45; do pastor flamengo que recebeu uma pele de lobo das mos do

    demnio com a condio de que a usasse para assustar as pessoas, ver SMITH, Kirby F. An historical study... cit., p. 29; ou o

    famoso caso do lobisomem livnio Thiess, o qual quando caa num estado de letargia afirmava ir ao Inferno em forma de lobo

    depois de despir a roupa e vestir uma pele de lobo, LECOUTEUX, Claude Hadas, brujas y hombres lobo: Historia del doble. Palma

    de Mallorca: Jos de Olaeta Editor, 1999, p. 141. Sobre o assunto tambm til consultar MADAR, Maia Estonia I: Werewolves

  • 111

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    no Franco-condado, uma regio em que a incidncia do fenmeno era bastante elevada, identicou quatro formas de transformao em lobo: despindo a roupa (nudez ritual); untando o corpo com um unguento; usando uma pele de lobo; recorrendo a outros objectos mgicos ou vestimentas68. Em Portugal, nos casos apurados nos arquivos inquisitoriais, apenas existe o primeiro modelo, a nudez ritual69. A mesma nudez que na Antiguidade grega algumas raparigas exibiam nas suas errncias pelos montes70.

    A pele torna-se assim a prpria essncia do eu e, como tal, confunde-se com aquilo que constitui o reduto mais profundo e ntimo do indivduo: a sua alma71. E a alma permanece, imortal, ultrapassa a vida, a morte, a ascenso e o declnio. Est acima da corrupo do tempo.

    Num processo de 1519 da Inquisio de Moderna contra uma mulher chamada Zlia, pode ler-se a dada altura, numa das sesses de consso da r, que ela fora levada por uma Senhora a um sabbath onde mataram e comeram um boi, aps o que recolheram os ossos do animal, colocaram-nos dentro da pele e a Senhora, tocando-lhe com um basto, ressuscitou o animal72. Mitos com uma narrativa semelhante, obedecendo

    and Poisoners in ANKARLOO, Bengt; HENNINGSEN, Gustav Early Modern European Witchcraft. Centres and Peripheries. Oxford:

    Clarendon Press, 1990, principalmente as pginas 270-71.

    68 OATES, Caroline Metamorphosis and Lycanthropy in Franche-Comt, 1521-1643 in FEHER, Michel; NADDAFF, Ramona; TAZI, Nadia

    (Ed.) Fragments for a History of the Human Body, Part One. New York: Urzone, 1989, p. 310.

    69 Embora seja um elemento recorrente, ele ainda mais evidente em dois casos, um da Cova da Beira, de uma rapariga que corria

    para o monte conduzida pelo demnio em forma de lobo, acordando nua, e num outro de uma mulher que fugia durante a

    noite, despindo-se e lanando-se numa cova, ver RIBEIRO, Antnio O complexo... cit., pp. 100. J Jos Pedro Paiva tinha notado,

    para o contexto portugus, esta prevalncia da nudez, quer nos relatos de sabbaths quer nas prticas extticas de contacto com

    os mortos, PAIVA, Jos Pedro Bruxaria e superstio... cit., p. 159. O facto de alguns indivduos se despirem ritualmente para

    entrar num estado de letargia e xtase, facto que atestado desde a Antiguidade, outro dos elementos que refora a analogia

    simblica entre a fuga nocturna e a ascenso da alma em xtase ao mundo dos mortos, CULIANU, Joan Petru Psychanodia

    I. A survey of the evidence concerning the ascension of the soul and its relevance. Leiden: J. Brill, 1983, p. 37. Veja-se o caso dos

    tltos hngaros, uma espcie de xams que afirmam combater em xtase, com a alma, enquanto o corpo est num estado

    letrgico. Antes desses combates eles despem-se para ficarem to nus como quando nasceram, ver KLANICZAY, Gbor The

    Uses of Supernatural Power. The Transformation of Popular Religion in Medieval and Early-Modern Europe. Cambridge: Polity Press,

    1990, p. 142.

    70 JEANMAIRE, H. Dionysos... cit., pp. 209-210.

    71 Hesodo, referindo-se mudana da pele da serpente afirmou que apenas a psych (a alma) permanece, BREMMER, Jan The

    Early Greek Concept of the Soul. Princeton: University Press, 1983, p. 127. Nas lnguas nrdicas, o mesmo vocbulo hamr designa

    simultneamente os conceitos de pele, duplo (no sentido de desdobramento corpo/alma) e coifa, ou seja, a membrana amnitica,

    LECOUTEUX, Claude Hadas... cit. p. 113. Isto explica, provavelmente, porque que, em diversas culturas, se considera que a

    criana que nasce ainda envolvida na membrana amnitica tem a capacidade de ver e contactar os mortos, bem como a de se

    desdobrar. A este propsito vejam-se, para uma abordagem psicanaltica, BELMONT, Nicole Les signes de la naissance: tude

    des representations symboliques associes aux naissances singulires. Brionne: Grard Monfort, 1971, e numa perspectiva mais

    antropolgica e histrica, GINZBURG, Carlo Os andarilhos do bem. Feitiaria e cultos agrrios nos sculos XVI e XVII. So Paulo:

    Companhia das Letras, 1988. No leste da Europa, a distino entre feiticeiros benficos e bruxas era feita atravs da tonalidade,

    branca ou negra, da membrana amnitica em que vinha envolvidos nascena, ver PCS, Eva Le sabbat et les mythologies

    indo-europennes in JACQUES CHAQUIN, Nicole; PRAUD, Maxime Le sabbat des sorciers en Europe (Xve-XVIIIe sicles). Grenoble:

    Jerme Millon, 1993, p. 31. Refira-se ainda que na Hungria se profetizava que quem nascia com a coifa morria pela corda, o

    que aponta para a associao entre possesso e enforcamento, referida atrs, ver FORBES, Thomas R. The Social History of the

    Caul. The Yale Journal of Biology and Medicine. 25 (1953) 497.

    72 BERTOLOTTI, Maurizio Le ossa e la pelle dei buoi. Un mito popolare tra agiografia e stregoneria. Quaderni Storici. 41 (1979),

    pp. 470 e ss..

  • 112

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    ao padro dos ossos recolocados no interior da pele e posterior ressurreio foram identicados em diversas partes do Mundo73. A pele funciona como ltimo reduto da identidade, ela a nica que permanece. Estava presente antes da morte e est presente na ressurreio. Mas o mais interessante e surpreendente vericar que o tema aparece na lenda de S. Bartolomeu contada por Jacques de Voragine. Nela, o santo aparece em sonhos a um monge e ordena-lhe que recolha os seus ossos, que tinham sido dispersos pelos muulmanos aps a invaso da ilha de Lipari, onde repousavam. Nessa ocasio teria dito ao monge que os seus ossos seriam facilmente reconhecveis, pois brilhariam na noite com uma luz incandescente74.

    O santo que carrega a pele sobre o brao exige que lhe recolham os ossos. H um nexo evidente com o mito de renascimento narrado acima. Diversos autores interpretaram este mito xamnico como o re*exo de uma cultura prpria de caadores, um ritual de perpetuao da caa. Mircea Eliade, sustentando esta tese, declarou que o osso simboliza a raiz ltima da vida animal, o molde da qual a carne continuamente renasce75. Contudo, nenhum dos autores que consultei fez a ligao entre este mito e um ritual grego com o qual partilha fortes semelhanas. Trata-se de uma cerimnia que decorria no ms de Junho denominada Dipolia ou Boufonia. Nesta, um boi era morto, a carne era consumida e a pele era cheia de palha. Depois, como se o animal tivesse sido devolvido vida, era novamente atrelado charrua76. Como se pode constatar, mantm-se intacta a sequncia da morte, desmembramento, consumo da carne, enchimento da pele, ressurreio. A referncia aos ossos desaparece e a colocao do boi na charrua torna problemtica a importncia de se tratar ou no de uma sociedade de caadores. No se pretende aqui negar categoricamente que a origem fosse essa. O que se pretende demonstrar que o signicado do mito ultrapassa essa referncia antropolgica.

    Mais uma vez, entre ossos e palha, o que permanece a pele. Mitos que com-portam a sequncia da morte de um animal ou homem, o consumo da sua carne, enchimento de uma pele ou roupa (foi visto que o funcionamento simblico idntico) com palha, e posterior ressurreio existem disseminados no folclore europeu e podem

    73 H registos para a Europa, sia, Amrica Setentrional e frica, ver GINZBURG, Carlo Histria Noturna: decifrando o Sab. So

    Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 227. O mito estava ainda vivo na cultura popular em Itlia mais de um sculo depois do

    processo de Modena, ver PROSPERI, Adriano Credere alle streghe: inquisitori e confessori davanti alla superstizione in Bibliotheca

    Lamiarum. Documenti e immagini della stregoneria dal Medioevo allEt Moderna. Pisa: Pacini, 1994, p. 21. Para a regio da

    Baviera ver BEHRINGER, Wolfgang Shaman of Obertsdorf. Conrad Stoeckhlin and the Phantoms of the Night. Charlottesville:

    University Press of Virginia, 1998, pp. 39-46.

    74 VORAGINE, Jacques de La lgende dore... cit., pp. 457-458.

    75 ELIADE, Mircea Rites and symbols of initiation. Woodstock, Connecticut: Spring Publications, 1958, p. 92. A mesma tese foi

    adoptada por BERTOLOTTI, Maurizio Le ossa... cit., p. 476 e PROSPERI, Adriano Credere alle streghe... cit., p. 21.

    76 BURKERT, Walter Homo Necans... cit., pp. 136-143; MAUSS, Marcel Oeuvres. 1. Les fonctions sociales du sacr. Paris: Minuit,

    1968, pp. 274-283. Carlo Ginzburg, sem referir este festival, estabeleceu, contudo, um nexo entre o mito e a Antiguidade grega,

    reconhecendo a sua influncia nos mitos de Tntalo, Lycaon e Dioniso, ver GINZBURG, Carlo Histria noturna... cit., p. 228-231.

  • 113

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    ser vistos de forma avulsa em vrios processos de bruxaria77. Um excelente exemplo a crena medieval, referida por Burchard de Worms, de que as bruxas podem comer um homem, encher-lhe a pele de palha e ressuscit-lo78.

    Toda esta mitologia de morte e renascimento, seja com ossos ou palha, mas sempre pela pele, deixou ecos fragmentrios nos arquivos da Inquisio portuguesa. Um deles aparece em 1759 em Vilarinho, uma aldeia perto de Mondim de Basto. O ambiente que a se vivia era de estupefaco, criada pela emergncia de uma congregao que esperava um desfecho apocalptico atravs de um dilvio de areia. A principal gura dessa congregao era um homem de 33 anos chamado Joo Pinto, um indivduo cujo perl assume em larga medida contornos xamnicos. Atribuam-se-lhe os prodgios mais extraordinrios, ao ponto de uma das testemunhas do processo, habitante em Vilarinho, ter armado que ouvio elle que nesse congresso levantaram hum homem de palha e que este fallara79. Menos evidente, mas passvel de uma interpretao semelhante o caso de um homem que crucicou um boneco de palha em Santa Maria de Labrij, Ponte de Lima (1747). As razes que o levaram a isso, bem como a sua prpria identidade no cam, contudo, absolutamente claras. Vrios elementos, porm, apontam para a execuo de um ritual mgico80.

    Por outro lado, tambm o mito do renascimento pelos ossos surge, no em Portugal continental mas no contexto colonial, no arquiplago de Cabo Verde. Apa-rentemente, contudo, a transmisso do mito ter sido feito por via erudita. Na denncia contra o padre Diogo Monteiro Correia, feita por volta de 1719, pode ler-se que este padre era suspeito de ter pacto com o demnio e que s tinha decidido tornar-se sacerdote porque s sendo o poderia fazer o que quizesse porque o veneno amatorio se compunha da sagrada particulla81. A expresso veneno amatrio aponta imedia-tamente para algum com interesses na rea da alquimia e do ocultismo. De facto, o denunciante arma ainda que o denunciado tinha hum livro dos prohibidos de Jacob Vecro... por onde fez cousas que parecem sobrenaturais. Jacob Vecro ser, com toda a probabilidade, o mdico e alquimista suo Johannes Jacob Wecker (1528-1586). O padre Diogo Monteiro tinha uma temvel aura de mago. Um antigo escravo seu

    77 possvel discernir o mito em diversas referncias de bonecos de palha que ganham vida. Alguns, dizem os prprios interrogados,

    so usados para fazer viagens ao local do sabbath, ver COHN, Norman Dmonolatrie et sorcellerie au Moyen ge. Fantasmes

    et realits. Paris: Payot, 1982, p. 144; MOTZ, Lotte The Winter Godess: Percht, Holda, and Related Figures. Folklore. 95 (1984),

    p. 159; SIMPSON, Jacqueline Margaret Murray: Who Believed Her, and Why? Folklore. 105 (1994), p. 91. Curiosamente, estas

    viagens em bonecos de palha tm um paralelo absolutamente idntico na iniciao xamnica, ver MARJANIC, Suzana Witches

    zoopychonavigations and the astral broom in the worlds of Croatian legends as (possible) aspects of shamanic techniques of

    ecstasy (and trance). Studia Mythologica Slavica. 9 (2006), p. 181.

    78 Citado em CACIOLA, Nancy Wraiths, Revenants and Ritual in Medieval Culture. Past and Present. 152 (1996) 3-45, p. 35.

    79 RIBEIRO, Antnio Um buraco no Inferno: Joo Pinto, o lavrador heresiarca e a Inquisio. Viseu: Palimage, 2006, p. 22.

    80 Ver ANTT Inq. Coimbra, Cadernos do Promotor, liv. 390, fls. 8 e ss.

    81 A datao foi feita por comparao com outros documentos que lhe esto cosidos, os quais referem o ano de 1719, ver ANTT Inq.

    Lisboa, Cadernos do Promotor, liv. 281, fl. 113.

  • 114

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    armou que em certa ocasio lhe vira comer huma galinha e ajuntando os ossos em hum prato que tinha sobre a meza e dando sobre a meza huma pancada fazia converter os ditos ossos outra vez em galinha. a reproduo el do mito tal como aparece no processo de Modena, onde no falta sequer a pancada que faz voltar o animal vida.

    O facto que este mito fora o suciente para manter sob um reino de terror os escravos do dito padre. Este desincentivava as fugas fazendo-lhes crer que rapidamente seria capturados porquanto tinha:

    ...hum cavalleiro o qual se formava de huma galinha que o denunciante metia debaxo do hum balayo, que he hum grande sesto ou canastra, a noite ao deitar da cama e com algumas palavras que dezia a fazia sahir debaxo e voando para a dita cama se convertia em hum cavaleyro que hia buscar lhe os ditos negros...

    A histria do cavaleiro que nasce de uma galinha deriva em linha directa do renascimento dos ossos que o seu antigo escravo armou que lhe viu fazer. Mas impe-se a questo da origem do mito. A denncia no especica qual era o livro de Jacob Wecker que Diogo Monteiro utilizava. No obstante, no livro Secrets of Art and Nature, escrito pelo fsico suo, descreve-se um mtodo para fazer danar mesa uma galinha morta. Para tal prescrevia-se que se enchesse o estmago do animal com uma mistura de mercrio e plvora82. No se fala, no entanto, na pele ou na recoleco dos ossos, embora na mesma obra exista um avultado nmero de receitas utilizando ossos, humanos e animais.

    Admitamos, portanto, que a transmisso se fez por via erudita. Estaramos nesse caso perante a transmisso de um mito eurasitico a uma ilha num arquiplago atlntico, feita por via colonial. Nos outros dois casos anteriores, porm, h uma in*uncia popular que parece ser bastante evidente. Como tese geral no ser temerrio postular que existia na cultura popular um fundo mtico relacionado com a ideia de morte e renascimento e que esse fundo se re*ectia ainda em prticas rituais. Prticas que, no perodo j tardio em que nos chegam estas referncias, se encontravam j em completa desagregao.

    Regresse-se aos bonecos de palha miraculosamente dotados de vida. Num artigo publicado no nal do sculo XIX, A.G. Bather interrogava-se acerca do simbolismo de um trecho das Bacchae, de Eurpides. No momento culminante do texto, Penteu, o rei tebano que se opunha em vo ao triunfo do culto dionisaco na sua cidade, morto e desmembrado pelas mnades, nas quais se encontrava a sua prpria me. Penteu estava sobre uma rvore, disfarado de mulher, para poder espiar as ociantes do culto. Bather reconheceu neste passo um momento chave: o transvestismo de Penteu talvez

    82 Cf. WECKER, John Eighteen books of the secrets of Art and Nature. London: Simon Miller, 1661, fl. 143. Esta obra circulava em

    latim desde o sculo XVI em vrias partes da Europa. Em Portugal existem poucos exemplares das edies latinas, encontrando-se

    todas as que pude apurar na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

  • 115

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    o ponto mais difcil de explicar em toda a histria. A nfase colocada neste facto e o carcter meio cmico dado cena por Eurpides parecem tornar impossvel que se trate apenas de um disfarce ditado pelas circunstncias do momento83. Bather coloca, desta forma, a questo no plano simblico. Recorrendo a um mtodo comparativo, este autor estabeleceu um paralelo entre a cena de Penteu e um trao folclrico europeu de grande disperso: a suspenso de bonecos de palha, muitas vezes vestidos de mulher, em rvores, postes e outros objectos semelhantes. Os exemplos, todos unidos entre si por uma grande coerncia formal, vo desde a Itlia Meridional (Palermo) at ao Bltico (Estnia)84.

    luz da pesquisa desenvolvida at aqui, a anlise de Bather parece ter funda-mento. Os bonecos de palha e o tema da suspenso parecem traar um certo perl familiar entre Mrsias e Dioniso. Para alm do mais, inscreve os dois no complexo simblico da pele, aproximando-os da iconograa de S. Bartolomeu. Estamos sempre no interior de um complexo simblico que se vai repetindo e assumindo novas formas, mantendo inalterado o contedo. A permanncia de um padro a trs tempos: morte-desmembramento-ressurreio.

    Este padro existe no mito que estrutura a prpria gura de Dioniso. O Dioniso criana, morto pelos tits que consumiram a sua carne, foi posteriormente recom-posto e ressuscitado pelo seu pai, Zeus, a partir do corao, que fora deixado intacto pelos algozes. A existncia de um padro comum que subjaz a todos os mitos de desmembramento que implicam este processo tridico, presentes em diversos pontos da Europa, hoje aceite de forma generalizada. Existem, no entanto, interpretaes diversas. Alguns autores, apoiando-se em Diodoro Sculo, pretendem ver no tema do desmembramento de Dioniso uma alegoria produo do vinho85. Richard Seaford observou que o tema do desmembramento e posterior unidade atravs do vinho no anula a questo central. Trata-se de uma representao da alternncia dialctica entre o uno e o mltiplo. Em suma, trata-se do *uir do mundo86.

    83 BATHER, A.G. The problem of the Bacchae. The Journal of Hellenic Studies. 14 (1894), pp. 249-50.

    84 BATHER, A.G. The problem... cit., pp. 250-51. A tese de Bather partilhada por diversos autores. Jeanne Roux, por exemplo,

    referindo-se ao mesmo episdio de Penteu afirma que estas peripcias no nasceram da fantasia de poetas. Elas constituem

    um cenrio ritual que tem antecedentes e paralelos muito precisos em diversas cerimnias do folclore universal destinadas a

    celebrar a renovao, ver ROUX, Jeanne Introduction in EURIPIDES Les bacchantes. Paris: Les Belles Lettres, 1970, p. 16.

    85 TURCAN, Robert Les sarcophages romains a reprsentations dionysiaques. Essai de chronologie et dhistoire religieuse. Paris:

    ditions E. de Boccard, 1966, p. 560; EDMONDS, Radcliffe Tearing Apart the Zagreus Myth: A Few Disparaging Remarks on

    Orphism and Original Sin. Classical Antiquity. 18 (1999) p. 51. DARAKI, Maria Dionysos... cit., p. 54.

    86 Ainda mais surpreendente a intepretao que Seaford faz do tema da dialctica, a qual seria uma alegoria do transe mstico,

    da unio com a divindade, feita atravs da passagem da fragmentao para a unificao mental, SEAFORD, Richard Dionysos.

    London; New York: Routledge, 2006, p. 114. O que surpreendente que esta forma de transe fragmentao/unidade corresponde

    de forma perfeita tcnica de xtase designada por recogimiento, prescrita pelo fundador da literatura mstica espanhola,

    Francisco de Osuna, no sculo XVI. Para Osuna, uma tal tcnica correspondia a muitas coisas que se juntavam, bem como algo

    que poderia estar desmembrado em vrias partes e estava agora unido, ver OSUNA, Francisco de The Third Spiritual Alphabet.

    New York: Paulist Press, 1981, p. 169.

  • 116

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    Este mito era permanente reactualizado no culto dionisaco, atravs da morte e desmembramento de uma vtima de substituio que simbolizava o Dioniso-criana. Na Becia, uma regio do mundo grego antigo, acreditava-se que o sacrifcio de um bode substitura um antigo ritual de sacrifcio de crianas87. Tal ritual designava-se Sparagmos e era seguido por um outro, a omophagia, o consumo da carne crua. Neste rito a dois tempos, as mnades representavam os tits e os animais sacricados representavam o prprio deus Dioniso88. O consumo da sua carne era um smbolo de unio e comunho mstica com o prprio deus89.

    So complicados os os que tecem as relaes entre o mito e o ritual. Entre o deus e a vtima sacricial de substituio. No crvel que existissem sacrifcios humanos, pelo menos nos perodos menos remotos. Mas existia o mito, permanentemente renovado, do desmembramento de uma criana.

    Ao longo dos sculos, este mito do infanticdio ritual, da criana desmembrada, foi usado para culpabilizar grupos desviantes. Foi usado pelos pagos contra os cristos e vice-versa. Foi utilizado contra judeus e hereges. Cristalizou-se nalmente, a partir do sculo XIV, no imaginrio do Sabbath demonaco90. A, a bruxa que oferece a carne e o sangue dos recm-nascidos ao seu deus cornudo, num ritual orgistico.

    De facto, o infanticdio surge como um elemento estruturante do mito das reunies das bruxas. Ele mencionado nas fontes mais antigas que referem o Sabbath e a sua presena imps-se de forma duradoura91. Um pormenor porm, merece ser mencionado. Trata-se apenas de um detalhe. No entanto, analisado luz da exposio que aqui se fez, trata-se de um detalhe que convida re*exo.

    Escrevendo no sculo XII, muito antes de ter incio a formao do imaginrio do Sabbath, Joo de Salisbury descrevia no seu Policraticus uma crena popular em reunies nocturnas em que crianas so sacricadas s lmias, cortadas em bocados e devoradas sofregamente; depois, absolvidas pela presidente, so vomitadas e reconduzidas aos seus beros92. Morte, desmembramento, reconstituio. O mesmo padro que temos vindo

    87 OTTO, Walter F. Dionysos cit., p. 177. O sacrifcio do animal substituto implicava dot-lo de caractersticas humanas,

    nomeadamente vesti-lo ou cal-lo, ver BURKERT, Walter The Orientalizing Revolution. Near Eastern Influence on Greek Culture in

    the Early Archaic Age. Cambridge; London: Harvard University Press, 1995, pp. 73-75. Em sentido inverso, podia-se dotar a criana

    de atributos animais, como no caso do infante cornudo, ver KERNYI, Carl Dioniso... cit., p. 211-12.

    88 DARAKI, Maria Aspects du sacrifice dionysiaque. Rvue de lHistoire des Religions. 197 (1980) p. 151. Este ritual referido nas

    constituies do culto dionisaco em Mileto e atestado por Plutarco e outros autores, cf. DODDS, E.R. Introduo in EURIPIDES

    Bacchae... cit., p. xiv.

    89 Sobre a interpretao do sparagmos e omophagia como uma forma de comungar da essncia da prpria divindade ver DODDS,

    E.R. Maenadism... cit., p. 165; GUTHRIE, W.K.C. Les grecs... cit., p. 285 e COCHE de la FERT, Etienne Penthe et Dionysos.

    Nouvel essai dinterpretation des Bacchantes dEuripide in Recherches sur les religions de lAntiquit Classique. Genve, Paris:

    Droz, Champion, 1980, p. 159.

    90 Sobre o infanticdio como obsesso ver PROSPERI, Adriano Dare lanima. Storia di un infanticidio. Torino: Einaudi, 2005,

    pp. 20-44.

    91 OSTORERO, Martine Limaginaire du sabbat. dition critique des textes les plus anciens (1430c.-1440c.). Cahiers Lausannois

    dhistoire mdivale. 26 (1999), p. 320.

    92 Citado em CARO BAROJA, Julio As bruxas e o seu mundo. Lisboa: Vega, 1988, p. 95.

  • 117

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    a seguir. Descontextualizado, um tal ritual completamente absurdo e incompreensvel. Interpretado luz da exposio anterior torna-se perfeitamente claro. A crena revelada por Salisbury parece constituir um elo perdido na complexa cadeia que liga os rituais da Antiguidade ao mito moderno do Sabbath. O infanticdio simblico ritual precede o infanticdio demonaco que era, acreditava-se, no simblico mas efectivo.

    Uma tal anlise coloca a nu as fragilidades que tm as leituras demasiado simplistas do mito do Sabbath, as quais no vm nele mais do que um anti-mundo, moralmente invertido, ou simplesmente uma forma de culpabilizao da cultura popular, imposta a partir de cima, pelas elites, ao povo93. de admitir que as razes so mais profundas e a realidade mais complexa94.

    Sobre a questo da demonizao de alguns mitos existentes na cultura popular impe-se uma observao. O elemento do desmembramento, de corpos retalhados, de carne separada dos ossos em caldeires comum ao xamanismo, ao ritual dionisaco e ao imaginrio demonaco95. O mito permaneceu perfeitamente reconhecvel em algumas prticas funerrias que existiam ainda na Idade Mdia96. A considerar-se a ideia de que tal mito inicitico simboliza uma representao da dialctica e do devir, ento merece ser referida a aguda intuio de Caroline Walker Bynum, ao notar que nas vises e contos da Alta Idade Mdia, o cu o terreno do ouro, jias e cristal, ao passo que o inferno o local da digesto e excreo, processo, metamorfose e *udos97.

    93 Sobre o infanticdio como inverso dos padres morais ver LEVACK, Brian The witch-hunt in early modern Europe. London: Longman,

    1987, p. 8. Por seu turno, Mara Tausiet intepreta o infanticdio e canibalismo do Sabbath como um smbolo de esterilidade, TAUSIET,

    Mara Witchcraft as Metaphor: Infanticide and its translations in Aragn in the Sixteenth and Seventeenth Centuries in CLARK,

    Stuart (ed.) Languages of Witchcraft. Narrative, Ideology and Meaning in Early Modern Culture. Basingstoke: MacMillan, 2001,

    p. 180.

    94 As interpretaes acerca das origens do sabbath compreendem um espectro que vai desde a leitura mais simples, que afirma

    a inexistncia dessas reunies e defende que se trata de um mito completamente inventado pelas elites, at a uma leitura

    fantasiosa, que afirma a existncia efectiva dessas reunies atravs de um culto secreto que sobreviveu inclume s perseguies

    da Igreja. Para o primeiro caso ver MUCHEMBLED, Robert Satanic Myths and Cultural Reality in ANKARLOO, Bengt; HENNINGSEN,

    Gustav Early Modern European Witchcraft. Centres and Peripheries. Oxford: Clarendon Press, 1990, pp. 139-160. Para a segunda

    hiptese, MURRAY, Margaret The Witch-cult in Western Europe. Oxford: Clarendon Press, 1967, (a primeira edio de 1921).

    Numa perspectiva intermdia, a meu ver coerente, com uma profundidade e complexidade notveis, distinguiu-se Carlo Ginzburg

    (GINZBURG, Carlo Histria noturna... cit.). No caso portugus, Jos Pedro Paiva adopta tambm uma perspectiva intermdia,

    afirmando que o mito do Sabbath foi uma fuso cultural, salientando, contudo, que a cristalizao do mito ter sido uma

    criao erudita, ver PAIVA, Jos Pedro Bruxaria e superstio... cit., p. 158.

    95 Para uma histria do tema do caldeiro nas viagens ao Alm ver MORGAN, Alison Dante and the Medieval Other World. Cambridge:

    University Press, 1990, pp. 13-21. Sobre a separao da carne e dos ossos cozidos num caldeiro no universo demonaco ver a

    citao de Johannes Nider em BAILEY, Michael D. From Sorcery to Witchcraft: Clerical Conceptions of Magic in the Later Middle

    Ages. Speculum. 76 (2001), p. 979. Para o mesmo motivo da separao carne/ossos no universo xamnico, em particular para

    o os tltos da hungria ver LOSONCZY, Anne M. Le chamane-cheval et la sage femme ferre. LEthnographie. 82 (1986), p. 54.

    96 Um dos grandes mestres de retrica da Idade Mdia, Bomcompagno de Signa, descreveu este costume antigo de desmembramento

    do corpo, cozendo-o e separando a carne dos ossos. Nas fontes da poca Carolngia e Otoniana uma tal costume era designado

    como teutnico, ver PARAVICINI-BAGLIANI, Agostino Dmembrement et integrit du corps au XIIIe sicle. Terrain. 18 (1992),

    p. 4. Esta tradio comeou a ser alvo de discusses teolgicas em Paris em 1268 e foi finalmente proibido por Bonifcio VIII, na

    transio do sculo XIII para o XIV, atravs da bula Detestande feritatis, ver BROWN, Elizabeth A.R. Authority, the Family, and

    the Dead in Late Medieval France. French Historical Sudies. 16 (1990), pp. 805-6.

    97 BYNUM, Caroline Why All the Fuss about the Body? A Medievalists Perspective. Critical Inquiry. 22 (1995), p. 25.

  • 118

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    Atravs da leitura deste padro triplo (morte, desmembramento e reunicao), sob uma perspectiva da representao dialctica do devir, emerge a funo da pele. Como se disse atrs, a pele o que permanece. No est sujeita ao devir permanente e consequente decadncia que o tempo sempre traz. No seu interior, contudo, funciona a permanente turbulncia de um mundo em transformao. Ela a pelcula imortal que contm dentro a luta de contrrios, a vida e a morte, com cada uma a nascer da outra.

    Estamos face a uma fbula sobre as relaes entre o uno e o mltiplo, o perene e o perecvel. Uma roda contnua que d ao homem a exacta medida da sua pequenez, sem anular no seu esprito a intuio do numinoso e inenarrvel. Talvez tenha sido por isso que, no sculo XII, o telogo William de Conches se pronunciou sobre o estranho mito do desmembramento. Para ele, um homem cujo cristianismo est acima de qualquer suspeita, o mito dionisaco era um conto sagrado. Era-o, ainda, porque continha uma verdade acerca das relaes entre o corpo e a alma. Era-o, nalmente, porque encerrava em si a essncia da alma do mundo98. Este conceito ocupa um lugar central na cosmoviso de Plato e refere-se ao princpio vital que confere ao mundo o seu movimento e ordem naturais. Representava, como bem sintetizou Francisco Bethencourt, a aplicao da noo de organismo e de ser vivo totalidade das coisas99. O nome que foi atribudo a esse princpio vital, a essa alma do mundo, encerra em si todo um manifesto losco: designava-se involucrum ou integumentum100. As duas designaes apontam para uma mesma ideia: a ideia de revestimento, de pelcula. Plato apresenta a alma como uma pele, imutvel, contendo no seu interior a incessante luta de contrrios. Veja-se o que diz Walter Burkert acerca das relaes entre o mito do desmembramento e a noo platnica de alma do mundo ou involucrum: o bizarro mito de Dioniso, o desmembramento pelos tits foi transportado para a metafsica platnica. Um ponto de partida foi fornecido pela famosa passagem acerca da criao de uma alma do mundo a partir dos princpios de uno e dividido, misturados com um estado intermdio101. Um processo a trs tempos, poder-se-ia acrescentar.

    E esta alma de pele platonizante que aponta de forma directa a Miguel ngelo e ao seu Bartolomeu. So conhecidas as relaes do genial artista com o movimento neo-platnico de Florena. Erwin Panofsky dedicou ao assunto um ensaio includo nos seus Estudos de iconologia102. A enfatiza as ligaes do artista ao movimento losco,

    98 DRONKE, Peter Fabula. Explorations into the uses of Myth in Medieval Platonism. Leiden, Koln: Brill, 1985, p. 23.

    99 BETHENCOURT, Francisco Un univers satur de magie: LEurope Mridionale in MUCHEMBLED, Robert (dir.) Magie et sorcellerie

    en Europe du Moyen Age nous jours. Paris: Armand Colin, 1994, p. 168.

    100 Ver CHENU, M.D. Involucrum. Le Mythe selon les thologiens mdievaux. Archives dHistoire Doctrinale et Littraire du Moyen

    Age. 22 (1955) 75-79; dALVERNY, M.T. Le Cosmos symbolique do XIIe sicle. Archives dHistoire Doctrinale et Littraire do Moyen

    Age. 20 (1953), pp. 35 e ss.

    101 BURKERT, Walter Ancient Mystery Cults. Cambridge, London: Harvard University Press, 1987, p. 86.

    102 Ver o captulo El movimiento neoplatonico y Miguel Angel in PANOFSKY, Erwin Estudios sobre iconologia. Madrid: Alianza,

    1972, pp. 239-319.

  • 119

    O demnio em carne v iva: a pe le e a anatomia s imbl i ca da possesso

    salientando que entre todos os seus contemporneos, Miguel ngelo foi o nico que adoptou o neoplatonismo, no apenas em alguns dos seus aspectos... mas como uma justicao metafsica do seu prprio eu103. Mais ainda, Panofsky interpretou a permanente dinmica, a ausncia de repouso da escultura de Miguel ngelo como um re*exo da doutrina do movimento, resultante da luta de opostos, inerente doutrina de Plato104. Por outro lado, na sua poesia, repleta de concepes platnicas, Miguel ngelo refere a morte como uma mudana de pele105.

    Estes indcios parecem apontar para um facto. Todo este complexo simblico seguiu uma linha de continuidade desde tempos imemoriais. Adquirindo sempre novas roupagens, a questo losca de fundo manteve-se. Essa linha de continuidade visvel nas especulaes loscas do sculo XII, da mesma forma que o no movimento losco neo-platnico de Florena. Um grupo que Miguel ngelo conhecia bem. E a doutrina que a se seguia acabou por desempenhar um papel decisivo na sua obra.

    Esta ideia ganha uma fora acrescida se se levar em linha de conta um ltimo elemento que me parece de grande importncia. Um manuscrito *orentino com comentrios a Marciano Capela e ao j referido telogo William de Conches. O texto constitui um ensaio de interpretao do conceito de alma do mundo. Neste manuscrito, que dicilmente seria desconhecido dos crculos neoplatnicos *orentinos prximos de Miguel ngelo e possivelmente teria sido mesmo concebido por eles, pode ler-se que a alma do mundo aquilo que garante a todas as coisas o seu movimento natural. Num outro passo tambm denida como vida interior106. A vida no interior de uma pele imutvel.

    Por via da alma do mundo e das especulaes loscas que lhe esto inerentes a pesquisa voltou, assim, ao ponto de partida, pele de Bartolomeu. Impe-se, portanto, ordenar a exposio seguida at aqui resumindo e sistematizando algumas das ideias expostas.

    Antes de mais o facto de a possesso em Portugal mergulhar as suas razes num complexo simblico pr-cristo, tendo sobrevivido com alguma vitalidade at ao dealbar do sculo XX. Este complexo simblico plasmava-se na representao iconogrca de S. Bartolomeu, a qual re*ectia uma cristianizao do dualismo Apolo-Dioniso. O smbolo decisivo, que surge nas diversas variantes do mito, a pele.

    Por outro lado, ao inscrever-se num horizonte mtico e simblico que ultrapassa em larga medida as suas fronteiras geogrcas pode concluir-se que o cenrio em que decorre o fenmeno da possesso em Portugal em nada se distinguia do que se passava no resto da Europa.

    103 PANOFSKY, Erwin Estudios... cit., p. 248.

    104 PANOFSKY, Erwin Estudios... cit., pp. 245-46.

    105 HARTT, Frederick Michelangelo in Heaven. Artibus et Historiae. 13 (1992), p. 202.

    106 DRONKE, Peter Fabulacit., p. 110.

  • 120

    A N T N I O V T O R R I B E I R O

    A pele surge como o garante ltimo da identidade, revestindo a totalidade do eu e delimitando-lhe as fronteiras. Assim sendo, compreende-se que se confunda com a identidade do indivduo. Sendo a possesso um fenmeno de alteridade por excelncia, compreende-se assim a funo simblica da pele. Assumir a identidade do outro vestir-lhe a pele.

    Sendo a essncia mais ntima do indivduo, a pele tambm utilizada como smbolo para a alma. Numa perspectiva platnica ela torna-se o arqutipo do ser, o seu modelo que permanece inalterado. No seu interior opera-se o processo dialctico de eterna transformao.

    Este complexo simblico, ao mesmo tempo que permanecia ligado a conceitos metafsicos, dos quais o mais importante era a noo platnica de alma do mundo, era celebrado ritualmente atravs de cerimnias que se foram progressivamente deses-truturando sem desaparecer completamente. Alguns desses resqucios cristalizaram-se em crenas e narrativas populares aparentemente absurdas. Tais crenas revelaram uma resistncia e uma capacidade de sobreviver no longo prazo impressionante. Algumas tero sido demonizadas e utilizadas como arma de disciplinamento das populaes.

    Por outro lad