linguística

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Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal,SP, v.1, n.1, jan./dez.2004 171 O caráter imprescindivelmente parcial do objeto da lingüística Bruna Carvalho Santana CREUPI Introdução No decorrer da história, a língua como principal objeto de estudo da lingüística tem sido estudada a partir de diferentes pontos de vista. Partindo da célebre afirmação saussuriana de que “é o ponto de vista que cria o objeto” pretendo neste trabalho apresentar a definição dada pelos lingüistas, do objeto de estudo da lingüística, em particular a definição de dois importantes lingüistas: Ferdinand de Saussure e Avran Noam Chomsky. O primeiro será analisado devido a sua importância para a ciência em questão. Saussure é considerado “o pai” da Lingüística Moderna e como fundador desta ciência, e é tido como referência na teorização da lingüística, antropologia e psicanálise. Chomsky merece ser analisado por ter revolucionado a ciência da linguagem com sua definição de língua, que culminou na sua teoria – o gerativismo. Este lingüista influencia atualmente diversas teorias da lingüística. Vale ressaltar que como referência a Chomsky, utilizarei “as idéias de Chomsky” de John Lyons, obra muito respeitada nesta área. Abordarei os pontos distintos entre as definições dos lingüistas, procurando salientar em que elas diferem e até se opõem ao definir a natureza da língua / linguagem e em que elas se sobrepõem. A hipótese fundamental deste trabalho é que a parcialidade da definição de “língua” tenha correlato na própria existência do objeto em questão: ou seja, a questão é se a língua tem alguma possibilidade de se atualizar como um todo, ou se qualquer atualização será sempre parcial, incompleta, faltosa. Neste sentido é objetivo também deste trabalho discutir a noção de incompletude na língua. Também procuraremos observar a relação do teórico (sujeito) com o objeto da ciência, do lingüista com a língua, respectivamente.

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Page 1: Linguística

Falla dos Pinhaes, Espírito Santo de Pinhal,SP, v.1, n.1, jan./dez.2004

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O caráter imprescindivelmente parcial do objeto da lingüística

Bruna Carvalho Santana CREUPI

Introdução

No decorrer da história, a língua como principal objeto de estudo da lingüística

tem sido estudada a partir de diferentes pontos de vista.

Partindo da célebre afirmação saussuriana de que “é o ponto de vista que cria o

objeto” pretendo neste trabalho apresentar a definição dada pelos lingüistas, do

objeto de estudo da lingüística, em particular a definição de dois importantes

lingüistas: Ferdinand de Saussure e Avran Noam Chomsky.

O primeiro será analisado devido a sua importância para a ciência em questão.

Saussure é considerado “o pai” da Lingüística Moderna e como fundador desta ciência,

e é tido como referência na teorização da lingüística, antropologia e psicanálise.

Chomsky merece ser analisado por ter revolucionado a ciência da linguagem

com sua definição de língua, que culminou na sua teoria – o gerativismo. Este

lingüista influencia atualmente diversas teorias da lingüística. Vale ressaltar que como

referência a Chomsky, utilizarei “as idéias de Chomsky” de John Lyons, obra muito

respeitada nesta área.

Abordarei os pontos distintos entre as definições dos lingüistas, procurando

salientar em que elas diferem e até se opõem ao definir a natureza da língua /

linguagem e em que elas se sobrepõem.

A hipótese fundamental deste trabalho é que a parcialidade da definição de

“língua” tenha correlato na própria existência do objeto em questão: ou seja, a

questão é se a língua tem alguma possibilidade de se atualizar como um todo, ou se

qualquer atualização será sempre parcial, incompleta, faltosa.

Neste sentido é objetivo também deste trabalho discutir a noção de

incompletude na língua.

Também procuraremos observar a relação do teórico (sujeito) com o objeto da

ciência, do lingüista com a língua, respectivamente.

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1 – OS PRINCIPAIS NOMES E A DEFINIÇÃO DO OBJETO DESTA CIÊNCIA

A definição da lingüística como o estudo cientifico da língua parece ser aceita

pacificamente e não despertar maiores controvérsias. Pode-se questionar se sua

caracterização como ciência é adequada ou não, mas não há dúvidas de que o objeto

de estudo desta ciência seja a língua (ou a linguagem). Mas o que é a língua? Seria

possível definir tal objeto de estudo de forma imparcial e incontroversa, ou estaria a

definição permeada pelas suposições que acompanham o pesquisador e

conseqüentemente sua teoria?

Este trabalho tem por objetivo responder a estas questões, tomando como base

as teorias de Saussure e de Noam Chomsky.

O primeiro será analisado, por ser considerado o fundador da Lingüística

Moderna e o segundo, por influenciar atualmente a ciência fundada por Saussure.

Antes de entrarmos na história da lingüística, observando qual a concepção de

cada teórico sobre o objeto desta ciência, vale ressaltar a importância da pergunta

fundamental deste trabalho “O que é língua?”.

De acordo com Lyons, essa questão pode ser comparada, com questões como

“O que é vida?”:

“A pergunta ‘O que é linguagem?’ é comparável a alguns

diriam tão profunda quanto a ‘O que é a vida?’ cujas

pressuposições circunscrevem e unificam as ciências

biológicas. Evidentemente, ‘O que é a vida?’ não é o tipo de

pergunta que um biólogo tenha constantemente diante de sai

em seu trabalho cotidiano. Tem uma natureza muito mais

filosófica. E, assim como outros cientistas, o biólogo está

normalmente por demais imerso nos detalhes de algum

problema específico para poder pesar as implicações de

questões tão gerais. Contudo, o suposto significado da

pergunta – “O que é a vida?” – a pressuposição de que todos

os seres vivos compartilham de algumas propriedades que os

distinguem das coisas não vivas – estabelece os limites das

investigações do biólogo e justifica a autonomia parcial de

sua disciplina. Embora se possa dizer que a pergunta “O que

é vida?”, neste sentido, fornece à biologia a sua própria razão

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de ser, não se trata tanto da pergunta em si quanto da

interpretação particular que o biólogo a ela atribui e do

desvendar de suas implicações mais detalhadas dentro e uma

estrutura teórica atualmente aceita que alimentam a

pesquisa e as especulações diárias destes cientistas. O

mesmo ocorre com o lingüista em relação à pergunta “O que

é a língua(gem)?”. (1987:15)

De acordo com Lyons, a dificuldade em responder precisamente a esta questão

é tanta, que há em diversas línguas européias traduções específicas para língua e

linguagem, e enfatiza que não se pode possuir ou usar alguma língua natural

específica:

“O lingüista a principio lida com as línguas naturais, a

pergunta ‘O que é língua, linguagem?’ é um caso especifico

de algo mais geral. O que o lingüista quer saber é se as

línguas naturais, todas, possuem algo em comum que não

pertença a outros sistemas de comunicação, humano ou não,

de tal forma que seja correto aplicar a cada uma delas a

palavra ‘língua’”. (1987:17)

Para ilustrar as diferentes definições da língua ou linguagem, nada melhor do

que um breve passeio pela historia da ciência da linguagem, para observarmos a

preocupação com a definição deste objeto, assim como a concepção do mesmo

influencia a teoria de cada estudioso deste campo da ciência.

Iniciaremos o passeio com informações baseadas no livro de Robins: Pequena

História da Lingüística (1997).

De acordo com Robins, cada teórico enfatiza um aspecto de sua concepção do objeto

da lingüística. Saussure deteve-se a idéia de sistema que também mencionava a

língua como instituição social.

Bloomfield concebia a língua como algo puramente físico, adotando o

behaviorismo e o operacionalismo. Este lingüista rejeitava totalmente qualquer traço

mentalista na explicação do comportamento lingüístico.

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Já Edward Sapir e Benjamim Lee Whorf concebem o objeto da lingüística como

o meio de expressão de uma sociedade. Neste caso somente a função social da língua

é ressaltada. Deixando para trás os traços psicológicos e mentalistas.

Finalmente temos Noam Chomsky, que acredita que a linguagem é uma

realidade depositada no cérebro dos indivíduos, e que as regras que comandam a

linguagem são inatas. O lingüista detém-se ao mentalismo, não mencionando sequer

a função comunicativa do objeto em questão.

Pudemos observar, o quanto a ‘língua’ é definida parcialmente pelos lingüistas

em questão, o que confere à ciência Lingüística, um caráter também parcial.

Nos próximos capítulos deteremos-nos a análise da concepção da teoria de dois

lingüistas em particular: Ferdinand de Saussure e Avran Noam Chomsky.

A escolha por analisá-los, se deu pela fundação da lingüística moderna ser

atribuída ao primeiro lingüista acima citado, e sendo assim, tomado como base para

seus sucessores.

E Chomsky por ter inovado uma área da lingüística com sua gramática gerativa,

que é atualmente modelo para muitas teorias lingüísticas.

2 - UMA REFLEXÃO ACERCA DA INTRÍNSECA PARCIALIDADE DA LÍNGUA EM

SAUSSURE E CHOMSKY

“A verdade não se diz toda, e isto porque

faltam palavras” (Lacan apud

Milner;1987:19)

Como todo objeto da ciência, a língua é definida parcialmente por seus

estudiosos. A reflexão que se segue visa identificar esse aspecto parcial, incompleto,

faltoso na definição e conseqüentemente nas teorias propostas pelos lingüistas

Ferdinand de Saussure e Avran Noam Chomsky.

Há a necessidade de mencionarmos que, como já dizia Milner, sobre a língua

tudo não se pode dizer, assim como ocorre com todos os outros objetos científicos.

2.1 – A Parcialidade da Definição Saussuriana

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Ferdinand Saussure, na última frase do CLG ‘Cours de Linguistique Générale’

declara que: “A Lingüística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em

si mesma e por si mesma” (1969:271).

Para o genebrino a abordagem do objeto em questão deve ser estritamente

interno. Mas o que é interno ou externo para Saussure?

Pelo que parece, o genebrino, em sua definição de língua afasta tudo o que for

estranho a seu sistema. Excluindo assim os fatos geográficos, de história política, de

etnologia, enfim todos os fatos externos à língua.

Saussure ilustra essa distinção entre interno e externo, fazendo uma analogia

entre a língua e um jogo de xadrez no Capítulo V do CLG:

“Uma comparação com o jogo de xadrez fará compreendê-lo

melhor. Nesse jogo, é relativamente fácil distinguir o externo

do interno; o fato de ele ter passado da Pérsia para a Europa

é de ordem externa; interno é, ao contrario, é tudo quanto

concerne ao sistema e as regras. Se eu substituir as peças de

madeira por peças de marfim, a troca será indiferente para o

sistema; mas se eu reduzir ou aumentar o número de peças,

essa mudança atingirá profundamente a ‘gramática’ do jogo”

(1969:31-32)

Desta forma, os elementos externos seriam a origem do jogo, no caso a língua,

e os internos, aqueles elementos relacionados com as regras, com o ordenamento do

sistema (língua).

E o que deveria ser estudado pela Lingüística seriam os fatos que interferem

nas relações entre os elementos da língua, e não a materialidade simples de som ou

letras.

Mesmo após declarar que somente o que era interno deveria ser estudado,

temos dentro da ‘língua’ definida por Saussure, dois níveis distintos um nível interno,

o sistema de signos, e um nível externo, ao definir língua como instituição social.

Encontramos em Gadet; a relação entre esses dois níveis e a importância dessa

divisão para o nascimento da Lingüística Moderna:

“Com o sociólogo, Saussure se situa sobre um terreno

que ele partilha com a grande parte dos lingüistas da sua

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época, enquanto com o semiológico avança uma proposição

original, verdadeiro ato de nascimento da lingüística

moderna. O semiológico permite a emergência do estudo

abstrato da língua...” (Gadet apud Leandro Ferreira;

1999:131)

Saussure ao definir a língua como sistema, produz uma inovação em relação

aos lingüistas da época.

Gadet atribui essa inovação à relação do sujeito com a língua.

Leandro Ferreira, no artigo denominado: “A Metáfora Geométrica: o dentro e o

fora da língua” nos lembra que:

“Ao encarar a língua como sistema, Saussure produz um

efeito de desconstrução do sujeito psicológico, livre e

consciente que reinava na reflexão das ciências humanas

nascentes, ao fim do século XIX (...)”.(1999:133)

Em relação ao dentro e o fora da língua, poderíamos apresentar a teoria

saussuriana da seguinte maneira:

Fatores

externos à língua: fenômenos culturais, sociais e políticos.

Na teoria de Saussure, a parcialidade está expressa na questão na opção feita

por ele, por trabalhar apenas com o que é semiológico e não com o lado sociológico

da língua. As escolhas feitas por Saussure demonstram essa incompletude do objeto.

Primeiro, ao separar a língua da fala, depois ao definir os níveis da língua:

semiológico e sociológico, e por fim, ao optar pelo estudo da sincronia em relação à

diacronia.

Poderíamos esquematizar essa parcialidade da seguinte maneira:

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“A Lingüística tem por único e verdadeiro objeto a língua

considerada em si mesma e por si mesma”. (1969:271)

Desta forma, Saussure ao fazer tais opções, descarta o nível sociológico da

língua, trabalhando apenas com o nível semiológico, o que confere a definição do

objeto da lingüística, assim como a teoria acerca deste, uma incompletude.

Passemos agora para a análise da definição e da teoria lingüística de Chomsky,

importante lingüista do século XX.

2.2 – A Parcialidade da Definição Chomskyana

Como vimos no capítulo anterior, Chomsky parece ter se preocupado primeiro

com o conceito de gramática, que com o conceito de língua propriamente dita.

Logo, o nível interno da “língua” constituiria pela ótica chomskyana o que é

gramatical, enquanto o nível externo agruparia todas as formações mal – formadas

dentro da língua (o gramatical).

A gramaticalidade e a agramaticalidade são conceitos relativos a estruturação

da língua. Chomsky trabalhou somente com o gramatical da língua.

A parcialidade da teoria chomskyana pode ser expressa também na divisão

entre dois níveis que constituíram a língua, um considerado primário (sintático) e o

segundo nível (fonológico).

No nível sintático estariam as combinações de palavras (unidades significativas)

e no nível fonológico os sons que por si só não possuem nenhuma significação.

Vale ressaltar que essa divisão entre os níveis sintático e fonológico, embora

seja parecida com a divisão feita por Saussure, não deve ser assim considerada.

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Para Chomsky, segundo Leandro Ferreira:

“Gramática seria o estado estável da faculdade de linguagem

representada na mente / cérebro; e língua, o conjunto finito

de sentenças que essa Gramática pode gerar”. (1999:131)

A teoria chomskyana não se prendeu a questões semânticas, pois para ele a

sintaxe e a fonologia de uma língua poderiam ser descritas sem considerações

relativas ao seu significado.

Poderíamos esquematizar a definição chomskyana de língua e sua teoria (A

Gramática Gerativa) da seguinte maneira:

O autor de “Syntactic Structures” concebe a língua como algo universalmente

biológico, que distingue os homens dos demais animais.

Chomsky não menciona a função comunicativa da língua, nem sobre a natureza

simbólica dos elementos que constituem as sentenças da mesma.

A parcialidade está então apresentada, tanto na definição da língua como (e

não poderia ser de outra forma) na teoria proposta pelo autor em questão.

3 – A SITUAÇÃO ATUAL (E PARCIAL) DA LINGÜÍSTICA

A ciência da linguagem é composta por várias teorias, que se assemelham, se

contrastam e até mesmo se opõem.

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Pudemos observar isto, no primeiro capítulo deste trabalho, onde mostramos

brevemente a concepção sobre a língua, por diversos teóricos, dos clássicos aos

modernos.

Mas como estará a situação atual da lingüística? Estará ela ainda atrelada as

concepções dos seus teóricos mais conhecidos? Estará oscilando entre as outras áreas

do conhecimento, como a psicologia, a biologia e a sociologia, por exemplo, ou terá

alcançado finalmente sua independência perante as outras ciências?

O lingüista Eduardo Guimarães no capítulo denominado “Uma cena

contemporânea” do artigo: “Os Estudos sobre Linguagens – Uma História das Idéias”,

declara que:

“A Lingüística vive hoje um embate entre: a) um cognitivismo

naturalista que o pensamento chomskyano reintroduziu e que

localiza a lingüística no interior da biologia (enquanto ciência

psicológica), ou seja, das ciências naturais;

b) posições derivadas do estruturalismo, como os estudos

enunciativos, para os quais o funcionamento da língua se dá

porque a língua está marcada por formas próprias para o seu

funcionamento, no acontecimento enunciativo, posições

então que mantém a questão da autonomia do lingüístico

proposta por Saussure;

c) posições que procuram estabelecer diálogos entre as

diversas disciplinas das ciências humanas que levam a pensar

o lingüístico como definido por uma correlação com o que

está fora do lingüístico: o antropológico, o social, o

psicológico, etc;

d) posições como a da análise do discurso que põem em cena

a questão de que não se pode reduzir o lingüístico nem ao

social (antropológico) nem ao psicológico, pois a linguagem

é, ao lado de integralmente lingüística – num certo sentido

saussuriano – também integralmente histórica”.

(Guimarães;2001)

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Tal citação nos permite concluir por ora, que temos entre as mais diversas

teorias da lingüística uma característica (talvez a única) comum a todas elas: a

parcialidade.

Desta questão, trataremos especificamente no próximo item deste capítulo.

4 – A INTRÍNSECA PARCIALIDADE DO OBJETO EM QUESTÃO

Henry justifica a incompletude da língua, como sendo produto da interpretação

particular do sujeito que se propõe a defini-la. O que nos permitiria pensar em uma

definição total deste objeto, se fossem enfocados todos os aspectos da língua

simultaneamente, desde que um sujeito se propusesse a fazer isto: A língua seria

então um objeto com função psicológica e social, e ao mesmo tempo uma realidade

depositada no cérebro dos seres humanos (biologicamente universal).

Deste modo, poderíamos pensar também numa teoria acerca deste objeto que

fosse também completa (reunindo as idéias da Saussure e de Chomsky, por

exemplo).

No entanto, temos em Milner a verificação de uma questão que é intrínseca ao

sujeito em relação ao objeto. Além das ordens históricas, filosóficas e ideológicas a

que a língua tem sido submetida, a psicanálise poderia explicar o porquê desta

permanente falha na definição deste objeto.

Para Milner, toda língua possui uma parte que se constitui de inconsciente, que

não pode ser representada, é o não – todo da língua, a alíngua, apresentada por

Lacan:

“A alíngua é, pois, uma língua entre outras, enquanto que, ao

se colocar, ela impede por incomensurabilidade a construção

de uma classe de línguas que a inclui (...)” (Milner;1987:15)

Este termo lacaniano seria a explicação para a falta, na definição da língua,

alíngua é aquilo que a língua não pode dizer.

Temos em Milner (1987:15) a afirmação de que: “Alíngua é, em toda língua, o

registro que a consagra ao equívoco”, ou seja, é pela alíngua que se faz a

incompletude da língua.

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Essa parte inconsciente seria inerente à língua que é o objeto da ciência

lingüística, não permitindo a totalidade nem da definição da própria língua, nem das

teorias acerca deste objeto.

Milner diz ainda que: “a língua suporta o real da alíngua” (1987:19) e que o

equívoco da lingüística esta no fato de se não considerar o objeto desta ciência como

algo pertencente à ordem do real:

“Passamos nosso tempo a desconhecer que a língua seja da

ordem do real: por exemplo, traduz-se a língua em termos de

realidade, situando-a na rede do útil a titulo de instrumento

(de comunicação), ou na rede das ´práticas’ – sociais ou

outras”. (1987:19-20)

Porém, nos avisa que é este real que sustenta a maioria dos discursos sobre o

objeto em questão:

“São teses que tocam no estatuto deste real que estão em

jogo nos diversos discursos sustentados sobre a língua; a

partição majoritária pode ser resumida assim: o real é

concebido como representante ou não”. (Milner;1987:20)

Temos então, a explicação pela qual se confere a falta à definição da língua, é a

impossibilidade de dizer tudo sobre ela por causa do não – todo (inconsciente) que

constitui este objeto.

Como conseqüência teremos uma ciência também incompleta. A Lingüística tida

como ciência autônoma nos revela a incompletude das teorias que a constitui.

Se o objeto pelo qual esta ciência se constitui é parcial, todas as teorias

referentes a ele serão, também parciais, incompletas e mesmo se houvesse uma

tentativa de se reunir tudo o que se diz sobre a língua, ainda assim não poderia se

dizer tudo.

Milner nos mostra categoricamente isso, ao afirmar que “sobre a língua tudo

não se pode dizer”. (1987:44)

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Tudo não se pode dizer, não indica que tudo não há. O que acontece na

verdade, é que existe uma parte do todo (língua) que não pode ser representada (a

alíngua).

Contudo é preciso lembrar que se “a língua suporta o não – todo da alíngua”,

como afirma Milner, por outro lado: “para que este se faça objeto da ciência, é

preciso que ele seja apreendido como uma completude: a língua é a rede pelo qual a

alíngua falta, mas em si mesma a rede não deve comportar nenhuma falta”.

(1987:26)

Segundo o autor de “L’Amour de la Langue”, para que a Lingüística consiga

fazer com que isso aconteça, esta ciência:

“Deve propriamente ignorar a falta e sustentar:

1) que da alíngua, ela não tem nada a saber e

2) que a rede de impossível que a marca é consistente e

completa” (Milner;1987:26)

A Lingüística, para evoluir precisa acreditar que do inconsciente que a constitui

nada se pode, nem se precisa dizer.

E a respeito da universalidade da ciência temos ainda a necessidade de que a

Lingüística se coloque como universal:

“A borda do real que a lingüística empenha-se em

representar como a partição do correto e do incorreto não é

de outra substância que a própria língua: ela suporta na sua

forma de borda o ilimitado que desfaz toda universalidade. É,

no entanto aí, que, num esforço surpreendente, a lingüística

deve assumir a questão do limite para recolocar na conta do

universal isto mesmo que atesta o impossível a dizer”

(1987:52)

Podemos concluir a partir das idéias de Milner, que a ciência lingüística será

sempre incompleta devido à falta, inerente ao seu objeto de estudo: a língua.

Esta falta ocorre pela impossibilidade de se representar o que Milner chama de

Real.

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Desta maneira não somente a lingüística, mas todas as outras ciências são

também incompletas e parciais assim como os seus respectivos objetos de estudo,

pois não existe ciência sem língua.

E é falando a respeito dessa língua que constitui toda ciência que finalizamos

este trabalho, concordando com Guimarães Rosa que já avisara em Tutaméia

(Terceiras Estórias, 1969): “pela língua começa a confusão...”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se, contudo, após a breve investigação cientifica que o objeto com que

a Lingüística lida, é ainda um enigma para os próprios lingüistas.

A ciência lingüística trabalha com um objeto muito especial, e é a partir dele

que todas as outras ciências se constituem, desta forma, a incompletude da língua

implica na incompletude das demais ciências.

As definições saussurianas, bloomfieldianas e chomskyanas assim como todas

as outras acerca da língua serão sempre incompletas, não pela incapacidade daquele

que define e estuda o objeto, mas pela impossibilidade deste se fazer representar

completamente.

Há, dentro da língua, algo que jamais poderá ser representado por nenhum

sujeito, independente da sua posição em relação ao referido objeto.

Porém, essa intrínseca parcialidade não afetará a evolução e o progresso desta

ciência, já que o que move qualquer busca inclusive na ciência, é a falta. A

completude é um ponto de parada que se assemelha a morte.

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