enunciação e discurso - hitler
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Análise dos dispositivos enunciativos da propaganda Hitler da Folha de São PauloTRANSCRIPT
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A construção do ethos e da manipulação em ‘Hitler’
Gabriel Antonio Mesquita de Araujo
Jaqueline de Fátima Masotti
Luiza Helena Spolador Silva
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Resumo: O presente trabalho possui como objetivo analisar os modos como são operacionalizados os
estudos em Teoria do Texto na peça publicitária “Hitler”, veiculada pelo periódico Folha de S. Paulo no
ano de 19871 (tendo sido produzida pela agência publicitária W Brasil) e em 20102 (quando foi
relançada pela agência África). Para tanto, houve uma preocupação em compreender as bases teóricas
da enunciação e do enunciado, descrevendo e analisando a propaganda dentro das teorias formuladas
por Bakhtin, além de ter como base do trabalho estudiosos como Maingueneau e Marcuschi. O trabalho
aponta tanto para a importância da construção do ethos, pathos e logos do jornal como para os
processos manipulativos do/no discurso publicitário.
Palavras-chave: análise do discurso, ethos, manipulação, publicidade, Hitler.
1. Introdução
Para a realização desse trabalho, se mostrou imprescindível a escolha de uma
peça publicitária que fosse profícua quando à análise, em um âmbito de estudo das
teorias discursivas. A propaganda “Hitler”, da famosa agência W Brasil, apresenta
interessantes pontos a serem explorados e dissecados, por fugir aos padrões muitas
vezes previsíveis que este gênero de texto impõe – e, exatamente por esta razão, foi
amplamente premiada tanto dentro do país quanto no exterior. Para a realização desta
investigação, dirigiu-se uma atenção especial ao cânone da linguística textual,
especialmente aos estudos de Bakhtin e Maingueneau sobre a área, procurando construir
uma base completa e efetiva para fundamentar teoricamente a análise. Procurou-se
apoio também nas obras de Marcuschi e Benveniste, além da contribuição de Chomsky.
Os conceitos firmados no discorrer do ponto 2 – ‘Abordagem Teórica’ foram retomados
1 OLIVETTO, W. Hitler [Peça publicitária-vídeo]. Produção de Washington Olivetto. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=bZaYeiptmd4 > Acesso em: 08 jun 2015.
2 ÁFRICA. Hitler [Peça publicitária-vídeo]. Produção da agência de publicidade África. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=pxtIpCyiBgc > Acesso em: 08 jun 2015.
2
nos desdobramentos subsequentes (ponto 3 – ‘Análise do corpus’), buscando, através de
rigor metodológico, estabelecer paralelos.
Tendo como objetivo um maior entendimento de como as teorias de texto e
discurso atuam em uma peça publicitária, estabeleceu-se como meta uma análise
comparativa entre o tripé ethos, pathos e logos em Aristóteles e sua ressonância nas
teorias contemporâneas de Análise do Discurso. Além disto, tanto os mecanismos de
manipulação, construídos a partir de uma complexa trama de sentidos, quanto as
ideologias, fortemente ligadas ao ethos discursivo, terão seus fundamentos alicerçados
de forma generalizante, sendo posteriormente aplicados especificamente ao comercial
em questão.
2. Abordagem teórica
A área da Linguística apresenta dois conceitos caros à Análise do Discurso, cuja
aplicação e compreensão são muitas vezes complexas, merecendo uma atenção especial
no desenvolvimento deste trabalho, a saber: a Enunciação e o Enunciado. A primeira, de
acordo com Émile Benveniste, é “colocar em funcionamento a língua por um ato
individual de utilização. [...] é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do
enunciado” (1995: 82), sendo, portanto o Enunciado seu produto.
Intrinsecamente ao Enunciado, dois outros elementos podem ser apreendidos
como parte integrante e propiciadora da comunicação humana, sendo estes o Discurso e
o Texto. A instância discursiva pode ser relacionada à noção sausseariana de
Significado, sendo aquela a responsável pela veiculação dos conceitos e conteúdos
expressos formalmente no texto – o Significante de Sausseare. Neste plano dialógico,
pode-se apreender a ideologia (fruto do Discurso) através de marcas linguísticas
textuais.
De maneira exemplificadora, pode-se construir um paralelo metafórico entre
estes elementos e os conceitos musicais mais básicos: a Enunciação seria como uma
pentagrama, dando suporte aos demais componentes da música; o Texto poderia ser
representado pela imagem das figuras musicais, sua corporeidade; o Discurso,
finalmente, seria o valor que as figuras musicais possuem, seus conteúdos.
3
O campo da Análise do Discurso sofrera influências de diferentes áreas do
conhecimento, sobretudo da Retórica. Dentro desta perspectiva, se tem o enunciado
submetido a um tripé elementar, inerente às instâncias do Eu (ego), Aqui (hic) e Agora
(nunc), elementos que norteavam o estudo dos textos orais e escritos. Distanciando-se
deste contexto teórico, com o advento da Pragmática, a Análise do Discurso ganha
novos contornos, abandonando a noção de enunciado como estrutura fechada,
impermeável a influxos contextuais. De maneira correlata, Marcuschi pondera:
“o que não se pode continuar fazendo é um trabalho isolado num só nível como se este fosse
(auto)suficiente. Assim, eu diria que dois aspectos devem ser evitados no trato da língua:
i. Recortes com características de autossuficiência
ii. Prescrições de produção com características estáticas.
Portanto, dizer que a análise da língua se limita à sintaxe é reduzir a língua a algo muito
delimitado, pois os aspectos textuais e discursivos, bem como as questões pragmáticas, sociais e
cognitivas são muito relevantes e daí não se poder evitar de considerar o funcionamento da
língua em textos realizados em gêneros.” (MARCUSCHI, 2008: 57-58)
Para Bahktin, teórico que serviu-se da Pragmática em seus estudos, não há, sob
qualquer circunstância, enunciado que esteja desvencilhado de uma relação entre
interlocutores, um Eu (locutor discursivo3), que se dirige a um Tu (destinatário
discursivo4), e que não esteja reduzido a uma conformidade espaço-temporal (topografia
e cronografia5). Diferentemente dos retóricos, a perspectiva bakhtiniana atem-se não ao
enunciado, mas sim ao que é intrínseco à enunciação e aos elementos que permitem a
sua realização e efetivação. Assim, torna-se importante as relações interacionais entre os
discursos e a esfera humana e social (cena enunciativa). Ainda sob as conjecturas
marcuschianas:
“A tendência é ver o texto no plano das formas linguísticas e de sua organização, ao passo que o
discurso seria o plano do funcionamento enunciativo, o plano da enunciação e efeitos de sentido
na sua circulação sociointerativa e discursiva envolvendo outros aspectos. Texto e discurso não
distinguem fala e escrita como querem alguns nem distinguem de maneira dicotômica duas
abordagens. São muito mais duas maneiras complementares de enfocar a produção linguística
em funcionamento.” (MARCUSCHI, 2008: 58)
3 Termo usado por Maingueneau, na obra Novas tendências em análise do discurso, a qual está referenciada na bibliografia.4 idem5 idem
4
Esta ótica de aspecto interacionista corrobora uma das noções centrais para este
campo de estudo: a construção dupla de sentido. Isto significa que o sentido não é
produzido unilateralmente pelo enunciador; pelo contrário, a recepção dada ao texto
pelo enunciatário também reveste o texto de outros sentidos, fazendo com que ambos
participem dialogicamente da construção do discurso. Segundo Maingueneau:
“o contexto não se encontra simplesmente ao redor de um enunciado que conteria um sentido
parcialmente indeterminado que o destinatário precisaria apenas especificar. Com efeito, todo ato
de enunciação é fundamentalmente assimétrico: a pessoa que interpreta o enunciado reconstrói
seu sentido a partir de indicações presentes no enunciado produzido, mas nada garante que o que
ela reconstrói coincida com as representações do enunciador. […] A própria ideia de um
enunciado que possua um sentido fixo fora de contexto torna-se insustentável.”
(MAINGUENEAU, 2001: 20)
Assim, vê-se que a construção do sentido se dá durante o processo enunciativo,
ou seja, dentro de um contexto dialógico. Todavia, a intenção comunicacional do
locutor discursivo não está garantida na recepção do destinatário discursivo. Portanto, o
produtor de textos se dirige a um público empírico6, formado por leitores-modelo que
possuem o conhecimento esperado (saber enciclopédico7) para a apreensão do sentido
total de seu discurso. De forma muito sucinta, Marcuschi afirma que:
“um dos aspectos centrais no processo interlocutivo é a relação dos indivíduos entre si e com a
situação discursiva. Estes aspectos vão exigir dos falantes e escritores que se preocupem em
articular conjuntamente seus textos ou então tenham em mente seus interlocutores quando
escrevem” (MARCUSCHI, 2008: 77)
Ainda sob esta premissa de que o discurso só existe dentro das relações
humanas, se verificará que cada esfera social exigirá que seus textos estejam submetidos
a determinados padrões comunicacionais. Isto quer dizer que cada situação de
comunicação requer rituais de linguagem específicos, havendo um contrato
preestabelecido entre os interlocutores pela doxa social. Este conjunto de padrões é mais
especificamente denominado Coerções Textuais, que terminam por promover um
agrupamento de textos com características semelhantes, os famosos Gêneros do
Discurso.
Ao adentrar o âmbito destes diversos gêneros, abre-se uma nova abordagem para
o estudo de seus elementos constitutivos, em especial para o papel do produtor destes 6 Termo usado por Maingueneau, na obra Análise de textos de comunicação, também referenciada na bibliografia.7 Idem.
5
discursos. Novamente os estudos da Retórica se mostram basilares e elucidativos quanto
a este papel, uma vez que a figura do orador é seu ponto central. Aristóteles, o maior
expoente dos estudos retóricos, analisa o orador e sistematiza três tipos de provas
(pisteis) artísticas criadas por este, a fim de que seu discurso seja capaz de persuadir e
gerar confiabilidade perante a audiência. A primeira diz respeito ao ethos do orador,
tendo em vista que se pode alcançar a persuasão pelo seu caráter, quando o discurso é
dito de tal forma que torne o orador digno de crédito. Assim este, por meio de uma
manipulação verbal, constrói uma persona condizente com seus intentos. Um segundo
tipo concerne às paixões (pathos) dos ouvintes, os sentimentos suscitados no público.
Se há, por exemplo, o risco de uma guerra iminente deve-se gerar na plateia os
sentimentos de força e patriotismo, com a meta de que a batalha seja vencida. O terceiro
tipo de prova refere-se ao valor demonstrativo do discurso (logos). Aristóteles pontua
que o discurso promove a persuasão quando a verdade e o verossímil são mostrados.
Para isso, utilizam-se os exemplos, seja um fato histórico ou fictício e os entimemas,
que são silogismos retóricos, uma forma de raciocínio em que, sendo fornecidas certas
proposições e premissas, delas deve resultar necessariamente uma nova proposição. Não
é por acaso que, muitas vezes, chamamos o texto (seja ele oral ou escrito) de discurso;
suas bases são muito similares, assumindo o produtor de textos um quê de orador. A
persuasão daquele, entretanto, não é tão visível quanto a deste (por esta utilizar
elementos extralinguísticos, enquanto aquela se limita ao conteúdo linguístico) e pode,
muitas vezes, ser tão implícita a ponto de tornar sua apreensão um objeto de estudo para
especialistas - os Analistas do Discurso.
Para estes estudiosos, o tripé ethos-pathos-logos reveste-se de significação um
tanto quanto divergente da aristotélica, pois o que era designado como caráter do orador
alcança um estatuto de Voz Textual, algo que permeia a instância enunciativa, que deve
ser observado não apenas pontualmente, mas considerando a diacronia de uma esfera
social ou de um gênero discursivo; além disso, pathos e logos passam a considerar a
relação interlocutória dos sujeitos do discurso, ratificando a concepção de construção
dual do sentido. Fica ressaltado que é por meio da enunciação que o sujeito constrói seu
discurso através do texto, revelando seu ethos, buscando produzir um pathos e
utilizando-se do logos como forma de alcança-los.
3. Análise do corpus
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3.1 Descrição do vídeo
A peça publicitária ‘Hitler’, veiculada pela Folha de São Paulo, no ano de 1987,
apresenta uma mensagem de cunho demarcadamente político. Produzida pela agência
W Brasil, do renomado publicitário Washington Olivetto, a propaganda televisiva inicia
seu percurso gerativo de sentido valendo-se de sua natureza audiovisual. No âmbito
imagético, há primeiramente uma espécie de microscopia de uma figura em preto e
branco, provocando um aspecto granulado, que impede a assimilação de sua totalidade.
No decorrer do vídeo, esta focalização gradativamente vai cedendo espaço a uma visão
macro, que desemboca num quadro compreensível, revelando a figura de um homem -
Adolf Hitler. No âmbito sonoro, que acompanha a progressão deste desvelamento, há a
enunciação de um discurso de tom grave e austero – tanto na voz que o profere quanto
em seu conteúdo – que declara: “Este homem pegou uma nação destruída. Recuperou
sua economia. E devolveu o orgulho a seu povo. Em seus quatro primeiros anos de
governo, o número de desempregados caiu de seis milhões para novecentas mil pessoas.
Este homem fez o produto interno bruto crescer 102% e a renda per capita dobrar.
Aumentou os lucros das empresas de cento e setenta e cinco milhões para cinco bilhões
de marcos. E reduziu uma hiperinflação a, no máximo, 25% ao ano. Este homem
adorava música e pintura. E quando jovem, imaginava seguir a carreira artística. É
possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso, é preciso tomar
muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe.” Nos segundos finais, há o
aparecimento da logomarca do jornal em um fundo preto, acompanhada da seguinte
frase de efeito: “Folha de São Paulo: O jornal que mais se compra. E o que nunca se
vende”.
3.2 Análise da peça publicitária ‘Hitler’
Na propaganda, é possível visualizar as instâncias enunciativa, discursiva e
textual, como esperado em qualquer gênero da comunicação humana. A peça
publicitária, enquanto ato comunicativo, representa a própria Enunciação; isto quer
dizer que a cada nova visualização, reitera-se e renova-se o processo enunciativo. O
conteúdo que se almeja veicular através do vídeo simboliza o Discurso, transmitido por
meio da substância sonora e imagética – o Texto. Deste último emergem marcas
7
linguísticas que possibilitam a apreensão das ideologias consubstanciadas no ethos
discursivo.
Em ‘Hitler’, procura-se transmitir um ethos de idoneidade, imparcialidade e
segurança por meio tanto da escolha de um narrador conceituado, de voz profunda e
envolvente quanto pela mensagem, de caráter confiável e isento. Como tentativa de
assegurar esta postura, faz-se uso de uma das Funções da Linguagem mais usuais à
esfera publicitária – a apelativa - por meio de uma estratégia de gradação sonora
ascendente, em que tanto a voz que narra quanto a música de fundo alteiam-se,
chegando juntas a um clímax, o momento da anagnorisis. Deste, logo se segue um
anticlímax, acompanhado de um retumbar e posterior silenciamento da música
ambiente, somado à impostação vocal do locutor, com o proferimento das seguintes
orações: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade. Por isso, é
preciso tomar muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe.”. Este
artifício é chamado pathos e busca transmitir emoções no plano textual, almejando
atingir o leitor-ouvinte de forma pouco profunda, recorrendo unicamente à comoção.
Opostamente ao pathos, situa-se a mensagem que procura ser veiculada, o conteúdo que
se busca construir através do raciocínio – o logos. É ele que irá possibilitar o
entendimento das proposições, mais especificamente do exemplo que a propaganda
sugere e das relações entre imagem e corporeidade textual. Assim, quando o jornal
demonstra uma manipulação explícita da informação, construindo uma imagem positiva
sobre um político autocrático, dá a entender que não o faria implicitamente (reiterando
seu ethos idôneo), sugerindo assim, que os demais meios de informação – não sendo a
Folha – poderiam fazê-lo. “Folha de São Paulo: O jornal que mais se compra. E o que
nunca se vende”.
““São os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua
sinceridade) para causar boa impressão: são os ares que assume ao se apresentar [...] O orador
enuncia uma informação, e ao mesmo tempo diz: eu sou isto, eu não sou aquilo”.8 Desse modo, a
eficácia do ethos se deve ao fato de que ele envolve de alguma forma a enunciação, sem estar
explícito no enunciado.” (MAINGUENEAU, 2001: 98)
A fim de aprofundar a discussão sobre o ethos do periódico, é preciso observar
historicamente como se deu a evolução deste. O contexto político-social que circundava
a propaganda em seu lançamento era de transformação: as manifestações a favor de
eleições diretas no Brasil haviam ocorrido há pouco e a Folha de S. Paulo, por sua vez, 8 BARTHES apud MAINGUENEAU, 2001, p. 98.
8
havia se posicionado favoravelmente a tal mudança. Isto representou um caráter liberal
e democrático para a Folha, sendo aquele o momento de instauração do ethos que até
hoje se reitera.
A propaganda é icônica, pois, para construir uma contraposição a este ethos,
recorre-se a uma ideologia diametralmente oposta aos ideais de democracia,
figurativizada no nazismo e, ainda mais especificamente, em seu encabeçador, Hitler. A
euforização dada a “este homem” é conotada por uma Voz Discursiva emprestada dos
valores nazistas, não representando a Voz da Folha como instituição, sendo, portanto,
seu anti-ethos9. Esta aparecerá apenas após a revelação de quem “este homem” seria,
disforizando tanto ele quanto o movimento a que pertence. Funcionando como fiador, o
logo da organização aparece, ao final, como uma espécie de assinatura, dando
credibilidade sobre a autoria da propaganda e confirmando que esta coaduna com seus
ideais.
É indispensável mencionar que, no ano de 2010, a propaganda foi relançada pela
agência África, de forma atualizada, sofrendo pequenas alterações – a frase de efeito
que a encerra se tornou “Isso valeu pra ontem isso vai valer pra amanhã. Folha, o jornal
do futuro com a credibilidade de sempre.” e o logo passou a ser digitado em um tablet,
versando “Folha_ o jornal do futuro”. Não somente o relançamento como também a
nova frase final reforçam este ethos de compromisso com a verdade e a democracia, tão
centrais para a publicação, sendo contempladas, até os dias atuais, as mais diversas
opiniões, o que é simbolizado no mote “Concordando ou não, siga a Folha, porque ela
tem suas posições, mas sempre publica opiniões divergentes.” Assim como ocorrera no
período de redemocratização brasileira, a Folha, aqui, demonstra novamente a tentativa
de acompanhar os fluxos históricos, o que fica explicitado pelo logo inserido em uma
plataforma de leitura digital, mostrando que o jornal impresso cede gradativamente
lugar ao online e que está atenta às necessidades deste novo leitor.
Todo discurso persuasivo utiliza de estratégias do campo da Manipulação para
alcançar seus objetivos. Analisando detidamente a propaganda ‘Hitler’, é possível
observar como se configura o Percurso da Manipulação, tão estudado pela Semiótica.
Primeiramente é preciso esclarecer os elementos constitutivos deste Percurso. Diana
Luz Pessoa de Barros esclarece:
9 Termo utilizado por Maingueneau, op. cit.
9
“O destinador propõe ao destinatário um contrato, um acordo, com o objetivo de
transformar a competência do destinatário e levá-lo, com isso, a tornar-se sujeito operador da
transformação “final” de estados, daquela que realmente interessa ao destinador. Em outras
palavras, o destinador quer levar o destinatário a fazer alguma coisa. Para tanto, tem que
persuadi-lo disso, tem que leva-lo a querer ou a dever fazer, a poder e a saber fazer.”. (BARROS,
2011: 197)
Assim, o processo manipulativo gera um percurso de ação, de performance, em
que o destinador fará com que os estados do destinatário entrem em conjunção com o
objeto de valor modalizado. Estes objetos são inerentes justamente ao nível discursivo,
havendo neste, por sua vez, a instalação das figuras e dos temas, das ideologias, o
discurso político e social. Erige-se aqui uma relação basilar entre enunciador e
enunciatário, a fim de que se estabeleça um percurso persuasivo que confira
credibilidade ao discurso, de forma que convença o enunciatário da verdade ou
verossimilhança textual (sanção/ moralização).
Aplicando tal Percurso ao objeto de análise em questão, pode-se depreender que
a motivação principal da Folha ao veicular este conteúdo é a de manutenção do seu
caráter perante a sociedade, seu ethos de idoneidade. A partir disto, subentende-se que
há uma prerrogativa de negação aos polos do querer-fazer e dever-fazer, isto significa
que o jornal considera a manipulação incoerente com sua índole e julga tal prática
condenável para um veículo de informação de massas. Ao mesmo tempo, há
inerentemente ao próprio comercial uma manipulação expressa no jogo dialógico
(des)velar, o que evidencia a competência para um saber-fazer, uma vez que a Folha
conhece tanto o objeto que fora utilizado nesta estratégia persuasiva (o Nazismo e
Hitler), quanto seu leitor-ouvinte empírico. Ademais, domina o polo do poder-fazer,
haja vista que gerencia a informação e já conseguira alcançar um estatuto social de
credibilidade, este por sua vez, edificado no curso evolutivo de seu ethos histórico.
Assim, se faz uma manipulação explicitamente, a fim de negar a possibilidade de
manipular no plano implícito.
Retomando o conceito de pathos, pode-se lançar luz sobre uma teoria muito
difundida, creditada ao linguista estadunidense Noam Chomsky, relativa a estratégias
usuais de manipulação de massas, em especial nos meios de comunicação. Algumas
podem ser verificadas quando se há um enfoque detalhado sobre elas, a saber: tratar o
público como crianças, perceptível na frase de teor didatizante “Por isso, é preciso
10
tomar muito cuidado com a informação e o jornal que você recebe.”; apelar para as
emoções muito mais que para a reflexão, como já explicitado anteriormente; não dar
ferramentas adequadas contra a ignorância, ou seja, apenas mostrar que a informação é
facilmente manipulável, mas sem apresentar mecanismos de percepção da manipulação;
e por fim, conhecer o público melhor do que ele próprio se conhece, algo também já
discorrido precedentemente.
Voltando ao cerne do Percurso da Manipulação, atinge-se o final do processo - a
moralização. Esta, uma vez que está diretamente vinculada à figura do leitor-ouvinte,
será, por conseguinte, diversa a cada nova recepção, variando de acordo com o
repertório geral de cada indivíduo. Como já abordado, não necessariamente o que fora
proposto em ‘Hitler’ será captado da forma que o enunciador idealiza, tendo em vista
que a própria propaganda exige uma competência (e, por consequência) um saber
enciclopédico a ser despendido no momento da enunciação, além, é claro, da
competência linguística – dominar a Língua Portuguesa. Assim, se um leitor-ouvinte
não conhece a figura de Hitler ou nunca teve acesso aos fatos relativos à Segunda
Guerra Mundial e aos regimes totalitários desta época, possivelmente não irá conseguir
realizar a conexão lógica entre imagem e enunciado, não podendo emitir um juízo de
valor sobre este discurso. Aí repousa a já mencionada construção dupla do sentido,
retomando o conceito de logos, a instância responsável pela assimilação do conteúdo
discursivo.
Este conteúdo, carregado de ideologias – logo, uma massa amorfa -, só é
possível de ser alcançado através de uma substância concreta, de marcas linguísticas
que emergem do texto. Diferentemente do ethos de um discurso, que só pode ser
analisado tendo em vista a diacronia textual, a ideologia pode ser observada em um
único texto. Em ‘Hitler’, verificam-se as seguintes ideologias: idoneidade/
desonestidade, manipulação/ imparcialidade.
Indo mais à fundo na análise de aspectos intratextuais, alguns índices
linguísticos se tornam visíveis em um nível mais aparente. As construções verbais em
forma infinitiva – como na oração “É possível contar um monte de mentiras dizendo só
a verdade.” – conotam uma isenção e impessoalização em relação ao enunciado, pois ao
não utilizarem a primeira pessoa do plural, excluem-se da ação tida como imprópria; as
de forma pretérita – “pegou”, “recuperou”, “devolveu”, “caiu” - demonstram que,
mesmo sem conhecer-se seu agente, sabe-se que ele as realizou em um momento
11
passado, assim como o uso do termo “marcos” para designar a moeda alemã da época –
não mais utilizada e, portanto, marcada temporalmente. Além disso, há o uso de dêiticos
pronominais (como “este”, “seu” e “seus”), que por serem genéricos e imprecisos,
geram uma certa obscuridade em relação à identidade do referente; porém, que
designam “um objeto supostamente acessível no ambiente físico de sua enunciação”
(MAINGUENEAU, 2001: 25) algo que será concretizado com a exposição da imagem
deste homem. Como evidenciado no trecho sobre a Estratégia de Manipulação “tratar o
público como crianças”, com a oração “Por isso, é preciso tomar muito cuidado com a
informação e o jornal que você recebe.” há um tom infantilizante e disciplinador, como
o de uma mãe que instrui seu filho sobre perigos cotidianos.
Finalmente, a frase de efeito que conclui a propaganda de 1987 (“Folha de São
Paulo: O jornal que mais se compra. E o que nunca se vende.”) constitui-se como um
trocadilho condensador da ideologia desta peça, revelando a bisotopia que há na
unidade lexical ‘vender-se’, podendo significar tanto o ato da comercialização de um
produto ou serviço quanto de ser corruptível, subornável. E ainda, os semas
convergentes entre os vocábulos ‘comprar’ e ‘vender’ desencadeiam a intenção mais
primária do gênero publicitário – a de promover a aquisição de uma mercadoria ou
atividade. O relançamento, de 2010, como dito, promoveu uma mudança nesta frase
final, passando a exprimir “Isso valeu pra ontem isso vai valer pra amanhã. Folha, o
jornal do futuro com a credibilidade de sempre.”. Os elementos temporais destacados
indicam uma linha cronológica fundamental de referência a um ‘ontem’ (a propaganda
de 1987 e seu contexto) construído sobre pilares ideológicos de integridade e retidão;
um ‘amanhã’ que se reforça com um ‘futuro’ indicativo da modernização e transição de
hábitos de leitura calcados no jornalismo impresso para as mídias digitais; e um
‘sempre’ que novamente faz emergir o ethos construído no decurso dos anos de vida
jornalística da instituição.
4. Considerações finais
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A partir da construção da base teórica e da descrição da propaganda, foi possível
analisá-la tendo as teorias discursivas como alicerce. Dessa forma, compreende-se que a
peça publicitária em questão procurou produzir um ethos de idoneidade, imparcialidade
e segurança, fazendo uso da função de linguagem apelativa. Também teve preocupação
de atingir o leitor usando estratégias de motivação do pathos, ao mesmo tempo em que
seu conteúdo buscava construir-se por meio do logos, expresso nas relações de
referenciação, quebra de expectativa e posterior elucidação. O jornal ao qual é associado
a propaganda demonstrou a manipulação explícita e patente da informação, a fim de
evidenciar que não o faria implicitamente. A análise também se atentou ao fato de ser
preciso conhecer a evolução do ethos do jornal, desde como ele era em 1987 (ano da
propaganda), quando apoiou as eleições diretas e possuía uma visão mais liberal e
democrática, até sua remasterização, em 2010, quando foi possível ver a preocupação da
Folha de se manter atualizada, seguindo os fluxos da História e ainda assim reafirmando
sua posição de compromisso com a verdade. A peça publicitária também é um bom
exemplar de estudo sobre o uso das estratégias de manipulação, por ter sido construída
com base em um explícito e exemplificador encobrimento de informações. Por meio de
uma prerrogativa da negação, o jornal considera tal manipulação incoerente e julga que
esta seja constantemente realizada pelos jornais com os quais se deve “tomar muito
cuidado”, mesmo que de forma encoberta ao leitor. A análise contribui para um maior
entendimento da forma como se aplicam as teorias discursivas em uma propaganda,
permitindo revelar os mecanismos e estratégias de manipulação midiática. Engendrada
de forma criativa e cativante, a peça em questão revelou-se inovadora, sendo passível de
abordagens nas mais diferentes áreas – tanto dentro quanto fora do âmbito da
Linguística. Na área da Publicidade, pode-se pensar sobre o ethos da agência W Brasil,
personificada em Washington Olivetto, que caminha na mesma esteira daquele que
ajudaram a instaurar na Folha de S. Paulo – de competência, seriedade e inovação –,
tendo sido responsável por construir parte da memória coletiva brasileira. Já em termos
linguísticos, parecem ser inesgotáveis as releituras de um discurso, sendo este trabalho
um princípio de onde muitas novas visões podem surgir.
Referências bibliográficas
13
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MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
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OLIVETTO, W. Hitler [Peça publicitária-vídeo]. Produção de Washington Olivetto,
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