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SISTEMATIZAÇÃO CRÍTICA DA PRODUÇÃO ACADÊMICA Volume organizado para concurso de Títulos e Provas para obtenção do título de Livre-Docente junto ao Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. - Volume 01. Área de conhecimento de Planejamento Urbano (GDPL) Edital ATAAc 067/2012 Janeiro de 2013. João Sette Whitaker Ferreira

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  • SISTEMATIZAO CRTICA DA PRODUO ACADMICAVolume organizado para concurso de Ttulos e Provaspara obteno do ttulo de Livre-Docente junto aoDepartamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. - Volume 01.

    rea de conhecimento de Planejamento Urbano (GDPL)Edital ATAAc 067/2012

    Janeiro de 2013.

    Joo Sette Whitaker Ferreira

  • SISTEMATIZAO CRTICA DA PRODUO ACADMICA

    Joo Sette Whitaker Ferreira

    Volume organizado para Concurso de Ttulos e Provas para obteno do ttulo de Livre-Docente junto ao Departamento de Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de So Paulo. - Vol. 01.

    rea de Conhecimento de Planejamento Urbano (GDPL)

    Edital ATAAc 067/2012

    Janeiro de 2013.

  • 4Ao meu querido amigo Jorge Oseki,sempre quem mais me incentivou, dedico este trabalho, com muita saudade.

  • 5Agradecimentos.

    Todo trabalho acadmico s se realiza com a colaborao, inestimvel, de colegas e amigos que, em algum momento, compartilharam do esforo para sua realizao, ou mesmo ajudaram em aspectos imprescindveis para sua finalizao.

    Os textos que compem este volume, por retratarem todo um perodo da minha vida acadmica, receberam contribuies ou resultaram do intercmbio com um nmero inestimvel de pessoas amigas, alunos, professores, que instigam permanentemente nossa produo intelectual. Suas contribuies esto sem dvida espalhadas em cada pedao dos textos aqui apresentados. Destaco o papel especial de Ermnia Maricato, pela amizade, o apoio e o constante exemplo que para mim.

    Devo sempre um agradecimento especial aos meus colegas do LabHab, professores e equipe de pesquisadores, dos estagirios aos ps-doutorandos, pela reflexo comum e pelo engajamento acadmico por uma causa, a de cidades mais democrticas e justas. Agradeo Maria Lcia Refinetti, pelo apoio e amizade.

    Para a realizao desta Livre-Docncia, agradeo especialmente Daniele Queiroz, sem quem o trabalho e a infindvel compilao de documentos simplesmente no teriam existido, e Karina Leito, colega incansvel e companheira de todas as horas na conduo do LabHab. Tambm agradeo a todos os funcionrios da FAUUSP, geis e solidrios na busca de documentaes faltantes, e em especial ao Tadeu e funcionrios do LPG, pelo empenho em imprimir estes volumes em tempo.

    Por fim, claro, s posso agradecer muito Luciana e Helena, que sabem compreender a ausncia no dia-a-dia que trabalhos como este significam.

  • 6ndice.

    1.1. INTRODUO: Impasses e desafios do planejamento urbano no contexto do subdesenvolvimento.

    1.2. A FORMAO URBANA NO SUBDESENVOLVIMENTO.

    1.2.1. A cidade para poucos: breve histria da propriedade urbana no Brasil

    Publicado em Anais do Simpsio Interfaces das representaes urbanas em tempos de globalizao, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005.

    1.2.2. Desafios para a construo de uma teoria crtica a partir da periferia

    Publicado nos Anais do Colquio Internacional: os desafios urbanos no Brasil e na frica do Sul - Sesso Temtica 5, IPUUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. Atualizado nesta edio.

    1.2.3. So Paulo: cidade da intolerncia, ou o urbanismo brasileira.

    Publicado na Revista do IEA Estudos Avanados Dossi So Paulo - vol.25 no.71 So Paulo jan./abr. 2011

    1.3. A QUESTO DA TERRA.

    1.3.1. Onde o arcaico ainda d as cartas: notas sobre a questo fundiria no Brasil no incio do sc.XXI - Com Ermnia Maricato e Karina Oliveira Leito.

    Trecho da introduo do livro O n da terra (ttulo provisrio) - MARICATO, LEITO E FERREIRA (Orgs.), LabHab-FAUUSP, no prelo.

    1.3.2. Notas sobre a viso marxista da produo do espao urbano e a questo da renda da terra.

    Texto produzido para a disciplina AUP-5703 Desenho do Espao Urbano, do Programa de Ps-Graduao da FAUUSP, 2012.

    1.4. SOBRE OS IMPASSES DO ESTATUTO DA CIDADE E A IMPLEMENTAO DE SEUS INSTRUMENTOS: O caso das ZEIS e das Operaes Urbanas Consorciadas.

    1.4.1. A efetividade da Implementao de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliao inicial. com Daniela Motisuke.

    Captulo do livro: BUENO, Laura Machado de Mello e CYMBALISTA, Renato (orgs); Planos diretores municipais: novos conceitos de planejamento, So Paulo: Annablume, 2007.

    1.4.2. OPERAO URBANA CONSORCIADA: diversificao urbanstica participativa ou aprofundamento da desigualde? - Com Erminia Maricato.

    Captulo do livro OSORIO, Letcia Marques. Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre/So Paulo: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.

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  • 71.5. SOBRE AS REAS CENTRAIS DAS CIDADES BRASILEIRAS.

    1.5.1. Prefcio do livro A batalha pelo centro de So Paulo: Santa Ifignia, concesso urbanstica e projeto nova luz. - de Felipe Francisco de Souza, So Paulo: Paulos Editora, 2011.

    1.6. OS IMPASSES DA POLTICA URBANA: GESTES DEMOCRTICAS E PARTICIPATIVAS NO CONTEXTO DA GLOBALIZAO.

    1.6.1. Gesto democrtica e participativa: um caminho para cidades socialmente justas?

    Publicado na Revista Democracia Viva 18 Rio de Janeiro: Ibase, 2003.

    1.6.2. Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratizao das cidades no Brasil e os riscos de um urbanismo s avessas.

    Captulo de livro: Oliveira, Francisco, Braga, Ruy, Rizek, Cibele. Hegemonia as avessas. So Paulo: Boitempo Editorial, 2010.

    1.7. SOBRE A PROBLEMTICA HABITACIONAL.

    1.7.1. Que cidade queremos para as geraes futuras? O trgico quadro urbano no Brasil do sculo XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentveis.

    Captulo 1 do livro Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil Urbano, LabHab/FUPAM, 2012.

    1.8. O PAPEL DO ARQUITETO-URBANISTA NO ATUAL CONTEXTO BRASILEIRO.

    1.8.1. Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profisso?

    Publicado no Portal Vitruvius - Arquitextos 133.07. Ano 12, julho de 2011.

    1.9. SOBRE A QUESTO AMBIENTAL.

    1.9.1. A Formulao de uma Nova Matriz Urbana no Brasil, Baseada na Justia Socioambiental. - Com Luciana Ferrara.

    Artigo produzido para o Ministrio das Cidades, Ministrio do Meio Ambiente e Onu- Habitat para Dilogos da Rio+20 e Frum Urbano Mundial de Npoles, verso final dez. de 2012.

    1.10. BIBLIOGRAFIA.

    *Desenho de capa do autor.

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  • 8INTRODUO.

    Impasses e desafios do planejamento urbano no contexto do subdesenvolvimento.

    Certa vez, em meados da dcada de dois mil, uma equipe de estudantes de uma das disciplinas de Planejamento Urbano da FAUUSP apresentou seu trabalho final da seguinte forma: resolvemos no fazer nada. Apenas propomos uma reflexo, a ser feita agora, nesta apresentao. No se tratava de alunos preguiosos ou desinteressados, pelo contrrio, era uma equipe que havia trabalhado bem todo o semestre. Tinha discutido muito, em torno de uma proposta de interveno urbana em alguma regio de So Paulo.

    A concluso a que chegaram foi explicada assim: de tanto trabalhar, discutir, ler, propor alternativas, chegamos concluso que qualquer coisa que propusssemos no iria adiantar nada. No alteraria o status quo, no seria capaz de mudar os problemas estruturais da cidade. Seria uma interveno cosmtica. H questes jurdicas que no teramos como resolver neste trabalho, impasses polticos, conflitos socioeconmicos, e achamos que o poder de transformao do planejamento urbano e da nossa interveno seria nulo. Ento, melhor no fazer nada, mas discutir essa constatao.

    A equipe tirou tima nota. Afinal, professores sabem que, em alguns casos, o que mais importa pedagogicamente o processo, o empenho, a evoluo, mais do que o resultado em si. Eles tinham, de fato, trabalhado muito. Embasavam suas afirmaes. E, no fundo, no estavam de todo sem razo. Talvez tivessem mesmo chegado a um nvel de amadurecimento que me permitiu pensar, com certa ironia: acho que eles entenderam a verdadeira complexidade do planejamento urbano.

    Ocorre que a profisso do planejamento urbano no Brasil est em crise, e o urbanismo como campo de estudos, cada vez mais complexo. Neste comeo de sculo, no h dvidas que o Brasil passa por um momento de inflexo. Resta saber para onde. Como j colocou Caio Prado Jr (apud Sampaio Jr., 2001), talvez a maior marca do subdesenvolvimento seja do pas viver sempre o dilema de estar entre a Nao e a Barbrie. E resta saber, no nosso caso, como se coloca nesse contexto esta disciplina que pretende organizar e direcionar o crescimento das cidades.

    Pois o caminho trilhado desde a redemocratizao apresenta-se, visto com algum recuo, bastante antagnico. Por um lado, certo que alcanamos avanos considerveis, tanto na luta pela democratizao das cidades quanto na consolidao de instrumentos que permitam ao poder pblico exercer o papel central desse processo. A escola humanista lebretiana cuja influncia na FAUUSP inegvel j havia dado as bases para uma compreenso das cidades pela tica da justia social e da democratizao do espao urbanizado, e mesmo durante o regime militar, no obstante o autoritarismo, a tecnocracia e a burocratizao, houve avanos no uso de tcnicas e instrumentos de planejamento que hoje so aproveitados. A mobilizao da sociedade civil na qual se incluam os urbanistas, com destaque levou aprovao da emenda popular pela Reforma Urbana na Constituinte de 88, e dos artigos referentes aos instrumentos urbansticos. Conceitos como a funo social da propriedade foram garantidos na lei maior, assim como a descentralizao, com a municipalizao da prerrogativa da gesto do territrio, e as aparncias indicavam uma retomada dos rumos para o planejamento urbano e a arquitetura que haviam sido apontados, mais de vinte anos antes, no Seminrio Nacional de Habitao e Reforma Urbana, no Hotel Quitandinha.

    Entretanto, os entraves no caminho que se retomava iriam ficar evidentes nos longos treze anos necessrios regulamentao dos artigos constitucionais e aprovao final do Estatuto da Cidade, em 2001. Porm, aps vinte anos de ditadura, seria querer demais que as coisas fossem fceis. Tal dificuldade era inerente ao processo poltico e no dizia forosamente que o processo de democratizao da questo urbana estivesse em risco.

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  • 9Ainda mais porque, nesse mesmo perodo, a partir dos anos 90, consolidou-se o processo democrtico e a ascenso ao Poder Municipal de partidos de esquerda que capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores , de repente, colocavam novamente em pauta o sonho de se fazer poltica urbana democrtica e socialmente transformadora no Brasil. De Norte a Sul, em Fortaleza, Recife, em muitas cidades da Regio Metropolitana de So Paulo, assim como na prpria capital, em Curitiba, Porto Alegre e tantas outras cidades, prefeitos e suas equipes formadas por muitos arquitetos-urbanistas tentavam por em prtica os novos instrumentos de que dispunham para promover o que se convencionou chamar, desde ento, a Reforma Urbana: zoneamentos especiais para urbanizao de favelas, para a regularizao fundiria das reas informais ocupadas, obrigatoriedade de implementao de mecanismos de participao, etc.

    Ao mesmo tempo, no mbito do controle do uso e ocupao do solo de toda a cidade, novas tentativas de planejamento eram feitas, dentre as quais destacou-se o Plano Diretor de So Paulo, de 1991. Instrumentos de zoneamento inspirados na escola francesa, como o Direito de Preempo, o IPTU Progressivo, a limitao de coeficientes construtivos e a Outorga Onerosa, foram aplicados, numa perspectiva de regulao pblica da produo do espao urbano. Mas, tambm nesse ponto, apesar do otimismo que envolvia tais experincias, a aplicao de ferramentas de regulao pblica diretamente inspirados de uma realidade completamente diferente a dos Estados de Bem-Estar Social europeus , se fosse passar pelo crivo de uma anlise mais detalhada, indicaria uma srie de entraves previsveis.

    Resumidamente, trata-se do fato de que, no Brasil, nunca tivemos essa forma de Estado, submetidos que fomos aos padres do patrimonialismo e de um Estado de elites, como mostrou Florestan Fernandes (e no mbito urbano e da FAU, Csaba Dak). Na Europa do Ps-Guerra ou nos EUA do New Deal, a regulao estatal, em todos os campos, inclusive no da ocupao do territrio, era parte da soluo keynesiana em voga para garantir a sobrevivncia do sistema capitalista de produo aps a crise de subconsumo dos anos 1930. Tratava-se de implantar uma economia de consumo de massa, para a qual era imprescindvel a regulao pblica para garantir a produtividade, mas sobretudo os padres de consumo necessrios. O bem-estar social passava tambm pela garantia da casa, e os esforos dos arquitetos e urbanistas do movimento moderno se encaixavam nessa lgica. Em suma, as economias do bem-estar social eram sistemas includentes, embora estruturados em torno da desigualdade e da luta de classes, nos quais a incorporao da maior parte da sociedade no mercado de consumo, em diferentes nveis de riqueza, era parte da receita (mantidas as taxas de desemprego e de pobreza admitidas pela teoria econmica). A forte regulao estatal incidia sobre os termos das relaes de trabalho, sobre a oferta de educao e sade, mas tambm para garantir uma mnima homogeneidade na estrutura urbana, para a boa fluidez de todo o sistema econmico e social.

    No que no tenhamos, aqui, sentido a presso do keynesianismo, que no ps-guerra era, inclusive, a ideologia aceita e difundida pelos organismos multilaterais. Porm, o que tivemos aqui foi um keynesianismo peculiar, como mostraram muitos autores, dentre eles Oliveira (2003) ou Mantega (1997)1, capaz de utilizar o intervencionismo estatal em geral de forma autoritria no para o estmulo formao de uma sociedade de consumo de massa, mas para fortalecer um modelo econmico de concentrao da renda baseado na desigualdade, em que se buscava o baixo custo de reproduo da fora de trabalho, que no precisava constituir-se em mercado de consumo, por meio da chamada industrializao com baixos salrios (Schwarz e, no mbito do urbano e da FAU, Maricato).

    esta forma peculiar de desenvolvimento, em que se combinam os fatores do moderno e do atraso, o primeiro alimentando-se do segundo, e caracterizando o chamado subdesenvolvimentismo2, alis, que explica grande parte da situao antagnica em que se encontram as cidades brasileiras hoje, vivendo importante salto de modernizao, por sobre uma espantosa misria social. Esta lgica sustentou o que

    1 Oliveira, F. (2003) sobre o keynesianismo avant la lettre e a queima do Caf, entre outros casos, e MANTEGA, G. (1997), sobre o modelo econmico do desenvolvimentismo autoritrio do regime militar.

    2 Ver sobre isso a escola sociolgica de interpretao da formao brasileira, a saber: Caio Prado Jr., Celso Furtado, Florestan Fernandes, Ruy Mauro Marini, Francisco de Oliveira, Maria da Conceio Tavares, Roberto Scharz, Jos Luis Fiori, entre outros.

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    chamo de urbanizao desigual, pela qual, invariavelmente, os recursos pblicos para a estruturao das cidades foram sistematicamente canalizados para os setores privilegiados ocupados pelas elites dominantes, como mostrou Flvio Villaa em seu j clssico trabalho (2000). Mais adiante, comentarei como a compreenso do subdesenvolvimento fez e faz parte da minha interpretao conceitual do urbano, e apresentada neste trabalho, nos artigos iniciais desta compilao3.

    Voltando histria recente do planejamento urbano e implementao, pelas prefeituras, dos instrumentos urbansticos, a questo era: seria possvel esperar efeitos de muita eficcia na regulao da produo do espao urbano, de instrumentos pensados em um contexto econmico da socialdemocracia europeia, com um Estado forte e plenamente portador do sentido do pblico como o bem de todos, em uma realidade de um Estado e uma sociedade patrimonialistas, que historicamente imiscuem o pblico com o privado e transformam o Estado em instrumento de proteo dos privilgios dos setores dominantes? Esta discusso foi colocada em um dois artigos apresentados nesta sistematizao crtica da minha produo4.

    Talvez esteja ai uma das explicaes para a grande dificuldade que as mesmas prefeituras acima citadas passaram a ter, com o passar do tempo, para promover de fato transformaes estruturais nos processo de urbanizao desigual nessas cidades. Os avanos existiram, mas foram at certo ponto frustrantes, embora tenham permitido a consolidao de processos de gesto mais democrticos, e a paulatina incorporao da temtica da excluso socioespacial e da precariedade habitacional na agenda poltica brasileira. Tal desafio tornava-se ainda mais difcil porque, a partir dos anos 90, o pas foi tomado pela onda de expanso neoliberal da chamada globalizao, a partir do receiturio do Consenso de Washington, cujos efeitos desastrosos na economia so hoje bastante conhecidos: forte desregulao e enfraquecimento do papel do Estado, privatizaes e abertura do mercado interno para o capital internacional, desnacionalizao da indstria, abandono das polticas pblicas estruturais em favor de polticas assistencialistas e de remediao, entre outros.

    No campo do urbanismo, receitas prontas de grandes projetos de mercado apresentavam-se aos prefeitos como uma tbua de salvao frente s dificuldades acima citadas. Sustentadas pelo grande capital, tinham roupagem de modernidade e efeito visual inestimvel para fins eleitorais, mas continuavam ainda mais concentradoras dos investimentos pblicos nos setores j privilegiados das cidades, exacerbando a excluso socioespacial. Ironicamente, em mais uma faceta das contradies tpicas da modernizao em uma sociedade que ainda se alimenta do atraso, um dos instrumentos do Estatuto da Cidade, o das Operaes Urbanas Consorciadas capciosamente inserido no Estatuto justamente pelos setores conservadores do mercado imobilirio que permitiu alavancar boa parte desses grandes projetos urbansticos. Sobre esse processo, escrevi captulo de livro organizado por Francisco de Oliveira, Cibele Risek e Ruy Braga, que apresento mais adiante neste trabalho5.

    No obstante certa tortuosidade na aplicao de polticas urbanas democrticas nas cidades, os avanos em relao ao perodo do autoritarismo no cessaram. A criao do Ministrio das Cidades, em 2002, e as aes decorrentes, como a implantao do Conselho das Cidades (com participao dos movimentos populares), a criao do Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social e a estruturao de uma poltica de financiamento envolvendo municpios e estados, significaram saltos importantes na luta pela reforma urbana.

    Alm disso, um dos resultados mais importantes desse processo, e que se relaciona diretamente aos cursos de Arquitetura e Urbanismo e ao ensino do planejamento urbano, o de que pouco a

    3 A cidade para poucos: breve histria da propriedade urbana no Brasil e Desafios para a construo de uma teoria crtica a partir da perif-eria, neste volume.

    4 Ver A efetividade da Implementao de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliao inicial, neste volume.

    5 Ver Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratizao das cidades no Brasil e os riscos de um urbanismo s avessas, neste volume.

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    pouco, em decorrncia destas transformaes, foi-se desfazendo a ciso extremamente perniciosa que havia ocorrido entre o planejamento urbano e a chamada questo habitacional. De fato, talvez como decorrncia dos anos de autoritarismo, tornara-se mais interessante politicamente se, de forma tecnocrtica, se associasse o planejamento urbano mais a regras de uso e ocupao do solo do que ao conjunto das dinmicas sociais e econmicas que compem a produo do espao urbano. Tratar do dficit habitacional havia se tornado uma espcie de disciplina parte, geralmente abarcada por setores de esquerda na academia, afastados da disciplina do planejamento, subliminarmente alimentando a noo de que este problema pudesse ser independente da questo urbana mais ampla. Um fenmeno curioso no mbito da arquitetura e do urbanismo, cujas disciplinas curiosamente nunca deixaram de ser mantidas unidas no currculo universitrio, e que ia de encontro prpria tradio da to influente escola modernista europeia, que em sua origem teve, como sabemos, a questo da moradia popular no cerne de suas discusses.De certa forma, manter o planejamento como a ao de regulao da cidade e a arquitetura como a arte de projetar edificaes para os mais ricos permitia que se tratasse apenas da cidade que funcionava e que todos viam, e no da no-cidade de milhares de excludos que o modelo econmico fazia crescer a cada ano. As periferias, no planejadas e sem arquitetura, tornavam-se a regra, embora compusessem uma espcie de cidade invisvel, um termo frequentemente usado por Ermnia Maricato.

    Um dos exemplos mais cristalinos desse processo de separao entre planejamento urbano e a problemtica habitacional talvez esteja no plano de zoneamento do municpio de So Paulo, de 1972. Neste, ficou clara a enorme diferena entre uma hipertrofiada regulamentao para a cidade formal, que cabia aproximadamente no chamado centro expandido, aquela em que estavam os investimentos em infraestrutura e equipamentos, e que foi dividida em um sem-nmero de zonas precisamente detalhadas, e o abandono regulatrio do restante. Em linhas gerais, para o resto da cidade, adotou-se uma nica categoria de zoneamento (as Z2), imprecisas e pouco restringentes, que permitiram o crescimento sem controle das periferias. Flvio Villaa, em vrios de seus textos, trabalha a maneira como o termo a cidade se aplica, no senso comum alimentado pelo aparato ideolgico da grande mdia, apenas cidade formal, em uma generalizao do particular que permite esquecer-se da cidade que no interessa aos setores dominantes.

    Pois bem, o avano das discusses em torno da Reforma Urbana e da democratizao das cidades, permitiu que essa ruptura fosse pouco a pouco desfeita. claro que ajudou para isso o fato de que, em certo momento, no se pde mais tapar o sol com a peneira. A desigualdade urbana gerada pelo modelo de urbanizao desigual tornou-se grande demais para ser invisvel. Cerca de 40% da populao das grandes cidades vive hoje na informalidade, em algumas das modalidades resultantes da urbanizao com baixos salrios (Maricato, 1997), em favelas, loteamentos irregulares ou clandestinos, cortios, ou mesmo nas ruas. Isso sem falar da parcela importante que vive dentro da legalidade, mas ainda assim em bairros e casas bastante precrios. Entender a cidade sem enxergar tal contingente populacional, enquanto os noticirios so regularmente invadidos pelas tragdias enchentes, deslizamentos, incndios que se abatem invariavelmente sobre ele tornou-se um exerccio de cinismo por demais inaceitvel. Politicamente, a questo habitacional se reinseria na agenda eleitoral, e com isso tornava-se evidente, inclusive para as novas geraes de estudantes, que a questo urbana se referia a um todo, no qual o planejamento da cidade deveria incorporar, talvez at como seu problema central, a problemtica da moradia. De certa forma, a obrigatoriedade de realizao de Planos Diretores, e sua vinculao aplicao dos instrumentos do Estatuto da Cidade aspectos centrais dos avanos de que falamos foram elementos importantes nesse processo transformador. Mais do que isso, hoje trabalha-se com a obrigatoriedade, para a obteno de recursos federais, da realizao de Planos Locais de Habitao de Interesse Social, especificamente voltados, dentro da poltica de planejamento dos municpios, para a questo do dficit habitacional.

    Assim, no que tange s favelas, a ideia da erradicao total e expulso sistemtica, que norteava as aes de planejamento da cidade que valia at quase o fim do sculo passado (e ainda ocorre em alguns municpios, infelizmente) est paulatinamente dando lugar polticas de urbanizao e integrao

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    cidade, processo para o qual o conhecido plano Favela Bairro, realizado no Rio de Janeiro a partir de 1994, teve papel importante. Esforos para uma regularizao fundiria mais ampla passaram a fazer parte da agenda poltica dos municpios, equipamentos de educao e sade chegaram a ser implantados em nmero mais significativo, por exemplo em So Paulo, em reas pobres de periferia. Assim, o Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, cujos instrumentos deveriam dar aos municpios condies de adquirir terras urbanizadas subutilizadas para destin-las a fins sociais, poderia ser visto como desencadeador de um processo efetivamente em curso para a reverso da injustia urbana no Brasil.

    Porm, ao mesmo tempo, e reforando o antagonismo de que falamos aqui, hoje h de se constatar que o mesmo Estatuto da Cidade foi, at agora, de quase nenhuma efetividade. O desequilbrio urbano brasileiro continua inalterado, o dficit habitacional indecentemente alto, a precariedade urbana continua matando muitos a cada chuva. As cidades mdias e grandes vivem verdadeiro colapso estrutural, no suportando mais a opo reiterada por polticas elitizantes, e o caso da mobilidade urbana e da opo sistemtica pelo incentivo ao automvel em detrimento do transporte pblico de massa, que as jogas em um total imobilismo, o exemplo mais gritante. Embora o Estatuto da Cidade tenha dez anos, um instrumento como o IPTU Progressivo, que permitiria combater os lotes vazios nas reas centrais, sequer foi regulamentado na maior cidade do pas. No h no Brasil, pode-se dizer, nenhum municpio que tenha de fato aplicado a totalidade dos instrumentos do Estatuto da Cidade, de forma sistmica, e assim adotado uma postura poltica de enfrentamento real da desigualdade socioespacial.

    A questo , de fato, poltica: adotar tal postura significaria encarar de frente os poderosos interesses que norteiam a organizao social e territorial no Brasil, a saber, a defesa da propriedade e a busca do lucro. Significaria enfrentar efetivamente aquilo que Ermnia Maricato denominou o n da produo do espao: a disputa pela propriedade da terra, que nos acompanha desde a colnia, tratada tambm em um captulo deste trabalho6.

    Embora a aplicao dispersa de alguns instrumentos do Estatuto em algumas cidades possa ter servido como elemento remediador da tragdia urbana, no temos, ainda, motivos para comemoraes. Em que pese a luta dos movimentos populares e demais grupos organizados da sociedade civil, os avanos alcanados parecem no ser suficientes para gerar as profundas transformaes necessrias para mudar a ordem estamental que gera a desigualdade urbana e a cidade da intolerncia.

    Pior do que isso, o abandono a que foram deixadas as regies mais pobres de nossa cidade no significa que, do outro lado da balana, as reas mais privilegiadas se beneficiem, quanto a elas, de uma planejamento urbano de melhor qualidade. Em outras palavras, e como comentado em alguns dos textos apresentados neste trabalho7, a uma m urbanizao dos assentamentos precrios, no se contrape uma boa urbanizao nos bairros mais ricos. O modelo urbano brasileiro da cidade que funciona se baseia em prticas ambientalmente destrutivas, e por isso no pode servir de modelo. Em todas as grandes metrpoles brasileiras, impera uma liberalidade impressionante para com o mercado imobilirio, que funciona sem regulao efetiva. A verticalizao desordenada, a produo intensiva de shopping centers e outros centros de negcios, de empreendimentos habitacionais fortificados que renegam a rua e a cidade, tudo sob o nico critrio da lucratividade, so a marca das nossas cidades. Impermeabiliza-se o solo, destroem-se os crregos, engolem-se os bairros assobradados, configurando um modelo de urbanizao nas grandes cidades que, para aumentar a escala do desastre, seguido cegamente em cidades mdias e pequenas, que ainda teriam todas as condies para promover uma urbanizao sob novos paradigmas. Neste cenrio de absoluta hegemonia da iniciativa privada, grandes eventos tornaram-se justificativa inquestionvel de revitalizao urbana, e hoje muitas das nossas cidades no so mais planejadas pelos seus governantes, mas pelos altos mandatrios de

    6 Ver Onde o arcaico ainda d as cartas: notas sobre a questo fundiria no Brasil no incio do sc. XXI e Notas sobre a viso marxista da produo do espao urbano e a questo da renda da terra, neste volume.

    7 Ver A Formulao de uma Nova Matriz Urbana no Brasil, Baseada na Justia Socioambiental e Que cidade queremos para as geraes futuras? O trgico quadro urbano no Brasil do sculo XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentveis, neste volume.

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    entidades esportivas internacionais, que alis ningum no Brasil elegeu. Por essa razo, o planejamento urbano brasileiro hoje deve justificar-se por permitir que cidades mdias gastem bilhes de Reais para a construo de estdios para a Copa do Mundo de 2016 (e, claro, junto a eles, vistosos bairros de negcios) sem que tenham sequer time jogando na primeira diviso do esporte nacional.

    A poltica urbana hoje parece ser resultado da soma de obras descomprometidas com o processo de planejamento. Como j mostrou Flavio Villaa, os planos cumprem o papel do discurso mas no orientam nem regulam os investimentos. Os fatores que os regulam so os interesses do mercado imobilirio, de empreiteiras, a prioridade s obras virias ou de grande visibilidade eleitoral. A prioridade a polticas pblicas arcaicas e concentradoras da renda, as grandes obras pouco urgentes, o descaso com questes bsicas como o saneamento e a informalidade habitacional, ainda so a marca da grande maioria das polticas municipais. Sintomaticamente, dentro da lgica da modernizao conservadora, a capital brasileira que mais v aumentar seus problemas urbanos, como a insegurana, a informalidade e a segregao espacial, Vitria ES, justamente aquela que mais se beneficia da globalizao econmica, sendo a principal de sada da produo do agrobusiness e da minerao brasileiros.

    Por outro lado, no que diz respeito ao enfrentamento do dficit habitacional, o momento tambm de antagonismos. O crescimento econmico interno associado a uma maior preocupao poltica com a questo da moradia para os mais pobres levaram a uma soluo ambgua: uma poltica de produo em massa de moradias, apoiada no mercado da construo civil, como forma, tambm, de promover uma ao anticclica, em relao crise econmica externa. Dessa opo decorreu um aquecimento sem precedentes do setor da construo para uma faixa de renda mdia e mdia baixa, que no era at ento objeto de interesse do mercado. Tambm permitiu estabelecer uma poltica de subsdios indita para financiar a moradia para as faixas de renda muito baixas. Porm, ao mesmo tempo, caractersticas do patrimonialismo, como a permissividade para uma ao demasiadamente livre e desregulada do mercado da construo, ou como a falta de controle sobre o fundirio, (que gerou um processo especulativo e uma alta de preos consequente), associados a uma autonomia as vezes talvez ampla demais dos municpios na gesto do territrio, produziram resultados ambguos: ao mesmo tempo que se produziram mais de um milho de unidades em poucos anos, em um ritmo mais compatvel com o dficit a suprir, surgiram conjuntos distantes da cidade, com infraestrutura e equipamentos insuficientes, com qualidade urbanstica e arquitetnica geralmente sofrveis, constituindo um passivo ambiental e urbano que poder cobrar seu preo em algumas dcadas. No Chile e, sobretudo, no Mxico, polticas de produo em massa baseadas em absoluta liberalidade do mercado da construo levaram a problemas pelos mesmos motivos, hoje conhecidos como a problemtica dos con techo no Chile, e vista em empreendimentos que chegam a 165 mil unidades habitacionais (gerando cidades de 400 mil habitantes!), distantes de mais de 70 km do centro, como em Zumpango, no Mxico.

    Hoje o pas vive um momento de transio. Florestan Fernandes (1968) defendia que o Brasil d recorrentemente saltos modernizantes que nos levam a um novo patamar econmico sem que, entretanto, tenhamos superado com isso os desequilbrios estruturais da etapa anterior. Porm, criam-se a cada salto mitos da modernizao, que servem para legitim-los, mesmo se, para ocorrer, tais avanos tenham que alimentar-se do aprofundamento do atraso e da misria. Porm, o salto atual mais complexo, pois pode indicar que haja, de fato, o esgotamento do modelo de modernizao conservadora tal qual ocorreu at hoje. Em outras palavras, que no mais possvel, no contexto de uma economia globalizada, sustentar o crescimento econmico sem integrar de maneira mais intensa as parcelas populacionais tradicionalmente excludas. Do Plano de Metas ao milagre econmico, a sustentao do crescimento econmico se deu baseada na exacerbao das desigualdades e da concentrao da renda, fato que poderia estar se confrontando, hoje, com a aparentemente necessria expanso da classe mdia e do mercado consumidor. Estaramos ento diante do que Dek (1991) chama de passagem para o estgio intensivo de desenvolvimento, uma perspectiva interessante e indita pois, se for verdadeira, significaria um conflito real em relao ao modelo subdesenvolvimentista.

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    Isto significa, do ponto de vista poltico, um confronto entre uma tendncia desenvolvimentista em nova roupagem que de certa forma o Lulismo e agora a gesto Dilma Roussef, tentam vestir e os traos mais tradicionais e arcaicos de uma sociedade que no tolera a pobreza (ou melhor, alimenta-se dela), e menos ainda os ventos eventuais de uma real democratizao econmica (e social). O debate est colocado: no so raras as divergncias entre importantes escolas econmicas nacionais sobre as bases do processo de crescimento econmico vivido no Brasil na ltima dcada. A polmica gira em torno do questionamento sobre a real dimenso desse crescimento, e sobre se seus impactos so de fato sustentadores de mudanas de nossas estruturas sociais ou apenas reforam a dinmica predatria com ares de modernizao.

    Diante de tal cenrio, as indagaes dos meus estudantes, que comentei ao iniciar este texto, no soam mais to fantasiosas. Como um estudante de urbanismo que se forma hoje no Brasil deve e pode encarar o papel da sua profisso, frente a antagonismos to complexos como os analisados neste texto? Para piorar, deve-se observar que a fora do mercado e o fetichismo dos valores da realizao capitalista levam os arquitetos recm-formados a querer trilhar, com mais facilidade, os sedutores caminhos da arquitetura de mercado, mais do que o assustador mas to instigante enfrentamento da questo da excluso urbana. Porm, a verdade que a profisso de urbanista no tem mais como se furtar ao desafio de tentar resolver nossa indecente desigualdade urbana. por isso que escrevi, em 2010, artigo destinado aos jovens arquitetos e urbanistas, em que justamente apontava para os desafios que a eles se apresentavam face realidade urbana brasileira atual, para alm do festejado mundo daqueles escritrios de arquitetura que atuam no restrito mercado formal da construo civil. Esse artigo tambm parte deste trabalho8.

    * * *

    O presente trabalho, dentro das exigncias para a obteno do ttulo de Livre Docente da Universidade de So Paulo, apresenta uma sistematizao da minha reflexo acadmica recente, cujo fio condutor apresentei, de forma resumida, na introduo acima.

    importante destacar que se trata da produo posterior minha Tese de Doutorado, que foi publicada em 2007 sob o ttulo O mito da Cidade-Global: o papel da ideologia na produo do espao urbano (Vozes, 2007). Com uma desconstruo da teoria das cidades-globais, em especial aquela difundida por autores como Borja, Castells e Sassen, a partir do festejado modelo urbano de Barcelona 92, mostrei como o conceito no se aplicava, se tomados com rigor os parmetros caractersticos da cidade-global apresentados por esses autores, cidade de So Paulo. Mostrei como, em compensao, montava-se um discurso ideolgico que defendia a necessidade de adoo de certas polticas pblicas urbanas e sobretudo a destinao de recursos pblicos importantes para garantir o status de cidade global capital paulista. Um rtulo que, na verdade, de nada alterava as condies de subdesenvolvimento da cidade, a forte desigualdade social e a intensa segregao econmica-espacial, mas propiciava vantagens e lucros fabulosos, custa de investimentos pblicos, aos setores econmicos dominantes na produo do espao, tradicionais e bastante arcaicos, capitaneados pelo chamado mercado imobilirio.

    As reflexes aqui sistematizadas partem, portanto, desse ponto, e j consideram consolidada a crtica importao alavancada por forte processo ideolgico do modelo do planejamento estratgico, com todas suas consequncias. A maioria dos textos apresentados recente, e fazem parte de artigos ou captulos de livros, alguns publicados, outros ainda inditos. Em alguns casos, contei com a colaborao de orientandos ou pesquisadores do LabHab, na compilao de dados, na redao de assuntos mais especficos dos textos, e nesses casos eles aparecem como co-autores. No caso dos textos escritos com Ermnia Maricato e Karina Leito, trata-se de uma redao compartilhada.

    8 Ver Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profisso?, neste volume.

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    Um dos aspectos interessantes, ao se observar essa produo com algum distanciamento, o fato de que ns, urbanistas, somos levados a refletir uma gama bastante variada de assuntos, todos eles, evidentemente, inerentes ao processo de produo do espao. Por isso, uma das intenes desta sistematizao foi a de mostrar tal abrangncia, organizando os textos no por ordem cronolgica, mas por assuntos.

    O primeiro deles diz respeito ao embasamento conceitual que, de certa forma, ser retomado em todos os demais. Trata-se da relao entre o urbano e a formao da sociedade e do Estado brasileiros, a partir da transposio para a dimenso espacial e urbana da escola sociolgica que cunhou modelos interpretativos como do subdesenvolvimento e da modernizao conservadora. Na minha formao, fui bastante influenciado por professores que, na FAUUSP, faziam tal aproximao: com a economia, o professor Csaba Dek, que redigia seu texto Acumulao entrava da no Brasil e a crise dos anos 80 (1991) justamente quando estava no quarto ano da graduao e, com a sociologia econmica e os grandes intrpretes da formao nacional, a Profa. Ermnia Maricato, que tambm escreveu Metrpole na periferia do capitalismo, justamente parafraseando Roberto Shwarz9, no momento em que fazia minha ps-graduao.

    Assim, a primeira parte deste volume, A formao urbana no subdesenvolvimento, traz trs textos um pouco mais antigos, que serviram para sistematizar as bases dessa reflexo: A cidade para poucos: breve histria da propriedade urbana no Brasil, escrito em 2005, e Desafios para a construo de uma teoria crtica a partir da periferia, de 2007.

    O terceiro texto, intitulado So Paulo: cidade da intolerncia, ou o urbanismo brasileira, produzido para a Revista Estudos Avanados do IEA-USP em 2011, apresenta a discusso mais atualizada sobre o tema, e lana elementos da pesquisa que pretendo desenvolver a partir de agora, aps a livre-docncia. A discusso que nele apresento, sempre baseada nos mesmos elementos de compreenso do que chamo de um urbanismo do subdesenvolvimento, tenta entretanto ir alm dessa interpretao. Nele, como se ver, busco entender como as dinmicas de produo do espao urbano no Brasil, que ditam a ocupao do territrio, se alimentam tambm - e talvez de forma intransponvel - em uma cultura scio urbana que anda carrega heranas do passado colonial, como o racismo, a intolerncia pobreza e a intransigente recusa da cidade democrtica como modelo urbano.

    O segundo tema abordado aquele que, como comentei anteriormente, o gargalo mais complexo de resolver no mbito do urbanismo no Brasil: a questo da terra. Os dois textos apresentados so, neste caso, muito recentes, um deles indito. H bastante tempo que acalentamos, no LabHab, a ideia de juntar e sistematizar a produo, bastante densa mas um pouco dispersa, sobre a temtica fundiria, feita ou no laboratrio, ou por pesquisadores associados a ele. Este ano, consegui, junto com Ermnia Maricato e Karina Leito, fazer esse trabalho, e redigir um texto introdutrio que pudesse fazer um balano da questo da terra nos dias de hoje. esta introduo, intitulada (provisoriamente) Onde o arcaico ainda d as cartas: notas sobre a questo fundiria no Brasil no incio do sc.XXI, ainda no publicada, que apresento aqui. O segundo texto tambm recente, mas por outra razo: desde que iniciei minha carreira acadmica, me deparo com uma polmica que instiga urbanistas, gegrafos e pensadores marxistas de todas as reas. A questo da renda da terra em Marx e de como ela pode ser, ou no, uma matriz explicativa aplicvel realidade fundiria atual, e brasileira em especial. Nunca havia escrito nada a respeito pois, confesso, era uma discusso para mim bastante rdua, e de certa forma pouco frutfera. Porm, ao oferecer a disciplina de Ps-Graduao Desenho do ambiente urbano, neste ano de 2012, percebi que a confuso no era s minha, e que os estudantes veriam com bons olhos uma sistematizao de tal polmica, pelo olhar dos urbanistas, que no meu entender, nunca havia sido feita. Disso resultou o texto didtico Notas sobre a viso marxista da produo do espao urbano e a questo da renda da terra.

    9 SCHWARZ, R. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis, So Paulo: Duas Cidades, 1990.

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    A partir dessas duas discusses, o trabalho comea a abordar alguns dos diversos temas de discusso a que sou confrontado, nas atividades docentes ou de pesquisa e extenso, no LabHab. O terceiro tema, Sobre os impasses do estatuto da cidade e a implementao de seus instrumentos: O caso das ZEIS e das Operaes Urbanas Consorciadas, o do j comentado antagonismo entre a aprovao do Estatuto da Cidade e de instrumentos progressistas de planejamento e o impasse na sua aplicao efetiva. Apresento primeiramente um captulo de livro, A efetividade da Implementao de Zonas Especiais de Interesse Social no quadro habitacional brasileiro: uma avaliao inicial, de 2001, que estuda, seis anos aps a aprovao do estatuto, o caso especfico das ZEIS, provavelmente o instrumento mais radical de promoo da reforma urbana que os municpios brasileiros hoje dispem, mas que concretamente tem uma aplicao pouco efetiva (ainda?). O segundo texto, o mais antigo desta sistematizao, escrito em 2002 com Ermnia Maricato, aborda o polmico instrumento das Operaes Urbanas Consorciadas, em um momento em que talvez ainda houvessem esperanas de que ele pudesse ser utilizado efetivamente para a Reforma Urbana, fato que no se verificou posteriormente.

    O quarto tema abordado est muito em voga, o da questo habitacional e urbanstica nas reas centrais das cidades brasileiras. Est em voga por, provavelmente entre outras, duas razes: a primeira, porque com a falta de terras disponveis, as reas centrais, esquecidas durante anos e deixadas sua vocao popular, vm se tornando um novo espao de forte interesse do mercado imobilirio. Disso, e do conflito gerado por esse avano por sobre regies que consolidaram nesse perodo de abandono seu perfil de uso popular, decorre uma intensa dinmica urbana, em muito marcada pela ao do meu ponto de vista bastante adequada dos movimentos de moradia, que ocupam edifcios abandonados que no cumprem sua funo social. As reintegraes de posse marcadas pela violncia, ou ainda planos de interveno urbanstica claramente marcados pelo elitismo e o favorecimento dos interesses privados aparecem frequentemente no noticirio e do questo toda sua atualidade. A segunda razo justamente porque hoje no Brasil h um nmero de unidades vazias em reas centrais, cerca de cinco milhes, quase o equivalente ao dficit habitacional total, que gira em torno de seis milhes de unidades. Escrevi vrios textos a respeito, inclusive em funo de pesquisas especficas sobre o assunto. Porm, em 2011, a publicao, por Felipe Francisco de Souza, de seu livro A batalha pelo centro de So Paulo (Paulos Editora, 2011), que denunciava os lastimveis mecanismos do projeto urbanstico Nova Luz, me deu a oportunidade de escrever, para o prefcio que ele me convidou a fazer, uma reflexo mais sistematizada da questo. o texto que apresento neste trabalho.

    Na parte seguinte, a quinta, apresento uma discusso sobre Os impasses da poltica urbana: gestes democrticas e participativas no contexto da globalizao. Trata-se novamente da discusso sobre os entraves a se fazer planejamento urbano no contexto do subdesenvolvimento e da modernizao conservadora. Desta vez, apresento dois textos que tm uma sequencia cronolgica interessante: o primeiro deles, Gesto democrtica e participativa: um caminho para cidades socialmente justas?, de 2003, foi escrito no incio da chamada Era Lula, quando as experincias de gestes de esquerda nos municpios j apontavam para alguns problemas, mas as esperanas de mudanas ainda eram fortes. Utilizei a experincia de uma pesquisa do LabHab para dar ao texto um carter propositivo, em torno de preceitos de planejamento, como a proximidade local e a participao, que nos pareciam bastante efetivos. O segundo texto um captulo de livro que bastante me honrou, organizado por Francisco de Oliveira, Cibele Rizek e Ruy Braga, Hegemonia as avessas (Boitempo, 2010), e que justamente fazia uma anlise crtica do governo Lula, quando, na opinio de Oliveira, no so mais os dominados quem consentem na sua prpria explorao. So os dominantes os capitalistas e o capital, explicite-se que consentem em ser politicamente conduzidos pelos dominados, condio de que a direo moral no questione a forma da explorao capitalista 10. No texto Cidades para poucos ou para todos? Impasses da democratizao das cidades no Brasil e os riscos de um urbanismo s avessas, discuto a dimenso que o impasse entre a reforma urbana e o avano do urbanismo de mercado tomou, e a dificuldade que isso passou a representar para as gestes ditas democrticas e populares.

    10 Francisco de Oliveira, Hegemonia s avessas, Revista Piau, n. 4. Rio de Janeiro-So Paulo: Ed. Alvinegra, jan. 2007.

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    O sexto tema abordado o da problemtica habitacional e o cenrio urbano no Brasil de hoje, sob os impactos do aquecimento do mercado da construo civil e do Programa Minha Casa Minha Vida, comentados acima. O texto, Que cidade queremos para as geraes futuras? O trgico quadro urbano no Brasil do sculo XXI: cidades cindidas, desiguais e insustentveis, o primeiro captulo do livro recm-lanado pelo LabHab, intitulado Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano, que se prope a lanar uma ampla e crtica discusso sobre o cenrio urbano atual, e o impacto urbanstico e ambiental dos grandes conjuntos que vm sendo construdos pas afora, para os segmento de renda dito econmico.

    O stimo e penltimo tema O papel do arquiteto-urbanista no atual contexto brasileiro, trata da atuao desse profissionais face a tal cenrio, j amplamente comentada nesta introduo, e foi escrito para os estudantes da rea. Publicado em 2011 pelo Portal Vitruvius, Perspectivas e desafios para o jovem arquiteto no Brasil: Qual o papel da profisso? teve o mrito de despertar grande polmica e um nmero significativo de leituras e apoio, na era da divulgao de textos pela internet.

    Por fim, a ltima parte trata de um assunto extremamente atual, e completamente inserido no campo de discusso dos urbanistas, a chamada questo ambiental. Sabemos que ai reside um outro gargalo para quem estuda a questo urbana. medida que a disponibilidade fundiria torna-se cada vez mais reduzida, os assentamentos populares e agora tambm os de alta renda tendem a ocupar reas ambientalmente frgeis, tornando intensa a mediao entre urbanizao e preservao ambiental. Por outro lado, o crescimento econmico leva a uma exploso urbana, que tambm afeta drasticamente o meio ambiente. Paradoxalmente, quanto mais cresce a economia e a urbanizao tida como da riqueza, mais se acentuam os impactos decorrentes da sua pssima qualidade ambiental. Em 2012, fui convidado, pelo Ministrio das Cidades, o do Meio Ambiente e a UM-Habitat (seo Amrica Latina), a produzir um documento, no mbito da Conferncia Rio+20 e do Frum Urbano Mundial da Um-Habitat, que sintetizasse a discusso sobre o conceito, bastante impreciso, de sustentabilidade urbana. Dai sai o texto A Formulao de uma Nova Matriz Urbana no Brasil, Baseada na Justia Socioambiental, que apresento como concluso deste trabalho.

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    A FORMAO URBANA NO SUBDESENVOLVIMENTO.

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    A cidade para poucos: breve histria da propriedade urbana no Brasil

    Publicado em Anais do Simpsio Interfaces das representaes urbanas em tempos de globalizao, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005.

    As cidades brasileiras so hoje a expresso urbana de uma sociedade que nunca conseguiu superar sua herana colonial para construir uma nao que distribusse de forma mais equitativa suas riquezas e, mais recentemente, viu sobrepor-se essa matriz arcaica uma nova roupagem de modernidade global que s fez exacerbar suas dramticas injustias. Pesquisas de vrias instituies indicam que as grandes metrpoles brasileiras tm em mdia entre 40 e 50% de sua populao vivendo na informalidade urbana1, das quais de 15 a 20% em mdia moram em favelas (chegando a mais de 40% em Recife). E no seria exagero afirmar que a questo do acesso propriedade da terra est no cerne dessa enorme desigualdade socioespacial.

    A Lei das Terras e o surgimento da propriedade fundiria

    At meados do sculo XIX, a terra no Brasil era concedida pela Coroa as sesmarias , ou simplesmente ocupada2. Os municpios tinham o Rossio, terras em que se implantavam as casas e pequenas reas de produo, sem custo. Assim, a terra ainda no tinha valor comercial, mas essas formas de apropriao j favoreciam a hegemonia de uma classe social privilegiada. A Lei das Terras, de setembro de 1850, transformou-a em mercadoria, nas mos dos que j detinham cartas de sesmaria ou provas de ocupao pacfica e sem contestao, e da prpria Coroa, oficialmente proprietria de todo o territrio ainda no ocupado, e que a partir de ento passava a realizar leiles para sua venda. Ou seja, pode-se considerar que a Lei de Terras representa a implantao da propriedade privada do solo no Brasil. Para ter terra, a partir de ento, era necessrio pagar por ela.

    Para Maricato (1997), foi entre 1822 e 1850, nas dcadas anteriores aprovao da Lei das Terras, que se consolidou de fato o latifndio brasileiro, atravs da ampla e indiscriminada ocupao das terras, e a expulso dos pequenos posseiros pelos grandes proprietrios rurais. Tal processo se deu muito em funo da indefinio do Estado em impor regras, decorrente das disputas entre os prprios detentores do poder. Segundo a autora, a demorada tramitao do projeto de lei que iria definir regras para a comercializao e propriedade da terra se devia ao medo dos latifundirios em no ver suas terras confirmadas. O resultado dessa disputa foi o fim do projeto liberal de financiamento de uma colonizao branca de pequenas propriedades, baseada nos colonos europeus, por meio da venda das terras do Estado3. No lugar, promoveu-se uma demarcao da propriedade fundiria nas mo dos grandes

    1 No Brasil, entende-se por esse termo habitaes de favelas, cortios e loteamentos clandestinos. A informalidade urbana diz respeito inadequao fsico-construtiva e ambiental da habitao e/ou do entorno construes precrias, terrenos em reas de risco ou de preservao ambiental, rea til insuficiente para o nmero de moradores, etc., ausncia de infraestrutura urbana saneamento, gua tratada, luz, acessibilidade viria, etc., ou ainda ilegalidade da posse da terra ou do contrato de uso.

    2 Sobre a Lei das Terras e as origens da propriedade da terra no Brasil, que desenvolveremos nos pargrafos que seguem, foram usados como referncia: MARICATO, Ermnia. Habitao e Cidade, So Paulo: Atual Editora, 1997, WHITAKER FERREIRA, Francisco. Lhomme exclu et le droit de propriet, paper para a Assemblia Nacional Francesa e a Misso Interministerial para a Celebrao do Centenrio da Lei 1901, Paris, 25 de junho de 2001, e MARTINS, Jos de Souza. O Cativeiro da Terra, So Paulo:Livraria Editora de Cincias Humanas, 1978.

    3 Sabe-se que, em especial no perodo inicial da Repblica, vrias correntes se opuseram quanto s formas de ocupao do territrio e de construo da cidadania republicana, o que refletia tambm nas polticas de ocupao do territrio. Mas mesmo anteriormente, antes at da independncia, Dom Pedro e Jos Bonifcio j procuraram incentivar a vinda de colonos europeus para o sul do pas, com a inteno de formar uma classe mdia rural de pequenos proprietrios agricultores, enquanto que a migrao para So Paulo era destinada ao fornecimento de mo-de-obra para a grande lavoura (ver FAUSTO, Boris. Histria do Brasil, So Paulo: Edusp, 1994). Dentre as diferentes correntes que se enfrentaram entre 1880 e 1930, Ribeiro e Cardoso apontam para as correntes de pensamento racista, que buscava o branqueamento como tarefa civilizatria, atravs das polticas migratrias, ou ainda a ruralista, capitaneada por Alberto Torres, que defendia uma interveno do Estado que recompusesse a estrutura fundiria, com nfase nas pequenas propriedades (QUEIROZ RIBEIRO, Luiz Csar, e CARDOSO, Adauto Luiz. Planejamento Urbano no Brasil: paradigmas e experincias, in Espaos & Debates: Revista de Estu-dos Urbanos e Regionais, n 37, So Paulo: Neru, 1994). Mesmo que anterior Repblica, ou justamente como resultado das disputas na sua preparao, a Lei de Terras de alguma forma consolidou os interesses dos grandes latifundirios no processo de apropriao da terra no pas.

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    latifundirios, que nesse processo conseguiram inclusive apropriar-se de muitas terras do Estado. E os imigrantes, em vez de colonos de pequenas plantaes, serviram de fato como mo de obra nos grandes latifndios, substituindo a mo de obra escrava. Pois o processo poltico de aprovao da Lei das Terras tem muito a ver com o fim do trfico de escravos.

    Como se sabe, o fim da escravido no Brasil est mais ligado aos fortes interesses comerciais ingleses, a potncia hegemnica da poca, do que a ideais abolicionistas. A expanso comercial imposta pela Revoluo Industrial fez com que aumentasse o interesse dos ingleses sobre o comrcio brasileiro, e as presses para impedir qualquer restrio a seus produtos e garantir o aumento do mercado, o que inclua tambm o fim da mo de obra escrava e a implantao do assalariamento. Segundo Boris Fausto (1994), entre 1870 e 1873, os produtos ingleses eram responsveis por 53,4% do valor total das importaes brasileiras.

    A proibio do trfico negreiro, em 1831, no impediu a continuidade do comrcio de escravos, que entretanto tornavam-se mais caros para os grandes produtores agrcolas, indicando a soluo da mo de obra imigrante. Foi somente em 1850, aps a ameaa concreta, feita um ano antes pelos ingleses, de fechamento dos portos brasileiros, que uma lei coibiu definitivamente o trfico.

    Restava ento aos grandes produtores cafeeiros recorrer mo de obra livre e assalariada dos imigrantes. Nesse sentido, a Lei das Terras coibiu, como vimos, a pequena produo de subsistncia, dificultando o acesso terra pelos pequenos produtores, inclusive imigrantes, e forando seu assalariamento nas grandes plantaes. Entretanto, tambm com relao a estes foi estruturado um sistema de endividamento as parcerias pelo qual os trabalhadores recm-chegados abriam crdito com seus patres para a compra dos bens que necessitavam, chegando a um ponto em que o pagamento dessas dvidas tornava-se impossvel. Na prtica, tal dependncia instituiu um sistema de pseudo-escravido para esses trabalhadores (que alis perdura at hoje em algumas regies do Brasil), que por muitos anos4, at a abolio, conviveram nas fazendas com a mo de obra escrava.

    Outro aspecto decorrente da Lei das Terras, embora menos significativo que sua funo de promover a implantao do trabalho assalariado, que antes da sua aprovao, o capital dos grandes latifundirios era medido pelo nmero de escravos que cada um detinha, fosse no campo ou nas cidades5. A abundncia de terras, a dificuldade para ocup-las e a condio colocada para sua concesso de que elas se tornassem produtivas, tornavam a posse de escravos mais importante do que a da terra em si. Em suma, a riqueza dos poderosos era medida pelos seus escravos, que serviam o que no era o caso da terra, antes de 1850 at como objeto de hipoteca para a obteno de emprstimos. Como lembra Maricato (1997), no foi por acaso que a Lei das Terras foi promulgada no mesmo ano na verdade, em um intervalo de poucas semanas do que a proibio definitiva do trfico. Est claro que, em meio a um processo poltico-econmico em que se restringia o sistema de escravido, a Lei das Terras serviu para transferir o indicativo de poder e riqueza das elites de ento: sua hegemonia no era mais medida pelo nmero de escravos, mas pela terra que possua, agora convertida em mercadoria, e o trabalho assalariado podia ento se expandir no Brasil, respondendo s presses inglesas.

    4 verdade que o sistema de parcerias sucumbiu presso dos imigrantes, notadamente aps a revolta de Ibicaba, em 1857, quando imi-grantes alemes se levantaram contra o Senador Campos Vergueiro, que havia institudo em suas fazendas pela primeira vez o sistema de parceria. A repercusso internacional foi importante o suficiente para fazer com que o governo alemo proibisse a emigrao de alemes para o Brasil. Ainda assim, novas formas de explorao forma estabelecidas, como a das colnias, pseudo-independncia dada aos trabal-hadores dentro das grandes fazendas.

    5 O papel dos escravos no era desempenhado somente no campo. Nas cidades, eles eram indispensveis vida urbana, encarregando-se de todos os servios mais pesados. Segundo MARICATO, Op. Cit. (pg. 17) os escravos na cidade eliminavam os dejetos, carregando barris cheios de fezes at a praia, por exemplo, abasteciam as casas com gua e lenha, recolhiam o lixo, transportavam objetos e pessoas, e realizavam, na condio de escravos de ganho, atividades de comrcio e uma srie de pequenos servios para seus proprietrios, que incluam desde a venda de quitutes at a prostituio.

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    Evidentemente, tal situao consolidou a diviso da sociedade em duas categorias bem distintas: os proprietrios fundirios de um lado6, e do outro, sem nenhuma possibilidade de comprar terras, os escravos, que seriam juridicamente libertos apenas em 1888, e os imigrantes, presos dvidas com seus patres ou simplesmente ignorantes de todos os procedimentos necessrios para obter o ttulo de propriedade. A presena de ambos j era na poca considervel: se o pas tinha, em 1700, cerca de 3 milhes de habitantes, o trfico negreiro alterou bem a situao, e em 1850 somente os escravos j eram cerca de 4 milhes. Quanto aos imigrantes europeus e japoneses, sua vinda comeou efetivamente na dcada de 1840, intensificando-se aps 1850. Entre esse ano e o de 1859, cerca de 110 mil imigrantes chegaram ao pas, parte deles concentrando-se, vale dizer, nas cidades. Em So Paulo, por exemplo, dos 130 mil habitantes em 1895, 71 mil eram estrangeiros7. Mas, a terra como mercadoria no ficou por causa disso mais disponvel para essa massa de populao. Como vimos, a distribuio das terras no Brasil se deu, para os senhores de ento, em um sistema com muito pouca, ou nenhuma concorrncia.

    As cidades na economia agroexportadora

    Mas se o processo acima descrito ocorre essencialmente no meio rural, importante frisar que a Lei das Terras teve tambm forte influncia nas dinmicas de apropriao da terra urbana. Ermnia Maricato lembra que a lei distingue, pela primeira vez na histria do pas, o que solo pblico e o que solo privado (Maricato, 1997:23). Assim, torna-se possvel, inclusive, regulamentar o acesso terra urbana, definindo padres de uso e ocupao, que como veremos, tambm iriam servir para garantir, ao longo do tempo, o privilgio das classes dominantes. Ou seja, nas cidades como no campo, a estrutura institucional e poltica de regulamentao do acesso terra foi sempre implementada no sentido de no alterar a absoluta hegemonia das elites.

    Analisando mais de perto a questo urbana, vale lembrar, em primeiro lugar, o argumento apresentado pelo socilogo Francisco de Oliveira8, para quem errada a ideia, bastante comum na historiografia nacional, segundo a qual na economia brasileira agroexportadora da passagem do sculo XIX para o XX, o meio rural predominava sobre o meio urbano. Como lembra o autor, se a sede da produo agroexportadora era necessariamente o campo, o controle de sua comercializao, entretanto, se dava essencialmente nas cidades. O papel central das cidades no acontecia apenas porque a efetivao das exportaes necessitasse de atividades urbanas. Segundo o autor, porque a produo foi fundada para a exportao, a cidade nasce no Brasil antes mesmo do campo. Da o carter poltico-administrativo das cidades no Brasil desde a Colnia, o que foi confundido...como um predomnio do campo sobre a cidade. Entretanto, as cidades brasileiras da poca cafeeira tinham a caracterstica, que iria mudar aps a consolidao da industrializao, de serem um espao urbano onde no ocorria nem o mercado (j que o mercado real da economia era o da exportao agrcola) nem a prpria produo (que se dava no campo).

    Assim, antes mesmo do incio da industrializao, a cidade do Rio de Janeiro j atingia um tamanho significativo, ainda no sculo XIX, por sua condio de capital, e So Paulo, como veremos, se consolidava como sede administrativa da produo cafeeira paulista. O fim do trfico e a libertao de escravos antes mesmo da abolio, geraram um afluxo para a cidade do Rio, que em 1890 tinha cerca de meio milho de habitantes. Com o advento da repblica, consolidou-se ainda mais seu crescimento, de tal forma que, na virada do sculo retrasado, a cidade se mantinha a mais populosa do pas, com cerca de 600 mil habitantes, mais do que o dobro de So Paulo ou Salvador.

    6 Uma elite que se manteria para sempre no poder, pois estaria na origem da burguesia industrial nacional, que por sua vez consolidaria sua hegemonia a partir da dcada de 30.

    7 At 1940, o Brasil recebeu cerca de 5 milhes de imigrantes.

    8 OLIVEIRA, Francisco de. Acumulao monopolista, Estado e urbanizao: a nova qualidade do conflito de classes, in Contradies Urba-nas e Movimentos sociais, So Paulo: CEDEC, 1977.

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    Na cidade de So Paulo, a expanso da produo cafeeira, associada ao surgimento de uma indstria ainda incipiente, iriam ser determinantes para seu crescimento acelerado, que a consolidaria como a maior cidade do pas j nas primeiras dcadas do sculo XX, superando, medida em que a industrializao se consolidava, as limitaes de seu papel de sede do controle da exportao agrcola. A diversificao dos investimentos oriundos do capital cafeeiro9, intensificou atividades de carter essencialmente urbano. Muitos fazendeiros comearam a transferir sua residncia para manses nas cidades. As atividades de comrcio do caf, e a construo da estrada de ferro Santos-Jundia, em 1867, j haviam insuflado a economia urbana, com empresas de importao-exportao, bancos, o comrcio para atender a uma populao urbana crescente, e as atividades da construo civil e dos servios urbanos, como a implantao de vilas operrias, a construo de reservatrios de gua, a instalao de iluminao urbana a gs, de linhas de bonde, etc., sempre com a presena marcante de empresas inglesas.

    Nesse perodo agroexportador e de uma industrializao incipiente imperou, tanto no Rio quanto em So Paulo, uma viso de que as cidades no podiam ser a expresso do atraso nacional frente ao modernismo das grandes cidades europeias, em especial em um momento em que as exportaes de caf reforavam a participao do pas no comrcio internacional. Sendo elas o centro comercial e poltico do pas, interessava que cidades como Rio e So Paulo tivessem uma aparncia compatvel com a ambio comercial da expanso cafeeira. Segundo Ribeiro e Cardoso (1981:81), por essa razo as primeiras grandes intervenes urbanas visaram criar uma nova imagem da cidade, em conformidade com os modelos estticos europeus. Nesse processo, ainda segundo os mesmos autores, as elites buscavam afastar de suas vistas e das vistas do estrangeiro o populacho inculto, desprovido de maneiras civilizadas, mestio. As reformas urbanas criaram uma cidade para ingls ver.

    Explicita-se ento o porqu das duas grandes cidades do pas nesses primeiros momentos da urbanizao brasileira, j promoverem uma sistemtica segregao social: simplesmente reproduzia-se na cidade a mesma diferenciao social resultante da hegemonia das elites que se verificava nos latifndios. dessa poca que datam os primeiros registros de cortios e at mesmo de ocupao dos morros com moradias populares. Mesmo que no fosse ainda regida pelas dinmicas do capitalismo industrial, a cidade j tinha por marca a diferenciao socioespacial, pela qual a populao mais pobre, via de regra, era excluda para as reas menos privilegiadas. Segundo Maricato (1997:27), o Rio contava, em 1888, ano da abolio, com mais de 45 mil pessoas vivendo em cortios, sendo a maioria escravos libertos. A insalubridade, as epidemias, decorrentes da ausncia de infraestrutura, como por exemplo o saneamento bsico, a violncia, a alta densidade urbana, eram marcas de uma parte da cidade, e j mostravam a tnica do que viria a ser a cidade brasileira do sculo XX.

    Mas o que se destaca nesse processo so dois fatores que esto na base do entendimento das dinmicas de segregao socioespacial urbana: o conceito de localizao e a participao do Estado, representando no Brasil os interesses das elites, na formulao e implementao das polticas pblicas de urbanizao. Esses dois aspectos merecem ser vistos com mais cuidado10.

    Diferenciao urbana e produo social do espao

    A cidade se caracteriza por ser um ambiente construdo, ou seja, seu espao produzido, fruto do trabalho social. H anos existe um intenso debate acadmico sobre a convenincia de se transferir ou no para o solo urbano a teoria da renda da terra, que Marx utilizou para o contexto bem especfico e pouco comparvel ao solo urbano da propriedade rural. Sem entrar nessa polmica, o que se pode dizer que o solo urbano tem seu valor determinado por sua localizao. Esta se caracteriza pelo

    9 Ver a respeito, SILVA, Sergio: Expanso cafeeira e origens da indstria no Brasil, So Paulo: Alpha-mega, 1981.

    10 Agradeo a colaborao do Prof. Dr. Nuno Fonseca, da FAUUSP, na estruturao dos pargrafos que seguem. Ver a respeito: VILLAA, Flvio. Espao intra-urbano no Brasil, So Paulo: Nobel, 1998, e DEK, Csaba. A busca das categorias da produo do espao, Tese de Livre-Docncia, FAUUSP,So Paulo, 2001.

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    trabalho social necessrio para tornar o solo edificvel (a infraestrutura urbana), as prprias construes que eventualmente nele existam, a facilidade de acess-lo (sua acessibilidade) e, enfim, a demanda. Esse conjunto de fatores que distingue qualitativamente uma parcela do solo, dando-lhe certo valor e diferenciando-o em relao aglomerao na qual se insere.

    A localizao um fator de diferenciao espacial por motivos bvios: terrenos com uma vista privilegiada, ou situados em locais de fcil acesso, ou muito bem protegidos, ou prximos a rodovias ou ferrovias, tornam-se mais valiosos para interesses variados. So mais agradveis para o uso habitacional, ou melhor situados para escoar a produo de uma fbrica, ou para atrair mais consumidores para uma loja, e assim por diante. Nas cidades brasileiras do incio do sculo passado, que acabamos de descrever, os bairros centrais, que tinham boa infraestrutura, concentravam mais gente, dispunham de linhas de bonde, eram prximos das estaes de trem, eram os bairros privilegiados onde acontecia a vida urbana e comercial nascente, e onde se instalavam os palacetes da elite, embora as vezes bairros um pouco mais distantes, como a avenida Paulista, em So Paulo, atraiam os poderosos justamente pela sua exclusividade.

    Mas o que fica claro que a localizao ser tanto mais interessante quanto houver um significativo trabalho social para produzi-la, ou seja, para torn-la atrativa dentro de uma determinada aglomerao urbana. Assim, fica evidente, que a localizao urbana fruto de um trabalho coletivo, e no pode ser individualizada: ela depender sempre da aglomerao em que se situa, ou seja, do entorno urbano na qual est, e da interveno do Estado para constru-la e equip-la de tal forma que ela ganhe interesse. Por isso, como aponta Dek (2001), a interveno estatal um complemento necessrio, ainda que antagnico, regulao pelo mercado11 do acesso ao solo urbano. Tal interveno pode dar-se por meio de obras urbanizadoras convencionais, mas tambm ocorre por meio de um conjunto de instrumentos tributrios e reguladores do uso e das formas de ocupao do solo urbano. Ou seja, nessa dinmica muito fcil entender como a influncia sobre a mquina pblica pode render benefcios significativos a quem conseguir direcionar os investimentos do Estado segundo seus interesses de valorizao, como veremos logo adiante. No Brasil, desde as primeiras ondas de crescimento das nossas cidades, na virada do sculo XIX para o XX, todas as grandes intervenes urbanas promovidas pelo Poder Pblico foram, salvo raras excees, destinadas a produzir melhorias exclusivamente para os bairros das classes dominantes.

    Evidentemente, nem todas as correntes tericas admitem tal interpretao sobre a produo da diferenciao espacial e do valor fundirio urbano. Segundo o pensamento liberal, que no urbanismo se evidenciou na chamada Escola de Chicago, ainda nas primeiras dcadas do sculo passado, mas com um poder de influncia que perdura at hoje, a cidade apenas refletiria, no mbito espacial, a lgica da mo invisvel e da autorregularo, frutos do laissez-faire econmico. Assim como supostamente ocorreria no mbito econmico da regulao dos preos e do emprego, as cidades teriam a capacidade de crescer espontaneamente, equilibrando-se naturalmente, pela lei da oferta e da demanda, em um sistema no qual os mais privilegiados encontrariam seus espaos, assim como os mais pobres acabariam achando o seu, com as diferenciaes naturais de qualidade inerentes prpria lgica do capitalismo. Evidentemente, parece-nos que as coisas no ocorreram, e ainda no ocorrem, exatamente assim. E nas nossas cidades, a interveno estatal foi capaz de produzir recorrentemente a diferenciao espacial desejada pelas elites, e a disputa pela apropriao dos importantes fundos pblicos destinados urbanizao caracterizou e caracteriza at hoje a atuao das classes dominantes no ramo imobilirio.

    Assim, a implantao de infraestrutura urbana no Brasil sempre se deu em reas concentradas das nossas cidades, no por acaso os setores ocupados pelas classes dominantes. Essa prtica da desigualdade na implantao de infraestrutura, ou seja, do trabalho social que produz o solo urbano, gerou e ainda gera diferenciaes claras entre os setores da cidade, produzidas pela ao do Estado (ao contrrio do que defendia a Escola de Chicago) e acentuando a valorizao daqueles beneficiados pelas obras, em

    11 Ver Dek, Op. Cit.

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    relao escassez do restante da cidade. Assim, a brutal diferena de preos que tal fenmeno produz nunca esteve dissociada, evidentemente, dos interesses do capital especulativo que sempre soube, no Brasil, fundir-se ao estatal e canalizar os investimentos pblicos para locais de seu interesse, gerando altos nveis de lucratividade12.

    Os primeiros planos urbansticos

    No incio do sculo passado, as dinmicas de urbanizao da cidade explicitavam, como vimos, processos de valorizao fundiria e imobiliria que iriam constituir uma matriz de excluso que perdura at hoje, sobrevivendo e fortalecendo-se em cada nova fase do nosso desenvolvimento. Na jovem repblica ou no Brasil industrial, o acesso cidade urbanizada s foi possvel, em suma, para aqueles que pudessem pagar por ela, ou que tivessem um razovel poder de influncia dentro da mquina pblica. As relaes de poder se estabeleciam no mbito urbano por um lado, em torno do privilgio dado s elites no direcionamento dos recursos pblicos e na construo de bairros de elite, e do outro pela excluso que atingia invariavelmente a populao urbana mais pobre, e posteriormente o proletariado urbano. Entre esses dois extremos, uma classe-mdia encontrava algum lugar, em diferentes momentos histricos, conforme fosse beneficiada por uma ou outra poltica pblica, pelos resqucios de um ou outro ciclo de crescimento econmico. Nesse processo, o Estado cumpriu sistematicamente um papel de controle sobre a produo do espao urbano. Um controle s avessas, pois se na Europa ele visava alguma universalizao e democratizao no acesso cidade13, no Brasil ele se deu ou para garantir a onipotncia das elites, e manter em nveis aceitveis os bairros de classe mdia, deixando alis o mercado imobilirio bastante livre para atuar, ou para resolver as demandas populares quando absolutamente necessrio, na base de relaes populistas e clientelistas, e no que Schwarz chamou das relaes de favor14.

    Como exemplo das reformas urbanas para ingls ver, no Rio de Janeiro dos primeiros anos do sculo passado, o presidente Rodrigues Alves deu ao ento prefeito do Distrito Federal, Francisco Pereira Passos, poderes absolutos (e inconstitucionais) para promover uma profunda reforma urbana, destinada a sanar as epidemias crescentes e recuperar a cidade, vista como um rgo doente (Maricato, 1996). Para atrair o capital estrangeiro para o pas, era necessrio sanear a cidade: novas avenidas foram abertas notadamente a Avenida central, hoje Rio Branco , o porto foi modernizado, e novos e modernos edifcios foram construdos, substituindo casares e prdios antigos. Nesse processo, e nas demais intervenes de urbanizao no Rio do incio do sculo passado, em que morros foram desmontados, aterros criados, e a natureza bastante modificada para a construo da capital, no havia sequer possibilidade de contestao por parte da populao atingida, e os propsitos de uma higienizao social estavam muito pouco escondidos. A populao pobre foi sistematicamente expulsa dos cortios e dos morros centrais, deslocando-se invariavelmente para locais distantes menos valorizados ou mesmo para outros morros. Tais planos urbansticos, que ficaram conhecidos como de Melhoramentos e Embelezamento, repetiram tambm em So Paulo essa mesma lgica, assim como em muitas outras

    12 Vale observar que, nesse sentido, a melhor forma de lutar contra a especulao imobiliria urbana seria simplesmente, se a questo dos recursos no fosse to complexa, generalizar a oferta de infraestrutura para toda a cidade, quebrando dinmica de diferenciao espacial gerada pela concentrao do investimento pblico em infraestrutura urbana.

    13 Os dois momentos mais significativos da produo habitacional de interesse social na Europa, entretanto, no se deram por filantropia, mas para sustentar, respectivamente, o modelo de crescimento do capitalismo industrial e o do Estado do Bem-Estar Social. As reformas higienizadoras do final do sculo XIX, em que se destaca a ao do Baro de Haussmann em Paris (1850), visavam disciplinar a classe trabalhadora e dar-lhe condies mnimas de subsistncia e reproduo em um sistema industrial nascente que havia produzido at ento, por causa de seu vis liberal, um caos urbano que acabara por prejudicar a prpria produo. No ps-guerra, as macias polticas habitacionais, amparadas pela ideologia urbanista modernista, visavam contribuir com os esforos de criar, na Europa que se reconstrua, um mercado consumidor altura da expanso do fordismo-taylorismo, capitaneada pelos EUA. Assim, a necessria melhoria do poder de consumo da classe trabalhadora exigia que se inclusse, no clculo do custo de sua reproduo, a moradia. importante observar que em cada um desses momentos, esses padres urbansticos foram importados em um contexto nacional absolutamente diverso, no que Schwarz chamou de idias fora do lugar (referindo-se ao primeiro momento). Na virada do sculo XIX, as reformas higienizadoras usadas para disciplinar uma classe operria nascente na Europa, foram implementadas aqui, como se ver no prximo pargrafo, em uma sociedade que sequer era industrial. No ps-guerra, o urbanista modernista aqui no Brasil no podia ser base para um aumento do poder de consumo da classe trabalhadora, como ocorrera na Europa, pois os baixos salrios, como veremos logo adiante no texto, eram condio para nossa industrializao.

    14 Ver SCHWARZ, Roberto, As idias fora do lugar, 1974.

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    cidades brasileiras, como Curitiba, Porto Alegre, Santos, Manaus, Belm. Amparadas na preocupao de higienizao dos bairros mais pobres, onde se verificava uma relao direta entre insalubridade e doenas como a febre amarela, entre outras, as intervenes da poca aproveitavam tal justificativa para pouco a pouco promover a expulso da populao mais pobre das reas centrais e renovar esses bairros com novos padres de ocupao. Como coloca Paulo Cezar de Barros, higienizar e modernizar a cidade significavam sobretudo, eliminar os lugares infectos e srdidos, o desmazelo, a imundcie e as residncias coletivas (cortios e cabeas de porco) em que habitava a maioria da populao.15

    Sempre baseando-se inicialmente no propsito pouco questionvel do controle sanitrio, esses planos marcaram tambm o incio de uma outra prtica que, se por um lado instituiria padres mais modernos de controle do processo de urbanizao, por outro lado iria ajudar, ao longo do sculo XX, na diferenciao de localizaes urbanas privilegiadas: a implantao de uma complexa legislao urbanstica, que estabelecia normas extremamente rgidas para a construo de edifcios e para as possibilidades de uso e ocupao do solo. Com isso, saia privilegiado o mercado imobilirio, capaz de respeitar tais regras ou de dobr-las graas sua proximidade com o Poder Pblico e seu poder financeiro, e prejudicava-se definitivamente a populao mais pobre, incapaz de responder s duras exigncias legais. Para construir, seria necessrio ter a documentao da posse da terra, dominar o aparato tcnico-jurdico do desenho e da aprovao de plantas, e respeitar as diretrizes legais sanitrias e de ocupao e uso do solo, que muitas vezes impunham regras que s podiam ser aplicadas nos terrenos mais caros.

    Os Cdigo de Posturas de So Paulo e do Rio, ainda no final do sculo XIX, j proibiam por exemplo os cortios nas reas urbanas centrais, e determinavam recuos para as construes que s podiam ser aplicados em lotes de grande rea, restringindo assim por meio da lei a ocorrncia de terrenos pequenos e mais baratos. A casa unifamiliar, de grande porte, centrada no lote, era a casa padro das regulamentaes urbansticas, acrescentando-se posteriormente o edifcio vertical, tambm de mais alto padro social. Segundo Rolnik, comentando as primeiras regras aplicadas em So Paulo, a essas leis, definindo a especificidade do modo de construir nos bairros de elite, corresponde uma caracterstica absolutamente marcante na construo da legalidade urbana na cidade de So Paulo: a lei como garantia de perenidade do espao das elites16. Embora at 1930 a proviso habitacional social ainda se desse, como veremos, por iniciativa do setor privado, Nabil Bonduki aponta que, das medidas urbansticas contra as duas epidemias de 1893 surgiram trs frentes de combate legislao, planos de saneamento bsico e estratgia de controle sanitrio , que so a origem da interveno estatal no controle da produo do espao urbano e da habitao(Bonduki, 1998:33)17.

    Industrializao e urbanizao

    Mas com a intensificao da industrializao que o conceito de diferenciao espacial pela localizao e a importncia da interveno estatal ganham toda sua dimenso. O capitalismo industrial, ao exacerbar a diviso social do trabalho e a luta de classes, acentuou a diviso social do espao: era quase natural que as classes dominantes continuassem a apropriar-se dos setores urbanos mais valorizados, justamente por sua localizao privilegiada, por sua acessibilidade, e pela infraestrutura disponvel, deixando os bairros menos privilegiados para as classes mais baixas. Como se sabe, a industrializao um fenmeno essencialmente urbano. Ou seja, a diferena agora era que a cidade tornava-se o locus do prprio sistema de produo, e no mais o campo. Por isso, aumentava consideravelmente a populao urbana de baixa renda, pela necessria presena do operariado urbano, e a segregao espacial-urbana tornava-se mais visvel. As leis funcionariam mais do que nunca para demarcar os lugares de cada um,

    15 BARROS, Paulo Cezar Onde nasceu a cidade do Rio de Janeiro ? (um pouco da histria do Morro do Castelo), in Revista geo-paisagem (on line), Vol. 1, no. 2, Julho/dezembro de 2002, ISSN N 1677 650 X

    16 ROLNIK, Raquel. Para alm da lei: legislao urbanstica e cidadania, in SOUZA, Maria Adlia A. (et outros, Orgs.). Metrpoles e Globali-zao , So Paulo: CEDESP, 1999.

    17 BONDUKI, Nabil. Origens da habitao social no Brasil, So Paulo: Estao Liberdade/Fapesp, 1998.

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    e as classes dominantes intensificariam ainda mais sua presena na mquina do Estado para garantir os novos espaos de alta valorizao em que se implantavam18.

    A primeira fase de nossa industrializao, que como visto se inicia nas ltimas dcadas do sculo XIX em um processo concomitante s atividades da economia cafeeira agroexportadora, fez com que, j em 1920, So Paulo superasse com folga a produo industrial de todos os demais estados brasileiros. Por isso, a cidade tambm era a que mais se urbanizava. Embora fosse ainda uma industrializao incipiente, at mesmo em funo das disputas entre os interesses ingleses de escoamento da sua indstria, as resistncias dos grandes produtores cafeeiros e dos coronis mais arcaicos, face ao empreendedorismo da moderna burguesia industrial nascente, ela j era suficiente para que a cidade, alm do local das atividades administrativas e comerciais oriundas da atividade cafeeira, se tornasse tambm sede da produo industrial.

    Como j dito, ao contingente de trabalhadores do setor de comrcio e servios, comeava a somar-se de forma significativa, sempre com a ajuda dos escravos libertos e dos imigrantes europeus, o proletariado urbano. Nabil Bonduki ressalta que, j no segundo quinqunio da dcada de 1880, a cidade de So Paulo passa a atrair, pela sua prpria potencialidade econmica, imigrantes que vinham inicialmente para as lavouras do caf19. Segundo o autor, em 1895, quase 40% dos 104 mil imigrantes que passaram pela Hospedaria dos Imigrantes (esta estrategicamente colocada na periferia de ento, no bairro proletrio do Brs, para deixar bem claro o lugar na cidade que lhes era destinado20) ficaram na cidade. A diferenciao espacial, que antes marcava apenas o centro como a rea privilegiada de assentamento de uma elite dourada voltada ao comrcio cafeeiro, com nenhuma importncia para os ainda raros, distantes e pouco populosos bairros pobres de periferia, agora comeava a ocorrer nos moldes de uma tpica cidade industrial como aquelas que Engels j havia descrito na Inglaterra industrial do sculo XIX gerando bairros proletrios com pssimas condies de habitabilidade.

    O Brs e a Lapa eram os bairros operrios, tanto pela proximidade da estrada de ferro inglesa, que tornava interessante a implantao das fbricas, quanto por serem as vrzeas dos rios Tamanduatey e Tiet, com forte ocorrncia de alagamento, e portanto pouco interessantes ao assentamento habitacional das elites. Estas concentravam-se nos bairros nobres, para os quais a interveno estatal no foi tmida: a construo do Viaduto do Ch, que ligava o centro velho cidade nova e a abertura da Avenida Paulista, ainda na ltima dcada do sculo XIX, e a implantao de infraestrutura bsica no bairro de Higienpolis, nas encostas arborizadas e agradveis do espigo da cidade. Segundo Bonduki, entre 1886 e 1900 que se d o primeiro momento crtico de falta de habitao na cidade de So Paulo. Vale notar que tal dinmica, embora seja exemplar na cidade de So Paulo, se reproduzia, em escala menor, nas cidades do interior do Estado onde se instalavam as primeiras indstrias ligadas ao caf (em geral indstrias txteis, como no Vale do Paraiba), e tambm nas demais capitais do pas21.

    At os anos 30, a proviso habitacional para as classes populares foi garantida pela iniciativa privada, seja atravs das vilas operrias de empresas em especial no caso de indstrias que se estabeleciam no interior do Estado de So Paulo, em locais isolados seja atravs da moradia de aluguel, que se limitava em sua maior parte construo de cortios ou de vilas de baixo padro. As vilas, uma forma de produo estimulada pelo poder pblico com incentivos fiscais por ser uma soluo de disciplinamento e higienizao, eram em So Paulo e no Rio um empreendimento interessante para investidores imobilirios que iam desde comerciantes mais abonados at grandes fortunas do caf (Bonduki, 1996:46). Entretanto, s conseguiam ter acesso a essas moradias os operrios qualificados, funcionrios pblicos, comerciantes, enfim, segmentos da baixa classe mdia, e no a populao mais

    18 Ver a respeito VILLAA, Flvio, Espao intra-urbano no Brasil, So Paulo: Nobel, 2000, obra na qual o autor analisa o processo de urbani-zao capitaneado pelas classes dominantes em vrias capitais brasileiras.

    19 BONDUKI, Op. Cit.

    20 Ver a respeito, DRUMMOND, Andr S. M. Lugares sem uso e usos sem lugar. Trabalho Final de Graduao, FAUUSP, 2002.

    21 Ver VILLAA, Op. Cit.

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    pobre. Para esta, restavam os cortios, investimento tambm muito interessante para os proprietrios, pelo baixo custo de sua construo, e que apesar de serem combatidos em nome da sade pblica, se proliferaram de forma significativa, mostrando que a demanda por solues de habitao de baixa renda comeava a ser considervel. Quando os cortios se tornavam obstculos para as iniciativas de renovao urbana conduzidas para reas mais nobres da cidade, eram demolidos e a massa sobrante obrigada a se deslocar para as reas menos valorizadas pelo mercado (Villaa,1986)

    O urbano e a moradia no perodo populista

    A era Vargas, a partir de 1930, instituiu no pais um novo clima poltico, e a emergncia na Europa do Estado do Bem-Estar Social d mpeto tentativa, no Brasil, de construo de uma nao com um Estado forte e um mercado de consumo interno mais significativo. O Estado passou ento a intervir diretamente na promoo da industrializao, atravs de subsdios indstria de bens de capital, do ao, do petrleo, construo de rodovias, etc. A burguesia agroexportadora perdia sua hegemonia, para dar lugar a um Estado populista que, entretanto, pouparia seus interesses, evitando uma reforma agrria e mantendo intacta a base fundiria do pas. Ermnia Maricato resume com preciso as caractersticas do perodo:

    O Estado mantm uma postura ambgua entre os interesses da burguesia agrria e os da burguesia industrial. ... A essncia do populismo consistir em reconhecer a questo social, mas dando a ela um tratamento paternalista e simblico, que nega a auto-organizao dos trabalhadores. A oposio e as lideranas operrias so esmagadas, mas a massa trabalhadora seria submetida a intensa propaganda do governo e das benesses que este lhe concede: instituio da Previdncia,

    promulgao da CLT, fixao do salrio mnimo (Maricato, 1997:35).

    Assim, esse perodo presenciou pela primeira vez os efeitos de uma crescente migrao rural-urbana, de uma importante massa vinda do Nordeste para o Sul em busca dos sonhados empregos industriais. Embora esse processo fosse realmente intensificar-se somente algumas dcadas depois, nos anos 50/60, o fato que tal dinmica elevou o problema da proviso habitacional para a massa operria a patamares em que o mercado no tinha mais condies de ou sobretudo interesse em enfrentar. Por isso, no mbito da proviso habitacional, a lgica populista se repetiria: o perodo Vargas ficou marcado por introduzir pela primeira vez polticas habitacionais pblicas, reconhecendo (ou cedendo s presses para reconhecer) que o mercado privado no tinha como atender demanda por moradia e anunciando que o Estado assumiria tal funo. Mas, como era caracterstico do populismo, retirou-se do mercado privado a responsabilidade pela questo habitacional, sem que houvesse, entretanto, uma poltica pblica de flego, que realmente respondesse demanda que se criava. Como mostra Maricato, os Institutos de Aposentadorias e Penses, criados na dcada de 30 e at hoje uma referncia na histria da habitao social no Brasil22, entre 1937 e 1964, iriam produzir apenas 140 mil moradias em grande parte destinadas ao aluguel, o que, segunda a autora, mostraria muita publicidade para uma resposta modesta dos programas pblicos de habitao.

    A Lei do Inquilinato de Vargas, que congelaria os aluguis em 1942, apenas intensificou a segregao urbana dos pobres nos loteamentos de periferia, pois estimulou a propriedade privada do imvel urbano, no lugar do aluguel, restringindo ainda mais o acesso habitao (Bonduki, 1998). Com a oferta d