alcances e limitações dos instrumentos urbanísticos - joão sette whitaker

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  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    cidades para que(m)?

    POLTICA, URBANISMO E HABITAO

    textos acadmicos

    Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos na

    construo de cidades democrticas e socialmente justas

    December 23, 2003/Joo Sette Whitaker

    Antecedentes histricos da desigualdade urbana

    bastante comum pensarmos que a dramtica situao em

    que esto as cidades brasileiras uma decorrncia natural do

    fato de o pas ter hoje cerca de 80% de sua populao morando

    nas cidades. como se o caos urbano, as favelas, o transporte

    precrio, a falta de saneamento, a violncia, fossem

    caractersticas intrnsecas s cidades grandes, justificando a

    enorme dificuldade do Poder Pblico em resolver esses problemase gerir a dinmica de produo urbana.

    Essa , entretanto, uma viso equivocada. Ao contrrio dos

    pases industrializados, o grave desequilbrio

    social que assola as cidades brasileiras

    assim como outras metrpoles da periferia do capitalismo

    mundial so resultantes no da natureza da aglomerao urbana

    por si s, mas sim da nossa condio de subdesenvolvimento. Em

    outras palavras, as cidades brasileiras refletem, espacial

    mente e territorialmente, os graves desajustes histricos e

    estruturais da nossa sociedade. Como muitos autores j

    ressaltaram, o fenmeno de urbanizao desigual observado em

    grande parte dos pases subdesenvolvidos se deve matriz de

    industrializao tardia da periferia.

    De fato, a atratividade exercida pelos plos industriais sobre a

    massa de mo-de-obra disponvel no campo provocou [1], a partir

    da dcada de 60, a exploso de grandes plos

    http://cidadesparaquem.org/http://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/2013/2/13/alcances-e-limitaes-dos-instrumentos-urbansticos-na-construo-de-cidades-democrticas-e-socialmente-justashttp://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/2013/2/13/alcances-e-limitaes-dos-instrumentos-urbansticos-na-construo-de-cidades-democrticas-e-socialmente-justashttp://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/2013/2/13/alcances-e-limitaes-dos-instrumentos-urbansticos-na-construo-de-cidades-democrticas-e-socialmente-justashttp://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/?author=50eed098e4b0be5191e8f657http://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/?author=50eed098e4b0be5191e8f657http://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/2013/2/13/alcances-e-limitaes-dos-instrumentos-urbansticos-na-construo-de-cidades-democrticas-e-socialmente-justashttp://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/2013/2/13/alcances-e-limitaes-dos-instrumentos-urbansticos-na-construo-de-cidades-democrticas-e-socialmente-justashttp://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/2013/2/13/alcances-e-limitaes-dos-instrumentos-urbansticos-na-construo-de-cidades-democrticas-e-socialmente-justashttp://cidadesparaquem.org/
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    urbanos no Terceiro- Mundo. Entretanto,

    esse crescimento industrial -- baseado na aliana dos

    interesses das burguesias nacionais e do capital internacional -

    - tinha como condio a manuteno do baixo valor da mo-de-obra

    abundante, o que restringia por

    princpio a possibilidade de se oferecer habitaes, infra-

    estrutura e equipamentos

    urbanos que garantissem qualidade de vida aos trabalhador

    es. A cidade industrial perifrica surge, desde ento,

    promovendo estruturalmente a desigualdade social. Ao contrrio

    do Estado keynesiano que se consolidou na Europa do Ps-Guerra,

    em que o crescimento do capitalismo fordista implicava um

    aumento generalizado dos nveis de vida e de consumo dos

    trabalhadores gerando habitaes e salrios dignos , at para

    garantir a completude do ciclo produo-consumo , aqui a

    associao das burguesias

    nacionais com os interesses do capitalismo internacional

    construiu um capitalismo

    canhestro, voltado exportao e explorador da massa de

    mo-de-obra disponvel, processo que Florestan Fernandes e

    outros pensadores chamaram de desenvolvimento desigual

    em relao ao desenvolvimento do capitalismo hegemnico

    dos pases industrializados e combinado pois dispunha

    novas estruturas econmicas industriais trazidas do centro sobre

    estruturas internas arcaicas herdadas do Brasil colonial.

    Pois esse processo de industrializao, que gerou o que Maricato

    (1996 e 2000) chamou de urbanizao com baixos salrios,

    estabeleceu-se por sobre uma estrutura social que nunca havia

    resolvido as contradies oriundas da sociedade colonial. Um

    sculo antes, no mbito do trabalho, a substituio dos escravos

    por trabalhadores livres implicou na instaurao de um sistema

    marcado pela dominao pessoal e a troca de favores, e no na

    generalizao do trabalho assalariado nos moldes do capitalismo

    central. Em relao

    posse da terra, com o fim do trfico negreiro em 1850

    a Lei de Terras institui a propriedade das terras devolutas

    apenas mediante compra e venda, dando-lhes um valor que no

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    tinham at ento, e afastando a possibilidade de tornar

    proprietrios de terra imigrantes e escravos.

    Essa foi a base arcaica sobre a qual se assentou, cem anos

    depois, a industrializao brasileira. Um novo modelo de

    produo, segundo Francisco de Oliveira simultaneamente

    industrial e urbano, que aprofundava a diviso social do

    trabalho herdada do modelo agro- exportador anterior. Com o

    forte crescimento industrial, ao qual no correspondia um

    desenvolvimento urbano socialmente digno, estava coloc

    ada a situao para o surgimento de uma dinmica urbana

    conflituosa, parametrizada pela luta de classe.

    Ermnia Maricato (1996) j mostrou como, nesse contexto,enquanto as periferias urbanas expandiam seus limites -- sempre

    desprovidas dos servios urbanos essenciais -- para receber o

    enorme contingente populacional de migrantes rurais ao longo dos

    anos 60 e 70, o mercado formal urbano se restringia a uma

    parcela das cidades que atendia as classes mais favorecidas,

    deixando em seu interior grande quantidade de terrenos vazios,

    na especulao por uma futura valorizao imobiliri

    a. Paradoxalmente, esse espraiamento perifrico da cidadeindustrial brasileira se dava pela ao deliberada do Estado,

    que estimulava em especial no perodo militar solues

    habitacionais de baixo custo nas periferias, por serem adequadas

    ao modelo do capitalismo brasileiro, mantendo baixos os valores

    de reproduo da fora de trabalho.

    Como resultado desse processo historicamente excludente o

    quadro atual visto nas grandes metrpoles brasileiras

    invariavelmente de absoluta pobreza, corroborando um quadro

    generalizado pelo continente [2]. Nessas cidades, estima-se que

    cerca de 50% da populao, em mdia, se encontre na

    informalidade [3]. Os moradores de favelas so cerca de 20% da

    populao de So Paulo, assim como de Porto Alegre, Belo

    Horizonte ou do Rio de Janeiro, chegando a 46% em Recife (Bueno,

    apud Clichevsky, 2000).

    Alm disso, o atual quadro urbano continua mostrando um

    exagerado ritmo de

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    crescimento das periferias pobres em relao aos c

    entros urbanizados, que paradoxalmente esto geralmente

    esvaziando-se. Enquanto a taxa mdia de crescimento anual das

    cidades brasileiras de 1,93%, o crescimento na periferia de

    So Paulo, por exemplo, chega em algumas regies a taxas

    superiores a 6% ao ano. Em compensao, o centro da cidade

    apresenta taxas de crescimento negativo, em torno de 1,2%.

    Entretanto, as polticas pblicas, na maioria das cidades do

    pas, continuam a favorecer em seus investimentos urbanos apenas

    as regies mais favorecidas. Flvio Villaa (2000) mostrou como,

    na maior parte das capitais do pas, verifica-se recorrentemente

    um eixo de desenvolvimento produzido pelas elites em seus

    deslocamentos em busca das reas mais privilegiadas para se

    viver. Em uma clara inverso de prioridades, os governos

    municipais investem quase que exclusivamente nessas pores

    privilegiadas da cidade, em detrimento das demandas urgentes da

    periferia. Em pesquisa recente (Ferreira, 2003), mostramos como,

    em So Paulo, foram investidos em apenas trs anos, entre 1993 e

    1995, cerca de R$ 4 bilhes [4] de dinheiro pblico em apenas 6

    grandes obras virias, destinadas geralmente ao trfego de

    veculos individuais, em um quadrante de cerca de 50 km,

    justamente aquele em que se concentram os investimentos

    imobilirios de elite.

    Nas grandes cidades, sob a frgil justificativa de se c

    riar centralidades tercirias conectadas economia global

    [5], estabelecem-se ilhas de primeiro-mundo em meio ao

    mar de pobreza e excluso, sofisticados centros de negc

    ios que exacerbam a segregao social urbana e se apropriam

    de grande parte dos investimentos pblicos.

    Tal cenrio evidencia a necessidade premente de se reverter um

    quadro de excluso e segregao scio-espacial que apenas

    reflete espacialmente a inquietante fratura social do pas.

    Nesse sentido, o papel do Poder Pblico, em especial dos

    executivos municipais, torna-se fundamental na medida em que

    consiga romper com sua histrica tendncia a

    favorecer apenas os interesses dominantes. Os Planos Dire

    tores e os instrumentos

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    urbansticos do Estatuto da Cidade podem vir a ser ferr

    amentas importantes nesse processo, embora no sejam por si s

    garantia de mudanas. Antes de discut-los, porm, importante

    entender a dinmica pela qual se consolidam no pas esses

    instrumentos, sem o que a compreenso de seu papel ficaria

    prejudicada.

    O papel dos movimentos populares na reforma urbana

    Face ao inquietante quadro exposto at aqui, fcil entender

    que as desigualdades

    geradas pelo processo de industrializao e de urbaniza

    o geraram rapidamente insatisfaes sociais significativas. J

    em 1963, o Seminrio Nacional de Habitao eReforma Urbanatentou refletir parmetros para balizar o crescimento das

    cidades que comeava a se delinear. A ditadura militar desmontou

    a mobilizao da sociedade civil em

    torno das grandes reformas

    sociais, inclusive a urbana, substituindo-a por um

    planejamento urbano centralizador e tecnocrtico. No campo da

    habitao, embora o regime tenha produzido, atravs do SFH/BNH,

    mais de 4 milhes de moradias, o recorte capitalista dessaproduo tambm marcada pelo clientelismo e a troca de favores

    visava mais resultados quantitativos que rendessem frutos

    polticos do que qualitativos, e era voltado ao esforo do

    milagre econmico, favorecendo as grandes empreiteiras. Pelo

    custo que estas conseguiam praticar, as polticas habitacionais

    no conseguiram atingir a

    populao mais pobre, abaixo de 5 SM, que ia aumentando

    cada vez mais, em decorrncia de um modelo econmico deintensa concentrao da renda. Isso aprofundou cada vez mais o

    fosso entre o mercado imobilirio legal e os que no tinham

    acesso a ele.

    Nos anos 70, os excludos do milagre brasileiro comeam a

    mobilizar-se em torno da

    questo urbana, reivindicando a regularizao dos lo

    teamentos clandestinos, a construo de equipamentos de

    educao e sade, a implantao de infra-estrutura nas

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    favelas, etc. Uma primeira vitria ocorre em 1979, com

    a aprovao da Lei 6766, regulando o parcelamento do solo e

    criminalizando o loteador irregular. Na Constituinte de 1988,

    130.000 eleitores subscrevem a Emenda Constitucional de

    Iniciativa Popular pela Reforma Urbana, e com isso conseguem

    inserir na Constituio os artigos 181 e 182, que introduzem o

    princpio da funo social da propriedade urbana. Porm, a

    regulamentao desses artigos s viria a ocorrer 11 anos depois,

    com a aprovao definitiva do captulo da reforma urbana da

    nossa constituio, em uma tramitao que contou com a presso

    constante do Frum Nacional de Reforma Urbana, e que culminou

    com a aprovao do Estatuto da Cidade.

    O que so instrumentos urbansticos?

    Para se entender a funo dos instrumentos urbansticos, que

    iremos tratar neste texto,

    preciso voltar um pouco questo da formao do estado

    keynesiano das sociais- democracias europias do ps-guerra.

    Os esforos para a construo de uma sociedade industria

    l que promovesse certa distribuio das riquezas para o

    conjunto dos trabalhadores para garantir um patamar aquisitivo

    compatvel com a necessidade do prprio sistema em gerar consumo

    deu ao Estado keynesiano um papel central na mediao entre os

    interesses do capital e do trabalho, garantindo direitos

    fundamentais e universais como o acesso educao,

    sade, e a garantia dos direitos trabalhistas. Esse pape

    l do Estado se reproduzia naturalmente no mbito

    habitacional e urbano, visando garantir o direito moradia ao

    conjunto da populao [6]

    e controlando as aes do capital imobilirio, por natur

    eza especulativo e privatista [7].

    Nesse sentido, fortaleceu-se desde ento na Europa, e

    posteriormente tambm at na Amrica do Norte, uma tradio

    intervencionista do Estado na regulamentao e no

    controle do desenvolvimento urbano, para garantir uma mn

    ima variedade social na

    produo urbana, buscando prover habitao de interesse s

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    ocial integrada malha urbana, para proteger antigos

    moradores mais pobres dos processos decorrentes da valorizao

    imobiliria, que os expulsam e substituem por moradores de maior

    renda (a chamada gentrificao), para permitir a preservao dos

    espaos pblicos como espaos de uso democrtico, protegendo-

    os da ao invasiva da iniciativa privada, e para

    promover usos habitacionais sociais no mercado imobilirio

    privado atravs de aes de induo e incentivo. Vale notar que

    essa tradio no conseguiu impedir, nem naqueles pases,

    processos marcantes de excluso social e de gentrificao,

    capitaneados pelas foras do mercado. Mas o que se pretende

    discutir aqui que, de maneira geral, e apesar dos percalos,

    h hoje uma certa cultura poltica naqueles pases de respeito

    ao papel importante do Estado no controle urbano.

    Para dar ao Estado a capacidade de exercer tal funo, uma

    variedade de instrumentos jurdicos e financeiros foram criados.

    Por um lado, deu-se ao Estado um poder regulador significativo

    sobre o uso e a ocupao do solo, estabelecendo-se restries de

    uso,

    parmetros de adensamento, limites verticalizao, taxas

    de ocupao, punies efetivas para o descumprimento das

    leis urbansticas, etc. Por outro lado, criou-se uma estrutura

    financeira evidentemente apoiada na incomparvel

    disponibilidade de recursos que aqueles pases dispunham e

    dispem e uma gama de isenes para incentivar, atravs de

    linhas de crdito e renncias tributrias especficas,

    determinadas aes dos agentes privados, como por exemplo a

    recuperao e manuteno de edifcios antigos nas reas

    centrais, sua reconverso para locao social privada, ou ainda

    a fixao da populao mais pobre em seus locais de residncia,

    graas a auxlios financeiros diretos. Entre os incontveis

    instrumentos urbansticos, poderamos citar, por exemplo, as

    Znes dAmnagement Concert (ZAC) francesas, depois recuperadas

    e distorcidas no Brasil, espcies de intervenes do Estado

    sobre a propriedade fundiria, a partir das quais o

    Poder Pblico define novos usos e promove a construo

    e urbanizao de reas urbanas degradadas segundo novas

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    diretrizes, vendendo-as em seguida para promover sua

    requalificao. H tambm naquele pas a experincia antiga, da

    dcada de 70, da outorga onerosa, l chamada de Plafond Legal

    de Densit, tambm experimentada nos EUA na mesma poca, e que

    estabelece a cobrana pelo direito de construir acima dos

    limites determinados pelo Poder Pblico para determinada rea da

    cidade.

    Alm dos instrumentos de urbanizao e de regulao do uso e

    ocupao, como os dois acima citados, h tambm instrumentos de

    carter tributrio e financeiro. Continuando

    com os exemplos franceses, h por exemplo naquele pas

    uma linha de crdito extremamente vantajosa, oferecida pelo

    banco pblico de fomento habitacional, para proprietrios que

    queiram renovar para fins habitacionais edifcios degradados em

    reas centrais e aceitem alugar parte dos apartamentos, por

    determinado tempo, por preos tabelados pelo governo e

    considerados "sociais". Outra ao muito comum a iseno de

    impostos municipais para incentivar determinadas reformas ou

    usos que interessem ao Poder Pblico. Mas sem dvida nenhuma, a

    Lei da solidariedade urbana, aprovada na Frana em 2000, o

    exemplo mais significativo de at onde o Poder Pblico pode ir

    no controle da produo do espao urbano: por essa lei, todo

    municpio francs deve garantir que no mnimo 20% de seu estoque

    de habitaes tanto pblicas como privadas seja de interesse

    social, sem o que o municpio se v obrigado a pagar

    significativa multa ao Ministrio da Habitao.

    Os chamados instrumentos urbansticos criados na

    Europa do Ps-Guerra visavam portanto garantir ao Estadoferramentas jurdico-institucionais que lhe permitissem exercer

    um controle efetivo sobre as dinmicas de produo e uso do

    espao urbano, buscando

    promover o interesse pblico acima do privado, e tentand

    o mediar os conflitos naturalmente decorrentes dessas

    dinmicas.

    Pois bem, nessa mesma lgica que, no Brasil, os defensores da

    Reforma Urbana se mobilizaram para garantir a aprovao, na

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    Constituio e posteriormente no Estatuto da Cidade, de

    instrumentos que permitissem dar s prefeituras um instrumental

    para exercer algum controle sobre as dinmicas de produo da

    cidade. Esse o princpio, em suma, dos chamados instrumentos

    urbansticos apresentados no Estatuto da Cidade.

    Note-

    se, entretanto, a profunda diferena estrutural entre as

    realidades dos pases industrializados e a brasileira, j

    tratada no incio deste texto. Enquanto l os instrumentos

    urbansticos surgem no ps-

    guerra, concomitantemente estruturao do Estado do bem-

    estar social, como ferramentas necessrias para que o Poder

    Pblico possa desde o incio, no mbito urbanstico, promover

    esse modelo poltico-econmico e social e mediar

    os interesses do capital face ao bem pblico urbano, no

    Brasil os instrumentos urbansticos surgem como uma

    tentativa de reao face a um modelo de sociedade e de

    cidade estruturalmente organizadas de forma propositalmente

    desigual, o que muda

    completamente seu potencial e seu possvel alcance. Aqui,

    trata-se de reverter a posteriori um processo histrico-

    estrutural de segregao espacial, o que significaria, em

    essncia, dar ao Estado a capacidade de enfrentar os privilgios

    urbanos adquiridos pelas classes dominantes ao longo de sua

    hegemnica atuao histrica de 500 anos. No se trata, pois, de

    tarefa simples. E desde j percebe-se que tais instrumentos s

    podero ter alguma eficcia se houver, ao mesmo tempo em que so

    criados, uma vontade poltica muito determinada no sentido de

    promover a reverso do quadro de desigualdade urbana em que

    vivemos, enfrentando portanto os poderosos interesses que

    hegemonizam hoje a produo do espao urbano. Sem essa vontade

    poltica, que implica em polticas de

    governo claramente dispostas a enfrentar os privilgios d

    as classes dominantes, os instrumentos urbansticos podem

    servir apenas como uma maquiagem demaggica sem muito poder para

    mudar o quadro urbano brasileiro. Vale notar que a briga

    longa, e at agora, tem sido difcil.

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    O Plano Diretor como um pacto social

    justamente nesse sentido, o de garantir a execuo de uma

    vontade poltica coletiva de recuperao democrtica das

    cidades, que os Planos Diretores, embora fragilizados por

    dcadas de burocratismo e ineficcia, podem passar a ter um

    papel importante, ao abrir novas possibilidades, graas ao

    Estatuto da Cidade, de dinmicas participativas que aumentem

    o controle social sobre os processos de produo da cidade.

    Como se sabe, a Constituio de 1988 obrigou todo municpio com

    mais de 20.000 habitantes a ter um plano diretor. Embora fosse

    um instrumento urbanstico antigo, tal fato o reinseriu na

    agenda poltica urbana, ainda mais quando o Estatuto da Cidade,aprovado em 2001, determinou que as cidades que ainda no tm

    plano o produzam em 5 anos.

    Alm disso, o Estatuto d uma importncia significativa

    aos Planos Diretores, ao determinar que seja neles que se

    faa a regulamentao dos instrumentos urbansticos propostos.

    Esse fato tem conseqncias positivas e negativas. Positivas

    porque joga para a esfera municipal a mediao do conflito entre

    o direito privado e o interesse pblico, eisso bom pois permite as necessrias diferenciaes en

    tre realidade municipais completamente diversas no pas. Alm

    disso, garante que a discusso da questo urbana no nvel

    municipal torne-se mais prxima do cidado, podendo ser mais

    eficientemente

    participativa. Porm, o aspecto negativo que, ao jogar

    a regulamentao dos instrumentos para uma negociao

    posterior no mbito dos Planos Diretores, estabelece- se umanova disputa essencialmente poltica no nvel municipal, e

    conforme os rumos que ela tome, esses instrumentos podem ser

    mais ou menos efetivados. Em alguns casos, at, j ocorreu que o

    prprio texto do Plano Diretor, ao propor os novos instrumentos

    do

    Estatuto, relegue sua regulamentao local para mais uma

    etapa ainda ulterior, estendendo alm do razovel seu prazo

    de efetivao.

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    O plano diretor um conjunto de diretrizes urbansticas

    destinadas a organizar e induzir formas desejveis do ponto de

    vista do Poder Pblico, diga-se de ocupao e uso do solo.

    Define as polticas pblicas urbanas, como os transportes, o

    zoneamento, a proviso de habitaes de interesse social, etc.

    Aparentemente, sua obrigatoriedade foi um avano

    na direo de cidades mais democrticas e justas. Mas, como

    qualquer instrumento de poltica pblica, o plano diretor pode

    ter inmeras feies. Por exemplo, como j mostrou

    Villaa (1999) ele vem sendo usado h tempos nas grande

    s cidades como um instrumento dos interesses das classes

    dominantes, com pouca efetividade na soluo

    dos problemas reais das reas perifricas. Nesse sentido,

    no h dvidas que os instrumentos propostos no Estatuto

    da Cidade do um novo flego aos Planos Diretores, conforme

    veremos adiante.

    A tradio urbanstica brasileira, como visto calcada em um

    Estado estruturado para ratificar a hegemonia das classes

    dominantes, sempre tratou os planos diretores por um vis

    tecnicista que os tornavam hermticos compreenso do cidadocomum, mas eficientes em seu objetivo poltico de engessar as

    cidades nos moldes que interessavam

    s elites, muito embora grande nmero de urbanistas tenham se

    esforado, na dcada de

    70 e apesar do regime vigente, em torn-los

    mais eficientes. Mas por exemplo nas

    grandes capitais, infelizmente marcaram histria os

    calhamaos tcnicos nada

    democrticos, que serviram mais para fins eleitorais, par

    a estabelecer uma rgida regulamentao nos bairros ricos, ou

    ainda para priorizar a construo de mais e mais

    avenidas (em detrimento dos transportes pblicos), enchend

    o os bolsos de polticos inescrupulosos e dos especuladores

    imobilirios. Em compensao, os Planos Diretores pouco fizeram

    para a enorme parte da populao excluda da chamada cidade

    formal. Na prtica, os planos se distanciaram da realidade

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    urbana perifrica, e no impediram a fragmentao das polticas

    pblicas urbanas. por isso, alis, que hoje vm sendo

    pesquisadas novas metodologias de planejamento, mais

    prximas da realidade e da gesto locais, mais abertas

    participao dos agentes sociais dos bairros, e promotoras

    de uma reintegrao transversal das polticas setoriais,

    como os Planos de Ao

    Habitacionais e Urbanos propostos recentemente pelo Labora

    trio de Habitao e Assentamentos Humanos (LabHab) da

    FAUUSP.

    Mas isso no impede, obviamente, que hoje os planos dir

    etores possam ser um instrumento eficaz para inverter a

    injusta lgica das nossas cidades, em especial nas cidades de

    mdio porte, ainda no to atingidas pela fratura social urbana.

    Mas, para isso, no devem ser um ementrio de tecnicismos, mas

    um acordo de toda a sociedade para nortear seu crescimento,

    reconhecendo e incorporando em sua elaborao todas as

    disputas e conflitos que nela existem. S

    assim, surgido de um amplo e demorado processo

    participativo, que no fique sujeito apressada agenda

    poltico-eleitoral dos governantes de turno (em que a

    "governabilidade" e a busca pela reeleio passam por cima dos

    fins pblicos que se deseja das polticas pblicas), o Plano

    Diretor pode se tornar um ponto de partida institucional para

    que se expressem todas as foras que efetivamente constroem a

    cidade. Se toda a populao inclusive as classes menos

    favorecidas apreender o significado transformador do plano,

    cobrar sua aprovao e fiscalizar sua aplicao,

    transformando-o em uma oportunidade para conhecer melhor seu

    territrio e disputar legitimamente seus espaos.

    Entretanto, a gesto participativa no pode se ater apenas ao

    aumento das audincias pblicas ou dos fruns de discusso com

    os diferentes setores da sociedade civil. Hoje a

    "participao", mesmo em governos de esquerda, se d com

    hora marcada, em audincias j pautadas, sobre assuntos pr-

    estabelecidos. Como bem lembra o urbanista Flvio Villaa, de

    se perguntar porque o tema da "participao" geralmente s se

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

    13/23

    aplica a certos assuntos de governo, e no a todos. No Brasil,

    os fruns participativos ainda se

    limitam ao Oramento Participativo, ou a Planos Diretores

    que nem sempre sero efetivados. Porque, por exemplo, no

    h mecanismos de participao nas decises de investimentos das

    empresas de saneamento, ou nas de metr? A participao deveria

    incorporar de forma estrutural e definitiva a presena decisria

    da populao em todas as estruturas de gesto da mquina

    administrativa, da escala local escala mais geral. Nesse

    sentido, o processo de discusso das Conferncias das Cidades,

    implementado este ano pelo Ministrio das Cidades, uma

    excelente iniciativa, ainda mais considerando tratar-

    se de um processo que abarca todo o pas. Tambm so

    fundamentais, por exemplo, os conselhos participativos de

    habitao e de poltica urbana, implantados em

    vrias cidades do pas, em decorrncia da exigncia de

    processos de gesto participativos colocada pelo Estatuto da

    Cidade, desde que seja dada a eles uma funo

    efetivamente decisria e no apenas figurativa. Porm,

    certo que o grau de participao, sobretudo com algum poder

    de deciso, deve ir ainda muito mais longe para comear a ser

    eficaz em seu papel politizante e pedaggico, e como um

    instrumento de democratizao da gesto pblica.

    Infelizmente, ainda hoje planos diretores

    continuam resultando muitas vezes de uma

    apressada montagem em gabinetes, visando apenas transform

    -los, o mais rpido possvel, em fatos polticos. Nas

    pequenas e mdias cidades brasileiras, entretanto, a

    perspectiva mais animadora, pois a mobilizao da popu

    lao para um processo participativo mais simples, e por

    isso planos diretores democrticos podem ter enorme efeito. Mais

    uma vez, foi fundamental a cultura de mobilizao e o processo

    de discusso participativa alavancados pelas Conferncias das

    Cidades organizadas pelo Ministrio das Cidades. A tomada de

    conscincia coletiva sobre os desafios da questo urbana que as

    conferncias promoveram ajudar a romper o verdadeiro mercado

    de planos criado por urbanistas interessados em vender s

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    prefeituras pacotes tcnicos que nem se preocupam em assimilar

    as disputas sociais existentes, e cria um cenrio positivo para

    a discusso participativa do Plano Diretor e dos instrumentos do

    Estatuto.

    Mas o que os Planos Diretores tm exatamente a ver com os

    instrumentos urbansticos de que trataremos aqui? Como vimos,

    eles so fundamentais pois neles que, segundo o Estatuto da

    Cidade, esses instrumentos devem ser propostos e regulamentados

    no nvel municipal. Nesse sentido, fica absolutamente claro que,

    por princpio, os instrumentos urbansticos propostos no

    Estatuto da Cidade nem esto desde j garantidos e nem so

    automaticamente eficazes. Tudo depende, na verdade, da fo

    rma como eles sero includos e detalhados nos Planos

    Diretores.

    Os Instrumentos Tributrios e de Induo do Desenvol

    vimento: Direito de

    Preempo, Direito de Superfcie, Urbanizao Compulsr

    ia, IPTU Progressivo, Outorga Onerosa do Direito de Construir,

    Operaes Urbanas Consorciadas.

    Temos ento que os instrumentos tributrios e de induo do

    desenvolvimento urbano tentam estabelecer, no cenrio

    brasileiro, uma perspectiva de uma nova presena do Estado na

    regulamentao, induo e controle dos processos de produo da

    cidade. Cabe obviamente ressaltar que sua eficcia ainda

    incerta, embora as previses sejam otimistas, em especial a

    mdio e longo prazos. Entretanto, vale sempre repetir que seu

    sucesso do ponto de vista do bem pblico e da reverso das

    desigualdades urbanas depender sempre de uma forte e

    determinada vontade poltica, j que os objetivos a atingir se

    confrontam com interesses poderosos.

    importante separar aqui o que se

    chamou de instrumentos "tributrios" daqueles

    considerados de "induo ao desenvolvimento urbano". Aquel

    es citados no subttulo acima esto apenas na segunda

    categoria (inclusive o IPTU progressivo), embora todos

    eles possam at eventualmente servir para arrecadao, o

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    que as vezes at acaba

    desvirtuando seu sentido, como veremos adiante. Os instru

    mentos de induo do desenvolvimento urbano visam, em

    essncia, refrear o processo especulativo e regular o preo da

    terra, ao forar o exerccio da funo social da propriedade

    urbana punindo o "mau proprietrio", buscam permitir um maior

    controle do Estado sobre usos e ocupaes do solo urbano, em

    especial em reas que demandem uma maior democratizao.

    Imveis situados na chamada cidade formal geralmente se

    beneficiam de infra-estrutura urbana (esgoto, gua, luz,

    asfalto, etc.) custeada pelo poder pblico e, portanto, por toda

    a sociedade. Mant-los vazios representa um alto custo social.

    Exercer a funo social da propriedade no nada alm de dar-

    lhes uso. Nos centros das nossas metrpoles, por

    exemplo, o descompasso entre os proprietrios, que

    mantm um mercado

    sobrevalorizado irreal (edifcios ficam desocupados por an

    os, sem ter quem queira compr-los ou alug-los), e a

    demanda generalizada por habitao pelas faixas de renda mais

    pobres tanto moradoras dos centros, geralmente em cortios,

    quanto das periferias que no tm como acessar essa oferta,

    gera uma situao inaceitvel. Nesses casos, os instrumentos

    tributrios e de induo do desenvolvimento urbano podem ter um

    papel importante, ao dar ao Poder Pblico ferramentas que lhe

    possibilitem regular e controlar os terrenos vazios, os negcios

    imobilirios de compra-e-venda, e assim por diante.

    Como j existe farto material terico

    apresentando exaustivas discusses tcnicas a respeito decada um desses instrumentos [8], iremos fazer a seguir uma

    reflexo sobre eles a partir da tica discutida neste artigo at

    aqui.

    Instrumentos tributrios e de financiamento

    Vale mencionar que trata-se aqui de instrumentos que no esto

    geralmente previstos no Estatuto da Cidade, mas que os Planos

    Diretores certamente devem considerar, fazendo uso de

    inventividade e inovao.

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    O IPTU, por exemplo, importante instrumento de arrecadao, e

    que deve ser um tributo progressivo (neste caso, que no o da

    progressividade no tempo, significa que os mais ricos pagam mais

    e os mais pobres pagam menos ou nada), ainda pouco cobrado nas

    cidades brasileiras, at mesmo porque ainda preocupante a

    falta de sistemas cadastrais municipais integrados, que dem s

    prefeituras uma melhor capacidade de controle, de gesto e de

    arrecadao.

    Mas inmeros outros benefcios fiscais e financeiros podem ser

    pensados e aplicados para fomentar determinadas diretrizes

    urbanas. Isenes tributrias podem ser usadas para incentivar

    reformas e/ou novos usos, e linhas de financiamento podem ser

    pensadas,

    por exemplo para reabilitao de imveis em rea central

    , para auxlio-moradia populao ameaada de expulso por

    causa da valorizao fundiria/imobiliria, e assim por diante,

    para incentivar o aluguel de baixo custo no mercado privado, e

    assim por diante. Um instrumento interessante, que recentemente

    tornou-se lei em So Paulo, est na compra pela prefeitura de

    imveis devedores de IPTU com desconto do valor da dvida no

    preo pago, para uso habitacional de interesse social.

    Mas, evidentemente, trata-se de um conjunto de iniciativas que

    ainda depende, at pelas

    drsticas limitaes financeiras por que passam os munic

    pios, da estruturao de polticas habitacionais e de

    financiamento moradia integradas, que envolvam todas as

    esferas de governo. importante frisar o novo papel que a Caixa

    Econmica federal poderia exercer nesse sentido, e a importnciada criao do Ministrio das Cidades, que deve poder reger esse

    processo.

    IPTU Progressivo, Edificao ou Utilizao Compulsria e

    Desapropriao com pagamento em ttulos da dvida pblica.

    Este conjunto de instrumentos visa atingir diretamente as

    propriedades urbanas que no cumprem a sua funo social. A

    partir do momento em que so considerados sub- utilizados

    ou vazios pelo Poder Pblico, pode ser exigida a edificao ou a

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    utilizao

    compulsrias, que se no atendida gerar um aumento prog

    ressivo do IPTU regulamentado e com limites claramente

    estabelecidos at resultar, aps 5 anos de

    progressividade, na possibilidade de desapropriao do im

    vel com pagamento com ttulos da dvida pblica. Trata-se

    claramente de uma sano aplicvel ao proprietrio que no

    respeite a funo social de seu imvel, o chamado "mau

    proprietrio".

    Embora seja um dos instrumentos de mais fcil compreens

    o, e cujo efeito seja potencialmente promissor, difcil

    dar ao IPTU progressivo (entendido como o conjunto

    dos trs instrumentos acima citados) um carter de polt

    ica urbana de reverso da especulao imobiliria, como

    tampouco de instrumento efetivo de arrecadao. Ele deve sim ser

    entendido como uma ao punitiva do Estado, que pode

    eventualmente conseguir

    conter tais processos especulativos. Isso porque os

    procedimentos que esses instrumentos estabelecem so

    longos, podem durar at sete anos, e so pontuais, tendo de ser

    autuados e resolvidos caso a caso, dependendo de uma gesto

    pblica eficaz, at mesmo para realizar o trabalhoso

    levantamento dos casos passveis de aplicao.

    Alm disso, um outro ponto desses instrumento bastante

    polmico: ao determinar que seja regulamentado no Plano Diretor,

    que deve identificar as reas sujeitas ao IPTU progressivo, o

    Estatuto da Cidade deixa em aberto o que se entende por imveis

    sub- utilizados. At que ponto, por exemplo, um amploestacionamento na rea central, cujo terreno certamente servir

    um dia para alguma valorizada incorporao imobiliria, est ou

    no cumprindo sua funo social? At que ponto ele uma rea

    sub-utilizada? E um edifcio de dez andares em que apenas o

    trreo esteja sendo utilizado? Evidentemente, a definio desses

    critrios depende das disputas polticas que ocorrero nas

    Cmaras

    Municipais, e dependendo dos seus resultados, pode diminu

    ir significativamente o impacto do IPTU Progressivo como

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    instrumento de controle do exerccio da funo social da

    sociedade dos imveis urbanos.

    Outorga Onerosa, transferncia do direito de construir

    e Operaes Urbanas Consorciadas

    O princpio do solo criado, bastante simples de entendimento,

    talvez seja um dos mais antigos instrumentos urbansticos de

    induo do desenvolvimento, j testado em vrias

    cidades brasileiras. Como j dito, ele se origina em ex

    perincias internacionais, notadamente na Frana e nos EUA. No

    Brasil, a primeira experincia certamente remonta dcada de 70

    em So Paulo, quando o ento prefeito Olavo Setbal props, em

    1976, lei nesse sentido, e esse instrumento vem desde entosendo constantemente discutido por urbanistas e demais

    militantes da Reforma Urbana [9]. A idia dar ao Poder Pblico

    a possibilidade de recuperar a mais-valia obtida pelo

    proprietrio graas valorizao gerada por investimentos

    pblicos urbanos. Ao prover infra-estrutura urbana, a ao do

    Poder Pblico geralmente provoca imediata valorizao fundiria

    e imobiliria da rea, gerando lucros significativos aos

    proprietrios. O solo-criado, que torna o direito de construirindependente da propriedade urbana, permite que o Estado onere

    construes que ultrapassem limites que ele mesmo estabelece.

    Assim, a outorga onerosa possibilita regular distores de

    valorizao geradas por essas intervenes, ou ainda compensar

    as perdas do proprietrio relativas a processos de tombamento.

    Nesses casos, o proprietrio de imvel tombado, que perde o

    direito de construir naquele terreno, pode transferir esse

    direito para outras propriedades na cidade, usando-se doinstrumento da Transferncia do Direito de Construir, prevista

    no artigo 35 do Estatuto da Cidade.

    A outorga onerosa aprovada no Estatuto da Cidade (art. 28 a 31)

    responde a vrias

    possibilidades j testadas em diferentes cidades brasileir

    as [10]. A venda de potencial construtivo pode por exemplo

    permitir uma maior verticalizao as vezes, mas nem sempre,

    revertida em maior adensamento em corredores urbanos ou outras

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    reas cujo desenvolvimento urbano possa ser induzido. Por outro

    lado, o mesmo instrumento pode

    eventualmente refrear a verticalizao em bairros residenc

    iais horizontalizados, ao estabelecer uma taxao para a

    construo acima de um coeficiente construtivo bsico

    (geralmente 1). Trata-se tambm de um eventual mecanismo de

    arrecadao, que pode ser aplicado em bairros com potencial de

    verticalizao, que ser portanto devidamente onerada. Mas essa

    possibilidade de arrecadao no pode transformar-se no

    objetivo do instrumento, pois seno ele acabar subordinando as

    necessrias decises urbansticas desenfreada corrida por

    arrecadao. Nesse caso, a poltica urbana acaba tornando-se

    refm de uma lgica tributria, o que resulta em pssimos

    resultados para a cidade.

    Essa a distoro que ocorre com as Operaes Urbanas

    Consorciadas, tambm previstas no Estatuto da Cidade. Estas

    so, em suma, uma variante da outorga onerosa, em que se

    especifica uma rea dentro da qual os recursos arrecadados com a

    venda de potencial construtivo devero ser obrigatoriamente

    aplicados para a recuperao viria e urbana. O argumento

    central desse instrumento o de que dessa forma possibilita-se

    parcerias entre o Poder Pblico e o setor privado, atravs das

    quais o capital privado, interessado na compra do solo-criado,

    acaba financiando a recuperao da cidade, naquele trecho

    especfico. Segundo seus defensores, esse instrumento permitiria

    que renovaes urbanas saiam "de graa" para o poder executivo

    municipal. Entretanto, a Operao Urbana certamente um dos

    instrumentos mais polmicos do estatuto, pois pode ser utilizado

    apenas para responder aos interesses dos setores

    imobilirios da cidade. Isso ocorreu, por exemplo, nos casos de

    Operaes Urbanas j ocorridos na cidade de So Paulo, em

    especial na conhecida Operao Urbana Faria Lima.

    Como pela lei os recursos arrecadados nas Operaes Urbanas com

    a venda de solo-

    criado devem ser exclusivamente aplicados na melhoria da

    infra-estrutura viria da prpria rea da operao, tm-se

    essa impresso de que as avenidas saem "de graa" para a cidade,

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    financiadas pela iniciativa privada. Entretanto, se a operao

    urbana se prope a "vender" solo-criado para arrecadar fundos

    para a melhoria viria, estima-se que ela s possa ocorrer em

    reas onde o mercado tenha interesse em comprar, sem o que a

    operao torna-

    se, no jargo do mercado, um "mico". Entretanto, assiste

    -se uma corrida para definir reas de Operaes Urbanas,

    sob o forte argumento de que assim a cidade toda estar sendo

    renovada s custas do capital privado. Porm, o que ocorre de

    fato que as decises de polticas de planejamento urbano

    acabam subordinando-se

    aos interesses do mercado e, para evitar micos, o Pod

    er Pblico tem de fazer investimentos prvios para sinalizar

    ao mercado que a rea valer o investimento. Esses investimentos

    nunca so computados nos custos das operaes, evidentemente, e

    se a operao no "colar", os prejuzos aos cofres pblicos

    sero enormes. J comentamos acima como a regio da Faria Lima,

    em So Paulo, recebeu milionrios recursos pblicos virios em

    reas que "coincidentemente" estavam na regio da Operao

    Urbana, mas que no foram computadas em seu custo. Alm disso,

    as desapropriaes para abertura de novas avenidas gera

    processos judiciais e precatrios, que tambm no entram no

    clculo "oficial", escamoteando o real prejuzo pblico gerado

    pela operao. Ainda no caso de So Paulo, estima-se que esses

    precatrios superem R$ 1 bilho na Av. Faria Lima, e a Av. guas

    Espraiadas, rea de uma nova Operao Urbana, j custou outro

    bilho para ser feita (com a canalizao do crrego), antes

    mesmo do incio da operao.

    Alguns urbanistas defendem a criao de ttulos financeiros, os

    CEPACS, negociveis na bolsa, correspondendo ao estoque de rea

    construda "a mais" a ser disponibilizada na operao. Assim,

    lana-se no mercado papis representando os metros quadrados a

    construir, que podem ser comprados por qualquer um. Dessa forma,

    o Poder Pblico arrecada de uma s vez o valor necessrio

    obra de urbanizao, no tendo que adiantar esses fundos.

    Porm, alm do riso desse recurso (pois o CEPAC pode no Ter

    sucesso na bolsa e tornar-se outro "mico"), ele subordina de vez

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    a poltica urbana aos interesses e lgica do mercado, j que,

    por incrvel que parea. Uma pessoa que nem sequer tenha terreno

    na rea da operao pode adquirir o ttulo para negoci-lo no

    mercado financeiro.

    Uma das formas de evitar essas distores estaria na

    possibilidade de ampliar as reas territoriais destinadas s

    operaes urbanas para alm do setor de interesse do mercado,

    incluindo reas com habitaes precrias. Assim, seria possvel

    criar ZEIS [11] dentro da rea da Operao Urbana, e canalizar

    os recursos advindos da venda de solo-criado para elas.

    Direito de Superfcie e Consrcio Imobilirio

    O direito de superfcie permite a transferncia do direito de

    uso do solo do proprietrio para terceiros, por prazos

    determinados. Um dos mais antigos instrumentos jurdicos

    urbanos, embora pouco falado, esse instrumento importan

    te para agilizar algumas situaes de necessria

    regularizao fundiria e/ou urbanizao, e para incentivar o

    exerccio da funo da propriedade urbana. Isso porque o

    proprietrio que transferir o direito de superfcie no estar

    abrindo mo de eventual valorizao futura de seu bem. E

    em casos de terrenos ocupados, esse instrumento pode inc

    entivar o proprietrio a autorizar o uso do terreno, ainda

    mais se sua urbanizao e regularizao gerar uma

    valorizao futura. O proprietrio pode tambm transferir

    o direito de uso ao Poder Pblico inclusive em

    negociaes que envolvam a aplicao do IPTU progressivo

    liberando-o para realizar obras de urbanizao e regularizao,

    cujo direito de uso ser depois repassado aos moradores. Nesse

    caso, tambm se aplicaria o instrumento do

    Consrcio Imobilirio (art. 46 do Estatuto), pelo qual o

    Poder Pblico urbaniza determinada rea privada sujeita ao

    IPTU Progressivo, adquirindo aps a obra parte do terreno,

    deixando ao proprietrio outra parte cujo valor urbanizado seja

    equivalente ao valor de toda a rea antes da urbanizao. Por

    fim, o Direito de Superfcie pode ser til para terrenos

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    pblicos, podendo-se transferir o direito de uso populao que

    o ocupa, facilitando os procedimentos de regularizao.

    Direito de Preempo

    O Direito de Preempo talvez seja um dos instrumentos h maistempo utilizados nos pases europeus. Trata-se da prioridade

    dada ao Poder Pblico para efetuar a compra em negociaes

    imobilirias em determinadas reas definidas por ele.

    Ele permite ao Poder Pblico fazer estoque de terras de

    stinadas produo de habitaes de interesse social, e

    regular a valorizao fundiria de determinada rea. Mais uma

    vez, as reas sujeitas a esse instrumentos devem ser indicadas

    no Plano Diretor, o que remete seu sucesso s negociaes

    polticas na Cmara Municipal.

    um instrumento importante especialmente em reas centrais, j

    que o estado pode acompanhar as dinmicas imobilirias dessas

    reas. Alm disso, ao segurar a venda de imveis em preos

    definidos e eventualmente congelados por determinado tempo (como

    ocorre, por exemplo, em Belm), o Poder Pblico consegue

    regular a valorizao fundiria e imobiliria.

    Entretanto, o grande limitador desse instrumento sem dvida a

    crnica falta de recursos pblicos, exacerbada pelas opes

    macro-econmicas e pela Lei de responsabilidade Fiscal, o que

    restringe seriamente a possibilidade do Poder Executivo

    Municipal efetivar os negcios a ele oferecidos pelo Direito de

    Preempo.

    * * *

    Temos ento que os instrumentos tributrios e de induo ao

    desenvolvimento urbano, especialmente aqueles propostos no

    Estatuto da Cidade, podem sim promover o incio de uma novo

    papel para os municpios no controle dos processos de produo

    urbana, dando-lhe o necessrio sentido democrtico e de justia

    social. Entretanto, as reflexes aqui apresentadas mostram como

    esse ser sem dvida um caminho ainda longo, que depende de um

    processo paulatino de consolidao de uma cultura poltica que

    veja o Estado como o legtimo controlador da funo social das

  • 7/27/2019 Alcances e limitaes dos Instrumentos Urbansticos - Joo Sette Whitaker

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    propriedades urbanas e indutor do crescimento das cidades

    segundo o interesse pblico. Nesse processo, o papel dos grupos

    organizados da sociedade civil sempre ser central e

    imprescindvel para que a histria do Estatuto da Cidade

    continue em seu difcil, mas at agora efetivo, caminho

    para garantir a reverso da extrema desigualdade e

    excluso scio-espaciais apresentadas pelas cidades

    brasileiras.