livrando a mulher de jó do banco dos réus
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ARTIGO TEOLÓGICO
Livrando a Mulher de Jó do Banco dos Réus
por
Carlos Augusto Vailatti
RESUMO
Este sucinto artigo busca reavaliar a situação da mulher de Jó, personagem
bíblica esta que é conhecida pela tradição como Sitis, a qual, segundo o relato bíblico,
teria incentivado o seu marido, Jó, a amaldiçoar a Deus. Através de uma releitura do
verbo hebraico Bärak (que aparece em Jó 2.9) lançar-se-á um novo olhar sobre a
reputação desta personagem feminina da Bíblia.
Palavras-Chave: Mulher de Jó, Sitis, Jó, Bärak, Abençoar, Amaldiçoar.
RESUMEN
Este breve artículo pretende reevaluar la situación de la mujer de Job, el
personaje bíblico que se conoce por la tradición como Sitis, que, según el relato bíblico,
habría animado a su marido, Job, a maldecir a Dios. A través de una reinterpretación de
lo verbo hebreo Bärak (que aparece en Job 2,9) será el lanzamiento de una nueva mirada
a la reputación de este personaje femenino en la Biblia.
Palabras Clave: Mujer de Job, Sitis, Job, Bärak, Bendecir, Maldecir.
ABSTRACT
This short article seeks to reassess the status of women of Job, this biblical
personage who is known by tradition as Sitis, which, according to the biblical account,
would have encouraged her husband, Job, to curse God. Through a reinterpretation of
the Hebrew verb Bärak (which appears in Job 2.9) will be launching a new look at the
reputation of this female personage in the Bible.
Keywords: Job’s Woman, Sitis, Job, Bärak, Bless, Curse.
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“Então sua mulher [de Jó] lhe disse: Ainda reténs a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre”.1 (Jó 2.9)
Sem dúvida alguma, uma das mulheres mais detestadas de toda a Bíblia
(senão a mais detestada) é a mulher de Jó. Embora a Bíblia não forneça detalhes
sobre a sua identidade, a tradição conferiu-lhe o nome de Sitis.2 Todo este
sentimento de aversão a ela se deve ao verso citado acima. Apenas para termos
uma pequena ideia sobre como a mulher de Jó foi compreendida pela
cristandade, cito Francis Andersen, que faz um curioso comentário a seu respeito:
Os cristãos de modo geral têm sido mais severos com ela [a mulher de Jó] do
que os judeus e os muçulmanos. Ela era a aliada de Satanás. Agostinho chamou-
a de diaboli adjutrix [assistente do diabo]; Crisóstomo: ‘o melhor flagelo de
Satanás’; Calvino: organum Satani [órgão de Satanás]. Segundo este ponto de
vista, ela tentou seu marido a auto-condenar-se (sic!) ao conclamá-lo a fazer
exatamente aquilo que Satanás predissera que faria.3
Já o teólogo Russell Norman Champlin, citando Samuel Terrien,
menciona o ponto de vista favorável deste autor francês para com a atitude da
esposa de Jó. Eis as suas palavras:
Samuel Terrien (...) interpreta que a esposa de Jó só estava tentando vê-lo morto
e livre de sofrimentos, supondo que uma maldição tivesse o poder de eliminar os
sofrimentos dele. Em outras palavras, ela era uma antiga advogada da eutanásia.
(...) Ela raciocinava que, se Jó amaldiçoasse a Deus, uma retaliação divina
mataria o homem, pondo fim aos seus sofrimentos. (...) Terrien chegou a supor
que o ato da mulher de Jó tenha sido inspirado pelo amor, por mais ignorante
que tenha parecido ser.4
1 ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. Os acréscimos entre colchetes são meus. 2 BERGANT, Dianne & KARRIS, Robert J. (Orgs.). Comentário Bíblico. Vol.II. São Paulo, Edições Loyola, 1999, p.215. 3 ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1989, pp.89,90. Os acréscimos entre colchetes são meus. 4 CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol.3. São Paulo, Hagnos, 2001, p.1871.
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Esses comentários, longe de esclarecerem qual era a verdadeira intenção
da esposa de Jó ao dizer aquelas palavras ao seu marido, acabam promovendo
mais polêmica do que uma possível solução em torno do assunto. Mas, afinal,
que sentimentos levaram a esposa de Jó a proferir palavras tão duras ao seu
marido num dos momentos mais difíceis da sua vida (pois ele já havia perdido
seus filhos e seus animais, bem como, na presente situação do texto, até mesmo a
própria saúde)? Ora, acredito que pesquisar o que o original diz nesse texto pode
nos ajudar a tentar solucionar essa questão. Eis o que diz o texto hebraico de
forma literal:
E disse a esposa dele a ele: [você] ainda se mantém firme em sua integridade?
Abençoe a Deus e morra.5
Talvez, ao ler este verso, você tenha se perguntado: “Espere aí, você
traduziu errado! A tradução correta não é: ‘amaldiçoe a Deus e morra’?”. Bem,
quando lemos o original, a palavra que aparece no verso 9 é o verbo hebraico
Bärak, cujos significados básicos são: “ajoelhar, abençoar, louvar, saudar e
amaldiçoar (usado de forma eufemística)”.6 Perceba que quatro dos cinco
significados básicos deste termo estão associados a aspectos positivos (“ajoelhar,
abençoar, louvar, saudar”), enquanto que apenas um significado, e ainda assim
usado de maneira eufemística, está relacionado a algo negativo (“amaldiçoar”).
Se pesquisarmos a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento
Hebraico, que é datada entre o III e o I séculos a.C.) veremos que ela não nos
ajuda a decifrar o dilema lingüístico que há no hebraico, pois ela apresenta assim
Jó 2.9 (de forma bem ampliada):
Passado muito tempo disse-lhe sua mulher: ‘até quando perseverarás dizendo,
[1] vede, espero ansiosamente ainda por um pouco de tempo, aguardando a
esperança da minha salvação’, [2] mas eis que é apagada tua memória da terra, 5 Esta é a minha tradução pessoal do texto. 6 HARRIS, R. Laird. (Org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1998, p.220.
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os filhos e filhas do meu ventre; dores de parto e aflição em vão - esgotei-me
pelo labor! [3] tu mesmo em podridão de vermes permaneces, passas a noite ao
ar livre; [4] e eu, tenho andado errante e pedinte de um lugar a outro, e de casa
em casa; tenho esperado o sol - quando ele se porá, para que amenize os labores
e aflições que agora me cercam? [5] mas diga uma palavra ao Senhor, e
morra! 7
Mas então, como podemos entender Jó 2.9 à luz de seu contexto imediato?
Ou melhor, como deveríamos interpretar Jó 2.10 (a partir da tradução que demos
a Jó 2.9), por exemplo, quando Jó diz à sua esposa: “Como fala qualquer doida,
assim falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?”. Bem, se
a nossa tradução estiver correta em 2.9 e, portanto, “Sitis” abençoou a Jó em vez
de amaldiçoá-lo, logo, segue-se que no verso 10 Jó não condena a sua esposa por
tê-lo instigado a “amaldiçoar” a Deus, mas sim chama a sua atenção por ela dar
a entender com as suas palavras que não acreditava que ele sobreviveria àquela
doença e a toda aquela situação (a perda dos animais, dos filhos, da saúde etc).
Neste sentido, então, Jó a adverte quanto ao fato de que eles ainda receberiam a
bênção de Deus no futuro (ele diz: “receberemos o bem de Deus”).
A favor de nosso ponto de vista podemos argumentar ainda que as
palavras da esposa de Jó sugerem “um desejo sincero de ver Jó livre dos seus
tormentos (pela morte)”, uma vez que ela não parece ver “a possibilidade de
recuperação da saúde [dele] e da restauração dos bens”.8 Essa hipótese parece ser
bem razoável e também parece coadunar mais com a realidade, pois, quando
passamos por momentos muito difíceis em nossas vidas (assim como Jó e a sua
esposa passaram), é natural que um dos cônjuges, ou até mesmo os dois, façam
um balanço negativo da realidade que estão enfrentando, chegando, inclusive, a
desenhar um futuro sombrio pela frente. De qualquer forma, como deveríamos
ver a esposa de Jó nesta passagem: como “bandida” ou como “mocinha”? Quem
sabe, algum dia ainda saberemos a verdade...
7 O texto sem negrito aparece apenas na Septuaginta. Já os textos em negrito são aqueles que têm o seu
correspondente em hebraico. Essa tradução em português da Septuaginta encontra-se disponível em: http://doaldofb.sites.uol.com.br/septuaginta.html. Acessado em: 11/03/2009. 8 ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário, p.90.
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BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, João Ferreira de. (Trad.). Bíblia Sagrada. (Edição Revista e Corrigida). Rio de Janeiro, Imprensa Bíblica Brasileira, 1991. ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1989. BERGANT, Dianne & KARRIS, Robert J. (Orgs.). Comentário Bíblico. Vol.II. São Paulo, Edições Loyola, 1999. CHAMPLIN, R. N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol.3. São Paulo, Hagnos, 2001. HARRIS, R. Laird. (Org.). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1998. Septuaginta. In: http://doaldofb.sites.uol.com.br/septuaginta.html. Acesso em: 11/03/2009. © É permitida a reprodução parcial deste artigo desde que citada a sua fonte.
Citação Bibliográfica: VAILATTI, Carlos Augusto. Livrando a Mulher de Jó do
Banco dos Réus. [Artigo]. São Paulo, Publicação do Autor, 2011.
Carlos Augusto Vailatti possui Graduação em Teologia pela Faculdade Betel /
Instituto Betel de Ensino Superior (IBES, 1999), Mestrado em Teologia (Master of Arts
in Biblical Theology), com especialização em Teologia Bíblica, pelo Seminário
Teológico Servo de Cristo (STSC, 2009) e Mestrado em Língua Hebraica, Literatura e
Cultura Judaica (em andamento) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) - Departamento de Letras Orientais (DLO) - da Universidade de São
Paulo (USP). Atualmente leciona diversas disciplinas bíblico-teológicas na Faculdade
Betel / Instituto Betel de Ensino Superior (IBES) e também no Seminário Teológico
Evangélico do Betel Brasileiro (STEBB). Contato: [email protected].
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