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Línguas e instrumentos linguísticos 35 / Campinas: CNPq -

Universidade Estadual de Campinas; Editora RG, 2015:

Unicamp, 1997-2015

Semestral.

ISSN 1519-4906

1. Linguística - Periódicos 2. Análise do discurso - Periódicos

3. Semântica - Periódicos 4. História - Periódicos I. Universidade

Estadual de Campinas

CDD - 410.05

- 412.05

- 900

Copyright © 2015 dos Autores para efeito desta edição e posteriores. Direitos cedidos

com exclusividade para publicação em língua portuguesa para o Projeto História das

Ideias Linguísticas e Editora RG.

Todos os direitos reservados.

O uso, a reprodução, a apropriação, o estoque em sistema de banco de dados ou

processo similar, por meio eletrônico, fotocópia ou gravação de qualquer natureza

(inclusive a partir do site www.revistalinguas.com), está condicionado à expressa

permissão do Projeto História das Ideias Linguísticas.

Coordenação Editorial: Editora RG

Diagramação: Anderson Braga do Carmo, Danilo Ricardo de Oliveira, Fábio Bastos,

Renata Ortiz Brandão e Vinícius Massad Castro

Editoração Eletrônica: Fábio Bastos

Capa: Fábio Bastos, sobre projeto gráfico original de Claudio Roberto Martini

Revisão: Equipe de revisores sob supervisão do Projeto História das Ideias Linguísticas

Editora RG

Fone: 19 3289.1864

[email protected]

Edição eletrônica: www.revistalinguas.com

2015

Impresso no Brasil

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LÍNGUAS E INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS

Edição: Projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil

Editora RG

Diretores/Editores: Eduardo Guimarães e Eni P. Orlandi

Comitê Editorial: Ana Maria Di Renzo (Unemat), Bethania Sampaio Mariani

(UFF),Carolina Zucolillo Rodriguez (Unicamp), Claudia Pfeiffer (Unicamp),

Carlos Luis (Argentina), Charlotte Galves (Unicamp), Débora Massmann

(Univás), Diana Luz Pessoa de Barros (USP), Eduardo Guimarães (Unicamp)

Elvira Narvaja de Arnoux (Argentina) Eni P. Orlandi (Unicamp), Francine

Mazière (França), Francis Henry Aubert (USP), Freda Indursky (UFRGS),

Jean-Claude Zancarini (França), José Horta Nunes (Unicamp), José Luiz

Fiorin (USP), Lauro Baldini (Unicamp), Luiz Francisco Dias (UFMG), Maria

Filomena Gonçalves (Portugal), Marlon Leal Rodrigues (UEMS), Mónica

Zoppi-Fontana (Unicamp), Norman Fairclough (Inglaterra), Rainer Henrique

Ramel (México), Rosa Attié Figueira (Unicamp), Sheila Elias de Oliveira

(Unicamp), Silvana Serrani-Infante (Unicamp), Simone Delesalle (França),

Suzy Lagazzi (Unicamp), Sylvain Auroux (França) e Taisir Mahmudo Karim

(Unemat)

Comitê de Redação: Claudia Reis, Cristiane Dias e Sheila Elias de Oliveira

Secretaria de Redação: Anderson Braga do Carmo, Danilo Ricardo de

Oliveira, Renata Ortiz Brandão e Vinícius Massad Castro

Revisão dos artigos: Todos os artigos são revisados por pares observando-se

os seguintes parâmetros: nível de contribuição para a comunidade científica,

qualidade da escrita do texto, relevância da bibliografia.

Mês e ano do fascículo: janeiro a junho 2015

Periodicidade de circulação: semestral

ISSN: 1519-4906

Número sequencial de páginas: a numeração inicia sua contagem na página

de olho da revista, figurando – em algarismos arábicos – a partir da página

número sete até o final.

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SUMÁRIO

Apresentação ....................................................................................... 7

A "descoberta": história de uma invenção semântica (primeiros

elementos)

Romain Descendre .............................................................................. 11

A reinvenção da “hipótese Sapir-Whorf”

Isadora Machado ................................................................................ 29

Ideologías lingüísticas en un debate del siglo XIX chileno: los

comentaristas del Diccionario de chilenismos de Zorobabel

Rodríguez

Darío Rojas e Tania Avilés ................................................................. 53

CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS

Saussure e os estudos saussurianos no sul: algumas reflexões

Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins .............. 73

DOSSIÊ: ENUNCIAÇÃO E SINTAXE

Luiz Francisco Dias............................................................................ 95

Acontecimento enunciativo e formação sintática

Luiz Francisco Dias............................................................................ 99

Entre o material e o simbólico: a conformação da referência no

lugar de adjunto adverbial

Priscila Brasil Gonçalves Lacerda ................................................... 139

Condições de sustentação do fato gramatical “objeto verbal” – por

uma sintaxe de base semântica

Luciani Dalmaschio .......................................................................... 163

Memória, acontecimento e ensino de sintaxe: o exemplo-colmeia

Elke Beatriz Felix Pena .................................................................... 193

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A frase como unidade de discurso. (N)as teorizações de Émile

Benveniste

Cármen Agustini e Flávia Santos da Silva ....................................... 217

RESENHA

WEIL, Henri. Da ordem das palavras nas línguas antigas

comparadas às línguas modernas: questão de gramática geral.

Campinas: Ed. da Unicamp, 2015, 128 pp.

Igor Caixeta Trindade Guimarães ........................................... 237

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 7

APRESENTAÇÃO

O número 35 da revista Línguas e Instrumentos Linguísticos

compreende um conjunto de dez textos incluídos em seus quatro

núcleos de publicação: Seção Aberta, Crônicas e Controvérsias,

Dossiê e Resenha.

A seção Aberta abrange três artigos que tratam da invenção ou

propagação de conceitos fundamentais das ciências, por meio da

análise de textualidades produzidas tanto pelos criadores quanto pelos

críticos e comentadores de determinadas ideias.

Em A “descoberta”: história de uma invenção semântica, Romain

Descendre busca interrogar a semântica da palavra descoberta na sua

instituição, como conceito e como relato historiográfico edificante.

Assim, a partir de uma perspectiva filológica aplicada ao texto, o autor

parte do sentido dessa palavra concernente às explorações e

navegações ibéricas dos séculos XV e XVI para traçar uma genealogia

da ideia de descoberta, que se tornou paradigmática para pensar o

conhecimento, a pesquisa e o progresso científico na época moderna.

Isadora Machado, em A reinvenção da “hipótese Sapir-Whorf”,

analisa a circulação das definições do que seria a hipótese Sapir-

Whorf em diferentes comentadores do tema. Por conseguinte, a autora

irrompe o efeito de evidência que tradicionalmente sustenta este

enunciado-termo, inventariado pelas tensões entre os autores da

hipótese, o nome para designá-la e o seu conteúdo, para nos mostrar

uma nova direção de sentido e a equivocidade com que a referida

hipótese se constituiu na História das Ideias Linguísticas.

Em Ideologías lingüísticas en un debate del siglo XIX chileno: los

comentaristas del Diccionario de chilenismos de Zorobabel

Rodríguez, Darío Rojas e Tania Avilés descrevem e analisam as

críticas que Fidelis del Solar propõe sobre o Diccionario de

chilenismos, de Zorobabel Rodrigues, e a resposta a essas críticas,

firmada por Fernando Paulsen. Os autores sugerem que, apesar das

posturas antagônicas dos autores estudados, há uma confluência de

crenças normativas, em seus escritos, que pode ser observada dada a

presença da ideologia da língua padrão (estándar), o que marca, na

verdade, a identidade desta comunidade discursiva, que compartilha

interesses, objetivos e crenças.

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Apresentação

8 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

A seção Crônicas e Controvérsias traz o texto de Amanda

Scherer, Caroline Schneiders e Taís Martins: Saussure e os estudos

saussurianos no sul: algumas reflexões. Objetivando compreender os

processos de institucionalização e disciplinarização da Linguística no

Sul do Brasil, as autoras nos mostram, em três momentos distintos,

como as condições de produção de cada época afetam e determinam a

institucionalização da Linguística no estado do Rio Grande do Sul.

Para tanto, destacam alguns programas de disciplinas em que se pode

evidenciar, por meio de filiações teóricas, nomeações e

reescriturações, a construção de um saber, uma identidade disciplinar

e como a (de)marcação de um domínio/teoria se configura a partir de

condições sócio-históricas e ideológicas específicas.

A seção Dossiê traz como tema a articulação entre Enunciação e

Sintaxe, e reúne trabalhos voltados para a exploração de aspectos da

sintaxe a partir de uma análise semântica de linha enunciativa.

Cinco textos tratam dessa articulação: Acontecimento enunciativo e

formação sintática, de Luiz Francisco Dias; Entre o material e o

simbólico: a conformação da referência no lugar de adjunto

adverbial, de Priscila Brasil Gonçalves Lacerda; Condições de

sustentação do fato gramatical “objeto verbal” – por uma sintaxe de

base semântica, de Luciani Dalmaschio; Memória, acontecimento e

ensino de sintaxe: o exemplo-colmeia, de Elke Beatriz Felix Pena; e A

frase como unidade de discurso: (n)as teorizações de Émile

Benveniste, de Cármen Agustini e Flávia Santos da Silva.

Conforme elucida Luiz Francisco Dias, os textos que compõem o

dossiê apresentam “uma amostra da potencialidade dos estudos

semânticos constituídos na perspectiva da enunciação no Brasil”,

esperando que esses trabalhos “contribuam para a compreensão da

sintaxe da língua portuguesa a partir de um olhar ainda não explorado

no âmbito dos estudos sintáticos atualmente em nosso país”, o que

justifica o acolhimento do tema pela revista, que espera assim

contribuir com a área dos estudos da linguagem publicando esse

dossiê.

A seção Resenha, por fim, traz o texto de Igor Caixeta Trindade

Guimarães, sobre a obra Da ordem das palavras nas línguas antigas

comparadas às línguas modernas: questão de gramática geral, de

Henri Weil. O autor resenha importantes ideias do livro/tese de Weil,

com destaque para a colocação das palavras na sentença motivada por

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Os editores

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 9

fatores relativos à enunciação. O filólogo alemão, conforme nos

explicita o resenhista, apresentou isso em um momento em que a

Linguística ainda não havia se constituído propriamente como ciência,

e suas ideias influenciaram autores como Michel Bréal e Georges

Perrot, o que nos mostra a importância das ideias de Weil para uma

compreensão do percurso dos estudos enunciativos e da Linguística de

modo geral.

O número 35 de Línguas e Instrumentos Linguísticos marca o

início do 17º ano de publicação da revista, e busca mais uma vez

contribuir para a circulação do conhecimento sobre a linguagem

convidando seus leitores e autores a percorrer esse conjunto de textos

interconexos sobre questões, objetos, conceitos, fatos e domínios

elementares no âmbito científico dos Estudos Linguísticos.

Os Editores

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 11

A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA

INVENÇÃO SEMÂNTICA (PRIMEIROS

ELEMENTOS)1

Romain Descendre

ENS de Lyon - UMR Triangle - Labex Comod

Resumo: Considerado um projeto em várias etapas, este ensaio

apresenta um primeiro momento, no qual se busca interrogar a

semântica da palavra descoberta na sua instituição, como conceito e

como relato historiográfico edificante. Dessa forma, tendo como base

uma perspectiva filológica aplicada ao texto, parte-se do sentido

desta palavra concernente às explorações e navegações ibéricas dos

séculos XV e XVI, presentes nos relatos dos primeiros autores, para

uma genealogia da ideia de descoberta, que se tornou paradigmática

para pensar o conhecimento, a pesquisa e o progresso científico na

época moderna. Assim, neste estudo, os usos da palavra descoberta

permitem tirar dois ensinamentos: por razões ao mesmo tempo

semânticas e históricas, descobrir não serve para significar que se

encontraram terras desconhecidas, e quando o verbo adquire esse

sentido é de certo modo por acréscimo, enquanto efeito da

exploração; e que é preciso também tomar consciência do fato de que

um dos efeitos das políticas e dos empreendimentos voluntaristas de

navegações de longo alcance e de busca de novas rotas em direção às

terras asiáticas foi justamente o de modificar, de início

insensivelmente e depois, a longo prazo, de modo decisivo, o que vem

a ser designado como descoberta – a saber, um resultado,

particularmente importante do ponto de vista cognitivo e

epistemológico, atingido no decorrer de um processo de busca.

Abstract: Considered a project of many stages, this essay presents the

first stage in which we question the semantics of the word discovery in

its institution as a concept and as an edifying historiographical

report. Based on a philological perspective applied to the text, we

conceive the meaning of this word concerned to the Iberian

explorations and navigations during the 15th and 16th century

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

12 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

described in the first authors reports, to a genealogy of the ideia of

discovery that became a paradigm to think about knowledge, research

and scientific progress in the modern ages. The uses of the word

discovery give us two lessons: for semantics and historical reasons, to

discover is not used to mean that unknown lands were found: when the

verb acquires this meaning, it is somehow by an adding process, as an

effect of the exploration; it is also necessary to understand that one of

the effects of voluntary politics and endeavours of long distance

navigations and search for new routes towards Asian lands was the

modification, insensible at the beginning, but decisive afterwards, of

what is designated as discovery – a result, particularly important in a

cognitive and epistemological point of view, obtained in a process of

searching.

A mais recente historiografia dos inícios da Idade Moderna efetuou

uma revisão radical da noção tradicional das “Descobertas” ou

“Grandes Descobertas”, esse cronônimo2 que por muito tempo serviu

para designar o período de explorações e conquistas de amplos

territórios extraeuropeus, aberto pelas monarquias ibéricas no século

XV. Sob o efeito dos estudos pós-coloniais, a world history e a

“história conectada” esforçaram-se para proporcionar uma visão mais

exata, porque menos eurocêntrica, dessa sequência importante: a

Europa deixa de ser o único sujeito de um processo de expansão cujo

relato por muito tempo reduziu o resto do mundo somente ao estatuto

de objeto. Se acreditamos no autor de uma obra recente, “ninguém

acredita mais na ladainha lenitiva das ‘Grandes Descobertas’

realizadas sem participação asiática ou ameríndia por visionários

solitários3”.

Um dos historiadores que contribuíram para modificar nosso olhar

sobre a história do mundo nos inícios da Idade Moderna, Sanjay

Subrahmanyam mostrou – especialmente na esteira dos trabalhos de

Jean Aubin e de Luís Filipe F. R. Thomaz4 – como a chegada dos

portugueses no Oceano Índico não fez outra coisa senão adicionar um

poder comercial e militar suplementar em uma região em que, desde

há muito tempo, haviam se constituído rotas sulcadas por diversas

populações. Tal perspectiva coloca em cheque a própria ideia de

Descoberta de que os europeus se serviram para afirmar sua

preeminência moderna. Pour en finir avec les Grandes Découvertes

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Romain Descendre

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 13

[Para acabar com as Grandes descobertas]: este é o subtítulo eloquente

que S. Subrahmanyam e Claude Markovits deram a um artigo de

síntese cujo título principal é constituído pela tríade mais neutra

navegação, exploração, colonização5. Tal injunção faz lembrar que

essa noção foi imposta no século XIX pelos historiadores

contemporâneos de uma nova era colonial, para nomear a primeira

fase das conquistas e colonizações europeias no ultra-mar. É verdade

que ela era duplamente vantajosa: permitia valorizar a ação dos

colonizadores, escondendo por meio de um eufemismo os aspectos

mais nocivos de suas conquistas.

Um fato, no entanto, continua digno de atenção: apesar desse

cuidado hoje dedicado a uma categoria volta e meia utilizada para

justificar as colonizações, para mascarar o fato político-militar das

conquistas e assentar esse etnocentrismo que por muito tempo

distorceu uma história do mundo escrita por seus “vencedores”, nem o

próprio sentido da palavra descoberta, nem seus usos pelos primeiros

atores concernidos foram interrogados.

Não foi sempre assim. Entre os anos 1940 e 1960, foi

especialmente a partir de uma atenção renovada ao sentido que as

palavras apresentavam nos contextos em que apareciam que foi

possível moderar as controvérsias às vezes violentas e estéreis que por

muito tempo opuseram os historiadores do século XIX e do XX, dos

dois lados do Atlântico, a respeito da paternidade da “Descoberta da

América”. Assim, posições tão cerradas quanto as de Henry Vignaud,

Roberto Levillier ou Edmundo O’Gormann puderam ser revistas de

ponta a ponta por textos de Marcel Bataillon ou Wilcomb E.

Washburn sobre a “ideia” ou a “significação” da descoberta. São

trabalhos que evidenciaram os falsos problemas devidos

essencialmente ao fato de que os historiadores, como dizia Washburn,

“tentaram resolver um problema sem saber previamente sobre o que

eles falavam”, quer dizer, qual era o sentido preciso dessas palavras

da descoberta que eles não paravam de empregar6.

Ao contrário, ainda que se questione a pertinência historiográfica

da ideia de “descoberta”, os historiadores parecem hoje tomar sua

significação como dada e sublinhar que seu emprego não tem nada de

anacrônico7. Assim, o defeito da descoberta não residiria tanto na

própria categoria quanto no uso que por muito tempo se fez dela. Não

é sua significação que traria problema, mas sua instituição como

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

14 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

conceito e como relato historiográfico edificante. Eu sustento de

minha parte que se quisermos compreender quais foram os caminhos e

as escamoteações que conduziram a erigi-la como um universal

historiográfico, é bem a própria categoria, suas acepções e seus

empregos nos discursos dos atores que é preciso interrogar.

Antes de simplesmente rejeitar uma categoria historiográfica que

se manteve por muito tempo dominante, é preciso retornar a sua

origem para compreender dois aspectos de sua história. Em primeiro

lugar, quais eram os usos e as significações da palavra em questão nas

fontes da época? Em seguida, a partir de quando e em direção de quais

processos essa palavra pôde adquirir a significação que continuamos a

lhe atribuir hoje, uma significação da qual permanece geralmente

indissociável o cronônimo (Grandes) Descobertas? Tal esforço

implica, no entanto, um atento olhar filológico aos textos. Nenhuma

revisão pode ignorar a questão – para dizer com as velhas palavras de

Marcel Bataillon - “de saber que sentido tinha um acontecimento para

os homens que o viveram, que sentido porventura diferente ele tomou

para os homens das épocas seguintes” 8. Isso é tão verdadeiro hoje,

que a chamada história “conectada” ou “igualitária” baseia-se na

comparação e na conexão não dos fatos, mas do sentido que eles

adquiriram para uns ou para outros. Mas ainda hoje tal perspectiva

implica necessariamente “interpretar os textos como um bom

filólogo9”. Veremos que, se a descoberta considerada aqui concerne

essencialmente às explorações e navegações ibéricas dos séculos XV e

XVI, a abordagem que propomos pode também levar, para além

dessas últimas, a uma genealogia da ideia de descoberta, que se

tornou paradigmática para pensar o conhecimento, a pesquisa e o

progresso científico na época moderna.

Um projeto em várias etapas, então, das quais abordarei aqui

somente a primeira: a semântica da descoberta nos relatos dos

primeiros autores. Quanto à segunda – a identificação e a

interpretação das fontes, contextos e processos de constituição do

sentido moderno da descoberta – vou ater-me somente a hipóteses que

procurarei verificar em um estudo posterior. Distanciando-se da

vulgata das “Grandes Descobertas” - mas também do contra-relato

que a deslegitima facilmente, sem interrogar a palavra descoberta –

uma melhor compreensão do que significaram esses acontecimentos

pode ser alcançada, bem como uma reflexão mais nuançada sobre as

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Romain Descendre

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 15

categorias a que elas deram origem, desde que consideremos esse fato

semântico tão frequentemente ignorado: não é no sentido hoje comum

de descoberta que a palavra era empregada pelos primeiros autores

concernidos, os exploradores e os que os enviavam à vastidão.

*

1. Comecemos por uma das fontes mais célebres da história das

navegações portuguesas, o Diário da Viagem de Vasco de Gama10,

texto anônimo redigido por um dos membros da primeira frota que

conseguiu chegar à Índia contornando a África.

Em nome de Deus, Amém. Na era de 1497 mandou el-rei D.

Manuel, o primeiro deste nome em Portugal, a descobrir, quatro

navios, os quais iam em busca de especiarias, destes navios ia

por capitão-mor Vasco da Gama, e dos outros: dum deles Paulo

da Gama, seu irmão, e do outro Nicolau Coelho.11

O autor faz recurso de um emprego intransitivo surpreendente do

verbo descobrir. Em razão de tal emprego, foi dito a respeito desse

parágrafo que ele era “tortuoso”, “caótico”, “enigmático”12. No

entanto, ainda que hoje em desuso, esse emprego intransitivo é

frequente em nossas fontes. Convém interrogar seu alcance

examinando outros textos da época.

Encontra-se exatamente a mesma expressão, mandar a descobrir,

nos escritos do próprio rei Dom Manuel, na carta que ele escreve em

12 de julho de 1499 aos Reis Católicos para lhes anunciar a novidade:

“Sabeem vossas altezas como tínhamos mandado a descobrir vasquo

dagama fidallguo de nosa casa, e com elle paullo dagama ssuo irmaão

com quatro navios pello oçeano”13. Descobrir, entendido de modo

estrito, é a missão confiada ao navegador por ordem do rei (tínhamos

mandado). Outras fontes confirmam que esse uso era igualmente

frequente nos navegadores castelhanos e italianos. Assim, Américo

Vespúcio, em sua primeira carta manuscrita (29 de julho de 1500), de

retorno da viagem que o leva pela primeira vez às costas setentrionais

da América do Sul, à custa dos soberanos espanhóis, escreve o

seguinte a seu mestre Lorenzo di Pierfrancesco de Medici:

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

16 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Vossa Magnificência deve ter sabido que, por meio de uma

comissão recebida de Sua Alteza, o rei da Espanha, parti com

duas caravelas, em 19 de maio de 1499, para ir descobrir, pelo

oceano a oeste.14

Esse uso intransitivo não é exclusivo: o emprego transitivo aparece

algumas folhas adiante15. Mas ele não tem nada de isolado e retorna

frequentemente16, sobretudo nas cartas escritas no retorno da viagem

que Vespúcio faz, dessa vez à custa de Portugal, em 1501-1502, a fim

de reconhecer as costas da “Terra da Vera-Cruz”, o litoral brasileiro

assim nomeado por Pedro Álvares Cabral, que aí havia acostado um

ano antes. Descobrir é uma atividade adequada para definir e justificar

um certo tipo de navegação:

Porque partimos a fim de descobrir [i.nome di discoprire], e

essa era nossa missão ao deixar Lisboa, e não ir em busca de

algum proveito, não nos preocupamos em ir em busca da terra

nem de algum proveito.17

Também aí discoprire, utilizado de modo restrito, tem uma

dimensão oficial, que corresponde ao mandato com o qual o soberano

encarrega o piloto Vespúcio. A expressão in nome di discoprire define

a particularidade da missão: uma atividade específica, uma das

modalidades ou funções da navegação, por oposição a outras viagens

que poderiam ter um fim político-militar ou comercial. Descobrir

significa nesse caso navegar para conhecer e reconhecer.

O emprego intransitivo de descobrir é igualmente frequente no

castelhano de Colombo, que navegava “siempre con intençión de

descubrir” e que falava da descoberta como de um “ofício”,

queixando-se de que seu navio, pesado demais, fosse mal adaptado

“para el officio de descubrir”18.

O que se pode a partir disso chamar de intransitividade da

descoberta não tem, então, nada de “tortuoso” nem de inabitual. Ela

pode aparentar isso para o historiador, se ele atribuir simplesmente ao

verbo descobrir a significação que lhe é dada em nossos dias. Para

aqueles que descobriam, o verbo tinha um sentido técnico,

proveniente do ofício da navegação, e definia as tarefas que os

patrocinadores atribuíam aos navegadores. É uma significação, então,

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Romain Descendre

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 17

que tem também um lado oficial e político: dando sequência a seu

predecessor D. João II, trata-se da escolha de uma repetição do

descobrimento que D. Manuel faz, na rota das Índias, em busca do

Preste João – conforme o nome legendário que os europeus da Idade

Média davam ao Negus da Etiópia – e outros reinos e povos cristãos.

Essa escolha tinha sido abandonada durante uma dezena de anos, após

o retorno de Bartolomeu Dias, em proveito de um desenvolvimento do

comércio da Guiné e do Mediterrâneo. Tanto que se fazia oficialmente

a distinção entre a viagem de Vasco da Gama, em 1497-1499, que não

era definida como viagem, mas como descobrimento, e a de Cabral,

em 1500, considerada como a “primeira viagem” às Índias19. No

entanto, como outras fontes confirmam, essa descoberta – ou antes,

esse descobrimento, conforme a palavra francesa do século XVI, que

traduz bem melhor, assim como em português ou em castelhano, a

dinâmica da viagem de descoberta antes do que seu resultado – não

corresponde de modo algum, na língua de seus protagonistas, à ideia

das “Grandes Descobertas” que mais tarde serviu para designar suas

explorações.

2. De modo geral, a única evocação do descobrimento da Índia, em

fontes anteriores ou contemporâneas às viagens de Cristóvão Colombo

e de Vasco da Gama, basta para demonstrar que “descobrir” não

equivale a encontrar um espaço desconhecido: ninguém duvidava da

existência dessa Índia que se tratava justamente de reencontrar depois

que outros o haviam feito por outras rotas. “Descobrir a Índia” levava

a atingi-la, por uma via nova, a fim, sobretudo, de por si mesmo

reconhecê-la20. É assim que Cristóvão Colombo havia concebido ao

mesmo tempo o objetivo e o resultado de sua missão: como ele

afirmava no Diário de sua primeira viagem, ele tinha “descubierto las

Indias”, o que não significava de modo algum a descoberta – no

sentido moderno – de um novo continente, mas a instauração de uma

nova rota para alcançar a China de Marco Polo, de uma nova “derrota

de las Indias”21. Em sua carta de outubro de 1498, aos Reis Católicos,

quando faz o levantamento das terras que conquistou em seu nome,

ele menciona notadamente “uma vasta porção de terra firme, bem

conhecida dos Antigos, e que não é ignorada, contrariamente ao que

dizem os ambiciosos ou os ignorantes22”: a seus próprios olhos, com

exceção de várias ilhas onde nenhum europeu havia navegado

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

18 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

precedentemente, Colombo não tinha descoberto nada no sentido

moderno do termo, e certamente não um novo continente.

Contrariamente ao que ousava afirmar alguns de seus

contemporâneos, o que ele fez foi somente reencontrar, explorar e

reconhecer – em resumo, descubrir – terras de que os Antigos

conheciam muito bem a existência.

Além disso, as terras reunidas no Codex Vaglienti mostram que

scoprire ou discoprire tinha na língua toscana dos mercadores

florentinos de Lisboa um sentido essencialmente naval, até mesmo

cartográfico. Após o retorno de Vasco da Gama, um deles escreve que

os portugueses, ao longo da África, “descobriram aproximadamente

1800 léguas de terra nova […] fora o que já tinham descoberto”23: no

decorrer de suas navegações, sua ação consiste bem em descobrir uma

certa distância de terras, quer dizer, simplesmente levar mais adiante

sua navegação ao longo das costas. Os navegadores “descobrem” a

rota das especiarias, que eles medem pelo número de léguas das costas

que eles igualmente “descobrem”24. Todos têm consciência de que,

indo a Calicute, eles apenas reencontram uma rota que navegadores e

comerciantes árabes praticavam há muito tempo25.

A “descoberta da Índia” não é outra coisa senão o reconhecimento

de uma rota que já se sabia possível. Então, Vespúcio criticava

precisamente os portugueses quanto a esse ponto, por meio de uma

glosa que tratava do sentido mesmo do verbo descobrir. Em uma carta

escrita de Sevilha, em 28 de julho de 1500, de retorno de sua viagem

sob a bandeira castelhana, ele comenta nesses termos a viagem de

Vasco da Gama:

Penso que Vossa Magnificência obteve informações dessas

novas terras encontradas pela frota que o rei de Portugal, há

dois anos, enviou para descobrir pelos lados da Guiné: uma

viagem como essa eu não chamo descobrir, mas andar pelo já

descoberto; com efeito, como verás no mapa, sua navegação

segue continuamente a terra à vista, e eles contornam toda a

terra da África por sua parte austral, que é uma província de que

falam todos os autores da cosmografia.26

O florentino defende uma concepção da descoberta que já pode

parecer mais próxima daquela que vai se impor em seguida, já que o

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Romain Descendre

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 19

desconhecido desempenha aí um papel primordial. Mas ele reivindica,

sobretudo, uma concepção da navegação que se pode qualificar de

“colombiana” ou de ítalo-castelhana, que ele opõe diretamente à

tradição marítima portuguesa: depois de Cristóvão Colombo, Américo

Vespúcio acaba de atravessar o Atlântico e de explorar várias centenas

de milhas do continente sul-americano. No entanto, também para ele,

descobrir não significa sempre encontrar terras desconhecidas. O

verbo designa ainda uma das modalidades da navegação, que consiste

em explorar mares e costas das quais se desconfia ou das quais já se

conhece a existência27. Com duas condições, entretanto: que os navios

ousem se lançar ao longe no oceano; que eles não se contentem em

seguir os mapas estabelecidos a partir das auctoritates da ciência

geográfica. Certamente, Vespúcio exagera um pouco quando afirma

que “todas as autoridades da cosmografia” evocam a circum-

navegação da África28. É verdade, por outro lado, que a navegação dos

portugueses era fundamentada nas informações e nos conselhos que

eles haviam retirado da melhor cosmografia italiana do século XV: em

particular junto ao monge camaldulense de Veneza, Frei Mauro, em

1540, e depois, vinte anos mais tarde, junto ao sábio florentino Paolo

del Pozzo Toscanelli, para quem o contorno da África aparecia como

uma solução possível29. Mas Vespúcio defende, sobretudo, uma ideia

da descoberta que inverte a relação entre a experiência da navegação e

a ciência estabelecida: descobrir não é seguir as indicações dos sábios,

mas explorar novas vias que conduzem justamente para além do que

já conheciam os “altori”. Segue que descobrir, para todos,

portugueses, castelhanos ou italianos, é essencialmente explorar e

abrir uma nova via30.

3. Poder-se-ia objetar que a escolha das fontes pode apresentar um

viés e orientar unilateralmente a significação da palavra. Afinal, é

muito normal que textos que tratam das explorações utilizem

descobrir no sentido de explorar. Mas o sentido da palavra

continuaria o mesmo em documentos que reivindicam explicitamente

a descoberta de uma terra desconhecida?

Tomemos o caso dessa peça fundadora da história do Brasil, que é

a Carta de Pêro Vaz de Caminha, escrita no local, entre o final de

abril e maio de 1500, por um dos membros da frota de Cabral para

anunciar a D. Manuel sua chegada às costas de uma “terra nova”. A

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

20 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

descoberta não se diz aí descobrimento (e menos ainda descoberta, já

que o substantivo formado com particípio passado só aparece mais

tarde), mas achamento (Vaz de Caminha anuncia ao rei o “achamento

desta terra”), nome constituído a partir do verbo achar. Quanto a

descobrir, o verbo, mais uma vez, significa claramente explorar, a fim

de conhecer melhor os lugares: o texto incita o rei a enviar a essa terra

outros navios “para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do

que nós agora podíamos saber31”. Na verdade, o verbo é pouco

empregado, contrariamente a achar, que retorna incessantemente e

permanecerá também o verbo chave da carta que D. Manuel enviará

aos Reis Católicos, logo após o retorno de Cabral, para mantê-los

informados de que desta vez ele “achou” uma terra nova32.

Os relatos dos exploradores reservavam, então, à descoberta um

sentido muito técnico. Estes últimos haviam recebido esse termo da

língua militar, como mostram as fontes provenientes das guerras que

os portugueses travavam contra os “mouros” em Marrocos. O texto

que ele utiliza mais frequentemente no século XV é a Crónica do

Conde D. Pedro de Meneses, do humanista e cronista real Gomes

Eanes de Zurara (1464-1468), que relata a “guerra santa” dos

portugueses na África do Norte33. Aquele que “descobre” é aí o

batedor, o soldado que se envia para reconhecer os lugares antes de

um ataque ou uma invasão34. Descobrir correspondia simplesmente a

uma das ações indispensáveis a toda conquista militar e tinha pouca

relação com uma pesquisa desinteressada do desconhecido. Pode-se

ainda ressaltar que, também em francês, descoberta foi por muito

tempo um “termo de guerra e de mar”, conforme as palavras de Littré:

“aller à la découverte, aller en avant d’une armée navale ou de terre

pour touver l’ennemi, reconnaître ses forces et savoir la route qu’il

tient” [ir à descoberta, ir à frente de uma armada naval ou terrestre

para encontrar o inimigo, reconhecer suas forças e saber a rota que ele

mantém]35. No Dictionnaire de l’ancienne langue française, elaborado

por Godefroy, o único sentido de descovrir relacionado com as

navegações é “percorrer para ver, para explorar”; quanto ao

descobridor, ele é o batedor, ou o precursor, no contexto militar.

O primado do sentido militar do verbo descobrir no português do

século XV não deve ser subestimado. Ele reflete, no domínio

linguístico, esse fato histórico de importância maior: o que se habituou

designar como as Descobertas portugueses na África foi por muito

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 21

tempo uma cruzada contra os inimigos infiéis, uma guerra santa

travada com o objetivo de conquistar Marrocos. Era o caso na época

do Infante Henrique (o Navegador); isso continuou ainda quando a

descoberta das costas africanas, sob João II e mais ainda sob Manuel

I, tinha como principal objetivo reencontrar o reino cristão do Preste

João, de maneira a tomar o mundo islâmico como refém. O objetivo

das navegações portuguesas não era explorar novas terras, nem

mesmo encontrar a rota das especiarias, mas abrir a rota que permitiria

pegar os “mouros” desprevenidos, em uma lógica que permanecia,

antes de tudo, a da cruzada, relançada especialmente para um D.

Manuel imbuído, assim como Colombo, de ideias messiânicas36.

Assim como as navegações armadas das Cruzadas se transformaram

em navegações de explorações e de conquistas das novas terras, a

palavra descoberta, que designava a localização das forças inimigas,

emancipou-se do campo único da guerra naval para designar a

exploração marítma, e enfim, somente mais tarde, o fato de se ter

encontrado – achado, hallado – e conquistado terras até então

desconhecidas.

Certamente, encontra-se ocasionalmente, nas fontes e na literatura

de viagens da virada do século XVI, esse último sentido, mais

moderno, em virtude do qual, por metonímia, o termo vem a designar

um dos resultados possíveis da atividade que ele denota em primeiro

lugar. Mas, durante muito tempo, esse último sentido permaneceu

minoritário. Assim, em um dos principais historiadores das

descobertas portuguesas, Fernão Lopes de Castanheda, o sentido

antigo continua a dominar muito claramente. Desde as duas primeiras

páginas de sua História do descobrimento e conquista da Índia pelos

Portugueses, aparecida em 1551, em não menos de onze ocorrências

de descobrimento ou descobrir, somente uma pode eventualmente

significar o que chamamos hoje descobrir37. Os reis João II e Manuel

enviaram a descobrir “a Índia”, “a costa da Guiné”, “o Preste João das

Índias”, e o conjunto desse descobrimento se faz em parte per mar, em

parte por terra; somente a menção da descoberta, por Dias, do Cabo

da Boa Esperança, aquel muyto grande e espantoso cabo dos antigos

não conhecido, permite pensar que um sentido novo aparece na

passagem – mas tratar-se-ia então de um deslizamento a partir de um

sentido primeiro, que permanece onipresente38. Alguns anos mais

tarde, o Tratado dos descobrimentos de Antonio Galvão, que aparece

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

22 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

em Lisboa, em 1563, não atribui nenhum privilégio às descobertas

portuguesas e espanholas e estabelece, pelo contrário, uma

continuidade, na longa duração, das viagens, navegações e

explorações de todas as ordens – tal é o sentido particularmente amplo

que ele dá à palavra descobrimentos – efetuadas desde a mais alta

Antiguidade até em 155039. É aí uma tomada de partido que tinha sido

de algum modo preparada pelo veneziano Giovan Battista Ramusio

em suas Navigazioni e viaggi publicadas de 1550 a 1559: nessa suma

que, como seu título indica, valorizava mais os empreendimentos de

exploração de todos os gêneros do que somente as descobertas no

sentido moderno do termo, um interesse particular era dedicado tanto

aos gregos ou cartagineses dos tempos antigos quanto aos venezianos

da Idade Média que, por muito tempo, antes dos portugueses e dos

espanhóis, haviam feito discoprimenti igualmente dignos de

interesse40. Trata-se aí de um texto em que o verbo descobrir,

regularmente empregado em um sentido já moderno, guarda uma

amplitude semântica particularmente extensa, recobrindo o conjunto

das experiências das navegações e viagens.

*

O estudo dos usos das palavras da descoberta nos permite de agora

em diante tirar dois ensinamentos úteis. Onipresente nas fontes, o

verbo descobrir designa aí o ofício dos exploradores e as missões que

lhes confiam os soberanos que decidiram fazer de tudo para atingirem

as Índias por uma via que lhes será própria. Por razões ao mesmo

tempo semânticas e históricas, descobrir não serve para significar que

se encontraram terras desconhecidas, e quando o verbo adquire esse

sentido é de certo modo por acréscimo, enquanto efeito da exploração.

Falar de uma era das descobertas é mais do que legítimo se

conservarmos no termo esse sentido próprio e o reservarmos para as

políticas voluntaristas de navegações de longo alcance e de busca de

novas rotas em direção às terras asiáticas.

Mas – segundo ensinamento – é preciso também tomar consciência

do fato de que um dos efeitos dessas políticas e desses

empreendimentos foi justamente o de modificar, de início

insensivelmente e depois, a longo prazo, de modo decisivo, o que vem

a ser designado como descoberta – a saber, um resultado,

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Romain Descendre

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 23

particularmente importante do ponto de vista cognitivo e

epistemológico, atingido no decorrer de um processo de busca. Se esse

for o caso, é preciso convir que as famosas Grandes Descobertas se

encontram em parte fortalecidas enquanto marcadoras da

“modernidade” europeia e que por muito tempo continuará difícil

“acabar” com elas, a despeito do etnocentrismo que elas testemunham.

Resta, no entanto, precisar quando e, sobretudo, em que textos e

contextos o sentido moderno do verbo descobrir adquire uma

importância tal que chega a suplantar o sentido antigo.

A hipótese que procurarei sustentar na próxima etapa deste

trabalho é a seguinte: esse sentido moderno começa a surgir com os

contenciosos que opunham, a partir do último terço do século XV, as

coroas de Portugal e de Castilha a respeito de suas respectivas

navegações, particularmente nos textos que têm vocação a regulá-los.

É com efeito nesse quadro preciso que a descoberta como atividade

cede espaço à descoberta como título de propriedade e de conquista –

quer dizer, a palavra que finalmente traduziu a noção jurídica de

inventio. Dito de outro modo, tanto o uso, quanto o sentido tomado em

seguida pela palavra, somente foram fixados após os acontecimentos

dos quais ela se torna a antonomásia, mas tal evolução teria sido

particularmente favorizada pelos processos político-jurídicos que eles

desencadearam. Uma origem política, então, da fixação do sentido

moderno da descoberta. Se for justa, tal hipótese poderia ter alguma

incidência na história dos saberes e da epistemologia modernas.

Tradução: José Horta Nunes

Universidade Estadual de Campinas

Palavras-chave: Descoberta; Relatos dos primeiros autores;

Filologia.

Keywords: Discovery; First authors reports; Philology.

Notas

1 Este texto é o resultado de pesquisas realizadas no âmbito da “Cátedra francesa em

São Paulo”, da qual fui o titular em 2014 e que me permitiu efetuar uma estadia de

quatro meses no Instituto de Estudos da linguagem (IEL) da Unicamp. Agradeço a

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

24 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Eduardo Guimarães, que me acolheu em seu seminário, bem como aos estudantes e

colegas que o assistiram, cujas observações me foram muito úteis. 2 Sobre essa noção, ver o dossiê “Chrononymes. La politisation du temps” na revista

Mots. Les langages de la politique, 87, 2008. Disponível em:

<http://mots.revues.org/11532>. Acesso em 31 ago. 2015. 3 R. Bertrand, L’Histoire à parts égales. Récits d’une rencontre Orient-Occident

(XVIe-XVIIe siècle). Paris: Éditions du Seuil, 2011, p. 13. Dentre outros títulos,

citemos especialmente S. Subrahmanyam. Vasco de Gama. Légende et tribulations du

vice-roi des Indes. Paris: Alma, 2012 (ed. or. 1997); D. Chakrabarty, Provincialiser

l’Europe. La pensée postcoloniale et la différence historique. Paris: Éditions

Amsterdam, 2009 (ed. or. 2000); S. Gruzinski. Les Quatre parties du monde. Histoire

d’une mondialisation. Paris: La Martinière, 2004; S. Subrahmanyam. Explorations in

Connected History, 2 vol., Oxford: Oxford University Press, 2005; P. Boucheron

(org.). Histoire du monde au XVe siècle. Paris: Fayard, 2009. 4 Ver os trabalhos de J. Aubin reunidos nos três volumes Le Latin et l’Astrolabe.

Recherches sur le Portugal de la Renaissance, son expansion en Asie et les relations

internationales (I et II. Lisboa-Paris, 1996 e 2002) e Le Latin et l’Astrolabe. Études

inédites sur le règne de D. Manuel (1495-1521) (III. Paris, 2006), assim como os de

L. F. F. R. Thomaz agrupados no De Ceuta a Timor. Algés: Difel, 1994. 5 C. Markovits; S. Subrahmanyam. Navigation, exploration, colonisation. Pour en

finir avec les Grandes Découvertes. In P. Boucheron (Org.). Histoire du monde au

XVe siècle, cit., p. 603-618. 6 W. E. Washburn. The Meaning of ‘Discovery’ in the Fifteenth and Sixteenth

Centuries. The American Historical Review, 68, 1, 1962, p. 1-21 (11). O artigo de M.

Bataillon, L’idée de la découverte de l’Amérique chez les Espagnols du XVIe siècle

(d’après un livre récent). Bulletin Hispanique, 55, 1, 1953, p. 23-55, discute o livro de

E. O’Gormann. La idea del descubrimiento de América. Historia de esa

interpretación y crítica de sus fundamentos. México: Centro de Estudios Filosóficos,

1951, e tem continuidade em M. Bataillon; E. O’Gormann. Dos concepciones de la

tarea histórica con motivo de La idea del descubrimiento de América. México: Centro

de Estudios Filosóficos, 1955. Ver também H. Vignaud. Histoire critique de la

grande entreprise de Christophe Colomb. Paris: Welter, 1911 e R. Levillier. America

la bien llamada. 2 vol.. Buenos Aires: G. Kraft, 1948. 7 P. Boucheron lembra com razão que “le terme de descubrimiento apparaît déjà sous

la plume de Christophe Colomb” [o termo descobrimento aparece já nos escritos de

Cristóvão Colombo] e avalia que “l’idée de ‘découverte’ n’est en rien un

anachronisme” [a ideia de 'descoberta' não é de modo algum um anacronismo]: P.

Boucheron. Qui a inventé les Grandes Découvertes? 355, L’Histoire, dossiê “Les

Grandes Découvertes”, julho de 2010, p. 8. 8 M. Bataillon, art. citado, p. 23. 9 Ibid., p. 36. 10 Surgido em 1834, o texto foi editado pela primeira vez em 1838. Sobre a história de

sua edição, ver S. Subrahmanyam. Vasco de Gama, op. cit., p. 111-114. 11 Diário da viagem de Vasco da Gama. A. Baião; A. de Magalhães Basto; D. Peres

(Orgs.). Porto: Livraria Civilização, 1945. 12 S. Subrahmanyam. Vasco de Gama, op. cit., p. 115.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 25

13 Carta original del rey D. Manuel de Portugal á los Reyes Católicos participándoles

el descubrimiento de las Indias orientales por Vasco de Gama. Biblioteca de la Real

Academia de la Historia, colección de Salazar A 10, fol. 15r.-v., in Alguns

documentos do Archivo nacional da Torre do Tombo acerca das navegações e

conquistas portuguezas publicados por ordem do Governo da Sua Majestade

Fidelissima ao celebrar-se a commemoração quadricentaria do descobrimento da

America. Lisboa, 1892, p. 95-96. 14 “Arà inteso, Vostra Magnificenza, come per comesione della Alteza di questo re di

Spagna mi parti’ con duo carovelle a dì 18 di maggio 1499 per andare a discoprire alle

parte de l’ocidente per via del mare Oceano”; cito o texto manuscrito das miscelâneas

de Piero Vaglienti, a mais rica fonte de informações sobre as descobertas na época,

produzidas pelos florentinos presentes na península ibérica. Iddio ci dia buon viaggio

e guadagno: Firenze, Biblioteca Riccardiana, ms. 1910 (Codice Vaglienti), ed. critica

organizada por L. Formisano. Firenze: Polistampa, 2006, p. 106 (f. 41ra-41rb). Citado

daqui em diante como Codice Vaglienti, seguido dos números das folhas e das

páginas. 15 “E stemo in questo viaggio 13 mesi, corendo grandissimi pericoli e discoprendo

infinitissima tera de l’Asia e gran copia d’isole”. Codice Vaglienti, f. 46rb (p. 113). 16 Assim, sempre na mesma carta: “Qui m’armano questi re 3 navili perché

nuovamente vada a discoprire, e credo che saranno presto a ½ setenbre”. Ibid., f. 46vb

(p. 114). 17 “Perché andamo i.nome di discoprire, e con tal comesione ci partimo di Lisbona, e

non di cercare alcuno profitto, non c’inpaciamo di cercare la terra né in essa cercare

alcuno profitto”. Terceira carta manuscrita de Vespúcio, 1502, ibid., f. 55rb (p. 125). 18 C. Colón. Los cuatro viajes. Testamento. C. Varela (Org.). Madri: Alianza

Editorial, 2004, p. 152 (primer viaje, Miércoles, 26 de Diziembre [1492]). 19 J. Aubin. Le Latin et l’Astrolabe. III. Op. cit., p. 255-304. 20 Na carta de janeiro de 1500, por meio da qual Manuel I outorga a Vasco de Gama o

título de Almirante das Índias, parece que a novidade do “descobrimento” reside no

fato de se ter chegado à Índia contornando a África, “pays qui n’avait jamais été

atteint par là” [país que nunca havia sido alcançado por ali”. Arquivos Nacionais

Torre do Tombo, Lisboa. Livro dos Místicos, I, f. 204. In A. C. Teixeira de Aragão.

Vasco da Gama e a Vidigueira: estudo historico. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898,

doc. 14, p. 224-225. Sobre esse texto, ver S. Subrahmanyam. Vasco de Gama, op. cit.,

p. 214-217. 21 C. Colón. Op. cit., p. 187 (Lunes, 18 de hebrero [1493]). 22 “[…] tanta parte de la tierra firme, de los antiguos muy cognosçida, y no ignota,

com quieren dezir los embidiosos, ó ignorantes”. Raccolta di documenti e studi

pubblicati dalla R. Commissione colombiana pel quarto centenario dalla scoperta

dell’America. Roma: 1894, I, II, p. 47. 23 Girolamo Sernigi. Carta de Lisboa, 10 de julho de 1499. Codice Vaglienti, f. 61rb

(p. 131): “Scoprino di terra nuova circa di leghe 1800 […] fuora a quelo che avevano

scoperto”. 24 Guido Detti escreve em 10 de agosto de 1499: “ò trovato arivato qui una nave di

questo re di Portogallo che fu a discoprire le spezierie in conserva di tre altre navi di

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

26 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

questo medesimo re, le qua’ partinno, tute di conserva, già sono valichi 2 anni e ànno

discoperto di nuovo paese circa a leghe 4000”. Ibid., f. 68rb (p. 141-142). 25 Como mostram estas informações transmitidas por G. Detti: “Èvi infinite navi, e

quivi è la propia fonda di tute le spezierie le qua’ vengono di Levante. Le quali

spezierie conducono con esse nave a uno stretto del cavo della Arabia dove mete

i.mare uno ramo del Mare Rosso […]”. Ibid., ff. 68rb-68va (p. 142). Os florentinos

estão diretamente interessados por essa nova rota, enquanto mercadores instalados em

Lisboa; eles contribuem em primeiro lugar para armar as frotas, financiar as viagens e

participar dos comércios controlados pelos portugueses há várias décadas. Esse

intreresse econômico é também político, ou melhor, geopolítico: os florentinos

percebem imediatamente tudo o que os venezianos têm a perder com esse negócio,

assim como seus fornecedores mamelucos. É o que diz ainda, dentre outros, Detti, que

imagina que, após essa viagem de Vasco da Gama, os venezianos não têm outra

alternativa senão “voltarem a ser pescadores”: “faciàn conto el soldano n’abi una

cativa nuova e che e’ Veniziani, per perdersi e’ trafichi di Levante, abino a tornare

pescatori, perché veranno a pregio le spezierie per questa via, che loro non ne

potranno condurre.”, f. 69vb (p. 144). Aquilo que os venezianos perderão, pensa Detti,

os florentinos poderão recuperar, desde que consigam retomar Pisa e seu porto:

“Stimasi, riavendosi Pixa, questo re farebe stapola in Porto Pisano, per eser la

migliore scala d’Italia e a lui più comoda” (ibidem). A observação é ainda mais

incisiva na medida em que nessa época (agosto de 1499) Veneza é o principal apoio

dos pisanos em sua resistência contra os florentinos que os assediam. 26 “Credo Vostra Magnificenza arà inteso delle nuove terre ch’à trovato l’armata che

due anni fa mandò e.re di Portogallo a discoprire alle parte di Ghinea: tal viaggio

come quello, non lo chiamo io discoprire ma andare pel discoperto, perché, come

vedrete per la figura, la loro navicazione è di continovo a vista di tera, e volgono tutta

la terra de l’Africa e parte de l’austro, perch’è provincia dela quale parlano tutti li

altori della cosmogrofia.”. Codice Vaglienti, f. 47ra (p. 114). 27 São raros os especialistas que sublinham que o sentido antigo do verbo residia no

esforço de exploração. Citemos, todavia, João Franco Machado, que havia ressaltado

que “Descobrir não significava apenas achar por acaso. Era, antes, resultado de

calculado esfôrço de busca de uma terra de cuja existência havia conhecimento

prévio, ainda que vago ou erróneo”. F. Machado. O conhecimento dos arquipélagos

atlânticos no século XIV. In História da expansão portuguesa no Mundo. A. Baião;

H. Cidade; M. Múrias (Org.). vol. I. Lisboa: Editorial Atica, 1937, p. 272-273; assim

como Ilaria Luzzana Caraci, que mais recentemente assinalou que o verbo indicava

nos textos dessa época “toute expérience à caractère exploratoire” [toda experiência

de caráter exploratório]: I. Luzzana Caraci. “Per lasciare di me qualche fama”. Vita e

viaggi di Amerigo Vespucci. Roma: Viella, 2007, p. 142. 28 Acrescentemos que isso é injusto em relação aos portugueses. O contorno do Cabo

da Boa Esperança era efetuado ao custo da volta do largo, que consistia em se

distanciar muito em direção ao oeste pelo oceano para evitar a bonança do golfo da

Guiné e reencontrar ventos muito mais favoráveis em direção à África meridional: é

essa manobra, tornada tradicional, que está provavelmente na origem da primeira

acostagem portuguesa nas costas do Brasil.

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Romain Descendre

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 27

29 Sobre o mapa do mundo que ele elaborou a pedido do rei D. Afonso, em 1455, Frei

Mauro havia claramente colocado em evidência a possibilidade de chegar à Ásia por

meio do contorno da África. A carta de Paolo del Pozzo Toscanelli era uma resposta

às informações que o mesmo Afonso V, em 1474, lhe havia solicitado a respeito da

melhor rota para chegar às Índias. Se, como se sabe, ele aconselhou pegar a via

ocidental, que ele considerava mais direta e sobretudo mais curta que a rota africana,

ele também considerava esta última – “pela Guiné” – como uma possibilidade

evidente. Ver H. Vignaud. La lettre et la carte de Toscanelli sur la route des Indes

par l’ouest adressées en 1474 au Portugais Fernam Martins et transmises plus tard à

Christophe Colomb. Étude critique sur l’authenticité et la valeur de ces documents et

sur les sources des idées cosmographiques de Colomb, suivie des divers textes de la

lettre de 1474 avec traductions, annotations et fac-similé. Paris: Leroux, 1901, p. 264. 30 É exatamente essa concepção que se encontra em uma outra passagem da carta já

citada de Guido Detti, quando ele sublinha a decisão de D. Manuel de manter secretos

os mapas náuticos estabelecidos graças à navegação de Vasco da Gama. “Questo re à

fato tôrre tutte le carte da navicare sotto pena la vita e confiscazione de’ loro beni,

cioè tutte quelle che dànno lume di questa costa, perché non si sappi quella gita overo

l’andare a camino per quelle bande, acciò non vi si meta altra gente. Credo potrà ben

fare, ma tuto s’à a sapere e àvisi a metere ad andare de li altri navili”, Codice

Vaglienti, ff. 70va - 70vb. Impedir que o trajeto seja divulgado: a rota descoberta deve

certamente ser anunciada, mas certamente não traçada, descrita ou mostrada. Detti

expressa todo o seu ceticismo na medida em que essa navegação será necessariamente

adotada por muitos outros navios. 31 “Senhor, posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim igualmente os outros

capitães escrevam a Vossa Alteza dando notícias do achamento desta Vossa terra

nova, que agora nesta navegação se achou, não deixarei de também eu dar minha

conta disso a Vossa Alteza […] E então o Capitão perguntou a todos e nos parecia

bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos

mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora

podíamos saber, por irmos adiante na nossa viagem […]”, A carta de Pêro Vaz de

Caminha: o descobrimento do Brasil. Silvio Castro (introdução, atualização e notas).

Porto Alegre: L&PM, 1996, p. 76 e 85 (os itálicos são meus). 32 “O dito meu capitão com treze naos partio de Lixboa a ix de Março do anno

passado e nas outavas de Páscoa seguinte chegou a ua terra que novamente descobrio,

a que pôs nome Sancta Cruz; em que achou as gentes nuas como na primeira

inocência, mansas e pacíficas; a qual pareceo que Nosso Senhor milagrosamente quis

que se achasse, porque é mui conviniente e necessária à navegação da Índia, porque

ali corregeo suas naos e tomou água; e polo caminho grande que tinha pera andar nom

se deteve pera se enformar das cousas da dita terra, somente dali me enviou um navio

a me notificar como a achara, e fez-se a caminho, via do Cabo de Boa Esperança”.

Carta citada por L. F. F. R. Thomaz. D. Manuel a Índia e o Brasil. Revista de História,

161, 2009, p. 44. 33 O aplicativo online “Corpus do português” (disponível em:

<http://www.corpusdoportugues.org>. Acesso em: 31 ago. 2015), permite buscas

lexicográficas e comparações de ocorrências de obras portuguesas antigas, que

deixam poucas dúvidas sobre o sentido dominante que o termo tinha no século XV.

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A “DESCOBERTA”: HISTÓRIA DE UMA INVENÇÃO SEMÂNTICA

(PRIMEIROS ELEMENTOS)

28 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

34 Somente o verbo parece de uso frequente. O termo descobrimento é quase

inexistente no século XV, ao passo que se tornará de uso massivo no século seguinte.

Observemos, aliás, que uma outra crônica importante de Zurara, a pretensa Crónica

do Descobrimento e Conquista da Guiné – principal documento que retraça os gestos

do infante Dom Henrique (o Navegador) – só recebeu esse título tardiamente e se

intitulava na realidade Crónica na qual som scriptos todollos feitos notavees que se

passarom na conquista de Guinee (1453). 35 E. Littré. Dictionnaire de la langue française. s. v. “découverte”. 36 Sobre o conjunto dessas questões, ver sobretudo os trabalhos de J. Aubin e de L. F.

F. R. Thomaz; deste último, particularmente: Le Portugal et l’Afrique au XVe siècle:

les débuts de l’expansion. Arquivos do Centro Cultural Português, 26, 1989, p. 61-

256, bem como os textos reunidos em De Ceuta a Timor, op. cit. 37 F. L. de Castanheda. História do descobrimento e conquista da Índia pelos

Portugueses. Livro I e II. P. de Azevedo (Org.). Coimbra, 1924, p. 5-6. 38 Dessa única ocorrência, isolada entre tantas outras, S. E. Morison, citando o texto

de Castanheda, deduzia que o sentido moderno existia tal qual no século XVI: parece-

nos, ao contrário, bem mais surpreendente que essa acepção ainda continue

minoritária em 1551. (S. E. Morison, Portuguese Voyages to America in the Fifteenth

Century. Cambridge: Harvard University Press, 1940, pp. 9-10). 39 A. Galvão, Tratado dos Descobrimentos. Visconde de Lagoa (Org.). Porto: Livraria

Civilização editora, 1944. Observemos que o título original não era aquele que se

impôs mais tarde: Tratado […] dos diversos & desvayrados caminhos por onde nos

tempos passados a pimenta & especearia veyo da India às nossa partes, & assi de

todos os descobrimentos antigos & modernos, que são feitos até a era de mil &

quinhentos & cincoenta, onde se vê que descobrimentos apenas completa caminhos. 40 G. B. Ramusio. Navigazioni e viaggi. M. Milanesi (Org.). 6 vol.. Torino: Einaudi,

1978-88. Ver R. Descendre e F. Lejosne. Giovanni Battista Ramusio et la

‘conférence’ des récits: Anciens et Modernes dans les Navigationi e viaggi. In Le

présent fabriqué (Espagne-Italie, XVe-XVIIe siècles). F. Crémoux; J. L. Fournel; C.

Lucas (Orgs.). Paris: Classiques-Garnier, no prelo.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 29

A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-

WHORF”1

Isadora Machado2

Resumo: Objetiva-se demonstrar a equivocidade dos sentidos em

torno do que ficou conhecido, no século XX, como Hipótese Sapir-

Whorf. Para tanto, analisam-se os diferentes processos de construção

da autoria em Edward Sapir e em Benjamin Whorf, bem como a

circulação das diferentes definições da Hipótese. Demonstra-se que,

na história das ideias linguísticas, a Hipótese Sapir-Whorf se constitui

em um desacordo entre: quem seriam seus autores, qual seria a

melhor maneira de designá-la e, ainda, a que conceito ela refere. A

partir disso, insta-se a refletir sobre uma prática científica

perspectivista, que faz trabalhar as possibilidades de uma poética do

comum.

Abstract: The objective is to demonstrate the equivocality of meanings

around what became known as Sapir-Whorf Hypothesis, in the

twentieth century. Therefore it analyses the different authorship

construction processes in Edward Sapir and Benjamin Whorf, and

also the movement of different hypothesis settings. It demonstrates

that in the history of linguistic ideas, the Sapir-Whorf Hypothesis is

done in the disagreement between who would be their authors, what

would be the best way to designate it and also which is the subject of

it. From this, it urges to reflect on a scientific perspective practice,

which does work the possibilities of a “poetic of mutual”.

Tudo o que não invento é falso. Manoel de Barros

Agis dans ton lieu, pense avec le monde. Édouard Glissant

1. Palavras iniciais As teorias e os métodos linguísticos circulam, de um modo geral,

como se houvesse obviedade ou mesmo homogeneidade em suas

questões, propósitos, objetos – como se houvesse um acordo sobre

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

30 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

quais seriam os problemas pelos quais as Ciências da Linguagem são

responsáveis. Cada ponto dessa rede de saberes, entretanto, é algo

bem mais complexo do que costuma parecer. Na medida em que

vamos desenrolando o novelo de uma ideia, descobrimos diferentes

caminhos do sentido, por vezes contraditórios. Uma ideia é um

amálgama, de modo que é preciso dissolvê-la para compreender sua

história.

O objetivo deste artigo é dissolver a evidência com a qual tem sido

lida a “Hipótese Sapir-Whorf” (HSW). Para tanto, demonstramos que

o processo de constituição da autoria em Edward Sapir (1884-1939) e

em Benjamin Whorf (1887-1941) é bastante diferente. Os dois

autores, inclusive, não formularam a hipótese que recebe o nome

deles. Ela só foi inventada em 1954, em uma conferência proferida

por Harry Hoijer (1904-1976), intitulada Sapir-Whorf Hypothesis.

Diante disso, somos instados a investigar quais os sentidos da HSW

que circulam em diferentes comentadores do tema.

Primeiramente, trazemos o problema geral da autoria, para em

seguida compreender de que maneira ela se coloca em Sapir e em

Whorf. A partir disso, analisamos diferentes artigos de diferentes

épocas produzidos por comentadores da hipótese, com vistas a

perceber os efeitos da tentativa de definir uma ideia que só existe em

sua equivocidade. Esperamos, nesse percurso, contribuir para a

interpretação e constituição da História das Ideias Linguísticas, de

maneira que a prática científica possa ser pensada como uma poética

do comum.

2. A questão da autoria

Michel Foucault (1969), ao golpear o corolário do sujeito

metafísico, questiona a evidência com que tomamos as “categorias” de

escrita, de obra e de autor. Afirma que a questão “o que é um nome de

autor” apresenta uma série de complicadores, dentre eles o fato de que

o nome de autor é um nome próprio e, dessa maneira, tem outras

funções que não apenas as indicadoras, pois está situado entre os polos

da descrição e da designação (nem totalmente uma, nem totalmente

outra). O nome de autor não seria apenas um “nome de discurso”, já

que exerceria um determinado papel – “o nome de autor não transita,

como o nome próprio, do interior de um discurso para o indivíduo real

e exterior que o produziu, mas que, de algum modo, bordeja os textos,

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Isadora Machado

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 31

recortando-os, delimitando-os, tornando-lhes manifesto o seu modo de

ser ou, pelo menos, caracterizando-lhes” (FOUCAULT, 1969/2006,

p.46-47). Este lugar de origem ao qual poderia ser remetido um

determinado discurso, e que Foucault denomina função-autor, é

passível de penalização no interior de uma sociedade, bem como não

se exerce de forma universal em todos os discursos, na medida em que

nem sempre os mesmos textos pedem autoria nas mesmas épocas

(houve um tempo em que dos textos literários, por exemplo, não se

perguntava sobre o autor, o que seria impensável nos dias de hoje).

Além disso, a função-autor é a construção de “um certo ser racional”,

com poder profundo de criação, e em cuja escrita certos conjuntos de

signos remetem ao locutor real. Dessa maneira,

a função-autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que

encerra, determina, articula o universo dos discursos; não se

exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os

discursos, em todas as épocas e em todas as formas de

civilização; não se define pela atribuição espontânea de um

discurso ao seu produtor, mas através de uma série de operações

específicas e complexas; não reenvia pura e simplesmente para

um indivíduo real, podendo dar lugar a vários “eus” em

simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de

indivíduos podem ocupar. (FOUCAULT, 1969/2006, p.57)

Orlandi (1988), entretanto, produz outro entendimento da função-

autor. Retoma Ducrot (1985), para em seguida deslocar-se, ao dizer

que o locutor e o enunciador são funções enunciativas do sujeito, mas

que o “autor” também é uma dessas funções (no que então se desloca

da ideia ducrotiana). Locutor, enunciador e autor seriam, portanto,

funções enunciativas do sujeito –

nossa proposta é, então, a de colocar a função (discursiva) autor

junto às outras e na ordem (hierarquia) estabelecida: locutor,

enunciador e autor. Nessa ordem, teríamos uma variedade de

funções que vão em direção ao social. Dessa forma, esta última,

a de autor, é aquela (em nossa concepção) em que o sujeito

falante está mais afetado com o social e suas coerções.

(ORLANDI, 1988/2007, p.77)

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

32 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Assim, o autor, enquanto a função em que o eu se coloca como

origem do que diz, é a “dimensão discursiva do sujeito que está mais

determinada pela relação com a exterioridade (contexto sócio-

histórico)” (ORLANDI, 1988/2007, p.77) e, portanto, está mais

coagido pelas regras da instituição, fazendo com que sejam mais

visíveis os procedimentos disciplinares. Se para Foucault a função-

autor não vale em todos os discursos, Orlandi atribui um outro alcance

para esta função pensando-a como uma função discursiva, para dizer

que o princípio de autoria é necessário a qualquer discurso, pois são

justamente os efeitos dessa autoria que produzem o efeito de unidade

da textualidade e do discurso: o sujeito necessita transitar “da

multiplicidade de representações possíveis para a organização dessa

dispersão num todo coerente, apresentado-se como autor, responsável

pela unidade e coerência do que diz” (ORLANDI, 1988/2007, p.76).

Há, nesses termos, uma “assunção de autoria”, pois “o autor é o

sujeito que, tendo o domínio de certos mecanismos discursivos,

representa, pela linguagem, esse papel na ordem em que está inscrito,

na posição em que se constitui, assumindo a responsabilidade pelo que

diz, como diz etc.” (ORLANDI, 1988/2007, p.76).

Nesses termos, portanto, caracterizaremos a seguir as diferentes

formas como a autoria, nesse sentido orlandiano, é construída em

Sapir e em Whorf.

3. Edward Sapir

Edward Sapir (1884–1939) nasceu na Pomerânia, antigo território

da Prússia, hoje território da Alemanha. Emigrou para os Estados

Unidos da América em 1889 e lá realizou todos os seus estudos.

Obteve o bacharelado e o mestrado em filologia germânica pela

Columbia University e o P.h.d. em Antropologia pela mesma

universidade, sob a orientação de Franz Boas (1858–1942). Sapir,

desde o bacharelado, sempre se interessou pelas línguas ameríndias e

chegou a descrever várias delas, principalmente línguas indígenas nos

Estados Unidos da América e no Canadá. A maior parte de seus

trabalhos foi dedicada a este tema e, em decorrência do contato com

diversas línguas estrangeiras, oriundas de culturas que ele classificou

como exóticas, é que formulou diversas de suas ideias a respeito da

linguagem.

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Isadora Machado

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 33

Antes de publicar Language3 (1921), uma de suas obras mais

conhecidas, Sapir publicou uma série de artigos e livros que

descreviam e analisavam diversas línguas ameríndias. Entretanto,

diferenciando-se da Linguística feita na Europa, essa “descrição” tinha

um cunho antropológico, a tal ponto que Boas, que é tido com um dos

clássicos da antropologia, trabalhava junto ao linguista, pois descrever

uma cultura era, inevitavelmente, descrever sua língua.

Sapir, enquanto “nome de autor”, estava individualizado em uma

instituição acadêmica. Desde seus estudos de formação em

universidades tradicionais dos EUA, até sua atuação enquanto

pesquisador e professor na University of Chicago e na University of

Yale, seu nome passa a definir um certo domínio de pesquisa e a

descrever uma prática. Dessa maneira, em 1921 ele lança Language

com o objetivo específico de sistematizar o que é, de sua perspectiva,

a linguagem. Segundo Sapir (1921/2004, p.03), esta obra serviria

“para fornecer uma certa perspectiva sobre a linguagem, e não para

reunir fatos sobre ela”4 e também “para mostrar o que eu entendo ser a

linguagem, qual é sua variabilidade no tempo e no espaço e qual é sua

relação com outros interesses humanos fundamentais – o problema do

pensamento, a natureza dos processos históricos, raça, cultura, arte”5.

Identificamos em sintagmas como “uma certa perspectiva”, “o que eu

entendo ser a linguagem” e a definição do que seriam “interesses

humanos fundamentais” marcas da “assunção de autoria” (ORLANDI,

1988), já que aqui o sujeito se coloca marcadamente como

responsável e instaurador de um determinado discurso. Além disso,

outra marca muito comum na construção de autoria é recortar um

memorável como passado do que se diz. Neste prefácio, Sapir se filia

a Benedetto Croce e se diz em débito com Croce por este ter colocado

o problema da linguagem em relação à arte.

Language é uma obra que procura definir não apenas o que é a

linguagem, mas coloca seu autor como lugar de origem dessa

definição. Se considerarmos que um título é sempre reescrito pelo

conteúdo da obra,6 vemos na separação dos capítulos tudo aquilo que

seria a linguagem e o que a afetaria. O trabalho dessa autoria está

representado, por exemplo, na divisão dos capítulos, que apresenta,

como foi anunciado no prefácio, tanto os elementos que compõem a

língua (os sons, as formas, os processos gramaticais etc.), quanto os

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

34 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

fatores que a afetam (história, leis fonéticas, raça, cultura, literatura

etc.).

O lugar-autor de Sapir era de tal modo constituído que, quando de

sua morte, diversos intelectuais da época publicaram artigos sobre ele.

Linguista dinamarquês de grande projeção, Louis Hjelmslev (1899-

1965) afirmou na ocasião que “quando ele [Hjelmslev] leu o trabalho

[de Sapir], foi para ele como uma revelação e uma confirmação de

suas vagas intuições a respeito de uma linguística geral comparativa

que poderia ir além do tipo de abordagem feita até então”78. Dessa

maneira, Sapir, enquanto nome-de-autor, entra para a história de uma

Linguística não-saussureana feita na América.

4. Benjamin Whorf

A trajetória de Whorf é bastante diferente da de Sapir. Benjamin

Lee Whorf (1897-1941) nasceu em Massachusetts, nos Estados

Unidos da América. Iniciou o curso de química no MIT e trabalhou

como inspetor de incêndio em uma firma de seguros. Segundo John

Bissell Carroll (1916-2003), organizador da obra de Whorf, Whorf

mantinha seu emprego como inspetor químico e, paralelamente,

durante suas viagens de trabalho, mantinha seus estudos sobre outras

áreas, como trabalhos sobre a escrita Maia. Desse modo, os

conhecimentos que adquiriu em linguística geral e em metodologia

linguística foram em grande parte por conta própria. Seu

conhecimento, segundo Carroll (1956), provavelmente nunca tivesse

amadurecido se ele não tivesse encontrado Sapir, que, na época, era

uma das maiores autoridades não só em línguas ameríndias, como

também em linguística geral.

O primeiro encontro de Whorf com Sapir se deu em setembro de

1928, no Congresso Internacional de Americanistas, e depois em 1929

e 1930, no mesmo Congresso. O contato mais próximo com Sapir,

entretanto, só se deu de modo definitivo em 1931, quando Whorf foi

para Yale assumir seu posto de professor de Antropologia para ensinar

linguística.

Whorf ficou conhecido pelo estudo da língua Hopi e, em 1932,

conheceu um falante nativo dessa língua que morava em Nova Iorque.

Com instruções de Sapir, Whorf passa a desenvolver uma análise

linguística do Hopi para, em 1938, passar um breve período no

Arizona, em uma reserva Hopi. Whorf acreditava que seria impossível

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Isadora Machado

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 35

popularizar a Linguística se ela não tivesse um apelo popular: “essa

mensagem, acreditava Whorf, era que a Linguística tem muito a dizer

sobre como e o que pensamos” (CARROLL, 1956, p.18) 9. Desse

modo, é um dado importante o desejo de Whorf de popularizar a

Linguística por meio de um assunto específico: o pensamento, já que

encontramos em seus artigos este forte apelo. O estudo do

“pensamento” entra em cena, portanto, não por razões teóricas e

analíticas, mas fundamentalmente para cumprir a necessidade, sentida

por Whorf, de popularizar a Linguística. Isso demonstra uma

construção particular do conhecimento, qual seja: sobrepor ao material

de trabalho e de análise um interesse e um assunto bastante definidos

– nesse caso, o interesse de popularizar a Linguística, falando do

pensamento (o que quer que isso signifique).

Quando tomamos a única obra publicada com autoria injungida a

Whorf, o primeiro a se notar é que se trata de uma organização,

editada por John B. Carroll. Aqui começam as diferenças do processo

de autoria entre Sapir e Whorf, pois quem dá “unidade” aos textos de

Whorf é um editor, que não somente escolheu os textos que

comporiam a obra, como deu título a artigos inacabados, completou

trechos não finalizados e deu nome ao conjunto: Language, Thought

and Reality10. O editor indica em todos os textos a natureza das

alterações e alguma explicação, no caso de textos que não foram

publicados por Whorf. Se tomamos o primeiro texto da obra, “On the

connections of ideas”11, temos um bom exemplo de como Carroll

produz a unidade que é imputada ao autor-Whorf: o texto nunca foi

publicado por Whorf, foi encontrado “parcialmente datilografado,

parcialmente escrito à mão” como um “projeto de carta” (CARROLL,

1956, p.35) que não se sabe ao certo se foi terminada e enviada, e nela

o editor afirma que fez “algumas emendas editoriais e alterações

quando necessário”. Vale lembrar que Carroll chama esse texto de

“ensaio não publicado”. Dessa forma, um fragmento de carta, em

parte manuscrita em parte datilografada, é alterado, emendado e

transformado em ensaio que possui um título.

Esse gesto de editoria se repete em outros artigos. O editor afirma

que alguns “textos” foram encontrados no meio de outros, alguns

muito rabiscados, e que ainda podem ser parte de outros textos. No

caso dessa obra de Whorf, aquele que cumpre a função-autor, no

sentido de selecionar, dar unidade, etc., não “coincide” com o nome

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

36 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

ao qual é imputada a responsabilidade jurídica do texto, mas com o

editor.

Chase (1956), no Prefácio da obra, afirma que, tal como Einstein

encontrou a relação entre elementos aparentemente divergentes –

tempo e espaço – e deu nova dimensão ao conhecimento humano,

assim também Whorf estabeleceu a relação entre a linguagem humana

e o pensamento humano. Afirma ainda que a razão que encontra para

alguém como Whorf, profundamente estudioso da linguagem, ter

permanecido na “escuridão” durante tanto tempo é o fato de não ter

formação na área específica de Linguística, mas na de Engenharia

Química12. Com essa afirmação, provoca o efeito, que será muito

comum em outros comentadores, de evocar Sapir, que teve essa

formação específica, de modo silenciado13. As análises que

apresentamos a seguir indicam justamente essa tensão, entre o nome

de Whorf e o nome de Sapir.

5. A invenção da Hipótese Sapir-Whorf

É no mínimo intrigante o fato de dois autores tão diferentes, que

nem sequer tiveram uma relação profissional estreita, nomearem uma

hipótese que nunca definiram. Carroll (1956, p.27) faz uma curiosa

construção: “O princípio whorfiano de relatividade linguística, ou,

mais rigorosamente, a hipótese Sapir-Whorf (uma vez que Sapir

certamente contribuiu para o desenvolvimento da ideia) atraiu,

evidentemente, bastante atenção”14. A Hipótese Sapir-Whorf é a

deriva de “Princípio da Relatividade Linguística de Whorf”, o que

significa o trabalho de Sapir como “colaborador” no desenvolvimento

da ideia e significa o trabalho de Whorf como principal, estabelecendo

assim uma hierarquia entre as duas obras.

O nome “Hipótese Sapir-Whorf” foi utilizado pela primeira vez

por Harry Hoijer, em 1954, numa conferência intitulada “Sapir-Whorf

Hyphotesis”. Entretanto, segundo Koerner (1995, p.206), as “bases”

do que seria a hipótese remontariam a Wilhelm von Humboldt (1767-

1835) e sua haste de filiações na América15. A questão é controversa,

mas o autor aponta que a linha de filiações se daria da seguinte forma:

“Humboldt > Steinthal > Boas > Sapir > Voegelin > Hymes ->

Darnell”. Koerner afirma ainda que isso não é ponto pacífico nas

discussões, e alguns autores remontam a hipótese a Aristóteles. Outros

a Leibniz.

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Isadora Machado

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 37

A construção de Carroll (1956) é sintoma de um movimento que se

desenvolverá nas décadas seguintes: a atribuição da Hipótese a Whorf,

apesar de, nos manuais brasileiros de linguística, o nome de Whorf

não circular fora do sintagma “hipótese Sapir-Whorf”, ao passo que o

nome de Sapir figura, sozinho, em vários trabalhos brasileiros. Outra

característica nas reformulações da hipótese é, paralelamente a isso, a

compreensão da hipótese por um viés cognitivista e biologizante, que

é permitido muito mais por Whorf que por Sapir, por conta das

diferentes configurações de autoria. Whorf, como dissemos, queria

popularizar a Linguística e uma das formas de fazê-lo seria discutir

um assunto de amplo interesse, como o pensamento.

Alguns autores já mostraram as diferenças existentes entre o que

poderia ser compreendido como “relativismo linguístico” em Sapir e

em Whorf. Sapir estaria ligado à Weltanschaungtheorie16, herdeira de

Leibniz, Herder, Vico, Humboldt, etc.; enquanto Whorf falaria de

relatividade a partir da física e da teoria da relatividade, de Einstein. A

apropriação de uma determinada linguística cognitivista de viés

biológico da “obra” de Whorf, determinando assim a significação dos

textos, fica explicada pelas diferentes, não apenas autorias, mas

também filiações que Sapir e Whorf produzem.

Demonstraremos a seguir aspectos significativos da circulação das

formulações em torno do que os manuais de Linguística chamam de

Hipótese Sapir-Whorf. Para tanto, tomamos seis artigos de estudiosos

emblemáticos do tema, e que foram escritos em diferentes décadas.17

Analisamos, nos recortes que ora trazemos, o processo de deriva dos

sentidos18 que é produzido quando se trata de definir uma hipótese.

[A] “Linguistic Relativity: the views of Benjamin Lee Whorf”19, Max

Black, 1959.

[a1] O objetivo de interpretar o que Whorf chamou de “relatividade

linguística”, de modo minimamente preciso para ser testado e

criticado, encontra enormes obstáculos em seus escritos: formulações

variáveis dos pontos principais são frequentemente inconsistentes, há

muito exagero e um misticismo vaporoso obnubila perspectivas já

bastante indefinidas. O pensamento dominante está felizmente

expresso em uma citação que o próprio Whorf faz de Sapir na epígrafe

de seu melhor ensaio: “os seres humanos não vivem sozinhos no

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

38 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

mundo objetivo, nem no mundo da atividade social tal como é

ordinariamente compreendido, mas estão isto sim à mercê de uma

língua particular que se tornou o meio de expressão da sociedade

humana. É uma grande ilusão imaginar que alguém se ajusta

substancialmente à realidade sem usar a língua ou que a língua é uma

maneira fortuita de resolver problemas específicos da comunicação e

da reflexão. O fato é que o “mundo real” é em grande medida

construído inconscientemente sobre os hábitos linguísticos do grupo.”

Isso tem sido chamado de “Hipótese Sapir-Whorf”.20

Nesse trecho, de início é imputada a Whorf a criação do conceito

de “relatividade linguística”, mas este é significado como

inconsistente, exagerado e repleto de misticismos. A “ideia

dominante”, segundo o Black, está expressa em uma citação de Sapir.

Há a presença de um advérbio significando a possibilidade de se

compreender as ideias de Whorf – felizmente – porque, estabelece-se

uma relação de causa, ele próprio citou Sapir, que resume a ideia.

Toda a citação de Sapir é, em seguida, retomada pelo pronome “isso”

e então “Sapir-Whorf Hypothesis” passa a ser significada por uma

definição. Hipótese Sapir-Whorf é/diz que “seres humanos não vivem

no mundo objetivo sozinhos [...]”. Dessa maneira, Whorf cunhou o

conceito de relatividade linguística21, e a definição desse conceito é

um trecho de um texto de Sapir.

[a2] É bastante óbvio que uma língua impõe a seus usuários um

vocabulário e uma gramática herdados; mas é claro que Whorf quer

dizer algo além disso. A “experiência” precisa ser um subsistema

composto por “padrões” que são significativos tanto para o falante

nativo quanto para o linguista que o investiga.22

Já aqui, a ideia de que a “linguagem impõe uma gramática e um

vocabulário herdados a seus usuários”, que poderia ser uma das

formulações da HSW, “é muito óbvio para ser mencionado”. O autor

afirma então que Whorf, e não Sapir-Whorf, dizia mais que

simplesmente isso. Percebe-se então o jogo entre o recorte anterior e

este, já que as ideias de Whorf podem ser resumidas com uma citação

de Sapir, e então a “relatividade linguística” de Whorf é a citação de

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Isadora Machado

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Sapir e tudo isso é a HSW, mas, em seguida, é apenas Whorf que diz

mais que “a linguagem...”.

De imediato fica claro que há um deslize constante entre a) quem

“fabricou” a Hipótese e b) o que a hipótese afirma.

[B] “Penguins Don't Care, but Women Do: A Social Identity Analysis

of a Whorfian Problem”23, Fatemeh Khosroshahi, 1989.

[b1] Em várias ocasiões, a hipótese Sapir-Whorf é tomada como

verdadeira independente de sua natureza empírica. As tentativas

feministas para eliminar o “ele” genérico devem supor que de alguma

maneira a linguagem afeta o pensamento, uma vez que não há uma

ofensa intrínseca no uso da própria palavra. As pesquisas, até hoje, de

alguma maneira tem mostrado que o “ele” genérico tende a sugerir um

referente masculino na cabeça do leitor. Este estudo pergunta se a

interpretação das pessoas a respeito de uma sentença genérica varia

dependendo se elas seguem ou não propostas feministas e corrigiram a

própria linguagem.24

Neste estudo de caso, a hipótese é definida implicitamente. A

justaposição das frases mostra que “The Sapir-Whorf hypothesis” é

compreendida como o fato de “a linguagem afetar o pensamento”.

[b2] A reivindicação de que as palavras genéricas masculinas auxiliam

a perpetuar a visão de mundo androcêntrica supõe, de modo mais ou

menos explícito, a validade da hipótese Sapir-Whorf, segundo a qual a

estrutura da língua que falamos afeta a maneira como pensamos (cf.

Whorf, 1956). Para muitos de nós, é uma experiência atrativa que

línguas diferentes nos fazem pensar e sentir diferentemente.25

Nesse outro trecho, a Hipótese é significada pela mesma relação,

mas de modo mais específico, já que não é meramente a “linguagem”,

mas a “estrutura da linguagem” que afeta, não o pensamento de um

momento geral, mas “o modo como pensamos”. Já na frase que segue,

é acrescido ao par “línguas diferentes”–“pensar diferente” outro

verbo: sentir. Esse trecho dá a ver ainda que, se no artigo anterior a

definição do que Whorf criou, a “relatividade linguística”, era uma

citação de Sapir, nesse trecho há uma definição do que seria a

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

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“hipótese Sapir-Whorf” no aposto, e em seguida a remissão é ao texto

de Whorf em que ele cita Sapir.

[b3] Dessa maneira, se consideramos a forma fraca26 da hipótese

Sapir-Whorf, que postula que diferenças na língua são correlatas com

diferenças no pensamento, podemos reapresentar nossa conclusão

dessa maneira: todos os grupos conformam a tese de Whorf, exceto os

homens que corrigiram suas linguagens.27

Nesse trecho, a hipótese aparece adjetivada por “forma fraca”, de

maneira que existiria uma “versão mais fraca” e, por conseguinte,

apesar de isso não estar dito aqui, uma “versão mais forte” da

hipótese. A versão mais fraca utiliza o adjetivo “correlatas”, ou seja,

há uma “ligação” entre linguagem e pensamento, e não uma

“determinação” ou uma “relação direta” entre linguagem e

pensamento.

[b4] Apesar de estarmos longe da especulação de Whorf (1956), de

que a estrutura da língua afeta a ideologia de natureza de alguém, esse

achado [do artigo] é um caso em que a língua tem consequências

cognitivas.28

Nesse recorte há outro deslize notável: HSW é dita como “Whorf’s

speculation”, e o “conteúdo” da Hipótese passa a ser a relação entre a

linguagem e a ideologia (no sentido de conjunto de concepções), que,

por sua vez, é afetada pelo sentido de “consequências cognitivas”.

[b5] Assim como Whorf especulou dizendo que a linguagem afeta o

pensamento, alguns pesquisadores têm defendido que uma mudança

na ação produz mudança cognitiva, tal como no conselho de Pascal:

“Reze, e a fé vem em seguida” (...). Na verdade, há um pouco de

fundamentação empírica nessa ideia (...), e trata-se de uma ideia com

implicações sociais de grande importância. De fato, a noção de que

uma mudança no que as pessoas fazem pode conduzir a uma mudança

no que elas pensam tem sido parte da lógica usada para importantes

programas de mudança social, tal como os programas de

dessegregação racial nos Estados Unidos (...). No entanto, como

mencionamos anteriormente, o modelo desse estudo não permite

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inferir que a mudança da linguagem das mulheres resulta na mudança

do pensamento delas. Desse modo, não podemos dizer muito sobre a

“formulação dura” da hipótese de Whorf ou sobre o efeito da ação no

pensamento.

Nesse trecho que encaminha a conclusão do artigo, novamente as

ideias de Whorf são significadas como especulação e novamente

aparece a divisão da hipótese (de Whorf) como forte ou fraca.

[C] “Does Language Embody a Philosophical Point of View?”29,

Charles Landesman, 1961.

[c1] Não foi muito depois de os antropologistas descobrirem que as

culturas primitivas se comportam de maneira diferente de civilizações

mais avançadas que o relativismo moral se tornou um ponto de vista

popular na Ética. Novamente, foi a combinação do trabalho de

antropologistas com estudantes da linguagem que deu origem a outro

tipo de doutrina relativista: a relatividade linguística. Essa doutrina,

algumas vezes chamada de hipótese Sapir-Whorf, desafia a visão do

senso comum, que alega que falando, escrevendo ou pensando com

palavras estamos simplesmente fazendo afirmações sobre um mundo

previamente inteligível. Ao invés disso, argumenta que “o ‘mundo

real’ é em grande medida construído com base nos hábitos linguísticos

de um grupo” e que portanto cada concepção da realidade é relativa à

língua nativa de cada um. “Somos dessa maneira iniciados”, diz

Whorf, “em um novo princípio de relatividade, segundo o qual os

observadores não são induzidos pelas mesmas evidências físicas para

a mesma visão do universo, mesmo que o plano de fundo linguístico

seja similar, ou que possa ser nivelado”.30

A “relatividade linguística” é aqui significada pelo paradigma

estabelecido com “relativismo moral”, que é definido como um

postulado da ética elaborado a partir da “descoberta” das diferenças

entre os comportamentos de culturas diferentes (etnocentricamente,

mais ou menos civilizadas). Em seguida, Sapir e Whorf aparecem

como implícito de “antropologistas em combinação com estudantes da

linguagem”. A “relatividade linguística” é colocada no conjunto de

“outro tipo de doutrina relativista”, e dessa maneira doutrina passa a

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

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agir nos sentidos do que seria a hipótese. O aposto que é feito em

“Esta doutrina [do relativismo], em alguns momentos chamada de

Hipótese Sapir-Whorf” produz uma espécie de hiponímia, como se a

doutrina do relativismo fosse algo mais genérico que em alguns

momentos é especificada por HSW. O nome dos autores aqui funciona

então como uma espécie de etiqueta, como se o sintagma Sapir-Whorf

fosse um nome só, e não nome de autores. Outro movimento que

constrói os sentidos da hipótese é a oposição estabelecida entre o que

seria o senso comum sobre a linguagem – que diria ser esta que

produz afirmações sobre um mundo estabelecido anteriormente, e a

doutrina da relatividade, que diria ser o mundo construído depois da

linguagem. Essa oposição, na estrutura X ao invés de Y, retoma uma

longa discussão estabelecida na Filosofia sobre “quem veio primeiro”,

mas apresenta este debate como se ele se desse no “senso comum”.

[c2] A hipótese Sapir-Whorf explora um conceito popularizado pela

psicologia freudiana, o dos processos mentais inconscientes. Assim

como Freud alegou que vários dos produtos atribuídos ao raciocínio

consciente são na verdade criados por eventos fora do controle

consciente, Whorf também postula um inconsciente linguístico

constituído por um arsenal de hábitos linguísticos31. 32

A hipótese aqui é apresentada por um verbo muito marcado no

inglês, explorar, que significa explorar no sentido de tirar partido, e

ela tiraria partido de um conceito popularizado pela psicologia

freudiana. A estrutura linguística que marca a construção é “assim

como...também”. Esse movimento coloca a hipótese no conjunto de

conceitos popularizados, e é interessante notar que, se na primeira

frase aparece a hipótese Sapir-Whorf, na segunda só aparece o nome

de Whorf (em paralelo ao de Freud).

[c3] Duas perguntas. A primeira é: A linguagem afeta nossa

percepção? A segunda: as categorias gramaticais isoladas pelos

linguistas afetam as categorias ou conceitos por meio dos quais

entendemos o mundo? E assim posso especificar o sentido “fraco” no

qual a hipótese Sapir-Whorf é correta.

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Isadora Machado

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 43

Ao estabelecer as perguntas a que responderá, o autor da crítica

coloca como problema para a Hipótese o questionamento da relação

entre linguagem e percepção (e não realidade, e não pensamento, e

não cultura), e da relação entre as categorias gramaticais isoladas

pelos linguistas (e não apenas as categorias gramaticais) e a forma

como compreendemos o mundo (e não a realidade etc.). Novamente

aqui aparece a divisão entre o que seria a HSW em sentido forte e

fraco.

[c4] O idealismo linguístico que, representado pelas visões de Whorf,

Urban e Cassirer, se apresenta como uma teoria não apenas da gênese

dos conceitos de objetos da percepção, mas também da existência e

diferenciação dos próprios objetos, é contrariado por alguns resultados

da Gestalt, especialmente pela hipótese gestáltica de que a

organização da percepção é pré-linguística.33

O autor opõe o idealismo linguístico, novo deslize para HSW, e a

escola gestaltiana. O nome de Sapir é novamente apagado e Whorf é

colocado ao lado de Urban e Cassirer. A HSW, lida como idealismo

linguístico, é definida como não apenas X (gênese dos conceitos de

objetivos perceptíveis), mas também Y (existência e diferenciação dos

objetos eles-mesmos).

[c5] Enquanto Cassirer almejava enfatizar a influência do vocabulário

na percepção, Whorf, apesar de não negligenciar esse aspecto da

questão, formulou sua concepção sobre a influência da linguagem

sobre a percepção e o pensamento primordialmente com referência às

categorias gramaticais.34

O nome de Sapir novamente não aparece, e, em contrapartida a

Whorf, aparece mais uma vez Cassirer. A hipótese desliza para

“concepção”, e trata da influência da linguagem na percepção e

pensamento primeiramente pela referência a categorias gramaticais.

Essa especificação da hipótese relativa às categorias gramaticais é

uma ideia nietzscheana que Sapir retoma, mas que não está

desenvolvida em Whorf. Essa conclusão, no caso do artigo, está

relacionada a Whorf.

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

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[c6] Existem ambiguidades na concepção de Whorf sobre a relação

entre a linguagem e a experiência.35

A regularidade quanto ao apagamento do nome de Sapir mais uma

vez se mantém, além de “concepção” aparecer novamente

significando a Hipótese, que agora desliza mais uma vez para a

relação entre linguagem e experiência (e não pensamento, e não

cultura, e não realidade).

[D] “The Whorf Hypothesis as a Critique of Western Science and

Technology”36, Peter C. Rollins, 1972

[d1] O nome de Benjamin Lee Whorf está associado a uma teoria da

relatividade linguística que é conhecida por vários títulos – “a hipótese

Sapir-Whorf”, “a hipótese Whorf”, “a hipótese Whorf-Lee”. A

relatividade cultural simples afirma que todo ser humano nasce em um

meio cultural que determina quais elementos do mundo serão

importantes para o indivíduo por meio de seus métodos de educação

infantil e de reforço cultural. O acréscimo particular de Whorf a esse

princípio da relatividade cultural foi sua afirmação da primazia da

língua nesse processo de seleção.37

O nome de Whorf escrito por extenso procura remeter ao autor. A

este autor, é associada uma teoria (e não doutrina, e não concepção),

que é a teoria da relatividade linguística. Esta teoria é que seria

conhecida por vários nomes: Hipótese Sapir-Whorf, Hipótese Whorf,

Hipótese Whorf-Lee. Esses outros nomes são grafados como títulos

para a teoria da relatividade linguística, fazendo-os coincidir. A

relação é estabelecida entre o relativismo cultural e a relatividade

linguística, mas o primeiro é dito como o relativismo cultural simples.

Dessa maneira, a relatividade linguística é dita como um tipo de

relativismo cultural. Whorf adiciona a primazia da linguagem nesse

processo de seleção. A relação aqui passa a ser entre a linguagem e

alguns elementos do mundo, e não simplesmente com o pensamento

ou a realidade.

[E] “Is Language a Prisonhouse?”38, Bradd Shore, 1987.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 45

[e1] O entendimento da linguagem como uma prisão surge em

Antropologia na assim chamada Hipótese Sapir-Whorf. Diferenças

culturais, especialmente aquelas de visão de mundo, são atribuídas a

diferenças linguísticas.39

Nesse trecho, o nome da Hipótese passa a ser responsabilidade de

outros: assim chamada Hipótese Sapir-Whorf, e é definida como a

compreensão da linguagem como uma prisão. A relação que ela

estabeleceria é entre as diferenças culturais e as diferenças

linguísticas.

[F] “Whorf and His Critics: Linguistic and Nonlinguistic Influences

on Color Memory”40, John Lucy e Richard A. Shweder, 1979.

[f1] Resta-nos reavaliar a relação entre a investigação sobre as cores e

a concepção inicial de Whorf sobre a relação entre linguagem,

pensamento e estímulos externos.

Nos textos de Lucy, um dos nomes mais citados quando se trata de

falar sobre a relatividade linguística, o nome de Sapir praticamente

não aparece. A hipótese é dita como a original concepção de Whorf

sobre a relação entre linguagem, pensamento e estímulos externos.

Além do apagamento de Sapir, a relação com a cultura não aparece, e

o que poderia ser considerado uma exterioridade aparece como

estímulos externos.

6. Conclusão

Nos artigos que brevemente analisamos, encontramos alguns

funcionamentos regulares: o apagamento do nome de Edward Sapir; o

deslize entre concepção, ideia, doutrina e teoria; o deslize entre a

relação que a Hipótese estabeleceria (linguagem e pensamento;

linguagem e realidade; linguagem e cultura; linguagem e estímulos

etc.). São nessas tensões entre os autores da hipótese, o nome para

designá-la e seu “conteúdo” que a “Hipótese Sapir-Whorf” se

constitui na História das Ideias Linguísticas. As diferentes retomadas

da Hipótese, seja para se dizer a favor ou contra, explicitam a

retomada privilegiada de Whorf em detrimento de Sapir, ligando o

primeiro à tradição do relativismo linguístico ao mesmo tempo em que

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

46 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

atribui a ele sua origem. O estudo das condições de produção da

Hipótese, que remonta ao processo de confecção de autoria de Sapir e

de Whorf, nos mostra que a confecção do Whorf-autor é póstuma e

empreendida por um trabalho de edição. Com isso queremos dizer que

essa figura da função-autor, tal como a define Eni Orlandi, ou seja, o

trabalho de dar limites, definir posições e agir no imaginário da

completude do texto, no caso do que é atribuído a Whorf, só existiu

por conta de um trabalho editorial.

No caso da chamada hipótese Sapir-Whorf, é digno de nota a

própria circulação do enunciado já estabilizado dentro das Ciências da

Linguagem, ao menos no Brasil: “hipótese Sapir-Whorf”, conferindo à

hipótese dureza de sentido e fazendo com que o enunciado circule

como se o conceito ao qual ela refere fosse homogêneo. O efeito de

evidência na circulação do termo provoca uma espécie de fechamento

interpretativo. Isso quer dizer que, como o termo ‘hipótese Sapir-

Whorf’ circula como se fosse um conceito evidente, qualquer tentativa

de atribuir a ele outra direção de sentido é dificultada pela tradição de

seu uso. Esta tradição se constitui, em grande medida, a partir do

trabalho de diversos comentadores e “continuadores” de Edward Sapir

e de Benjamin Lee Whorf.

É essencial nesse ponto uma ressalva: apesar de demonstrarmos

que a HSW foi reinventada posteriormente aos autores que dão nome

a ela, isso não quer dizer que ela não produziu seus efeitos na História

das Ideias Linguísticas. Não se trata, de forma alguma, de instaurar

um debate como o da autoria do Curso de Linguística Geral, em que

se argumenta pelo Saussure dos Escritos e o Saussure do Curso. Ou

como a polêmica que diz respeito às traduções para o francês de

Bakhtin, que por vezes significam que, se a tradução circulou

equivocada durante tanto tempo, o passado a partir da revelação da

tradução correta é completamente descartável. Nesse sentido, não se

trata de advogar aqui em favor de interpretações como essas. Não se

trata de dizer que, se a HSW foi inventada pela posteridade, então que

isso seria o mesmo que dizer que ela deve ser abandonada por quem a

estuda. Muito menos de colocar em xeque todo o conhecimento que se

produziu sobre ela e por meio dela. O objetivo desse trabalho é, na

contramão disso, demonstrar que o conhecimento não é linear, nem

objetivo, nem unívoco. E que isso não é, definitivamente, uma objeção

a ele.

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Isadora Machado

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 47

Há algum tempo Michel Foucault (1971) identificou no comentário

um procedimento interno de exclusão dos discursos, pois o comentário

provocaria desnivelamentos em discursos que são familiares entre si e

agiria limitando o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade da

repetição e do mesmo. Assim, por mais que a prática do comentário

incite a produção de discursos, não se pode deixar de reconhecer nela

um mecanismo de apagamento e de exclusão de outras possibilidades

de dizer (condição mesma do dizer, afirma Michel Pêcheux).

Toda a equivocidade de sentidos em torno da HSW, que nosso

trabalho demonstra, só adquire alguma validade se for utilizada para

potencializar a reflexão sobre nossas práticas acadêmicas. Quando nos

colocamos em locais de disputa pela fundação e fundador de uma

disciplina, estamos de fato em um terreno de conflito, de confrontos –

lugar da contradição na ciência, demonstrada por meio da análise

linguística da história. Reivindicar o lugar de “fundadores” de um

domínio do conhecimento é sempre incorrer no risco de se perder

nesses confrontos políticos, que são em certa medida inevitáveis.

Acreditamos, entretanto, que enquanto linguistas devemos nos

perguntar constantemente para quem nosso trabalho trabalha. Com

isso estamos dizendo que estar na linguagem é estar nas relações de

disputa, e nesse sentido, para utilizar uma fórmula de Nietzsche,

vontade quer se afirmar sobre vontade. Fazer trabalhar as

contradições disso é, ademais frutífero, ético.

Refletir sobre a HSW inevitavelmente nos coloca, a nós mesmos,

nesse terreno acidentado da nomeação – por que nosso trabalho

privilegia o nome “hipótese Sapir-whorf” e não outras denominações?

Em grande medida, essa entrada de análise procura dialogar com a

tradição dos estudos linguísticos no Brasil. Ou seja, é esse nome que

encontramos nos manuais brasileiros de Linguística, e que também

circula academicamente em nosso imaginário científico. Novamente,

vale pouco identificar em nossa análise que os sentidos são equívocos

– substantivos: hipótese, concepção, doutrina, ideia; nomes adjetivos:

Sapir, Sapir-Whorf, Whorf, Whorf-Lee; designação: relatividade,

relativismo, afetação, influência, determinação. Vale pouco porque

apenas identifica um processo. Vale mais quando percebemos que não

se trata de um processo singular. Facilmente pode ser generalizado,

pois é disso que a linguagem é feita – equivocidade, e é no simbólico

que estamos imersos por conta da linguagem.

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

48 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Isso nos leva a defender uma prática científica plural, que não seja

feita em busca da Verdade, mas que, na contramão disso, esteja ciente

de que a atividade científica produz verdades, no plural. Defender a

pluralidade não é defender o relativismo: “tudo é válido”. Trata-se de

contemplar as possibilidades do perspectivismo, para usar um conceito

de Nietzsche: o que há são versões, afirma Eni Orlandi. Versões,

perspectivas, diferentes pontos de vista que não se subsumem e nem

se apartam totalmente. Uma prática científica perspectivista é um

convite à prática da criação dos lugares em comum, onde possamos

circular sem fascismo e sem proselitismo: é preciso lutar por uma po-

ética do comum.

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Palavras-chave: Ideias linguísticas (História); Sapir, Edward, 1884-

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Keywords: Linguistics ideas (History); Sapir, Edward, 1884-1939;

Whorf, Benjamin Lee, 1897-1941.

Notas

1 Trata-se de uma versão modificada de um subcapítulo de minha tese de doutorado,

intitulada Nietzsche, o destino singular da linguagem, defendida em fevereiro de

2015. 2 Licenciada em Letras-Português (Ufes), mestre e doutora em Linguística (Unicamp).

Atua principalmente nas áreas de História das Ideias Linguísticas, Semântica da

Enunciação e Filosofia da Linguagem. E-mail: [email protected] 3 A tradução brasileira data de 1954 e foi realizada por Mattoso Câmara Jr. Segue:

SAPIR, Edward; CÂMARA JUNIOR, J. Mattoso (Coaut. de). A

linguagem: introdução ao estudo da fala. Rio de Janeiro, RJ: INL, 1954. É

interessante ainda investigar de que maneira essa arenga teórica a respeito da Hipótese

Sapir-Whorf chega ao Brasil.

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

50 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

4 “to give a certain perspective on the subject of language rather to assemble facts

about it” (SAPIR, 1921/2004, p.iii, grifo nosso) 5 “o show what I conceive language to be, what is its variability in place and time, and

what are its relations to other fundamental human interests – the problem of thought,

the nature of the historical process, race, culture, art (p.iii, grifo nosso). 6 Cf. Guimarães, 2002, 2007, por exemplo. 7 “when he first read the work, it was to him a revelation and a confirmation of his

own vague anticipations of establishing a comparative general linguistics that would

supersede the previous kind of approach”, citado em Mandelbaum, 1985, p.xi. 8 Durante o texto, apresentamos nossas traduções dos textos em inglês. O excerto

original figurará nas notas de fim. 9 Nisso talvez antecipando o gerativismo. Curiosamente, Chomsky retoma Wilhelm

Von Humboldt em Cartesian Linguistics... 10 Não temos notícia de uma tradução para o português. A edição americana é de

1956: WHORF, Benjamin Lee; CARROLL, John Bissell (Coaut. de). Language,

thought, and reality: selected writings of Benjamin Lee Whorf. Cambridge, MA:

MIT, 1956. 11 Sem tradução oficial para o português. Tradução: “Sobre as conexões de ideias”.

Todos os demais casos sem tradução oficial serão apenas apresentados entre aspas. 12 É no mínimo curioso então que, mesmo sem uma “formação específica”, como diz

Chase, ainda assim foi Whorf nomeado professor de linguística no curso de

Antropologia. 13 Se Whorf não foi lido porque não tinha formação em linguística, quem teve

formação e foi lido? Falamos de silêncio então como uma materialidade, no sentido

que Eni Orlandi conceitua silêncio, na obra fundadora As formas do silêncio (1992). 14 Whorf’s principle of linguistic relativity, or, more strictly, the Sapir-Whorf

hypothesis (since Sapir most certainly shared in the development of the idea) has, it

goes without saying, attracted a great deal of attention. 15 Curiosamente, Noam Chomsky retoma Humboldt como precursor de sua linguística

gerativa e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do que se tornou a retomada de

Whorf no século XX segue caminhos semelhantes ao gerativismo, que é o de colocar

a Linguística como uma área da biologia. O trabalho de Sapir não tem esse destino,

apesar de o nome de Whorf e de Sapir terem se consolidado nesse par, Sapir-Whorf. 16 Sem tradução exata para o português, trata-se de um conceito fundamental para a

filosofia e epistemologia alemãs, e diz de uma percepção do mundo. Refere-se ao

quadro de ideias e crenças que formam uma descrição global através do qual um

indivíduo, grupo ou cultura regula e interpreta o mundo e interage com ele. 17 Os artigos citados não foram traduzidos para o português. Apresento, no corpo do

texto, minhas traduções, seguidas do original em inglês, nas notas. 18 Cf. Orlandi, 2005. 19 “Relatividade linguística: as visões de Benjamin Lee Whorf”. 20 The aim of rendering what Whorf called "linguistic relativity" sufficiently precise to

be tested and criticized encounters formidable obstacles in his writings: variant

formulations of the main points are often inconsistent, there is much exaggeration,

and a vaporous mysticism blurs perspectives already sufficiently elusive. The

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Isadora Machado

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 51

dominating thought is happily expressed in the quotation from Sapir that Whorf

himself used as an epigraph for his best essay: “Human beings do not live in the

objective world alone, nor alone in the world of social activity as ordinarily

understood, but are very much at the mercy of the particular language which has

become the medium of expression for their society. It is quite an illusion to imagine

that one adjusts to reality essentially without the use of language and that language is

merely an incidental means of solving specific problems of communication and

reflection. The fact of the matter is that the "real world" is to a large extent

unconsciously built up on the language habits of the group.” This has been called the

"Sapir-Whorf hypothesis. 21 O termo “linguistic relativity” é o mais frequente nos textos de Whorf. Em

português, consolidou-se o termo “relativismo linguístico”. Estamos trabalhando em

outro artigo para discutir essa questão específica. 22 That a given language imposes an inherited vocabulary and grammar upon its users

is too obvious to require mention; but of course Whorf means more than this. The

"background" has to be a subsystem composed of "patterns" that are meaningful to the

native speaker no less than to the investigating linguist. 23 “Pinguins não se importam, mas mulheres sim: uma análise da identidade social de

um problema whorfiano” 24 “The Sapir-Whorf hypothesis is often implicitly assumed to be true independent of

its empirical status. Feminist attempts to eliminate the generic he must assume that

language somehow affects thought, since there is no intrinsic harm in the word itself.

Research to date has, in fact, shown that generic he tends to suggest a male referent in

the mind of the reader. This study asks whether people's interpretation of a generic

sentence varies depending on whether or not they have followed feminist proposals

and reformed their own language." 25 The claim that masculine generic words help to perpetuate an androcentric world

view assumes more or less explicitly the validity of the Sapir-Whorf hypothesis,

according to which the structure of the language we speak affects the way we think

(e.g., Whorf, I956). That different languages make us think and feel differently is a

compelling experience for many of us. 26 Muitos textos que tratam da HSW apresentam uma diferenciação entre o que seria a

interpretação forte e fraca da Hipótese. Com isso, os autores afirmam que algumas

interpretações levam a questão ao pé da letra (a língua determina o pensamento de

forma direta) – essa seria a forma forte da hipótese, e outras consideram a hipótese de

maneira moderada (a língua causa alguma influência no pensamento). 27 Thus, if we consider the weak form of the Sapir-Whorf hypothesis, which states

that differences in language are correlated with differences in thought (Brown, 1958),

we can restate our conclusion in this form: all groups conformed to Whorf's thesis

except the men who had reformed their language. 28 Although we are far from Whorf's (1956) speculation that the structure of language

affects one's "ideology of nature”, this finding is one case where language has

cognitive consequences. 29 “A linguagem encarna um ponto de vista filosófico?”.

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A REINVENÇÃO DA “HIPÓTESE SAPIR-WHORF”

52 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

30 It was not long after anthropologists discovered that people behave differently in

primitive cultures from the way they behave in more developed civilizations that

moral relativism became a popular standpoint in ethics. Again, it was the work of

anthropologists in combination with students of language which has given birth to

another kind of relativity doctrine: linguistic relativity. This doctrine, sometimes

known as the Sapir-Whorf hypothesis, challenges the common sense view that in

speaking or writing or thinking with words we are merely making statements about an

antecedently intelligible world, and, instead, contends that "the 'real world' is to a

large extent built upon the language habits of the group" and that therefore one's

conception of reality is relative to one's native language. "We are thus introduced,"

says Whorf, "to a new principle of relativity, which holds that all observers are not led

by the same physical evidence to the same picture of the universe, unless their

linguistic backgrounds are similar, or can in some way be calibrated." 31 A expressão “hábitos linguísticos” é uma expressão nietzscheana retomada por

Sapir em vários textos. Nesse caso, os autores a atribuem a Whorf. 32 The Sapir-Whorf hypothesis exploits a concept popularized by Freudian

psychology, that of unconscious mental processes. For, just as Freud argued that many

of the products attributed to conscious ratiocination are really created by events

outside conscious control, so Whorf posits a linguistic unconscious constituted by the

set of learned linguistic habits. 33 Linguistic idealism, which, as represented by the views of Whorf, Urban, and

Cassirer, presents itself as a theory not merely of the genesis of the concepts of

perceptual objects, but also of the existence and differentiation of the objects

themselves, is contradicted by some of the results of Gestalt psychology, especially by

the Gestalt hypothesis that perceptual organization is prelinguistic. 34 Whereas Cassirer was anxious to stress the influence of vocabulary upon

perception, Whorf, though not neglecting this aspect of the matter, formulated his

conception of the influence of language upon perception and thought primarily by

reference to grammatical categories. 35 There are ambiguities in Whorf s conception of the relation between language and

experience. 36 “A hipótese de Whorf como uma crítica à ciência e tecnologia ocidentais”. 37 Benjamin Lee Whorf’s name is associated with a theory of linguistic relativity

which is known by various titles -"the Sapir-Whorf Hypothesis", "the Whorf

Hypothesis", "the Whorf-Lee Hypothesis". Simple cultural relativity states that every

human being is born into a cultural milieu which determines what elements of the

world will be important to the individual by its methods of child rearing and cultural

reinforcement. Whorf's particular addition to this principle of cultural relativity was

his assertion of the primacy of language in this process of selection. 38 “É a linguagem uma prisão?”. 39 The understanding of language as a prisonhouse merges in anthropology in the so-

called Sapir-Whorf hypothesis. Cultural differences, especially those in worldview,

are attributed to language differences. 40 “Whorf e seus críticos: influências linguísticas e não-linguísticas na memória das

cores”.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 53

IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE

DEL SIGLO XIX CHILENO: LOS

COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE

CHILENISMOS DE ZOROBABEL RODRÍGUEZ

Darío Rojas

Universidad de Chile - Santiago, Chile

Tania Avilés

Universidad de Chile - Santiago, Chile

Resumen: El proceso de estandarización por el que pasó el español

de Chile durante el siglo XIX no solo se manifestó en propuestas

normativas originales de diversos autores, sino que también en

reparos o contrapropuestas de otros tantos estudiosos, generándose

así varios debates lingüístico-ideológicos. En el presente artículo

describimos y analizamos los reparos planteados Fidelis del Solar, en

1876, al Diccionario de chilenismos (1875) de Zorobabel Rodríguez,

junto con la respuesta a dichos reparos firmada por Fernando

Paulsen, colaborador de Rodríguez. Centramos nuestro análisis en la

identificación de las creencias normativas sobre las que los autores

construyen su argumentación, creencias que dan cuenta de sus

ideologías lingüísticas. Concluimos que, a pesar del carácter

polémico de las intervenciones, el sistema ideológico de los autores es

bastante similar y confluye en torno a la ideología de la lengua

estándar.

Resumo: O processo de padronização pelo qual passou o espanhol do

Chile durante o século XIX não apenas se manifestou em propostas

normativas originais de diversos autores, como também em críticas e

contrapropostas de outros tantos estudiosos, gerando assim vários

debates linguístico-ideológicos. No presente artigo, descrevemos e

analisamos as críticas propostas por Fidelis del Solar, em 1876, ao

Diccionario de chilenismos (1875) de Zorobabel Rodríguez, junto

com a resposta a estas críticas, firmada por Fernando Paulsen,

colaborador de Rodríguez. Concentramos nossa análise na

identificação de crenças normativas sobre as quais os autores

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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:

LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE

ZOROBABEL RODRÍGUEZ

54 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

constroem sua argumentação, crenças que revelam suas ideologias

linguísticas. Concluímos que, apesar do caráter polêmico das

intervenções, o sistema ideológico dos autores é bastante similar e

gira em torno da ideologia da língua padrão.

Abstract: The standardization process that Chilean Spanish

underwent during the 19th century is manifested not only through

normative proposals from Chilean scholars, but also through the

reparos or counter-proposals made by a number of other scholars,

which originated many language ideological debates. Our paper

describes and analyzes the reparos by Fidelis del Solar, which

commented extensively on Zorobabel Rodríguez’s Diccionario de

chilenismos (1875), and the response to Del Solar criticisms by

Fernando Paulsen. The main focus of our paper corresponds to the

normative beliefs of the authors, as these beliefs play a central role in

their argumentation and reveal their language ideology. We conclude

that the authors’ ideologies are much similar, despite their polemic

stance, and that standard language ideology is pervasive in their

beliefs.

1. Introducción

En el presente trabajo nos proponemos analizar el debate

lingüístico-ideológico desplegado en torno al Diccionario de

chilenismos de Zorobabel Rodríguez (1875). Este debate se manifiesta

en dos textos: Reparos al Diccionario de Chilenismos de don

Zorobabel Rodríguez, de Fidelis del Solar (1876), y Reparo de

reparos, o sea lijero exámen de los Reparos al Diccionario de

Chilenismos de don Zorobabel Rodríguez, por Fidélis Pastor del

Solar, de autoría de Fernando Paulsen (1876). Estos no son los únicos

comentaristas de Rodríguez, por cierto, pero los consideramos

ejemplares por entretejerse directamente en una red dialógica con la

obra que suscita el comentario.

Estudiamos dicho debate, en particular, por la importancia que

tuvo en su momento y la influencia que ejerció más tarde el

Diccionario de chilenismos en los estudios del lenguaje en Chile y en

la conformación de ciertas ideas acerca de la lengua, primero entre las

élites y más tarde entre el resto de la población. Por otra parte, es uno

de los casos menos conocidos de los varios debates lingüístico-

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Darío Rojas e Tania Avilés

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 55

ideológicos que se dieron en el Chile decimonónico. Es nuestra

intención destacar el carácter dialógico y argumentativo que adopta

esta negociación de normas, para lo cual pondremos el foco en las

creencias normativas que funcionan a manera de topoi (según la

denominación de ANSCOMBRE y DUCROT, 1994) o garantías

(según TOULMIN, [1958] 2007) en la argumentación desplegada en

los textos que estudiamos.

2. Diccionarios y debates lingüístico-ideológicos en el siglo XIX

chileno

En estudios recientes sobre la constitución de normas lingüísticas1,

se ha puesto de relieve que la selección de variantes para la

conformación y actualización de una variedad ejemplar puede ocurrir

no solo mediante la imposición unidireccional de conductas

idiomáticas por parte de agentes premunidos de autoridad (tales como

una academia o una sociedad científica), sino también mediante la

negociación, implícita o explícita, entre los propios miembros de una

comunidad idiomática. Andersen (1999) denomina a este proceso

negociación de normas lingüísticas, y Bilaniuk (2005) negociación de

corrección (cit. en PAULSEN, 2009, p.37-38). Este consiste en el

despliegue dialógico de estructuras argumentativas con el fin de

determinar cuáles son los usos lingüísticos considerados normativos y

cuáles son excluidos de la norma en proceso de constitución. Al

participar en la negociación de normas lingüísticas, los hablantes

plantean sus propias propuestas o evalúan propuestas efectuadas por

otros hablantes respecto de la adecuación o legitimidad social de un

rasgo lingüístico en particular.

El concepto de negociación de normas, específicamente la

negociación de tipo explícito, según nuestro parecer, merece ser

puesto en relación con el de debate lingüístico-ideológico

(BLOMMAERT, 1999). Los discursos metalingüísticos del siglo XIX

chileno tienen por contexto un proceso de estandarización local,

iniciado en Chile durante las primeras décadas del siglo (MATUS,

DARGHAM y SAMANIEGO, 1992). En este proceso participan

diversos agentes: autoridades idiomáticas, hablantes/escritores

profesionales, expertos científicos y autores de códigos lingüísticos,

entre otros (AMMON, 2003). Lo importante, para nosotros, es que no

siempre existe consenso entre estos actores, por su diversidad de

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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:

LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE

ZOROBABEL RODRÍGUEZ

56 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

intereses políticos y culturales en general, lo cual conlleva el

surgimiento de polémicas y disputas por el control discursivo de las

representaciones sociales acerca del lenguaje. Blommaert (1999)

califica a estas polémicas en torno a las lenguas de debates

lingüístico-ideológicos, y destaca su importancia para comprender

cómo las ideologías lingüísticas se transmiten, transforman y originan

en escenarios históricos concretos, en relación con asuntos más

generales tales como la formación de las naciones o la cristalización

de relaciones de poder. Blommaert entiende los debates como

“patrones de actividades discursivas interrelacionadas”, “de naturaleza

textual”, en síntesis: “episodios históricos de textualización, historias

de textos en que se desarrolla una lucha entre textos y metatextos”

(1999, p.09; traducción nuestra). Su estudio, por tanto, requiere el

análisis histórico de los textos en que los discursos metalingüísticos se

manifiestan, tal como haremos en nuestro estudio.

Las ideologías lingüísticas son entendidas en la antropología

lingüística como conjuntos de creencias acerca del lenguaje, en sus

distintas dimensiones (la lengua, los hablantes, la comunicación, etc.),

que normalmente constituyen proyecciones de imaginarios políticos,

morales, en fin, culturales sobre el telón de fondo del lenguaje, y que

por lo mismo responden a los intereses extralingüísticos de uno o más

grupos de una comunidad (KROSKRITY, 2010). Son, por lo tanto,

potenciales espacios de debate y lucha por el dominio de las

representaciones sociales.

En Chile, tras el proceso de independencia (1810-1823), los

debates lingüístico-ideológicos encontraron un terreno muy fértil.

Valga como ejemplo la llamada “controversia filológica de 1842”

(PINILLA, 1945), en que Andrés Bello, Domingo F. Sarmiento y

otros debatieron en la prensa acerca de lenguaje y educación. Otro

ejemplo es el largo debate en torno a la reforma ortográfica, que

alcanzó su cúspide a mediados del siglo XIX y se prolongó hasta bien

entrado el XX (CONTRERAS, 1993). Finalmente, en especial a partir

del último cuarto del XIX, se discutió bastante acerca de qué usos

léxicos debían formar parte de la lengua española estándar, y este

interés dio origen a la mayoría de los primeros diccionarios dedicados

a la variedad dialectal chilena, los llamados diccionarios de

provincialismos (HAENSCH, 2000). Este último fenómeno no se dio

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Darío Rojas e Tania Avilés

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 57

únicamente en Chile, sino que es característico de prácticamente toda

la América hispanohablante.

No parece casual que los debates lingüístico-ideológicos del Chile

decimonónico se hayan enfocado principalmente en la ortografía y en

el léxico. Estos dos son los ámbitos del lenguaje en los que, de

acuerdo con López García (2010), con mayor frecuencia se focaliza la

conciencia lingüística normativa de los propios hablantes. Según este

autor, la atención que concitan la ortolexía (el uso “correcto” del

léxico) y la ortografía corresponde con los dos rasgos más evidentes

del signo lingüístico para los hablantes, el significado y el

significante; “esto explica la fascinación que suelen suscitar los

debates ortográficos y de vocabulario en el seno de la sociedad”

(LÓPEZ GARCÍA, 2010, p.75).

En el caso chileno (e hispanoamericano), el género de los

“reparos” a diversos repertorios lexicográficos se constituía como un

espacio discursivo idóneo para discutir una norma lingüística

emergente de carácter local (el español se ha configurado como una

lengua de norma pluricéntrica, es decir, distribuida entre varios

centros; cf. LEBSANFT, 2007 y THOMPSON, 1992), en

complementariedad, claro, con los diccionarios y obras lexicográficas

mayores del contexto chileno, dentro de los cuales también tenía lugar

esta discusión. En particular, la negociación de normas que se

despliega en estos textos atañe principalmente al proceso de selección

de rasgos lingüísticos (AMMON, 2004; TRUDGILL y

HERNÁNDEZ, 2007, s. v. selección), pues lo que estaba sujeto a

discusión era cuáles usos lingüísticos chilenos eran aptos para formar

parte de una variedad estándar de alcance local.

Rojas (2010), siguiendo la visión pragmático-discursiva del

diccionario de Lara (1997), señala que los diccionarios de

provincialismos chilenos, como muchos otros publicados en

Hispanoamérica en las décadas anteriores, servían como vehículo

discursivo para la evaluación de usos lingüísticos provinciales con

miras a su incorporación al español estándar, y no meramente para

informar acerca del significado de las palabras, como sucede en el

caso de los diccionarios monolingües. Es decir, los diccionarios de

provincialismos, junto con los textos que recogían reparos a estas

obras, eran herramientas de estandarización lingüística. En cuanto

obras normativas, pretendían corregir las (supuestas) incorrecciones

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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:

LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE

ZOROBABEL RODRÍGUEZ

58 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

del español chileno y americano, determinadas por su grado de

diferencia respecto del español codificado en las obras académicas, de

marcado tinte peninsular. Los discursos que aparecen en estas obras

suelen ajustarse a lo que Milroy (2001) llama ideología de la lengua

estándar, la cual se basa en la creencia de que solo puede haber una

sola forma legítima de lenguaje (el estándar, al cual se atribuye la

propiedad de la corrección), y que las variedades geográficas,

sociales, etc., corresponden a meros errores o desviaciones debidas a

incompetencia y por tanto incorrectas. En este caso, las variedades

locales americanas son consideradas incorrectas precisamente por

distanciarse del modelo de lengua, el estándar de raigambre

castellanizante.

El Diccionario de chilenismos de Zorobabel Rodríguez, de 1875,

se publica cuando una actitud favorable al español peninsular y

negativa hacia lo provincial ya estaba bastante arraigada en los medios

cultivados chilenos, y especialmente entre los sectores más

conservadores. Su multifacético autor (1839-1901), novelista, poeta,

parlamentario, abogado (no titulado), profesor y periodista, fue uno de

los representantes más notables de la intelectualidad conservadora de

la segunda mitad del XIX. Sin embargo, no era un conservador

“puro”: su propuesta política aunaba catolicismo y liberalismo, en

cuanto defendía las libertades individuales frente al autoritarismo

estatal, así como las libertades económicas (CORREA, 1997). El

propósito de su Diccionario, según el mismo lo declara, era

proporcionar “un fácil medio de evitar los errores más comunes que,

hablando o escribiendo, se cometen en nuestro país en materia de

lenguaje” (RODRÍGUEZ, 1979 [1875], p.viii). Para esto, recoge

aproximadamente 1100 voces, comentadas bajo la modalidad de

diccionario (por orden alfabético), precedidas de un prólogo en que

explicita la finalidad de su obra. Por su propósito normativo y

finalidad pedagógica, puede considerarse que representa fielmente el

clima de opinión de la lexicografía precientífica chilena (Matus 1994),

y, sin duda, por su carácter pionero, fue muy influyente en las

reflexiones del lenguaje que vendrían en las décadas siguientes. Al

momento de su muerte, Rodríguez se encontraba preparando una

segunda edición del Diccionario, cuyos borradores probablemente se

perdieron en un incendio en su casa de Valparaíso (CASTILLO, 1995,

p.21).

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Darío Rojas e Tania Avilés

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 59

La ideología lingüística que Rodríguez despliega en los artículos

de su diccionario ha sido estudiada por Avilés y Rojas (2014). Estos

autores identifican un conjunto de creencias normativas que articulan

una versión específica de la ideología de la lengua estándar. Estas

creencias son las siguientes (véase Avilés y Rojas, 2014, p.157-158).

Los usos de los autores literarios gozan de legitimidad.

Asimismo, el habla de las personas educadas ostenta el

estatus de modelo.

En principio, los provincialismos son inadecuados (pero

pueden ser aceptables si cumplen alguna de las características

de más abajo).

Los provincialismos pueden ser aceptables si satisfacen una

necesidad denominativa, esto es, de denominar un concepto

para el cual no existe expresión en la lengua.

En cuanto a su morfología, los provincialismos también

pueden considerarse legítimos si están “bien formados”, es

decir, se ajustan a las reglas gramaticales codificadas en las

obras de la Real Academia Española.

Igualmente, el léxico “correcto”, en principio, es el recogido

en el Diccionario de la Real Academia Española.

Por último, los extranjerismos léxicos son inapropiados.

A través de la concurrencia de estas creencias, que no funcionan de

manera aislada, Rodríguez somete a juicio normativo los vocablos que

forman parte de su diccionario, determinando si son o no dignos de

engrosar el léxico oficial.

A continuación, tendremos oportunidad de ver en qué medida estas

creencias coinciden o difieren de las que emplean los comentaristas

del Diccionario de chilenismos cuando plantean sus propias

propuestas normativas respecto del español de Chile.

3. Los comentaristas del Diccionario de chilenismos

Nuestros dos autores adoptan posiciones antagónicas: Fidelis del

Solar critica el texto de Rodríguez, mientras que Fernando Paulsen se

erige como defensor de dicho autor. La postura de Paulsen no es

sorprendente si se tiene en cuenta que puede llamárselo, hasta cierto

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IDEOLOGÍAS LINGÜÍSTICAS EN UN DEBATE DEL SIGLO XIX CHILENO:

LOS COMENTARISTAS DEL DICCIONARIO DE CHILENISMOS DE

ZOROBABEL RODRÍGUEZ

60 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

punto, “coautor” de Rodríguez en el Diccionario de chilenismos,

según aclara el mismo Zorobabel:

[…] despues de haberse llevado acopiando durante largos años

una multitud de observaciones sobre los vicios de nuestra habla,

[Fernando Paulsen] las puso en nuestras manos, no solo para

que las consultásemos, sino para que las tuviésemos como

propias i de nuestra propia cosecha. Ya que la excesiva

modestia de nuestro jeneroso amigo nos ha privado del placer

de citarlo los centenares de veces que hemos copiado al pié de

la letra o utilizado sus apuntes, queremos darnos el mui vivo de

manifestarle aquí la gratitud que sentimos por sus favores i la

admiracion que no ha podido ménos de despertar en nuestra

alma una tan rara erudicion hermanada con una tan singular

modestia. (RODRÍGUEZ, 1875, p.xi)

Aparte de su participación en el Diccionario de chilenismos y del

texto que ahora analizaremos, no tenemos noticias de otros trabajos

lingüísticos de Paulsen. Fidelis del Solar, en cambio, también firmó

“La x antes de consonante”, aparecido en los Anales de la Universidad

de Chile en 1885, y un extenso Vocabulario de la fraseología del

verbo Echar, publicado en 1889, además de una crítica a Voces

usadas en Chile de Aníbal Echeverría y Reyes.

3.1. La crítica de Fidelis del Solar

Solar, en primer lugar, considera que la obra de Rodríguez, además

de admirable por el ingente trabajo invertido, es muy útil para el

conocimiento del uso que en Chile se hace de la lengua castellana. Sin

embargo, advierte que la obra “es prematura y que no debía haberla

dado a luz aun hasta haber corregido muchas proposiciones erróneas

que saltan a la vista, errores ortográficos indisculpables, omisiones

notables de chilenismos de uso frecuente” (SOLAR, 1876, p.viii).

Un ejemplo de estos defectos es el siguiente. Rodríguez consigna

como chilenismo ferrocarril urbano porque en Madrid se usa tranvía.

Solar considera que, teniendo en cuenta que la Academia ni siquiera

ha “aceptado” el galicismo hotel, con mayor razón debería censurarse

tranvía, que es un calco del inglés tramway. El madrileño tranvía,

para Solar, es más censurable que ferrocarril urbano. Por lo tanto,

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Darío Rojas e Tania Avilés

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 61

según Solar, Rodríguez yerra al considerar ferrocarril urbano un

chilenismo. En este ejemplo se puede vislumbrar que Solar equipara

“chilenismo” con “uso incorrecto”.

Entre las omisiones, a Solar le llama la atención que Rodríguez no

consigne como chilenismo la voz choro, de origen indígena, que

designa en el sur del país lo que en el norte se llama mejillón, siendo

esta última la voz “castiza”. Solar acusa asimismo a Rodríguez de

tener un criterio poco claro en cuanto a la aceptación de voces: a veces

se muestra muy severo con algunas que Solar considera aceptables por

ser “bien traídas y hayan enriquecido no pocas veces el idioma”,

especialmente según lo que declara en el prólogo; otras veces,

principalmente en el cuerpo de la obra, se muestra indulgente con

algunos chilenismos, recomienda otros e incluso corrige definiciones

de la Real Academia Española, de Vicente Salvá y de otros autores.

A pesar del desacuerdo que muestra el crítico con varias de las

decisiones específicas tomadas por Rodríguez, parece compartir el

“espíritu” normativo-didáctico de la obra, como se aprecia en la

siguiente cita:

Al hacer nuestros reparos no pretendemos provocar una

polémica, ni tener nuestra opinión por infalible, sino que nos

mueve a ello el bien entendido interés de nuestros compatriotas,

señalando con la misma franqueza que el señor Rodríguez

algunos de los vicios del lenguaje en nuestro país y

restableciendo y justificando algunos chilenismos bien creados

y rectificando también falsos conceptos del autor de la obra,

pues nadie está libre de incurrir en errores. (SOLAR, 1876,

p.xiv)

La siguiente cita, que se encuentra esta vez hacia el final del texto

de Solar, da cuenta de la misma postura:

Hemos llegado al fin de nuestra ingrata tarea, procurando en

este leal combate no ofender en lo más mínimo a nuestro

distinguido adversario: dirigiéndonos puramente al autor del

Diccionario de chilenismos, haciéndole ver los defectos que

hemos notado en su obra, guiados por el deseo de tener el mejor

acopio posible de nuestros provincialismos; aceptando lo bueno,

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62 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

desechando lo malo, sin que nos haya arrastrado el amor

exagerado de lo nacional, ni de lo extranjero, sino siempre lo

útil y lo justo. (SOLAR, 1876, p.189)

Y es que, a pesar de plantear Solar su comentario como una crítica

de Rodríguez, lo que cuestiona no son las ideas o creencias de fondo

que sirven como criterios normativos, sino la aplicación concreta de

estos criterios a determinadas unidades léxicas. Las creencias

normativas de Solar, de hecho, son bastante parecidas a las que

pueden observarse en Rodríguez.

Solar piensa que el uso de un provincialismo solo es aceptable en

la medida en que este cumpla una función o enriquezca la lengua, es

decir, el provincialismo bueno es el útil. Por ejemplo, acude a este

argumento cuando, contra la opinión de Rodríguez, considera que los

provincialismos boletero y boletería son aceptables por ser “voces

chilenas mui útiles i que prestan buenos servicios al idioma” (SOLAR,

1876, p.30): en España para lo primero falta una denominación, y para

lo segundo solo pueden acudir los españoles al circunloquio despacho

de billetes. Vemos aquí la satisfacción de necesidad denominativa por

parte de dichos provincialismos. En cuanto al fetichismo de Rodríguez

por el Diccionario académico, Solar también lo muestra (“El

diccionario de la lengua trae aereonauta i aeronauta como sinónimos,

por lo que la corrección que hace el señor Rodriguez queda sin

valor”), aunque quizá en un grado menor, pues este a veces prefiere

otros diccionarios que den cuenta de un uso más moderno de la

lengua, tales como el Diccionario de la sociedad de literatos o el de

R. Domínguez.

Solar, al igual que Rodríguez, se muestra enemigo de los

extranjerismos. Acusa a la prensa chilena de emplear “una fraseolojía

cosmopolita: ya escribe en francés, ya en inglés, ya en italiano…i

tantas otras palabras i locuciones tan estrañas que han hecho de la

crónica de ese diario un verdadero guirigai, haciéndolo inintelijible

para la mayor parte de sus lectores” (SOLAR, 1876, p.xii). También

coinciden ambos autores en considerar el lenguaje del vulgo como un

antimodelo, para demostrar lo cual se pueden espigar diversos pasajes

en que Solar formula apreciaciones negativas sobre el lenguaje

popular:

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Darío Rojas e Tania Avilés

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 63

En seguida dice que hai una locucion vulgar chilena estirar las

patas, que equivale a morir. Debia, entónces, haber puesto:

“entregó la jeta al Creador, mandarse mudar o cambiar para el

otro mundo, entregó el rosquete, torció la esquina i tantas otras

de esta calaña, que no valen un comino. (SOLAR, 1876, p.59)

Fregar, ado, a, azon: ¿Valia la pena de ocuparse de dicciones

tan vulgares como éstas, proscritas por sí solas del lenguaje

culto? (SOLAR, 1876, p.65)

Solar, nuevamente como Rodríguez, considera la “buena

formación” de acuerdo con las reglas gramaticales del idioma un

criterio de aceptabilidad:

Los españoles dicen picotazo i picotada ¿porqué, pues, no

hemos de poder nosotros agregar picoton, como se dice

tarascon, bofeton o bofetada, manoton o manotada, sin faltar a

la propiedad del sentido. (SOLAR, 1876, p.120)

Por otra parte, Solar no considera que todo provincialismo sea

necesariamente malo. En este sentido, cita la famosa frase de la

Gramática castellana de Andrés Bello en que este señalaba que

“Chile i Venezuela tienen tanto derecho como Aragon i Andalucía

para que se toleren sus accidentales diverjencias cuando las patrocina

la costumbre uniforme i auténtica de la jente educada”. A propósito de

garúa y garuar, Solar apunta:

¿Qué razón tiene el señor Rodríguez para proscribir estas voces,

que todo diccionario moderno las reconoce como buenas?

Alega que garuar es provincialismo peruano i chileno i que la

jente educada no debe hacer uso de provincialismos sino en

casos mui justificados. ¡Estamos lucidos los americanos! Somos

despreciados por nuestros propios hermanos; se prefieren los

mas insulsos vocablos por venir de España a los mui sonoros i

espresivos nuestros. ¿Por dónde son preferibles mollizna i

cernidillo a garúa? Apelamos al juicio del público sensato:

quédense en buen hora en España, que por nuestra parte no

harémos el papel de farfulleros ni parlanchines. Usarémos

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64 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

llovizna i garúa sin el menor escrúpulo, como a garuar, sin

proscribir por eso a mollizna i cernidillo, aunque los hallémos

demasiado melifluos. Llovizna y garua quedan en Chile siendo

de uso jeneral. El señor Rodriguez es a veces mas intolerante

que los mismos españoles; si Salvá, Dominguez, (si viviera

aun), u otros lexicógrafos visitasen a América, usarian de

nuestros despreciados provincialismos i es claro que así lo

harian, pues al darles acojida en sus diccionarios es porque los

adoptara la madre lengua como verdaderos hijos i no haria una

madrastra tratándolos mal. (SOLAR, 1876, p.68-69)

Otro punto de desacuerdo de criterios es que, en cuanto a la

polisemia, Solar, a diferencia de Rodríguez, piensa que “podemos

crear acepciones nuevas a palabras semejantes en el sentido que

necesitamos emplearlas” (SOLAR, 1876, p.ix), pues “si cada palabra

no tuviera mas que una sola acepcion, necesitariamos cuadruplicar por

lo ménos el caudal de voces de la lengua española” (SOLAR, 1876,

p.xi).

De entre las citas literarias que Solar pone al cierre de su obra, cabe

destacar una tomada de un Discurso pronunciado en la discusión de la

ley de ayuntamientos (1840) de A. Oliván, en que se pondera la

utilidad y aplicabilidad de las cosas por sobre su origen extranjero o

nacional, o su modernidad:

Los estremos todos son viciosos. El apresurarse a adoptar

indistintamente todo lo de los estranjeros es de necios; el

desecharlo todo por tema es de ilusos; el adoptar lo bueno y

desechar lo malo es de discretos. (cit. en SOLAR, 1876, p. 190)

La aseveración de la cita concuerda con la misión de “filtro”

normativo que se le atribuía en el siglo XIX chileno a los diccionarios

como el de Rodríguez. Por eso, precisamente, es que Solar considera

tan importante afinar los criterios normativos y aplicarlos de manera

rigurosa, que es precisamente lo que echa de menos en el Diccionario

de chilenismos. Nótese, de cualquier modo, que el espíritu normativo

al que Solar adhiere no corresponde a un purismo a ultranza, sino a un

purismo moderado, abierto a innovaciones, siempre y cuando estas

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 65

sean útiles y necesarias, muy en la línea inaugurada por Andrés Bello

en Chile.

3.2. La defensa de Paulsen

En la respuesta de Paulsen a Solar se observa una actitud

marcadamente purista con respecto a los usos provinciales, que parece

incluso más acentuadamente normativista que la del mismo

Rodríguez.

Paulsen dedica en gran parte de sus reparos a criticar las fuentes

utilizadas por Solar, tales como el Diccionario de la sociedad de

literatos (al que no considera una fuente autorizada), así como el mal

uso que Solar da a los diccionarios, debido a que ignora cómo utilizar

e interpretar estas fuentes (marcas, ejemplos, definiciones), además de

su escaso conocimiento en la materia. Son mayoría las refutaciones (a

las propuestas de Solar) sustentadas en la autoridad de la literatura

española clásica y del diccionario académico, por sobre cualquier otro

tipo de argumento. Paulsen critica, en el fondo, el hecho de que Solar

pretendiera que esta primera edición del Diccionario de chilenismos

de Rodríguez fuese perfecta, cosa que ni siquiera el primer

Diccionario de la Academia pudo lograr.

La siguiente cita, tomada de la “Advertencia” con que principia su

escrito, permite apreciar de manera muy clara la actitud normativa

purista de Paulsen:

El señor Rodriguez hizo esas apuntaciones, principalmente para

los jóvenes que se dedican a las letras i para todo linaje de

personas que tienen la noble aspiracion de no expresarse en una

jerga tan vulgar como abominable. En obsequio de los

primeros, para que sus obras puedan ser leidas fuera de Chile,

en las Américas i en España; donde corrian riesgo de no ser

entendidas de nadie si seguian ostentando voces i locuciones no

conocidas sino de los que nacieron en el estrecho seno de

nuestros valles: en el de los segundos, para que no se ofenda la

majestad de la Representacion Nacional con ridículos

provincialismos, i no se amengüe la elegancia del trato fino i

cortesano de nuestros salones con u lenguaje tan poco culto i

distinguido; i en fin, para que tanto nuestros varones como

nuestras damas que se resuelvan a salir alguna vez de la aldea

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66 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

que los vió nacer, i emprendan un viaje por tierras extrañas, en

que se hable la lengua de Leon i Herrera, no necesiten de

intérprete, como lo hemos visto nosotros mismos allí en la

coronada villa que bala el arenoso Manzanares.

Pero si el autor del Diccionario no escribió sus sabias

lecciones para los mercaderes, los oficiales mecánicos, i aun

para muchas señoras de su casa, muchas de las cuales nohan

leido en su vida mas libro que el almanaque, seguro de que

ninguno de éstos habia de comprar una obra para ellos tan

inútil, nunca desconfió de que, con el tiempo, hasta la jente

pechera aceptará, si no todas, muchas de sus correcciones.

Siendo este el objeto del libro, i viniendo los chilenismos

casi siempre acompañados de su correspondencia castiza, no

comprendemos el empeño del señor Solar en adoptar voces

bárbaras que, aunque mui corrientes en nuestro suelo, está en

nuestro interes desterrar para siempre, como procuran hacerlo

en Colombia, en el Perú i otras secciones americanas, los

literatos que comprenden la inmensa ventaja de que tantos

millones de individuos hablen uniformemente una misma

lengua. [...] Resumiendo diremos, que nosotros no aceptamos

chilenismo alguno que tenga su correspondencia castellana, i

aun preferiremos el provincialismo andaluz o aragones a las

voces del cholo de Bolivia o del pehuenche de Chile.

(PAULSEN, 1876, p.13-14)

En primer lugar, Paulsen deja claro que el tipo de texto del que

están hablando, los diccionarios de chilenismos, tienen un destinatario

bien específico: las personas educadas. El sujeto popular, de esta

manera, está completamente fuera de la discusión, queda

completamente elidido, presumiblemente por ser un caso ya

completamente perdido desde el punto de vista de la conducta

idiomática, de manera que no puede formar parte de una planificación

idiomática. Esa “jerga vulgar i abominable” de la que habla Paulsen

seguro se refiere al lenguaje popular, con lo cual queda clara su

actitud radicalmente negativa hacia dicha variedad.

En segundo lugar, nótese que hay un ideal de eficiencia

comunicativa: Paulsen dice que el hablar “correctamente” permite

hacerse entender en un contexto internacional, de manera que no se

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Darío Rojas e Tania Avilés

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 67

necesiten “intérpretes”. Con esta última alusión a los intérpretes,

Paulsen atrae un imaginario en que las variedades dialectales quedan

asimiladas a sistemas comunicativos distintos e incomensurables. La

metáfora conceptual activada en este caso es la típicamente

racionalista de que EL LENGUAJE ES UNA BARRERA. (BERTHELE,

2010, p.268; véase también GEERAERTS, [2003] 2006).

Y en relación inmediata con lo anterior, también se ve en Paulsen

una mención explícita del valor supremo que tiene la unidad de la

lengua, “inmensa ventaja” para los hispanohablantes. El valor de la

uniformidad es prioritario en el discurso de Paulsen, quien cita en otro

pasaje a Puigblanch para demostrarlo:

Los españoles americanos, si dan todo el valor que dar se debe a

la uniformidad de nuestro lenguaje en ambos hemisferios, han

de hacer el sacrificio de atenerse, como a centro de unidad, al de

Castilla, que le dió el ser i el hombre; lo contrario será fabricar

castillos en el aire. (cit. en PAULSEN, 1876, p.05)

En esta última cita a Puigblanch, también se ve claramente que,

para Paulsen, la fuerza centrípeta para la uniformación de la lengua

debe ser el uso de Castilla, que en otra parte califica de “uso recto i

regulador en materia de idioma” (PAULSEN, 1876, p.13). En este

contexto de defensa de la uniformidad, Paulsen acusa a Solar de

pretender lo contrario: “Cualquiera creeria que se trata de la formación

de una lengua nueva, cuyas voces propone el señor Rodriguez, i

discute el autor de los Reparos” (20).

Para Paulsen, al contrario que para Solar, el criterio de la utilidad

de una nueva voz no es criterio suficiente ni de peso mayor desde el

punto de vista normativo. Critica a Solar por empeñarse en conservar

“el uso de innumerables chilenismos, nada mas que porque los cree

útiles, o porque considera imposible sustituirlos por las

correspondencias castizas, por la oposicion que entre nosotros

hallarian” (PAULSEN, 1876, p.13).

Queda claro también, a partir de la cita extensa anterior, que

Paulsen tiene una actitud muy negativa hacia el provincialismo, el que

califica de “ridículo”. Con el provincialismo se entremezcla la

categoría del indigenismo léxico, hacia el cual tiene una actitud aún

más negativa, como muestra el que declare preferir los

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68 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

provincialismos de regiones españolas que los originados en culturas

nativas de América.

En la mayoría de los puntos, la ideología lingüística de Paulsen

coincide con las creencias que hemos visto en Rodríguez (y también

parcialmente en Solar). Paulsen maneja un modelo literario español

clásico. Es muy decidora al respecto la siguiente cita a la Declamación

contra los abusos introducidos en el castellano (1791) del español

José de Vargas Ponce (1760-1821), que Paulsen incluye en su obra:

El uso de una palabra no se ha de indagar en un tocador o en un

corro de eruditos a la violeta; esto es, ni entre calaveras, ni entre

calabazas, sino por los renglones de un maestro Leon o de un

Fernando de Herrera, que, como ellos mismos cuentan de sí, las

medían i pesaban” (cit. en PAULSEN, 1876, p.16)

También se puede apreciar la preeminencia de la literatura clásica

en su ideología cuando, a propósito de aproximativo, remite a Solar a

comprobar hechos lingüísticos “en Calderon i en Quevedo”

(PAULSEN, 1876, p.21).

Igualmente, concede autoridad suprema a la Real Academia

Española y sus obras: está siendo sarcástico cuando afirma que “las

personas que deseen escribir correctamente i de modo que se entienda

en otros paises que hablan castellano lo que escriben, pueden optar

entre la autoridad del señor Solar i la de la Academia de la Lengua”

(PAULSEN, 1876, p.16).

El uso de extranjerismos es también una conducta lingüística

reprobable para este autor. A propósito de yuyuba, recrimina a Solar:

¿Qué es lo que desea Ud.? ¿O quiere Ud. que se diga pasta de

susub, en lugar de pasta de azufaifas, como teme don Juan E.

Hartzenbusch, en su prólogo al Diccionario de galicismos de

Baralt, que se le antoje decir a algun galiparlista? (PAULSEN,

1876, p.8)

La “buena formación” de los vocablos de acuerdo con reglas

gramaticales del idioma, asimismo, es un criterio de aceptabilidad:

“De paso advertiremos que aunque la palabra martillero no viene en

ningun diccionario, es bien formada” (PAULSEN, 1876, p.27).

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Darío Rojas e Tania Avilés

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 69

En conclusión, puede apreciarse, en el caso de Fernando Paulsen,

una mayor coincidencia respecto del discurso lingüístico-ideológico

de Rodríguez, en comparación con Solar, e incluso, como decíamos,

una radicalización de algunas de las creencias normativas que

aparecen en el Diccionario de chilenismos.

4. Conclusión

En los autores estudiados (Fidelis del Solar y Fernando Paulsen), a

pesar de adoptar posturas antagónicas entre sí, podemos observar una

gran coincidencia en cuanto a las creencias normativas que exhiben en

sus escritos. Quizá la diferencia más importante sea la fuerza de la

actitud normativa, más acentuada en Paulsen que en Solar. Por otra

parte, las creencias de ambos autores coinciden, en mayor o menor

medida, con las que se encuentran en el texto que origina este debate,

el Diccionario de chilenismos de Zorobabel Rodríguez. La

confluencia de las creencias de este grupo de autores puede atribuirse

a la presencia, en todos ellos, de una versión históricamente

circunstanciada de la ideología de la lengua estándar (MILROY,

2001). En el fondo, todos ellos operan con el concepto de corrección y

las jerarquizaciones valorativas asociadas, a través de las cuales el

habla dialectal vernácula queda sujeta a una actitud negativa, mientras

que se prescribe un habla culta homogénea, inclinada hacia un modelo

castellano codificado principalmente en las obras de la Real Academia

Española.

Dicha coincidencia puede resultar sorprendente si se piensa que se

trata de debates (el mismo concepto de reparo, usado por Paulsen y

Solar en sus respectivos títulos, da a entender una postura polémica),

pero no tanto si se tiene en cuenta que en realidad Rodríguez, Solar y

Paulsen eran todos miembros de una élite cultural que conformaban

una comunidad discursiva (WATTS, 2008) articulada en torno al

lenguaje como objeto de reflexión, en el sentido de que compartían

intereses (por ejemplo, la educación lingüística, etc.), metas (por

ejemplo, la unidad del idioma) y creencias (como las que hemos visto

en el presente trabajo). Los debates, en este caso, podían tenían por

foco la evaluación que concretamente se hacía de un rasgo lingüístico,

pero las creencias o criterios que se usaban como fundamento de dicha

evaluación eran en gran medida los mismos. De esta manera, puede

concluirse que dicha comunidad discursiva se caracteriza también por

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70 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

compartir una ideología lingüística y una serie de actitudes asociadas a

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Palabras clave: historiografía lingüística; ideología lingüística;

español de Chile; lexicografía chilena.

Keywords: linguistic historiography; language ideology; Chilean

Spanish; Chilean lexicography.

Notas 1 Siguiendo la postura de Lara (1976), preferimos reservar el término norma para

aludir a un punto de referencia que sirve como orientación para determinar qué

acciones son consideradas socialmente válidas por una comunidad (TAKAHASHI,

2004, p.172). Es decir, como norma “prescriptiva”, por oposición a la norma

“descriptiva” de Coseriu ([1952] 1967). En palabras de Luhmann (1985, p.33), una

norma puede definirse sucintamente como una expectativa de conducta estabilizada

contrafactualmente (es decir, independientemente de los hechos). Entre las funciones

de las normas, de acuerdo con Bartsch (1982, p.61-62), se encuentra el servir de

patrón para interpretar una acción como socialmente válida y garantizar la

coordinación eficiente y económica de las acciones humanas.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 73

CRÔNICAS E CONTROVÉRSIAS

SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS

NO SUL: ALGUMAS REFLEXÕES

Amanda E. Scherer

DLCL-PPGL Laboratório Corpus UFSM

Caroline Schneiders

Laboratório Corpus DOCFIX-FAPERGS-CAPES UFSM

Taís S. Martins

DLCL PPGL Laboratório Corpus UFSM

Resumo: No presente artigo, buscamos compreender os processos de

institucionalização e disciplinarização da Linguística no Sul do

Brasil, procurando refletir sobre como cada época tem suas

convenções, valores, visões do mundo, que possibilitam a formação de

um certo universo linguístico acadêmico, cujos elementos mantêm

entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de

mudança. Partimos do fato de que são as condições de produção de

cada época que vão afetar e determinar a institucionalização da

Linguística no contexto em questão.

Abstract: In this article we aim to understand the processes of

institutionalization and disciplining of Linguistics in southern Brazil

in order to reflect on how each time has its conventions, values and

world views, which allow the creation of a particular academic

linguistic universe, whose elements establish associative and

functional relationships among themselves in a constant process of

change. We start from the fact that the conditions of production of

each time affect and determine the institutionalization of Linguistics in

the context studied.

Situando nossa problemática:

Porque é limitado todo o ato de saber possui, por definição uma

espessura temporal, um horizonte de retrospecção, assim como

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

74 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

um horizonte de projeção. O saber (as instâncias que o fazem

trabalhar) não destrói seu passado como se crê erroneamente

com frequência, ele o organiza, o escolhe, o esquece, o imagina

ou o idealiza, do mesmo modo que antecipa seu futuro

sonhando-o enquanto constrói. Sem memória e sem projeto,

simplesmente não há saber (AUROUX, 1992, p. 11).

Nos estudos que vimos desenvolvendo, buscamos compreender os

processos de institucionalização e disciplinarização da Linguística no

Brasil, procurando refletir sobre como cada época tem suas

convenções, valores, visões do mundo, que possibilitam a formação de

um certo universo linguístico acadêmico, cujos elementos mantêm

entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de

mudança. Diante disso, partimos do fato de que são as condições de

produção de cada época que vão afetar e determinar a

institucionalização da Linguística nas universidades brasileiras.

Para esta reflexão, destacamos algumas considerações acerca

desses processos no Rio Grande do Sul, tendo em vista a relação com

os estudos saussurianos, os quais estiveram presentes em todas as

grades curriculares dos programas dos Cursos de Letras do Rio

Grande do Sul desde que esses passaram a ofertar a Linguística,

enquanto disciplina obrigatória, no início dos anos de 1960. Cabe

ressaltar que a “presença” de Saussure na disciplinarização da

Linguística no Sul foi acentuada, principalmente, depois da publicação

da tradução do Curso de Linguística Geral em Língua Portuguesa, no

ano de 1970. Assim, nosso trabalho versa sobre as primeiras

sistematizações disciplinares desse domínio de saber, levando em

conta os conceitos privilegiados, no sentido dos mais enfaticamente

designados, as disciplinas e as suas nomeações.

Nosso objetivo principal é o de compreender como os estudos

saussurianos delinearam a disciplinarização da Linguística em nosso

estado, determinando uma formação letrada, a partir de uma

representação sobre a língua e a linguagem, em uma época fecunda

que foi determinante para as décadas posteriores, bem como para a

criação dos primeiros programas de Pós-Graduação no estado. Para

tanto, os ementários, programas e grades curriculares dos primeiros

Cursos de Letras em instituições de ensino superior no interior do RS

são o nosso foco de estudo e análise. Nossos primeiros gestos de

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Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 75

leitura possibilitam dizer que são os estudos sobre Saussure, e não a

obra e o autor em si, que determinam a constituição da Linguística no

período por nós considerado.

1. Questões sobre a disciplinarização:

Nos últimos tempos, a partir do projeto intitulado “Linguística no

Sul: estudo das ideias e organização da memória”, temos procurado

historicizar a institucionalização dos estudos linguísticos no sul do

país, principalmente nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do

Sul. Quando estamos tratando de historicização, estamos pensando,

aqui, nos modos como a Linguística foi firmando-se enquanto

disciplina, com vistas a entender o que levou tal estabelecimento à

institucionalização da formação de pesquisadores e também da

pesquisa em nossa região.

Com esta reflexão, entenderemos, também, o processo que envolve

a constituição da Pós-Graduação, por meio do disciplinar da

Linguística nos cursos de graduação, a fim de compreender o que

temos hoje no que se refere às linhas de pesquisa, formação de

doutores, produção acadêmica e elaboração de instrumentos

linguísticos (tais como os primeiros livros sobre Introdução à

Linguística, por exemplo, entre outros), que possibilitam a visibilidade

que esse domínio de saber possui no âmbito acadêmico.

Para tanto, reunimos uma série de documentos que vão desde as

primeiras Revistas Acadêmicas, documentos oficiais que determinam

e dão base para a criação dos Cursos de Graduação em Letras e dos

Programas de Pós-Graduação, bem como ementários, programas,

cadernos de chamadas, manuscritos e rascunhos de cursos etc. Tais

documentos constituem, em nosso entendimento, um arquivo

consideravelmente importante para que possamos, neste momento,

apresentar uma parte dos resultados de nosso trabalho de pesquisa.

O que nos interessa, diante disso, é especialmente a história

disciplinar contemporânea a partir da problemática levantada pelo

projeto que foi coordenado pela Profª. Eni Orlandi e que apontou

como referência o que conhecemos hoje no Brasil como História das

Ideias Linguísticas e sua relação com a Análise de Discurso; ou seja,

procuramos identificar e interpretar como tais documentos podem

também dar sustentação ao que poderíamos designar como Linguística

Brasileira. Nossa preocupação é compreender os modos pelos quais

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

76 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

um conteúdo da ciência se disciplinariza e se estabelece através de sua

institucionalização. Visamos, pois, a entender como a designação

disciplina, um princípio de especialização/singularização da pesquisa,

quer, por sua vez, ser “lógica” – pela sua referência a uma teoria

“unificada” de inteligibilidade – e funcional, pelos seus princípios de

organização da diversidade de conhecimentos (BOUTIER;

PASSERON; REVEL, 2006, p.07), para então cobrir um dado

conjunto dito como “natural” das Ciências da Linguagem,

justificando-se como uma certa concepção enciclopédica.

Diante disso, objetivamos explicitar a maneira pela qual se

constrói/se constitui a significação de uma certa nomenclatura, nós

diríamos “comunicacional científica”, e a repartição dos saberes de

referência em uma classificação que se quer “racional” (racionalidade

científica X racionalidade disciplinar). Nesse viés, para nós, é preciso

explicitar a maneira como o(s) saberes(s) constitue(m)-se e

configura(m)-se em relação a um certo domínio discursivo,

considerando os seus desdobramentos. A nossa questão fundamental

diz respeito a um trajeto discursivo: como um saber científico e um

certo conteúdo que se repete e que se singulariza sob forma de um

saber acadêmico pode se transformar em um conteúdo disciplinar.

Portanto, da reflexão e da produção do conhecimento, temos um

movimento nunca contínuo e muito menos linear em que o

conhecimento, ao se instar na transmissão, se coloca como um saber

acadêmico pedagogizado no intuito de tornar “mais racional” e

didático um saber que está em outro lugar e espaço temporal.

Representamos esse movimento, ainda que de forma embrionária, da

seguinte forma:

saber científico

saber acadêmico

saber pedagógico

saber escolar

Esse entendimento leva-nos a propor e considerar o fato de que

disciplina e ciência poderiam se equivaler para designar um conjunto

de relações entre os objetos e as pessoas que fazem a especificidade de

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 77

um domínio de saber ou de “um programa de pesquisa”. Isto é, pelo

disciplinar, poderíamos apreender os graus de cristalização e,

portanto, de estabilização que fazem parte da historicização de uma

prática científica.

Isso nos leva ao seguinte questionamento: o que entendemos por

disciplina? Para nós, a noção de disciplina serve para designar um

corpo de saber entendido como articulação de um objeto, de um

método e de um programa de um lado e, de outro, como o modo de

ocupação reconhecível em uma configuração maior.

Dizendo de outro modo, falar de disciplina é designar a atividade

científica como uma forma particular da divisão do trabalho de leitura

no mundo social acadêmico. Porque o sistema disciplinar é um modo

de organização funcional da pesquisa contemporânea e está muito

ligado ao ensino superior no seu caráter institucional (a descrição das

revistas, a fundação e criação das associações acadêmicas e

científicas, as transformações dos departamentos, a criação de

laboratórios, de grupos de pesquisa) e também no seu caráter teórico:

o aparelho conceitual e metodológico, a natureza das questões

colocadas em jogo, as tradições de pesquisa, ou seja, aquilo que

constituiria a sua matriz disciplinar.

Portanto, a noção de disciplina é tanto intelectual quanto

sociológica. Ela vai “testemunhar” em todas as suas definições,

limites, fronteiras, um esforço de uniformização, porque ela não é

apenas um dado de “matérias de ensino”, já que além das divisões

burocráticas ela “tem seu valor” – sua jurisdição epistemológica, uma

jurisdição institucional e pedagógica.

2. Questões sobre institucionalização e disciplinarização:

No Brasil (no período compreendido entre as décadas de 1960 e

1980), no âmbito dos estudos da linguagem, abrem-se novas

perspectivas, como, por exemplo, no ano de 1962, quando a

Linguística passa a fazer parte, como disciplina obrigatória, do

Currículo Mínimo dos Cursos de Letras. Tão logo isso ocorre, no ano

de 1963, essa disciplina já é ministrada nos Cursos de Graduação do

interior do RS, como podemos observar ao perscrutarmos os arquivos

das instituições acadêmicas gaúchas para constituir o corpus de nossa

pesquisa.

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

78 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Chiss & Puech (1999), em seus estudos, apontam para a

importância do olhar retrospectivo, a partir do qual se pode

estabelecer, pelo(s) lugar(es) de memória que ele atesta, o modo como

determinado campo de saber apresenta uma “consciência disciplinar”.

Segundo os autores, um campo de saber instaura-se na medida em que

configura um efeito integrador e esse efeito resulta do fato de o saber

ser entendido como uma unidade articulada, pela qual se pode

verificar a construção de uma espécie de campo homogêneo,

constituído por uma ontologia que se apresenta de modo mais ou

menos implícito.

A configuração de uma disciplina vincula-se ao seu horizonte de

retrospecção, pois, por meio dos resquícios-vestígios de uma memória

em funcionamento, pode-se entender uma temporalidade que é própria

à disciplina e, assim, compreender os saberes que organizam a

memória disciplinar de determinado domínio de saber (cf. ibid.). Chiss

& Puech (1999), partindo do que Auroux (2008) propõe sobre o

horizonte de retrospecção e projeção, ressaltam que a temporalidade

interna ao domínio disciplinar decorre tanto da sua relação com o

passado quanto com o futuro. A retrospecção permite a relação com a

memória, apresentando uma função legitimadora; já a projeção

apresenta uma relação com o devir, tendo, por conseguinte, uma

função instauradora. Por meio dos horizontes de retrospecção e

projeção, podemos observar o que Chiss & Puech (1999) denominam

de “horizonte disciplinar”.

Além da temporalidade que envolve a constituição do disciplinar,

Chiss & Puech (1995) destacam a importância da institucionalização.

Fazendo referência ao processo de disciplinarização e

institucionalização da Linguística (pensando esta enquanto domínio

científico), os autores consideram que:

L'institutionnalisation de la discipline semble donc résulter d'un

double mouvement relativement contradictoire. D'une part, la

science du langage est socialement utile: elle permet la

conservation de langues appelées à disparaître, reconstruit

celles qui ont déjà disparu, prend pour objet les activités

linguistiques qui constituent la plus grande partie de notre vie

sociale, doit permettre d'accomplir des progrès indispensables

dans le domaine de l'enseignement des langues, etc. De l'autre,

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Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 79

aucun des résultats qu'elle propose n'est directement accessible

au sens commun: ni la réalité du changement linguistique

continué, ni la dignité des langues sans écriture, ni la

secondarité de l'écriture par rapport à la langue parlée... ne sont

des “truisms”. La disciplinarisation de la science (son

institutionnalisation visible) est donc à la fois un devoir et une

stratégie quasi défensive1 (CHISS; PUECH, 1995, p.108, grifos

dos autores).

Compreendemos, assim, que pensar o disciplinar é também pensar

o processo de institucionalização, por meio do qual certo domínio

ganha visibilidade e possibilita/resulta na disciplinarização de

determinados saberes em condições sócio-históricas e ideológicas

específicas. Para os autores (1995), o disciplinar pode estar ancorado

em três grandes modalidades referentes à representação da unidade e

das fundações da disciplina: (i) a filiação empírica, pela qual se busca

a continuidade, seja de uma tradição nacional, seja de uma escola de

pensamento, etc; (ii) a divisão, ou demarcação disciplinar, seja em

relação ao tempo ou sincronicamente, a qual permite à disciplina estar

calcada em certa parte do real e em certa “família” de disciplinas; e

(iii) a refundação conceitual, onde a figura do antecessor não é mais

considerada como predecessor empírico, mas como um fundador que

legitima uma refundação por reapropriação/reação. Essa última

modalidade, para os autores, possibilita entender que a disciplina está

situada na ordem da legitimação, mais próxima da definição do objeto

e, na maior parte do tempo, do horizonte de projeção da disciplina, no

que deveria/poderia ser (CHISS; PUECH, 1995, p.106).

Para Chiss & Puech (1999), quando se adota um ponto de vista

disciplinar, há uma maior atenção no que diz respeito às considerações

que envolvem o objeto da ciência, permitindo analisar, por

estratificações e delimitações, o modo como o discurso está em

relação a outros discursos precedentes, adjacentes, distintos, mas que,

no entanto, não são estranhos à(s) disciplina(s) em questão. Diante

disso, os autores consideram que as representações disciplinares estão

associadas ao processo de constituição dos conhecimentos e é a

disciplinarização que organiza a relação entre o nível da continuidade

e da descoberta, bem como a herança na perspectiva da inovação

(CHISS; PUECH, 1995, p.122).

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

80 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Pela relação com a temporalidade, é possível verificar que há um

continuum de discursos disciplinares, como apontam Chiss & Puech

(1999, p.10). Contudo, é importante ressaltar que tal continuidade

refere-se à articulação de determinado domínio de saber com o

horizonte de retrospecção. Além disso, toda retomada de saberes não

implica necessariamente a retomada dos mesmos sentidos, e é a partir

desse pressuposto que podemos pensar a questão da (re)fundação

proposta por Chiss & Puech (1995). Para os autores, do ponto de vista

disciplinar, “la nouveauté n'est mesurable que sur le fond d'une

compacité qui est celle de la discipline même: la fondation est

nécessairement une re-fondation”2 (CHISS; PUECH, 1995, p.107).

Tal processo que envolve o disciplinar é decorrente, portanto, de

sua relação com a temporalidade, com o horizonte de retrospecção,

que estabelece qual domínio de memória constitui determinado campo

de saber e permite compreender que “la discipline est moins un état de

fait qu’un processus toujours déja commencé et recommencé”3

(CHISS; PUECH, 1999, p. 19). Para tanto, Chiss & Puech (1995)

destacam a necessidade da figura do predecessor para a constituição

de um campo disciplinar, figura essa que:

[...] dans l'ordre empirique de la succession, se confond donc

avec celle du «précurseur»/fondateur, pour donner lieu à une

appréhension unifiée, homogène du champ de la discipline

saisie dans la variété de ses domaines, de ses branches et de ses

intérêts4 (CHISS; PUECH, 1995, p.112).

No caso da constituição disciplinar da Linguística, os autores, após

uma retomada de diversos estudos de linguistas do século XX acerca

da contribuição do saussurianismo, destacam o Cours de linguistique

générale, de Ferdinand de Saussure, como sendo um “texto fundador”

capaz de fornecer uma referência retrospectiva que configura um

domínio de memória, por estabelecer relações de gêneses, de filiações,

de continuidade e descontinuidade, assim como um domínio de

pesquisas5.

Se tomarmos, por exemplo, um dos autores citados nos programas

de disciplinas em análise, como é o caso de Coseriu (1999), ele em

seu livro intitulado Lecciones de Lingüística General apresenta-nos

uma história da continuidade, perscrutando no passado, os pontos

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Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 81

mais importantes apresentados no Curso de Linguística Geral de

Saussure (doravante CLG). Para o autor:

[...] hay que tener em cuenta que ‘El curso de lingüística geral’

no constituye solo um punto de partida sino también um punto

de llegada y encuentro de tesis e intuiciones anteriores y que

justamente por ello representa um momento essencial en la

historia de la lingüística6 (COSERIU, 1999, p.129).

Com isso, podemos inferir que Coseriu (1999) afirma que devemos

considerar que há alguns conceitos e noções presentes no CLG que já

são pensadas e discutidas desde a antiguidade, havendo outros que são

pensados por meio de influências recíprocas entre Saussure e seus

contemporâneos. Mesmo fazendo as devidas objeções e ressalvas, o

autor coloca ainda que “La lingüística europea actual debe mucho a

Saussure7” (COSERIU, 1999, p.74).

Já para Benveniste (1988, p.34), não há um só linguista que hoje

não lhe deva algo, pois Saussure é “em primeiro lugar e sempre o

homem dos fundamentos” (p. 34). Benveniste (1988) afirma também

que Saussure, ao afastar-se de sua época, estava aos poucos se

tornando senhor de sua verdade, gradativamente estava transformando

a ciência da linguagem “[...] à medida que adianta sua reflexão, vai à

procura de dados elementares que constituem a linguagem, desviando-

se pouco a pouco da ciência do seu tempo, em que não vê senão

‘arbitrariedade e incerteza’” (BENVENISTE, 1988, p.36).

Segundo o autor, a Linguística que temos hoje, que se tornou uma

ciência importante, tem sua origem em Saussure, pois é “em Saussure

que ela se reconhece e se reúne” (BENVENISTE, 1988, p.49). Ao

considerar que Saussure busca garantir os fundamentos da linguística,

Benveniste afirma: “estranho destino esse das ideias, e como parecem

às vezes viver pela sua própria vida, revelando ou desmentindo ou

recriando a figura de seu criador” (BENVENISTE, 1988, p.48).

No contexto brasileiro, por exemplo, temos um grande estudioso

também problematizando tal relação histórica, como é o caso de

Guimarães (2008, p.09) quando enfatiza que “a história da linguística

tem centrado sua atenção, de um ou de outro modo, no corte, decisivo

sob muitos aspectos, do CLG”. A maioria dos estudos linguísticos

realizados no século XX e XXI (pelo menos no tocante ao mundo

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

82 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

ocidental) é afetada de alguma maneira pela obra do mestre de

Genebra.

Embora saibamos que “o pensamento moderno sobre a linguagem

instala-se a partir do século XIX, com a linguística comparativa”

(GUIMARÃES, 2002, p.116), é a partir da “ruptura fundante” de

Saussure que realmente a Linguística moderna se instaura, ruptura que

se dá por meio da sistematização dos estudos da linguagem. Neste

sentido, Arrivé (2010, p.20), aponta que “Saussure não fundou a

linguística, que já possuía um longo passado científico quando ele

nasceu. Mas sua obra está na origem de uma mutação considerável na

evolução da disciplina”, fato que torna possível falarmos em um corte

saussuriano.

O destaque para essa discussão em torno do disciplinar reitera o

fato de o discurso manter uma dupla relação com a história, sendo

“histórico, porque se produz em condições determinadas e projeta-se

no ‘futuro’, mas também é histórico porque cria tradição, passado, e

influencia novos acontecimentos” (ORLANDI, 1990, p.35). A

determinação histórica e a relação com o devir são fundamentais, em

nosso entendimento, por permitir explicitar que tanto a

disciplinarização quanto a institucionalização constituem-se como

processos vinculados um ao outro que contribuem para a

historicização de determinados saberes e sentidos em condições sócio-

históricas e ideológicas específicas.

3. As reflexões que propomos:

Cabe ressaltar que o corpus de nosso trabalho é constituído por

documentos relativos a programas da disciplina de Linguística (dos

anos de 60-70-80) e por relatórios anuais dos cursos de graduação de

instituições universitárias (do início dos anos 60). Documentos que

nos possibilitam a compreensão do processo de disciplinarização da

Linguística no Sul e seu desenvolvimento. Processo que possui forte

influência dos estudos saussurianos, principalmente nos anos 70, após

a publicação do CLG em Língua Portuguesa.

Essa influência a que nos referimos diz respeito à relação do

processo discursivo com determinado horizonte de retrospecção, uma

vez que o modo de historicização, conforme destaca Auroux (2008,

p.152), “depende largamente da constituição e da estrutura do

horizonte de retrospecção na sua relação com o funcionamento do

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Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 83

domínio de objetos”. Para nós, o processo de disciplinarização deve

ser pensado em articulação com o domínio da ciência, em nosso caso,

o das Ciências da Linguagem em geral, constituindo-se, assim,

enquanto um processo afetado histórica e ideologicamente. Vamos

colocar aqui tal processo discursivo em três grandes movimentos e

que poderão elucidar melhor como estamos tratando tal problemática.

3.1. Um primeiro movimento: a disciplinarização antes da

tradução do CLG - sobre Saussure

Considerando a Linguística ministrada no Sul, logo após o decreto

que postula sua obrigatoriedade, entendemos que se tratava de uma

disciplina marcadamente identificada aos estudos da Língua

Portuguesa em suas condições externas e internas. Como podemos

observar nos programas disciplinares que fazem parte do corpus de

nossa pesquisa, ao descreverem a disciplina de Linguística, ministrada

no ano de 1963 em instituições de nosso Estado8, muitas informações

se repetem. Nesses programas disciplinares, encontramos, na

descrição dos conteúdos a serem ministrados, por exemplo: Semântica

Descritiva; Categorias Gramaticais; Progresso Linguístico;

Gramaticalização; Quadro das Categorias; Gênero; Categoria de

Tempo, de aspecto; Classificação dos Vocábulos; Pronomes;

Advérbios; Frase e Estilo; Frase-Estrutura; Frases Nominais e

Verbais; Gênese da Frase Impessoal; Vozes do Verbo; Voz Passiva;

Tipos de Frase Passiva; Estrutura; Frase Ergativa; Evolução

Empréstimo; Caráter da Evolução; Causas da Evolução; Campos da

Evolução; Evolução Fonética; Atitude Fonêmica. Estrutura Social.

Aspectos da Evolução fonética; Tipos de Evolução Fonética;

Mudanças Combinatórias, Mutações; Analogia.

Dois anos depois, em 1965, observamos uma mudança no

programa de disciplina Linguística, que continua com a mesma

nomeação, mas sofre alterações na sua designação, por meio de uma

reconfiguração interna na seleção dos tópicos a serem trabalhados.

Assim sendo, como no ano de 1963, ainda temos um Curso anual que

possui uma disciplina nomeada Linguística, mas ela é designada de

forma diferente. Podemos trazer um grande clássico para nos auxiliar

a sustentar o que desejamos, pois para nós, segundo Bréal (2008), não

há dúvida de que linguagem designa as coisas de modo incompleto,

inexato. Com isso, acreditamos que as designações são apresentadas

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

84 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

na trama de suas re+escriturações, isto é, no reaparecimento, nas

substituições, nas retomadas, que, em vez de fixarem a referência,

produzem sua deriva.

Vejamos, por exemplo, os programas disciplinares do ano de 1965,

que dividem o programa da disciplina nomeada Linguística em duas

partes específicas, configurando-a da seguinte maneira: uma 1ª parte

designada como Introdução que apresenta o desenvolvimento da

linguística; um breve histórico; a linguística no Brasil; Língua e

Cultura; Conceito de Língua; Natureza da Linguagem; Língua e

Sociedade; Língua e espaço; O atlas linguístico; Natureza da

linguagem. Língua e tempo; Fonética; Divisões da Linguística;

Objeto da Linguística; Método Linguístico; posteriormente,

referenciam-se conteúdos relativos à fonética (inclusive apresentando

o estudo do IPA – International phonetic alphabet); e uma 2ª parte

dedicada a estudos da Morfologia da Língua Portuguesa e Fonética do

Português, do Francês e do Inglês, além de introduzir estudos de

Sintaxe (a frase e sua estrutura).

Esses programas não alteram a nomeação da disciplina, mas a

fazem significar de maneira diferente dos programas anteriores por

meio de uma reconfiguração que a designa de forma diversa. Cabe

destacar que entendemos também que diferentes designações podem

estar carregadas com um mesmo sentido ou com sentidos diferentes, o

que não modifica o objeto e sim as formas de apresentação (e de

representação) desse objeto, compreendemos então que,

independentemente de ser nomeada de maneira x ou y,

independentemente de ser designada de modo a ou b, a Linguística

apresentada nos programas disciplinares por nós analisados, a partir

do ano de 1965 é, sobretudo, uma Linguística que tem como ponto

de partida os estudos saussurianos. E, conforme Benveniste (1988, p.

34), “não há uma só teoria geral que não mencione seu nome”,

independentemente de aceitar ou negar os conceitos por ele postulados

no CLG.

No ano de 1967, observamos uma referência mais enfática à

Linguística saussuriana no final da listagem dos conteúdos, como

podemos observar: Linguística: Métodos e definições; A Semiótica:

Conceitos; Caracteres dos Sinais; Classificação filosófica dos

objetos; A divisão da Semiótica; A articulação; Os níveis de

articulação; Linguagem; O sinal Linguístico; O caráter arbitrário do

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 85

sinal; As formas motivadas; As formas de linguagem: o discurso; As

formas de linguagem: o dialeto, a norma, o sistema; A classificação

dos elementos linguísticos e formas de linguagem. A ciência da

linguagem: sincronia.

O ano de 1969 apresenta uma divisão mais próxima do que

conhecemos como uma Linguística saussuriana, trazendo elementos

do CLG, como as dicotomias saussurianas, e também estudos do

linguista Martinet, e uma Linguística pré-saussuriana. Neste ano, os

programas da disciplina são divididos em duas partes: a primeira

corresponde à Introdução à Linguística Geral, tendo o seguinte

conteúdo programático: “Língua, conceito, funções; Langue e Parole;

Sincronia e Diacronia; Língua como grupo e sons elementos da

segunda articulação; Língua como um grupo simbólico (elem. da 1ª

articulação); Os símbolos linguísticos são arbitrários; Língua como

forma de comportamento social; Língua e cultura; A língua é sistema-

paradigma e sintagma; As mudanças linguísticas; Correção

linguística; Níveis do discurso; Dialetos”; e a segunda parte é

destinada à História da Linguística, com os seguintes tópicos: “Os

hindus; Os gregos; Os latinos; A Idade Média; A Linguística

comparativa; Os neo-gramáticos; A linguística como ciência

Ferdinand de Saussure; Escolas Post-Saussurianas”.

Neste período, importantes eventos relativos aos estudos

linguísticos ocorriam em nosso estado, dentre os quais destacamos o I

Instituto Brasileiro de Linguística, que se realizou no ano de 1968, em

Porto Alegre, sob a responsabilidade acadêmica do Setor de

Linguística do Museu Nacional, por meio da figura do importante

linguista e pesquisador de línguas indígenas Aryon Dall'Igna

Rodrigues. De acordo com Scherer (2005, p.21):

[...] destaques do sul em tal evento são os professores Adelino

Martins e Leonor Scliar Cabral, cujas falas apresentavam títulos

que já anunciavam um discurso fundador do lugar de uma

linguística mais voltada ao ensino do que propriamente teórica.

Vejamos os títulos dessas conferências: As bases linguísticas

para o aprendizado de língua materna e os princípios da

Linguística e sua aplicação ao ensino de língua portuguesa.

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

86 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Nesse importante evento, inúmeros professores de diversas

instituições do estado estavam presentes, o que certamente influenciou

a Linguística desenvolvida naquele período. Também podemos

ressaltar o importante lugar conferido à PUCRS no que se refere à

formação de profissionais para atuarem na área de Linguística, entre

1968 e 1969, de modo que passaram 568 professores por um programa

de formação continuada em Linguística na instituição.

Já no âmbito regional das instituições que fazem parte do corpus

de nosso trabalho, destacamos, no ano de 1969, a realização do “I

Seminário Santa-Mariense de Orientação Linguística” que foi

ministrado pelos professores Eurico Back, Regis Berthi e Celso Luft.

A presença desses pesquisadores que, de certa maneira, estão voltados

a questões de Linguística, ensino e Língua Portuguesa (questões que

também podem ser observadas nos programas daquela época), a nosso

ver, repercutem o modo como a Linguística também foi

disciplinarizada no Sul, pois podemos afirmar que:

[...] enquanto disciplina de caráter acadêmico é, durante esse

período, uma disciplina ainda emergente, cujos

desenvolvimentos parciais em cada um de seus domínios (a

relação curricular pelo seu ementário, programa e bibliografia)

são muito desiguais, embora relativamente autônomos, cada um

na sua ordem discursiva (SCHERER, 2005, p.23).

Isso nos permite compreender a determinação histórica que afeta a

constituição dos programas em análise, além do fato de que não há

uma regularidade com relação ao conteúdo a ser ministrado.

3.2. Um segundo movimento: a publicação do CLG – e a

configuração de um disciplinar institucional

Os anos da década de 1970 apresentam um novo cenário aos

estudos linguísticos, marcado especialmente pela publicação em

Língua Portuguesa do CLG, como afirma Salum no prefácio à edição

brasileira, com “apenas 54 anos de atraso” (SAUSSURE, 2006,

p.XVIII). Se pensarmos na conjuntura de sua edição, podemos dizer

que ela é resultante de uma série de questões, tendo em vista atender

às demandas intelectuais que se instalavam no Brasil e às demandas

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 87

das universidades, pois, naquela década, a Linguística começou a ter

uma difusão maior junto aos Cursos de Letras.

Além disso, entendemos que essa publicação afetou o processo de

disciplinarização da Linguística, alterando a designação e a nomeação

da disciplina para que esta se “moldasse” de maneira a representar

capítulos do CLG. Encontramos, em meados da década de 70, no Rio

Grande do Sul, disciplinas intituladas, por exemplo, como Linguística

I, Linguística II, nas quais temos respectivamente uma linguística

introdutória e uma linguística saussuriana. Como podemos observar

em nossos arquivos, naquele período, a Linguística passou a estar

fortemente atrelada ao CLG e organizada conforme seu sumário. Uma

Linguística que traz em seu conteúdo programático - Introdução do

CLG, a primeira parte do CLG (Cap. I – Natureza do Signo

Linguístico e cap. II - Imutabilidade e Mutabilidade do Signo) e a 2º

parte do CLG (cap. IV – O valor linguístico e Cap. V - Relações

sintagmáticas e relações associativas). E, na sequência, em disciplina

intitulada Linguística III, constam conteúdos como: Glossemática; A

linguística Americana Moderna; Contribuições da Psicologia e

filosofia nos estudos da língua; 4º parte do CLG (Cap. III – Causas

da Diversidade Geográfica); 5º parte do CLG (Conclusão de

Saussure; Cap. II – A língua mais antiga e o protótipo, Cap. III As

reconstruções, Cap. IV O testemunho da língua em Antropologia e em

Pré-História e Cap. V – Famílias de Línguas e tipos linguísticos).

A nosso ver, essas modificações nos programas, resultantes da

publicação em Língua Portuguesa do CLG, vinculam-se ao caráter

fundador que essa obra possui, já que é considerada um marco para o

estabelecimento do domínio de memória da Ciência Linguística.

Inclusive apoiamo-nos em Chiss & Puech (1994) para considerar que

o CLG configura-se como um texto fundador, uma vez que:

Saussure a fonctionné comme «carrefour» dans un champ plus

largement différencié encore. En effet, les lectures de

«l'événement discursif» qu'a été l'édition du C.L.G. ont

contribué à élaborer la mémoire et l'horizon disciplinaire des

sciences du langage. Mais on sait bien qu'au-delà de la

communauté savante, c'est aussi dans la transmission

pédagogique et dans le domaine des «idées générales» et des

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

88 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

transferts de connaissances que s'opère cette élaboration9

(CHISS; PUECH, 1994, p.42).

Isso nos permite dizer que o CLG configura-se como um ponto de

ancoragem para outros discursos – em nosso caso, os programas da

disciplina de Linguística –, os quais, ao retomar tal postulado,

constituem-se tendo em vista certa filiação de sentidos e determinação

histórica. Desse modo, entendemos que as alterações compreendidas

na formulação dos programas decorrem, conforme Scherer e Petri

(2008), em razão de o campo disciplinar de uma ciência ser afetado

pela formação ideológica em que está inserido, afetando a história dos

conceitos e a história cultural do disciplinar.

Para entender o processo de constituição de um campo disciplinar,

devemos, pois, atentar à determinação ideológica e histórica que afeta

a conjuntura em que tal campo se insere, pois “cada época tem suas

convenções, valores, visões do mundo, formando um certo universo

linguístico-acadêmico, cujos elementos interdependentes mantêm

entre si relações associativas e funcionais, em constante processo de

mudança” (SCHERER, 2005, p.10). Isso se torna necessário na

medida em que devemos compreender e considerar, tanto a História

das Ideias quanto a história das instituições que ajudaram a constituir

dado campo científico ou dada disciplina.

3.3. Um terceiro movimento: a disciplina e seu movimento de

reconfiguração

Nos anos de 1980, os programas por nós analisados, continuam

com as mesmas nomeações de disciplina da década de 70, a saber,

Linguística I, Linguística II e Linguística III, porém com outra

configuração, designando essas disciplinas de maneira diferente. A

Linguística presente nos programas é reconfigurada, o que

alterna/altera é a designação, uma vez que a disciplina de Linguística I

passa a ter como objetivos: “Descrever a língua como um conjunto de

símbolos organizados para a comunicação humana” e subdividir seu

programa nas seguintes unidades: I) Visão geral da Linguística antes

de Saussure; II) História da Linguística na antiguidade; III) A

linguagem articulada; IV) As ideias de Ferdinand Saussure; V) O

Signo Linguístico; VI) Linguística e Gramática; VII) História da

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 89

Grafia; VIII) A Dupla Articulação da Linguagem segundo Martinet;

IX) As Três Gramáticas.

A disciplina de Linguística II objetivava que o aluno fosse capaz

de identificar as variações articulatórias dos sons da fala e as unidades

mínimas distintivas que operam na língua, quais sejam: I) Fonética

Histórica e Descritiva; II) Dupla Articulação; III) Confronto Fonético

das Línguas; IV) Transcrição Fonética Internacional; V) Fonética

Articulatória e Acústica. Já a Linguística III contemplava, na unidade

I, As três gramáticas, e, na unidade II, Apresentação das novas

tendências da linguística, enfocando linguística e psicologia; a

linguística e as ciências sociais; a linguística e a filosofia.

Tal efeito em que alterna/altera os programas de Linguística da

década de 80 aponta para a (re)configuração em torno da designação

que envolve essa discursividade, movimento esse que é, para nós, uma

condição necessária para o processo de disciplinarização, uma vez que

as representações disciplinares estão associadas ao processo de

produção do conhecimento e é a disciplinarização que organiza a

relação entre o nível da continuidade e da descoberta, bem como a

herança na perspectiva da inovação (CHISS; PUECH, 1995, p. 122).

Além disso, tal (re)configuração indica o fato de inscrever-se na

constituição dos programas uma identificação com determinados

saberes/dizeres, por meio dos quais se visa à consolidação e a

(de)marcação de dado domínio/teoria, que se configura a partir de

condições sócio-históricas e ideológicas específicas. Esse

funcionamento em torno dos programas está relacionado, a nosso ver,

à produção do conhecimento, pois envolve, igualmente, como enfatiza

Scherer (2008):

[...] um trabalho permanente de demarcação de lugar, trabalho

que envolve um policiamento incessante de fronteiras e uma

vigilância epistemológica ímpar de domínios, a fim de que

possamos manter as rédeas de nossa sujeição nos possíveis

deslizamentos de sentido na constituição do campo de saber em

que estamos postos (SCHERER, 2008, p.133).

Podemos entender também, por meio da constituição dos

programas selecionados, um processo de filiação teórica e de sentidos.

Para Orlandi (2002, p. 156), “quando os autores se filiam a uma teoria

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REFLEXÕES

90 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

e não outra, e quando fazem um recorte do objeto de conhecimento,

estão produzindo uma política de ciência com conseqüências para uma

política social”. A nosso ver, a partir do momento em que certos

saberes/dizeres passam a constituir determinado processo discursivo,

pode-se considerar que os mesmos estão (de)marcando um lugar em

certas condições de produção.

Entendemos que é, sobretudo, a filiação que permite aos saberes se

institucionalizarem e circularem em dada conjuntura sócio-histórica e

ideológica. Sobre essa reflexão em torno da filiação, retomamos Chiss

& Puech (1999), para os quais:

[…] proclamer des filiations ou des affiliations, c’est organiser

un champ de savoir homogène par un certain agencement de la

mémoire. Définir un objet propre dans ce champ homogène,

c’est indexer, identifier, décrire les principaux domaines de la

discipline où l’objet trouve sa place légitime. Fixer des tâches

programmatiques, c’est compléter, par la dimension projective,

la cohérence rétrospective et synchronique de la discipline. Le

point de vue disciplinaire, par quelque côté qu’on l’envisage,

nous confronte donc à la dimension temporelle (retrospection,

délimitation synchronique, projection) d’une représentation du

savoir10 (CHISS; PUECH, 1999, p.16).

Segundo estamos considerando, quando pensamos na

institucionalização e disciplinarização de determinado domínio de

saber, devemos levar em conta, sobretudo, a relação com o horizonte

de retrospecção, a partir do qual se pode compreender a maneira como

determinado campo disciplinar historiciza-se ao longo do tempo.

Cabe ressaltar ainda que, apesar de diferentes

(re)configurações, (re)nomeações, designações, presentes nos

programas disciplinares por nós analisados, independentemente da

orientação teórica predominante em diferentes momentos históricos

“Saussure é, sem dúvida – e não apenas na França, na Suiça e na

Europa –, o linguista mais lido, mais citado e mais comentado: os

livros consagrados a eles são dezenas, os artigos, milhares (ARRIVÉ,

2010, p.20).

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Amanda E. Scherer, Caroline Schneiders e Taís S. Martins

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 91

Para encerrar:

Há uma constante reconfiguração nos programas e ementas da

disciplina de Linguística que altera/alterna a sua designação, o que,

para nós, vem configurando um outro olhar para a constituição

disciplinar da Linguística e produzindo outros sentidos para essas

nomeações, assim como percebemos por meio da instituição da

Linguística I, Linguística II e Linguística III. A designação pode até

mesmo levar à alteração da nomeação e à subdivisão do campo

disciplinar, como ocorreu da passagem de Linguística para Linguística

I, II e III, ou – em outros momentos não abordados aqui – para

Linguística Geral e Introdução aos Estudos Linguísticos.

Entendemos que a constante alternância-alteração nos programas e

ementas, além da reconfiguração dos conteúdos a serem trabalhados, é

decorrente do “processo de disciplinarização”, pois “o discurso do

conhecimento, como qualquer outro, está em movimento e não se

deixa enclausurar, desenhando seus meandros no fluxo do saber”

(ORLANDI, 2002, p.62). Essas alternâncias-alterações nos programas

são determinadas historicamente, ou seja, as ideias vigentes sobre os

estudos da linguagem estão diretamente ligadas aos discursos que

tratam do saber sobre a língua, pois a produção do discurso disciplinar

está enredada, encravada, à ideologia, a qual se materializa através do

discurso e aponta para a sua historicidade, bem como para seus efeitos

de sentido.

Logo, refletir sobre a constituição e a formulação dos programas

referentes à disciplina de Linguística é relevante na medida em que

nos possibilita compreender o processo de institucionalização e

desenvolvimento desse domínio de saber em determinada conjuntura

sócio-histórica e ideológica. Tal compreensão nos conduz,

especialmente, aos movimentos de sentidos que se tem de uma época

para outra, bem como às ideias que circulam em determinada

conjuntura e que acabam voltando em espaços e momentos outros por

meio de outros sujeitos e instituições.

Se Saussure é uma espécie de “metabolização”, no dizer de Puech

(2013) do Curso e se esse acabou se tornando um objeto histórico

investido de valores culturais e políticos os mais variados, e

instituídos disciplinarmente, podemos inferir então que são os modos

de re-apropriação do saber do linguista e de suas aulas que irão ser

determinantes para o que Puech (2013) vai chamar de uma

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

92 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

“consciência disciplinar”. No contexto aqui analisado, mesmo que sob

uma forma quase que des-materializada, porque vamos encontrar aí

uma espécie de matriz disciplinar que pode ser re-investida,

transformada, estendida e re-inventada quando da criação dos

primeiros programas de pós-graduação no RS e na formação do

pesquisador. Tema para um próximo artigo.

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Palavras-chave : Linguística, Disciplinarização, Institucionalização

Key-words: Linguistics, Disciplining, Institutionalization

Notas

________________________

1 Tradução nossa: “A institucionalização da disciplina parece, pois, resultar de um

duplo movimento relativamente contraditório. De um lado, a ciência da linguagem é

socialmente útil: ela permite a conservação das línguas chamadas a desaparecer;

reconstrói aquelas que já estão desaparecidas; coloca como objeto as atividades

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SAUSSURE E OS ESTUDOS SAUSSURIANOS NO SUL: ALGUMAS

REFLEXÕES

94 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

linguísticas que constituem a maior parte de nossa vida social; e deve permitir os

progressos indispensáveis no domínio de ensino das línguas, etc. De outro lado,

nenhum dos resultados que ela propõe é diretamente acessível ao senso comum: nem

a realidade da mudança linguística continuada; nem a dignidade das línguas sem

escritura; nem a secundariedade da escritura em relação à língua falada...não são

‘truísmos’. A disciplinarização da ciência (sua institucionalização visível) é, pois, ao

mesmo tempo, um dever e uma estratégia quase defensiva”. 2 Tradução nossa: “a novidade é somente mensurável sobre o fundo de uma

compacidade que é aquela da disciplina em si: a fundação é necessariamente uma

refundação”. 3 Tradução nossa: “a disciplina é menos um estado de coisas que um processo sempre

já começado e recomeçado”. 4 Tradução nossa: “[...] na ordem empírica da sucessão, confunde-se com aquela do

‘precursor’/fundador, por dar lugar a uma apreensão unificada, homogênea do campo

da disciplina colocada na variedade de seus domínios, de seus ramos e de seus

interesses”. 5Tal domínio refere-se às pesquisas atuais que envolvem o discurso saussuriano,

sobretudo, a partir de seus manuscritos. 6 Tradução nossa: Temos que considerar que o “CLG” não constitui somente um

ponto de partida, mas também um ponto de chegada e encontro de teses e intuições

anteriores e que justamente por isso representa um momento essencial na história da

linguística. 7 Tradução nossa: A linguística europeia atual deve muito a Saussure. 8 Não vamos entrar aqui em tudo o que cada recorte implica na própria história do

fazer e na constituição do disciplinar na Linguística no Sul; nem tão pouco estudar

todas as entradas dos fatos históricos e das influências que se avolumam quando

instamos uma interpretação mais apurada de tudo o que compõe tal historicidade. 9 Tradução nossa: “Saussure funcionou como um ‘cruzamento’ em um campo ainda

mais amplamente diferenciado. Com efeito, as leituras de ‘acontecimento discursivo’

que teve a edição do C.L.G. contribuíram para elaborar a memória e o horizonte

disciplinar das ciências da linguagem. Mas sabemos bem que, para além da

comunidade científica, é também na transmissão pedagógica e no domínio das ‘ideias

gerais’ e das transferências de conhecimentos que se opera essa elaboração”. 10 Tradução nossa: “proclamar as filiações ou as afiliações, é organizar um campo de

saber homogêneo por um certo agenciamento da memória. Definir um objeto próprio

nesse campo homogêneo é indexar, identificar, descrever os principais domínios da

disciplina onde o objeto encontra seu lugar legítimo. Fixar as tarefas programáticas é

completar, pela dimensão projetiva, a coerência retrospectiva e sincrônica da

disciplina. O ponto de vista disciplinar, por qualquer lado que consideramos,

confronta-nos, pois, a uma dimensão temporal (retrospectiva, delimitação sincrônica,

projeção) de uma representação do saber”.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 95

DOSSIÊ

ENUNCIAÇÃO E SINTAXE

Este Dossiê reúne trabalhos voltados para a exploração de aspectos

da sintaxe a partir de uma análise semântica de linha enunciativa. Os

seus autores participam do Grupo de Estudos da Enunciação, sediado

na Faculdade de Letras da UFMG, desde o ano de 2002.

O Grupo foi criado no ano 2000, na Universidade Federal da

Paraíba – Campus de Campina Grande, hoje Universidade Federal de

Campina Grande, agregando mestrandos e bolsistas de graduação na

tarefa de desenvolver leitura avançada de textos em Semântica da

Enunciação e com isso produzir os fundamentos de uma abordagem

enunciativa das articulações sintáticas do português, na tentativa de

estabelecer um lugar de pesquisa em semântica da enunciação que

pudesse apresentar uma sustentação sintática para a constituição do

sentido. A principal entrada desse lugar de pesquisa foi o conceito de

lugar sintático.

Com a instalação do Grupo de Estudos na UFMG, as pesquisas

nesse viés foram adquirindo maior consistência, com a produção de

dissertações e teses voltadas para temáticas nesse recorte teórico. No

decorrer do amadurecimento do Grupo, a perspectiva de abordagem

foi adquirindo mais especificidade.

Nesse contexto, passamos a conceber a sintaxe como um campo

cruzado pelas regularidades orgânicas e pelas condições de

funcionamento da organicidade no acontecimento enunciativo. Nesse

sentido, a unidade sentencial se constitui pela relação entre uma

anterioridade de formas que funcionaram regularmente como

sustentação de outras unidades, acionada pelo campo do memorável, e

uma demanda de formação de uma nova unidade, advinda do

acontecimento enunciativo, e posta em cena pela atualidade do dizer.

Os lugares sintáticos se formam em diferentes modos nessa relação.

Acreditamos que a ocupação ou não dos lugares sintáticos obedece a

condições relativas a essa demanda, tendo em vista o acontecimento

enunciativo. Os trabalhos desse Dossiê caminham nessa direção.

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DOSSIÊ – ENUNCIAÇÃO E SINTAXE

96 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

O primeiro texto da seção tem como título Acontecimento

enunciativo e formação sintática. Na condição de coordenador do

Grupo de Estudos, apresentamos os principais pilares da perspectiva

teórica adotada nesse campo de pesquisa. No artigo, discutimos a

predicação, abordada na relação com o acontecimento enunciativo,

conceito desenvolvido por Guimarães (2005). A forma linguística é

concebida segundo razões enunciativas, tendo em vista suas condições

de articulação, dado o seu papel na constituição de uma unidade

sentencial, como base material para unidades de enunciação.

A seguir, temos três textos de professoras pesquisadoras de

instituições federais de Minas Gerais: Priscila Brasil Gonçalves

Lacerda, Luciani Dalmaschio e Elke Beatriz Felix Pena. Elas

concluíram mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em

Estudos Linguísticos da Instituição, sob nossa orientação, e são

membros ativos do Grupo de Estudos da Enunciação, sendo que a

primeira participa do Grupo desde a sua constituição na UFMG, ainda

na condição de bolsista de Iniciação Científica.

O artigo de Priscila Lacerda, intitulado Entre o material e o

simbólico: a conformação da referência no lugar de adjunto

adverbial, explora um dos aspectos desenvolvidos em sua tese de

doutorado, defendida em 2013, e está centrado no estudo de

formações adverbiais consideradas em contraste com formações

nominais. Nessa direção, ela defende a posição segundo a qual o lugar

sintático que abriga essas formações atua na construção do cenário de

referência da sentença, favorecendo a demarcação da perspectiva do

locutor na enunciação, tendo em vista o domínio semântico

memorável do predicador da sentença.

Em Condições de sustentação do fato gramatical “objeto verbal”

– por uma sintaxe de base semântica, Luciani Dalmaschio também

desenvolve aspectos da sua tese de doutorado defendida em 2013. No

texto, ela desenvolve perspectivas enunciativas da não-ocupação do

lugar de “complemento verbal”, configurando-se aquilo que ela

denomina de “silêncio sintático”. O eixo do trabalho está na

perspectiva de que as condições de ocupação desse lugar sintático são

determinadas pelos modos de enunciação específicos e genéricos, os

quais se manifestam em predicações centradas ou dirigidas.

Elke Pena, em Memória, acontecimento e ensino de sintaxe: o

exemplo-colmeia, igualmente desenvolve no artigo parte de sua tese

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 97

de doutorado, defendida em 2015. Ela analisa atividades de sintaxe em

livros didáticos do ensino médio, apontando aspectos que poderiam

proporcionar uma compreensão mais apurada do funcionamento da

língua caso fossem exploradas as condições enunciativas da

constituição dos lugares de sujeito e objeto nos enunciados

apresentados como objeto de análise para o aluno sob a forma de

exercícios. A partir disso, ela demonstra que o uso de enunciados

integrados tematicamente em blocos, designados como exemplos-

colmeia, seria bastante produtivo para o ensino de sintaxe.

O conjunto de artigos se encerra com a participação de Cármen

Agustini e sua bolsista Flávia Santos da Silva. A Profª Cármen

Agustini concluiu seu doutorado na UNICAMP, em Semântica da

Enunciação, e participou do Grupo, como bolsista de recém-doutor,

nos anos de 2003 e 2004. Atualmente, tem acompanhando os

trabalhos desenvolvidos no Grupo sob a forma de colaboradora. No

texto A frase como unidade de discurso. (N)as teorizações de Émile

Benveniste, as autoras discutem a noção de “frase” e o seu papel na

conversão da língua em discurso, no âmbito dos estudos de

Benveniste relativos à enunciação. Ele defende a tese segundo a qual o

sentido da frase é relacional, favorecendo o jogo das possibilidades de

emprego e ação. No sentido de especificar essa perspectiva

benvenistiana, elas mobilizam os conceitos de segmentação,

distribuição, integração e conexão em suas potencialidades

explanatórias do alçamento das entidades em unidades linguísticas.

Para fechar o Dossiê, temos a resenha produzida por Igor Caixeta

Trindade Guimarães, participante do Grupo na condição de

doutorando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos

da UFMG, onde também desenvolveu o seu mestrado. Ele analisa a

obra Da ordem das palavras nas línguas antigas comparadas às

línguas modernas: questão de gramática geral, de Henri Weil,

produzida na França no século XIX e traduzida e republicada pela

Editora da UNICAMP em 2015. O autor da resenha destaca aspectos

das ideias de Weil sobre a ordem das palavras na sentença, motivada

por fatores relativos à enunciação, constituindo-se dessa maneira

numa posição inovadora para a época. Daí sua importância para os

estudos enunciativos na atualidade.

Pretendemos, com a publicação deste Dossiê, apresentar uma

amostra da potencialidade dos estudos semânticos constituídos na

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DOSSIÊ – ENUNCIAÇÃO E SINTAXE

98 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

perspectiva da enunciação no Brasil, esperando que os trabalhos aqui

publicados contribuam para a compreensão da sintaxe da língua

portuguesa a partir de um olhar ainda não explorado no âmbito dos

estudos sintáticos atualmente em nosso País.

Luiz Francisco Dias

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 99

ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E

FORMAÇÃO SINTÁTICA

Luiz Francisco Dias

UFMG/CNPq

Resumo: Neste artigo, discutimos aspectos enunciativos da

predicação sintática. Buscamos demonstrar a importância da

abordagem enunciativa na compreensão das articulações de unidades

lexicais na constituição da sentença. Na nossa perspectiva, essa nova

abordagem das conexões sintáticas permite compreendermos melhor

o papel da significação no funcionamento da língua portuguesa,

especificamente na atualização das formações gramaticais da língua

em discurso.

Abstract: The main goal of this paper is to discuss aspects of syntax

predication. We wish to draw attention to the importance of the

enunciative approach in the comprehension of lexical items

articulation in their relation to sentence formation. From our

perspective, this new procedure of syntax connections allow us to

better understand the role of meaning within the functioning of

Portuguese Brazilian Language, particularly in the updating of

grammatical formation of language in use.

Introdução

O termo sintaxe admite duas concepções, que podem ser

facilmente encontradas, com poucas variações, nas obras de referência

em estudos sintáticos de línguas naturais. Ele é definido, seja como a

disposição de itens lexicais em períodos, sentenças e sintagmas, seja

como o estudo da constituição de sentenças e das relações entre as

suas partes1. A primeira concepção é relativa à organização da língua

e a segunda concerne ao olhar teoricamente constituído sobre a sua

estruturação.

Podemos vislumbrar uma questão perturbadora nesse quadro

definitório. Os olhares teóricos mais apurados da contemporaneidade

apontam conclusões diferentes sobre a maneira como a língua se

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

100 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

“organiza”. A disposição ou arranjo de itens lexicais pode ser parte

dessa organização, mas ela é bem mais complexa.

Da nossa parte, essa complexidade se revela na medida em que

concebemos a língua na sua ordem enunciativa, e não meramente na

organização componencial2. Isso significa que, para a abordagem das

formas linguísticas, tomamos em consideração fatos de linguagem

relativos ao conceito de significação concebido na historicidade.

Nessa direção, consideramos que o sentido não nasce na

factualidade da atualização do dizer, mas da relação que se estabelece

entre uma memória das discursividades que a enunciação evoca e a

atualidade em que se situa a pertinência do enunciado no espaço da

enunciação. Dessa maneira, a enunciação adquire um caráter de

acontecimento histórico.

Para isso, buscamos fundamentos em Bally, Benveniste e

Guimarães, no âmbito do modelo teórico de análise semântica

desenvolvido no Brasil, denominado Semântica da Enunciação ou

Semântica do Acontecimento.

Dado que o nosso foco estará na ordem da língua, e não na

organização, a questão inicial e básica que orientará a perspectiva

enunciativa não é aquela que a maioria dos manuais de sintaxe

abarcam, qual seja, a natureza do item lexical. Vamos tomar o item

lexical como unidade configurada na sua relação com uma classe

gramatical. Nessa condição, os itens lexicais, sem os devidos

refinamentos da lexicologia, são considerados como “palavra” e

“locução”, tendo em vista o seu pertencimento a uma categoria

gramatical3. Evidentemente, a circunscrição precisa desses itens passa

por uma zona de desconforto, no âmbito da qual brotam algumas

perguntas: interjeição é uma classe gramatical? Locuções adjetivas são

verdadeiramente locuções? Há clareza na diferenciação entre palavras

simples, palavras compostas, lexias complexas, expressões

idiomáticas? Essas indagações são legítimas para uma abordagem

semântica da materialidade sintática, mas não serão objeto deste

estudo.

Tendo em vista que o passo inicial do nosso trabalho, neste estágio,

não é a questão da identidade do item lexical, as perguntas básicas

seriam: qual a natureza das relações entre os itens lexicais? Em que se

assenta a agregação entre eles?

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 101

A questão mais relevante a ser levantada é a da constituição da

unidade sintática, isto é, a sustentação de uma agregação de itens

lexicais que se possa definir como regular e reconhecível, com

possibilidade de autonomia de enunciação.

Para a implementação do trabalho, inicialmente apresentamos

algumas abordagens que acreditamos ser relevantes em diferentes

períodos históricos, incluindo-se a contemporaneidade, voltadas para a

concepção de agregação sintática, natureza da predicação e

constituição da unidade sentencial. A seguir, formularemos a

concepção de forma linguística e formação nominal, que serão

fundamentais para a reflexão que fazemos em seguida, voltada para a

concepção de predicação e para um olhar sobre o funcionamento da

agregação sintática e da constituição da unidade sentencial, do ponto

de vista de uma semântica da enunciação.

1. Predicação e agregação sintática: traços diacrônicos

Longe da pretensão de traçar um percurso que configure um fio

histórico do pensamento sobre a constituição da unidade sintática,

mesmo porque não é o escopo deste trabalho, vamos pontuar algumas

posições que consideramos relevantes sobre a predicação no

desenrolar do tempo.

Em obra clássica do século II DC, encontramos uma explicação,

ainda que pouco precisa, relativa ao fundamento da unidade

sentencial. No entender do alexandrino Apolônio Díscolo, os casos

oblíquos “se conectam aos casos retos por meio de um verbo

interposto entre eles” (APOLONIO DISCOLO, Sintaxis, Libro I, 137,

tradução nossa)4. Pelo verbo, a ação do caso reto (nominativo) se

transmite ao oblíquo. Díscolo utiliza dois exemplos: “Teão maltratou

o homem” e “Um cavalo escoiceou o homem”. Em português, o

nominativo corresponde ao grupo nominal que, em linhas gerais,

exerce a função de sujeito, e o caso oblíquo corresponde ao

complemento verbal. A relação com o verbo é diferente nos dois

casos, ressalta Díscolo. O oblíquo está mais afastado do verbo do que

o nominativo, e não se trata de um afastamento “geográfico”. A

questão reside no fato de que a pessoa do oblíquo não é

necessariamente a mesma pessoa do verbo, ao passo que a pessoa do

nominativo necessariamente é a mesma pessoa inscrita na forma

verbal. Dessa forma, destaca APOLONIO DISCOLO (Sintaxis, Libro

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

102 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

II, 29, tradução nossa) em “Eu estimo ele” (Na modalidade formal,

“Eu o estimo”), “Eu” (caso reto) encontra-se em primeira pessoa, da

mesma forma que o verbo. Daí o fenômeno da concordância. Já “ele”

encontra-se em terceira pessoa. Outra observação se destaca na obra: a

construção do oblíquo está submetida ao nominativo, submissão essa

carreada pelo verbo. Isto significa que, da pessoa do nominativo, parte

o ponto de observação através do qual o oblíquo é constituído. Em

outros termos, o ponto de partida da estima, estando no nominativo,

situa necessariamente o oblíquo na condição de pessoa de recepção ou

“alvo” da estima.

Pelo que vimos, os casos indicam relações sintáticas, isto é,

conexão e distribuição dos itens lexicais na sentença, tendo em vista

os papéis de nominativos, oblíquos, e verbos. O importante a se

observar é que essas relações estão fundamentadas em algo que

passaremos a denominar “perspectiva de agregação”. O nominativo é

transmissor de ação (“Teão maltratou o homem”) ou ponto de partida

de uma estima (“Eu estimo ele”). Por sua vez, o oblíquo representa a

perspectiva de algo que podemos em linhas gerais traduzir como

“afetado”, “alvo”, isto é, uma contraparte dessa perspectiva de ponto

de partida, que representa o nominativo. O verbo estaria na posição

(posição de perspectiva, e não posição geográfica) de carrear a força

da proposição advinda do nominativo em direção ao oblíquo. Ao

verbo, portanto, caberia expressar a coesão das perspectivas dos dois

casos.

Vejamos um desenvolvimento dessa concepção de predicação.

Publicada em 1492, a Gramática de la lengua castellana, de Antonio

de Nebrija, apresenta o seguinte preceito: “Entre algumas partes da

oração, há determinada ordem quase natural e em conformidade com a

razão, na qual as coisas que por natureza são primeiras ou mais dignas

devem se antepor às seguintes, menos dignas”5. (ANTONIO DE

NEBRIJA, Gramática, libro 4, cap.2, tradução nossa). Por isso que, no

seu entender, dizemos “o céu e a terra” e “a luz e as trevas”, e não “a

terra e o céu” e “as trevas e a luz”, pois aquela, e não esta, é que seria

a ordem natural das coisas. Da mesma maneira, o nominativo tem

precedência sobre os outros casos. Ele o define como o caso pelo qual

as coisas são nomeadas, ou fazem ou padecem. Os outros casos se

definem pela noção de quem é proprietário de alguma coisa (genitivo),

de quem é beneficiário de alguma coisa (dativo), de quem padece

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 103

(acusativo) ou pelo qual chamamos alguma coisa (vocativo). Como no

espanhol não há morfemas sufixais para amparar os casos, as

preposições marcariam pelo menos dois deles: de, em “casa de Maria”

(genitivo) e a, em “Dei flores a Maria” (dativo). Dado que o

nominativo e o acusativo não são casos que sofrem a orientação por

preposições, o verbo adquire um papel de situar os dois casos nas suas

funções de agregação na sentença. Na medida em que um verbo passa

uma coisa para outra, tem-se por assente a existência de um ente

nomeado. Tendo se constituído esse ponto de nomeação, há a emissão

de algo (nominativo), projetando-o à recepção (acusativo).

Assim, temos aqui as bases da perspectiva de agregação na

constituição da sentença em Nebrija. A tipificação de mobilidade

social, que era apreendida na sua minimalidade por Díscolo, a partir

do olhar para a língua grega, encontra uma expansão em Nebrija, ao

observar a língua castelhana. Essa tipificação é concebida no seu

caráter coesivo, pois as perspectivas da mobilidade humana latentes

nos casos se harmonizam: o ponto de vista do que faz e emite, do

beneficiário do gesto da emissão, do afetado por ele, da recepção do

emitido, da posse e do destinatário. Essa coesão das perspectivas de

mobilidade social sustentam a agregação dos itens lexicais na

constituição da unidade sentencial, tanto em Díscolo quanto em

Nebrija. Este, como vimos, aborda essa mobilidade como algo da

natureza das coisas na relação com o homem.

A predicação, nessa perspectiva de agregação sintática, encontra-se

embutida na rede de mobilidade social. Ela estaria na passagem entre

um ponto e outro da perspectiva: entre o fazer e emitir (do caso

nominativo) e o sofrer ou ser afetado por essa ação (do caso

acusativo). Trata-se de uma predicação acional, constituída a partir

dessa mobilidade coesiva latente nos casos. Atualmente, nós

encontramos resquícios dessa concepção de predicação quando

alguém define sujeito como “o ser que pratica a ação”, extensão

empobrecida do antigo nominativo; o predicado como “ação praticada

pelo sujeito”; e o objeto como “o resultado da ação verbal”, também

uma extensão empobrecida do antigo acusativo. A não ser em

publicações gramaticais periféricas, essas concepções não estão nas

conceituadas gramáticas tradicionais, apesar de boa parte dos falantes

do português brasileiro as apresentarem como resposta quando

solicitada a definir sujeito gramatical, predicado ou objeto verbal.

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

104 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Há que se observar, no trecho da gramática de Nebrija que

transcrevemos acima, uma informação emitida sobre o nominativo

que se constitui como elemento importante para uma mudança na

concepção de predicação vários anos depois: o nominativo é caso

“pelo qual as coisas são nomeadas”. Portanto, no caso relativo ao

sujeito da sentença, instala-se uma nomeação.

No século XVII, em que muitas produções intelectuais receberam

características racionalistas, o nome e a nomeação passam a

protagonizar a concepção de predicação no pensamento sobre a

linguagem. No entender de Foucault, o conhecimento nos séculos

XVII e XVIII era “profundamente nominalista.” (FOUCAULT, 1966,

p.409). Com efeito, o conceito de predicação presente em Arnauld e

Nicole (1662), no âmbito do que se cunhou de Gramática de Port-

Royal, demonstra uma tônica acentuada no nome como “ponto de

partida” da predicação. Eles defendem a tese segundo a qual a

linguagem é uma prova da racionalidade humana, e a constituição

sintática se confunde com o próprio “mecanismo” do pensamento,

fundado no juízo humano, na relação com o mundo, configurando-se

uma operação do espírito. Na constituição sintática, o objeto do pensar

encontra-se no sujeito da sentença, e o juízo está no predicado.

Os nomes, segundo eles, são “palavras destinadas a significar,

tanto as coisas, como os seus modos de ser”6 (ARNAULD e NICOLE,

1662, p.96, tradução nossa). No entanto, afirmam eles, os homens

“tinham mais necessidade de criar palavras que expressassem a

afirmação, que é a principal forma de nosso pensamento, do que criar

palavras que expressassem objetos de nossos pensamentos.”7

(ARNAULD e NICOLE, 1662, p.101, tradução nossa). As palavras

que expressam a afirmação são os verbos.

A base de toda predicação encontra-se no verbo ser, em terceira

pessoa do singular: é. Portanto, em qualquer predicado, como “Pedro

vive”, haveria segundo Arnauld e Nicole (1662, p.101, tradução

nossa), uma afirmação subjacente do tipo “Pedro é um ser vivente”.

Por isso, ele é chamado de “verbo substantivo”, isto é, um verbo que

participa do significado dos nomes, uma vez que ele expõe aquilo que

o nome “abriga”. Se Pedro abriga o atributo “ser vivente”, a forma

verbal “é” faz o papel de afirmar isso, em outros termos, de dar voz

àquilo que o nome apresenta como latente, ou potencial, ao realizar a

ponte entre “Pedro” e “ser vivente”. Dessa maneira, concluem os

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 105

autores: “o verbo intrinsecamente marca a relação que nós fazemos no

nosso espírito entre dois termos de uma proposição”8 (ARNAULD e

NICOLE, 1662, p.101, tradução nossa). Isso significa que há um

verbo de ligação, de natureza substantiva, que sustenta toda

predicação, e é essa relação que sustenta, por sua vez, a relação entre

os dois termos básicos da sentença: o sujeito e o predicado. O

fundamento da sintaxe está, pois, no fundamento da própria razão

humana.

Passamos, pois, da predicação acional, fundada numa tipologia de

ações, da gramática antiga, para a predicação racional, fundada na

razão do pensamento, na tradição da gramática de Port-Royal.

No século XIX, mais especificamente no seu final, uma

transformação no modo de conceber a linguagem ganha corpo nos

estudos da linguagem, e com ele, uma nova perspectiva de abordar a

sintaxe e a predicação surge nas gramáticas.

Foucault (1966, p.420) traduziu essa transformação nestes termos:

“A linguagem só entrou diretamente e por si própria no campo do

pensamento no fim do século XIX”.

Há uma rarefação do poder da representação na linguagem, e a

gramática, na medida em que se desvincula da filosofia, adquire a

alcunha de “gramática científica”. Os fundamentos dessa

caracterização podem ser encontrados ainda em Foucault:

(...) a análise interior da língua faz face ao primado que o

pensamento clássico atribuía ao verbo ser: este reinava nos

limites da linguagem, ao mesmo tempo porque era o liame

primeiro das palavras e porque detinha o poder fundamental da

afirmação; marcava o limiar da linguagem, indicava sua

especificidade e a vinculava, de um modo que não podia ser

apagado, às formas do pensamento. A análise independente das

estruturas gramaticais, tal como praticada a partir do século

XIX, isola ao contrário a linguagem, trata-a como uma

organização autônoma, rompe seus liames com os juízos, a

atribuição e a afirmação. A passagem ontológica que o verbo

ser assegurava entre falar e pensar acha-se rompida; a

linguagem, desde logo, adquire um ser próprio. E é esse ser que

detém as leis que o regem. (FOUCAULT, 1966, p.408-409)

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

106 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Uma breve análise de duas gramáticas (uma americana e uma inglesa)

desse período demonstra uma nova perspectiva na abordagem da

predicação, no espírito daquilo que Foucault afirmou.

Em Kimball (1900, p.7, tradução nossa), encontramos uma

formulação para o conceito de sentença que já demonstra essa nova

ordem de abordagem: “Se queremos comunicar nosso pensamento,

nós ordinariamente o expressamos em palavras, e a esta expressão

verbal do pensamento denominamos sentença.”9 Vejamos que não se

trata mais de representar o pensamento, mas de expressá-lo em

linguagem. Nesse sentido, o conceito de comunicação entra em cena.

Trata-se agora de conceber a predicação na ordem do que se

expressa e do ato de comunicar. Nessa ordem, duas expressões se

relacionam, sendo uma incidindo sobre a outra: essa incidência

configura o fundamento da agregação sentencial. Assim, o sujeito é

um assunto sobre o qual incide uma asseveração. Em Sweet, pode-se

ler o seguinte:

Sujeito e predicado podem ser reunidos de diversas maneiras.

No exemplo acima, a conexão entre eles é afirmada (asserida

como um fato) – tal como na sentença a terra é redonda, que é

por isso denominada sentença “afirmativa”; mas a conexão

pode também ser asserida em forma de dúvida, como em

possivelmente a terra é redonda, ou negada, como em a terra

não é plana, e a relação entre sujeito e predicado ser modificada

de várias outras maneiras. (SWEET, 1891, p.17, tradução

nossa)10

Como podemos observar, o que liga o sujeito ao predicado é um

ato de afirmar, duvidar, negar. Dessa maneira, sujeito e predicado são

inteiramente da ordem da linguagem (confirmando a visão de

Foucault apresentada acima): “Assim, numa sentença como a terra é

redonda, nós chamamos terra a palavra-sujeito, redonda a palavra-

predicado.” (SWEET, 1891, p.17, tradução nossa)11. Dessa maneira, o

próprio dizer conduz a relação do predicado com aquilo que se

enunciou como sujeito. Diferente daquilo que vimos nas

configurações da predicação anteriores, em que o objeto do dizer é

que configurava a relação do predicado com o sujeito.

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 107

No Brasil, Júlio Ribeiro, também no final do século XIX,

desenvolve na sua gramática uma concepção de predicação no mesmo

viés:

Sentença é uma coordenação de palavras ou mesmo uma só

palavra formando sentido perfeito, ex.: As abelhas fazem mel—

Os cães ladram—Morro.

(...)

Por “formar sentido perfeito” entende-se – dizer alguma cousa a

respeito de outra de modo completo. (RIBEIRO, 1881, p.221)

Vimos que neste período não se concebe mais uma sustentação de

completude fora do próprio dizer. Dessa maneira, estaria no “modo de

dizer” a chave da completude a que se refere Ribeiro. Isso vai resultar

em conceitos de sujeito e predicado situados numa relação

tautológica:

Toda a sentença consta de dous elementos:

1) o que representa a cousa a cujo respeito se falla: chama-se

sujeito.

2) o que representa o que se diz a respeito do sujeito; chama-se

predicado.

(RIBEIRO, 1881, p.222)

Na análise sintática, a identificação de sujeito e predicado depende

de um olhar voltado para a asserção, no sentido de se identificar um

ente pelo que se fala dele. Esse conceito de predicação é o que

permanece até hoje nas gramáticas concebidas como “tradicionais”.

Se, na predicação acional, a perspectiva de agregação dos

constituintes da sentença está situada na mobilidade coesa dos casos, e

se, na perspectiva racional, essa agregação é sustentada naquilo que se

considera o “mecanismo do pensamento”, na gramática científica, a

perspectiva de agregação se concentra naquilo que se expressa, seja

afirmando, interrogando, duvidando, ordenando. Isto é, ela se

concentra nas próprias direções que se toma na comunicação.

Teríamos então uma perspectiva incidente de predicação, tendo em

vista que nesta predicação expressa-se algo que incide, recai sobre

uma base dessa expressão, que é o sujeito.

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

108 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

No entanto, apesar dessa mudança acentuada de paradigma na

predicação no final do século XIX, o predicado continua sendo

concebido a partir de uma inflexão sobre o sujeito. Passamos da

inflexão sobre uma entidade de emissão (de ações, principalmente),

para a inflexão sobre uma entidade nominada, chegando a uma

inflexão sobre uma entidade afirmada.

Em todas essas concepções, o predicado é captado a partir de um

ponto de partida que se encontra no sujeito, seja porque o sujeito é o

lugar da origem da ação/transmissão, seja porque no sujeito instala-se

um lugar de identificação de um ente pela nomeação, ou seja porque

no lugar do sujeito estaria um ente visado por um ato comunicativo,

ou motivador de uma afirmação. Constituir uma sentença, nos três

casos, seria reagir à apreensão de uma entidade. Predicar é um gesto

essencialmente de significação na relação da linguagem com o mundo,

seja passando pela transmissibilidade, seja passando pela razão, seja

passando pela comunicação.

A constituição dos estudos gramaticais na primeira metade do

século XX recebeu influências desse quadro instalado no final do

século XIX. Ainda buscamos em Foucault uma diretriz para a

compreensão ampla desse quadro. No seu entender, quando a unidade

da gramática geral, de viés racionalista, se dissipou, “a linguagem

apareceu segundo modos de ser múltiplos, cuja unidade, sem dúvida,

não podia ser restaurada.” (FOUCAULT, 1966, p.419). Sob a

influência direta das teses de Saussure, publicadas na segunda década

do século XX, encontramos em Bloomfield uma perspectiva de

abordagem da sintaxe que tenta lidar com uma visão de agregação

sintática que se destaca pela desvinculação de uma matriz semântica

na constituição da unidade sentencial.

Em Bloomfield, o conceito de “forma” ganha espaço no estudo

sintático, como uma marca do olhar sobre a língua, como um modo de

ser da linguagem captado por um olhar estruturalista. Uma sentença é

concebida como a forma livre de mais alta instância, porque tem os

sintagmas como categorias intermediárias, constituídas na reunião de

palavras (formas livres mínimas, na concepção de Bloomfield). A

construção sintática se constitui no ordenamento de sintagmas, que

ocupam posições na sentença: “As posições em que as formas

ocorrem são suas funções. Assim, a palavra João e o sintagma o

homem apresentam as funções de ‘ator’, ‘objetivo’, ‘nome predicado’,

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 109

‘meta determinada por preposição’ e assim por diante.”12

(BLOOMFIELD, 1926, p.159, tradução nossa). Dessa maneira, os

significados “ator”, “meta”, etc se associam a classes de forma,

constituindo as categorias da língua.

Há que se observar o seguinte: aquilo que Bloomfield chama de

significado é na verdade significado de função (functional meaning).

Os significados de ator e de alvo, por exemplo, são funções

desempenhadas na sentença. Em “o instrutor atingiu o aluno” e “o

aluno atingiu o instrutor”, temos o sintagma “o instrutor”

apresentando dois significados: o de ator, no primeiro exemplo, e o de

alvo, no segundo.

Na perspectiva apresentada em Bloomfield não há mais a

concepção de um predicado constituído na inflexão sobre um sujeito,

como elemento chave e gesto primordial da constituição da sentença.

O que sustenta a unidade sentencial é um enredo13 mínimo, em que

formas se associam a funções de “personagens” desse enredo: x (ator),

y (beneficiário), z (instrumento). Os itens lexicais, na medida em que

participam desse enredo mínimo, se distribuem em predicações

reccionais14 localizadas, sem um lugar de inflexão que possa produzir

um ponto de partida na estruturação da unidade sentencial. Em

Bloomfield, uma sentença tem unidade porque ela espelha esse enredo

mínimo. Trata-se de um enredo que se constitui por um jogo

posicional na distribuição dos itens lexicais. E sendo assim, as

possibilidades do jogo posicional se efetivam na horizontalidade dos

itens da sentença.

Várias perguntas se colocam frente a uma abordagem como essa, e

uma delas se destaca: qual o limite desse jogo posicional? Que

enredos ele aceitaria (ou não aceitaria) como sustentação de uma

unidade de língua? Quais os limites enunciativos desse enredo? As

questões estão relacionadas com um modo de conceber a significação

extremamente débil. Com ele, Bloomfield projeta uma sustentação da

sentença centrada unicamente no seu espaço interno. Nenhuma

relação com a sua exterioridade é concebida, como também não se

vislumbra nenhuma relação entre a sentença e a língua.

2. Predicação e agregação sintática: traços contemporâneos Essa debilidade do semântico nos estudos sintáticos, resultando em

rarefação de sustentação da unidade sentencial no funcionamento da

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

110 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

língua, progrediu em magnitude, atingindo seu ápice no

posicionamento exacerbado de Chomsky dos anos 1960, quando

defendeu a normalidade sintática da famosa sentença “Ideias verdes

incolores dormem furiosamente15”, cuja possibilidade de enredo

causou arrepios em muitos sintaticistas.

Um dos mais densos e completos manuais de sintaxe publicados na

contemporaneidade (CARNIE; SATO; SIDDIQI, 2014) reunindo

sintaticistas conceituados e temas centrais da abordagem gramatical,

apresenta, em um dos seus textos, o título “A história da sintaxe” (The

history of syntax), de autoria de Peter W. Culicover. O texto se inicia

afirmando que desde milhares de anos se registram pensamentos sobre

a sintaxe e descrições sintáticas. No entanto, afirma ele, “do ponto de

vista da teorização sobre a sintaxe, o que interessa aqui [no contexto

do manual], o ponto inicial crítico é a obra Estruturas sintáticas, de

Chomsky (1957).”16 (CULICOVER, 2014, p.465, tradução nossa). A

dicotomia entre o pensamento sobre a sintaxe e teorização sobre a

sintaxe constitui-se em um corte normativo cujo efeito no manual é o

de situar a história da sintaxe a partir daquilo que o próprio livro

recorta como pertinente para a história do campo em que abriga os

trabalhos.

Do ponto de vista da predicação, nos primeiros anos da

constituição do modelo básico de sintaxe, de princípios gerativistas,

mantém-se a perspectiva aberta com os estudos estruturalistas, no

sentido de destituir da predicação um ponto de partida no estatuto da

unidade sentencial. No entanto, por força das teses de Chomsky

(1968) sobre a relação entre a linguagem e a mente, a apreensão da

constituição sintática adquire uma verticalidade que se afasta em

muito da horizontalidade da abordagem bloomfieldeana. Além disso, a

partir da década de 1980, Chomsky (1981) incorpora ao modelo os

casos abstratos e a estrutura argumental.

A incorporação dos casos nominativo, acusativo e oblíquo ao

modelo veio resolver a instabilidade que o arcabouço sintático

apresentava. A questão chave estava justamente no fato de que boa

parte das línguas, como o português, apresenta sintagmas nominais

(ou DP- Determiner Phrase) que não se diferenciam formalmente

entre eles e podem assumir posições sintáticas distintas:

(1) O diretor cedeu o secretário ao presidente

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 111

(2) O secretário ao presidente cedeu o diretor

(3) Ao presidente cedeu o secretário o diretor

A distribuição desses DPs nas posições dos diagramas arbóreos

sem uma ancoragem de atribuição denunciava uma etapa intuitiva na

constituição do modelo. A solução veio da transferência de três peças-

chave do sistema de casos para o modelo: nominativo (“o diretor”),

acusativo (“o secretário”) e oblíquo (“ao presidente”).

Eles funcionam como balizas na distribuição dos DPs, a partir da

qual se configuram as posições: nominativo atribuído pelo módulo

flexional (IP), sujeito à concordância, acusativo atribuído pelo núcleo

verbal (vº), e o oblíquo atribuído pela preposição. Associada à

atribuição de caso, há a atribuição de papéis temáticos a partir da

grade temática do verbo. No caso em pauta, o verbo “ceder” é um

predicador que agrega três argumentos: agente (“o diretor”), meta (“o

secretário”) e beneficiário (“ao presidente”).

Evidentemente, o arcabouço explicativo não se resume à

participação de casos abstratos e papéis temáticos na distribuição das

construções nominais. Eles constituem determinadas condições para

movimentos de constituintes no contexto da explicação do percurso

gerativo de uma sentença. Esse percurso se completa com a passagem

por um módulo fonológico e por um módulo lógico, sendo que este

último participa do modelo global apenas como um filtro, externo,

portanto, do coração do modelo (módulo sintático), onde é concebida

a constituição das sentenças.

Como se observa, não há lugar para a inflexão de um predicado

sobre a construção nominal em nenhuma das etapas do percurso

gerativo de uma sentença.

Contemporaneamente, encontramos abordagens resistentes a essa

perspectiva, a saber, a perspectiva de que a predicação é uma relação

com argumentos considerados como participantes de uma

atividade/evento/processo denotado pelo verbo. Algumas perspectivas

de caráter funcionalista, que por sinal não se encontram incluídas na

história da sintaxe apresentada no manual de referência a que

aludimos acima, não abrem mão da perspectiva “inflexionista” de

predicação.

Os trabalhos de Halliday, um dos mais conceituados funcionalistas,

aprofundam a abordagem da sintaxe no âmbito da comunicação (já

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

112 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

esboçada no final do século XIX) e da interação entre os falantes de

uma língua natural. A formulação a seguir condensa os traços de uma

agenda de pesquisas nessa direção teórica:

Nós nos referimos à língua (i) como texto e como sistema, (ii)

como som, como escrita e como formulação, (iii) como

estrutura – configurações de partes e (iv) como possibilidade –

escolhas entre alternativas. Essas são algumas das diferentes

formas em que uma língua se apresenta quando começamos a

explorar a sua gramática em termos funcionais, isto é, do ponto

de vista de como ela cria e expressa a significação.17

(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004, p.19, tradução nossa)

Como podemos observar, trata-se de abordar a gramática no âmbito de

um amplo projeto de análise. O estudo da articulação e agregação

sintáticas, incluindo-se aí a predicação, integra-se nessa agenda de

pesquisa.

Na língua, a categoria sentencial é afetada por três linhas de

significação: o sujeito, o tema e o ator. Cada uma delas faz parte de

uma configuração funcional diferente. Podem estar coincidentes ou

não em um mesmo sintagma nominal, como na pequena narrativa

abaixo:

Eu peguei a primeira bola (a). Eu fui batido pela segunda (b). A

terceira eu parei (c). Pela quarta, eu fui nocauteado (d)18.

(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004, p.59, tradução nossa)

Na sentença (a), o sintagma representado pelo pronome “Eu” é o

sujeito, o tema e o ator, ao mesmo tempo. Já em (b), o ator está

representado no sintagma “segunda (bola)”, sendo “eu” tema e sujeito.

Por sua vez, em (c), o tema é a “terceira (bola)”, sendo “eu” o sujeito e

o ator. Por fim, em (d), “pela quarta (bola)” representa tema e ator,

sendo “eu” o sujeito.

Nesta gramática, cada uma das três linhas compõem vertentes

separadas da significação geral da sentença, e funcionam na estrutura

sentencial como uma mensagem (o tema), uma representação (o ator)

e uma interação (o sujeito). Por sua vez, cada uma dessas

representações se liga a uma das três grandes metafunções da

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 113

linguagem: textual (sentença como mensagem), experiencial (sentença

como representação) e interpessoal (sentença como evento interativo).

(HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004, p.61).

Especificamente, a agregação sintática básica, responsável pela

unidade gramatical da sentença, é concebida a partir da visão de

sentença como modo. Sendo a sentença uma unidade interacional,

considerá-la como modo gramatical significa observá-la do ponto de

vista da maneira como ela se apresenta numa relação de interação. Ela

pode se apresentar no modo gramaticalmente considerado indicativo,

sob a forma de afirmação, interrogação; no modo subjuntivo, como

suposição, no modo imperativo, como ordem. O modo consiste de

duas partes: o operador finito e o sujeito. (HALLIDAY e

MATTHIESSEN, 2004, p.111).

O operador finito (que é parte do grupo verbal) compreende, na

língua portuguesa, o aparato de sufixos morfológicos cuja função é de

fazer finita a proposição. Quando o verbo sai do infinitivo e é

conjugado, ele adquire pontos de referência no tempo da enunciação,

isto é, no contexto do evento de fala. Ele se acomoda à dêixis

interpessoal, “situando o evento interativo no espaço semântico que é

aberto entre o falante e o ouvinte.”19 (HALLIDAY e

MATTHIESSEN, 2004, p.116, tradução nossa).

Tendo em vista o espaço semântico aberto entre os interlocutores,

reais ou virtuais, o sujeito (um grupo nominal) funciona na estrutura

da sentença como uma base dessa interação entre interlocutores. Dada

a sentença (1), analisada acima, qual seja, “o diretor cedeu o secretário

ao presidente”, e considerada como “modo”20, o finito (tempo e

número do verbo “ceder”) especifica a referência de afirmação de algo

que ocorreu no passado. Frente a isso, o sujeito “o diretor” especifica

a entidade pela qual os interlocutores podem discutir a validade ou

não dessa referência projetada pelo finito. Por isso, o sujeito é

considerado uma base interacional. Na ocorrência em pauta, a

validade da cessão do secretário ao presidente recai sobre o diretor,

sendo este, pois, o sujeito. Ele seria o responsável pelo funcionamento

da sentença como um evento interativo: “Ele [sujeito] carrega a

responsabilidade modal; isto é, a responsabilidade pela validade do

que está sendo predicado (afirmado, questionado, ordenado ou

oferecido) na sentença.”21 (HALLIDAY e MATTHIESSEN, 2004,

p.119, tradução nossa)

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

114 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

A predicação é concebida como uma relação interpessoal e não

experiencial, isto é, não se trata de considerar o sujeito como prova da

verdade ou da falsidade da sentença do ponto de vista de uma relação

referencial, mas da validade do predicado para os interlocutores no

espaço semântico da interlocução.

Além do modo (sujeito e finito), que formam a agregação básica da

sentença, há ainda o predicador (verbo sem os sufixos flexionais), o

complemento e o adjunto, configurando a completude sentencial.

Por essa perspectiva, teríamos uma predicação modalizadora. Em

outros termos, a agregação básica de uma sentença se dá na medida

em que o locutor apresenta ao outro aquilo que diz a partir de um

modo de interlocução.

3. A unidade sentencial e a questão da significação

Dentre as possibilidades de se estabelecer uma linha de diferença

entre as perspectivas de predicação que se constituíram até o final do

século XIX e essas que foram concebidas a partir da segunda metade

do século XX, diríamos que a questão da representação foi um

elemento decisivo nesse corte, conforme apontou Foucault.

Até o final do século XIX, constituir uma sentença seria se situar

frente à apreensão de uma entidade. Predicar era um gesto

essencialmente de significação na relação da linguagem com o mundo,

seja passando pela transmissibilidade, a partir de uma entidade de

emissão, seja passando pela razão, a partir de uma entidade de

nomeação, seja passando pela comunicação, a partir de uma entidade

de afirmação.

Sem a sustentação da representação do real, Bloomfield intenta

projetar uma abordagem sintática com forte sustentação na ordem da

estruturação formal, expondo-se, porém, à debilidade do suporte

semântico que pudesse explicar a agregação sintática.

Como pensar a significação fora dos eixos representacionais,

centrados nos paradigmas da ação, da razão e da asserção? A busca

por algo propriamente da natureza da linguagem passou pela noção de

“evento”, que é concebida diferentemente nos paradigmas formais e

funcionais, tornando-se um modo de lidar com a exterioridade da

linguagem sem o suporte direto da representação.

Essa noção de evento apresenta-se como um ponto determinante na

diferença de abordagem da predicação nos dois modelos de análise

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 115

sintática na contemporaneidade aqui apresentados. O modelo formal

privilegia traços e propriedades, com vistas à distribuição de posições

estruturais. Nesse contexto, o evento é concebido internamente ao

aparato da estruturação, a partir de traços categorizados do

conhecimento que o verbo agrega em si, proporcionando os

argumentos. As práticas comunicativas são reduzidas a uma

condensação controlável no aparato de descrição.

O modelo formal não leva em conta o uso, e pouco contribui para

a compreensão da relação entre linguagem e exterioridade, tendo em

vista o compromisso de proporcionar uma explicação para o

funcionamento da linguagem na mente. A preocupação com o

complexo aparato da verticalidade do modelo oblitera uma discussão

mais detida sobre a natureza das construções nominais e da

predicação, que fica reduzida à relação entre o verbo e um quadro

tipológico de argumentos, sustentado em um mapeamento cognitivo

da experiência social. O caráter de predicação está centrado

unicamente no papel distribuidor do verbo, resultando na realidade em

um esmaecimento do seu conceito.

Por outro lado, o modelo sistêmico-funcional de Halliday concebe

o evento na relação dos protagonistas do uso da língua e trabalha com

uma hipótese de compreensão da relação entre linguagem e sociedade,

fundamentada na interação dos usuários em perspectiva de

comunicação.

Trata-se de outra natureza de verticalidade: o uso. A forma é

concebida, em perspectiva pragmática, na sua condição de adequação

e otimização discursiva. O funcionamento de práticas linguísticas

explica ordenações e reordenações sintáticas. A exterioridade é a

prática da linguagem, o jogo da interação entre falante e ouvinte.

O conjunto das posições que apresentamos, mesmo que limitado a

algumas saliências na história da sintaxe, revela que as abordagens são

recortadas por diferentes modos de conceber a significação, ou mesmo

de afastá-la, nos estudos sintáticos. Vimos que a significação foi

identificada com a natureza das ações humanas, o pensamento

racional, asserção do ser, propriedades denotacionais e modos de

interação.

Um dos cernes da diversidade de abordagens que vimos acima está

na natureza das construções nominais. O ponto de partida da nossa

empreitada frente a esse quadro é uma visão enunciativa da construção

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

116 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

nominal, cujo conceito foi apontado na revisão das abordagens acima

como palavra-sujeito, sintagma nominal, DP, grupo nominal ou

simplesmente “nome”.

Essa diversidade é reveladora de um lugar de perguntas latentes.

Acreditamos que ainda há espaço para perguntas como: o que são a

predicação, o sujeito, o predicado? E ainda, qual a natureza da

agregação sintática capaz de produzir uma unidade sentencial?

Não vamos apresentar, neste estudo, um conceito acabado para

cada um desses objetos sintáticos. Pretendemos apresentar um recorte

de reflexão sobre a língua e a significação no qual esses objetos

podem receber um novo tratamento teórico.

Com a problematização das construções nominais, estaremos

definindo um olhar sobre a significação e o problema da relação entre

linguagem e exterioridade do ponto de vista de uma semântica da

enunciação.

4. Enunciação e formação nominal

A base das construções nominais está relacionada a uma

“inquietude” constitutiva do dizer, ou “inquietude enunciativa”.

Vamos buscar em Bally (1965), uma reflexão que apresenta os traços

iniciais dessa noção, e ao mesmo tempo indica os vieses da direção

que estamos tomando. Os fundamentos da linguagem, que, no

entender de Bally, seriam os próprios fundamentos da comunicação,

encontram-se no conceito de “reação”. Quando enunciamos um

pensamento, estamos reagindo a uma representação, sob a forma de

uma constatação, de uma apreciação ou de um desejo. Observemos

que essa perspectiva se encontra muito distante da visão ainda

corrente em parte dos estudos semânticos, segundo a qual enunciar é

formular propriedades da realidade. Além disso, o conceito de

pensamento de Bally não é aquele do século XVII. Trata-se aqui de

algo como “um vir a ser enunciado”, e não um desdobramento da

racionalidade humana. Tomemos as palavras de Bally, no sentido de

melhor compreender a sua perspectiva:

[pensar] é então julgar que algo é ou não é; ou avaliar que algo

é desejável ou indesejável; ou enfim desejar que algo seja ou

não seja. Nós acreditamos ou não acreditamos que esteja

chovendo; duvidamos que esteja chovendo, nos alegramos ou

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 117

nos afligimos com a chuva; ou esperamos que chova ou não

chova22. (BALLY, 1965, p.36, tradução nossa)

O pensar, em condição de enunciação, não se reduz a uma

representação, abstraída de um sujeito que pensa, no entender de

Bally.

Mesmo que tomemos a enunciação de um químico conceituando

“chuva”, estaremos frente a um enunciado que julga o que é a chuva

(e por essa via o que não é chuva), com base em um conjunto de

pressupostos da ciência. Diríamos que a definição de chuva está

ancorada em um referencial do estado de conhecimento que se toma

por verdade no tempo da enunciação. Enuncia-se a partir de uma

exterioridade, de ordem histórica, ancorada numa temporalidade

inexorável à enunciação. Essa temporalidade é fecunda em enunciados

outros e é em referência a eles (daí o conceito de referencial, que

vamos desenvolver adiante) que se constitui significação, produzindo

como resultado a possibilidade da comunicação. A definição de chuva

enunciada pelo químico, no nosso exemplo, contém uma reação a uma

demanda de significação, a que a representação de chuva se aplica.

“Chuva” não se conecta com o mundo de per si. Há uma demanda de

significação que instiga o “fazer sentido”, produzir consistência, no

campo científico, permeado por métodos pelos quais a atualidade

científica confere consistência aos enunciados do seu domínio

discursivo.

A pertinência do enunciado em um espaço de enunciação,

pertinência concebida na relação entre recortes de memória de

significação e a demanda de um presente pelos referenciais,

movimenta as formações articulatórias que constituem a sintaxe do

enunciado, a sua constituição formal. As formações sintáticas

sustentam materialmente a memória da língua e ao mesmo tempo a

memória das significações dos seus termos, isto é, das unidades que

integram essas formações.

Para que possamos fazer refletir esse jogo de pertinências,

constitutivo de uma inquietude enunciativa, na análise das formações

articulatórias de unidades sintáticas, precisamos produzir um

deslocamento no conceito corrente de forma linguística e de sua

captação horizontal, o sintagma.

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

118 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

O conceito de forma linguística que se estabelece nos estudos

linguísticos a partir do século XX é definido seja por oposição a

significado, seja por oposição a função. Em ambos os casos, forma é

algo apreendido por traços fonológicos e morfológicos. Nessa direção,

as formas linguísticas podem ser tomadas por órgãos estruturais da

língua, como itens lexicais e morfemas.

O conceito de sintagma decorre dessa noção de forma e privilegia a

efetividade do linguístico captado por traços em presença, os quais se

consubstanciam em relações de “sucessividade”, ou horizontalidade.

Dessa maneira, um sintagma nominal, por exemplo, é um extrato de

efetivação da língua, concebido como totalidade de um ou mais

elementos, e que apresenta o comportamento estrutural do nome.

Quando se estuda o sintagma nominal, o ponto de partida é

componencial, tendo em vista os determinadores que se situam à

esquerda e os que se situam à direita do nome.

O olhar que uma semântica da enunciação produz sobre a língua

resulta em diferenças significativas no conceito de forma linguística e

consequentemente em uma perspectiva diferente de abordar as

unidades articulatórias, principalmente as construções nominais.

Um dos pontos de partida da nossa abordagem, no que se refere

aos conceitos de língua e de regularidade linguística, advém de

Guimarães (1996). Na sua visão, a língua é um “sistema de

regularidades”. Por ser sistema, entenda-se que há uma ordem de

relações que sustenta as unidades que por ela são constituídas. Por sua

vez, a concepção de regularidade, diferentemente da concepção de

regra, é edificada pela tese segundo a qual aquilo que regula essa

ordem de relações não advém de propriedades do corpo de elementos

do sistema, mas são circunscrições de modos de enunciar constituídos

na memória do dizer. As relações que se constituem entre discursos

movimentam o funcionamento da língua pela enunciação, moldando

esse sistema de regularidades. Nos termos de Guimarães (1996, p.27),

“A língua aparece, assim, como exposta ao inter-discurso, isto é, a

língua está exposta a uma memória dizível”. Nessa direção, a forma

linguística é “uma latência à espera do acontecimento enunciativo,

onde o presente e o interdiscurso a fazem significar.” (GUIMARÃES,

1996, p.32)

Ancorados nesse ponto de vista, vamos formular uma hipótese

relativa à natureza e funcionamento da forma linguística na

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 119

constituição desse sistema de regularidades. Para isso, vamos tomar a

ideia da inquietude enunciativa como parte dessa memória do dizível,

na medida em que as discursividades são relativas às pertinências

sociais do dizer, que são heterogêneas e marcadas pela inquietação

própria do dissenso constitutivo nas relações sociais.

Uma forma linguística constitui-se como tal na conformação das

palavras23 à regularidade sintática, tendo em vista o acionamento

enunciativo da língua. Essa conformação ocorre na medida em que as

palavras contraem modos de articulação em formações sintáticas. A

palavra “casa”, por exemplo, se torna forma linguística ao contrair

pertinência em uma formação nominal; por sua vez, “escorregou”

assume essa condição ao sair do estado de infinitivo e se tornar

pertinente em determinada predicação; e “de” se constitui em forma

linguística, de modo mais determinativo, quando assume papel

direcionador nos espaços sintáticos. Em suma, a forma linguística é

relativa aos lugares de entrada do léxico na constituição da unidade

sentencial.

Ao se tornarem formas linguísticas, as palavras continuam sendo

objetos de significação, mas sujeitas às determinações internas da

formação nominal e às conformações da predicação de ordem

sentencial. Essa é uma especificidade importante da visão enunciativa

da constituição sintática: ser forma linguística é significar em relação

de pertinência com os espaços de enunciação e com os espaços

sintáticos; especificamente, com os espaços de enunciação pelos

referenciais, com os espaços sintáticos, pelas especificidades da

conformação lexical.

Antes de esboçar a visão enunciativa da constituição da sentença

de uma maneira global, com enfoque no sujeito e na predicação, faz-

se necessário conceituarmos formação sintática, especificamente

formação nominal. Ele se constitui como decorrência dessa concepção

de forma linguística que acabamos de apresentar.

Em Dias (2013a; 2013b; 2013c; 2015a) formulamos os traços

básicos da concepção de formação nominal, a qual vimos

desenvolvendo nos últimos quatro anos. De início, afirmamos que ele

apresenta uma natureza condensadora, não de propriedades dos

objetos da exterioridade, mas de referenciais. O que é um referencial?

Com inspiração em Foucault (1969), tomamos o termo

referencial24 para designar o domínio no qual as nomeações,

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

120 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

designações ou descrições se ancoram para constituir sentido e

pertinência em um espaço de enunciação. Tomemos a palavra

“chuva”, mencionada acima. Como possibilidades de referencial,

teríamos, por exemplo: a constituição físico-química dos líquidos, no

meio científico; a promoção da fertilização do solo, nas práticas de

agricultura não irrigada; a proveniência dos recursos para geração de

energia, em políticas públicas; a manifestação de uma dádiva divina

na manutenção da vida, em afirmações de fé religiosa; a origem do

“tempo ruim” em dia de festa, em reclamações por transtornos. Trata-

se de domínios que não se excluem na relação uns com os outros, mas

que podem ser evocados separadamente na enunciação. Esses

referenciais, na nossa concepção, estão estreitamente associados com

a perspectiva de “reação”, proposta por Bally.

O referencial seria, assim, o campo de emergência dos objetos do

dizer, campo em que se dá a “diferenciação dos indivíduos ou dos

objetos, dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo

pelo próprio enunciado.” (FOUCAULT, 1969, p.104).

A concepção de formação nominal (FN) está comprometida,

portanto, com uma abordagem vertical das construções nominais,

tendo em vista que privilegia o processo de formação dos nomes, isto

é, o jogo de referenciais que sustentam um nome enquanto unidade de

designação. Privilegia igualmente as determinações que ele recebe nas

articulações contraídas no âmbito do grupo nominal, nas quais se

expõem os pontos de pertinência do dizer, na relação entre a memória

e a atualidade do acontecimento enunciativo.

Quando uma formação nominal é constituída apenas por um

substantivo, temos uma FN de primeira ordem. Nas FNs de segunda

ordem, os substantivos recebem determinações internas. Há também

as FNs extensivas, de terceira ordem, formadas por sentenças que

ocupam o mesmo lugar de um nome nas articulações sintáticas. Por

fim, de quarta ordem, temos as FNs pronominais.

Em suma, quando um item lexical se torna integrante de uma

sentença, ele passa a se constituir em uma forma linguística

qualificada na enunciação dessa sentença. Em outros termos, esse item

lexical contrai compromissos com a regularidade da língua. Os nomes

se constituem em formas linguísticas na medida em que contraem

relações de determinação localizadas, as formações nominais, e

relações de determinação dos lugares de regularidade, como sujeito e

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 121

objeto verbal. Esses lugares de regularidade, por sua vez, se

relacionam com as formações nominais, com ou sem ocupação

orgânica do lugar, como veremos adiante.

5. Das formações nominais à predicação

Como vimos, a língua é mobilizada por um acontecimento

enunciativo25. Essa mobilização se desdobra em conformação lexical.

Por força do sistema de regularidades, as sentenças apresentam

lugares de recepção das unidades lexicalmente conformadas. Como

vimos acima, as formações nominais “conformam” palavras com

valores nominais, e podem estar associadas a três tipos de lugares:

lugar sujeito, lugar objeto e lugares direcionais26. O foco principal do

presente estudo reside no lugar sujeito e na predicação associada a ele;

secundariamente, o lugar objeto receberá alguma atenção, pela

necessidade de circunscrever o seu papel na predicação, em

comparação com o sujeito.

Na nossa abordagem, a predicação se assenta no lugar sujeito.

Como vimos, essa é uma posição historicamente consagrada. Ela foi

rompida pelas abordagens formalistas majoritárias no século XX, mas

se manteve, pelo menos em parte, no âmbito das abordagens

funcionalistas. Vimos também que a nossa visão das construções

nominais produz as condições para uma diferença naquele quadro.

Tendo em vista que os nomeáveis participam na conformação em FN

como agregador de perspectivas, potencializador de referenciais, e

convergente de reações, a predicação incide no lugar sujeito

colocando em pauta essas perspectivas, referenciais ou reações das

formações nominais ali constituídas. Em outros termos, a predicação

traz à luz e ao presente da enunciação parte daquele potencial de

inquietude enunciativa que aos nomes se associaram, tendo em vista

os espaços do dissenso que os afetaram em outras predicações nas

relações sociais.

Sendo assim, o lugar sujeito denuncia a participação da FN em

outras predicações. Por isso, ele pode ser identificado por um recurso

de interposição com o verbo de uma partícula que as gramáticas

geralmente não conseguem definir: um “que”, oscilando entre

expletivo, realce e pronome relativo. Vejamos as ocorrências a seguir:

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

122 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

(1) O diretor cedeu o secretário ao presidente

[O diretor QUE cedeu...]

(2) O secretário ao presidente cedeu o diretor

(3) Ao presidente cedeu o secretário o diretor

(4) Gatos comem ratos [Gatos QUE comem...]

(5) Nós os declaramos livres [Nós QUE declaramos...]

(6) Esta rua foi calçada pelo prefeito x [Esta rua QUE foi calçada...]

(7) Toca o telefone [O telefone QUE toca...]

(8) A panela fervendo, entra o camarão [A panela QUE ferve, o

camarão QUE entra]

Obviamente, não pretendemos produzir aqui um artifício para

encontrar o sujeito, da forma como alguns manuais o fazem, mesmo

porque a aplicação do QUE resulta em diferenças no campo de

enunciação em que esses enunciados poderiam se inserir. Por

exemplo, em (8), a primeira sentença é uma instrução; a segunda, que

resulta da inserção do QUE, não poderia ser assim considerada.

O que pretendemos demonstrar é que a utilização desse recurso

exalta o caráter convergente do lugar sujeito, para o qual a predicação

recai. A forma QUE produz uma orientação de incidência para a FN

que a introduz.

Em (8), a predicação exercita uma das perspectivas da nossa

sociedade, a que concebe o “camarão” da posição de algo para ser

cozido, como componente de uma receita culinária. Evidentemente,

não é uma perspectiva universal, mas histórica, que emerge de uma

das práticas de um extrato social. A relação entre camarão e aquilo a

que ele se refere é dependente do referencial que essa predicação

exercita na relação com a FN “camarão”, qual seja, o espaço da

culinária. Outra seria a referência nas predicações presentes nas

sentenças a seguir:

(9) O camarão (que) se alimenta de plantas em decomposição

(10) O camarão (que) é um artrópode

(11) O camarão (que) perdeu preço no verão

A predicação incide sobre o sujeito constituído pela FN tendo em

conta os referenciais: vida aquática (9), morfologia (10), mercado

(11).

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 123

A predicação também é um lugar de experimentação, de inovação

de perspectiva, ao incidir nesse espaço de inquietude enunciativa (FN

“camarão”), como em

(12) O camarão (que) me fitou com cara de repreensão.

Nesse caso, tem-se ancoragem num referencial de modo de olhar que

normalmente não se aplica a animais desse tipo.

Em suma, o “que” realça uma anterioridade necessária do sujeito,

para que a predicação adquira lugar no espaço sintático. Em Dias

(2009, p.19), abordamos o conceito de anterioridade de predicação,

distinguindo-o de anterioridade processual, anterioridade actorial e

anterioridade de orientação.

Ressaltamos a necessidade de fazer uma distinção entre esse índice

de anterioridade e o fenômeno gramatical da topicalização. Para isso,

retomemos (4) e acrescentemos variações desse fenômeno:

(4) Gatos (que) comem ratos

(4a) Ratos (que) gatos comem

Tendo em vista o papel do QUE como um índice de inflexão da

predicação, ele se interpõe exatamente entre a FN que ocupa o lugar

sujeito e o verbo, como em (4), não evidenciando marca de

deslocamento. Acreditamos que ele demonstra a preparação do lugar

do sujeito para a predicação. Em (4a), por sua vez, o QUE é parte da

topicalização, e a relação que ele estabelece não é com o verbo, mas

com uma parte da predicação (“gatos comem”), evidenciando o

deslocamento da FN “ratos”. Raciocínio semelhante é válido para

(4b) O que (que) gatos comem?

Nesse caso, o QUE se constitui na integração da estrutura

topicalizada, própria da interrogação, e não na preparação para o

assentamento do verbo na direção do lugar sujeito, com em (4).

Nesse sentido, observemos a sentença a seguir:

(13) O secretário (que) cedeu o diretor ao presidente

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

124 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Tendemos aqui a interpretar a FN “secretário” como ocupante do

lugar sujeito, pois aqui recai a base de inflexão predicativa, a qual tem

a partícula QUE como uma marca possível de direcionamento do

verbo.

Há casos em que o lugar sujeito abriga uma formação nominal de

caráter prospectivo, como na primeira sentença de (14):

(14) Aquele que deseja ser arcanjo deve sonhar com anjo.

Nesse caso, a predicação toma o “aquele” como um perfil de todos os

que projetam virtualmente galgar uma posição superior em

determinada escala. O referencial considerado na predicação direciona

para valores sociais de paciência, precaução, gradualismo. Em Dias

(2009, p.23-24) discutimos aspectos gerais do sujeito de caráter

prospectivo.

Vimos que o lugar sujeito propicia uma exposição, uma

tematização do potencial de referenciais com que um nomeável se

identificou e pode se identificar enunciativamente. O lugar sujeito se

constitui, portanto, como uma demanda de incidência de predicação.

Por isso, ele é facilmente afetado por um efeito de exterioridade com o

“que”. Essa partícula produz um efeito de “entrada” da FN na

sentença.

Em (15) a (17) esse efeito de entrada característico do lugar sujeito

pode também ser concebido, mesmo que algumas FN sejam pouco

informativas quanto ao potencial de agregação de perspectivas.

(15) O que (que) não perturbou Pedro ontem, hein?

(16) Nada (que) me faz sentir melhor.

(17) Quem (que) é quem na administração desta empresa?27

Nas três sentenças, temos ocupações de lugar sujeito com “o que”,

“nada” e “quem”, respectivamente. Trata-se de FNs de ordem

pronominal que operam com projeções de identidade concebidas fora

do plano enunciativo da sentença (DIAS, 2009, p.23). Em (15), o

lugar sujeito abriga um pronome que remete a eventos em outro plano

enunciativo; em (16), remetem a possíveis ocorrências, no plano de

uma projeção; em (17), a identidade é projetada para o plano

enunciativo da interlocução. Nos três casos, a predicação incide sobre

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 125

o lugar sujeito no sentido de colocar em pauta as reações frente a essas

identidades projetadas: percepções, sentimentos e dúvidas.

Por outro lado, o lugar objeto apresenta um caráter efetivamente

contrário ao que acabamos de apontar. Ele se constitui não por uma

incidência de predicação, mas por uma apreensão própria dela. Os

nomeáveis que se conformam na FN associada ao lugar objeto não

estão “sujeitos” à incidência da predicação, no sentido de colocar em

causa as perspectivas e reações com que se constituem os referenciais.

Nesse caso, a FN é tomada como fechada, no sentido de ser

apreendida como um “objeto” cujos contornos se definem

internamente na FN ou na própria relação com a semântica do verbo.

Pelas ocorrências (18) a (23) a seguir, podemos observar esse

caráter balizador do objeto.

(18) Pedro comprou mangas.

(19) Pedro comprou um sei lá o que, cor de jasmim.

(20) Pedro comprou não sei o quê.

(21) “Enfim, adorei sua imaginação e originalidade! Já

ganhou (não sei o que, mas já...).”28

(22) ─Pedro comprou mangas.

─Comprou nada!

(23) Pedro não comprou nada

Nessas sentenças, encontramos algumas variações de ocupação do

lugar objeto em destaque. Trata-se de FNs constituídas sob o efeito da

predicação. Nas sentenças (18) e (20), percebemos uma rarefação de

ancoragem referencial interna na FN. Em (19), “cor de jasmim” ainda

fornece traços dessa ancoragem, o que não ocorre em (20). A relação

com o verbo comprar, no entanto, produz os traços minimamente

necessários para uma ancoragem referencial no lugar objeto: trata-se

de algo que possa resultar de uma compra. A rarefação de definitude

do lugar objeto não tem repercussão na predicação, que é efetiva e

afirmativa, pela conformação verbal: “comprou”. Em (21), na segunda

sentença, temos uma ocorrência que acreditamos seja bastante

elucidativa nessa direção. Em “Já ganhou (não sei o que, mas já...)”,

indica-se na predicação uma tônica enunciativa no verbo como

suficiência para a projeção de um lugar objeto, mesmo que não se

tenha as condições de definição de referência, mas a ancoragem

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

126 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

referencial já está garantida, pelo “mas já”, resultando em suficiência

enunciativa.

Portanto, o lugar objeto é afetado por uma suficiência enunciativa

na relação com o verbo, uma vez que as FNs nominais que ali se

constituem desenvolvem uma relação com a

anterioridade/exterioridade da linguagem diferente daquela no lugar

sujeito. Em razão disso, o lugar objeto constituído pelo pronome

“nada” não resulta em efetiva nulidade, do ponto de vista do

referencial, embora se possa conceber um conjunto vazio em termos

de referentes, no lugar objeto. Sendo assim, no diálogo, em (22), o

“nada” na sentença do interlocutor se conforma sintaticamente como

negação, no âmbito da predicação. O foco da sentença não está na

ausência do que se afirmou Pedro ter comprado, mas na negação da

compra. Algo semelhante ocorre em (23): embora o “nada” se

configure como conformação de FN de caráter pronominal, ocupando

o lugar objeto, ele se mostra um coadjuvante da negação que se aplica

ao verbo. Portanto, o verbo comprar estabelece os parâmetros para

que a predicação determine referenciais para o lugar objeto,

sustentando um lugar que se abre para o alcance desses referenciais.

Vejamos as ocorrências a seguir, no sentido de solidificar essa

visão.

(24) Carlos fez isso e aquilo e ninguém ficou sabendo.

(25) Pedro é do tipo que bate e depois dá flores.

(26)

Em (24), o verbo fazer estabelece o lugar para que “isso e aquilo”,

como FNs ocupantes do lugar objeto, seja balizador para referenciais

de atos socialmente reprováveis. Em (25), a FN “flores” é meramente

um índice para um lugar de referencial de caráter compensatório.

Sendo assim, não importa o referente de “flores”, mas o círculo

referencial que reúne algo como “beijos”, “abraços”, “carinho”,

“presentes”, “flores”, que se oferece como compensação por atitude

Imagem 1: Propaganda do CVV

Fi

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 127

ferina contra alguém. Isso demonstra que um lugar sintático não é nem

entidade orgânica, gráfica ou fonologicamente configurada, e nem a

representação de um referente no mundo, e sim um lugar qualificado

na enunciação do predicado. Já em (26), não temos a ocupação do

lugar objeto promovido pela predicação, mas a projeção do verbo

apontar, tendo como baliza índices que a predicação reúne no plano

de enunciação, como a figura de cor vermelha à esquerda, a entidade

social que promove a propaganda (CVV-Centro de Valorização da

Vida). Eles trazem o objeto de memória “arma” como elemento de

permuta para o objeto do presente “telefone”, como referenciais

básicos da identidade enunciativa do lugar objeto. Em Dalmaschio

(2015), encontramos uma análise da sentença dessa propaganda nessa

direção teórica. Uma vez que não trabalhamos com “sintagma

nominal”, o lugar sintático não é ocupado organicamente com

sintagma. No entanto, diríamos que uma FN, na condição de

“formação”, encontra-se nesse lugar qualificado no seu caráter

virtual29, não sendo possível, dessa forma, abordar o lugar como

espaço vazio.

A especificidade do lugar objeto, na condição de lugar constituído

internamente à predicação, não permite a ocorrência de FN constituída

unicamente por “aquele que”, de natureza prospectiva.

(27) Aquele que ampara o sofredor...

(28) Quem ampara aquele que... (?)

(29) Quem ampara aquele que sofre...

Como vimos, o “aquele que”, para que se configure como

prospecção, isto é, como um perfil de referência, necessita da injunção

de uma predicação para que se constitua tal perfil. Em (27), “aquele

que” está no lugar sujeito, e a predicação constitui o perfil para que

possamos, em outros planos de enunciação, identificar a referência.

Em (28), estando o lugar objeto constituído internamente à

predicação, não há uma injunção que a ele se agregue para delinear o

perfil, como há em (29), mas, nesse caso, o “aquele que” já é o sujeito

na sentença “aquele que sofre”. A sentença adquire conformação

como FN extensiva e produz os contornos de identidade que

propiciam uma suficiência enunciativa para a predicação.

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

128 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Há outra diferença importante entre os lugares objeto e sujeito, e

está relacionada ao fato de que o lugar objeto é afetado pela negação.

Na sentença “Pedro não comprou mangas”, a negação da ação de

comprar afeta o lugar objeto ocupado por “mangas”, na condição de

participante da predicação. Por sua vez, o compromisso com a

constituição de uma base para a predicação impede, por natureza, que

o lugar sujeito seja afetado por uma negação, antes de se constituir a

predicação. Esta pode incidir sobre o sujeito negando-o, como uma

das frases consagradas na história dos estudos da significação:

“Aquele que morreu na cruz para nos salvar não existiu”. Nesse caso,

a predicação em caráter negativo incide sobre a discursividade que

cria a perspectiva da existência de Jesus, considerando-a falsa.

A fim de arrematar a diferença entre os dois lugares sintáticos em

pauta, apresentaremos alguns dados estatísticos relativos à

lexicalização dos dois lugares, elaborados por Matta (2005, p.284),

com objetivos diferentes dos nossos, mas que se mostram elucidativos

para os nossos propósitos neste estudo. Os dados se referem a

conversações espontâneas entre interlocutores de nível universitário

em Belo Horizonte, totalizando 1h50min de conversas transcritas.

Vejamos o quadro a seguir, com os dados:

SUJEITO OBJETO DIRETO

sem lexicalização 49,3%

sem lexicalização 45,8%

pronome 37,9%

pronome 7,7%

SN lexical 11,8%

SN lexical 37,3%

Tabela: ocupação e não ocupação de lugares sintáticos básicos

O nosso interesse reside prioritariamente na diferença entre as

ocupações com pronome nos lugares sujeito e objeto, tendo em vista

as formas de pertinência diferentes em relação à exterioridade da

linguagem e à predicação.

Nessa direção, o lugar sujeito é propício para a ocupação com

pronome, tendo em vista ser afetado por domínios referenciais

constituídos em espaços de enunciação anteriores, os quais recebem a

ancoragem justamente por pronomes (o teste com a partícula “que”

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 129

nos forneceu essa indicação). Por sua vez, o lugar objeto favorece a

elaboração dos domínios referenciais no seu próprio espaço, pelo

amparo do verbo que o sustenta na predicação. O índice maior de SNs

lexicais (FNs de primeira ordem), capitaneados por substantivos, é o

indicador dessa regularidade. A grande maioria dos casos de não

lexicalização (não ocupação, na nossa terminologia) ocorre porque se

procura evitar a repetição. Caso não evitássemos essa repetição, o

índice de pronomes subiria para cerca de 90% no lugar sujeito; no

lugar objeto, por outro lado, o índice que mais seria afetado por um

aumento seria o do SN lexical. Essa projeção reforça a nossa

convicção da significativa diferença entre os papéis desempenhados

pelos dois lugares sintáticos na constituição da articulação sintática.

6. A articulação sintática na perspectiva da enunciação:

ampliando o campo de visão

Em Dias (2015b), formulamos aspectos básicos da constituição de

um enunciado, tendo em vista o acontecimento que o tornou

pertinente em um campo de enunciação. Nessa direção, um enunciado

significa relativamente ao campo de virtualidade memorável dos seus

termos frente às condições de atualização pelos referenciais que se

agregam a esse campo.

A pertinência do enunciado no espaço de enunciação, concebida na

relação entre recortes de memória de significação e a demanda de um

presente pelos referenciais, movimenta as formações articulatórias que

constituem a sintaxe do enunciado, a sua constituição formal.

Na medida em que entramos na abordagem da conformação

sintática, pelas formações articulatórias básicas, passamos a nos focar

nos enunciados que apresentam como contraparte a sentença da forma

como a consideramos neste estudo. No entanto, dada a especificidade

do conceito de forma linguística que apresentamos neste trabalho, não

produzimos uma dicotomia entre enunciado e sentença. Analisar a

constituição da sentença envolve observá-la igualmente como

enunciado.

Uma vez que apresentamos a nossa visão sobre a constituição das

formas linguísticas, pela conformação em formações articulatórias, e

tendo apresentado a constituição dos lugares sintáticos sujeito e

objeto, envolvidos na recepção das formações nominais, vamos

apresentar o esboço de uma proposta de configuração mais ampla do

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

130 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

jogo de articulações sintáticas do ponto de vista de uma teoria da

enunciação.

Tendo em vista as condições para a predicação, como vimos,

temos, em decorrência da predicação, uma mobilidade de construções,

em consonância com os modos históricos de textualização. Uma

unidade sentencial é uma enunciação, mobilizada em conformação

pelas regularidades de uma língua, de um lado, e se apresenta

textualizada, de outro. Não se trata de percurso gerativo, mas da

própria natureza de constituição do sintático.

Com o extrato textual de uma conversação, apresentado a seguir,

podemos demonstrar, ainda que brevemente, essa mobilidade de

construções:

(30)

L2 - e o quibe heim?

L3 - o quibe ficou uma delícia gente...(fiz) quibe na casa da M.

L. ...ela aMOU o quibe que eu fIZ...

LI - quibe cru? o J. gosta muito de quibe cru né?

L3 - eu não gosto de quibe cru gente eu não dou conta de comer

CARne crua...não dô con-ta...

LI - tem gente que gosta de fazer outras coisas com quibe cru...

L2 - e peixe cru cê gosta?

L3 - detesto...NO::ssa...

(in: MATTA, 2005, anexos)

Uma das maiores dificuldades dos professores no ensino de

gramática encontra-se na tentativa de levar os alunos a fazer análise

sintática em sentenças retiradas de textos, da forma como elas

aparecem. A questão reside justamente na compreensão da mobilidade

das construções sintáticas frente ao fato de que a unidade sintática se

molda ao regime de construções de uma textualização. A compreensão

do jogo mobilizado sintaticamente em torno de FNs com pronomes

pessoais, as FNs constituídas com o nome “quibe” e as predicações

elaboradas com os verbos fazer, gostar e comer, é essencial para que

tracemos a articulação básica que forma as predicações, nucleando as

sentenças do texto.

Esses lugares básicos, articulados à predicação, constituem os

“formantes sentenciais”, que sustentam a integridade da articulação

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 131

sentencial. A nossa abordagem apresenta um modo de conceber a não

atualização desses lugares em termos orgânicos de forma a evitar o

conceito de inexistência, de lacuna, de vazio, como em “tem gente” e

“detesto”, localizados no extrato textual que apresentamos acima.

Dado que a FN é definida em termos de “formação”, na captação

das unidades lexicais para a gramática, ela pode se atualizar em pontos

de localização determinados no plano da sentença. Pode a FN também

estar atualizada fora do plano da sentença, ou projetar essa atualização

também em outros planos. No limite, ela pode sofrer absorção na

própria predicação, mantendo-se, no entanto, traços da entrada nos

espaços de qualificação do lugar sintático. Vejamos isso com alguma

especificidade, dentro do limite do presente trabalho.

A FN que se constitui no lugar sujeito pode se atualizar em outra

sentença e deixar pistas de remissão, como em algumas “elipses de

sujeito”, na terminologia tradicional, ou em ancoragem no plano da

locução, como em “(eu) detesto”, no extrato apresentado acima, ou

mesmo em casos de constituição de uma identidade referencial em

outro plano da enunciação, como nos casos de sujeito indeterminado,

na terminologia tradicional. Em Ladeira (2010), há uma análise desse

último caso do ponto de vista da semântica da enunciação. A FN pode

também estar sujeita a formas de absorção na predicação (absorção

predicativa), com amálgama no lexema verbal (no caso de “chove”)30

ou não, como no caso de “tem gente”, presente no extrato de

conversação apresentada acima. Como dissemos, a condição de

virtualidade da formação não afeta a existência do formante sentencial

sujeito, da maneira como o definimos.

Por sua vez, a FN que se constitui no lugar objeto pode

permanecer em estado virtual e não se atualizar organicamente quando

estão sujeitas a diversas formas de generalização, como em “Plantou,

colheu” (LACERDA, 2009; DALMASCHIO, 2013). De outra forma,

elas também podem sofrer absorção predicativa, como em “A criança

caiu”. As situações de absorção na predicação mantêm a existência da

FN enquanto virtualidade, que pode passar a atualizar ou sofrer

absorção em determinado período histórico da língua. Observemos

que, quando os pais exerciam a determinação no casamento dos filhos,

tínhamos predominantemente “Pedro casou Maria”, hoje temos

predominantemente “Maria casou”, com a configuração de absorção

predicativa. Por sua vez, em “Esse cano sai fumaça”, temos alguma

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

132 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

evidência de atualização de uma FN no lugar objeto projetado pelo

verbo sair, fato pouco provável de ocorrer num passado não muito

remoto da história da língua portuguesa.

Em resumo, parte das situações de não atualização orgânica de FNs

é explicada pela mobilidade sintática, na consonância com a

textualização, parte pela confluência de planos enunciativos, e parte

pela absorção predicativa.

Uma sentença, no entanto, não se constitui apenas por um lugar

sujeito, uma predicação que incide sobre ele, e pelo lugar objeto que

essa predicação abriga. Como vimos, eles constituem os “formantes

sentenciais”, que sustentam a integridade da articulação sentencial.

Os formantes integrativos envolvem a formação de alguns tipos de

categoria funcional que a gramática consagrou como complementos

indiretos e adjuntos. Eles estariam associados a lugares direcionais.

Em Lacerda (2015), temos uma abordagem de aspectos importantes

dessas construções do ponto de vista da enunciação. Esses integrativos

envolvem direcionamentos de movimento, em construções orientadas

por preposições e conjunções31.

Considerações finais

Iniciamos o presente estudo afirmando que o nosso foco estaria na

ordem da língua, e não na organização das suas partes. A constituição

desse foco nos levaria a investir na resposta a perguntas como: qual a

natureza das relações entre os itens lexicais? Em que se assenta a

agregação entre eles? A questão mais relevante estaria centrada na

sustentação de uma agregação de itens lexicais na constituição da

unidade sintática básica. Para isso, propusemo-nos a discutir a própria

natureza do semântico e como ela é configurada em alguns momentos

da história para explicar essa agregação.

Abordamos o semântico concebido em termos do funcionamento

da enunciação. A nossa perspectiva se distingue das abordagens que

concebem o semântico em termos de propriedades, ou em termos da

funcionalidade da linguagem na interação imediata. Ao invés de

perguntar pela natureza das coisas na relação com o homem, ou pela

economia linguística na interação entre os homens, perguntamos pela

natureza do dizer humano, na constituição da ordem das coisas.

Procuramos privilegiar o gesto inflexivo da predicação, apagado

em parte do pensamento sobre a sintaxe na modernidade, por entender

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 133

que ele é essencial para a compreensão da pertinência do dizer na

relação entre a linguagem e a ordem da exterioridade linguística.

Nesse parâmetro, o lugar sujeito centra-se nas condições para a

exploração dos referenciais do sentido pela predicação. Ele é

estabelecido por uma inquietude enunciativa, pelos gestos de contato

com outras discursividades que tocam no espaço de enunciação em

que a sentença se constitui, isto é, o lugar sujeito é constituído pelas

reações do sujeito ao mundo das significações pelo qual ele próprio se

constitui em sujeito, ao enunciar e se colocar frente a esse mundo

pelas predicações.

Aprendemos com Bally, quando ele se pergunta como nós

apreendemos um pássaro. Respondemos com ele: pelo seu canto, pelo

lugar em que vive, pela beleza que nos encanta, pelas características

que denunciam a sua ancestralidade, pela definição morfológica que o

classifica na espécie, no reino. Tudo isso são elementos de

representações do pássaro. Diríamos que essas representações são de

ordem histórico-sociais. Se enunciar é reagir a uma representação, a

enunciação é relativa ao acontecimento em que a singularidade de um

dizer adquire pertinência aos dizeres sociais representativos do objeto

do dizer. Essas representações são motivadoras de formas de

predicação, que agregam renovação aos objetos do dizer, porque os

captam novamente como movimento, como processo (nos termos de

Bally), e assim os colocam em rota de discursividade, e se sujeitam a

ser outros porque cada enunciado o traz para a sua temporalidade, via

predicação. Ao se submeterem a novas predicações, eles se sujeitam a

novas relações entre um corpo de memória que retém parte da sua

identidade e de novas inquietudes que colocam em causa essa

identidade. Daí afirmarmos que a enunciação se define na relação

entre memória e atualidade (GUIMARÃES, 2005).

Podemos nos apoiar também em Benveniste (1950), para quem a

função verbal é coesiva, no sentido de que organiza uma completude

do enunciado, e ao mesmo tempo assertiva, no sentido de que traz

para o enunciado uma realidade do sujeito.

A predicação é, pois, o ponto que liga a sentença à língua pela

pertinência do dizer num campo de enunciação. Nessa direção, o lugar

sujeito faz da FN um lugar de diferença, de busca de arranjo, que

reclama se situar, se sustentar na predicação. A sustentação da

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

134 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

sentença passa pela sustentação da sentença na língua, pelas suas

regularidades históricas e pela historicidade das suas enunciações.

Pensamos que o enunciar precede o comunicar, porque não há

suficiência do dizer nem enredo acabado. A sentença se constitui pela

procura de um enredo, na urdidura do sintático, que é o lado regular

do enunciado. O que a sintaxe tem captado são os traços da

estabilidade de um enredo. Na nossa concepção, a formação dos atores

e o caráter das peças precisam ser colocados em pauta, porque estão

na base da predicação, vale dizer, na base da formação sintática.

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Palavras-chave: enunciação e gramática, predicação sintática,

semântica e sintaxe

Keywords: enunciation and grammar, syntax predication, semantics

and syntax

Notas

1 Essa síntese da definição de sintaxe foi constituída com base na nossa tradução do

verbete Syntax, da Britannica Online Academic Edition, de 2015, disponível em:

<http://www.periodicos.capes.gov.br/>. Acesso em: 31 ago. 2015. 2 Para essa distinção, nós nos inspiramos no trabalho de Orlandi (1996), no qual ela

formula a diferença entre os dois conceitos do ponto de vista de uma análise de

discurso. 3 Em Barros (2004), encontramos fundamentos para adoção da perspectiva da

circunscrição de itens lexicais na relação com classes gramaticais. 4 Utilizamos a tradução da obra em espanhol, cujos termos assim se apresentam: “se

conectan con los rectos por medio de un verbo inserto entre ambos”

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Luiz Francisco Dias

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 137

5 No original: “Entre algunas partes de la oración hay cierta orden casi natural y muy

conforme a la razón, en la cual las cosas que por naturaleza son primeras o de mayor

dignidad se han de anteponer a las siguientes y menos dignas.” 6 No original: “les mots destinés à signifier, tant les choses que les manières” 7 No original: “Les hommes, dit-il, n'ont pas eu moins besoin d'inventer des mots qui

marquassent l'affirmation, qui est la principale manière de notre pensée, que d'en

inventer qui marquassent les objets de nos pensée.” 8 No original: “le verbe de lui-même ne devrait point avoir d’autre usage que de

marquer la liaison que nous faisons dans notre esprit des deux termes d’une

proposition”. 9 No original: “If we wish to communicate our thought we ordinarily express it in

words, and this verbal expression of a thought we call a sentence.” 10 No original: “Subject and predicate may be joined together in various ways. In the

above example the connection between them is affirmed (stated as a fact) - such a

sentence as the earth is round being therefore called an 'affirmative' sentence; but it

may also be stated doubtfully, as in perhaps the earth is round, or denied, as in the

earth is not flat, and the relation between subject and predicate may be modified in

various other ways.” 11 No original: “Hence in such a sentence as the earth is round, we call earth a

subject-word, round a predicate-word.” 12 No original: “The positions in which a form occurs are its functions. Thus, the word

John and the phrase the man have the functions of 'actor', 'goal', 'predicate noun', 'goal

of preposition', and so on.” 13 O conceito de “enredo” não aparece no texto de Bloomfield, evidentemente. Ele

nasce da interpretação que empreendemos a partir da leitura do texto. 14 A recção é um termo bastante utilizado pelos estruturalistas, e se refere em geral à

subordinação que um item lexical contrai na relação com outro, resultando nas

categorizações de termo regente e termo regido. 15 No original: “Colorless green ideas sleep furiously” 16 No original: “from the perspective of theorizing about syntax, which is our concern

here, a critical point of departure is Chomsky’s Syntactic Structures (Chomsky,

1957)” 17 No original: “We have referred to language (i) as text and as system, (ii) as sound,

as writing and as wording, (iii) as structure - configurations of parts and (iv) as

resource - choices among alternatives. These are some of the different guises in which

a language presents itself when we start to explore its grammar in functional terms:

that is, from the standpoint of how it creates and expresses meaning.” 18 No original: “I caught the first ball. I was beaten by the second. The third I stopped.

By the fourth, I was knocked out.” 19 No original: “they locate the Exchange within the semantic space that is opened up

between speaker and listener.” 20 O modo é relativo às posturas de certeza, dúvida, desejo etc., adotadas pelo locutor

em relação àquilo que enuncia.

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ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO E FORMAÇÃO SINTÁTICA

138 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

21 No original: “it is that which carries the modal responsibility; that is, responsibility

for the validity of what is being predicated (stated, questioned, commanded or

offered) in the clause”. 22 No original : “C’est donc juger qu’une chose est ou n’est pas, ou estimer qu’elle est

désirable ou indésirable, ou enfin désirer qu’elle soit ou ne soit pas. On croit qu’il

pleut ou on ne le croit pas, ou on en doute, on se réjouit qu’il pleuve ou on le regrette,

on souhaite qu’il pleuve ou qu’il ne pleuve pas”. 23 Vamos tomar o termo “palavra” como “item lexical”, com as ressalvas que fizemos

na introdução deste trabalho. 24 Em Dias (2015b), levantamos detalhes do funcionamento do referencial no

acontecimento enunciativo. 25 Em Dias (2015b), discutimos com detalhes o conceito de acontecimento

enunciativo e essa mobilização. 26 Entram aqui, na terminologia da gramática tradicional, alguns complementos

verbais típicos e adjuntos com formação nominal encabeçada por preposição. Não

vamos discutir essa composição em detalhes, porque foge do escopo do presente

texto. 27 Embora a construção com o QUE “expletivo” pareça um pouco estranha, ela tem

emprego corrente, como esse: “(...) um aqui é filho do Milionário, do Milionário e

José Rico, e o outro é sobrinho do Dalvan. Quem que é quem aqui?” (in:

<http://goo.gl/gRbbY5>. Acesso em: 10 jul. 2014. 28 Disponível em: <http://goo.gl/5jclXm>. Acesso em: 10 jul. 2014. 29 Em Dias (2009), abordamos os conceitos de virtualidade e atualidade. 30 Em Dias (2010), abordamos com algum detalhe esse processo de amálgama lexical

em enunciados com o verbo chover. 31 Os detalhes de um olhar mais amplo da semântica da enunciação sobre a articulação

sintática estão sendo elaborados em nosso livro a ser lançado no ano de 2016.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 139

ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A

CONFORMAÇÃO DA REFERÊNCIA NO

LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

Priscila Brasil Gonçalves Lacerda

IFMG – Campus Ouro Preto

Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre

o lugar de adjunto adverbial pautada nas concepções de uma sintaxe

de bases enunciativas, cujas premissas permitem observar os

fenômenos linguísticos na sua interface constitutiva entre

materialidade linguística e enunciação. O enfoque dado aqui é na

determinação da referência constituída pela formação adverbial

ocupante desse lugar sintático, considerando um contraste

estabelecido entre os lugares ocupados por formações nominais.

Compreendemos que as formações adverbiais atuam na construção

do cenário de referência da sentença e, desse modo, o lugar de

adjunto favorece a demarcação da perspectiva do locutor no dizer.

Nesse caminho, chegamos a uma proposta que coloca a referência

constituída pelas formações adverbiais, associando-a às marcas de

incidência do locutor ou à constituição desse cenário, em uma escala

de maior ou menor agregação ao que denominamos domínio

semântico memorável do predicador da sentença.

Abstract: This article presents a consideration about the place of

adverbial clauses guided by conceptions of syntax from enunciative

bases, whose premises allow us to observe the linguistic phenomena

in its constitutional interface between linguistic materialness and

enunciation. Hence the focus is given in the determination of the

reference constituted by the adverbial formation that occupies such a

syntactic place, considering a contrast established among the places

occupied by nominal formations. We understand that adverbial

formations act in building a referential scenario in the sentence,

thereby, the adjunction place enables the marking of the announcer’s

perspective while saying it. In this path, we came to a proposition

which sets the reference constituted by adverbial formations,

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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA

REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

140 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

associating it to the announcer’s incidence marks or to the

constitution of this scenario, in a scale from major to minor

aggregation that we call the memorable semantic domain of the

sentence predicator.

1. Considerações iniciais

Uma discussão enveredada na relação entre materialidade

linguística e enunciação incorre no risco de se ater aos limiares de

uma dimensão e de outra, aos pontos de contato ou ao emprego da

primeira em função de determinações da segunda, consolidando o

acontecimento enunciativo como exterioridade que intervém na

configuração das formas da língua. A julgar pelo interesse em

explicitar o funcionamento dessas partes do fenômeno linguístico,

como partes de um todo que é o funcionamento da língua, tal

empreendimento, que chamamos de arriscado tão somente porque já

nos fez titubear no percurso, detém mérito e relevância

inquestionáveis para os estudos teórico e descritivo da linguagem,

bem como apresenta valiosos desdobramentos no campo do ensino de

língua. O que fazemos, entretanto, é delinear as dimensões material e

enunciativa como um entrelaçamento constitutivo do fenômeno

linguístico, fiando-nos na premissa de que o emprego da língua é “um

mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a

língua inteira”, pois esse emprego – a enunciação – seria tão

necessário que parece se confundir com a própria língua

(BENVENISTE, 2006 [1974], p.82). Essa perspectiva implica o

entendimento de que a enunciação é transversal à língua, apreensível

em todos os níveis de análise. Ou seja, “qualquer fenômeno linguístico

de qualquer nível (sintático, morfológico, fonológico etc) pode ser

abordado do ponto de vista da enunciação” (FLORES, 2010, p.400).

Isso não quer dizer que os limites entre o material e o simbólico

estejam rarefeitos em nossa perspectiva de análise, senão significa que

apreendemos essas dimensões justamente no lastro em que

consubstanciam o fenômeno linguístico em estudo.

É no fulcro dessa abordagem que podemos localizar os alicerces de

uma sintaxe de bases enunciativas, em cuja proposta inserimos as

reflexões que aqui desenvolvemos. Lidamos com a proposta de que a

sentença seja constitutivamente atravessada por eixos1 – cuja

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Priscila Brasil Gonçalves Lacerda

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 141

representação encontra-se no esquema a seguir – que sincretizam de

três modos distintos a convergência entre materialidade linguística e

enunciação.

Imagem 1: Eixos constitutivos da sentença

(Fonte: LACERDA, 2013, p.100.)

O eixo enunciativo 1 constitui o plano enunciativo propriamente

dito, que diz respeito à instalação da sentença, à retirada do verbo de

seu estado infinitivo. Já o eixo enunciativo 2 representa o plano de

incidência do locutor sobre aquilo que diz, desvelando os elementos

participantes da cena enunciativa, quais sejam, o Locutor (L), “figura

que se representa como responsável pelo dizer”, o locutor-x, “lugar

social de dizer”, e o enunciador, que representa “o lugar de dizer, o

lugar de onde se diz” (GUIMARÃES, 2009, p.50). O eixo temático-

referencial corresponde ao efeito de apontamento para uma realidade

extralinguística, o qual é inerente ao acontecimento enunciativo.

Neste texto, focalizamos a conformação do eixo temático-

referencial, especificamente, no escopo do lugar de adjunto adverbial.

Antes de chegarmos ao nosso alvo, porém, passamos por um trajeto de

análises dos lugares sujeito e de objeto como lugares de constituição

de referência. Iniciamos com esse percurso no intuito mesmo de expor

ao leitor o nosso itinerário de pensamento até chegar à formulação

acerca do lugar sintático que particularmente nos interessa aqui, mas

também para sinalizar um deslocamento de perspectiva, um contraste

entre as abordagens que precederam o estudo do lugar de adjunto

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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA

REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

142 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

adverbial no campo da sintaxe de bases enunciativas e a abordagem

que ora apresentamos. Além disso, tal mudança no ângulo de visão

merece os créditos teórico-metodológicos que lhe são devidos, já que

nos conduziu à reavaliação do estatuto de lugar do adjunto adverbial,

descortinando as noções de cenário e, por fim, de domínio semântico

memorável.

2. O eixo temático-referencial em foco

2.1 Dos lugares de sujeito e de objeto ao lugar de adjunto

adverbial

Considerando que, em certa medida, todo dizer se mobiliza em

função do objeto desse dizer, diríamos que o eixo temático-referencial

atravessa fundamentalmente toda a constituição da sentença. Assim,

falar em proeminência do eixo temático-referencial em um dos lugares

sintáticos não passa por uma verificação se o lugar sintático guarda

um compromisso com esse eixo, mas por uma análise de como esse

lugar se configura na construção temático-referencial da sentença.

Alguns trabalhos desenvolvidos no campo da sintaxe de bases

enunciativas analisaram a configuração da referência no âmbito dos

lugares de sujeito gramatical e de objeto, verificando o investimento

de cada um desses lugares para a determinação do que chamamos de

modo de enunciação da sentença, que, em linhas gerais, consiste no

modo como se configura o escopo referencial da sentença em termos

de amplitude e restrição.

Segundo o modo de enunciação em que estão configuradas, as

sentenças se distribuem em um contínuo margeado por extremos que

descrevem uma referência mais especificadora, de um lado, e que

descrevem uma referência mais generalizadora, chegando até a

genericidade típica dos provérbiosi, de outro. Nessa perspectiva, os

lugares de sujeito gramatical e de objeto assumem uma identidade

interveniente e compatível com o modo de enunciação da sentença em

que estão inseridos. Assim, os trabalhos que procuraram caracterizar

esses lugares sintáticos estabelecem, por exemplo, uma relação

explicativa entre a configuração de uma sentença em modo de

enunciação proverbial, como “Quem avisa amigo é”, e a configuração

de um sujeito perfil, cuja formação nominal (doravante, FN) está

encabeçada pelo pronome relativo ‘quem/aquele que’. Da mesma

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Priscila Brasil Gonçalves Lacerda

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 143

forma, a configuração referencial de uma sentença em modo de

enunciação mais especificador, como “A Petrina do apto 501 do

prédio 1001 da Paulista viu todo o confronto entre policiais e

manifestantes” pode ser explicada pelo restrito escopo de referência

da FN ‘A Petrina do apto 501 do prédio 1001 da Paulista’, que ocupa

o lugar de sujeito gramatical. No caso da configuração do lugar de

objeto, a relação entre o escopo de referência no lugar sintático e o

modo de enunciação da sentença parece ser menos determinante.

Entretanto, ainda assim são pertinentes análises que avaliam, por

exemplo, como contribui a matriz de apontamento sustentada pela não

ocupação do lugar de objeto em “Quem planta colhe” para a

configuração dessa sentença em um modo de enunciação genérico

proverbial.

Além de analisar, como demonstramos, a sintonia que se

estabelece entre a amplitude/restrição da referência construída no

escopo do lugar sintático e no âmbito maior da sentença, outra prática

consiste em selecionar uma determinada faixa do contínuo dos modos

de enunciação, ao invés de percorrer todo o contínuo, e observar as

diversas repercussões que a referência constituída no âmbito do lugar

sintático podem projetar para a configuração referencial das sentenças

que estão situadas na faixa do contínuo que foi delimitada para

análise. Ladeira (2010), seguindo esse viés, investe no escalonamento

da indeterminação referencial, que se desdobra em diversas matrizes

no lugar de sujeito gramatical.

O recurso metodológico representado no contínuo dos modos de

enunciação parece não se aplicar, contudo, ao lugar de adjunto

adverbial do mesmo modo que o empregamos para a análise dos

lugares de sujeito e de objeto. Em outras palavras, a relação entre a

matriz de referência que se instala no lugar de adjunto adverbial e a

referência constituída na sentença como um todo tende a ser diversa

da relação que se estabelece entre a matriz de referência do lugar de

objeto e a configuração do modo de enunciação da sentença. E,

principalmente, tende a ser diversa da relação de determinação que se

estabelece entre a matriz de referência no escopo do lugar de sujeito e

a configuração do modo de enunciação da sentença. A fim de darmos

visibilidade a essa questão, comparemos as sentenças em (01).

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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA

REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

144 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

(01) a- Lívia paga muitos impostos no Brasil.

b- Pague seus impostos corretamente no Brasil e não seja

surpreendido pelo leão.

c- Aquele que paga impostos no Brasil merece recompensa

social.

d- Quem paga merece recompensa.

As sentenças (01a) a (01d) se distribuem no contínuo dos modos de

enunciação, indo da constituição de uma referência mais específica à

constituição de uma referência mais genérica, de natureza proverbial,

exatamente na ordem em que estão listadas. A distribuição das

sentenças na escala dos modos de enunciação, como temos dito,

estaria relacionada à natureza da matriz de referência que se constitui

no escopo do lugar de sujeito. O lugar de objeto, por sua vez, embora

seja menos proeminente do que o lugar de sujeito na configuração do

modo de enunciação da sentença, mostra-se interveniente na

determinação do direcionamento referencial da sentença. Em (01a) a

(01c), a FN ‘impostos’ constitui um recorte na memória de dizeres do

verbo ‘pagar’, produzindo um direcionamento que atualiza o sentido

de pagar como “dar o preço estipulado por (coisa vendida ou serviço

feito)” ou ainda “descontar (do que se há de entregar) a parte que é

devida”ii. Se a ocupação do lugar de objeto fosse outra, teríamos

proporcionalmente outro direcionamento para a referência atualizada

pelo verbo ‘pagar’, que tem em seu arcabouço sentidos como “sofrer

as consequências (ex.: pagar os erros)”, “ser castigado em lugar de

outrem (ex.: paga o justo pelo pecador)” ou ainda “satisfazer (uma

dívida, um encargo)”3 Se os exemplos em (01a) a (01c) mostram que a

matriz de referência do lugar de objeto atua no sentido de determinar a

direção da referência constituída no âmbito da sentença, a não

ocupação no lugar de objeto da sentença proverbial em (01d),

configurando um amplo escopo de referência, deixa evidente que,

além de atuar no direcionamento da referência, a configuração desse

lugar sintático, em termos de amplitude e restrição de escopo, é

também solidária ao modo de enunciação da sentença.

Os exemplos em (01) também mostram que a matriz de referência

constituída no lugar de sujeito compatibiliza-se com o escopo de

referência dessas sentenças, endossando o que os trabalhos acerca da

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Priscila Brasil Gonçalves Lacerda

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 145

relação de determinação entre o lugar de sujeito gramatical e a

configuração do modo de enunciação da sentença já apontaram.

Assim, no lugar de sujeito gramatical das sentenças em (01), temos,

em (01a), sentença configurada em modo de enunciação restrito, a FN

‘Lívia’, cujo escopo de referência é de fato restrito; em (01b),

sentença configurada em um modo de enunciação mediano, um sujeito

cuja referência se projeta, podendo tanto representar o alocutário da

enunciação em que essa sentença seria empregada como qualquer

pessoa que se encaixe como destinatário desse conselho; e, por fim,

em (01c) e (01d), que configuram um modo de enunciação mais

generalizador, FNs encabeçadas pelas expressões ‘quem’ ou ‘aquele

que’, que constituem um amplo perfil de referência. Ajustando-nos a

esse padrão de análise, resta-nos questionar: qual seria a relação entre

a constituição da matriz de referência no lugar de adjunto adverbial e a

configuração do modo de enunciação da sentença?

Para responder a esse questionamento, parece-nos interessante

comparar (01c) e (01d). De acordo com o que podemos verificar, a

ocupação do lugar de adjunto adverbial não parece atuar na

configuração do modo de enunciação das sentenças, já que uma

sentença apresenta esse lugar sintático ocupado e outra não, a despeito

de ambas estarem configuradas em um modo de enunciação genérico

proverbial. Além disso, (01c) abriga no lugar de adjunto adverbial a

mesma formação adverbial (doravante, FAdv), ‘no Brasil’, que as

sentenças (01a) e (01b), estando essas últimas configuradas,

respectivamente, em um modo de enunciação mais especificador e

intermediário ou mediano. Diante dessas constatações, julgamos que

seja procedente reformularmos a nossa questão. Perguntamo-nos,

então, como a matriz de referência no lugar de adjunto adverbial atua

na constituição referencial do predicado da sentença?

Novamente, vamos comparar as sentenças em (01c) e (01d). Em

nossa análise, já pudemos verificar que em (01c) temos um

direcionamento da referência constituída no âmbito do predicado

estabelecido pela articulação entre a forma verbal ‘paga’ e a FN

‘impostos’. Em contrapartida, esse direcionamento não se efetiva em

(01d), que apresenta um vazio no lugar de objeto. Além dessa

diferença quanto ao direcionamento, podemos observar que a

referência constituída no predicado da sentença (01c) assenta-se sobre

um cenário, uma perspectiva de lugar que subsidia a referência

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REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

146 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

constituída pela sentença como um todo. A sentença (01d), por sua

vez, constitui um perfil de referência delimitada pela articulação entre

os sentidos de pagar e receber recompensa. Entretanto, não contamos

com um cenário em que essa sentença se ancora, não se produz uma

delimitação para essa referência. Ou seja, podemos concluir que a

FAdv ocupante do lugar de adjunto adverbial serve como subsidiária

da referência constituída na sentença, estabelecendo um recorte na

memória de sentidos sobre a qual se constrói um perfil de referência.

Isso significa que a FAdv atua na instalação do que poderíamos

chamar de cenário de referência da sentença, muito embora não pareça

intervir na configuração do modo de enunciação dessa sentença.

Precisamos definir, então, o que entendemos por cenário, instância

que parece determinar a proeminência do eixo temático-referencial no

lugar de adjunto adverbial. O mecanismo de constituição da referência

no âmbito da sentença recebe uma descrição interessante e, para nós,

inspiradora nos conceitos de cena e perspectiva de Fillmore (1977).

Vamos nos deter, de imediato, no conceito de cena. Para o autor, “os

significados são relativos a cenas”, dentro de sua abordagem isso quer

dizer que “nós escolhemos e entendemos uma expressão tendo ou

ativando em nossas mentes cenas ou imagens ou memórias de

experiências”iii (FILLMORE, 1977, p.74, tradução nossa). Nesse

ponto de vista, avalia Neves (2002, p.114), “a cena é uma entidade

cognitiva”. Consideremos o pequeno texto em (02) de modo que

possamos ilustrar como ele se constrói por uma confluência de cenas.

(02)

Perguntaram pro ganhador do Big Brother:

- E aí? O que você vai fazer com o seu milhão?

- Vou comprar um apartamento em Brasília.

- E com o resto?

- O resto eu financio pela Caixa!5

Remontamos aqui, tal como o faz Fillmore (1977), a uma situação

comercial. Essa situação constrói-se a partir do cruzamento de três

cenas, que são trazidas à tona, cada qual, pela perspectiva que as

sentenças carregam. A perspectiva, dentro do quadro teórico exposto

por Fillmore (1977), seria o ângulo de visão a partir do qual a cena é

ativada. Assim, a perspectiva da compra de um apartamento em

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Priscila Brasil Gonçalves Lacerda

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 147

Brasília, a perspectiva do recebimento de um prêmio em dinheiro feito

por um programa de TV e, ainda, a perspectiva da requisição de um

financiamento bancário consistem em espécies de holofotes que

iluminam parcialmente a cena, repertório de imagens ou experiências

que serve de alicerce para sustentar cada uma dessas perspectivas.

Portanto, as sentenças que compõem o diálogo em (02) constituem

perspectivas de referência sobrelevadas de repertórios cênicos que

instauram, além do que se mostra em primeiro plano – a compra de

um apartamento, o recebimento de um prêmio e o financiamento –

uma referência a venda, a pagamento, a dinheiro, a vendedor, a

comprador, a casa, a alto preço, a baixo preço, a empréstimo, a dívida,

a custo.

A sequência (03), a seguir, explicita o esboço do repertório cênico

sobre o qual se assenta a perspectiva constituída por “Vou comprar

um apartamento em Brasília”, que retiramos do texto apresentado em

(02).

(03)

a- Vou comprar um apartamento.

b- Vão vender um apartamento para mim.

c- Eu vou pagar por um apartamento.

d- Vão receber de mim por um apartamento.

e- Vou gastar com um apartamento.

f- Vão lucrar sobre mim com um apartamento.

Podemos observar que, para a abordagem de Fillmore (1977), a

cena sobre a qual se ancora a perspectiva representada pela sentença

“Vou comprar um apartamento em Brasília” constitui-se de todos os

processos, representados por verbos distintos, inclusive, envolvidos

em um evento de compra. Cada uma das sentenças em (03) parece

trazer à tona, em relevo, um ângulo de visão sobre esse evento. Nas

palavras de Fillmore (1977, p.74. Tradução nossa.),

quando nós compreendemos uma expressão linguística de

qualquer tipo, montamos simultaneamente uma cena como pano

de fundo e uma perspectiva sobre essa cena [...] a escolha de

uma expressão particular dentro do repertório de expressões que

ativam a cena de um evento comercial traz à mente a cena como

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REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

148 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

um todo – o evento comercial como um todo – mas apresenta

em primeiro plano – em perspectiva – apenas um aspecto ou

seção dessa cena6.

A ideia de haver um repertório que dá suporte à referência

constituída pela unidade linguística articulada que conforma a

sentença deve nos auxiliar na compreensão da proeminência do lugar

de adjunto adverbial no eixo temático-referencial. Naturalmente,

precisamos arcar com a transposição desse conceito para o quadro

teórico de uma semântica de bases enunciativas. Se para Fillmore

(1977) a cena é uma espécie de entidade cognitiva, a nossa abordagem

a compreende como uma espécie de entidade enunciativa, um domínio

referencial instado pelo histórico de enunciações que os elementos

articulados na constituição da sentença suportam.

A cena, de acordo com a abordagem que empreendemos neste

trabalho, consiste em uma virtualidade sobre a qual se assenta a

referência atual constituída no escopo da sentença. Faz-se necessário

demarcarmos aqui um distanciamento conceitual da noção de cena

enunciativa de Guimarães (2002). Segundo esse autor, “a relação entre

a língua e o falante” se dá em espaços de enunciação, “que são

espaços de funcionamento de língua”, decisivos “para se tomar a

enunciação como prática política”. Portanto, nesses “espaços de

enunciação, os falantes são tomados por agenciamentos enunciativos,

configurados politicamente” (GUIMARÃES, 2002, p.18-22). As

cenas enunciativas, por sua vez, “são especificações locais nos

espaços de enunciação”. Nelas há uma “distribuição de lugares de

enunciação”, que “são configurações específicas do agenciamento

enunciativo para ‘aquele que fala’ e ‘aquele para quem se fala’”

(Idem, p.23). No estudo do eixo temático-referencial, mesmo que

entendamos que a composição da referência leve em conta as

condições sociopolíticas que determinam o acesso à palavra e regulam

a distribuição dos papéis em uma cena enunciativa, estamos

focalizando propriamente o repertório de sentidos, a base sobre a qual

essas condições se investem para a constituição de uma cena,

compreendida, então, como base de referência.

Já que a designação “cena enunciativa” remete a uma noção

distinta da que consideramos para lidar especificamente com o que é

pertinente ao eixo temático-referencial, por uma questão de economia

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 149

e precisão, chamaremos a cena que remete à construção de uma base

sobre a qual se assenta a referência constituída na atualidade do dizer

de domínio referencial. Essa noção é apresentada por Dias (2013), que

parte do conceito de “referencial”, proposto por Foucault (2010, p.

103). Para esse autor,

um “referencial” [...] não é constituído de “coisas”, de “fatos”,

de “realidades”, ou de “seres”, mas de leis de possibilidade, de

regras de existência para os objetos que aí se encontram

nomeados, designados ou descritos, para as relações que aí se

encontram afirmadas ou negadas. O referencial do enunciado

forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância

de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de

coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio

enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de

delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu

valor de verdade.

Foucault (2010) fala em “enunciado”. Transferindo essa percepção

para o escopo da sentença, contraparte orgânica do enunciado e nível

de expressão que de fato nos interessa particularmente como unidade

de análise, teríamos o domínio referencial como o repertório de base

que conforma a contraparte virtual da atualidade de referência que se

constitui sobre a articulação sintática da sentença. A instância de

referência que se configura na atualidade do dizer é o que nós

chamamos de cenário.

Devemos precisar como se dá a dinâmica entre virtualidade e

atualidade aplicada à constituição da referência. A conformação do

cenário é um acontecimento enunciativo e, como tal, não segue

fixamente um roteiro de possibilidades, preestabelecido pelo domínio

referencial sobre o qual se assenta. Antes, a construção de um cenário,

“instala sempre uma nova temporalização, um novo espaço de

conviviabilidade de tempos” (GUIMARÃES, 2002, p.12). Isso deriva

do postulado de que “o real a que o dizer se expõe ao falar dele”

consiste, na verdade, em “uma materialidade histórica do real”

(GUIMARÃES, 2002, p.11).

A constituição da referência no âmbito da sentença não se efetiva,

portanto, pela simples representação de uma exterioridade linguística.

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150 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

O apontamento para essa exterioridade consiste em um efeito

perpassado pela instância enunciativa que interpreta o mundo a que o

dizer se refere. A sentença, nesse sentido, precisa ancorar-se em “um

ponto definido”, em “uma posição determinada” que delimite “um

campo de coexistências” para constituir referência (FOUCAULT,

2010, p.112). Entretanto, ao mesmo tempo em que a referência

efetivamente não se constitui a esmo, estando necessariamente

delimitada pelo domínio referencial que lhe serve de alicerce, ela

constrói um potencial de expansão dos seus limites. E é a relação de

uma sentença com outras sentenças que funciona como instância

reguladora desse potencial de expansão.

2.2 O domínio semântico memorável

As FAdvs, dentro da dinâmica que esboçamos na seção anterior,

estariam engajadas na constituição da referência como peças de

sustentação, ancoradas no domínio referencial que subjaz à

constituição do cenário, ou seriam peças que sobrelevam da atualidade

do dizer, dando especificidade a esse cenário? Essa questão parece

resolver-se parcialmente pelo que entendemos por domínio semântico

memorável do verbo.

O esboço que fizemos em (03) representa o repertório cênico ou,

transpondo para a nossa terminologia, e trazendo com essa

transposição uma perspectiva eivada de empreendimentos

enunciativos, representa o domínio referencial da sentença “Vou

comprar um apartamento em Brasília”. Tal esboço deixa entrever que

o domínio referencial da sentença em questão se constrói em torno do

evento apresentado pelo verbo ‘comprar’. A especificidade do lugar

em que se dá o evento, em Brasília, não foi elencada como categoria

de base na conformação desse domínio referencial. O domínio

referencial sobre o qual se assenta um evento deve reduzir-se ao

número mínimo de variáveis convocadas a participar da constituição

desse evento, tendo em vista que o presente da enunciação se

encarrega de investir sobre a constituição da atualidade desse evento

os elementos instados a compor o cenário de referência. O que parece

se colocar minimamente na constituição de um evento instalado em

torno do verbo ‘comprar’ são as categorias que compõem o domínio

semântico memorável desse verbo.

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Priscila Brasil Gonçalves Lacerda

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 151

O conceito de domínio semântico memorável está inspirado no

conceito de domínio semântico de determinação desenvolvido por

Guimarães (2007). Esse autor afirma que “a determinação é a relação

fundamental para o sentido das expressões linguísticas”, ou seja, “as

palavras significam segundo as relações de determinação semântica

que se constituem no acontecimento enunciativo” (GUIMARÃES,

2007, p.79-80). Para explicitar essa noção, ele toma como exemplo a

sentença que reproduzimos a seguir.

(04) As casas e os barracos do bairro mostram que as

residências urbanas tem uma grande diferença de qualidade.

Nessa sentença, temos as FNs ‘casas’, ‘barracos’ e ‘residências’

que compartilham do mesmo domínio semântico. A FN ‘residências’

retoma por reescrituração as outras e, na medida em que na sentença

em questão essas FNs constituem o sentido da palavra ‘residências’, o

chamado domínio semântico de determinação (doravante DSD) dessa

última FN é composto por ‘casas’ e ‘barracos’, como mostra o

esquema:

casa |– residência –| barraco Fonte: GUIMARÃES, 2007, p.80.

Assim, define-se que “dizer qual é o sentido de uma palavra [em

um enunciado] é poder estabelecer qual é o seu DSD”

(GUIMARÃES, 2007, p.80). O autor esclarece ainda qual é a relação

entre o DSD de uma palavra e a referência por ela constituída:

O DSD caracteriza [...] a designação das palavras [...]. A

designação de uma palavra é uma relação de palavra a palavra,

que não é uma classificação das coisas existentes, é uma

significação que acaba por identificar coisas, não enquanto

existentes, mas enquanto significadas. (GUIMARÃES, 2007, p.

95)

Ou seja, o DSD de uma FN é o que configura a referência

constituída por essa FN na atualidade do dizer em que ela é

empregada. Essa referência se dá como a apreensão de objetos

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152 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

significados por esse dizer, significados pela enunciação. Apesar de a

referência não se furtar ao efeito de apontamento para um mundo

existente, ela se dá por um mecanismo enunciativo, em que as

palavras funcionam como peças que apreendem um mundo

significado.

O conceito de DSD é, para Guimarães (2007), um instrumento para

explicar como o sentido de uma palavra, e a identidade que essa

palavra confere a um mundo significado, constrói-se no presente da

enunciação. Na medida em que o presente da enunciação, na

instalação de sua temporalidade, produz um recorte na memória de

dizeres e uma latência de futuro, podemos admitir que o DSD de uma

palavra é construído na interface entre memória e atualidade e

configura-se, sob o signo da regularidade, como um arcabouço

memorável para enunciações futuras.

Conduzindo nossas reflexões por esse caminho, diríamos que as

palavras são atravessadas por uma memória de enunciações que

definem o seu sentido. Esse corpo memorável, que confere identidade

de sentido às palavras e no qual a atualidade do dizer produz recortes

de pertinência, é o que chamamos aqui de domínio semântico

memorável (doravante DSM). Assim, entendemos que o modo como

se configura o domínio referencial do evento instalado pelo verbo

‘comprar’ e pelos outros verbos da língua está em consonância com o

DSM que o verbo carrega.

A seguir, verificaremos uma sequência de exemplos a fim de

investigar se as FAdvs destacadas em cada uma das sentenças

estariam engajadas no DSM do verbo a que se articulam ou se elas

teriam insurgido da conformação do cenário, i.e., do recorte de

referência que sobreleva na atualidade de enunciação dessas

sentenças. Em primeiro lugar, devemos esclarecer que as FAdvs são

unidades passíveis de ser substituídas por advérbios isolados. E,

reforçando esse critério de delimitação das FAdvs, assumimos que

esses elementos, ocupantes do lugar de adjunto adverbial, respondem

às seguintes perguntas: como?; quando?; onde?; por quê?.

Vejamos os exemplos (05) a (10) a seguir, o primeiro deles já

utilizado em nosso capítulo inicial.

(05) Essa semana iniciei a minha dieta maluca.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 153

(06) Um engenheiro americano projetou um revólver de

plástico, mas que atira balas de verdade. Calibre 38. E colocou

o projeto na internet.7

(07) Quem age com respeito merece respeito.

(08) Eles foram ao parque.

(09) O parasita mora ao lado

(10) Eles estudam medicina na UFMG8.

Para verificar o nível de agregação da FAdv ao DSM das formas

verbais em (05) a (10), empregamos o teste de apagamento. Nesse

caso, entretanto, o teste não se presta a observar se a sentença perde a

sua aceitabilidade na língua ao ter a FAdv que originalmente a

compõe subtraída. Verificamos a partir desse teste se o lugar ocupado

pela FAdv demanda uma matriz de referência, configurando um

silêncio significativo, a partir da retirada dessa FAdv. A configuração

de um silencio sintáticoiv, ou seja, de uma matriz de referência no

escopo do lugar de adjunto adverbial, indicaria que o DSM do verbo

demanda a referência constituída pela FAdv, ou seja, indicaria que a

FAdv está agregada ao DSM do verbo. Assim, consideremos as

sentenças tal como as apresentamos a seguir, após o apagamento das

FAdvs.

(05’) [ ] Iniciei a minha dieta maluca.

(06’) Um engenheiro americano projetou um revólver de

plástico, mas que atira balas de verdade. Calibre 38. E colocou

o projeto [onde].

(07’) Quem age [ ] merece respeito.

(08’) Eles foram [onde].

(09’) O parasita mora [onde].

(10’) Eles estudam medicina [ ].

Notamos que a sentença (05’) apresenta um cenário em que os

elementos instados a construir a referência em torno do verbo ‘iniciar’

são apenas aqueles linguisticamente materializados na ocupação dos

lugares de sujeito e de objeto, já que o apagamento da categoria de

tempo expressa pela FAdv ‘essa semana’ não deixou vestígios na

referência constituída pela sentença (05’). A sentença (06’), em

contrapartida, demanda uma matriz de referência para a categoria de

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154 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

lugar no escopo do adjunto adverbial. Isso nos indica que a FAdv ‘na

internet’ não é uma especificidade do cenário constituído pela

atualidade do dizer que se materializa em (06), mas está arraigado ao

DSM do verbo ‘colocar’. A sentença (07’), por sua vez, não parece

constituir matriz de referência no lugar da FAdv subtraída. Isso nos

indica que a FAdv ‘com respeito’ está menos agregada ao DSM do

verbo ‘agir’, na sentença (07). As sentenças (08’) e (09’),

diferentemente, mostram que se produz matriz de referência nos

respectivos lugares sintáticos de adjunto adverbial que originalmente

estavam ocupados por uma categoria FAdv constituída pela categoria

lugar. Por fim, a partir da observação de (10’), compreendemos que a

FAdv ‘na UFMG’ não deixa em seu lugar uma matriz de referência ao

ser eliminada da sentença. Isso significa que as FAdvs em análise nas

sentenças (08) e (09) estão mais agregadas ao DSM dos verbos ‘ir’ e

‘morar’, respectivamente, enquanto a FAdv analisada em (10) está

menos agregada ao DSM do verbo ‘estudar’.

Ao investigarmos a agregação das FAdvs ao DSM do verbo, com

efeito realizamos um procedimento de análise cujo entendimento

sobre a articulação dos elementos dentro da sentença segue uma

orientação inversa daquela que se observa nos moldes da tradição

gramatical no que concerne à noção de regência. Assumimos, pois,

que “é o termo secundário que é o requerente e o termo primário que é

o requerido: um termo primário pode aparecer sem o termo

secundário, mas não o inverso”10 (HJELMSLEV, 1939, p.19, tradução

nossa). Lidamos com essa inversão na medida em que partimos da

FAdv, como elemento secundário, para chegar a uma explicação

acerca da relação dessa FAdv com o verbo, tomando-o como elemento

primário. Supomos que é a FAdv que requer a relação com o verbo

para se configurar e não o inverso. Assim, procedemos desta forma:

primeiramente, observamos uma sequência em que as FAdvs estão

materializadas e, depois, efetuamos o apagamento delas, a fim de

depreender se a instanciação dessas FAdvs na sentença explicar-se-ia

pela agregação delas ao DSM do verbo. Essa inversão parece nos

oferecer um ângulo de visão mais ajustado às especificidades do lugar

de adjunto adverbial. Novamente, estabelecemos um diálogo com

Fillmore (1977, p.74), no intuito de explicar a nossa concepção a

respeito desse ajustamento do método invertido ao estudo do lugar de

adjunto adverbial. Nas palavras desse autor:

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 155

Os constituintes “circunstanciais” da sentença não precisam ser

aspectos de cenas especificamente requeridos por um tipo de

situação particular. Uma vez que todo evento acontece em um

tempo, toda sentença que apresenta um evento pode conter um

adverbial de tempo; uma vez que vários tipos de eventos

acontecem em lugares específicos, sentenças que representam

eventos como esses podem conter adverbiais locativos; e assim

por diante.v

Ou seja, as categorias de referência apresentadas pelas FAdvs

estariam submersas na constituição do cenário de qualquer sentença.

Avaliar se as FAdvs constituem o DSM do verbo significa avaliar se

as categorias de referência apresentadas por elas são instadas pelo

domínio referencial das sentenças, i.e., pela memória histórica de

sentidos sobre a qual se assenta o cenário instaurado pela atualidade

do dizer materializado pela sentença, ou se elas sobrelevam da própria

atualidade de constituição desse cenário. Vejamos mais alguns

exemplos.

(11) Pedro agiu de má fé.

(11’) Pedro agiu [como/onde/porque/quando].

(11”) Finalmente, Pedro agiu [como/onde/porque/quando].

(11”’) Finalmente, Pedro agiu.

(12) Pedro sempre age.

Excetuando a sentença (11’”), em que podemos entender o

processo de agir no sentido de tomar uma atitude, as sentenças de (11)

a (12) nos mostram que o DSM do verbo ‘agir’ demanda uma matriz

de referência no lugar de adjunto adverbial. Por isso, devemos admitir

que a FAdv constitui o cenário de referência dessas sentenças estando

enraizada no DSM do verbo em questão, diferentemente do que ocorre

no exemplo a seguir.

(13) Pedro não mora [ ], ele esconde.

Ao compararmos (09) e (09’), chegamos à conclusão que o DSM

do verbo ‘morar’ demanda uma matriz de apontamento no lugar de

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REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

156 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

adjunto adverbial associada à categoria de referência lugar. Em (13),

temos uma sentença em que os sentidos de ‘morar’ são confrontados

com o sentido de ‘esconder’, criando um cenário para o conceito de

morar longe. E, nesse caso, o lugar de adjunto adverbial associado ao

verbo ‘morar’ não constitui uma demanda de referência em seu

escopo, pois estamos diante de uma sentença cujo modo de

enunciação lida justamente com o efeito de estabilização de um

conceito.

A partir dessa verificação e do confronto que estabelecemos entre

(07’), “Quem age merece respeito”, e as demais sentenças construídas

em torno do verbo ‘agir’, podemos constatar que o DSM estaria

condensado na forma infinitiva do verbo, entretanto, esse DSM não

emerge em estado bruto do infinitivo para a constituição do cenário de

referência da sentença. Antes, o presente da enunciação produz um

recorte no DSM do verbo, delimitando as pertinências da atualidade

do dizer, i.e., as pertinências à constituição do cenário de referência da

sentença. O contraste entre exemplos constituídos em torno do mesmo

verbo nos leva a crer que o modo de enunciação em que se configura a

sentença governaria o recorte no DSM do verbo para a constituição do

cenário de referência da sentença.

Retomando a ideia apresentada por Fillmore (1977), de que as

categorias de tempo e lugar estariam fundamentalmente submersas na

constituição do cenário de referência das sentenças, somos levados a

questionar se outras categorias materializadas por FAdvs não estariam

na mesma condição. Para entendermos esse ponto, consideremos a

seguinte afirmação de Sousa Dias (1995, p.98, destaque em negrito

nosso):

o sentido é neutro: permanece estritamente o mesmo para

proposições que se opõem sob todos os pontos de vista

possíveis: seja sob o da quantidade, ou o da qualidade, ou o da

relação, ou o da modalidade (porque todos os pontos de vista

concernem apenas a referência, não o sentido). O sentido é a

dimensão virtual, ou evenemencial, de toda a enunciação [...]

Ao falar do sentido, o autor remete à “dimensão não referente,

inacessível sob forma proposicional”, às “idealidades virtuais” que se

definem “por uma intrínseca multiplicidade e pela consistência dessa

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 157

multiplicidade” e que estariam “num plano não de referência mas de

imanência” (SOUSA DIAS, 1995, p.98-99). Em suma, o sentido

concerne à dimensão simbólica da língua, que se manteria

relativamente estável em si mesma, pairando sobre a atualidade de

todo dizer, sem se reduzir a ela. Em outros termos, o sentido seria a

base de sustentação da sentença, constitutivo do domínio referencial e

do DSM do verbo, que subjazem a atualidade da referência constituída

enquanto cenário. Sousa Dias (1995) fala em pontos de vista possíveis

que concernem à referência, logo, depreendemos que esses pontos de

vista possíveis se instalam sobre o cenário constituído pela atualidade

do dizer.

Quantidade, qualidade, relação ou modalidade seriam, segundo o

autor, variáveis que revelam a inserção desse ponto de vista na

constituição da referência. Parece evidente que as variáveis de

quantidade e modalidade ganham materialidade linguística em FAdvs

como ‘muito’, ‘pouco’, ‘bastante’ ou ‘bem’, ‘mal’, ‘lindamente’, entre

outras. Já a variável qualidade materializar-se-ia de forma prototípica

em expressões adjetivas, entretanto, admitimos que essa variável

esteja também infiltrada nas FAdvs indicativas de quantidade, pois a

gradação entre ‘demasiadamente’, ‘bastante’, ‘muito’,

‘suficientemente’ e ‘pouco’, por exemplo, podem ter o seu emprego

associado a um julgamento qualitativo. Mas é nas FAdvs de

modalidade que a variável qualidade parece, sobretudo, infiltrada, pois

a modalização apresenta um teor avaliativo marcado, por exemplo,

pela oposição entre ‘bem’ e ‘mal’ ou ‘lindamente’ e ‘estupidamente’.

A relação, por sua vez, também, está arregimentada por uma

conformação eivada de traços de ponto de vista do locutor e seria o

mecanismo de base para a constituição da referência na atualidade do

dizer.

Em resumo, podemos dizer que o processo de constituição de

referência da sentença estaria ancorado em um domínio referencial

que lhe dá sustentação, contudo, a transposição do domínio virtual

para a atualidade da enunciação parece estar eivada de incursões

creditadas ao ponto de vista que se lança sobre a constituição dessa

referência. E na medida em que as FAdvs transitam entre dar suporte

linguístico às variáveis concernentes ao que Sousa Dias (1995)

entende por ponto de vista e dar suporte à unidade de referência

agregada ao DSM do verbo, compreendemos que possam ser

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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA

REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

158 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

congregados, em um único contínuo, conformações dos eixos

enunciativo de incidência do locutor e temático-referencial. Assim, as

FAds seriam distribuídas nesse contínuo que se estende entre um

extremo margeado pela maior agregação ao DSM do verbo e outro

extremo margeado pela maior agregação ao cenário de referência da

sentença, o que quer dizer maior agregação ao mecanismo próprio de

inserção de ponto de vista na constituição desse cenário, sobrepondo o

eixo enunciativo de incidência do locutor à constituição do cenário de

referência. Vejamos a seguir a distribuição de algumas ocorrências

nesse contínuo:

+ AGREGADA

AO DSM DO

VERBO

Eles foram ao parque.

O parasita mora ao lado.

Um engenheiro americano

projetou um revólver de plástico

[...]. E colocou o projeto na

internet.

Pedro sempre age.

Essa semana iniciei a minha dieta

maluca.

Eles estudam medicina na UFMG.

Ela beijou sua mãe na bochecha.

Maria dançou lindamente ontem.

Ela beijou sua mãe na plataforma.

Maria dançou lindamente.

Quem age com respeito merece

respeito.

Maria provavelmente dançou

lindamente ontem.

+ AGREGADA AO

CENÁRIO DE

REFERÊNCIA

FADV

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Priscila Brasil Gonçalves Lacerda

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 159

Imagem 2: Contínuo +/- agregação ao DSM do verbo e +/- agregação ao

cenário de referência da sentença

(Fonte: LACERDA, 2013, p.128.)

Como podemos observar, no extremo superior estão alocadas as

FAdvs que produzem, inclusive, silêncio sintático. Já no extremo

inferior, estão situadas as FAdvs que insurgem da própria constituição

do cenário, demarcando ponto de vista. Na zona intermediária,

aderindo à abordagem de Fillmore (1977), estão posicionadas as

FAdvs de categoria tempo ou lugar que, independentemente da

agregação ao DSM do verbo, potencialmente submergem na

constituição de qualquer cenário de referência. Enfim, a zona

intermediária está reservada a estas últimas uma vez que elas não se

enquadram no DSM do verbo, muito embora também não estejam

ancoradas na inserção de pontos de vista ao cenário de referência.

Considerações finais

As análises apresentadas aqui assentam-se sobre a essência de uma

sintaxe de bases enunciativas, cujo entendimento ressalta os fatos

sintáticos como imersos na relação entre a materialidade articulada da

língua e o acontecimento enunciativo (DIAS, 2009). É nesse espaço

de reflexões que as tradicionais funções sintáticas são entendidas

como lugares sintáticos, sítios etiquetados que abrigam constituição

ou configuração de referência. E é também nesse quadro que a

referência, ao estabelecer uma relação entre a linguagem e uma

entidade do mundo, é concebida como um efeito de sentidos

atribuídos pela relação de um enunciado com outros enunciados e pela

relação do locutor com aquilo que diz.

No entremeio de todas essas concepções basilares, o estudo sobre a

configuração temático-referencial do lugar de adjunto adverbial ganha

relevância por trazer à tona diferentes matizes da relação entre

materialidade linguística e enunciação. Isso se dá porque ganha

visibilidade na configuração desse lugar sintático a conformação da

referência no interstício da entrada do locutor na enunciação para a

constituição de um cenário em que elementos são agregados para

produzir, como efeito, a apreensão de um mundo extralinguístico.

Ganha visibilidade, com o enfoque dado ao adjunto adverbial, o fato

de a referência se constituir em perspectivação – o que, em última

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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA

REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

160 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

instância, é inerente ao processo de atualização da virtualidade da

língua.

Outro aspecto do processo de atualização da virtualidade da língua

que ganha notoriedade na configuração do lugar de adjunto adverbial,

desta vez colocado em contraste com o lugar de objeto, é a projeção

da memória de dizeres na configuração da sintaxe da língua. A noção

de DSM lança os holofotes especialmente sobre o caráter

determinante da relação entre materialidade e enunciação para

conformação do que tradicionalmente explicar-se-ia em termos de

transitividade e seria descrito como elementos acessórios ou essenciais

para a completude da sentença.

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Priscila Brasil Gonçalves Lacerda

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 161

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Palavras-chave: formações adverbiais, sintaxe de bases enunciativas,

domínio semântico memorável, referência, perspectiva do locutor

Keywords: adverbial formations, syntax from enunciative bases,

memorable semantic domain, reference, announcer’s perspective.

Notas

1 Em Lacerda (2013, p.95-134), esta proposta é apresentada de forma mais detalhada. 2 Em Lacerda (2009), apresentamos a noção de genericidade proverbial, que se

caracteriza pela constituição de referências, de um modo geral, inespecíficas,

consubstanciadas em sentenças configuradas em um modo de enunciação proverbial. 3 Definições extraídas do verbete ‘pagar’ do Dicionário Priberam de Língua

Portuguesa. (<http://goo.gl/iiKGC> Acesso: 20/06/2013). 4 No original: […] meanings are relativized o scenes […] we choose and understand

expressions by having or activating in our minds scenes or images or memories of

experiences. 5 Disponível em: <http://goo.gl/2pJyW>. Acesso: 24 jun. 2013.

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ENTRE O MATERIAL E O SIMBÓLICO: A CONFORMAÇÃO DA

REFERÊNCIA NO LUGAR DE ADJUNTO ADVERBIAL

162 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

6 No original: [...] whenever we understand a linguistic expression of whatever sort,

we have simultaneously a background scene and a perspective on that scene […] the

choice of any particular expression from the repertory of expressions that activate the

commercial event scene brings to mind the whole scene – the whole commercial event

situation – but presents in the foreground – in perspective – only a particular aspect

or section of that scene. 7 Disponível em: <http://goo.gl/BQ4SH. Acesso: 26 jun. 2013. 8 Disponível em: <http://goo.gl/tmABR. Acesso: 26 jun. 2013. 9 A noção de silêncio sintático, desenvolvida por Dalmaschio (2008), designa um

mecanismo de constituição de referência in absentia, por meio da atualização de um

lugar sintático que não é ocupado por um elemento linguístico materializado, mas que

continua a compor a sentença. Consiste em um silêncio significativo delimitado pelas

características do lugar sintático que o abriga, sendo necessário, inclusive, para que a

sentença ganhe efeito de completude. 10 No original: c’est le terme secondaire qui est l’appelant et le terme primaire qui est

l’appelé: un terme primaire peut apparaître sans terme secondaire, mais non

inversement. 11 No original: The “circumstantial” constituents of a sentence need not be aspects of

scenes that are specifically required by a particular type of situation. Since any event

takes place in time, any event sentence can contain a time adverbial: since many kinds

of events take place in specific locations, sentences representing such events can

contain locative adverbials, and so on.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 163

CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO

GRAMATICAL “OBJETO VERBAL” – POR

UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

Luciani Dalmaschio

UFSJ

Resumo: Esta pesquisa fundamenta-se nos estudos desenvolvidos pela

Semântica da Enunciação, a fim de propor um trabalho de análise

que se organiza em torno de uma sintaxe de base enunciativa, cujo

pressuposto teórico propõe que o funcionamento linguístico é regido

pelo plano das formas e o plano da enunciação. Nessa perspectiva,

tomamos como objeto específico de análise o lugar sintático “objeto

verbal”. Alicerçados no estudo desse fato gramatical e tomando por

base um corpus diversificado, trabalhamos com a proposta de que o

silêncio sintático se apresenta como elemento constitutivo do sentido,

bem como de que as condições de ocupação são determinadas pelos

modos de enunciação específicos e genéricos que se manifestam em

predicações centradas e dirigidas.

Abstract: This research is based on studies developed by the

Semantics of Enunciation in order to propose an analytical work that

is organized in an enunciative based syntax, whose theoretical

assumption proposes that the linguistic functioning is governed by the

plane of the forms and the plane of enunciation. In this approach, the

focus of the analysis is on the syntactic place of verbal object. This

work, based on this grammatical topic and also in a diverse corpus,

works with the proposition that the syntactic silence presents itself as

a meaningful constitutive element, as well as occupation conditions

are determined by generic and specific enunciative forms that

manifest in centered and directed predications.

1. Introdução

Filiados à perspectiva teórica trazida pela semântica da enunciação,

no percurso de nossa vida acadêmica temos realizado pesquisas que

visam à reflexão sobre a materialidade linguística percebida em sua

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

164 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

contraparte enunciativa. O olhar para a interface

enunciado/enunciação tornou viável um recorte de trabalho que coloca

em cena os lugares sintáticos, no caso deste trabalho o lugar de objeto

verbal, de modo a propor que “não dizer sintaticamente” não significa

esvaziar o sentido do enunciado. Ao contrário, significa ampliar o

domínio de referência do lugar silenciado, possibilitando que ali se

efetive a multiplicidade do dizer, graduada referencialmente pelos

modos de enunciação.

A teoria que sustentará nossa pesquisa fundamenta-se nos estudos

sobre Enunciação e materialidade linguística. Nesse sentido, para o

desenvolvimento deste texto, partimos do pressuposto segundo o qual

é na relação entre a dimensão material e a dimensão enunciativa que

se realiza o funcionamento linguístico. Sendo assim, como exigência

do caminho teórico selecionado para sustentar nossa análise,

afirmamos que é por meio de como escolhemos abordar o fato

gramatical que podemos ou não realizar uma sintaxe de bases

enunciativas.

A exemplo do que dissemos em Dalmaschio (2008), as condições

que sustentam o fato gramatical são, no mínimo, três e caracterizam-se

de forma diversa, de modo a direcionar o foco de análise para uma ou

outra vertente de língua, podendo, algumas vezes, agirem juntas

dentro de uma mesma orientação de gramática. Essas condições foram

nomeadas por Dias (2007a) como distributivas, atributivas e

operativas. Neste texto, olharemos, a princípio, cada uma delas, a fim

de começarmos a esboçar um perfil de como a transitividade verbal se

manifesta na língua, segundo nossa fundamentação

sintático/semântica. Logo em seguida, e pelas vias das condições

atributivas e operativas da reflexão gramatical, trataremos de duas

formulações específicas: a) do que para nós se configura como “lugar

sintático”, tomando por base a teoria das posições, desenvolvida por

Jean-Claude Milner (1989) e; b) de como os estudos da

Macrossintaxe, alvo das pesquisas de Berrendonner (1990, 2002),

podem ser associados ao que estamos nomeando sintaxe de bases

enunciativas. Por fim, lançaremos um olhar sobre o lugar sintático de

objeto pelo viés da Semântica da Enunciação. Para isso, discutiremos

como ocorre a projeção desse lugar, em que medida as predicações

centradas e dirigidas e os modos de enunciação (DIAS, 2006)

participam da ocupação (e da não-ocupação) do lugar de objeto e que

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 165

efeitos de sentido a presença do silêncio sintático configura nesse

processo de predicação.

2. Condições distributivas e atributivas do fato gramatical

Ao propor a existência das condições distributivas, Dias (2007a) se

baseia no fato de que há gramáticas que fazem análise sintática

elegendo como alvo de olhar a distribuição dos itens lexicais na

sentença e a interdependência que esses itens estabelecem entre si e/ou

com as cenas do mundo. São as gramáticas de base reccional, cujo

foco de discussão centra-se no estudo dos mecanismos de ligação

sentencial. Trata-se, portanto, da análise das unidades a partir do

processo de articulação dos elementos na sentença. Sob essas

condições, o sujeito e o objeto, por exemplo, “adquirirem o estatuto de

seres (pela confluência entre o pensamento e a realidade) ou de termos

(pela distribuição das unidades na estrutura).”1 (DIAS, 2007a, p.86).

Essa reflexão nos faz perceber que, levar em conta apenas as

condições distributivas do fato gramatical significa produzir um

estreitamento da noção de língua cujas regras são constituídas apenas

organicamente ou apenas levando em conta a organização semântica

do mundo extralinguístico.

A segunda condição de abordagem do fato gramatical, proposta por

Dias (2007a), é a atributiva. A passagem das condições distributivas

para as atributivas pode ser considerada, segundo o autor, o ponto

central para o desenvolvimento da sintaxe, uma vez que estas prevêem

a existência não mais de termos ou de seres na configuração da cadeia

e sim de lugares sintáticos.

Essa noção de lugares-suporte equivale àquela proposta pela teoria

gerativa que se refere a essas projeções sintáticas como posição. Nas

palavras de Silva (1996, p.19) “...se se insere um verbo transitivo

como encontrar na estrutura, sabe-se que na Estrutura-P, por conta do

léxico, ele deve ter uma posição de objeto para a inserção lexical do

complemento interno deste verbo.” A diferença é que, para os

gerativistas, o interesse no estabelecimento dessas posições na

estrutura sintática da sentença se deve à necessidade de compreender a

linguagem como uma “faculdade humana, um sistema biologicamente

determinado, organizado de maneira precisa, localizado em alguma

parte do cérebro humano.” (SILVA, 1996, p.17). Decorre desse fato o

interesse da gramática gerativa em buscar estabelecer quais são os

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

166 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

meios utilizados pelo cérebro humano para produzir o que se chama

linguagem. O investimento teórico que realizam para esse fim

encontra sustentação no pressuposto de que

a faculdade da linguagem se encaixa dentro da arquitetura

maior da mente/cérebro. Ela interage com outros sistemas, que

impõem condições que a linguagem deve satisfazer se for para

ser de todo usável. Estas poderiam ser pensadas como

‘condições de legibilidade’, no sentido que outros sistemas

precisam ser capazes de ‘ler’ as expressões da língua e delas

fazer uso para o pensamento e ação. (CHOMSKY, 1997, p.57).

Sendo assim, a postura assumida pelo gerativismo em relação ao

que nomeamos aqui como silêncio sintático seria a de ignorá-lo, uma

vez que para a teoria gerativa não interessa vislumbrar a ocupação

virtual dessa posição, desse lugar sintático, basta marcá-lo como

categoria vazia. As análises gerativistas têm tratado os casos de

objetos nulos por meio de perspectivas diversas. Mas, em sua maioria,

os estudos realizados sobre esse assunto, como por exemplo os

trabalhos de Rizzi (1994) e Raposo (1992), caracterizam os objetos

nulos como categorias vazias. Na verdade, as condições atributivas

bastam aos gerativistas para o estudo que a teoria adotada por esses

pesquisadores estabelece. Trata-se de um estudo posicional em que os

lugares são estudados a partir de seus preenchimentos ou de seus não-

preenchimentos na cadeia que se estabelece na sentença.

Algumas gramáticas de perfil tradicional como a de Bechara

(1999)2 e aquelas de concepção pragmática também concebem o fato

gramatical sob a ótica das condições atributivas. Revisando Bechara

(1999, p.416), Dias (2007a, p.86) afirma em seu trabalho que “o signo

verbal de natureza substantiva que ocupa o lugar sintático de objeto é,

na verdade, um representante do lugar-argumento”3 e, retomando as

ideias de Borba (1996, p.21) diz que “posição paralela toma a linha da

gramática funcionalista: os actantes são itens lexicais que preenchem

os argumentos.” (DIAS, 2007a, p.86). Por essa concepção,

percebemos que é possível atribuir-se função sintática sem que ela

esteja ligada a ser ou a termo, como proposto nas condições

distributivas.

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 167

3. Ocupação dos lugares sintáticos – foco de análise das condições

operativas

A terceira e última condição de estudo do fato gramatical,

conforme pensado em Dias (2007a), corresponde ao que o autor

chamou de condição operativa. Essas condições, além de preverem a

existência dos lugares sintáticos, debruçam-se sobre a busca das

exigências de ocupação de tais lugares, aceitando, inclusive, a

possibilidade de que essa ocupação não se efetive e que isso não traga

nenhum prejuízo à produção de sentido do enunciado.

Os perfis de gramática que não incluem as condições atributivas

em sua concepção, consequentemente, não admitem também as

operativas, uma vez que não propõem a existência de lugares

sintáticos na organização da sentença.

As condições operativas nos levam a entender que o sentido de um

enunciado não tem relação só com a sua estrutura, mas também com a

história de sentidos do próprio enunciado, com outros sentidos de

outros enunciados, com a relação dos enunciados com as coisas sobre

as quais ele fala, etc. (GUIMARÃES, 2006, p.120). Ou seja, o sentido

está no potencial das enunciações nas quais essa sentença foi

proferida.

Tomando por base um aparato teórico que, observados os devidos

distanciamentos, muito se aproxima dessa forma de análise linguística,

traremos, agora, para nosso trabalho, dois fundamentos que pensamos

ser importantes para os objetivos que almejamos alcançar e que, em

nossa concepção, se ligam ao que Dias (2007a) caracteriza como

condições atributivas e operativas do fato gramatical, de modo a

tentarmos esclarecer como essas condições se efetivam em um estudo

linguístico.

4. Site e place – a teoria das posições

Um aspecto que nos parece fundamental elucidar é o que até agora

nomeamos lugar sintático. Para delimitarmos esse conceito

tomaremos por base as definições trazidas por Milner (1989) acerca da

concepção de place e site. Em suas discussões, o autor propõe que

place deve ser estudado sintaticamente como um conceito relativo à

localização de um item lexical na sentença, apresentando, portanto,

uma noção mais concreta, dada a prerrogativa de poder ser visualizado

organicamente. Isso o faria ser percebido como um lugar não

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

168 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

qualificado. Site, por sua vez, corresponde a um lugar qualificado. Seu

conceito é mais abstrato e precisa ser estudado tendo em vista um

arcabouço teórico que o caracterize. Site é o que nomeamos lugar

sintático.

Essa diferenciação nos impulsiona a alguns questionamentos

fundamentais para o desenvolvimento dos objetivos propostos por

esse trabalho, como por exemplo: se o lugar sintático com o qual nos

propomos a trabalhar é um lugar qualificado – e representa o que

Milner chama de site – como se dá a qualificação do lugar sintático de

objeto em dado acontecimento enunciativo? Dito de outra forma, se o

lugar sintático de objeto, tomado como place, corresponde a um lugar

projetado pelo verbo e, normalmente, localizado nas sentenças da

Língua Portuguesa depois das formas verbais, que elementos

orgânicos e enunciativos permitem estudá-lo sob o ponto de vista do

site, ou seja, que aspectos influenciam a ocupação e/ou a não

ocupação desse lugar na sentença?

Para exemplificar nossa análise, tomemos os exemplos (01) e (02).

(01)

Imagem 1: Propaganda Havaianas, obtida por meio do Google4

(02) Os homens preferem mulheres e sandálias com curvas.

Em (02), o sintagma “mulheres e sandálias” ocupa o place objeto e

está no posicionamento regular da Língua Portuguesa, ou seja, situa-se

organicamente após o verbo preferir. Já em (01) houve uma mudança

do lugar não qualificado, ou seja, um deslocamento da formação

nominal para o início da sentença. Para nossa pesquisa é esse um dos

pontos que atraem a atenção: ao observarmos os dois enunciados, é

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 169

possível dizer que, mesmo com localizações distintas, a expressão

“mulheres e sandálias” continua exercendo a função de objeto.

Decorre desse fato acreditarmos que o deslocamento foi realizado em

função do site. Na verdade, trabalhamos com a perspectiva de que é

essa ação de atrair o sintagma para dentro de uma nova localização

sintática que faz com que esse lugar receba o título de qualificado.

Nas palavras de Dias “os lugares sintáticos, por sua vez, não são

relativos aos locais em que os termos estão alojados na sentença, mas

aos lugares que qualificam os termos lexicais para contraírem

funções.” (DIAS, 2009, p.15). O site não precisa, portanto, de um

lugar fixo. E, na perspectiva de estudo que adotamos, pode, inclusive,

não aparecer configurado materialmente na sentença.

Vale ressaltar que, se trabalhássemos apenas com a noção de place,

sentenças como

(03) Alongue.

integralizadoras da cena enunciativa produzida pela propaganda da

UNIMED/BH,

(04)

Imagem 2 - Propaganda Unimed/BH, obtida por meio do Google5

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

170 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

deveriam ser estudadas como construções em que o lugar sintático de

objeto não se configura.

Entretanto, no anúncio publicitário, temos claramente a não

ocupação linguística do lugar sintático de objeto como um recurso

fundamental para a funcionalidade do texto. Não há a ocupação

material do lugar sintático projetado pelo verbo alongar, mas isso não

afeta a unidade da sentença, porque há uma “memória de seu lugar

que advém de outros extratos de ocorrência que são constitutivos do

espaço sintático” (Dias, 2007b, p.197). Expliquemos melhor. Se as

sentenças

(05) A vida é curta.

(03) Alongue.

fossem analisadas independente de relação que estabelecem com o

acontecimento enunciativo no qual se inserem, facilmente seria

proposto, por uma análise de perspectivas tradicionais, que o sujeito

da 1ª sentença (05) também ocuparia o lugar sintático de objeto

acionado pelo verbo Alongue na sentença 2 (03). Entretanto,

percebemos que os outros enunciados que compõem o anúncio

funcionam como um domínio referencial que possibilita a entrada de

um novo item lexical, capaz de ocupar o lugar posto em cena pela

predicação de que participa o verbo alongar. Ou seja, quando a

propaganda produz uma linha do tempo cujos enunciados afirmam

que

(06) Aos 8 anos, eu me esticava para pegar frutas no pé.

(07) Aos 36, continuo adorando frutas depois do alongamento.

é acionada a possibilidade de que a formação nominal o corpo

também funcione como um referente capaz de oferecer efeito de

completude a (03) Alongue. É importante dizermos que trabalhamos

com o conceito de formação nominal proposto por Dias (2011).

Segundo o autor, a formação nominal

se constitui em centro de articulação temática. Na medida em

que constituímos um tema, ou um foco de interesse na

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 171

enunciação, estamos trazendo a memória de sentidos que se

agregam aos nomes. As determinações contraídas pelos nomes,

constituindo um grupo ou sintagma nominal, apresentam as

condições de recebimento dos traços de atualidade advindos da

construção temática na sua relação com o mundo

contemporâneo. [...] A constituição desse centro de referência

pode ser captada pela língua em formato concêntrico, tendo um

substantivo na nucleação, de forma a encapsular um conceito

historicamente constituído[...] (DIAS, 2011, p.275).

Retomando a análise da propaganda (04), percebemos que ela

ganha pertinência quando, sem realizar muito esforço, podemos

captar, na memória dos dizeres em que se inscrevem sentenças com o

verbo esticar-se e com o substantivo alongamento, um domínio de

referência que inclui também o substantivo corpo. Portanto, é

esperado que os enunciados (05) e (03) recebam as seguintes

formulações:

(08) A vida é curta. Alongue a vida.

(09) A vida é curta. Alongue o corpo.

Ou ainda

(10) A vida é curta. Alongue o corpo [para alongar] a vida.

A cada vez que a peça publicitária da UNIMED-BH é recebida por

um leitor, o lugar sintático de objeto está em causa, isto é, ganha uma

mobilidade; a mobilidade da oscilação entre ser ocupado pelos itens a

vida e o corpo. O espaço do lugar sintático de objeto é o espaço da

relação entre: uma regularidade, consubstanciada em (08) e marcada

estruturalmente pelo domínio referencial da sentença anterior (A vida

é curta), bem como pelo objetivo da propaganda que é valorizar a

aquisição de um plano de saúde, logo, valorizar a vida e; uma

atualidade, consubstanciada em (09), atualidade essa que só pôde ser

configurada mediante o cruzamento de dizeres historicamente

produzidos em outros acontecimentos enunciativos, que foram

acionados pelas demais sentenças (“Aos 8 anos, eu me esticava para

pegar frutas no pé.” e “Aos 36, continuo adorando frutas depois do

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

172 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

alongamento.”) constitutivas de (04). A enunciação, portanto, é o

acontecimento do dizer no qual uma atualidade cruza com uma

memória (GUIMARÃES, 2002). Em se tratando dos propósitos desta

pesquisa, o lugar sintático de objeto é o palco desse cruzamento. Não

há que se pensar, portanto, em falta de complemento em (03), mesmo

porque a funcionalidade do texto é devida ao fulcro do olhar sobre a

mobilidade da saída e entrada no domínio de referência do lugar

sintático de objeto.

Sendo assim, pensamos que o nível de abstração teórica que Milner

propõe com a noção de site, para nós o mesmo que lugar sintático,

alicerça a análise que realizamos sobre as possibilidades de ocupação

sustentadas pelo acontecimento enunciativo de que participa o verbo

alongar no anúncio publicitário.

5. Macrossintaxe: dois níveis combinatórios em uma relação de

apontamento

Ao lado de todos os pressupostos já explicitados, entendemos ser

importante também apresentar como base teórica de nossas discussões

fundamentos trazidos pelos estudos da macrossintaxe. Sobre esse

assunto, utilizaremos, a princípio, as discussões estabelecidas por

Berrendonner (1990, 2002a e 2002b), por se tratar de um dos

pesquisadores que mais esforços têm empreendido no

desenvolvimento desse conceito.

O autor trabalha com a tese segundo a qual a sintaxe pode ser

analisada sob a ótica da micro e da macrossintaxe. De acordo com sua

proposta, a microssintaxe se caracteriza pelas relações de ligação

estabelecidas na sentença, que assumem a característica de

concatenação e recção. Ligações do tipo concatenação dizem respeito

à posição dos constituintes sentenciais, dito de outra forma, postulam

à hierarquia dos espaços a serem ocupados pelos termos na

organização do enunciado. Já as relações de recção se fundamentam

no processo de determinação que um termo exerce sobre o outro.

Essas relações se configuram, portanto, como sistemas de dependência

regidos pelas especificidades de cada constituinte. Como podemos

notar, os estudos da microssintaxe se realizam em apenas um nível: o

nível da ligação interna constitutiva da sentença.

Por aproximação conceitual, adotamos em nosso trabalho o

conceito de macrossintaxe como um dos balizadores das discussões

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 173

que ora propomos. Esclareçamos melhor de que forma entendemos

que a macrossintaxe se aproxima do que nomeamos como condições

operativas do fato gramatical. Na macrossintaxe, Berrendonner propõe

dois níveis de combinatória, sendo que um dos níveis mantém uma

relação de apontamento em relação ao outro. Em outras palavras,

enquanto a microssintaxe se assenta apenas no nível das ligações

internas, o que fazem, por exemplo, as condições atributivas e

distributivas, a macrossintaxe ganha forma quando trabalhamos com

dois níveis distintos e complementares: o nível do texto, que diz

respeito aos mecanismos sentenciais e o nível dos implícitos, que se

fundamenta na memória discursiva, cujos extratos de existência não

estão marcados apenas nas formas.

Ou seja, a macrossintaxe leva em consideração a necessidade de se

estabelecer uma sintaxe mais complexa, que trabalhe com um

elemento marcado na horizontalidade da sentença, seria o que

Berrendonner denomina liage, ou seja ligação, como pressupõem os

estudos reccionais; mas que garanta, ao mesmo tempo, a presença de

outras marcas situadas no nível da verticalidade, no nível da memória,

é o que o autor descreve como pointage, ou apontamento.

Assim, Berrendonner (1990) propõe um esquema do que se

configura como macrossintaxe em sua proposta de trabalho, conforme

demonstrado na Imagem 3.

Imagem 3: Esquema da morfossintaxe, Berrendonner (1990).

Como explicação do esquema proposto acima, podemos dizer que

a dimensão da memória discursiva (M) é evocada por operações de

apontamento, realizadas por elementos internos da sentença - Clause

(C), que visam estabilizar, dar regularidade às informações de (M).

Dessa forma, (M) existe em um estado de virtualidade que, ao ser

convocada pelo fio do discurso, passa por um processo de atualização

e, de maneira equivalente, é de novo posta em cena para ser acionada

em enunciados futuros.

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

174 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

(12) Em caso de

desespero aponte uma

arma para o ouvido. (14) Em caso de desespero

não aponte uma arma para o

ouvido, aponte o telefone.

(13)

Passemos a exemplificar mais claramente os pressupostos

suscitados no parágrafo anterior, por meio da utilização do exemplo

(11).

(11) Ilustração do esquema da Morfossintaxe proposto por

Berrendonner (1990).

6

O que podemos observar em (11) é que a sentença (13) – Em caso

de desespero, aponte para o ouvido. –, marcada por lacunas, suscitou

a necessidade de o acontecimento enunciativo lidar com operações de

apontamento, que estão no nível da memória discursiva (M1), aqui

representada pelo enunciado (12). Ou seja, há uma determinação de

ordem sócio-histórica possibilitando uma virtual ocupação do lugar

sintático de objeto como arma, projetado pelo verbo apontar.

Entretanto, a relação que (C1), no caso do exemplo em análise (13),

mantém com o apontamento (M1), ou (12) - Em caso de desespero

aponte uma arma para o ouvido. -, gera um novo estado de memória

(M1 + 1), possibilitando, dessa forma, que o enunciado ganhe em

atualidade e em ampliação referencial, consubstanciada em (14) - Em

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 175

caso de desespero não aponte uma arma para o ouvido, aponte o

telefone.

O que se propõe, portanto, é que, ao se produzir uma sentença, a

memória se atualiza, ou seja, para além dela lhes são agregados outros

recortes de sentido postos em acontecimento pela enunciação. Diante

disso, é possível afirmarmos que dois enunciados apresentam

indiretamente um caráter relacional por intermédio de um

apontamento de (M). Assim, as sentenças dialogam com (M) e, ao

realizar esse diálogo se configuram duas direções: a direção de

retomar (M) e a direção de devolvê-la diferente para uma virtualidade

passível de nova atualização.

Para Dias (2009), tomando por base as ideias de Berrendonner

(2002a), o fio do discurso é marcado por incompletudes, não ditos,

discrepâncias diversas, sem que isso se configure como uma ausência

configurada como falta, como defeito, justamente porque ele se

constitui como um diálogo com (M) por meio de relações de

apontamento.

Isso descaracteriza a noção do linguístico como uma construção

compacta de elementos sentenciais e o coloca no patamar de algo

afetado pela dispersão própria da força de atualidade que emerge do

acontecimento enunciativo.

Nesse sentido, pretendemos trabalhar em nossa pesquisa com a

perspectiva de que não é suficiente considerarmos apenas as relações

de ligação internas na sentença, se quisermos nos pautar em um estudo

sintático de bases enunciativas. Faz-se necessário, antes, levarmos em

consideração os elementos marcados pelos mecanismos sentenciais,

associando-os aos apontamentos inscritos na memória do dizer.

6. O lugar sintático de objeto pelo viés da semântica da

enunciação

Orientados pelas reflexões que traçamos até aqui, passemos a

descrever como a Semântica da Enunciação concebe o fato gramatical

transitividade verbal e de que forma é possível perceber a

manifestação desse fenômeno linguístico como sendo constituído,

concomitantemente, por elementos sintáticos e elementos semânticos

que agem em conjunto para sua integralização. Trata-se, portanto, de

pensarmos a linguagem como sendo produzida, na perspectiva de Dias

(2007b), por meio da relação entre a dimensão material e a dimensão

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

176 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

simbólica.

Na tentativa de entendermos melhor essa relação que Dias propõe

entre a dimensão material e a dimensão simbólica talvez possamos

associá-la ao que Foucault (1986, p.124) utiliza para descrever o

enunciado. Para ele, “o enunciado é, ao mesmo tempo, não visível e

não oculto.” Ou seja, coexistem duas instâncias na sua constituição. E,

sobre esse cenário da coexistência enunciativa se destacam...as

relações gramaticais entre as frases, as relações lógicas entre as

proposições, as relações metalinguísticas entre uma linguagem-

objeto e aquela que lhe define as regras, as relações retóricas

entre grupos (ou elementos) de frases. (FOUCAULT, 1986,

p.112).

Esse nível seria o que Dias estabelece como dimensão material do

linguístico, ou seja, aquela não oculta, passível de descrições e

marcada organicamente na sentença. No entanto, essas relações,

propostas por Foucault,

só podem existir e só são suscetíveis de análise na medida em

que as frases tenham sido ‘enunciadas’; em outros termos, na

medida em que se desenrolem em um campo enunciativo que

permita que elas se sucedam, se ordenem, coexistam e

desempenhem um papel umas em relação às outras. O

enunciado, longe de ser o princípio de individualização dos

conjuntos significantes (o ‘átomo’ significativo, o mínimo a

partir do qual existe sentido), é o que situa essas unidades

significativas em um espaço em que elas se multiplicam e se

acumulam. (FOUCAULT, 1986, p.112).

Ao trazer a ideia de campo enunciativo, estaria sendo posta em

cena a dimensão simbólica do dizer. Afinal, mesmo sem força de

visibilidade descritiva, o campo enunciativo é o responsável por

atribuir mobilidade de significação à materialidade linguística, a fim

de que ela possa marcar um domínio referencial em determinado

tempo e espaço. Ou seja, o simbólico e o material se requerem

concomitantemente na constituição do linguístico, a fim de que juntos

produzam o nexo das regularidades que regem sua dispersão.

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 177

Dessa forma, Dias (2007b) afirma que essa “demanda de

saturação” entre as duas dimensões apresentadas suscita que os

estudos sintáticos fundamentem seu trabalho em torno da relação de

dois planos: o plano da organicidade e o plano da enunciação. Nesse

sentido, as categorias enunciativas são constitutivas da linguagem e,

portanto, pertinentes, também, à constituição do fato gramatical. Isso

impulsiona a gramática a reconhecê-las, e não apagar sua pertinência,

tampouco tratá-las como fatores externos à estruturação sintática do

enunciado com o qual se relacionam. Sobre esse assunto Dias (2007b)

argumenta em favor da tese de que

o fato lingüístico é afetado por uma tensão entre a constituição

do arranjo sintático (no plano da organicidade), e a verticalidade

advinda de uma demanda de saturação (no plano da

enunciação), produzindo como resultado uma injunção à

unidade desse arranjo. É por essa verticalidade que são

‘veiculados’ os extratos de ocorrência que afetam a articulação.

A constituição do espaço sintático seria constitutivamente

permeada pelo semântico, portanto. (DIAS, 2007b, p.198).

Percebemos, então, que não podemos negar a aproximação entre os

pressupostos de Milner (1989), tampouco entre a perspectiva de

Berrendonner (1990, 2002a, 2002b) e Dias (2007b). Afinal, parece-

nos possível efetivarmos uma análise da transitividade verbal na qual

seja empreendida uma marca de horizontalidade, que engloba o place,

o fio do discurso, o plano da organicidade; e uma força da

verticalidade que contenha o site, o apontamento à memória, o plano

da enunciação.

Sendo assim, se temos como proposta de trabalho constituir uma

interface entre o enunciado e a sentença (DIAS, 2013), não podemos

abrir mão de discutir mais efetivamente de que forma entendemos a

organização dos lugares sentenciais, bem como qual o papel das

condições enunciativas na ocupação do que estamos nomeando lugar

sintático objeto verbal. Agindo assim, estaremos produzindo “o espaço

do entremeio que buscamos para um conhecimento mais apurado do

enunciado, a partir de uma visão dinâmica da sentença.” (DIAS, 2013,

p.231). Trabalhando com um olhar voltado para a transitividade por

esse viés, temos a possibilidade de ampliar as discussões sobre o

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

178 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

assunto e incluir elementos na análise desse fato gramatical.

Tentaremos agora elucidar alguns pontos acerca de como

entendemos a constituição do lugar sintático objeto verbal. Logo em

seguida, passaremos, então, a analisar os dois tipos de predicação

(centrada e dirigida) e os dois modos de enunciação (específico e

genérico) que se configuram como pontos importantes para este

trabalho.

6.1 Discussões sobre a projeção do lugar sintático objeto verbal

Por meio de todo aparato teórico que tentamos descrever até aqui,

caminhamos na tentativa de propor uma nova perspectiva para a

concepção da transitividade. Para nós, transitividade verbal representa

a projeção de lugares sintáticos, realizada pelos verbos,

especificamente os da língua portuguesa, cujas condições de ocupação

(e de não ocupação) são determinadas pelo acontecimento

enunciativo, que se fundamenta nos domínios referenciais sócio-

históricos do dizer.

Comecemos a detalhar a afirmação anterior, a qual pretende situar

conceitualmente o que estamos delimitando até então como

transitividade verbal. Ao dizermos que “transitividade verbal

representa a projeção de lugares sintáticos, realizada pelos verbos da

língua portuguesa”, precisamos reafirmar o que estamos trazendo

como definição de “lugares sintáticos” e ainda, apontar em que

evidências nos baseamos para afirmar que cabe aos verbos da língua

portuguesa (a todos, por assim dizer) o papel de projeção desses

lugares.

Conforme apresentado, apoiados na perspectiva de Milner (1989),

segundo a qual lugar sintático é um lugar qualificado na sentença. A

esse lugar o autor nomeou site. A sintaxe é, portanto, uma articulação

entre os lugares qualificados da sentença. A respeito desse fato, Dias

(2013, p.231) diz que “consideramos o lugar sintático como ‘lugar

qualificado’, uma vez que ele se define, na Língua Portuguesa, com

relativa independência em relação à localização na sentença.”

Por essa via, Dias (2013) afirma que não há como pensar a

dimensão do materialmente articulável, aquela que se alicerça nas

articulações entre as unidades formais de ordem sintática, sem que se

discuta o conceito de materialidade qualificada, ou seja, de lugar

sintático.

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 179

Sendo assim, no caso específico desta pesquisa, qual papel cabe ao

verbo na constituição do lugar sintático objeto verbal? Defendemos

que o papel assumido pelo verbo é o de projetar o lugar sintático de

objeto, cuja ocupação passa a ser regulada pelas condições operativas,

não estando o objeto, portanto, circunscrito a uma necessidade de

complementação do sentido desse verbo. Assim, o verbo reveste-se da

capacidade de projeção do lugar sintático objeto verbal e as condições

de produção, que constituem o acontecimento enunciativo, orientam o

enunciado de que esse verbo participa para configurar-se em torno de

uma predicação centrada ou dirigida.

Assumida essa perspectiva, outro questionamento se torna passível

de consideração: todos os verbos da Língua Portuguesa apresentam

potencial de projeção desse lugar sintático? E quanto àqueles cujas

ocorrências com o lugar sintático de objeto ocupado não se efetivam

em extratos captáveis pela língua em uso? Como comprovar a

existência desse lugar? Tentativas de respostas a essas relevantes

questões serão desenvolvidas a partir de agora.

Se levarmos em consideração, por exemplo, os verbos morrer e

falecer, cujos efeitos de sentido orientam para um mesmo domínio

referencial, perceberemos que existem vários enunciados, produzidos

com a participação dessas duas formas verbais, em que não há a

ocupação de lugar sintático de objeto. Isso pode ser notado facilmente

em diversos acontecimentos enunciativos. Apenas para exemplificar

nossa afirmação selecionamos os exemplos que seguem:

(15) Membro da equipe técnica de 'Batman' morre nas

filmagens7

(16) A Morte no hospital de Aveiro vai ser investigada. A

Inspeção Geral de Saúde abriu um inquérito ao caso do idoso

que morreu em Aveiro. O homem faleceu após a queda de uma

maca no corredor do Hospital da cidade.8

Analisando agora outro tipo de exemplo, concluímos que em

relação ao verbo morrer encontramos sentenças em que ele se faz

presente, também, orientado para um objeto. Como, por exemplo em:

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

180 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

(17) Cristo não morreu uma morte de mártir; mas Ele provou a

morte na sua ligação penal com pecado.9

Parece oportuno, então, considerarmos a capacidade de projeção do

lugar sintático de objeto no que se refere à forma verbal morrer.

É tarefa mais difícil, entretanto, encontrarmos ocorrências em que

o verbo falecer apresente-se como integrante de uma predicação cujo

lugar sintático de objeto esteja lexicamente materializado.

Acreditamos que esse fato encontre sustentação na menor

produtividade enunciativa que esse verbo apresenta. Dito de outra

forma, o plano do enunciável é o que regula a mobilidade de efeitos de

sentidos das formas verbais. Portanto, quanto mais extratos de

ocorrência um verbo apresentar, maior será a possibilidade desse

verbo participar de predicações que apresentam os lugares de objetos

ocupados e/ou não-ocupados. Logo, o verbo morrer, por apresentar-se

mais produtivo enunciativamente, torna-se capaz de integrar os dois

tipos de predicações, ao passo que falecer – forma verbal de baixa

regularidade enunciativa – constitui-se como participante apenas de

predicações em que o lugar sintático de objeto não se encontra

ocupado.

Outra forma verbal, não citada anteriormente, mas que apresenta

correspondência de sentido com os verbos morrer e falecer, é perecer.

Esse verbo reafirma a análise realizada, afinal, por apresentar um

caráter de erudição maior do que falecer, perecer demonstra uma

capacidade ainda menor de participar de uma predicação cujo lugar

sintático de objeto seja ocupado. Disso resulta a facilidade de

encontramos predicações centradas com esse verbo, como na charge:

Imagem 4: Luto nacional – a ética pereceu 10

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 181

Nesse sentido, acreditamos que a ocupação do lugar sintático de

objeto se processa ancorada na produtividade enunciativa apresentada

pelas formas verbais. Na medida em que as ocorrências historicamente

produzidas com determinado verbo se acham escassas, há um

favorecimento para que esse verbo participe apenas de um tipo de

predicação.

Como tentamos descrever, ao demonstrar exemplos em que a

mesma forma verbal pode ocorrer com ou sem a ocupação do lugar

sintático de objeto, sem que isso cause prejuízo à unidade sentencial,

pensamos estar evidenciando que a projeção desse lugar sintático é

uma atribuição do verbo, ainda que o objeto não se lexicalize na

materialidade da sentença. Entretanto, outro fato gramatical já

bastante analisado pelos estudos linguísticos, parece, a nosso ver,

reforçar a tese de projeção, pelo verbo, do lugar sintático de objeto.

Estamos nos referindo ao fenômeno da causatividade.

Sem nos aprofundarmos muito nessa conceituação, estamos

tomando causatividade de acordo com os pressupostos defendidos por

Bittencourt (2001), para quem

[...] a causatividade é um processo que compreende: a) dois

eventos (ou uma situação e um evento) – causador e causado –

que podem ser expressos separadamente em duas orações

distintas, ou, num evento único, superposto, ou não, a uma outra

relação causativa; b) dois protagonistas, Causador e Causado,

que, qualificados como [± animado], apresentam um grau

variável de participação da ação, processo ou acontecimento.

(BITTENCOURT, 2001, p.172-173). É o caso, por exemplo,

dos enunciados a seguir:

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

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182 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

(19)

Imagem 5: Capa do livro de Graça Ramos

(20)

Cuida bem de mim

Então misture tudo

Dentro de nós

Porque ninguém vai dormir

Nosso sonho...11

(21) O professor sumiu minha prova.12

Os exemplos (19), (20) e (21) representam sentenças causativas

sintéticas, uma vez que, ao contrário das causativas analíticas, não

explicitam, como elemento de articulação, um verbo de natureza

causativa como fazer/mandar/causar, por exemplo.

(BITTENCOURT, 2001). A organização sintática se efetiva por meio

de um verbo lexical, nos casos em análise voar, dormir e sumir,

respectivamente. Assim,

(19) Vamos voar as trancinhas? (causativa sintética)

tem como contrapartida a seguinte estrutura analítica:

(22) Vamos fazer voar as trancinhas?

Se retomarmos a definição trazida por Bittencourt (2001) de que a

causatividade é um processo que compreende dois eventos,

perceberemos que nas causativas sintéticas há uma condensação

desses eventos realizada pelo mesmo verbo, cujo desdobramento

poderia ser feito da seguinte forma:

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 183

(23)

Evento 1: O professor fez alguma coisa para minha provar

sumir.

Evento 2: Minha prova sumiu.

Evento 1 + Evento 2: O professor sumiu minha prova.

O que vemos acontecer em (23) é que o verbo causativizado

desencadeia um processo de agregação das duas cenas. Para isso, a

sentença se estrutura sintaticamente de modo a dar visibilidade e

ocupação aos lugares sintáticos de sujeito e objeto, principalmente,

para efeito do estudo que ora propomos, ao lugar sintático de objeto.

Parece-nos que exemplos como esses demonstram que mesmo

aqueles verbos, cujos estudos tradicionais denominam intransitivos,

abrem-se para participar de predicações em que a presença de um item

lexical ocupando o lugar sintático de objeto se faz necessária.

É importante que se diga que não estamos mais nos referindo a

predicações cujos objetos são cognatos, como seria o caso, por

exemplo de:

(24) João voou sem ter escolta, nenhuma ave o seguiu. Voou

um voo13 sem volta. João partiu e se partiu!14

Tampouco nos pautamos naquela predicação que pressupõe a

presença de objetos internos15, ou seja, aquela cujo campo semântico

do objeto equivalente ao do verbo (MACAMBIRA, 1987), como em

(25), por exemplo:

(25) E ela dormiu o sono dos justos...

O que vemos acontecer nas orações causativas é uma organização

sintática capaz de mobiliar-se para a produção de determinado efeito

de sentido. Para isso, os verbos ditos intransitivos, monoargumentais,

orientam o que era instância de possibilidade (ocupação do lugar

sintático de objeto por eles projetados) para instância de realização.

Decorre desse fato assumirmos a perspectiva de que

enquanto unidades formais, os lugares sintáticos de sujeito e de

objeto se qualificam na medida em que funcionam como portos

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

184 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

de passagem na rota de circulação de sentidos, de discursos para

o enunciado, e deste para os espaços futuros da discursividade,

que por sua vez serão bases para novos enunciados. (DIAS,

2013, p.236).

Sendo assim, entendemos que ao verbo cabe projetar o lugar

sintático de objeto e ao acontecimento enunciativo regular a ocupação

(ou não ocupação) desse lugar por meio de fatores que se configuram

historicamente a partir de uma tensão entre domínios de memória e

atualidade de uso.

6.2 Predicações centrada x dirigida e os modos de enunciação

Uma vez apresentada a explicação da primeira parte do conceito de

transitividade que estamos adotando neste trabalho - transitividade

verbal representa a projeção de lugares sintáticos, realizada pelos

verbos da língua portuguesa - passemos agora a discutir a segunda

parte desse conceito, cuja fundamentação se baseia no fato de que as

condições de ocupação (e de não ocupação) são determinadas pelo

acontecimento enunciativo, que se fundamenta nos domínios

referenciais sócio-históricos do dizer.

Levando em conta todas as considerações já produzidas até aqui,

acreditamos, então, que a transitividade deve ser analisada a partir da

ótica da predicação que se estabelece em determinado acontecimento

enunciativo. O objeto é, portanto, mais um elemento que integra essa

predicação e possibilita que ela apresente efeito de completude.

Sendo assim, trabalhamos com a hipótese sugerida por Dias (2006)

de que há dois tipos de predicação: a predicação dirigida, que se

realiza quando seu efeito de completude é orientado para um objeto

marcado organicamente na sentença e a predicação centrada que

ocorre quando apresenta uma significação orientada para o próprio

verbo. Dessa forma:

na medida em que nos afastamos da necessidade de classificar

os verbos em transitivos ou intransitivos, segundo a completude

ou incompletude de significação a ele inerente, podemos

ampliar o campo de abordagem da transitividade, recorrendo às

condições enunciativas de ocupação do lugar sintático de

objeto, segundo o grau de amplitude dos domínios de

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referências que se instalam no plano do enunciável. E isso é

determinante para que tenhamos a possibilidade de predicação

centrada e predicação dirigida. (DIAS, 2006, p.65).

Ao utilizarmos essa hipótese, estabelecemos, então, a possibilidade

de haver predicados cuja presença do objeto se faz necessária e

predicados em que essa presença é dispensável, uma vez que o efeito

de sentido se configura mesmo sem a participação desse termo.

Vejamos o exemplo (26), para ilustrarmos esses dois tipos de

predicação.

(26)

Mamãe morreu

Dois amigos se encontram. Um deles, único herdeiro da mãe,

está cabisbaixo. O primeiro pergunta:

Interlocutor 1: — O que aconteceu?

Interlocutor 2: — Minha mãe morreu. Fiquei muito triste.

Interlocutor 1: — Que pena! Meus pêsames. Ela sofreu muito

antes de morrer?

Interlocutor 2: — Muito. Infelizmente: sofreu um assalto que

lhe tirou grande parte do dinheiro, um sequestro que lhe levou

um apartamento e dois terrenos, um golpe de meu pai que a

deixou sem carro...

Tomando por base as reflexões de Dias (2006), é o caso de

afirmamos que, na piada utilizada como exemplo, o verbo sofrer

integra duas predicações: uma dirigida, aquela proferida pelo

interlocutor 2, e uma centrada, aquela dita pelo interlocutor 1. É

importante dizer que a participação do verbo sofrer, nesses dois tipos

de predicação, só é possível devido à memória de regularidades que

esse verbo traz dos trajetos enunciativos por ele percorridos, conforme

já mencionado neste trabalho, ao discutirmos como se realiza a

projeção do lugar sintático de objeto. Logo, sofrer projeta o lugar

sintático de objeto que pode ou não ser ocupado no texto anterior

porque outros extratos de ocorrência desse mesmo verbo permitem

(ou não) a ocupação desse lugar.

É importante ressaltar, ainda, que o exemplo (26) se constitui em

torno da característica de humor. Assim, a não ocupação do lugar

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sintático de objeto projetado pelo verbo sofrer, na fala do interlocutor

1, seguida da ocupação desse mesmo lugar, na fala do interlocutor 2,

produz um efeito de sentido que (re)formula a constituição referencial

gerada pela ausência/presença de elementos materiais passíveis de

ocupar o lugar projetado. O interessante é percebermos que, silenciar a

ocupação do lugar sintático de objeto, na fala do interlocutor 1, não se

vincula, portanto, a uma exigência verbal. Não se trata de um aspecto

de completude do próprio verbo. Refere-se, antes, a um traço de

memória discursiva que dá ao verbo sofrer a possibilidade de efetivar-

se, em enunciações cuja temática é a morte, sem a presença orgânica

de itens lexicais no lugar sintático de objeto por ele projetado. Dito de

outra forma, o verbo sofrer guarda trajetos de sentido que, em função

da regularidade em que ocorrem, institucionalizam a participação

desse verbo em predicações centradas. Dessa forma, por se tratar de

uma regularidade e não de uma regra, ao se quebrar essa

institucionalização, com a ocupação do lugar sintático de objeto, na

fala do interlocutor 2, por meio da delimitação da predicação dirigida

organizada em torno daquele domínio referencial, produz-se, nesse

enunciado, um efeito humorístico.

O que vemos na proposta de Dias é que predicações dirigidas se

relacionam, portanto, a modos de enunciação mais especificadores em

que o lugar sintático de objeto é delimitado por um campo de

referência específico e recorta, dessa forma, um domínio de sentido

marcado por uma pontualidade referencial. Por outro lado,

predicações centradas se ligam, com maior evidência, a modos de

enunciação genéricos, por serem as bases sobre as quais se

configuram predicações cujos campos de referência do lugar sintático

de objeto são generalizadores. No caso das predicações centradas, os

lugares de objeto mostram-se abertos para abrigarem ocorrências

referenciais diversas. Dessa forma, o objeto apresenta características

generalizantes, que não precisam ser marcadas organicamente nas

sentenças. Essa generalização ganha pertinência no entrelaçamento da

atualidade da enunciação com uma memória de ordem histórica,

representada pelas recorrências das enunciações de que os verbos

participam.

Partimos, pois, do princípio de que há estreita relação entre o modo

de enunciação e a lexicalização (predicação dirigida) ou a não-

lexicalização (predicação centrada) do lugar sintático de objeto.

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 187

6.3 A presença do silêncio sintático no processo de predicação

O lugar teórico de onde analisamos o fenômeno transitividade

verbal, conforme definição apresentada nos dois itens anteriores, nos

possibilitou delimitar algumas questões distintas do tratamento que

esse fato gramatical vem recebendo ao longo dos estudos linguísticos.

Uma delas diz respeito à formulação do que nomeamos, em

Dalmaschio (2008), como silêncio sintático.

O que apresentamos como definição de silêncio sintático teve por

base o fato de considerarmos que a língua é permeada por silêncios

das mais diversas ordens, por não-ditos que se inscrevem no próprio

dizer e se manifestam como efeitos de sentido em determinados

acontecimentos enunciativos.

Nessa perspectiva, e inspirados no que Orlandi (1995) define como

silêncio constitutivo, ousamos empreender um trabalho teórico de

associação semântico-sintática de modo a afirmarmos que os estudos

linguísticos precisam considerar que, também na organicidade da

sentença, às vezes, “para dizer é preciso não-dizer.” (ORLANDI,

1995, p.24).

Sendo assim, passamos a considerar que só a projeção do lugar

sintático do objeto verbal, vinculada a dado acontecimento

enunciativo já pode ser percebida como índice de completude.

Diferente da perspectiva tradicional, para nós, não é necessário um

termo ocupante do lugar sintático de objeto, para que haja completude

semântica.

Voltemos ao exemplo (26). Na perspectiva que assumimos, o verbo

sofrer, projeta o lugar sintático de objeto nas duas sentenças, mas, no

exemplo em questão, a ocupação desse lugar só se efetiva na fala do

interlocutor 2, que direciona a predicação de que o verbo participa

para um domínio de referência mais delimitado e pontual. Entretanto,

o silêncio sintático, estabelecido na fala do interlocutor 1, ou a falta de

um elemento léxico não afeta a unidade da sentença, porque há uma

memória de seu lugar que advém de outros extratos de ocorrência que

são constitutivos do espaço sintático. Tal é a força da regularidade

referencial apresentada pela memória de utilização desse verbo que,

ao serem recortados os extratos para ocupação do lugar sintático de

objeto na fala de 2 (...um assalto..., ...um sequestro... e ...um golpe...) o

acontecimento enunciativo se estabelece como texto humorístico, uma

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vez que a ocupação na fala de 2 realiza um deslocamento da ocupação

silenciosamente marcada na fala de 1. Vale ressaltar que só podemos

trabalhar a noção de deslocamento em função da repetição, do hábito.

Afinal, acreditamos que é “recorrendo ao já-dito que o sujeito

ressignifica. E se significa” (ORLANDI, 1995, p.90). Trata-se de um

intervalo entre uma memória de recorrências – no caso em análise,

recorrências de silêncios sintáticos em predicações de que esse verbo

participa, orientadas para a ideia de sofrimentos físicos propiciados

por uma doença – e uma atualidade de uso – que lida com o verbo

sofrer como algo relacionado à perda de bens materiais. Esse seria,

então, o espaço do equívoco, espaço esse em que “os sentidos não se

imobilizam... não perdem seu caráter errático: deslocamentos,

equívocos e mudanças se produzem. E não param de produzir seus

efeitos” (ORLANDI, 1995, p.94).

Não podemos considerar o silêncio sintático, sob esse ponto de

vista, como uma categoria vazia. É dessa forma, então, que

entendemos o silêncio como um dos eixos responsáveis pela fluência

da interpretação. “Ele é o ponto de apoio do giro interpretativo”

(ORLANDI, 1995, p.164), sendo “para o falante (...) lugar de

elaboração de outros sentidos (...); para o analista uma pista de um

modo de funcionamento discursivo.” (ORLANDI, 1995, p.130). O

silêncio sintático seria, portanto, um lugar na organicidade da

sentença, aqui especificamente o lugar sintático de objeto, que permite

a possibilidade do movimento dos dizeres. Movimento esse que se

constitui sócio-historicamente a partir de uma tensão entre memória e

atualidade.

Considerações finais

Essa forma de nos posicionarmos diante da transitividade verbal,

ou seja, essa proposta de que o objeto é um lugar sintático projetado

pelos verbos parece generalizar a explicação para o fenômeno

articulatório da relação entre verbo e objeto. Some-se a isso, ainda,

que a possibilidade de explicar a ocupação ou a não ocupação como

sendo algo condicionado a um acontecimento enunciativo mostra que

as explicações para o fenômeno da transitividade não podem ser

centralizadas no verbo, nem nos sentidos que ele pode assumir e nem,

ainda, num contexto de uso que ele possa apresentar. É na relação com

a regularidade enunciativa captada pela memória e com os elementos

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 189

linguísticos marcados na superfície da sentença que se dá a ocupação

do lugar sintático de objeto projetado pelos verbos da língua

portuguesa. Sendo assim, essa ocupação pode acontecer de forma

mais ou menos ampla por força dos fatores enunciativos que atuam na

constituição do dizer.

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Luciani Dalmaschio

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 191

Palavras-chave: Semântica da Enunciação, Lugar Sintático, Objeto

Verbal.

Keywords: Semantics of Enunciation, Syntactic Place, Verbal Object.

Notas

1 Tradução livre de: “Sous ces conditions, le sujet et l’objet acquièrent le statut

d’êtres (par la confluence entre la pensée et le réel) ou de termes (par la distribution

d’unités dans la structure).” 2 A partir de 1999, a gramática de Bechara ganha uma nova versão, totalmente

diferente da que foi editada pela primeira vez em 1961, reeditada até 1998. Essa nova

versão recebe influência direta dos estudos linguísticos formalistas e funcionalistas. 3 Tradução livre de: “le signe lexical de nature substantive » qui occupe la place de

l’objet est, en vérité, un représentant de la place-argument.” 4 Disponível em: < https://goo.gl/LPBTnQ>. Acesso em: 09 jul. 2012. 5 Disponível em:

<http://www3.propmark.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=54755&

sid=7>. Acesso em: 12 fev. de 2009. 6 Propaganda do Centro de Valorização da Vida (CVV). O CVV foi fundado em

1962, em São Paulo, em decorrência do aumento do suicídio nas grandes metrópoles,

tendo como objetivo a prevenção ao suicídio, através do apoio emocional oferecido

por pessoas voluntárias às pessoas angustiadas, solitárias ou mesmo sem vontade de

viver. Hoje conta com 2500 voluntários, 57 postos distribuídos pelo Brasil, que se

colocam gratuitamente à disposição de todos que necessitam de ajuda. (Adaptado de

<http://www.cvv.org.br/c_historia.htm>. Acesso em: 26 dez. 2007. 7 Disponível em:

<http://news.ubbi.com.br/view.asp?http://www.estadao.com.br/arteelazer/not_art5663

8,0.htm>. Acesso em: 03 jan. 2012. 8 Disponível em:

<http://ww1.rtp.pt/noticias/index.php?headline=98&visual=25&article=321927&tema

=37>. Acesso em: 03 jan. 2012. 9 Disponível em: <http://cms.sadoutrina.com/content/view/95/65/>. Acesso em: 03

jan. 2012. 10 A tirinha se refere à CPI que julgou o caso “Renan Calheiros”. Disponível em:

<http://educando.wordpress.com./2007/09/13/luto-nacional-a-etica-pereceu/>. Acesso

em: 03 jan. 2010. 11 Fragmento da música: Muito Estranho (Cuida Bem de Mim), composta por Dalto.

Disponível em: < http://goo.gl/LWqMTP>. Acesso em: 02 jan. 2013. 12 Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=6961461390>.

Acesso em: 02 jan. 2013. 13 No exemplo (24) voar e voo caracterizam-se como vocábulos cognatos porque se

filiam ao mesmo radical. (MACAMBIRA, 1987).

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CONDIÇÕES DE SUSTENTAÇÃO DO FATO GRAMATICAL “OBJETO

VERBAL” – POR UMA SINTAXE DE BASE SEMÂNTICA

192 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

14 Disponível em: <http://www.talentosdamaturidade.com.br/trabalho/23498/o-voo-

de-joao>. Acesso em: 03 jan. 2013. 15 Vale ressaltar que tanto as predicações com objetos cognatos quanto as predicações

com objetos internos, também representam, em nossa perspectiva teórica, exemplos

capazes de demonstrar o potencial do verbo, no que se refere à projeção do lugar

sintático objeto verbal. O que estamos tentando fazer é trabalhar com outras

possibilidades de justificativa desse papel do verbo, por meio da discussão sobre as

orações causativas.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 193

MEMÓRIA, ACONTECIMENTO E ENSINO

DE SINTAXE: O EXEMPLO-COLMEIA

Elke Beatriz Felix Pena

IFMG – Ouro Preto

Resumo: Este artigo apresenta um estudo com bases na Semântica da

Enunciação, a fim de propor um ensino de gramática para o ensino

médio em que sejam consideradas as dimensões orgânicas e

enunciativas da língua. Para isso, analisamos capítulos destinados à

sintaxe em livros didáticos de língua portuguesa. Empreendemos um

trabalho com sentenças, que aborde um conjunto de exemplos que se

relacionam, para que o aluno perceba, através de diferentes

enunciações das formas linguísticas, a relação entre língua e sua

exterioridade.

Abstract: This article presents a study based on Semantics of

Enunciation, in order to propose a kind of grammar teaching for high

school that takes into account both the organic and enunciative

dimensions of language. In order to do so, we analyzed chapters

dedicated to the syntax in Portuguese language textbooks for high

school. Thus, we undertook a job with sentences in the classroom that

addresses a set of examples related to each other in order to make

students notice, through different utterances of linguistic forms, the

relationship between language and its externality.

Neste texto, trazemos um recorte de nossa tese (PENA, 2015)

relativa ao ensino-aprendizagem de língua materna, em especial, os

conteúdos sintáticos, tomando-se por base o arcabouço teórico da

Semântica da Enunciação (GUIMARÃES, 2002)1. Para isso, trazemos

a análise de atividades propostas em coleções de livros didáticos

(doravante LD) de língua portuguesa do ensino médio, procurando

identificar em cada uma delas aspectos enunciativos que nem sempre

(ou quase nunca) são considerados nos LD, mas que estão latentes nas

atividades por ser parte constitutiva do próprio funcionamento da

língua (BENVENISTE, 2006). A partir dessas análises e dos estudos

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

COLMEIA

194 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

já desenvolvidos nesse campo teórico a respeito do que chamamos de

lugares sintáticos, propomos elementos para o incremento do ensino

de sintaxe em que sejam observados aspectos enunciativos da

constituição dos lugares sintáticos de sujeito e de objeto, tendo em

vista possibilidades de trabalho com “exemplos-colmeia”, cujo

conceito será apresentado adiante neste estudo.

1. Enunciação e sintaxe

Quando observamos a sintaxe em um viés enunciativo, estamos

considerando a relação existente entre aquilo que é materializado no

acontecimento enunciativo e aquilo que perpassa essa materialidade.

Nessa perspectiva, a referência é constituída na relação entre o

acontecimento enunciativo e o espaço histórico desse dizer, tal qual

nos apresenta Guimarães (2002). Essa noção é fundamental para o

entendimento de que, para nós, as articulações sintáticas devem ser

abordadas do ponto de vista da enunciação. Consideramos, assim, a

língua em duas dimensões: i) orgânica: possibilidades regularmente

configuradas numa ordem material específica e ii) enunciativa:

mecanismos de acionamento dessas possibilidades. Em (i), temos a

sintaxe como base para a observação dessa ordem material e a relação

entre os elementos que compõem essa estrutura orgânica (DIAS,

2001). Em (ii), entendemos que a forma linguística adquire identidade

na dimensão enunciativa, que traz a memória social e histórica das

enunciações desta forma, configurando-se uma futuridade e um

passado no presente do acontecimento (GUIMARÃES, 2002).

Para nós, “sentença é a face regular da unidade configurada como

enunciado” (DIAS, 2009, p.13). Nela, vemos dispostos os lugares

sintáticos nos quais a memória do dizer e a atualidade desse dizer

encontram pontos de contato. Esses pontos de contato são objeto de

estudo da sintaxe, uma vez que a regularidade das sentenças está

relacionada à regularidade da significação das recorrências da

memória.

Uma unidade sintática é articulada, isto é, constituída

articulatoriamente, na medida em que os seus constituintes já

participaram de outras unidades em outros domínios de enunciação

da língua. Dessa maneira, uma sentença (ou oração) se assenta não

exatamente sob outras sentenças (à maneira de uma reprodução de

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Elke Beatriz Felix Pena

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 195

padrões), mas sob a enunciação de outras sentenças, de onde os

componentes trouxeram as regularidades do funcionamento

agregador da unidade. (DIAS, 2012, p.27)

Para definirmos essa regularidade da sentença, utilizamos o

conceito de site, de Milner (1989), em sua “Teoria das posições”. Para

esse autor, são duas as possibilidades de se conceber as posições

sintáticas e suas relações na sentença: place e site2. O place marcaria a

localização orgânica de um item lexical na sentença, e o site seria o

lugar de pertinência dos termos em uma sentença. A relação entre

pertinência categorial do termo ocupante, objeto da morfologia, e a

etiqueta do lugar ocupado, objeto da sintaxe, é que determinaria a

configuração sintática do site. Dessa maneira, interessa-nos a posição

site, que é um lugar de pertinência na sentença, podendo estar ou não

ocupado materialmente3.

Existe uma pertinência de ocupação dos lugares por fatos sintáticos

motivada na relação entre a memória que constitui a regularidade e a

atualidade da enunciação da qual essa ocupação participa. Dessa

maneira, a ocupação do lugar sintático está ligada às condições de

produção de um enunciado, às quais chamamos de “modo de

enunciação”, ou seja, a configuração da unidade sentencial estará

relacionada à configuração do seu modo de enunciação, que, segundo

Dias (2005), pode ser mais específico ou mais genérico. No modo de

enunciação específico, há um foco na pontualidade da referência na

ocupação dos lugares sintáticos. No modo de enunciação genérico, por

sua vez, há uma abertura do campo referencial, dificultando a

configuração de um grau mais específico de “saturação referencial”.

Vejamos um exemplo formulado com base em Lacerda (2013) para

demonstrar o grau de saturação do fato sintático no acontecimento. A

“demanda de saturação” é produzida por uma discrepância

constitutiva entre as duas dimensões: o plano da organicidade

linguística e o plano do enunciável (DIAS, 2002).

(A) Quem planta, colhe.

(B) Pedro colheu flores amarelas.

(C) Pedro colheu ___

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

COLMEIA

196 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Em (A), temos um modo de enunciação genérico, o que causa um

efeito de completude semântica e sintática, mesmo não tendo o lugar

de objeto verbal ocupado materialmente, organicamente. O lugar de

sujeito, ocupado pelo pronome “quem”, guarda o grau de uma

generalização configurada como um perfil a receber identificação em

cada instância de atualização desse enunciado. A sentença adquire

“saturação” enquanto unidade sintática, pois, pelo modo de

enunciação, configura-se uma completude, apesar do “vazio” material

do lugar de objeto. Por sua vez, consideramos os modos de

enunciação em (B) e (C), de caráter especificador, tendo em vista que

as sentenças contemplam no grupo nominal-sujeito “Pedro” uma base

de sustentação referencial específica, mais restrita, oferecendo

condições de uma particularização da referência a partir da sua própria

formulação. Nesse caso, configuram-se condições de ocupação do

lugar do objeto, visto que a própria formulação se “arma” para

oferecer essa base de sustentação referencial, sem a qual a sentença é

percebida como “incompleta” (C).

Tendo em vista isso, podemos dizer que o domínio de referência é

determinante na natureza enunciativa dos lugares sintáticos.

Tomamos, aqui, domínio de referência de acordo com Lacerda (2014,

p.32), que o define como “a delimitação de referentes passíveis de

serem contemplados pela sentença”. Teremos então a relação entre o

domínio de referência amplo ou restrito do fato gramatical e o

domínio de referência amplo ou restrito da sentença, sendo o primeiro

uma “repercussão” do segundo.

2. Exemplo-colmeia: direção de uma metodologia de ensino

A noção de lugar sintático torna-se fundamental na abordagem dos

lugares sintáticos do ponto de vista de uma semântica da enunciação.

Neste sentido, procuramos mostrar que há, nos livros didáticos de

ensino médio analisados, apontamentos para questões de ordem

enunciativa que não são exploradas como aspectos da relação entre a

língua e sua exterioridade. Propomos alguns deslocamentos

conceituais capazes de dar base para uma análise das atividades dos

livros didáticos a partir da observação das diferentes enunciações das

formas da língua, explicitando as questões de ordem enunciativa.

Dessa maneira, pretendemos explorar as atividades didáticas na

direção de apontar o processo de produção de sentido, estudado de

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Elke Beatriz Felix Pena

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 197

maneira a levar o aluno a conhecer as relações entre as formas da

língua e, também, perceber o que motiva a sua constituição.

Como metodologia didática para a análise de aspectos do

funcionamento da língua, compreendidos a partir da enunciação como

acontecimento, apresentamos o conceito de “exemplo-colmeia”,

criado e desenvolvido por Dias (2006) em contraponto com o que ele

denominou de “exemplo-ilha”.

Muito utilizado em LD e gramáticas normativas, o exemplo-ilha é

aquele que, por ser utilizado de forma isolada, é afetado diretamente

pelo paradoxo relativo ao duplo papel do exemplo: demonstrar um

conceito gramatical e ao mesmo tempo apresentar-se como uma peça

de uso da língua (MARCHELLO-NIZIA; PETIOT, 1977). Nesse

caso, o papel de demonstração do conceito acaba sobrepujando o

papel de conduzir o aprendiz na percepção do funcionamento da

língua em termos mais amplos. Ao propor o exemplo-colmeia, Dias

(2006) visa amenizar os efeitos de tal paradoxo (concretização do

conceito X uso situado). Para isso, o exemplo é apresentado em um

conjunto de outros com os quais mantém relações de semelhança e

diferença nas formas linguísticas, no sentido de explorar os efeitos de

sentidos relativos ao jogo do semelhante e do diferente, tendo em vista

fatores de ordem enunciativa. Essas enunciações formam uma rede,

sem hierarquia ou sequência determinada, como no desenho de uma

colmeia, que, a partir de um centro, outras casas vão sendo agrupadas,

tendo, ao final, algo unificado, sem início ou fim. Dessa maneira, o

exemplo em foco é considerado tanto na relação com o conceito

quanto na relação com outros no campo da enunciação de enunciados

pertinentes, constituindo-se a colmeia.

Acreditamos que o deslocamento do trabalho com o modelo de

exemplo-ilha para o de exemplo-colmeia trará muitos ganhos ao

ensino de língua, uma vez que proporcionará ao aluno, através da

observação de diferentes enunciações, a percepção da relação entre as

dimensões orgânicas e enunciativas da língua. Nessa proposta, caberá

ao professor buscar exemplos, em ocorrências reais da língua, que

tenham relação com o tema estudado. Com isso,

As aulas de português terão um ganho nas redes temáticas do dia-

a-dia do aluno. Nesse sentido, o professor pode reunir exemplos

que adquirem relação uns com os outros em determinado tema. Ele

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

COLMEIA

198 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

pode analisar as formas linguísticas tendo como pano de fundo as

diferenças de enunciação dessas formas. Através dessas diferenças

de enunciação, o aluno pode se ver motivado a perceber a

interessante relação entre a língua e sua exterioridade. (DIAS,

2006, p.52)

Antes de nos dedicarmos à análise das possiblidades de prospecção

de exemplos-colmeia no ensino dos lugares de sujeito de objeto em

atividades dos LD, faremos uma discussão relativa ao conceito de

“contexto” e de “completude de sentido” desenvolvido nos LD. E,

como consequência dessa discussão, mostraremos o deslocamento dos

conceitos de “contexto” para o de “intertexto” e o de “completude de

sentido” para o de “saturação no acontecimento”, a fim de se tornar

possível falar dos lugares sintáticos como configurações linguísticas e,

ao mesmo tempo, das incidências enunciativas nesses lugares, no

trabalho com os exemplos-colmeia.

Neste estudo, analisamos duas coleções de LD, aqui referidas

como Coleção Didática 1 e Coleção Didática 2, e referenciadas a

seguir:

ABAURRE, M. L. M.; ABAURRE, M. B. M.; PONTARA, M. (2010)

Português: contexto, interlocução e sentido. v.2. São Paulo: Moderna.

CEREJA, W. R.; MAGALHAES, T. C. (2010) Português Linguagens:

literatura, produção de texto, gramática. 7ed. São Paulo: Saraiva.

As duas coleções são destacadas pelo número de exemplares

solicitados pelas escolas públicas.

2.1 A questão do contexto

É muito comum vermos a palavra “contexto” sendo utilizada em

comandos de atividades nos livros didáticos do ensino médio. Do que

trata esse termo?

Percebemos que o contexto é tratado de modo genérico, sem

explicitação definida. Observemos o exemplo (1):

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Elke Beatriz Felix Pena

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 199

(1)

Figura 1: atividade de sintaxe, coleção didática I, v.2, p.510.

Nesse exemplo, nas questões propostas 5 e 6, o termo “contexto” é

usado para se referir ao anúncio publicitário em si: as imagens e o

texto da parte inferior, que são elementos que circundam o enunciado

“É. O amor é cego”. No entanto, a constituição do sentido desse

enunciado passa pela relação que ele contrai com um campo de

memória de suas enunciações. É isso que permite a relação com os

constituintes do texto que o integra. Nesse campo de memória de

enunciações, estão outros enunciados que situam o sentimento do

amor na relação com “cegueira”. Esse é o referencial de sentido desse

enunciado. Podemos vislumbrar como enunciados desse campo de

memória:

(1a) O amor é cego, por isso os namorados nunca veem as

tolices que praticam.

(1b) O amor é cego, a amizade fecha os olhos.

(1c) Nunca devemos julgar as pessoas que amamos. O amor que

não é cego, não é amor.

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

COLMEIA

200 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Dessa forma, passamos pelo que Rastier (1998) concebe quando

se refere a “contexto”, não como situação, mas como relação entre

textos, isto é, o intertexto. Para esse autor, um conjunto de textos do

mesmo gênero forma um corpus desse texto. Para análise de um

determinado texto, não podemos olhar somente para o seu interior,

mas para o corpus do qual participa. A isso ele chama de memória

intertextual.

o escrito opera com uma outra forma de contextualização

justamente aquela que vai de texto a texto – e que aliás não é

totalmente estranha quando se trata do oral. O escrito, com efeito,

pode se desvincular da situação inicial, ou pelo menos ampliar essa

situação, alcançando outros contextos. Dessa maneira, tendo em

vista a problemática retórico/hermenêutica, o contexto é

constituído não somente do aqui/agora, mas também daquilo que

não se situa no imediato: ele transborda, portanto, os limites do

situacional4. (RASTIER, 1998, p.106 - Tradução nossa)

Além de Rastier, outro autor que também trata o contexto como

memória intertextual é Adam (2011), que se refere a ele como uma

“forma memorial”, pois considera essa memória um suporte interno

do texto e critica esse conceito como aquilo que o “situa”.

Adam (2011) parte da afirmação de Foucault (1969) de que “uma

unidade linguística (frase ou proposição) só se torna unidade de

discurso (enunciado) se ligarmos esse enunciado a outros” (p.128

apud ADAM, 2011, p.45) para defender a rede de memórias entre

textos, o intertexto. Para ele, “realidade ao mesmo tempo histórica e

cognitiva, o contexto está ligado à memória intertextual. Não é um

dado situacional exterior aos sujeitos.” (p.56). Por isso, todo texto

constrói seu “contexto de enunciações” (p.56).

Assim, o corpus se constitui da entrada de um texto na memória de

outros textos, uma relação de dizeres atualizados em um

acontecimento com a memória desses dizeres.

Sendo assim, defendemos a tese segundo a qual “É. O amor é

cego.”, na peça publicitária em questão, só funciona ali devido a sua

entrada em outras enunciações da mesma regularidade. É isso que

legitima a relação desse enunciado com os outros do texto, relativos

ao amor por São Paulo, mesmo com os incômodos problemas da

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 201

cidade. Portanto a completude desse enunciado passa pela sua relação

com um campo de memória do qual ele é integrante.

Alheio a isso, o livro didático classifica “É.” e “O amor é cego.”

como frases, com base na definição de que “frase é um enunciado

linguístico que, independentemente de sua estrutura ou extensão,

traduz um sentido completo em uma situação de comunicação”

(COLEÇÃO 1, p.507). Se levarmos em conta apenas essa definição

indicada no livro, não é possível aceitarmos “É.” como frase, pois não

teria, por si só, “um sentido completo”. Isoladamente, pode nos

indicar, no máximo, que se quer afirmar algo que já foi ou será dito.

Portanto, ao considerar “É.” como frase, o livro didático certamente

considera elementos que vão além do que está materializado, e que

estão apontando para esse campo de memória, embora não explore

isso na atividade proposta aos alunos. Em relação a essas atividades,

na proposição (5) da página do LD que apresentamos na figura 1, para

responder à questão, supomos que o aluno teria que se remeter ao

campo enunciativo da expressão “O amor é cego”, que as autoras

apontam como “afirmação genérica”. Mas o que dá a essa expressão

esse estatuto genérico? Retomamos (1a) a (1c) para observá-la em

diferentes enunciações em que aparecem5.

(1a) O amor é cego, por isso os namorados nunca veem as

tolices que praticam.

(1b) O amor é cego, a amizade fecha os olhos.

(1c) Nunca devemos julgar as pessoas que amamos. O amor que

não é cego, não é amor.

Nas virtuais ocorrências aqui consubstanciadas em (1), percebemos

a afirmação de que, ao se amar, todos os defeitos do ser amado devem

ser relevados. Caso isso não aconteça, é sinal de que o sentimento não

é verdadeiro. Ama-se sempre incondicionalmente é o sentido

constituído pela rede de memória do pensamento expresso pela

metáfora “o amor é cego”. Daí, encontramos a ocorrência (1d) que

leva essa afirmação às últimas consequências, ignorando qualquer

racionalidade no amor.

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

COLMEIA

202 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

(1d) Sabe o que é o amor? Ele é cego, surdo, mudo, sem

preconceitos, não liga pra idade, qualidades, defeitos, apenas se

sente, apenas se ama.

Através dessa percepção enunciativa com exemplos (1a a 1d) em

colmeia, constituído com foco em “É. O amor é cego”, podemos

responder à segunda questão proposta no exercício (6) do LD, pois o

amor por São Paulo é também incondicional, apesar da “inversão

térmica”, do “trânsito louco” e de todos os seus “problemas”.

Dessa forma, tirando o contexto somente do campo do situacional

restrito e levando-o para o campo da memória, é possível relacionar o

enunciado ao que está sendo proposto nas atividades, pois, para

responder às duas questões que nelas constam, é necessário relacionar

o que está dito no texto com uma exterioridade constitutiva, o campo

de memória desse enunciado, que o atualiza na enunciação, que é a

relação entre uma memória e uma atualidade. (GUIMARÃES, 2002).

2.2 Do contexto para o intertexto

Nos LD de língua portuguesa do ensino médio, é comum, ao

introduzir o ensino de sintaxe, que o capítulo referente a esse conteúdo

se inicie com a definição de frase, oração e período, sendo a definição

de frase baseada em critérios semânticos. Tomaremos como base para

nossa reflexão, o capítulo introdutório à sintaxe do que chamamos de

coleção 1 em nosso estudo a respeito do ensino de sintaxe no ensino

médio. Nesse material, como já dissemos no item anterior deste texto,

frase é definida como “um enunciado linguístico que,

independentemente de sua estrutura ou extensão, traduz um sentido

completo em uma situação de comunicação (COLEÇÃO 1, p.507), e o

item destinado ao estudo da frase inicia-se da seguinte maneira:

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 203

(2)

Figura 2: capítulo de introdução à sintaxe, coleção didática I, v.2, p.510.

Logo após esse exemplo e antes de definirem frase, o LD afirma

que “O enunciado Mulheres e crianças primeiro! tem um sentido

completo. É considerado, em termos sintáticos, uma frase.” (p.507).

Até aqui, interessam-nos dois pontos: 1) a afirmação de que essa

frase é um enunciado e 2) a afirmação de que Mulheres e crianças

primeiro! tem sentido completo. Examinemos cada uma dessas

afirmações.

Enunciado é definido nesse LD como “tudo aquilo que é dito ou

escrito. É uma sequência de palavras de uma língua que costuma ser

delimitada por marcas formais: na fala, pela entoação; na escrita, pela

pontuação. O enunciado está sempre relacionado ao contexto em que é

produzido.” (p.505). Ainda nessa obra, a sintaxe “é o conjunto de

regras que determinam as diferentes possibilidades de associação das

palavras da língua para a formação de enunciados.” (p. 505).

Entende-se, nesse caso, que enunciado e frase podem ser tomados

um pelo outro pelo critério do fazer sentido num determinado

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204 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

contexto. Isso é confirmado na observação presente no livro do

professor, o qual informa que o conceito de frase da obra “estabelece

uma ponte entre a noção discursiva de enunciado e as unidades que

serão objetos de estudo da sintaxe: sintagmas, orações e períodos”,

sendo, assim, “correto afirmar (...) que todas as frases são enunciados

da língua” (p.506).

No subitem “Os enunciados da língua”, ao qual pertence o

exemplo da capa do livro, a frase é apontada como uma das três

unidades dos enunciados da língua, sendo as outras duas a oração e o

período. Assim, enunciado é toda e qualquer construção linguística.

Sabendo disso, podemos verificar o segundo ponto a respeito do

sentido de Mulheres e crianças primeiro!

Na sequência da exposição sobre frase, é dito que “O essencial

para decidir se um enunciado é ou não frase é o fato de ele apresentar

um sentido completo em um contexto específico.” (p.507) A pergunta

que fazemos é: como se determina o sentido desses enunciados?

Interessa-nos saber se, da forma como é exposto o assunto, fica claro

para o aluno determinar o que “tem ou não sentido”. Também nos

interessa saber se, uma vez “decidido” que um enunciado é realmente

uma frase, o aluno consegue explicar o que dá sentido a ela.

Parece-nos que afirmar que Mulheres e crianças primeiro! tem

sentido completo, sem demonstrar o que dá base a essa afirmação, é

fazer uma reflexão superficial em relação à produção de sentido. Se o

critério que determina o conceito de frase em questão é o sentido,

julgamos fundamental um tratamento mais aprofundado e sistemático

desse critério para que ele não seja tomado de forma intuitiva pelo

aluno.

A partir do exemplo dado no livro, podemos partir da pergunta: por

que consideramos “Mulheres e crianças primeiro!” um enunciado de

sentido completo?

Em busca pela internet, encontramos outras ocorrências de

“Mulheres e crianças primeiro”. Vejamos, então, alguns desses casos

em que a expressão aparece:

(2a) Por que mulheres e crianças têm prioridade em situações

de emergência?6

(2b) Mulheres e crianças primeiro é lenda náutica, afirma

pesquisa.7

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 205

(2c) Mulheres e crianças primeiro, homens descartáveis.8

O texto em (2a) mostra o surgimento desse princípio de que, em

situações de risco, mulheres e crianças devem receber tratamento

prioritário. Pela razão exposta, há uma repetição de ações em que essa

lógica é respeitada, tornando o enunciado recorrente nas situações de

perigo. Em (2b), é informada uma pesquisa que passa a considerar

esse princípio um mito. E (2c) é um texto cuja autora questiona esse

princípio, a partir de uma visão feminista que o considera como

pretexto para subjugar a capacidade feminina. Por essas ocorrências,

percebemos que essa construção mulheres + crianças + primeiro se

estabilizou devido ao seu percurso de enunciações, constituídas num

campo de memória, tanto que em (2a) o autor do texto a chama de

“lema”. Quando nos é apresentada a capa com esse título no LD

(figura 2), “reconhecemos” o sentido, porque há uma entrada desse

acontecimento enunciativo na memória de outros, que formam o

corpus, como propõe Rastier (1998), de “Mulheres e crianças

primeiro”. Daí o efeito de completude da expressão que leva à

afirmação de que ela tem sentido completo. Mas, na verdade, o que

acontece é uma participação no campo de memória da expressão que,

pela recorrência em outras enunciações, provoca uma saturação no

acontecimento enunciativo.

Não existe na expressão “Mulheres e crianças primeiro” uma

completude de sentido, pois, como o próprio livro aponta, é necessário

se considerar algo que vai além do que está exposto, a que chamam de

“contexto”.

Apresentar ao aluno ocorrências que mantêm relação entre si é

importante para que se possa perceber como o efeito de sentido da

expressão que se está analisando foi construído. Com essa prática,

podemos levar o aluno a entender que nenhum termo ou expressão

possui um sentido completo em si mesmo, como o faz entender a

forma como isso é muitas vezes dado nas salas de aula, mas esse

efeito de completude se dá na relação dessa palavra ou expressão no

presente da enunciação com as suas enunciações anteriores.

“Mulheres e crianças primeiro!” parece ter “sentido completo”, como

afirma o LD, porque ganhou, ao longo de seu histórico enunciativo,

um recorte de significação determinado pelos acontecimentos dos

quais participou. Há, assim, uma saturação da frase no acontecimento,

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206 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

como se, ao se realizar como título na capa do livro, trouxesse uma

ligação do presente com o passado, que resultasse num efeito de

completude, numa presença tão marcante que “apaga” a sua

contraparte de memória. Mas não se trata de algo completo, fechado,

acabado, e sim algo saturado, no sentido de conter o maior número de

possibilidades que se condensam. Por isso, no campo da significação,

não acreditamos na completude de sentido num determinado contexto,

mas sim na saturação de determinado enunciado no seu

acontecimento, como vimos em “Mulheres e crianças primeiro!”.

A partir de (2), procuramos mostrar como o trabalho com

diferentes enunciações de uma forma linguística pode levar o aluno a

perceber e entender a relação de significação. O sentido é produzido

na enunciação como um acontecimento e se faz necessário elaborar

uma metodologia que leve o aluno a sistematizar e analisar essa

produção de sentido, através da constituição das colmeias, como (2a) a

(2c). Essa seria uma saída do trabalho didático do campo da intuição.

Dadas a metodologia do exemplo-colmeia e as suas bases teóricas,

vamos discutir, no próximo capítulo, como os lugares sintáticos

podem ser abordados nessa perspectiva do campo da enunciação.

3. Lugar sintático e ensino de sintaxe

3.1 Lugar sintático de sujeito

Defendemos a tese segundo a qual o lugar sintático de sujeito é o

responsável pela instauração da sentença. Isso se justifica pelo fato

desse lugar ter uma condição de proeminência no eixo enunciativo da

unidade sentencial, uma vez que, no acontecimento, possibilita ao

verbo o recebimento da coordenada de pessoalidade, proeminente para

essa instauração. Explicando melhor, ao se colocar a língua em

funcionamento, coordenadas enunciativas incidem sobre a sua

materialidade. A partir dessas coordenadas é que o verbo sai do seu

estado de dicionário, ou seja, seu estado antes de constituir um

acontecimento, quando passa para um estado de finitude em que essas

coordenadas se materializam através das formas sufixais. Essa

atualização do verbo só é viabilizada na sua relação com o lugar de

sujeito. Assim, “a instalação do sujeito (...) rege a perspectivação da

pessoalidade na predicação” (DIAS, 2009, p.20). A instalação do

predicado é devida, então, à sua relação com o lugar de sujeito. De

maneira sucinta, o lugar de sujeito aciona o verbo que sai do estado de

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Elke Beatriz Felix Pena

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 207

dicionário e se constitui como base de uma predicação. Dessa relação

é que afirmamos que o lugar de sujeito tem como característica básica

uma anterioridade de predicação.

Quando dizemos algo como

(3) Maria viajou.

o lugar qualificado de sujeito, na enunciação, estabelece uma relação

com o verbo em estado de finitude. Em (3), o lugar sintático do sujeito

retira o verbo do seu estado de dicionário, “viajar”, para instalar um

predicado. Dessa forma, dizemos que o lugar de sujeito dá perspectiva

ao verbo, pois, ao retirá-lo do estado de infinitivo, dá a ele marcações

enunciativas, materializadas, no caso, por elementos morfológicos,

pertinentes ao acontecimento enunciativo do qual participa.

Para ser sentença, a sequência precisa projetar referência, daí

dizermos que o lugar de sujeito é lugar de constituição de referência.

Nesse quadro, a enunciação é o acontecimento da constituição do

enunciado. No acontecimento enunciativo, o articulável adquire

formações legíveis, tendo em vista que o enunciável se faz

pertinente na relação entre traços de memória (DIAS, 2012),

advindos de enunciados outros, em outros tempos e lugares, e uma

demanda atual, com vistas a significar o presente. Assim, as formas

da língua são constitutivas da relação que se estabelece entre a

instância de presente do enunciar e uma instância de anterioridade

(de memória). (DIAS, 2013, p.230)

O lugar do sujeito é constituído por uma anterioridade de

predicação, que consiste na instalação de uma perspectiva de

predicação tomada pelo verbo, na constituição da sentença, isto é, o

lugar de sujeito é a base de sustentação do predicado na constituição

da sentença.

É importante salientarmos que não é o item lexical classificado

como sujeito da sentença o responsável pelo acionamento ao qual nos

referimos e sim o lugar do sujeito, estando esse ocupado ou não

materialmente na sentença. Isso pode ser melhor entendido a partir da

análise que fizemos da seguinte atividade e da reflexão a respeito do

sujeito sintático propostas por um LD:

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

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208 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

(4)

Figura 3: atividade sobre termos essenciais da oração, coleção didática I, v.2,

p.514-515.

No decorrer da exposição iniciada pela tirinha da Mafalda, as

autoras atribuem a dificuldade de falantes da língua portuguesa,

quando lhes são apresentados conceitos como de sujeito e predicado, à

confusão que fazem entre critérios de natureza semântica e de

natureza sintática, o que poderia abrir uma discussão a respeito

daquilo que é material e do que é enunciativo na fala dos personagens.

O que consideramos um problema é que, na sequência dada, as

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 209

autoras definem sintático como o que diz respeito “às relações

estabelecidas a partir da maneira como os termos se articulam no

interior das orações.” (p.515). Dessa forma, as relações se restringem

aos aspectos formais da língua, apesar de, em vários exercícios, como

já demonstramos, ser necessária a relação enunciativa para se

estabelecer o sentido da sentença – como (1) ou (2). As autoras

justificam a resposta do personagem como sendo uma confusão entre

critérios de natureza semântica - “sujeito como alguém que pratica

uma ação, que é responsável por um acontecimento” – e critérios de

natureza sintática – “funções desempenhadas pelos sintagmas no

interior das orações” (p.515). Ou seja, na perspectiva da semântica,

para elas, o sujeito é o ser no mundo, um sujeito empírico.

Mesmo assim, consideramos significativa a abordagem dada ao

sujeito nesse item, pois pode sinalizar que, apesar de ainda preso a

aspectos formais da língua ao tratar a sintaxe, há uma percepção no

LD de que existem outros níveis de análise da língua. Dessa forma, ao

mesmo tempo em que notamos formas tradicionais de trabalhar a

sintaxe, percebemos “escapadas” para abordagens que apontam para o

enunciativo, como no que é exposto no guia de respostas, referindo-se

à questão 3:

3. Miguelito usa um critério de natureza semântica, ou seja, ele

considera o sentido do que é dito e faz uma interpretação para

identificar um indivíduo que possa ser responsável pelo fato

nomeado.

O que Miguelito precisaria entender é que, além das relações

de sentido, os termos da oração também estabelecem entre si

relações de natureza sintática que marcam as funções

desempenhadas pelos sintagmas no interior das orações.

(GUIA DE RESPOSTA, p.189, grifo nosso)

O LD considera diferentes esferas para se observar a língua,

denominadas por elas de semântica e sintática.

Voltando à tirinha (figura 3), a resposta do personagem, no terceiro

quadrinho, nos leva a pensar no significado da palavra “sujeito”, pois

temos duas palavras com o mesmo significante: sujeito como pessoa e

sujeito como nome da categoria gramatical. O que acontece na tirinha

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

COLMEIA

210 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

é que a pergunta é feita pensando no segundo significado, e a resposta,

no primeiro.

A discussão levantada aqui, sobre a relação sintático/semântico do

ponto de vista da gramática, está em se considerar o sujeito como

sintagma, “esse lixo”, ou como ser no mundo, “LIXO”. Na nossa

concepção, voltada para uma semântica da enunciação, a questão é a

pertinência de se ocupar o lugar de sujeito por este ou aquele item

lexical. Então, a partir do exemplo da tirinha, podemos lançar mão de

outras ocorrências em colmeia para demonstrar que não são as

palavras, mas o lugar sintático que determina a constituição do sujeito.

Na tirinha, é feita uma crítica social em relação ao tratamento dado

pelo poder público ao lixo nas ruas da cidade. Partindo de:

(4a) Esse lixo enfeia a rua.

Podemos trazer as ocorrências:

(4b) A prefeitura enfeia a rua com esse lixo.

(4c) O prefeito enfeia a rua não recolhendo esse lixo.

(4d) O cidadão enfeia a rua jogando esse lixo no chão.

Do ponto de vista da ocupação do grupo nominal-sujeito (GN-

sujeito), todos apresentam alto grau de definitude no acontecimento,

devido ao seu núcleo substantivo que produz um efeito de unidade

(DIAS, 2009). No entanto, voltando à situação da tirinha, podemos

observar que apenas (4a) daria a possibilidade da resposta do garoto.

No acontecimento enunciativo que se configura no texto, há uma

crítica social em relação à responsabilidade do lixo. Ao mesmo tempo,

no gênero tirinha, se propõe um efeito de humor, que se produz, em

(4), a partir da relação entre traços de memória que são acionados na

atualidade da enunciação, formalizada como O lixo e a crítica que

incide sobre ele. Isso porque lixo é um resultado de ações e não quem

efetivamente produz essas ações. O lixo está nas ruas por ações (ou

falta delas) de pessoas ou órgãos responsáveis pela limpeza da cidade.

Dessa maneira, em (4), o personagem encontra brecha na enunciação

para trazer o sujeito como referente no mundo para a sentença que lhe

é posta como questão, nos exemplos-colmeia (4a) a (4d), já inserimos

esses referentes como GN que ocupa o lugar de sujeito. Ao enunciar

(4a), na cena enunciativa construída na tirinha, na relação entre

memória e atualidade, a enunciação atualiza o enunciado que é

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Elke Beatriz Felix Pena

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 211

formalizado. Também por essa relação memória/atualidade, o

personagem produz essa referência na responsabilidade sobre aquela

situação do lixo. Nas ocorrências de (4b) a (4d), essa responsabilidade

está inserida na sentença como o GN-sujeito. Dessa maneira, o jogo

de significação relativo ao lixo e sua responsabilidade social é

apropriadamente trabalhado em um exercício de estruturação

linguística, no campo da sintaxe, através do exemplos-colmeia. Eles

servem para demonstrar o lugar sintático de sujeito ao mesmo em que

possibilita uma reflexão sobre o jogo de enunciações que colocam em

cena uma questão social. Demonstram que o funcionamento da língua

não é alheio ao jogo das significações pertinentes aos problemas

sociais.

3.2 Lugar sintático de objeto

Vimos, no item anterior, que é o lugar de sujeito, com suas

pertinências sociais, que aciona o verbo, tirando-o do seu estado de

dicionário, e instaura a sentença. Já o lugar de objeto é projetado pelo

verbo e está mais relacionado à progressão temática da sentença.

Como o lugar de sujeito, o lugar sintático de objeto pode também estar

ou não ocupado, dependendo da demanda de saturação da sentença.

São os verbos que projetam o lugar de objeto, por trazerem, nas

enunciações das quais participaram, um histórico de elementos que

ocupam esse lugar, o que cria uma memória de regularidades dessa

ocupação. Dessa forma, além de apresentar esse potencial de projeção

do lugar de objeto, o verbo participa da configuração da referência

constituída nesse lugar (DIAS, 2005). Vejamos (5), a fim de

ilustrarmos o que foi dito até aqui.

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

COLMEIA

212 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

(5)

Figura 4: atividade sobre termos essenciais da oração, coleção didática 2, v.2,

p.268-269.

A memória dos verbos presentes na tirinha é acionada para se

constituir uma referência dos objetos não lexicalizados, e, assim,

chegar à resposta da atividade 1. Isso é possível porque os verbos

“passar”, “chutar”, “atrasar” e “lançar” já participaram de outras

enunciações em que apareceram acompanhados de lugares de objeto

ocupados, como em (5a) a (5d). Assim, mesmo esses lugares estando

“vazios”, a significação está relacionada às possibilidades de

ocupação constituídas pelo percurso enunciativo desses verbos.

(5a) Passar a bola corretamente é uma das principais habilidades do

futebol.9

(5b) Cinco formas de chutar uma bola de futebol.10

(5c) Um zagueiro atrasa a bola com o pé para o goleiro do time

dele que, pressionado pelo atacante, chuta mal.11

(5d) Lança a bola, mata no peito, pode chutar que é gol.12

Acontece que alguns verbos são mais produtivos que outros,

ampliando essas possibilidades de ocupação. O verbo passar não

traria apenas uma memória no âmbito do futebol. No entanto, a

referência é constituída, nesse lugar sintático, também pela articulação

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Elke Beatriz Felix Pena

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 213

sintática dos verbos na sentença e no acontecimento, dentro de um

texto. A articulação entre os verbos passar, chutar, atrasar e lançar

restringe as possibilidades temáticas das sentenças ao futebol e

projetam um domínio de referência que daria suporte à ocupação do

lugar de objeto. O discurso, no caso do jogo de futebol, opera sobre as

bases da sintaxe, por isso, a articulação sintática dos verbos na

sentença é tão determinante para a referência do lugar sintático quanto

o percurso enunciativo do verbo que projeta esse lugar.

O verbo projeta um lugar, ou seja, um espaço no interior do

qual se constitui um domínio de referência. O objeto, enquanto

forma linguística, é um recorte de significação historicamente

delimitado e ganha forma na língua através desse lugar

projetado. Assim, o domínio de referência é algo da relação

entre um recorte determinado pelas condições históricas do

acontecimento e uma injunção desse recorte ao lugar específico

de configuração da forma linguística (DIAS, 2006, p.57).

Por isso consideramos problemático o tratamento dado

tradicionalmente ao estudo dos objetos, por partirem de uma ideia de

(in)completude do sentido do verbo (verbos transitivos ou

intransitivos). Em (5), podemos ver a fragilidade dessa concepção em

relação aos verbos, quando, por exemplo, o verbo passar é usado sem

objeto, e, mesmo assim, é possível responder à questão 1 a respeito do

seu “complemento”. Poderíamos, aqui, explicar essa possibilidade

apenas no que se refere ao gênero textual “tirinha”, relacionando o

texto verbal e o texto não verbal (lançando-se mão do que nos parece

que os autores chamam, na questão 1, de “contexto”), mas insistimos

que, mesmo apresentando a seguinte sequência sem os outros

elementos que compõem o texto:

(5e) Passa! Chuta! Atrasa! Lança!

ainda sim seria possível constituir projeção de referência para o lugar

de objeto, através de injunções da memória enunciativa desses verbos

e da articulação dos mesmos no enunciado. Isso se dá porque

reconhecemos aí a discursividade do futebol, na qual esses verbos são

bastante presentes, como nos exemplos-colmeia (5a) a (5d). E é

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MEMÓRIA ACONTECIMENTO E ENSINO DE SINTAXE: O EXEMPLO-

COLMEIA

214 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

importante observar que é comum a presença desses verbos, nesse

domínio de referência, sem os complementos, uma vez que os

jogadores se veem tomados pela emoção e a urgência de agir dentro

do campo. A ocupação desses lugares é “controlada por fatores

discursivos que atuam na enunciação.” (DIAS, 2005, p.119). O humor

do quadrinho reside justamente no fato de que um dos personagens

quebra esse estatuto, esperando que o seu parceiro utilizasse o termo

“por favor” ao lhe dar os comandos do jogo, quando a pertinência está

exatamente em ser direto.

A ocupação ou não do lugar de objeto, observada pelas condições

enunciativas dessa ocupação, nos leva a uma observação dos domínios

de referência no plano do enunciável e nos afasta do viés de

completude ou incompletude do sentido dos verbos, que geram

questões em sala de aula. Essas questões podem ser mais bem

compreendidas tendo em conta as condições enunciativas,

didaticamente exploradas pela metodologia dos exemplos-colmeia.

Considerações finais

Os lugares sintáticos são um lugar de contato entre uma memória

dos dizeres e a sua atualidade. Assim, é lançando o olhar sobre esses

lugares que podemos observar as dimensões orgânicas e enunciativas

da língua. Além disso, vimos que a forma como se dá a ocupação

desses lugares constitui as condições materiais da produção do

sentido. Por isso, defendemos a inserção da noção de lugares

sintáticos no ensino de língua portuguesa. Como buscamos mostrar,

com essa abordagem enunciativa da língua, o aluno poderá ser levado

a perceber as relações de memória das formas linguísticas, o que traria

importante ganho para o estudo da significação no ensino médio. Para

a sistematização desse ensino, propomos a aplicação do conceito de

exemplo-colmeia. O uso das palavras não é aleatório, mas

“discursivizado”. Dessa forma, os exemplos de diferentes enunciações

de uma sentença que se relacionam pelo histórico de suas ocorrências

formam um campo de memória. Com o estudo dos lugares sintáticos

pelo uso dos exemplos-colmeia, o aluno é levado a perceber a relação

entre formas da língua e sua exterioridade constitutiva.

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Elke Beatriz Felix Pena

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 215

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216 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

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Palavras-chave: Semântica da Enunciação, sintaxe, ensino de língua

portuguesa

Keywords: Semantic of Enunciation, syntax, Portuguese language

teaching

Notas

1 Dias, no presente dossiê, traça o perfil básico dessa perspectiva de abordagem da

significação. 2 Na língua francesa, site e place equivalem ao termo “lugar”, no português. Quando

falamos em site, falamos em lugar qualificado sintaticamente, com determinada (não

absoluta) dependência da localização na sentença na língua portuguesa (lugar de

sujeito, lugar de objeto), ao passo que place se refere tão somente à localização de um

termo na sentença, tendo em vistas as relações de contiguidade (Y depois de X,

seguido de Z). 3 Dalmaschio, no presente dossiê, apresenta detalhes dessa distinção. 4 l’écrit connaît une autre forme de contextualité, celle qui va de texte à texte – et qui

d’ailleurs n’est nullement inconnue de l’oral. L’écrit em revanche peut n’être pás

attaché à sa situation initiale, ou du moins s’en éloigner pour gagner d’outres

contextes. Ainsi, pour la problématique rhétorique/herméneutique, le contexte est fait

non seulement du hic et nunc, mais aussi de ce qui n’est past là: il dèborde alors la

situation.” (RASTIER, 1998, p.106) 5Todas essas ocorrências encontradas em <http://goo.gl/RSE93J>. Acesso: 20 jan.

2015. 6 LINARDI, Fred. Por que mulheres e crianças têm prioridade em situações de

emergência? Disponível em: <http://goo.gl/91OGx9>. Acesso em: 21 jan. 2015. 7 VALLADARES, Maria Luiza. Mulheres e crianças primeiro, homens descartáveis.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 217

A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO.

(N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE BENVENISTE

Cármen Agustini

UFU

Flávia Santos da Silva* Resumo: No presente artigo, discutimos a noção de frase nas

teorizações de Émile Benveniste relativas à conversão da língua em

discurso, a fim de compreender e explicitar o porquê de a frase ser

considerada por ele unidade de discurso. Para tanto, mobilizamos, em

particular, da Linguística Geral Benvenistiana, as teorizações que

apresentam a frase como unidade de discurso e que, por isso,

demandam a necessidade de considerá-la em seu acontecimento

evanescente; não é possível (de)limitar seu sentido, porque o sentido é

relacional; mas é possível jogar com possibilidades de emprego e

ação. O conceito de frase mostra-se, por conseguinte, fundamental

aos procedimentos de análise semântica presentes na obra de Émile

Benveniste. Para discutir o porquê de a frase ser unidade de discurso,

mobilizamos os conceitos de segmentação, distribuição, integração e

conexão em suas potencialidades explanatórias do alçamento das

entidades em unidades linguísticas.

Abstract: In this paper, we discuss the notion of sentence in Émile

Benveniste’s theories related to the conversion of the language into

discourse in order to understand and explain why the sentence is

taken as a unit. We use Benveniste’s studies which present the sentence

as a discourse unit. Such studies show the necessity to consider the

sentence as an evanescent happening. This is so because it is not

possible to determine its meaning once it is relational. What is

possible to do is to play with possibilities of use and action.

Consequently, the concept of sentence is essential to the procedures of

semantic analysis in the research carried out by Émile Benveniste. To

discuss why the sentence is considered to be a discourse unit, the

concepts of segmentation, distribution, integration and connection in

their explanatory potential of the uprising of linguistic entities are

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A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE

BENVENISTE

218 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

taken into account.

Le sens est en effet la condition fondamentale que doit remplir toute

unité de tout niveau pour obtenir statut linguistique. (BENVENISTE,

PLG I, p.122)

Introdução

Na Linguística, o conceito de frase pode assumir diferentes

definições, segundo a orientação teórica adotada. É conceituada por

alguns como uma abstração forjada para exemplificar questões

linguísticas, assim como pode ser considerada por outros como uma

unidade linguística inferior ao texto e ao discurso. Para ter ciência

dessas diferentes definições, é suficiente consultar um dicionário de

linguística. O termo “frase” pode, ainda, mostrar-se tão trivial que,

muitas vezes, não é reconhecida a necessidade de defini-lo e o termo é

utilizado de modo a pressupor como consensual sua conceituação e,

por isso, resvala-se na falta de rigor teórico, permanecendo sob a

égide do senso comum e, consequentemente, de uma vagueza teórica.

Com efeito, trata-se, na verdade, de um termo de difícil definição,

quando pensado para além de uma teorização específica. De acordo

com Saussure (1964 [1916], p.23) “c'est le point de vue qui crée

l'objet”1; por isso, para definir o que seja frase é necessário estabelecer

um ponto de vista e o ponto de vista de Benveniste é o da presença do

homem na linguagem e na língua. Por isso, Benveniste intenta

compreender o funcionamento do processo de conversão da língua-

sistema em língua-discurso, uma vez que esse processo introduz

aquele por meio do qual e em quem a manifestação de linguagem

acontece naquilo que diz ao (se) enunciar. Quais são as implicações

dessa condição na conceituação da frase no pensamento

benvenistiano? Eis o fio condutor de nossa argumentação na presente

demonstração da frase como unidade de discurso.

De pronto e de início, é possível dizer que, nas teorizações de

Émile Benveniste, o conceito “frase” ganha, além de uma definição

específica nas redes conceituais de seu pensamento, um lugar

privilegiado e um valor fundamental, uma vez que se constitui como

unidade de discurso. A condição de fundamento da frase justifica a

importância em abordá-la no processo de compreensão do pensamento

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Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 219

de Émile Benveniste. A assunção da frase à unidade de discurso abre

(outros) caminhos de como concebê-la e, assim sendo, de como

compreendê-la. Há um mo(vi)mento em Benveniste de questionar a

evidência sobre o que seja a frase e sua condição nada trivial no

funcionamento da linguagem.

Ao considerar a frase como unidade de discurso, a semântica de

Émile Benveniste submete-se à compreensão do que seja a frase em

função do texto e do discurso, por exemplo. De saída, Benveniste

coloca que a frase, por conexão, liga-se a outra(s) para (con)figurar

o(s) discurso(s) que pode(m) estar subjacente(s) ao texto. A conexão é

a operação semântica que coloca uma frase em relação a outra(s) na

conversão da língua-sistema em língua-discurso no ato de enunciação,

seja esta falada ou escrita. Por isso, se um texto constitui um

amontoado de frase(s), esse amontoado não implica que a(s) frase(s)

que o compõe(m) esteja(m) em desordem, ou produza(m) incoerência

e/ou possa(m) ser isolada(s) da situação discursiva que a(s) evoca(m)

sem que esse isolamento não afete a própria constituição do texto e do

discurso, em sua consistência significativa.

Para dirimir essa compreensão sobre o texto e o(s) discurso(s) que

ele pode veicular, analisamos o miniconto Hora do recreio de Luiz

Brigadeiro, disponibilizado no site Recanto das Letras. Essa análise

explora o jogo entre forma e sentido, assim como o emprego da forma

e o uso da língua, a fim de compreender e explicitar o funcionamento

da frase na textualização de (dis)curso(s). Os níveis da análise

linguística permitem colocar em relevo a inexatidão do sentido, uma

vez que a segmentação das entidades linguísticas em unidade é função

do locutor, o que abre o texto, em sua condição de discurso, à

equivocidade constitutiva.

Por isso, embora as manifestações do sentido possam parecer

fugidias, livres e imprevisíveis, elas estão submetidas às coerções da

língua em sua dupla função na linguagem: (1) a função de significar,

relativa ao modo semiótico e (2) a função de comunicar, relativa ao

modo semântico. Do ponto de vista de Émile Benveniste, é assim que

se torna possível produzir uma análise científica do sentido, como

demonstraremos na sequência.

1. Os planos semiótico e semântico na compreensão da frase

De acordo com Benveniste, a língua possui dois planos, o plano

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A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE

BENVENISTE

220 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

semiótico e o plano semântico, organizados em quatro níveis: (1) o

merismático, (2) o fonemático, (3) o intermediário e (4) o

categoremático. O nível merismático é o dos caracteres distintivos dos

fonemas, estando implicados nele certos traços distintivos. Os traços

bilabial, gutural, surdo e sonoro, por exemplo. O nível fonemático

refere-se ao modo de organização dos signos diferenciando-se entre si

por meio das relações paradigmáticas. O nível intermediário é aquele

em que o signo, do paradigma, funciona no sintagma, contraindo as

propriedades de palavra. Havendo sintagma, a língua é manifestada no

nível categoremático, cuja expressão por excelência é a frase. Por esse

motivo, Benveniste afirma que, com a frase, a língua atravessa um

limite:

Ce qui est nouveau ici, tout d’abord, est le critère dont relève ce

type d’énoncé. Nous pouvons segmenter la phrase, nous ne

pouvons pas l’employer à intégrer. Il n’y a pas de fonction

propositionnelle qu’une proposition puisse remplir. Une phrase

ne peut donc pas servir d’intégrant à un autre type d’unité. Cela

tient avant tout au caractère distinctif entre tout, inhérent à la

phrase, d’être un prédicat. (BENVENISTE, 1966, p.128)2

Para compreender o atravessamento desse limite pela língua, é

necessário problematizar os conceitos de integração, função

proposicional e predicado, que estão presentes nas teorizações de

Benveniste. Esses conceitos estão em função de explorar esse

atravessamento de modo a teorizá-lo no alçamento da frase à unidade

de discurso. Dito de outro modo, esses conceitos funcionam na

tessitura teórica da formulação do que é o semiótico e o semântico e

do que é a unidade linguística em cada plano.

É necessário, de antemão, explicitar que esses planos funcionam

juntos no exercício da linguagem; por isso, não há passagem de um

plano para outro, no sentido de que, ao entrar em um plano, o outro

não estaria ali operando sobre o funcionamento da língua. Nesse

sentido, Benveniste não busca destituir a complexidade e o paradoxo

do funcionamento da língua na linguagem posta em ação, na

(re)produção de discurso. Ao contrário, seu interesse é trabalhar esse

funcionamento paradoxal, de modo a explicitar a função do homem no

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Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 221

processo de conversão da língua-sistema em língua-discurso.

Em francês, “intégrer” pode ter tanto o sentido de enxertar em um

conjunto como o de inseri-lo em um todo de modo a pertencer

solidariamente com os outros elementos: “placer quelque chose dans

un ensemble de telle sorte qu'il semble lui appartenir, qu'il soit en

harmonie avec les autres éléments”3. E é justamente essa definição de

que se serve Benveniste para explanar a integração: os elementos do

nível merismático integram o nível fonemático que integram o

intermediário até chegar ao categoremático de maneira a formar

língua, por isso, a relação é solidária. Por exemplo, no nível

merismático, a guturalidade surda de “g” integra “gato” de modo a

diferenciá-lo da guturalidade sonora do “c” em “cato”.

No nível fonemático, “gato” e “cato” coexistem de modo a

fornecerem possibilidades de associações ao locutor. Enquanto

integrantes do eixo paradigmático, essas unidades são constituintes do

nível intermediário, nessa conversão de signo a palavra:

“conheço/[cato/gato]/eu/um”. Quando (n)o locutor (se) faz as suas

associações, fazendo com que “cato” não se relacione a “catar”, mas a

“povo da Germânia”, ele poderia sintagmatizá-lo na frase “eu conheço

um cato”, de modo a fazer com que seu significado genérico tome um

emprego específico, inclusive podendo relacioná-lo a “eu conheço um

gato”, se o emprego de “gato” estiver para “homem bonito”, o cato.

Deste modo, “cato” integra esse sintagma, tornando-se um elemento

solidário ao todo. Solidário, portanto, significa que um termo está em

função do(s) outro(s), estabelecendo entre eles uma relação de

interdependência e de (de)limitação recíproca.

É a partir desse tipo de raciocínio que Émile Benveniste emprega o

conceito de “fonction propositionnelle”4: no nível categoremático, a

palavra toma uma função na frase. Por conseguinte, “fonction”

deveria ser tomada no sentido de “rôle joué par un élément dans un

ensemble”5, isto é, a função é um papel que um elemento preenche em

jogo. Na língua, esse jogo é frase, que, pautada no eixo paradigmático,

oferece uma indefinida gama de relações. Dependendo da maneira

como se articula a palavra nessa rede de associações, ela vai tomar

funções proposicionais diferentes. Assim, “função” não implica

meramente uma finalidade ou uma categoria gramatical fixa, mas

relação e dependência solidária entre os elementos linguísticos. Nesse

sentido, vale ressaltar que não há nada na frase que lhe seja acessório,

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BENVENISTE

222 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

uma vez que estes estão em função da ideia que a frase pode veicular

na situação discursiva que a evoca.

Consequentemente, a frase é um predicado porque ela diz ou pode

dizer algo (de algo ou alguém). Em nota6, Benveniste explana que sua

definição de “prédicat” deriva do termo grego “katégoréma”, o qual

equivale a “praedicatum” em latim. “Praedicatum” é o particípio

passivo de “praedico”, cujas definições dicionarizadas podem revelar

sentidos interessantes para a compreensão do modo como o termo

pode ser conceituado em Benveniste:

Dizer em alto e em bom som, dizer na cara, perante

testemunhas, publicamente; dizer, falar. Audes mihi praedicare

id? Ter. Pois tu atreves-te a me dizer isto? Quod mihi praedicas

vitium. Plaut. O defeito que me imputas. Ita praedicant. Ter.

Assim corre, assim dizem. Utrumne taceam, an praedicem? Ter.

Devo calar-me ou falar? (SARAIVA, 2006, p.929)

Nesse verbete, o emprego de “dizer” que Terêncio faz de

“praedico” nas frases corresponde aos sentidos que Saraiva

dicionariza. Entretanto, o exemplo de Plauto foge a isso: em “Quod

mihi praedicas vitium”, “praedicas” atribui uma propriedade,

“vitium”, a “mihi”, por isso a tradução: “O defeito que me imputas”.

Assim, o dativo expresso por “mihi” não seria meramente o “objeto

indireto”, como geralmente tenta-se explicar esse caso, mas o caso que

denota o “beneficiário”, isto é, aquele que recebe os efeitos de uma

ação. No caso dessa frase, o “ego” recebe o efeito, “vitium”, do “tu”

que “praedicas” sobre ele, por isso, “mihi”.

Embora Saraiva não tivesse explicitado esse emprego, é possível

observar por esse exemplo que os romanos também faziam uso de

“praedico” de modo a conferir-lhe o sentido de “dizer algo de

alguém”, isto é, atribuir propriedades dizendo. E é justamente esse

sentido que “praedicatum” toma em Benveniste. Compreendamos essa

questão a partir das três consequências que esse autor enumera no que

diz respeito ao fato de a frase ser um predicado: (1) o sujeito

gramatical não é necessário, (2) a sintaxe é um código gramatical e (3)

a entonação é subjetiva:

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 223

De même la présence d’un “sujet” auprès d’un prédicat n’est

pas indispensable: le terme prédicatif de la proposition se suffit

à lui-même puisqu’il est en réalité le déterminant du “sujet”. La

“syntaxe” de la proposition n’est que le code grammatical qui

en organise l’arrangement. Les variétés d’intonation n’ont pas

valeur universelle et restent d’appréciation subjective. Seul le

caractère prédicatif de la proposition peut donc valoir comme

critère. (BENVENISTE, 1966, p.128)7

A frase tem um termo predicativo, isto é, seu fim último é predicar,

atribuindo propriedades ao dizer, o que não implica a necessidade de

haver um sujeito gramatical nela. É nesse ponto que a noção de

“praedicatum” vai ao encontro da noção de “prédicat” em Benveniste:

predicar não implica necessariamente ocupar o lugar de predicado

gramatical em uma frase, mas simplesmente dizer, no sentido de

“praedico” do termo. É por isso que a sintaxe seria apenas o código

gramatical que organiza o arranjo da frase.

Esse “apenas” não viria pejorativamente – já que o próprio

Benveniste fez estudos muito pesados em sintaxe - mas de modo a

mostrar que a frase não se resume a seu arranjo, que é forma: ela

também veicula sentido(s) – isso possibilita, inclusive, que a frase seja

constituída de uma única palavra8. Por isso, predicar é dizer por meio

desse arranjo, que pode dar-se por um conjunto de palavras, mesmo

que esse conjunto seja unitário, (com)portando, por conseguinte,

apenas uma palavra. Essa palavra, por sua vez, para se constituir como

frase, deve assumir a condição de sintagma. Um exemplo de sintagma

de termo unitário é encontrado nas placas com o dizer “Silêncio!”

colocadas nas salas de espera de hospitais.

Dizer, poderíamos observar, não só no sentido de “dizer em alto e

em bom som” de “praedico”, dado que a entonação está para a

apreciação subjetiva, mas no sentido de “atribuir propriedades

dizendo”, já que é o caráter predicativo da frase que vale como critério

de análise. Isso porque a entonação está para a substancialização da

língua, que, justamente por ser substância, não pode ser tida como

linguística; o linguístico é de natureza psíquica e não de natureza

física. A natureza física restringe-se ao suporte da língua nas

manifestações da linguagem. Conforme Saussure,

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A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE

BENVENISTE

224 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Ainsi, si nous prenons le côté matériel, la suite de sons, elle ne

sera linguistique que si elle est considérée comme le support

matériel de l’idée; mais envisagé en lui-même, le côté matériel,

c’est une matière qui n’est pas linguistique, matière qui peut

seulement concerner l’étude de la parole, si l’enveloppe du mot

nous répresente une matière qui n’est pas linguistique. Une

langue inconnue n’est pas linguistique pour nous. A ce point de

vue-là, on peut dire que le mot matériel, c’est une abstraction au

point de vue linguistique. Comme objet concret, il ne fait pas

partie de la linguistique. (SAUSSURE In: ENGLER, 1989,

p.232)9 A substancialização da língua, considerada por ela mesma, é

apenas uma cadeia de sons que torna o signo material. Por isso, na

Linguística, ela é pura abstração: os sons, não sendo o suporte de um

conceito, não podem ser considerados signos; o mesmo se dá com a

frase: sendo ela apenas uma sequência de sons sintagmatizados que

partem da boca de um locutor e chegam à orelha de um interlocutor,

por mais diferentes que sejam as flexões de voz, não pode ser tida

como linguística. Portanto, escapa ao domínio de estudo da

Linguística, o que não implica que não possa ser estudado por outra

ciência e contribuir com os estudos em Linguística. Por isso, a

entonação permaneceria como apreciação subjetiva, na qual o termo

“subjetivo” estaria para “abstrato”, e não no sentido benvenistiano do

termo “simbólico”.

Com base no exposto, compreendemos que, na frase, a língua

atravessa um limite devido à predicação: esta faz com que haja a

passagem da língua-sistema à língua-discurso10. Dado a isso, voltemos

ao nosso exemplo: o interlocutor pode não compreender “eu conheço

um cato” se o emprego de “cato” enquanto “povo da Germânia” não

pertencer às suas redes de relações associativas. Se não o faz, “eu

conheço um cato” não irá se constituir linguisticamente para o

interlocutor; essa possibilidade faz com que a frase não seja uma

unidade de língua, mas uma unidade de discurso, no sentido em que o

interlocutor saberia que ela “diz algo”, mas o que ela diz não lhe

estaria acessível. Façamos a tessitura dos desdobramentos dessas

colocações teóricas no próximo tópico.

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Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 225

2. A intersubjetividade na compreensão da frase

Na semântica benvenistiana, a relação entre forma e sentido é

inalienável e, por isso, imanente, o que significa dizer que não há

unidade de status linguístico sem a relação entre elas. São noções

gêmeas e, por isso, têm a mesma natureza psíquica e se formam juntas

na língua-sistema e, em decorrência, estão presentes na língua-

discurso como entidade imantada que garante a permanência da língua

em funcionamento na estrutura linguística; forma e sentido estão um

em função do outro, ou seja, não há forma sem sentido e não há

sentido sem forma; é no exercício da linguagem que forma e sentido

se produzem, se deslocam, se modificam; mas também se estabilizam

e se mantêm em relação. E é justamente na imanência entre forma e

sentido que está calcada a subjetividade e, portanto, a noção de frase

de Benveniste:

La phrase est une unité, en ce qu’elle est un segment de

discours, et non en tant qu’elle pourrait être distinctive par

rapport à d’autres unités de même niveau, ce qu’elle n’est pas,

comme on l’a vu. Mais c’est une unité complète, qui porte à la

fois sens e reférence (BENVENISTE, 1966, p.130)11.

O discurso é a expressão do emprego da língua, é aquilo que surge

como efeito do fato de os homens se comunicarem, embora essa

“comunicação” não implique nem simetria nem igualdade no processo

de referenciação entre locutor e interlocutor. Assim, a frase é uma

unidade de discurso não no sentido de que ela entra em relação de

distinção com outras frases – a língua não possui frases prontas no

sistema, uma vez que se organiza em paradigma –, mas na medida em

que é um segmento da atualização da língua-sistema em língua-

discurso. Por esse motivo, a frase possui referência, que, sendo a

situação de discurso que a evoca, sempre se esvai. Entretanto, há um

resto que sobra, o sentido, que se torna inteligível.

Por ser inteligível, esse resto se dá em razão do critério predicativo,

o que produz três tipos de frase: a proposição assertiva, a proposição

imperativa e a proposição interrogativa. Poder-se-ia questionar que é a

entonação que as diferencia. Entretanto, para Benveniste, é a

predicação que o faz justamente porque faculta o manejo de três

funções inter-humanas: a função de veicular um conhecimento na

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BENVENISTE

226 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

asserção, a função de obter uma informação na interrogação e a

função de intimar uma ordem no modo imperativo. O que distingue

uma proposição de outra são as funções discursivas que se dão entre

os homens na intersubjetividade, e não meramente uma inflexão de

voz. O simbólico tem preponderância com relação à substancialização

da língua.

De modo resumido, poderíamos dizer que a frase é uma unidade de

discurso porque ela é uma porção do processo de semantização da

língua; por isso, a frase não é passível de decomposição. Quando o

locutor organiza os signos que estão impressos virtualmente em sua

mente em sintagmas, de modo a produzir frases conexas entre si, a

língua-sistema, que herdou dos outros homens em sua experiência de

linguagem, converte-se em língua-discurso, cuja expressão por

excelência é a frase. Por isso, a frase apresenta um funcionamento

particular: ela permite que o modo semiótico se articule ao modo

semântico de maneira a produzir significância, o que habilita o

diálogo entre os participantes da relação discursiva.

Consequentemente, a noção de unidade discursiva em Benveniste

implica necessariamente a noção de intersubjetividade, uma vez que

está em função dos participantes da relação discursiva. Para que haja

correferenciação entre os participantes da relação discursiva, é

necessário que a intersubjetividade esteja em operação e

funcionamento. Ao possibilitá-la, a frase se torna um tipo de

enunciado12 que vem em função de organizar ideia(s), uma vez que a

ideia é o sentido possível da frase em uma situação de discurso que a

evoca; a noção de “situação” pressupõe necessariamente a instância

de, ao menos, dois homens em atividade de diálogo13. Em decorrência,

se há o tipo de enunciado que organiza ideias, a frase, também há a

contraparte, aquele tipo de enunciado que não o faz. Se alguém emite

“palavras soltas” de tal modo que elas não entram em conexão para

formar uma ideia na situação de discurso que a(s) evoca(m), então é

possível conceber que há enunciado que não se constitua como frase.

Nesse caso, esse enunciado também não se constituiria como

discurso, porque não (con)figuraria um dizer organizado e articulável

à série da realidade (social). Se levamos a sério que o sentido é

relacional ao eu-tu-ele-aqui-agora da enunciação, há a possibilidade

de que o enunciado não se constitua como frase-discurso para o

interlocutor; condição em que o enunciado lhe chegaria como mera

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Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 227

falação, ou seja, como uma espécie de “barulho” que não diz,

barrando a possibilidade de o interlocutor correferir-se ao locutor e de,

assim acontecendo, poder assumir a condição de co-locutor daquilo

que o locutor (se) diz ao enunciar. Portanto, para que o enunciado se

constitua como frase-discurso é necessário que ele, na relação com os

participantes da interlocução, faça sentido.

A frase, portanto, é um tipo de enunciado que não pode integrar

outro tipo de unidade, porque ela é o último nível passível de ser

segmentado em unidades linguísticas. Um conjunto de frases conexas

não é segmentável em unidades linguísticas, porque o sentido da frase

é sua ideia e essa ideia está em função do eu-tu-ele-aqui-agora de sua

enunciação14. Nesse sentido, a frase não pode constituir-se como

unidade linguística, porque ela é evanescente ao seu acontecimento.

Nessa perspectiva, o texto e o discurso não são níveis. O discurso é

efeito e, por isso, evanescente e relacional ao eu-tu-ele-aqui-agora da

enunciação.

Já o texto pode ser compreendido como um resto “morto” de

enunciação; aquilo que resta materialmente falando da condição

evanescente da frase e do discurso e que, por isso, permanece, em

latência, para que outro homem, em lugar de interlocutor, possa

revivê-lo e, assim se dando, re-construí-lo discursivamente. Nesse

sentido, o texto precisa de um interlocutor que o leia e que, ao lê-lo,

alce-o à condição de discurso, re-significando-o. Trata-se, nessa

perspectiva, de uma outra relação discursiva, o que implica uma nova

enunciação e a possibilidade de re-produção de (outros) sentidos.

Na direção dessa compreensão do pensamento de Émile Benveniste, podemos citá-lo em seu texto “La phrase nominale15”, de

1950, presente no PLG1, de 1966. Nesse texto, o autor afirma que “un

énoncé assertif fini possède au moins deux caractères formels

indépendants: 1) il est produit entre deux pauses; 2) il a une intonation

spécifique16” (BENVENISTE, 1966, p.154). Continua ele: Une assertion finie, du fait même qu'elle est assertion, implique

référence de l'énoncé à un ordre différent, qui est l'ordre de la

réalité. A la relation grammaticale qui unit les membres de

l'énoncé s'ajoute implicitement un “cela est!” qui relie

l'agencement linguistique au système de la réalité17.

(BENVENISTE, 1966, p.154)

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BENVENISTE

228 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

É na relação, portanto, entre o agenciamento linguístico da frase e

a situação discursiva que a evoca que a referência se constrói e ela

pode, então, representar o mundo por meio da função simbólica da

linguagem. É observável, ainda, que “enunciado”, nesse mo(vi)mento

teórico, refere-se a dizer e dizer de tal modo que re-produz o mundo,

re-construindo uma realidade imaginária.

É por esse motivo que “nihil est in lingua quod non prius fuerit in

oratione18”. Por meio da frase, o locutor tem acesso a um número

finito de elementos semióticos empregados, os quais, semantizados,

fazem acontecer uma infinidade de sentidos no discurso. Isso permite

que a língua se forme e se (con)figure pela atualização que se dá por

meio do diálogo. A frase, portanto, patenteia a sua natureza

primordial, a de ser uma unidade - porque é forma e (con)figura - de

discurso - porque acontece na intersubjetividade.

3. A frase no texto e sua assunção a discurso

A frase no texto é a parte do enunciado que permanece disponível

para que um falante, no lugar de interlocutor (tu), possa ascendê-la à

condição de frase no processo de leitura e, assim, poder (con)figurar-

se como co-locutor; nesse mo(vi)mento, a frase é compreendida como

unidade de discurso, porque toma lugar no processo de (re)enunciação

do texto. Discurso, em Benveniste, é o efeito do processo relacional

que instaura a língua-sistema como instrumento da comunicação19 em

uma relação de intersubjetividade específica na língua-discurso. Por

isso, há um desencaixe constitutivo entre o que o locutor reproduz e o

que o interlocutor recria por meio da linguagem em ação.

A análise do miniconto Hora do recreio de Luiz Brigadeiro,

abaixo, pode clarificar nossa problematização da frase como unidade

de discurso na perspectiva benvenistiana. No entanto, é necessário,

antes, fazer uma ressalva sobre o fato de o texto constituir-se como

parte do espaço literário. Trata-se de um texto em prosa e, por isso,

seu funcionamento aproxima-se do funcionamento da linguagem

ordinária, de modo que sua análise não implica uma desconfiguração

do pensamento de Benveniste sobre o funcionamento da linguagem

em ação, ou seja, sobre o funcionamento do discurso (BENVENISTE,

1966 [1958], p.258).

Nesse caso, o eu-tu-ele-aqui-agora da enunciação reporta-se a uma

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 229

construção que não traduz propriamente uma realidade social20; sua

referência é a emoção que o conto intenta re-criar no interlocutor que

o leia. Em Benveniste, a re-criação está para o interlocutor; este cria

sua interpretação a partir da relação que se instaura, no processo de

leitura, entre o texto e sua experiência de linguagem, na situação de

discurso que esse processo coloca em funcionamento.

A relação de integração refere-se à articulação de uma unidade a

outra a fim de constituir outra unidade de nível superior. Na

integração, há relação de interdependência e de hierarquização; a

relação de interdependência preconiza que um elemento é em função

do outro e a relação de hierarquização pressupõe a existência de

elemento determinante e de elemento determinado. A relação

específica para promover o conjunto das frases à condição de texto é a

conexão. A conexão, por sua vez, implica uma relação de

(de)limitação e de direcionamento. A (de)limitação refere-se às

possibilidades de encadeamento das frases e o direcionamento é a

operação que intenta “amarrar” as possibilidades de sentido(s). Para

empreendermos a análise do miniconto, jogaremos com essas relações

e com a intersubjetividade instaurada no mo(vi)mento de confidência

do eu lírico.

Hora do recreio

(1) Lá vinha ela. Sempre com fita no cabelo e lancheira de lado.

Hoje tomei coragem, cheguei mais perto e disse:

__ Oi, vamos brincar?

__ Brincar de quê?

Por timidez fiquei mudo.

(2) Eu queria apenas brincar de dar as mãos pra ela.

(Luiz Brigadeiro. Publicado no Recanto das Letras em

19/06/2008)

Em “Lá vinha ela”, no nível fonemático, “vinha” integra-se à frase

de modo a diferenciar-se de “tinha”, “minha”, “linha”, entre outros.

No nível intermediário, essa integração é acirrada, uma vez que o

signo “vinha” pode relacionar-se equivocamente tanto ao sentido de

“terreno de videiras” quanto ao de “encaminhar-se a um lugar” no

modo semântico. O agenciamento da frase, entretanto, seleciona essas

possibilidades, permitindo encaixar o segundo sentido, em detrimento

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BENVENISTE

230 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

do primeiro, dentre outros possíveis.

O sentido de “terreno de videiras”, no entanto, pode não ser

acionado nas relações associativas, uma vez que a língua está no

homem de modo parcelar e, por isso, os sentidos também, embora o

manejo da língua a afete em seu todo. A relação com “lá” e “ela”, em

certo sentido, (de)limitam-na em uma relação de solidariedade

recíproca, asseverando o abandono da interpretação de “vinha” como

“terreno de videiras”. Nesse caso, os participantes podem não ser

tocados por essa equivocidade e um efeito de evidência do sentido

pode se dar.

Por conseguinte, no nível categoremático, os signos se organizam

de maneira solidária. Assim, a frase não pode ser concebida como um

somatório destes. Merismaticamente, em “ela”, o caráter de ser uma

vogal central baixa de “a” faz diferenciá-la da anterioridade média de

“e”, em “ele”, o que, no nível categoremático, leva ao efeito de

sentido de que o eu lírico observa a vinda de um indivíduo que ele

considera como “feminino”, não sendo possível, apenas com essa

frase, esboçar o quadro daquilo que constitui esse indivíduo enquanto

sujeito. Por ora, só sabemos que esse indivíduo se desloca, “lá”, de um

lugar já da realidade do discurso a outro, também dessa realidade, em

que se encontra o eu lírico.

Graças à consecução de frases, é possível em “Sempre com fita no

cabelo e lancheira de lado” começar a desenhar (uma) instância(s)

discursiva(s) para esse “feminino”. A função proposicional de cada

uma das palavras que a compõem é de essencial importância para esse

desenho. Junto ao verbo do período anterior, “sempre” confere a “vir”

uma constância, um hábito que não caracteriza propriamente o “ela”,

mas a maneira como o eu lírico vê esse “ela”.

“Com fita no cabelo” e “[com] lancheira de lado” conferem a “ela”

caracteres que fazem-na sair do lugar do ordinário, da massa de

pessoas indistinguíveis, destacando-se ante os olhos do eu lírico.

Consequentemente, três sintagmas, “sempre”, “com fita no cabelo” e

“[com] lancheira de lado”, desempenhando a função tida como de

adjunto adverbial, não podem ser meramente termos acessórios e, por

isso, dispensáveis, como preconizado pela Gramática Normativa da

Língua Portuguesa. É justamente esses adjuntos que permitem esboçar

um desenho não de “ordinariedade”, mas de “especialidade”, daquilo

que é especial, do “ela” em relação ao “eu”.

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Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 231

Em que consiste essa “especialidade” se dá no enunciado que se

sequencia: “Hoje tomei coragem, cheguei mais perto e disse”. Esse

enunciado é composto de três frases que se organizam por

coordenação. Como a frase é um predicado, na conexão dessa

coordenação é possível entrever como o “ela” passa a tomar outro

lugar na realidade discursiva. “Hoje tomei coragem” atribui

propriedades de modo a fazer compreender, dentre outras

possibilidades, de que “ela” constitui uma dificuldade que exige um

enfrentamento por parte do “eu”. Tomando coragem, ele enfrenta a

situação e chega mais perto, predicando uma diminuição da distância

que o “lá” da primeira frase do texto poderia permitir pressupor.

Desta feita, a coordenação de “e disse” se torna o clímax da

narrativa confessional do eu lírico, uma vez que (trans)forma21 o

“ela”, a não-pessoa do discurso, em “tu”, a pessoa a quem o “eu” se

dirige, apesar de toda a dificuldade, para se constituir, desvendando a

“especialidade” que esse “tu” representa para o “eu”. Nesse (des)velar,

a frase “Oi, vamos brincar?” (con)figura-se como um convite. Esse

convite é marcado por uma equivocidade que o “tu”, em certo sentido,

explicita em sua interrogação: “Brincar de quê?” O auge da inocência

do “eu-tu” em relação ao intentado do eu lírico. A essa questão, o

leitor, em lugar de interlocutor do texto, poderia propor diversas

respostas, como “brincar de amor, brincar de médico, brincar de

escolinha”, ou seja, brincar em seus diferentes sentidos; com mais ou

com menos malícia.

Essa equivocidade, por conseguinte, permite ler o texto de

diferentes modos e, assim se dando, alçá-lo a discursos diferentes: no

discurso infantil, um convite para brincar; no discurso erótico, um

convite para “transar”; no discurso amoroso, um convite para namorar

ou um convite para curtir um momento a dois, para “ficar” etc. Dessa

forma, o interlocutor está imbuído de uma co-responsabilidade na

interpretação em sua leitura do texto e essa interpretação é direcionada

pelas relações associativas que a experiência de linguagem do

interlocutor mo(vi)menta. Por isso, é possível deduzir a importância

de tais relações no alçamento das entidades em unidades linguísticas.

O texto, por sua vez, sintetiza o que poderia ser a expressão de uma

primeira experiência amorosa e, por isso, seleciona, no eixo

paradigmático, a emoção titubeante da hora da primeira aproximação.

A frase “Por timidez fiquei mudo” poderia, nesse mo(vi)mento, ser

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BENVENISTE

232 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

lida como significando “receio de ser preterido ou rejeitado” pelo

indivíduo “feminino”, objeto de desejo do eu lírico, ou como

significando certo “pudor para dizer o que se intenta”. A conexão da

frase ulterior “Eu queria apenas brincar de dar as mãos pra ela”

(de)limita os sentidos possíveis e pode prolongar o caráter ingênuo da

emoção que pode referenciar, a despeito de outras interpretações mais

maliciosas que a ausência da última frase poderia manter em operação

de acirramento.

Nesse sentido, a última frase do texto é fundamental para

(de)limitar certa emoção que pode referenciar e, também, para intentar

produzir um efeito de fechamento para o texto em certa direção de

sentido: aquela da inocência pueril ante o primeiro amor. No entanto,

é necessário considerar ainda que há sentidos metafóricos, inclusive

para o sintagma “brincar de dar as mãos pra ela”, o que, na condição

de discurso, abre o sentido na assunção da frase a unidade de discurso.

A conexão das frases em (1), por conseguinte, mantém a

direcionalidade do(s) sentido(s) em certa equivocidade, enquanto (2)

funciona como estofo para essa equivocidade, constituindo-se como

“amarra” para um certo intentado de significação. Por isso, é possível

dizer que o miniconto constitui-se como texto, produzindo, ao menos

para uma parte dos falantes de Língua Portuguesa, o efeito de unidade

de sentido, com consistência significativa, o que lhe imputa o efeito de

que apresenta começo, meio e fim e, por isso, pode ser considerado

um texto.

Na condição de discurso, por sua vez, o texto poderia referenciar

emoções diversas e bem diferentes, tanto em relação ao eu lírico

quanto em relação ao “ela”, ao “amor”, ao “desejo” dentre outros. O

eu lírico pode, então, ser significado como romântico por uns leitores,

assim como pode ser significado como otário por outros por ter

perdido a oportunidade de uma investida amorosa. Nesse sentido, a

frase é evanescente, inclusive, porque pode significar diferentemente

para um “mesmo” leitor em diferentes situações de discurso.

Conclusão

Com o presente artigo, intentamos demonstrar o porquê de a frase

ser compreendida como unidade de discurso por Émile Benveniste,

sendo, por isso, marcada pelo aspecto evanescente da enunciação na

qual (con)figura-se. Nas teorizações de Émile Benveniste, a frase

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Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 233

também pode ser compreendida como tipo de enunciado e, assim,

teríamos, por exemplo, frase nominal e frase relativa. O conceito de

frase em relação à linguagem em funcionamento no discurso ganha

contornos específicos e significativos, constituindo-se como unidade

de discurso. Assim, a frase torna-se um tipo de enunciado, cuja

premissa básica é poder significar uma ideia. Para tanto, a frase não se

restringe ao somatório de suas partes; a sua significação é de outra

ordem; embora dependa de suas partes, ela as transpõe.

Nesse jogo, a conexão que se estabelece entre as frases pode ou

não constituir-se como texto e assumir a condição de discurso. É

possível, por conseguinte, conceber que texto, em sua função

predicativa, é um modo de as frases, por conexão, tornarem-se aptas a

(re)produzir sentido(s) de modo organizado e com consistência

significativa. Ou seja, texto é um modo de ordenar frases, a fim de

intentar conter o(s) sentido(s) que ali pode(m) ser (re)produzido(s) na

relação com o interlocutor e sua experiência de linguagem. Assim

sendo, a leitura do texto projeta uma interpretação que o alça a

discurso; é nesse mo(vi)mento que o texto (re)produz sentido(s) na

relação com o leitor e sua experiência de linguagem. Por isso, em

Benveniste (1966 [1958] p.258), discurso é a linguagem posta em

ação e, necessariamente, entre parceiros.

“Eu” e “tu” constituem-se, portanto, como lugares na língua para

que os falantes possam endereçar-se a outro humano e, assim,

estabelecer uma relação de interlocução na qual colocam-se como

parceiros. Parceiros no sentido de que, enquanto pessoa, associam-se

no exercício da linguagem posta em ação. Ou seja, no sentido latino

do termo, partiarius, aquele que tem parte nesse exercício, aquele que

joga o jogo da linguagem e que, ao jogar esse jogo, emerge como

sujeito. Por esse jogo ser relacional, a frase, em Benveniste, é uma

unidade evanescente; ela é a relação única e discreta da enunciação.

Por isso, irrepetível. O retorno a ela é sempre (re)construção de

enunciação; é sempre mo(vi)mento singular. Eis a beleza suprema da

linguagem humana!

Referências bibliográficas

BENVENISTE, E. (2002 [1966]). Problèmes de linguistique générale.

Saint-Amand: Éditions Gallimard, v.1.

_____. (2002 [1974]). Problèmes de linguistique générale. Saint-

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A FRASE COMO UNIDADE DE DISCURSO. (N)AS TEORIZAÇÕES DE ÉMILE

BENVENISTE

234 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

Amand: Éditions Gallimard, v. 2.

BRIGADEIRO, L. (2008). Hora do recreio. Disponível em:

<http://goo.gl/gQGEuQ> Acesso em: 24 mar. 2015.

JEUGE-MAYNART, I. (2012). Larousse: dictionnaires de français.

Paris: Éditions Larousse. Disponível em:

<http://www.larousse.fr/dictionnaires/francais> Acesso em: 24 mar.

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Livraria Garnier.

SAUSSURE, F. (1964). Cours de linguistique générale. Paris: Payot.

_____. (1989). Cours de linguistique générale. Édition critique par

Rudolf Engler. Wiesbaden: Harrassowitz.

Palavras-Chaves: Émile Benveniste, Semântica, frase.

Keywords: Émile Benveniste, Semantics, sentence.

Notas

* Pós-graduanda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da

Universidade Federal de Uberlândia. 1 Essa tradução e todas as seguintes são nossas. “É o ponto de vista que cria o objeto”. 2 “O que é novo aqui, primeiramente, é o critério de que releva esse tipo de enunciado.

Podemos segmentar a frase, não podemos empregá-la para integrar. Não há função

proposicional que uma proposição possa preencher. Uma frase não pode, então, servir

de integrante de outro tipo de unidade. Isso tem relação, sobretudo, ao caráter

distintivo entre todos, inerente à frase, de ser um predicado.” 3 INTÉGRER. In: JEUGE-MAYNART, 2012, não paginado: “colocar algo em um

conjunto de tal modo que lhe parece pertencer, que esteja em harmonia com os outros

elementos”. 4 Cf. BENVENISTE, 1966, p.125. 5 FONCTION. In: JEUGE-MAYNART, 2012, não paginado: “papel desempenhado

por um elemento em um conjunto”. 6 Cf. BENVENISTE, 1966, p.128. 7 “Do mesmo modo, a presença de um ‘sujeito’ junto de um predicado não é

indispensável: o termo predicativo da proposição basta por si mesmo, já que ele é, na

verdade, o terminante do ‘sujeito’. A ‘sintaxe’ da proposição é apenas o código

gramatical que organiza o seu arranjo. As variedades de entonação não têm valor

universal e permanece como apreciação subjetiva”. 8 Cf. BENVENISTE, 1966, p.128. 9 “Assim, se tomamos o lado material, a sequência de sons, ela apenas será linguística

se for considerada como suporte material da ideia; mas, tomado nele mesmo, o lado

material, é uma matéria que não é linguística, matéria que pode somente concernir ao

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Cármen Augustini e Flávia Santos da Silva

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 235

estudo da fala, se o envelope da palavra nos apresenta uma matéria que não é

linguística. Uma língua desconhecida não é linguística para nós. Sobre esse ponto de

vista, podemos dizer que a palavra material é uma abstração do ponto de vista

linguístico. Como objeto concreto, não faz parte da Linguística”. 10 Cf. BENVENISTE, 1966, p.130. 11 “A frase é uma unidade no que ela é um segmento de discurso, e não no que ela

poderia ser distintiva com relação a outras unidades de mesmo nível, o que ela não é,

como vimos. Mas é uma unidade completa, que porta, ao mesmo tempo, sentido e

referência”. 12 Cf. BENVENISTE, 1966, p.128. Enunciado na acepção de que algo foi emitido,

declarado ou expresso; relativo ao particípio passado do verbo enunciar. Assim,

enuncia-se algo de algo ou de alguém. 13 Não há a necessidade de que esse diálogo se dê materialmente falando; ele pode se

dar virtualmente. Um exemplo deste seria um homem lendo o texto de outro homem. 14 Se isolamos uma frase do conjunto que a (com)porta, ela perde sua condição de

frase e assume a condição de mera proposição. Ademais, a frase não pode exercer

uma função proposicional. 15 “A frase nominal”. 16 “Um enunciado assertivo finito possui, ao menos, dois caracteres formais

independentes: 1) ele é produzido entre duas pausas; 2) ele tem uma entonação

específica” 17 “Uma asserção finita, do fato mesmo que ela é asserção, implica referência do

enunciado a uma ordem diferente, que é a ordem da realidade. À relação gramatical

que une os membros do enunciado acresce-se implicitamente um “isso é!” que liga o

agenciamento linguístico ao sistema da realidade”. 18 BENVENISTE, 1964, p.131: “nada está na língua que não estivesse anteriormente

no discurso”. 19 Em Benveniste (1974 [1968] p.97), a língua é o instrumento da comunicação,

porque é ela que torna a comunicação possível, ou seja, passível de acontecer; ela é o

fundamento da comunicação, compreendida como uma troca (de sentido), porque ela

está investida de propriedades semânticas e porque ela funciona como uma máquina

de produzir sentido. Essa troca não se dá de forma simétrica ou igual; ao contrário, ao

passar pelo crivo do interlocutor, esse não o faz passivamente, ele recebe algo, dado o

semantismo social, mas não de modo homogêneo ou total. Há, portanto, um

desencaixe constitutivo. 20 Benveniste (1966 [1963], p.25) propõe o conceito de realidade imaginária para

lidar com a re-produção do real por meio da linguagem em ação (discurso, portanto).

Assim, podemos dizer que a realidade social seja algo que se atinge a partir do

cruzamento das realidades imaginárias. Ou seja, a realidade social seria aquilo que é

socializado, no sentido de (com)partilhável, na intersecção das realidades imaginárias. 21 Essa (trans)formação significa um deslocar-se do lugar de ele, objeto de discurso,

para o lugar de tu, interlocutor e, por conseguinte, participante da relação discursiva.

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 237

RESENHA

WEIL, Henri. Da ordem das palavras nas línguas antigas

comparadas às línguas modernas: questão de gramática geral.

Campinas: Ed. da Unicamp, 2015. 128 pp.

Henri Weil, filólogo alemão radicado na França, defendeu, em

meados do século XIX, uma tese com importantes ideias sobre a

colocação das palavras na sentença, motivada por fatores relativos à

enunciação. À época, a Linguística ainda não havia se definido

propriamente como ciência, mas eminentes estudiosos já formulavam

postulados que influenciaram, de alguma forma, linguistas do século

XX. Referimo-nos a Georges Perrot e a Michel Bréal, autor de Ensaio

de Semântica1. Juntamente com tais nomes, Weil fundou, em 1867, a

Association pour l’encouragement des études grecques en France.

Sua tese deu origem à obra Da ordem das palavras nas línguas

antigas comparadas às línguas modernas: questão de gramática

geral, cuja terceira edição2, de 1879, serve de referência para esta

resenha.

Produzida no esteio dos estudos histórico-comparatistas, a obra em

questão defende o princípio de que a ordem das palavras segue a

ordem das ideias, de sorte que a fala configure a imagem fiel do

pensamento. A fim de validar sua hipótese, o autor analisa dados de

diferentes línguas — clássicas e modernas, sintéticas e analíticas,

como latim, grego, chinês e francês. Em princípio, poder-se-ia

suspeitar de que Henri Weil adotasse uma concepção mentalista de

língua, a julgar pela referência recorrente que ele faz ao princípio de a

disposição das palavras estar de acordo com o pensamento; todavia,

nota-se que este termo não é empregado, exatamente, com a acepção

utilizada por teorias mais recentes, de orientação gerativista e

cognitivista, a que interessa de perto o funcionamento da mente em si,

até mesmo o mecanismo biopsíquico que lhe dá origem. Depreende-se

do texto de Weil que o sentido de pensamento por ele referido é

alusivo ao que poderíamos denominar perspectiva de enunciação, ou

seja, aquilo que o locutor pretende enunciar. Soma-se a isso o fato de

que o filólogo, inspirado na tradição retórica greco-latina, tece

considerações sobre aspectos vinculados à estilística, ainda que não

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RESENHA

238 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

faça menção a tal disciplina, os quais produzem efeitos singulares no

ato da interlocução. Dessa forma, parece razoável considerar que, para

o autor, o fenômeno da colocação é diretamente influenciado por

fatores semânticos, abertos ao discurso e à enunciação.

Na introdução do livro, há menção à possibilidade de a ordem das

palavras obedecer a efeitos de eufonia, aqueles que “somente a orelha

pode julgar”. A esse respeito, sabe-se que a prosódia de fato pode

influenciar a disposição das palavras, o que é atestado por pesquisas

que analisam, por exemplo, a colocação dos pronomes oblíquos

átonos. As chamadas palavras atrativas não são nada mais do que

monossílabos ou dissílabos que, justamente por serem de curto

tamanho, fazem com que os pronomes se agreguem mais facilmente a

elas. Para Weil, porém, a eufonia tem importância secundária, posição

que ele assume com base em dois argumentos: 1) o desconhecimento

da real pronúncia das línguas clássicas, mormente grego e latim, cujos

dados são valorizados de forma especial por ele; 2) a relatividade da

eufonia, que varia de acordo com os povos e com as línguas.

Ainda na introdução da obra, ele comenta a seguinte passagem, que

Cícero, no capítulo 54 de Orator, analisa: “Oh, Marco Druso, apelo ao

pai: você costumava dizer ser sagrada a república; que todos os que a

dessacralizaram pagaram a penalidade. O dito do sábio, a temeridade

do filho comprovou”3. O que chama a atenção aqui é esta última frase,

em que há um deslocamento do objeto direto para o início da frase.

Weil afirma que, estando o verbo no fim, “a frase se arredonda, e os

termos opostos sapiens [sábio] e temeritas [temeridade] se chocam”.

Em seguida, considera que a eufonia atribuída a tal colocação

esconde, na verdade, um “julgamento de espírito”.

No início do capítulo 1, Henri Weil, partindo da concepção

tradicional que orienta os fundamentos da oração, expõe as limitações

em torno da forma como a proposição é definida, no sentido de ser “a

expressão de um julgamento”. Numa conotação geral, ele afirma que

as frases são construídas com base em julgamentos, de modo a sugerir

o aspecto subjetivo que subjaz o acontecimento enunciativo. Contudo,

em relação à dicotomia sujeito/predicado, termos que são tidos,

respectivamente, como determinado e determinante, a definição não se

aplica. Isso significa que não é apropriado entender sujeito como “ser

objeto de um julgamento pelo atributo” ou, ainda como encontramos

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Igor Caixeta Trindade Guimarães

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 239

em gramáticas recentes, “ser sobre o qual se faz uma declaração”, “ser

sobre o qual se diz algo”. A crítica de Weil advém desta frase:

(1) A intemperança perdeu este jovem.

O filólogo comenta que é mais natural entender que tenha sido feito

um julgamento sobre “este jovem”, que não é o sujeito da proposição.

Em seguida, apresenta um conceito de sujeito que lhe parece melhor:

“ser do qual a ação emana”. Curiosamente, é, em essência, o mesmo

conceito que encontramos em Mattoso Câmara (2013, p.70), na obra

Estrutura da língua portuguesa: “ser de que parte o processo verbal”.

Voltaremos a discutir a questão do sujeito mais adiante, mas o que se

destaca, por ora, é a mudança de concepção que o conceito de Weil

produz: se sujeito é o ser do qual a ação emana, não deve ser

entendido como termo determinado, mas como termo determinante.

Ainda em relação ao primeiro capítulo, gostaríamos de dar atenção

a dois pontos relevantes. O primeiro deles é pertinente a uma

aproximação com o campo de estudos da enunciação, em especial a

semântica do acontecimento e a sintaxe de bases enunciativas. Weil

afirma (p.28-29) que o homem, a princípio, dirige “sua atenção às

mudanças, aos movimentos, às ações” e que o protótipo da

proposição, em geral, diz respeito à ação sensível, na qual se

concentram também nossos pensamentos. Mesmo que não

enunciemos ações, utilizamos o mesmo modelo de proposições de

ação. Weil argumenta, assim, que dizemos o leão tem uma presa da

mesma forma que o leão dilacera sua presa. Ele analisa, ainda, duas

outras frases: A esperança supõe o desejo e A posse procura um gozo

real. Considera que, a despeito de esperança e gozo não serem

pensados como praticantes de ações, nossos pensamentos, por essa

configuração, se revestem de uma forma essencialmente dramática.

Na página 35, o autor postula que a sintaxe “é a imagem de um fato

sensível” e, por se referir às coisas, ao exterior, a “sucessão das

palavras se refere ao sujeito que fala, ao espírito do homem”. Além

disso, destaca que, na fala, “o que há de mais essencial é o momento,

o momento da concepção e da enunciação: é nesse momento que se

encontra toda a vida da fala; antes desse momento ela não existia;

depois, ela está morta”, dando destaque ao indivíduo que fala,

responsável pela condução dos signos. Trata-se de uma reflexão muito

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RESENHA

240 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

bem conduzida, especialmente por vislumbrar a relação entre

acontecimento e sintaxe, articulada pelo sujeito falante. Faríamos

apenas uma ressalva sobre a afirmação de que, depois da enunciação,

a fala está morta. Se levarmos em conta o fato de que os

acontecimentos enunciativos temporalizam, de acordo com

Guimarães, uma enunciação, ao se constituir como tal, promove novas

possibilidades de significação, isto é, não está morta depois de ter se

constituído. “O acontecimento tem como seu um depois

incontornável, e próprio do dizer. Todo acontecimento de linguagem

significa porque projeta em si mesmo um futuro”. (GUIMARÃES,

2002, p.12).

O outro ponto a que queremos chamar atenção é uma observação

sobre a tese defendida por Weil. Ao longo do texto, ele argumenta em

favor do princípio de acordo entre a marcha das ideias e a marcha

sintática, mas alerta que tal princípio não é categórico, uma vez que “a

forma não tem nada de obrigatório” (p.30) e diferentes construções

sintáticas podem expressar o mesmo pensamento. A respeito do

fenômeno em questão, ou seja, a ordem das palavras, julgamos

importante fazer uma comparação entre o que foi postulado por Weil,

no século XIX, e o que tem sido proposto na contemporaneidade dos

estudos linguísticos.

Pesquisas atuais que se interessam pela ordem das palavras e dos

constituintes oracionais lançam muitas dúvidas sobre esse fenômeno.

A teoria da cartografia sintática, desenvolvida por Rizzi (1997), no

quadro da gramática gerativa, utiliza princípios pragmático-

discursivos na formulação de categorias funcionais que são

responsáveis pelo deslocamento de um termo. Nessa perspectiva, a

topicalização, entendida como um recurso sintático de movimento de

um constituinte para a primeira posição da oração, é explicada por

efeitos relacionados a tematização e a focalização, que exercem força

ilocucionária. Nota-se que as línguas têm diferentes tendências na

fixação da ordem de constituintes, o que faz com sejam agrupadas em

tipologias distintas (como línguas V1, V2), de acordo com a posição

do verbo. Pinto (2011), baseado em Kayne (1994), afirma que as

línguas têm uma ordem básica subjacente comum, e o que explica as

eventuais alterações dessa ordem é o movimento de um constituinte

para a esquerda, o qual passa a ser hospedado à esquerda de outro

elemento. Não se trata, porém, de uma explicação esclarecedora, mas

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Igor Caixeta Trindade Guimarães

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 241

de uma descrição de categorias, em termos de traços mais

fortes/fracos, motivadores do movimento. O autor comenta não serem

claras “as razões pelas quais um determinado traço é forte ou fraco.

As coisas simplesmente são assim. ‘É forte porque se move. É fraco

porque não se move’”. (PINTO, 2011, p.4). A respeito da posição do

advérbio em relação ao verbo, por exemplo, sabe-se que em inglês é

preferível que ele figure antes do verbo, como em He carefully

explained the lesson, ao passo que, em francês, ocorre

preferencialmente após o verbo, como em Il a expliqué soigneusement

la leçon. A ordem é, pois, “explicada” em razão do movimento de

categorias formais. Além dessa variedade de tendências de ordenação,

as línguas podem sofrer mudanças de parâmetros relacionados à

ordem; em vista disso, é inevitável destacar a complexidade do

assunto. De toda forma, há um reconhecimento, mesmo entre teorias

linguísticas mais díspares, de que a ordem das palavras na frase se

prende, em peso, a fatores relativos à enunciação, e, nesse sentido, a

tese de Henri Weil, passados mais de 150 anos, permanece atual,

feitas as devidas ressalvas.

Pezzati ocupou-se em estudar aspectos da ordem do português,

com base em uma teoria funcionalista. Ao discutir o tema, considera

que a linearidade da sentença “é um meio muito primitivo, por isso

tende a refletir a ordem normal e natural dos fenômenos que ocorrem

na realidade extralinguística” (PEZZATI, 1993, p.160). Acrescenta,

fazendo alusão à natureza psicológica do falante, que os atores

preexistem às ações, e estas, por sua vez, depois de realizadas é que

atingem um objeto ou dão origem a outros. Ademais, trata da oposição

dado X novo, alegando que primeiro se coloca o que é de

conhecimento do ouvinte e, em seguida, o que é novo para ele. Uma

sentença ilustrativa desse ponto de vista, apresentada pela autora, é

João morreu, cuja ordem é motivada pela perspectiva do falante, no

sentido de que ele escolheu indicar um processo ocorrido com João,

daí este SN assumir a posição de tópico e a função de sujeito.

Destaca-se no estudo de Pezzati uma crítica às propostas

tradicionais de classificação do português quanto ao quesito ordem.

Ela afirma que é equivocado classificar o português como sendo uma

língua SVO em razão do fato de que, a depender do tipo de verbo em

torno do qual se constrói uma oração, como os intransitivos não

existenciais, a ordem normal é a VS (Saíram as notas). Um outro

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RESENHA

242 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

ponto do trabalho de Pezzati que chama atenção, de forma especial, é

a afinidade com o princípio defendido por Weil — o de que a marcha

sintática segue a marcha das ideias. A autora cita passagem da

gramática de Jerônimo Soares Barbosa, contemporâneo de Wiel, na

qual se lê que a ordem natural das sentenças está de acordo com a

ordem “com que nosso espírito concebe as coisas” (BARBOSA, 1830,

apud PEZZATI, 1993, p.163).

Encontra-se, em Mattoso Câmara, um breve estudo de sintaxe de

colocação, vinculada à estilística. Kehdi4 (2004) pondera que, para o

eminente linguista, há um princípio que consiste em atribuir ao último

termo do enunciado o máximo valor informativo, o que possivelmente

poderia explicar a colocação normal do sujeito, antes do verbo, em

consonância com a proposta de Pezzati; explicaria, também, a

tendência do adjetivo de ocupar uma posição posterior ao substantivo,

uma vez que este tem informações acrescentadas por aquele. Não

obstante haver um fundo de verdade no referido princípio,

especialmente se se levam em conta os efeitos de uma escala

argumentativa, tão bem explorados por Oswald Ducrot5, no caso

particular da colocação do adjetivo em relação substantivo, há uma

grande imprecisão quanto aos fatores que motivam a anteposição ou a

posposição, o que Mattoso também problematiza. Certos adjetivos

podem ocorrer em ambas as posições, como excelente (excelente

pessoa/pessoa excelente), sem mudança de sentido; outros também

podem ocorrer pospostos ou antepostos, como grande (grande

homem/homem grande), mas com mudança de sentido; há aqueles que

só podem ser antepostos, como mero (mero político), e, por fim, os

que apenas aparecem pospostos, como os gentílicos (homem francês).

O mesmo não acontece necessariamente em outras línguas; em inglês,

há uma posição fixa para o adjetivo, que vem sempre anteposto ao

nome.

Ainda com relação à sintaxe em Mattoso Câmara, encontramos um

ensaio sobre colocação, na obra Dispersos, organizada por Uchôa

(2004), em que ele analisa um fato de colocação no soneto A

cavalgada, de Raimundo Correia, cujo verso inicial — A lua banha a

solitária estrada... — é também o verso final, apenas com uma

diferença de colocação: A lua a solitária estrada banha. Mattoso,

inicialmente, tece considerações a respeito do fluxo informacional,

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Igor Caixeta Trindade Guimarães

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 243

com vistas à distinção entre informação nova e informação feita, como

exemplifica o seguinte esquema:

1. “eu saio às três horas” (a que horas?),

2. “às três horas eu saio” (que faço?),

3. “às três horas saio eu” (sai quem?).

(MATTOSO CÂMARA, 2004, p.188)

Na sequência da análise, Mattoso interpreta o soneto, que descreve,

ao longo das estrofes, a informação nova (o ambiente da “estrada”,

cena poética de referência); feita a descrição, tal informação passa a

ser dada, e é exatamente isso que pode motivar a colocação de

“estrada” antes do verbo.

Tal ponto de vista sobre a colocação encontra-se descrito no

capítulo 1 da tese de Henri Weil. Ao mencionar trecho de uma das

cartas de Cícero a Ático, Weil promove uma reflexão sobre a

colocação do sujeito em uma das últimas posições da oração: No

primeiro dia de junho, indo eu a Âncio, feliz por me afastar dos

gladiadores de M. Metelo, teu escravo veio ao meu encontro. Fosse

outra a ordem da frase, com o sujeito teu escravo no início, seria

alterada a intenção comunicativa do texto de Cícero. O adjunto

temporal, colocado na dita ordem natural (após o verbo), poderia

apropriadamente responder à pergunta Quando você encontrou meu

mensageiro? Nessa situação, o encontro do mensageiro teria sido o

ponto de partida, o fato conhecido; e as circunstâncias de tempo etc.,

o objetivo do discurso. A disposição original desse período de Cícero,

diferentemente, apresenta como objetivo do discurso o fato descrito, e

não a circunstância temporal.

Outro exemplo apresentado por Weil é uma frase de Voltaire: Ele

se matou para se livrar de um embaraço [Il se tua pour se tirer

d’embarras]. Essa disposição está de acordo com os diferentes

motivos que podem determinar o suicídio:

Um se matou porque não podia suportar a miséria; outro, porque

estava desgostoso de sua felicidade; e outro, enfim, para se livrar de

um embaraço. O suicídio era, então, a coisa conhecida, o autor

acrescenta a ele o motivo. Mas se ele tivesse querido nos dar a

conhecer o estranho expediente imaginado por esse jovem para

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RESENHA

244 Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015

escapar de um embaraço, teria dito: Para escapar de um embaraço,

ele se matou. (p.38)

Mas é possível que a enunciação não tenha, a priori, um objeto de

discurso de conhecimento do interlocutor, observa o filólogo. Nesse

caso, é comum começar-se pelo que é mais elementar: Havia um rei,

Há a cidade de Éfira, Éfira é uma cidade. Na literatura atual, verbos

como ter e haver são rotulados como verbos de apresentação de

existência, função que talvez explique o fato de o dado novo do

discurso, o referente apresentado, tender a ocupar a posição pós-verbal

(havia um rei, e não um rei havia).

Os apontamentos a respeito da tendência de, na sintaxe, se

apresentar por último o que é novo, tão bem explicados por Henri

Weil, estão de acordo com as teorias que desenvolvem a oposição

dado X novo, conforme já adiantado anteriormente, e com o estudo

funcionalista da estrutura argumental preferida6, segundo o qual os

referentes introduzidos no discurso tendem a exercer a função de

complemento verbal. Em acréscimo, evocamos também a contribuição

de Dias (2009), a propósito da sintaxe de bases enunciativas. No texto

Enunciação e regularidade sintática, o autor pondera que o lugar

sintático de sujeito se caracteriza por uma sustentação temática, ao

passo que o lugar de objeto é pertinente à construção temática. A fim

de ilustrar tal formulação, Dias (p. 27) apresenta uma sentença em que

estão ocultos, no segundo período, o sujeito e o objeto:

(1) Pedro plantou sementes de milho. Adubou, semeou,

irrigou, colheu e vendeu.

Embora os referentes não estejam materializados na sentença, a

interpretação dela é mobilizada por uma virtualidade de implícitos que

se articulam de formas diferentes. Na primeira oração, temos sujeito e

objeto explícitos. É interessante notar que o sujeito de adubou,

semeou, irrigou, colheu e vendeu é sempre o mesmo, ao ser

recuperado anaforicamente. O mesmo não se dá em relação aos

objetos de tais verbos, que devem ser construídos virtualmente:

adubou [o solo], semeou [os grãos], irrigou [as plantas], colheu [os

frutos], vendeu [o produto]. Se diferentes fossem os sujeitos, deveriam

ser declarados:

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 245

(2) Pedro plantou sementes de milho. Carlos adubou, Maria

semeou, João irrigou, Marina colheu e Fernando vendeu.

Preencher as lacunas dos objetos significa, segundo Dias, participar

de sua construção sob a força dos limites do domínio de referência.

Feitas algumas considerações sobre a ordem envolvendo os lugares

sintáticos de sujeito e objeto, nota-se uma conformidade entre a ordem

“normal” do português (sujeito antes do objeto) e o princípio da

apresentação/conhecimento dos referentes. Mas, problematizando um

pouco esse tema, como entender as possibilidades de ruptura das

posições sintáticas canônicas? Recorramos mais uma vez a Dias, que

traz esclarecimentos sobre a questão, a partir dos conceitos

anterioridade de predicação, anterioridade de orientação,

anterioridade actorial e anterioridade processual.

Mais anteriormente, afirmamos, em consonância com Weil, que o

sujeito é um lugar sintático determinante, e não determinado, hipótese

que explica a anterioridade de predicação. A anterioridade de

predicação significa a perspectiva na qual se constitui a predicação

verbal, o que permite mostrar um contraste com o lugar de objeto

(determinado). Segundo Dias, sujeito é o grupo-nominal que aciona o

verbo, arrebatando-o de sua condição de infinitivo. “A instalação de

uma sentença, e por conseguinte de uma unidade mínima de sentença,

é devida ao GN-sujeito” (DIAS, 2009, p.19). Por esse viés, infere-se

que o lugar de sujeito é primordial do ponto de vista do verbo, o que

não significa que deva ocorrer, necessariamente, na primeira posição

da sentença. Nesse sentido, é importante tratar da anterioridade de

orientação, que, de acordo com Dias, diz respeito a um objetivo

enunciativo. A orientação do ato enunciativo estabelece uma ordem de

pertinência na apresentação dos referentes, daí o conceito de tópico,

que representa um ponto de partida da comunicação. Exemplo: A

Maria, eu a vi ontem na feira. A anterioridade processual, por sua

vez, é concebida de forma mais obscura, relacionada ao modo como a

cognição processa a informação, o que talvez não se dê de forma

linear, como na sintaxe, em que necessariamente um termo precisa vir

antes de outro — retomemos brevemente a proposta de Pezzati, para

quem a “linearidade da sentença é um meio muito primitivo”. Nesse

ponto, parece que, quando Henri Weil trata da marcha do pensamento,

sugere aproximar-se muito mais do que se entende por anterioridade

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RESENHA

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de orientação do que da anterioridade processual. Apurar o

processamento cognitivo é algo mais complexo, que depende de

outros aparatos.

A anterioridade actorial, por fim, associa-se aos papéis dos

participantes do evento, como agente e paciente. Geralmente, um dos

participantes pratica a ação e outro a recebe; portanto, um deles é

anterior. No arranjo sintático, é possível que essa definição assuma

contornos metafóricos, como mostram estas duas frases citadas

páginas atrás: A esperança supõe o desejo e A posse procura um gozo

real.

Feitas as devidas distinções, que nos auxiliam a compreender

melhor a complexidade sintática, voltemos à obra que nos interessa.

Após discutir, no capítulo 1, o princípio geral que defende, Weil passa

a analisar, no capítulo 2, a ordem das palavras segundo a forma

sintática das proposições, comparando línguas diversas. Por meio

dessa proposta, distingue duas tipologias de línguas, com base no

critério da liberdade de ordenação. Latim e grego, que têm caso

morfológico, são tipificados como línguas de construção livre, ao

passo que as línguas românicas atuais, que não têm marcação de caso,

são de construção fixa — tal tipificação, porém, assume graus de

relatividade, o que o próprio autor reconhece; em relação ao turco, por

exemplo, as construções do francês são mais livres, dado que, naquela,

os determinantes do nome só podem assumir posição pré-nominal.

Outra distinção a que o filólogo dedica algumas páginas é a seguinte:

construções descendentes (o termo regente precede o termo regido) e

construções ascendentes (o termo regido precede o termo regente).

Prosseguindo na comparação, o filólogo toma como foco a posição do

verbo (decisão também assumida por linguistas contemporâneos) para

elaborar algumas generalizações. Opta por extrair, das línguas de

posição livre, a razão para a preferência por uma ou outra ordem. Ele

explica que, em alemão, é a natureza da proposição (principal ou

subordinada) que decide o lugar do verbo. A partir da premissa de que

é a frase principal que enuncia o pensamento, o contraste entre uma e

outra posições tem a ver, para Weil, com esse caráter afirmativo/não

afirmativo da preposição, o que motivaria a colocação do verbo no

meio ou no final da sentença.

Em outra parte do capítulo, há uma análise da colocação do

adjetivo e do advérbio, com algumas intuições interessantes. Porém,

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Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 247

na medida em que o autor analisa diversas línguas e não adota uma

metodologia clara no tratamento dos dados, em razão mesmo das

limitações científicas da época, suas conclusões não se assentam em

evidências muito palpáveis. Em outros momentos, seu alto grau de

erudição também torna o texto não muito didático. Acrescente-se,

ademais, também devido a uma mentalidade pré-saussureana, o

julgamento qualitativo que Henri Weil faz das línguas: em várias

passagens, tende a considerar latim e grego línguas perfeitas, por

serem de posição livre e, dessa forma, se ajustarem mais facilmente ao

pensamento, ao contrário das línguas atuais. A despeito da

impropriedade desse julgamento de perfeição, a comparação das

línguas parece corroborar a tese do autor, em vista das evidências

referenciadas por Kato (1998):

podemos dizer que quanto mais variação de ordem uma língua

permitir, mais sensível ela será a explicações funcionalistas, isto

é, a ter sua ordem explicada em termos de funções semânticas

ou textuais-discursivas, e não em termos estritamente sintáticos.

Por outro lado, quanto menos opções posicionais para uma

mesma função gramatical a língua apresentar, menos

biunivocidade entre posições sintáticas e funções de ordem

semântica ou textual essa língua vai exibir. (KATO, 1998, p.13)

No terceiro e último capítulo da obra, Henri Weil traz para

discussão outro princípio determinante da ordenação das palavras: o

acento oratório. Nesta oportunidade, estipula que é preciso recorrer à

língua falada e viva, por ser insuficiente a escrita. Aparentemente,

seria de se supor que fosse tratar das línguas modernas, todavia ele se

deteve em peso na análise do grego e do latim, a partir de indícios que

supostamente evidenciariam como tais línguas se manifestavam na

oralidade quando vivas. Dado que, para o autor, a fala está a serviço

do pensamento, e não o contrário, a influência do acento oratório é

secundária no que concerne à marcha das ideias, porém ela se deve,

também, a aspectos estilísticos. A bem dizer, trata-se de princípios que

se complementam. Por exemplo, em francês, a acentuação ascendente

se encontra frequentemente em concordância com a construção

descendente, isto é, a informação nova introduzida pelos termos

complementares recebe, via de regra, maior intensidade de acento,

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RESENHA

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especialmente porque é uma língua em que a tonicidade recai sobre a

última sílaba. Weil apresenta regularidades relacionadas a tal

princípio; uma delas tem a ver com o tamanho dos complementos

ligados a uma mesma palavra:

De vários complementos que recaiam sobre a mesma palavra,

dê a forma mais concisa ao que segue a palavra completada e, à

medida que você avance, dê aos complementos uma expressão

mais desenvolvida e mais entendida. (p.100)

Exatamente para manter uma coerência com a hierarquia dos

princípios (respectivamente, marcha das ideias e acento oratório), a

recomendação de Weil é alternativa a uma regra geral, segundo a qual

os complementos devem ser dispostos em razão de seu tamanho, o que

supostamente poderia contrariar a ordem do pensamento.

Ao longo do capítulo, são descritos efeitos estilísticos da

acentuação, tais como o efeito de punição da apatia da plateia, por

meio de uma acentuação final áspera, e o efeito de expressividade, por

meio de uma acentuação descendente, obtida pela maior intensidade

da voz no início da proposição. A frase latina ROMANUS sum civis

[sou cidadão ROMANO], declarada por um personagem

desconhecido, é exemplo dessa expressividade, pois a palavra

romanus produz uma revelação que desperta atenção da plateia,

conforme sugere Weil. O começo e o fim de uma proposição são, para

ele, lugares de honra, mais propícios às palavras acentuadas. O acento

é entendido, dessa forma, como um recurso discursivo. Ou melhor, a

ordem, de modo geral, é concebida, ao longo da obra, por um feixe de

fatores cujos propósitos visam a efeitos discursivos.

Em vista de todas essas considerações que fizemos a respeito da

obra do filólogo alemão, avaliamos como muito relevantes as

contribuições que ela trouxe, e pode continuar trazendo, aos estudos

da enunciação e da sintaxe. Ainda que já se tenha passado muito

tempo desde a publicação dessa obra e que, depois disso, as pesquisas

em Linguística tenham se tornado mais consubstanciais, o fenômeno

da ordenação sintática ainda é pouco compreendido. A análise

perspicaz empreendida por Weil, em seus diversos aspectos, pode

despertar o interesse de pesquisadores que pretendem enveredar pelos

meandros do assunto.

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Igor Caixeta Trindade Guimarães

Línguas e Instrumentos Linguítiscos – Nº 35 – jan-jun 2015 249

Igor Caixeta Trindade Guimarães

Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em

Estudos Linguísticos da UFMG

Referências bibliográficas

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E. F. Dispersos de J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Lucerna, 3ª

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<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

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2015.

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Disponível em:

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PINTO, C. F. C. (2011). Ordem de palavras, movimento do verbo e

efeito V2 na história do espanhol (tese de doutorado). Campinas:

Unicamp.

Notas

1 Obra inaugural dos estudos semânticos. 2 Tradução inédita para o português, por Sheila Elias de Oliveira.

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3 Traduzida do latim: O Marce Druse, patrem apello: tu dicere solebas sacram esse

rem publicam; quicumque eam violavissent, ab omnibus esse ei poenas persolutas.

Patris dictum sapins temeritas filii comprobavit. 4 O autor comenta sobre a ordem dos termos da oração: Considerando-se que a ordem

dos vocábulos é justificada por diversos fatores, tais como a autonomia do sintagma, a

pausa, o ritmo, as razões de natureza lógico-semântica, etc. (e que, muitas vezes,

aparecem acoplados), parece-nos parcial o enfoque exclusivo da expressividade.

(p.114) 5 Ver DUCROT, O. Argumentação e “topoi” argumentativos. In: GUIMARÃES, E.

(Org.). História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989. pp.13-38. 6 Ver DUBOIS, J. W. Competing Motivations. In: HAIMAN, J. (ed.) Iconicity in

Syntax. Amsterdam/Philadelphia: J. Benjamins, 1985.