linguagem e verdade - uma análise da lógica de frege - versão final

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LUCIANO CARVALHO CARDOSO LINGUAGEM E VERDADE: Uma Análise da Lógica de Frege Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Marcelo Silva de Carvalho Guarulhos 2014

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Análise sobre o conceito de verdade em Gottlob Frege e sua influência para a filosofia analítica.

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  • LUCIANO CARVALHO CARDOSO

    LINGUAGEM E VERDADE: Uma Anlise da Lgica de Frege

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal deSo Paulo como requisito parcial para obteno dottulo de Mestre em Filosofia.

    Orientador: Marcelo Silva de Carvalho

    Guarulhos

    2014

  • Cardoso, Luciano Carvalho

    Linguagem e Verdade: Uma Anlise da Lgica de Frege /Luciano Carvalho Cardoso. Guarulhos: [s.n.], 2014.

    102 f.

    Orientador: Marcelo Silva de Carvalho.

    Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de So Paulo,Escola de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Guarulhos,2014.

    Ttulo em Ingls: Language and Truth: An Analysis of the Logicof Frege.

    1. Verdade 2. Sentido 3. Referncia I. Ttulo

  • LUCIANO CARVALHO CARDOSO

    LGICA E VERDADE: Uma Anlise da Lgica de Frege

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal deSo Paulo como requisito parcial para obteno dottulo de Mestre em Filosofia.

    Orientador: Marcelo Silva de Carvalho

    Aprovado em: (dia) (ms) de 2014.

    Prof. Dr.

    Instituio

    Prof. Dr.

    Instituio

  • Dedico essa dissertao Emilia e Dionsio, cujo amor, coragem e forapara viver so uma contnua fonte de inspirao e persistncia.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo Unifesp e Capes Reuni pela oportunidade e apoio paradesenvolver esse trabalho e, principalmente, a meu orientador, Marcelo Silva deCarvalho, cuja pacincia, orientao e acuidade foram imprescindveis para odesenvolvimento dessa pesquisa.

  • Resumo

    Em Sobre o Sentido e a Referncia, Frege anuncia uma ruptura com seustrabalhos anteriores, notadamente a Conceitografia, na qual ele havia assumido quea igualdade era referente aos nomes e sinais representativos dos objetos. Comoconsequncia dessa negao, Frege apresenta a estrutura de Sentido e Referncia,como alternativa s possibilidades anteriormente apresentadas. Em decorrnciadessa ruptura, a dimenso da filosofia analtica desenvolvida por Frege se amplia,revelando um complexo sistema no qual o verdadeiro se torna o ponto fundamental.Mostramos que, no processo de reformulao do significado do verdadeiro, Fregediferencia, ainda nos Fundamentos da Aritmtica, o domnio do campo objetivoefetivo do campo objetivo no-efetivo, espao lgico no qual as leis do serverdadeiro encontram lugar como referncia para as proposies que expressam opensamento analtico. Visamos demonstrar que, partindo dessa fundamentaoinicial, o autor almeja estabelecer uma conexo ontolgica entre o pensamento e asleis do ser verdadeiro, o que lhe permite distinguir, em Sobre o Sentido eReferncia, o pensamento que expressa uma representao ou ideia, pertencenteao domnio subjetivo, do pensamento que expressa as leis do ser verdadeiro, e quepodem ser transmitidas em geraes, por pertencerem ao domnio objetivo no-efetivo. Buscamos estabelecer uma conexo entre essas diretrizes e a concepode pensamento fregiano, justificando a composio deste como sendo uma estruturaque atende ao princpio de saturao, que no se articula na forma sujeito/predicadoe que, para poder atender necessidade lgica de passar do sentido para areferncia e ser nomeado como o verdadeiro, se articula com a lgica extensional e,em um sentido ainda mais intrnseco, com uma lgica da existncia, que surge comoa estrutura basilar na qual se fundamenta o juzo, e sem o qual no poderia haver avalidao ontolgica do pensamento analtico de Frege.

    Palavras-chave: Pensamento. Sentido. Referncia. Conceito. Objeto.Funo.

  • ABSTRACTIn On Sense and Reference, Frege announces a break with his previous

    works, notably Ideography, in which he had assumed that equality was referring tothe names and signals representative of the objects. As a result of this denial, Fregepresents the structure of Sense and Reference, as an alternative to possibilitiespreviously presented. Due to this break, the dimension of analytic philosophydeveloped by Frege expands, revealing a complex system in which the true becomesthe key point. We show that, in the process of recasting the meaning of true, Fregedifferentiates, still in the Foundations of Arithmetic, the domain of effective objectivefield of the non-effective objective field , the logical space in which the laws of truebeing has a place as a reference to the propositions expressing analytical thinking.We aim to demonstrate that, based on this initial foundation, the author aims toestablish an ontological connection between the thought and the laws of true being,allowing him to distinguish, in On Sense and Reference, the thought that expressesan idea or representation, belonging to subjective realm, of thought which expressesthe laws of true being, and that can be transmitted in generations, because theybelong to the non-effective objective field. We strive to establish a connectionbetween these guidelines and the conception of fregian thought, justifying thecomposition of this as being a structure that follows the principle of saturation, whichis not articulated in the form subject / predicate, and that in order to meet the logicalnecessity of moving beyond of sense to reference and be named as the true,articulates with the extensional logic and, in a more intrinsic meaning , with a logic ofexistence that emerges as the framework in which the judgment is based , andwithout which it could not be the ontological validation of analytical thinking Frege .

    Keywords : Thinking. Sense. Reference. Concept. Object. Function.

  • SUMRIOINTRODUO....................................................................................................................................... 8

    O Contexto da Obra de Frege........................................................................................................9Dificuldades com o conceito de verdade....................................................................................12

    1. NOVIDADE DE SENTIDO E REFERNCIA NA FILOSOFIA DE FREGE............................ 182. A ESTRUTURA FILOSFICA FREGIANA.................................................................................36

    2.1Objetividade e Subjetividade...................................................................................................372.2Unidade no Pensamento e Sentido....................................................................................... 462.3Referncia e Nomes Prprios.................................................................................................612.4Conceito e Objeto na Conexo Lgica entre Linguagem e Mundo..................................65

    3. O VERDADEIRO: LGICO E ONTOLGICO...........................................................................743.1 A Generalidade Quantificacional...........................................................................................753.2 A concepo de existncia de Frege................................................................................... 813.3O Verdadeiro e o Quantificador Existencial..........................................................................88

    CONCLUSO.......................................................................................................................................92BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................... 96

  • 8INTRODUO

    O Contexto da Obra de Frege

    Gottlob Frege foi o filsofo matemtico que fundou o logicismo e, em certamedida, a filosofia analtica. Da necessidade de fundamentar a prpria matemtica,Frege se lanou lgica, com o intuito de retir-la da psicologia e do empirismo. Asmudanas de Frege, desde a introduo da funo como forma de clculo depredicados na Conceitografia (Begriffsschrift, 1879), substituindo o binmio sujeito-predicado, alm de todas as inovaes acerca dos conceitos, transformou a lgica.Todas as mudanas realizadas por Frege no decorrer de suas obras no se devemapenas introduo de mtodos ou de alguns elementos complementares lgica,mas sim a uma nova forma de articular o pensamento, no intuito de definir a relaoentre verdade e lgica de forma mais adequada do que at ento havia sido possvel.

    De acordo com Santos (2008):

    A lgica funda, admitiria Frege, a arte de pensar corretamente, na exatamedida em que das leis lgicas podem ser derivadas prescries sobrecomo pensar de acordo com a verdade, mas ela o faz na qualidade decincia do ser verdadeiro enquanto tal. A uma cincia impe-se, antes detudo, elucidar o contedo de seus conceitos primitivos e a natureza de seusobjetos mais caractersticos. lgica impe-se, antes de tudo, elucidar oconceito de verdade e a natureza daquilo a que mais diretamente dizemrespeito as leis do ser verdadeiro, aquilo a que mais propriamente se aplicaesse conceito.1

    Como cincia do ser verdadeiro enquanto tal, cabe lgica elucidar oconceito de verdade, mas realizar tal tarefa, na concepo fregiana, implicaempreender uma reviso sobre o que se entende por verdade e, igualmente, a que oconceito de verdade pode ser atribudo. um fato, no apenas em Frege, mas emtoda a tradio filosfica, que lgica e verdade sempre estiveram intrinsecamenterelacionadas e, em Frege, a relao entre elas se mantm pois, segundo o autor:

    Assim como a palavra "belo" assinala o objeto da esttica e "bem" assinalao objeto da tica, assim tambm a palavra "verdadeiro" assinala o objeto da

    1 SANTOS, L.H.L dos. O Olho e o Microscpio, pg. 42.

  • 9lgica. De fato, todas as cincias tm a verdade como meta, mas a lgicaocupa-se dela de forma bem diferente. Ela est para a verdadeaproximadamente como a fsica est para o peso ou o calor. Descobrirverdades a tarefa de todas as cincias: cabe lgica, porm, discernir asleis do ser verdadeiro (Wahrsein).2

    A verdade, tal como apresentada aqui, como objetivo e meta a serdescoberta, constitui-se como o foco das cincias. Todavia, a lgica se relacionacom ela pelo fato de ter como meta as leis do ser verdadeiro, e no aquilo quepodemos denominar verdades. Existe um aspecto de anterioridade da lgica emrelao s demais cincias, na medida em que s podemos julgar as verdades apartir das leis do ser verdadeiro. Portanto, a prpria cincia pareceria depender dodesenvolvimento da lgica para validar seu mtodo.

    No entanto, h que se notar que a lgica aqui referida deve ser abordada emseus pormenores, uma vez que, em meados do sculo XIX, muitas mudanasocorreram em seu desenvolvimento, dando origem a duas vertentes diferentes dalgica. Esta, aos tempos de Frege, encontrava-se dividida em duas escolas muitodistintas. De um lado, encontramos a lgica anti-formalista e empirista de JohnStuart Mill (1806-1873) e seus seguidores como Sigwarth (1830-1904) e Lipps(1851-1947), na Alemanha. Do outro, temos a lgica relacionando-se com amatemtica, como vemos em Boole (1815-1864), De Morgan (18061871), Peirce(18391914) e Peano (18581932) que, fazendo uso da juno de elementos dalgebra e da aritmtica com a lgica, conseguiram ampliar os horizontes desta paraalm daquilo que a lgica formal clssica e a lgica empirista conseguiam alcanar.

    A aproximao de ambas, lgica e matemtica, todavia, se deu emmomentos e direes diferentes. Em um primeiro movimento, a matemtica seapresentar como um instrumento de auxlio e ampliao da lgica. Em um segundomomento, contrariamente, a lgica servir de suporte para a matemtica,encontrando um ponto de equilbrio no pensamento de Frege.

    Esse segundo momento se d em meados do sculo XIX quando, no ncleoda prpria Matemtica, surgir uma necessidade de fundamentao, na qual aLgica ser buscada, para justificar e demonstrar a validade dos axiomasmatemticos.

    2 FREGE, G. O Pensamento, trad. Alcoforado, in Anais de Filosofia, n 6, pg. 283.

  • 10

    Inmeras descobertas da poca foram cruciais para abalar os alicerces dacrena sobre a auto-validao da aritmtica. Dentre elas, podemos destacarprincipalmente a questo da concepo de conjuntos infinitos de tamanhosdiferentes, desenvolvida pela Teoria dos Conjuntos de Georg Cantor, alm dafundamentao emprica da aritmtica oferecida por John Stuart Mill. Tais situaeslevariam Bertrand Russell a comentar com ironia, que "as matemticas so umacincia em que no se sabe de que se fala nem se o que se diz verdadeiro3".

    Para Kneale,

    Uma vez que dvidas foram jogadas sobre a fiabilidade da intuio espacialcomo uma fonte de conhecimento matemtico, tornou-se necessrioreexaminar todas as provas atualmente aceites, e o resultado foi umareconstruo radical da matemtica por homens como Cauchy eWeierstrass. J foi dito, de fato, que nada foi satisfatoriamente comprovadona anlise antes do sculo XIX. Agora tanto na anlise como na geometria origor exige a formulao explcita de tudo que essencial para umademonstrao. E assim encontramos a ateno dirigida, no sculo XIX, paraas frmulas que fornecem definies implcitas dos vrios tipos deexpresses numricas.4

    Essas frmulas, que se tornaram uma exigncia de rigor no sculo XIX,tanto atuam como regra de clculo quanto como axiomas que, por um lado,estabelecem as diretrizes e caminhos que se deve seguir e, por outro, podem seruma fundamentao de todo conjunto de conhecimentos que ganham espao nesseperodo, sendo, no primeiro caso, orientados pelas leis gerais da lgica e, nosegundo caso, devendo seu prprio fundamento e origem s mesmas leis gerais.Kneale questiona os critrios que levaram adoo dos axiomas e das frmulas,decorrentes desse procedimento:

    Se estas frmulas so consideradas como regra de clculo ou comoaxiomas a partir dos quais os teoremas devem ser calculados de acordocom as leis gerais da lgica no de grande importncia, desde que sejamestabelecidos plenamente e reconhecidos como fundamentais. Mas natural que se pergunte por que deve ter apenas estas frmulas. Existealguma necessidade inerente ao curso do desenvolvimento que nos levou aadot-las? Ou elas so convenes da nossa prpria criao, sugeridas, naverdade, por um interesse na descrio da natureza ou por um desejo degeneralidade abstrata na prpria matemtica, mas incapaz de prova,precisamente porque so apenas convenes? Estas questes foramsuscitadas no sculo XIX e ainda so debatidas em nossos dias.5

    3 BLANCH, R. Histria da Lgica, pg. 307.4 KNEALE & KNEALE. The Development of Logic, pg. 400.5 KNEALE & KNEALE. The Development of Logic, pg. 401.

  • 11

    Essas questes circunstanciais, demarcadas pelo surgimento de inmerosparadoxos, demandaria a necessidade de fundamentar a aritmtica em uma baseque no dependesse de questionamentos ou arbitrariedades.

    De acordo com Blanch:

    Pedir lgica, convenientemente renovada que assegure os alicerces damatemtica, convida bastante naturalmente a prosseguir aqum dos limiteshabituais da matemtica o trabalho de regresso na formalizao dedutiva ea tentar fazer derivar o conjunto das noes e das verdades matemticas apartir das noes e das verdades propriamente lgicas.6

    nesse contexto de fundamentao que se insere a lgica de Frege. Esteno pretendia, como anteriormente se props, utilizar a lgica como ferramenta ouauxiliar, mas essencialmente como o fundamento da matemtica. Um fundamento e,igualmente, um mtodo para o reconhecimento das leis do ser verdadeiro.

    Cronologicamente, a obra de Frege inicia-se em 1879, com a publicao doBegriffsschrift (Conceitografia ou Ideografia). A proposta de Frege, nessa obra, desenvolver uma linguagem que, de fato, se distinga da linguagem ordinria,fornecendo uma estrutura mais precisa para se formular as proposies e,consequentemente, os juzos. As bases do pensamento de Frege concebidas emsua linguagem passariam por algumas modificaes, mas seriam a base para odesenvolvimento do projeto logicista, cuja principal proposta consistia nafundamentao da matemtica pela lgica, e que encontra um ponto alto napublicao, em 1884, dos Grundlagen der Arithmetik (Os Fundamentos daAritmtica), trabalho que estabelece uma ampla discusso com as correntes doempirismo e da psicologia vigentes na poca. , todavia, em decorrncia dostrabalhos realizados a partir de 1890 que percebemos uma ampliao da filosofiafregiana e uma ruptura essencial com o trabalho desenvolvido at ento. A partir dosartigos Funktion und Begriff (Funo e Conceito), de 1891; ber Sinn undBedeutung (Sobre o Sentido e a Referncia), e ber Begriff und Gegenstand(Sobre Conceito e Objeto), ambos de 1892, Frege estabelece novas diretrizes parasua investigao lgica, o que resulta em uma definio do verdadeiro deverassingular.

    Dificuldades com o conceito de verdade6 BLANCH, R. Histria da Lgica, pg. 306.

  • 12

    Frege, ao escrever a Conceitografia, em 1879, demonstra uma preocupaoquanto ao entendimento da comunidade cientfica em relao ao saber. A questorecai sobre a linguagem, pois o saber cientfico no pode se valer da linguagemcomum, da qual nos valemos para o entendimento social, uma vez que suaambiguidade constitui uma dificuldade para a aquisio de um conhecimento preciso.A perda da objetividade ocorre devido ao uso superficial ou subjetivo da linguagem.Conforme Frege dir em Sobre Sentido e Referncia, o ideal que cada palavrativesse um nico sentido, e cada sentido uma nica referncia. Tal no o queocorre na linguagem, onde uma mesma palavra possui inmeros sentidos, e estes,muitas vezes, mais de uma referncia.

    O que pode parecer um problema, no entanto, apresentado como umacaracterstica necessria da linguagem, segundo Frege. o que garante odinamismo e a funo da mesma. Essa condio s vem a se tornar um problemaquando deixamos o aspecto geral da linguagem e entramos em um domnioespecfico, em situaes nas quais indagamos acerca de um conhecimentoespecfico, que no poderia ser conhecido por meio do uso da linguagem comum. nessa situao que uma nova linguagem deve se apresentar. Tal linguagem nopode ser ambgua, deve possuir um nvel de clareza e universalidade que permita oentendimento entre todas as comunidades que investiguem o mesmo saber. Essalinguagem, no entanto, no servir para o uso cotidiano. Ser intil para o conjuntode vivncias nas quais o homem de sociedade se v inserido. Mas ter grandeutilidade nos meios estritos da investigao cientfica. Sobre essas duas linguagens,Frege assim se expressa:

    Creio que posso tornar mais clara a relao entre minha conceitografia e alinguagem comum comparando-a que existe entre o microscpio e o olho.Este, pela extenso de sua aplicabilidade, pela agilidade com que capazde adaptar-se s diferentes circunstncias, leva grande vantagem sobre omicroscpio. Considerado como aparelho tico, o olho exibe decerto muitasimperfeies que habitualmente permanecem despercebidas, em virtude daligao ntima que tem com a vida mental. No entanto, to logo os finscientficos imponham exigncias rigorosas quanto exatido dasdiscriminaes, o olho revelar-se- insuficiente. O microscpio, pelocontrrio, conforma-se a esses fins da maneira mais perfeita, mas,precisamente por isso, inutilizvel para todos os demais7.

    7 FREGE, G. Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 46.

  • 13

    A acuidade necessria para certas investigaes torna o olho insuficiente emsuas capacidades. Nesse caso, necessitamos de algo mais apurado, umaferramenta de uso restrito, mas muito mais precisa. Todavia, essa mesma precisotorna-a incapaz de se adaptar s vrias circunstncias da vida cotidiana, na qual ascaractersticas dinmicas do olho o tornam prefervel, porquanto mais adequado.

    A analogia, aplicada linguagem, implica a necessidade de linguagensestritas para a compreenso de certos elementos do saber, para os quais alinguagem comum torna-se obscura e incerta.

    Essa preocupao acima demonstrada no posiciona Frege em um registrodiferente daquele j seguido pela tradio platnica a aristotlica. O projeto deestruturar a linguagem em um modelo adequado, que representasse de modoperspcuo o processo de conhecimento, bem como o de juzo, constitui o projeto datradio filosfica e este , de fato, o prprio bero norteador da lgica, em suasorigens.

    Mas, nesse caso, se essa a preocupao inicial de Frege, por que iniciarsua Conceitografia com o intuito de tornar mais clara a aritmtica? Por que nobuscar adentrar diretamente os domnios da linguagem? Afinal, a linguagemmatemtica parece ser a mais distante da linguagem comum, sendo, portanto, umadas mais estritas e corretas. Iniciar suas investigaes pela aritmtica, com o intuitode fundament-la na lgica tambm no distancia, especificamente, Frege datradio filosfica.

    Para Aristteles, na composio de textos que se tornariam o que hojeconhecemos como Organon, o ponto de partida era quase o mesmo. Aristtelesconsiderava necessrio o rigor da linguagem, tanto para os saberes teorticos,quanto para uma melhor fundamentao da Geometria. E a Geometria, na ocasio,conforme Santos (2008), abarcava muito do que hoje admitiramos como objetosprprios da aritmtica.

    O primeiro motivo a necessidade de, um tanto paradoxal, num primeiromomento, de encontrar, em uma linguagem estrita, a generalidade necessria paradar conta de todas as situaes da linguagem sem que se recaia em ambiguidade.O que queremos dizer que a linguagem estrita procurada por Frege seria estrita

  • 14

    porque no poderia possuir a ambiguidade natural da linguagem, por conta danecessidade de preciso que o objeto do saber exige. Em contrapartida, essalinguagem deve possuir um tipo de generalidade em sua estrutura, de maneira queconsiga expressar, dentro de suas prprias regras de preciso, todas as relaesconcernentes ao mbito de sua atuao. A estrutura tradicional da linguagemfundamentada sobre o sujeito e o predicado no , segundo Frege, suficientementeapropriada para contornar esse problema. Frege encontra, como substitutos maisadequados, a funo e o argumento, operaes prprias da Aritmtica e que, porpossurem um critrio baseado em saturao e insaturao, se aplicariam apraticamente todas as situaes apresentadas pela linguagem, contendo a suficientegeneralidade.

    O segundo motivo para comear pela aritmtica est no fato de que tanto amatemtica quanto a lgica independeriam do mundo emprico e passariam adepender unicamente do pensar para validar seus elementos. Dois campos nosquais, segundo Frege, "a matria cede terreno e dominada pelo pensar"8. De talmaneira, Frege resguardaria tanto lgica quanto a aritmtica de cair nos domniosseja da psicologia, seja do empirismo.

    Ademais, tanto a aritmtica quanto a lgica dependem nica eexclusivamente dos acordos encontrados entre suas proposies. Segundo Santos:

    Enquanto a ausncia de fundamentao suficiente pode, nas cincias domundo emprico, ser compensada no momento do confronto com aexperincia, na matemtica, cuja relao com a experincia, se existir, remota e mediata, onde entra em considerao o grau de transparncia aoesprito das conexes lgicas tanto quanto a matria do saber, a totalidadedas verdades deve, por assim dizer, repousar sobre si prpria9.

    Um elemento importante salientado por Santos consiste no fato de que asvalidaes das verdades matemticas repousam, por total independncia do mundoemprico, somente nas conexes lgicas estabelecidas e, portanto, nas conexesentre as proposies matemticas:

    A questo de saber se uma dada proposio deve ser recebida comoverdade matemtica no admite resposta mesmo aps uma centena deaplicaes bem sucedidas, que conduziriam a uma mera certeza moral,

    8 FREGE, apud Santos, pg. 13.9 SANTOS, L. H. L; O Olho e o Microscpio, pg. 15.

  • 15

    mas to somente aps uma derivao lgica da proposio a partir dosfundamentos reconhecidos do sistema10.

    Considerando o que afirmamos acerca das preocupaes seminais de Frege,algumas perguntas norteadoras podem ser feitas no mbito da investigao: o quepode ser verdadeiro? A verdade um predicado que diz algo sobre um objeto? Oser verdadeiro constitui um conceito que atribui propriedades a algo? Em quemedida o logicismo preserva a verdade em seu aspecto lgico? A verdade ainda averdade da correspondncia entre representante e representado?

    Na realidade, a investigao de Frege no se pauta tanto no que diz respeito verdade, em uma acepo mais geral. As cincias procuram verdades. A verdade,nesse aspecto, plural, e Frege no discorda disso. O que no plural, para Frege, aquilo que ele denominar o verdadeiro. So as leis do verdadeiro que permitemao cientista encontrar verdades. E, de certa maneira, a trajetria lgica de Frege uma trajetria de definio do que vm a ser essas leis do ser verdadeiro.

    No por acaso que o Prefcio Conceitografia (1879) inicia-se pelainquirio acerca da verdade cientfica. Conforme Frege:

    A apreenso de uma verdade cientfica passa, normalmente, por vriosestgios de certeza. Com efeito, conjeturada inicialmente a partir de umnmero talvez insuficiente de casos particulares, uma proposio geraltorna-se mais e mais solidamente estabelecida ao se relacionar com outrasverdades mediante cadeias de inferncias seja porque dela se derivamconcluses que so confirmadas por outros modos, seja, pelo contrrio, porela se afigurar uma concluso de proposies j estabelecidas.11

    Embora Frege afirme que a verdade cientfica passa por inmeros estgiosde certeza, e embora um dos processos seja partir de um nmero limitado de casosparticulares, por meio de inferncias lgicas que uma proposio geral ganhasolidez. Essa solidez dada pela conexo com outras verdades e estabelecida pormeio de inferncias que no dependem, necessariamente, da observao emprica.O mtodo de consolidao da fundamentao de uma verdade cientfica, ao menoso mais seguro, segundo o autor, no outro que o seguir as leis da lgica:

    O mtodo de prova (Beweisfhrung) mais seguro consiste, obviamente, emseguir estritamente a lgica, que, abstraindo as caractersticas particularesdas coisas, apoia-se exclusivamente nas leis sobre as quais se baseia todoo conhecimento. Por esta razo, dividimos todas as verdades que requerem

    10 Idem.11 FREGE, Gottlob; Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 43.

  • 16

    prova em duas espcies: aquelas cuja prova pode ser conduzida por meiospuramente lgicos e aquelas cuja prova se apoia em fatos empricos. Mas ofato de uma proposio ser da primeira espcie plenamente compatvelcom o fato de ela jamais se tornar consciente em um esprito humano, casono houvesse atividade sensorial. Portanto, o que est na base destadiviso [das espcies de verdade] no a gnese psicolgica(Entstehungsgeweise), mas o melhor mtodo de prova (Beweisfhrung)12.

    Aparentemente, Frege estabelece uma distino entre duas classes deverdade, onde a diviso proposta feita com base no mtodo de prova. Sem entrarno significado de verdade, pois Frege no o faz de modo metdico naConceitografia, a espcie de verdade que interessar para o autor, por conta doprivilgio do mtodo mais seguro, sero as verdades que dependem dos meiospuramente lgicos, pois a estrutura lgica, uma vez estabelecida pelas regras deinferncia, torna-se necessria, enquanto que as verdades que se apoiam em fatosempricos necessitam sempre de mais casos particulares para a corroborarem, enunca atingem um grau absoluto de confirmao e fundamentao. verdade queuma dessas verdades, cujo mtodo de prova se assenta estritamente nas leis sobreas quais se baseia todo o conhecimento, talvez jamais viesse a ser conhecida semos meios sensrios. Uma verdade de fundamento lgico, porm, uma verdadedotada de generalidade, pois no depende de suas particularidades. Como tal,embora possam ser necessrios meios empricos para ser conhecida, isso nomuda o fato que o mtodo de prova de tais verdades continue sendo estritamentelgico. As verdades matemticas, referindo-nos aqui especificamente aritmtica,seriam desse tipo descrito. Porm, dadas as circunstncias que resultaram nanecessidade de fundamentao da Matemtica, esta deve ser fundamentada pelalgica, de modo a se submeter ao mtodo de prova estritamente lgico.

    Observamos que, j na Conceitografia, as verdades se apoiam na lgicacomo o mtodo mais seguro de prova. E mesmo assim, existem verdades que seapoiam em mtodos empricos. A diferena entre ambas ainda no claramenteindicada. Todavia, podemos sugerir que apoiar a verdade na lgica significa, nessecaso, que podemos extrair o verdadeiro de uma sentena a partir das relaesinternas da mesma, em uma estrutura de linguagem estrita, proposta por Frege naConceitografia, de maneira dissociada das possveis relaes empricas das quaisas referidas sentenas seriam derivadas.

    12 FREGE, Gottlob; Prefcio Conceitografia, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 44.

  • 17

    Vemos que a Conceitografia, em linhas gerais, demonstra o cuidado emdesenvolver uma linguagem restrita que visa explicitar, sem ambiguidade, as leis doser verdadeiro. As proposies estruturadas nessa linguagem contribuiriam para umconhecimento sem lacunas, tanto de verdades que dependem de casos particulares,quanto das que se assentam em pressupostos estritamente lgicos. Porm, no ficaclaro, e nem parece ser o propsito do texto, discutir o que significa a verdadealmejada ou reconhecida. As investigaes de Frege, todavia, o levaro a umadefinio de verdade mais formal e com uma funcionalidade lgica mais rigorosa,inclusive em sua terminologia. Como resultado, em Der Gedanke (O Pensamento,1918-19), Frege nos informa que o verdadeiro o objeto de toda a lgica. Essaconcepo parece ter uma conotao diferente do primeiro caso que observamos,pois, na Conceitografia, a lgica parecia ser algo distinto e mais amplo do que asverdades cientficas. Em O Pensamento, o que podemos perceber que toda algica encontra-se orientada para o verdadeiro como objeto. Isso nos sugere que,entre a Conceitografia e O Pensamento, Frege desenvolveu e ampliou suaconcepo acerca da verdade. O significado do termo objeto, conforme serexplicitado no decorrer dessa dissertao, evidenciar uma trajetria que buscadelimitar o verdadeiro em um contexto diferente daquele que costuma caracterizaras verdades cientficas, estabelecendo balizas muito consistentes entre aconsiderao usual de verdade e aquela que caracterizar a mesma como objetolgico. O processo que estabelece esse rigor, que define o verdadeiro no apenascomo o objeto da lgica, mas como objeto lgico e que o distanciar das verdadescientficas no somente no mtodo de prova, mas em toda sua aplicao, resultado de uma importante ruptura na concepo fregiana no que tange distinoentre forma e contedo da proposio.

    A proposta desta dissertao, portanto, estabelecer trs pontos:

    a) Indicar em que sentido ocorre a ruptura na concepo de verdade fregianaem relao concepo da tradio filosfica, representada pelosmodelos aristotlicos e kantianos;

    b) A exposio dos elementos que compem o ncleo do logicismo fregiano,concebendo o que significa tomar o verdadeiro como objeto da lgica;

  • 18

    c) A implicao do valor de verdade para a concepo de existncia deFrege, tomando em considerao que o verdadeiro, enquanto objetoprivilegiado da lgica, assume posio fundamental na validao daexistncia de um pensamento.

    1. NOVIDADE DE SENTIDO E REFERNCIA NA FILOSOFIADE FREGE

    Observamos na Introduo que Frege considera a verdade como elementofundamental no estudo da lgica. Todavia, seu procedimento parece-nos divergir domodo como costuma ser realizado na tradio filosfica. A Conceitografia ,inicialmente, a obra na qual Frege inaugura um novo mtodo, baseado em umainterpretao singular de funo. Nesse captulo, nossa proposta indagar qual anovidade que Sobre o Sentido e a Referncia trazem para a discusso, e como osconceitos ali trazidos tona promovem uma ruptura com a concepo tradicional deverdade. Tambm investigaremos os problemas que essa concepo carrega ecomo Frege ter de estruturar sua filosofia para acomodar e dar sustentao parasua obra.

    Hans Sluga (1999), no artigo intitulado Frege On Meaning, faz uma anlisecrtica da Conceitografia em relao concepo de Frege a respeito da verdadeem sua teoria. Segundo Sluga, as consideraes sobre a verdade existem de modoindireto, sem que haja, em qualquer momento, uma tentativa de formalizao deuma teoria da verdade:

    No h, em particular, nenhuma teoria da verdade ou qualquer coisaequivalente a ser encontrado nele (no Begriffsschrift). Qualquer pessoafamiliarizada com o desenvolvimento posterior de Frege ou com a evoluoda teoria analtica do significado vai achar surpreendente que os conceitosde verdade e falsidade esto totalmente ausentes do livro. Ao descrever oque poderamos chamar de conectivos de verdade-funcional, Frege fala

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    apenas de proposies a serem afirmadas ou negadas, no de seu serverdadeiro ou falso.13

    Podemos considerar que a concepo de verdade de Frege largamenteampliada a partir de 1890, o que faz com que haja uma ruptura no pensamento doautor a partir desse perodo, que o distanciar definitivamente de uma viso clssicada verdade, aos moldes da viso conservadora. Essa ruptura, todavia, no nosparece ser uma ruptura total com seu pensamento, mas o resultado doamadurecimento de seu logicismo, da complexidade de suas concepes. O prprioautor, no Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, ao estabelecer uma reviso de suaobra, firma uma continuidade que remonta Conceitografia, onde lemos: Eu realizoaqui um projeto que j havia tido em vista no meu Begriffsschrift do ano de 1879 eque anunciei em meus Fundamentos da aritmtica do ano de 1884.14

    Alm dessa continuidade anunciada, as modificaes que o autor enunciaem seguida, como a modificao do sinal de equivalncia para o sinal de igualdadee o acrscimo de outros sinais, devem-se, principalmente, ao que ele enuncia comoconsequncias da evoluo de minhas concepes lgicas.15

    De fato, os elementos fundamentais, como o clculo proposicional baseadona estrutura funo e argumento, atravessam toda a obra fregiana. No entanto, duvidoso concluir que Frege concebia, j na Conceitografia, que o verdadeiro sejaum objeto (como apresentaremos a seguir), levando em conta as observaes feitasat o momento.

    A partir de Funo e Conceito, porm, essa associao torna-se explcita,e suas repercusses no deixam de ser problemticas. Para compreendermosmelhor o problema que se apresenta, retomemos o fato de que, desde aConceitografia, Frege estrutura as proposies com base na funo e no argumento,deixando de lado a nomenclatura sujeito e predicado. Quando tomamos umaexpresso alicerada em sujeito e predicado, temos um elemento, o sujeito, querecebe uma propriedade, o predicado. Esse mesmo predicado, em outra expresso,pode ser o sujeito e receber tambm uma propriedade. Ao estruturarmos comofuno e argumento, o comportamento das proposies ser diferente, pois funes13 SLUGA, H. Frege on Meaning, pg. 22.14 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, pg. 3.15 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, pg. 4.

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    so elementos incompletos, que no podem atuar sozinhos sem que percebamos anecessidade de complemento. Um argumento, em contrapartida, teria acaracterstica de ser completo, no precisar de complemento. Assim, uma funono poderia trocar de lugar com um argumento, pois uma funo nunca se tornacompleta, assim como um argumento nunca se torna incompleto. Um argumento,para Frege, em geral um objeto. Ao falar do objeto, em Funo e Conceito, Fregeo explica da seguinte maneira:

    Quando admitimos qualquer objeto sem restrio como argumento ou valorde uma funo, surge a questo do que que chamamos aqui de objeto.Considero impossvel uma definio regular [de objeto], j que nosdeparamos com algo cuja simplicidade no admite nenhuma anlise lgica.Aqui, s se pode assinalar o que se quer dizer. E s se pode dizersucintamente o seguinte: um objeto tudo o que no uma funo, tudoaquilo cuja expresso no contm um lugar vazio.16

    Assim, o objeto ou o argumento, para Frege, no pode ser substitudo poruma funo, e nem pode aparecer como atributo ou propriedade de algo. Em umsentido geral, portanto, podemos pensar que uma proposio baseada nessaestrutura ter o atributo de ser verdadeira se, de fato, o objeto, enquanto argumento,completar a funo, que insaturada. A prpria proposio seria ento consideradaverdadeira. Porm, Frege apresenta, logo em seguida, uma afirmao que causaestranheza ao leitor: Uma sentena assertiva no contm lugar vazio, e assim,deve-se considerar que sua referncia seja um objeto. Essa referncia, porm, umvalor de verdade. Logo, os dois valores de verdade so objetos.17

    Se o verdadeiro tomado como um objeto, ento ele no pode mais seratributo ou propriedade de uma proposio da maneira usual, ou seja, porcomparao com o mundo. Evidencia-se, de imediato, que a concepo de verdadede Frege passa a diferir grandemente da tradio filosfica, e carrega consigo umasrie de consequncias e desdobramentos.

    Um desses desdobramentos, que podemos adiantar aqui, embora seja maisbem discutido no captulo 2, consiste na seguinte afirmao:

    Por valor de verdade de uma sentena entendo a circunstncia de ela serverdadeira ou falsa. No h outros valores de verdade. Por brevidade,chamo a um de o verdadeiro e a outro de o falso. Toda sentena assertiva,

    16 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 96.17 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 97.

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    caso importe a referncia de suas palavras, deve ser considerada como umnome prprio; e sua referncia, se tiver uma, ou o verdadeiro ou o falso.18

    Se tomarmos essas duas passagens conjugadas temos uma consequnciaque chama ateno. Sendo o verdadeiro um objeto e no podendo ser, peladefinio fregiana, uma propriedade nem do objeto e nem da proposio,percebemos que a conexo entre uma sentena e o verdadeiro passa a ser nomais a de uma predicao, mas de uma nomeao, na qual a proposio, uma vezcompleta, torna-se um nome, cuja referncia, o objeto ao qual o nome se refere,ser um valor de verdade.

    De acordo com Greimann:

    A considerao da natureza positiva da verdade parece ser caracterizadapela viso de que a verdade um objeto. Por essa razo, sua concepode verdade comumente vista como uma estranha "teoria da nomenclaturada verdade" de acordo com a qual a verdade o objeto nomeado pelassentenas verdadeiras.19

    Por essa concepo, a teoria de Frege da Verdade seria uma teoria denomenclaturas, de nomeaes do objeto verdadeiro, onde cada sentena seria, nolimite, reduzida ao nome do verdadeiro. Por conseguinte, as mudanas sobre aconcepo da verdade em seu pensamento se do intrinsecamente a partir dodesenvolvimento dos conceitos de sentido e referncia na proposio. Os trsartigos compostos por Frege, Funo e Conceito, Sobre Conceito e Objeto eSobre o Sentido e a Referncia esto interligados e tanto o primeiro quanto osegundo artigo possuem, como pressuposto, as definies de sentido e referncia.Como veremos adiante, de acordo com Frege, a ausncia dos conceitos de sentido(Sinn) e referncia (Bedeutung) fez com que tivssemos, na Conceitografia, apenaso termo (nome) e o objeto, o que gerou um conjunto de problemas referentes,principalmente, ao que concerne considerao sobre a igualdade e ao contedooriundo dessa igualdade. De forma indireta, essa questo aparece em Funo eConceito e, ali, surge relacionada com o conceito de extensionalidade e implicadacom a concepo de verdade considerada como o objeto verdadeiro. Em relao extensionalidade porque se encontra vinculada com a ideia de que duas expressessero consideradas iguais se ambas possurem os mesmos percursos de valores

    18 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 139.19 Greimann, D. Did Frege Really Consider the Truth as an Object?, in: Essays on Freges Conception ofTruth, pg. 126.

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    verdadeiros. E relacionada com o verdadeiro como objeto porque, sendo um objeto,este s pode se relacionar com outro objeto se for por meio da igualdade entreobjetos ou nomes ou sinais de objetos. Afirma Frege:

    Pode-se fazer aqui a objeo de que 2 = 4 e 2 > 1 significam coisastotalmente diferentes, expressam pensamentos totalmente distintos. Mastambm 24 = 42 e 4 . 4 = 4 expressam pensamentos diferentes, e apesardisso, pode-se substituir 24 por 4 . 4, uma vez que ambos os sinais tm amesma referncia. Por conseguinte, 24 = 4 e 4.4 = 4 tm tambm amesma referncia. Disso conclumos que a igualdade de referncias notm como consequncia a igualdade de pensamentos.20

    A igualdade definida pela extensionalidade consiste em uma igualdaderelativa aos percursos de valores que impliquem em uma mesma referncia, masisso no implica o mesmo pensamento, em seu significado. Alm disso, Fregetambm afirma:

    As funes x=1 e (x + 1) = 2(x + 1) tm sempre o mesmo valor para omesmo argumento, a saber, o verdadeiro para os argumentos -1 e +1; e ofalso para todos os demais argumentos. De acordo com nossas convenesanteriores, diremos, pois, que essas funes tm os mesmos percursos devalores [...]21

    O verdadeiro, pelo que indicado pela passagem acima, no dado pornada externo s prprias regras proposicionais, pois o valor verdadeiro atribudo aosargumentos 1 e -1 s so possveis devido s condies determinantes dadas pelasproposies (x + 1) = 2(x + 1) ou X=1. Dadas as relaes concernentes funo,somente os argumentos -1 e +1 engendram o valor verdadeiro. Temos tambm queduas proposies sero iguais se apresentarem as mesmas condies e os mesmosobjetos sob essas regras, pois as duas expresses acima ((x + 1) = 2(x + 1) e X = 1) sso consideradas verdadeiras para os objetos +1 e -1 e s so consideradas iguaispor, em ltima instncia, denotarem a mesma referncia: o valor de verdadeverdadeiro.

    Temos, porm, que observar que os objetos numricos citados sengendram o verdadeiro, por assim dizer, pelo fato de, ao entrarem na proposiocomo argumentos, atenderem e completarem o vazio deixado pela funo edemarcado por x, o que sugere que, sozinhos, os objetos +1 e -1 no so capazesde produzir o verdadeiro. Da mesma forma, todos os outros nmeros que, nesse

    20 FREGE, G. Funo e Conceito, in: Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 92.21 FREGE, G. Funo e Conceito, pg. 94.

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    contexto, engendram um valor de verdade falso, s o so assim por conta daestrutura da funo. Fosse a funo de outra forma, os valores de verdade seriamdiferentes para cada nmero que entrasse como argumento. Alm disso, se ocontexto ou a combinao entre funo e argumento que determina os valores deverdade obtidos, a equivalncia entre as diversas proposies s ocorre quandotemos um valor de verdade que se comporta como referncia ltima em umcontexto de nomenclaturas que aparentemente privilegia a forma lgica ao contedo.

    Ao iniciar Sobre o Sentido e a Referncia, Frege parte precisamente daigualdade, e explicita a problemtica que observamos brevemente em Funo eConceito:

    A igualdade desafia a reflexo, dando origem a questes que no sofceis de responder. ela uma relao? Uma relao entre objetos? Ouentre nomes ou sinais de objetos? Em minha Begriffsschrift assumi a ltimaalternativa22.

    Frege toma como ponto de partida o fato que objetos possuem nomes, e que,havendo, pois, a igualdade, ela pode referir-se tanto igualdade entre objetosquanto igualdade entre nomes ou sinais de objetos. Na Conceitografia, Fregeassume a ltima alternativa, entendendo a igualdade como equivalncia entre osnomes dos objetos. Todavia, medida que o prprio autor prossegue, essa escolhaacarretar problemas. Quando dizemos que um objeto A igual a um objeto B, ousimplesmente que A=B, estamos dizendo que dois objetos, de nomes distintos, soa mesma coisa? Na Conceitografia, duas sentenas ou termos representados porum sinal A e outro B sero consideradas iguais se seu contedo conceitual for omesmo. Mas o fato de serem designadas por nomes diferentes no acrescenta umadiferena nos pensamentos asseridos? Para Frege, a designao diferente de ummesmo objeto produz diferenas informativas significativas:

    [...] a=a e a=b so, evidentemente, sentenas de valor cognitivo diferentes,pois a = a sustenta-se a priori e, segundo Kant, deve ser denominada deanaltica, enquanto que sentenas da forma a = b contm, frequentemente,extenses muito valiosas de nosso conhecimento, e nem sempre podem serestabelecidas a priori. A descoberta de que o sol nascente no novo cadamanh, mas sempre o mesmo, foi uma das descobertas astronmicasmais ricas em consequncias.23

    22 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, in Lgica e Filosofia da Linguagem, pg. 129.23 Idem, pg. 130.

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    Tomando esse fato em considerao, Frege expressa duas condies queacarretariam no absurdo, no qual o valor informativo novo cessaria de aparecer onde,evidentemente, aparece:

    Assim, se quisssemos considerar a igualdade como uma relao entre osobjetos a que os nomes a e b se referem, ento a = b no pareceriadiferir de a = a, caso a = b fosse verdadeira. Desse modo expressaramos arelao de uma coisa consigo mesma, relao que cada coisa tem consigomesma, mas que nunca se d entre duas coisas distintas. Mas, por outrolado, parece que por a = b quer-se dizer que os sinais ou os nomes a e breferem-se mesma coisa, e neste caso, a discusso versaria sobre essessinais: uma relao entre eles seria asserida. Mas tal relao entre osnomes ou sinais s se manteria na medida em que eles denominassem oudesignassem alguma coisa. A relao surgiria da conexo de cada um dosdois sinais com a mesma coisa designada24.

    O problema percebido por Frege se deve ao fato de que, se a igualdade uma relao entre objetos, toda conexo realizada ser uma conexo que noacrescenta nenhum valor cognitivo relao estabelecida, pois estaremos dizendoque o objeto igual a si mesmo, ou seja, estaremos afirmando que nada de novopode ser apreendido pelo objeto, que seu conhecimento analtico, no importa onome que receba. Isso levou Frege segunda opo, de que a igualdade seria umarelao entre nomes ou sinais de objetos. Mas essa relao de igualdade estavacondicionada aos objetos designarem sempre a mesma coisa, e ainda acarretava aarbitrariedade possvel para qualquer designao. o que conclui Frege logo emseguida:

    Ningum pode ser impedido de empregar qualquer objeto ou eventoarbitrariamente produzido como um sinal para qualquer coisa. Com isto, asentena a=b no mais se referiria propriamente coisa, mas apenas maneira pela qual a designamos; no expressaramos por seu intermdio,propriamente, nenhum conhecimento25.

    Essa arbitrariedade algo comum na atribuio de nomes aos objetos.Podemos utilizar tanto objetos quanto eventos como sinal para qualquer coisa.Porm, se a atribuio de nomes representasse apenas a maneira pela qualdesignamos um objeto, continuaramos com o problema de nenhum conhecimentoser expresso por seu intermdio. Para resolver essa questo, Frege, em seguida,acrescenta ao nome um fator que, at certo ponto, parece ser independente dequalquer arbitrariedade, a saber, o fato de que, junto ao nome, existe algo que24 Idem.25 Ibidem.

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    acompanha o conjunto, que corresponde ao modo de apresentao do objeto queest sendo designado pelo nome. Esse elemento o que chamamos de sentido(Sinn) e que, como veremos adiante, no , de certa forma, algo arbitrrio.

    No que diz respeito ao sentido, Frege defende que este, como modo deapresentao do objeto, corresponde fuga do argumento do absurdo, pois a partirdo sentido, o valor cognitivo de sentenas como A = B fica assegurado.

    Afirma Frege:

    , pois, plausvel pensar que exista, unido a um sinal (nome, combinaode palavras, letras), alm daquilo por ele designado, que pode ser chamadode sua referncia (Bedeutung), ainda o que eu gostaria de chamar de osentido (Sinn) do sinal, onde est contido o modo de apresentao doobjeto. [...] A referncia de estrela da tarde e estrela da manh amesma, mas no o sentido.26

    Desde a tradio kantiana que proposies analticas, como A igual a A,no possuem valor informativo, j que no acrescentam nada ao prprio nome.Somente proposies chamadas de sintticas possuiriam valor cognitivo. Com aintroduo do conceito de sentido, uma proposio como A Estrela da manh Vnus possuiria valor cognitivo, pois no evidente o reconhecimento de que aestrela da manh seja Vnus. Porm, a estrela da manh corresponde a um sentido,um modo de apresentao do objeto designado pelo nome prprio Vnus. Poracrescentar um sentido a Vnus, consequentemente, o contedo informativo acercado objeto que est sendo asserido pode aumentar em relao ao que se tinhaanteriormente.

    Dessa forma, para a pessoa que apreende essa proposio acerca deVnus, ela no apenas adquiriu um contedo informativo, como reconheceu serverdadeira essa atribuio, uma vez que a Estrela da Manh um dos modos deapresentao de Vnus. E Vnus, por sua vez, o nome que designa o corpoceleste. Em contrapartida, o que determina essa atribuio? Se a verdade parte doreconhecimento de uma atribuio arbitrria de um termo em relao a um objeto,ento poderamos supor um relativismo em todo o processo de juzo, o que noslevaria a reconhecer como verdadeiras certas proposies e falsas outras

    26 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 131.

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    proposies, enquanto outras pessoas podem considerar as mesmas proposiesdiferentemente.

    Outra possibilidade de relativismo o que Mark Textor (2005) leva emconsiderao em sua obra Frege On Sense and Reference. Segundo Textor, aConceitografia tinha como ponto de partida os contedos judicveis. Essescontedos eram compostos pelo que Textor denomina circunstncias, formadas porparticulares e propriedades. Textor afirma:

    O Begriffsschrift contm uma lgica e uma teoria do contedo judicvel, isto, uma teoria do que uma declarao diz ou como um julgamentorepresenta o que o mundo . Cada frase no Begriffsschrift tem comocontedo judicvel uma circunstncia, um complexo constitudo porelementos e propriedades.27

    Em outras palavras, Frege atua, na Conceitografia, ainda no escopo dalgica que se forma a partir de um particular, com sua respectiva propriedade (aindaque no possamos mais identificar essa estrutura com o sujeito e predicado a partirde sua linguagem conceitual). Entretanto, a novidade de Sobre o Sentido e aReferncia que agora o conjunto todo passa a corresponder a um modo deapresentao do objeto, como enfatiza Textor:

    Quando se pensa acerca da linguagem, encontramos uma questofundamental e profunda: o significado de uma sentena como Mont Blanctem mais de 4.000 metros de altura consiste em estar correlacionado comuma configurao de objetos, um estado de coisas ou circunstncia quecontm o prprio Mont Blanc, e uma propriedade, ter mais de 4.000 metrosde altura, ou o significado da frase reside em estar correlacionado ouexpressar o que Frege chamar um "pensamento", contendo, entre outrascoisas, um modo de apresentao de Mont Blanc? De forma mais geral:nossas sentenas remetem diretamente para circunstncias ou elas, emprimeiro lugar, expressam apresentaes que podem existirindependentemente de tais circunstncias?28

    Evidencia-se aqui a significncia e contribuio de Sobre o Sentido e aReferncia. Esse tipo de questionamento no existia na Conceitografia e s pdeser formulado a partir da concepo de sentido (Sinn). No se trata apenas deexplicitar, em Sobre o Sentido e a Referncia, quais partes correspondem aosentido e referncia no contedo judicvel, mas sim conceber um novo modo deentender as sentenas e o mundo por elas expresso. O sentido de um objeto nopossui a mesma arbitrariedade de um nome e nem mesmo a contingncia das

    27 TEXTOR, Mark. Frege On Sense and Reference, pg. 14, v. digital.28 Idem, pg. 16.

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    circunstncias. Um modo de apresentao que pode existir independentemente dascircunstncias sugere a possibilidade de o sentido estar unido referncia porregras e condies que no seriam determinadas pelas circunstncias, mas sim porcondies relativas ao prprio referente, que seriam intrnsecas a ele. A relaoentre nome, objeto e o sentido complexa, principalmente com a entrada do Sentidocomo o temos considerado aqui. Como Frege afirmou, podemos nomear qualquerobjeto arbitrariamente, mas uma nomeao arbitrria manteria o contedoinformativo? Agora, se a nomeao referir-se ao modo de apresentao do objeto,ela estar designando o objeto segundo seu sentido e, com isso, designando seucontedo informativo. Mas, se isso correto, o Sentido produz um comprometimentono ato dessa nomeao, que limita de certa maneira a suposta arbitrariedade deatribuio de nomes. Se o sentido pode ser expresso por um nome designativo e seesse sentido dado pelo prprio objeto referido, ento esse nome sempre estar emrelao com esse objeto, como uma relao de equivalncia. Essa informao extremamente importante, caso seja verdadeira, pois se essa relao(nome/sentido/objeto) vlida para a nomeao de objetos como o quedenominamos Vnus ou Estrela da Manh, tambm vlida para proposies,conforme referido acima. E tanto mais importante quando pensamos que, se osentido no arbitrrio, mas um dos modos de apresentao do referente, oreconhecimento do contedo informativo que uma pessoa tem ao apreender aexpresso "a estrela da manh" ou "a estrela da tarde" em relao ao objeto (que,por sua vez, tambm recebe a denominao "Vnus") no ser apenas oreconhecimento formal de uma atribuio ocasional ou convencional, mas sim oreconhecimento de que essas atribuies so verdadeiras, pois so coincidentescom os sentidos dados pelos referentes.

    Esse tipo de conexo entre sentido e referncia, mesmo que ocorra dentrodo espao da linguagem, abre o campo para a discusso acerca do juzo e do quevem a ser o verdadeiro, pois, em uma sentena, no se trataria mais de ser apenasuma sentena afirmada ou negada, mas reconhecida em equivalncia com overdadeiro, por conta de ela assinalar de modo apropriado a relao entre sentido ereferncia nas instncias s quais ela (a proposio) se aplica. O sentido, comomodo de apresentao de um objeto, ou de uma referncia, torna-se o centrodaquilo que deve ser levado em conta em um juzo, no por ele ser aquilo que se

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    pode chamar de o verdadeiro ou o falso, mas sim porque o sentido apresenta arelao entre a referncia e a linguagem, no enquanto ele em si mesmo, masenquanto ele em seus mltiplos modos de apresentao, que se evidenciariam pormeio da linguagem, dos nomes ou expresses designativas, ou mesmo juzoscompletos.

    Essa considerao nos leva a uma observao feita por Klement (2004)29,que ressalta o fato de que, para Frege, o sentido geral de uma proposio possuiuma anterioridade ao sentido de suas partes constituintes. Ao falar sobre asinfluncias de Frege e Russell sobre o jovem Wittgenstein, Klement diz: A evidnciapara termos Frege como a principal influncia (sobre Wittgenstein) deriva quaseinteiramente de certos lemas compartilhados que indicam ser o sentido de umasentena inteira mais fundamental do que as partes.30

    De fato, como veremos, Frege parece considerar que, para o pensamento, aproposio no possui partes estruturadas, mas estruturveis. Somente em certacircunstncia, o pensamento (e a proposio) desmembrado em suas partesconstituintes, como uma construo em blocos. Nesse aspecto, as proposiesseriam a parte visvel de um pensamento, de modo que teramos, alm de umsentido independente das circunstncias (o que j difere do contedo judicvelpresente na Conceitografia) ainda ser inerente, de modo distinto, tanto nas partescomo na totalidade de uma proposio e, nesse caso, o sentido de uma proposioseria mais complexo ou mais completo do que o sentido de suas partes isoladas. Dequalquer forma, para Klement, ele aparece como mais fundamental quando osentido de uma proposio do que quando o sentido de um termo.

    Pelo que foi expresso at o momento sobre as consideraes de Frege nosartigos posteriores a 1890, o processo para o reconhecimento de uma proposiocomo verdadeira parece assumir contornos bem distintos. Usualmente, verdadeirose d quando uma proposio diz algo acerca do mundo, e esse algo, portransposio, verifica-se no mundo. Por esse vis, quanto mais prxima for umasentena de um fato, mais verdadeira ela ser. Frege, em contrapartida, considera

    29 KLEMENT, K.C. Putting Form Before Function: Logical and Grammar in Frege, Russell andWittgenstein, in Philosophers Imprint, Vol. 4, n.2, Agosto, 2004.30 Idem, pg. 01.

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    que a verdade das proposies independe de qualquer comparao entre imagem emundo. Como j observado pelos exemplos anteriores, o verdadeiro, alm de serconsiderado um objeto, referido pelos termos de igualdade ou equivalncia, dentrode uma estrutura de nomenclaturas, cujas regras so dadas pelo prprio clculoproposicional. A verdade, portanto, no seria dada por comparao ou transposiocom algo emprico, mas tambm no seria dada por nenhuma conexo psicolgica.A verdade de qualquer proposio parece ser dada de forma analtica, a partir darelao, possivelmente ontolgica, entre sentido e referncia. A linguagem, ou umjuzo, expressaria um sentido, um modo de apresentao da referncia que, por suavez, coincidiria com o objeto verdadeiro ou no. E dizemos ontolgica, pois talrelao entre sentido e referncia parece revelar-nos uma dinmica acerca do serdas coisas, da identidade das mesmas, que revelado pelos muitos sentidos pelosquais uma referncia possui.

    Mas, qual seria a natureza daquilo que chamamos de referncia? Se areferncia no emprica e nem psicolgica, o que Frege denomina referncia?

    Para o autor, a referncia um dado lgico. A lgica , em termos kantianos,analtica e a priori. Para Frege, os elementos constitutivos do mundo (funes eargumentos) so lgicos e, portanto, analticos. Poder-se-ia indagar acerca de casoscomo Jlio Csar ser tomado como referncia. Isso no seria um dado lgico, e seuconhecimento no seria analtico. De fato no podemos afirmar que Jlio Csar sejaum dado a priori. Todavia, no parece o caso de, ao falarmos de Jlio Csar, comoem Jlio Csar conquistou as Glias, estarmos nos referindo apenas a uma pessoacom uma referncia histrica, que cruzou o Rubico e estabeleceu toda umamudana nos rumos de Roma, pois, em termos lgicos, no necessitamos recorrer histria para determinar a verdade de uma proposio. Jlio Csar, em tal sentena, um objeto cujas propriedades em questo seriam aquelas que nos permitiriamcoloc-lo sob o conceito conquistou as Glias. Nesse aspecto, o que temos j no unicamente referente ao domnio objetivo sensvel e emprico, mas estaramosentrando no campo da lgica e de leis que no seriam dadas pelas relaeshistricas de Jlio Csar e das Glias. Questes como as envolvendo pessoas,cujas afirmaes envolvem, de certa maneira o espao e o tempo, so distintas deafirmaes que envolvem definies acerca das leis do verdadeiro, e naquelas

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    proposies especficas (as que envolvem espao e tempo) a verdade est sempreem questo. o que Frege diz:

    Todas as determinaes de lugar, de tempo, etc. pertencem ao pensamentocuja verdade est em questo; o ser verdadeiro mesmo no espacial enem temporal. O que realmente diz o princpio de identidade? Algo assim:No ano 1893 impossvel para os homens admitir que um objeto distintodele mesmo?, ou isso: Todo objeto idntico a si mesmo? A primeiralei trata de homens e contm uma determinao temporal; na segunda nose fala nem de homens nem de tempo. Esta uma lei do ser verdadeiro,aquela uma lei do assentimento humano. O contedo de ambas completamente distinto, e so independentes entre si, de modo quenenhuma das duas segue-se da outra.31

    O que podemos perceber por essa citao que os princpios que formamas leis do ser verdadeiro no so espaciais e nem temporais e, portanto, nopertencem ao assentimento humano. H, portanto, uma distino quando falamosde homens localizados no espao e no tempo, e quando falamos diretamente de leislgicas. Ambas as referncias, enquanto parte de uma proposio, estaro sujeitas lgica e tratadas como objetos da lgica, mas seus contedos sero distintos.Essa justificativa de nossa abordagem causa certo estranhamento, pois nos parececerto que, ao valer-se de determinados exemplos, Frege alude a experinciashistricas e temporais. Alegar que, em algum nvel, elas so lgicas soa-nosexcessivo, eventualmente. Porm, temos de nos ater a duas circunstncias. Ambassurgem em Funo e Conceito. A primeira delas diz respeito aplicao da funoe do argumento no contexto do que Frege denominou expresses funcionais, ouseja, a classificao das diversas expresses aritmticas como expressessaturadas ou insaturadas. Aps demonstrar como as expresses aritmticas secomportariam dentro da estrutura funcional, Frege ampliou o campo de aplicao dafuno para o campo da linguagem:

    Vamos agora empreender a extenso [do termo funo] na outra direo, asaber, ampliando o domnio dos possveis argumentos. No apenasnmeros, mas objetos em geral, so agora admissveis, e aqui tambmpessoas devem ser contadas entre os objetos.32

    31 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica, (Trad. Celso R. Braida) pg. 08. Traduo revista:FREGE, G. The Basic Laws of Arithmetic, pg. 15.32 Frege, G. Funo e Conceito, pg. 95.

  • 31

    O motivo de Frege ampliar o campo dos argumentos tem a ver com suaconsiderao acerca de sentido e referncia. Essa a segunda circunstnciacaracterstica. Para Frege, toda equao possui uma forma lingustica e toda formalingustica apresenta uma sentena assertiva, ela afirma algo. Em tais casos, asentena possui um sentido, um pensamento. Portanto, Frege trafega entre oscampos da aritmtica e da linguagem, posicionando qualquer sentena, bem comoqualquer pensamento, sob a estrutura de expresso funcional. Isso significa que asquestes referentes ao campo da aritmtica, bem como o posicionamento de Fregeem relao a ela, valero tambm para todo o campo de ampliao que Fregerealizou em Funo e Conceito, o que inclui a escolha feita por Frege, em relao sopes tomadas tanto por Kant quanto por John Stuart Mill:

    Considerando-se tambm a oposio entre analtico e sinttico, resultamquatro combinaes, uma das quais, porm, a saber, analtico a posteriori, impossvel. Aqueles que se decidiram com Mill em favor do a posteriori noresta pois escolha, restando-nos ponderar ainda somente as possibilidadessinttico a priori e analtico. Kant decidiu-se em favor da primeira. Nestecaso, no h praticamente outra alternativa seno apelar para uma intuiopura como fundamento ltimo de conhecimento, embora aqui seja difcildizer se ela espacial ou temporal, ou de qualquer outra espcie.33

    Para Frege, a distino entre analtico e sinttico e a priori e posterioricaracteriza os tipos de escolhas que podemos fazer para classificar o sistema deoperaes numricas e toda a aritmtica. Descartando a possibilidade de umconhecimento ser analtico e a posteriori, surgem as outras possibilidades: sintticoa posteriori, sinttico a priori e analtico. Stuart Mill optara pelo conhecimentosinttico a posteriori, significando com isso que todo conhecimento oriundo daexperincia e a partir de indues. A opo de Kant fora a do conhecimento sintticoe a priori. Entender o que significa a escolha de Kant nos auxilia, em contrapartida, acompreender a magnitude da escolha de Frege frente tradio kantiana.

    De acordo com Mark Textor, Kant definiu que tanto a aritmtica quanto ageometria seriam cincias cujos juzos so classificados como sintticos a priori.Nesse sentido, o autor afirma: A distino sinttica / analtica diz respeito a como osdiferentes conceitos esto relacionados no julgamento, a distino a priori / aposteriori diz respeito ao tipo de justificativa que se tem para o julgamento.34

    33 Frege, G. Fundamentos da Aritmtica, pg. 215.34 Textor, M. Frege On Sense and Reference, pg. 09.

  • 32

    Essa definio implica que juzos analticos ou sintticos se referem aomodo como os conceitos se relacionam no interior de um julgamento, de maneiraque um juzo analtico aquele no qual um conceito-sujeito contm um conceito-predicado. Esse tipo de juzo tambm chamado juzo de explicao conceitual e,em ltima instncia, ele explica ou analisa o conceito-sujeito. Por outro lado, umjuzo sinttico, tambm chamado de juzo ampliativo, amplifica o conceito-sujeito, namedida em que acrescenta contedo junto ao conceito-predicado.

    Quando falamos de a priori / a posteriori, no entanto, estamos nos referindoa algo distinto da relao entre os conceitos, pois estamos considerando ajustificativa que se tem para que aquele juzo seja realizado. Para Kant, um juzo apriori significa que ele se justifica independente da experincia, enquanto que umjuzo a posteriori s pode ser justificado na experincia. O sentido deindependncia usado por Kant possui relevncia para compreendermos aaplicao de independncia do ser verdadeiro em relao ao empirismo, feita porFrege. Para saber que uma rvore igual a si mesma, necessrio ter visto umarvore para saber do que se fala, mas compreender que a rvore ou qualquer outracoisa igual a si mesma dispensa a necessidade da experincia. Esse juzo justificado independente de experincias pessoais.

    Como Frege nos informa, Kant define que a Aritmtica, bem como aGeometria, possuem juzos que so sintticos a priori. Pela distino acima entreanaltico / sinttico e a priori / a posteriori, as caractersticas de um juzo dessanatureza sero, conforme Textor:

    Um juzo que sinttico a priori no ser justificado pelo exerccio de umahabilidade para definir um conceito, mas ser justificadoindependentemente da experincia. A discusso de Kant alimentada pelapergunta sobre o que esta justificao pode ser. Por exemplo, ele (Kant)argumentou que a definio dos conceitos de 7, 5 e mais no suficientepara justificar o meu julgamento que 7 + 5 = 12 (Kant 1781/8: B 15-16).35

    A simples definio dos conceitos no o suficiente para a realizao dasoperaes aritmticas. O conhecimento matemtico, segundo Kant, necessitarecorrer intuio, significando que o conhecimento aprendido a partir de intuiesa priori:

    35 TEXTOR, M. Idem. A citao de Textor, ao final da passagem, remete Crtica da Razo Pura,passagens B 15 16.

  • 33

    A Filosofia mantm-se simplesmente em conceitos gerais; a Matemticanada pode fazer como mero conceito, mas apressa-se a recorrer intuio,na qual considera in concreto o conceito, embora no de modo emprico,mas simplesmente numa intuio que apresentou a priori, isto , construiu,e na qual tudo aquilo que resulta das condies gerais da construo deveser vlido tambm de uma maneira geral para o objeto do conceitoconstrudo. 36

    precisamente esse o ponto de discordncia de Frege em relao Kant.Ainda de acordo com Textor:

    Frege afirma, contra Kant, que na aritmtica ns no precisamos terintuies, representaes de coisas particulares no espao e no tempo,para justificar nossos juzos. Nossa habilidade para definir conceitos geraise para traar inferncias nossa fonte do conhecimento aritmtico.37

    Enquanto para Kant estava claro que o conhecimento aritmtico baseadona construo de instncias de conceitos, para Frege, as coisas procederiam deuma forma diferente.

    Frege opta pelo conhecimento aritmtico ser analtico. Essa escolha no gratuita e carrega consigo inmeras consequncias. O principal argumento de Fregecontra Kant que o conhecimento no pode ser construdo por conceitosinstanciados de objetos espao-temporais, pois a intuio de objetos dessa naturezano contempla um problema de outra natureza: a de que tudo o que pensvel,para Frege, pode ser contado. Na terminologia fregiana, isso implica dizer que tudoo que cai sob um conceito preciso contvel. E isso acarreta uma oposio aopensamento kantiano. Se tudo o que cai sob um conceito preciso contvel, entocada parte componente de um conceito contvel, e isso faz com que um conceitotorne-se, na verdade, um conjunto. De fato, Textor afirma que a definio correntede contvel se aplica a conjuntos. Textor afirma:

    Em seu atual significado padro, 'contvel' aplica-se a conjuntos. Umconjunto contvel se, e somente se, os seus membros podem sercolocados em um-para-um com um ou outro conjunto dos nmeros naturaisou um subconjunto deste conjunto. Se tudo o que pensvel contvel,essa noo de contagem muito estreita. Por exemplo, os pontos entre ospontos A e B de uma linha so contados, mas o conjunto contendo esses

    36 KANT, I. Crtica da Razo Pura, A715 B744.

    37 TEXTOR, M. ibidem, pg. 10.

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    pontos no pode ser colocado em um-para-um com o conjunto de nmerosnaturais. Objeto Contvel deve ser entendido como "objeto de um tipo que passvel de contagem.38

    Percebemos que a dimenso do que contvel ultrapassa aquilo que osnmeros naturais contemplam e, em contrapartida, aquilo que a intuio espao-temporal abrange. Dessa forma, a aritmtica, se devesse sua justificao a algumaforma de intuio a priori, culminaria por ter uma dimenso mais estrita do que defato possui. pensando nisso que Frege afirma, nos Fundamentos da Aritmtica:

    Kant pretende recorrer intuio de dedos ou pontos, no que se arrisca apermitir, contra sua opinio, que elas apaream como empricas; pois aintuio de 37863 dedos no , de modo algum, pura. Tambm a expresso"intuio" no parece adequada, visto que j dez dedos, em virtude dadisposio de uns em relao aos outros, podem ocasionar as maisdiversas intuies. Temos, pois, enquanto tal, uma intuio de 135664dedos ou pontos? Se a tivssemos, e se tivssemos uma de 37863 dedos euma de 173527 dedos, a correo de nossa equao deveria evidenciar-seimediatamente, ao menos no que concerne a dedos, fosse elaindemonstrvel; mas no o que ocorre.39

    Frege inviabiliza a atuao da intuio, tal como Kant a concebia, para lidarcom a amplitude da aritmtica. Afinal, se o domnio de tudo o que contvel excedeo domnio dos objetos que podem ser conhecidos pela intuio espao-temporal,ento precisamos de um elemento adicional, cuja capacidade de generalizao valm do caso restrito da intuio a priori. E, para tal, esse conhecimento deve estararraigado na aritmtica.

    Vimos que a opo de Kant, de que o conhecimento aritmtico seja sintticoa priori, acarreta na necessidade de recorrer a uma suposta intuio espao-temporal que, em certa medida, se aproxima perigosamente de uma viso empricada aritmtica. Frege rejeita essa posio, e o faz por dois motivos: o primeiro deles que a prpria aritmtica, em toda sua proporo, se estende para alm de quaisquerrelaes espao-temporais. Disso decorre que, se um juzo sinttico a priori s podeser justificado pela intuio espao-temporal, e essa intuio no o suficiente parajustificar todas as relaes da aritmtica, ento o conhecimento aritmtico s podeser analtico.

    38 Idem.39 FREGE, G. Fundamentos da Aritmtica, pg. 208.

  • 35

    O segundo motivo que, para Frege, as complexas relaes da aritmticaso coextensivas s relaes entre conceitos e objetos na construo dopensamento, expressas pelo juzo, uma vez que tudo o que pode ser pensado podeser contado. Porm, as regras do juzo so as regras da lgica, o que faz com que aaritmtica tenha uma relao muito profunda com as leis da lgica. E as leis dalgica (leis do ser verdadeiro) so analticas.

    Seguir, portanto, com o raciocnio de Mill, de que a aritmtica sinttica aposteriori implica, em ltima instncia, que o mesmo se dir da lgica. E seguir oraciocnio de Kant, por sua vez, acarretar em sujeitarmos a lgica a uma intuioespao-temporal restrita, desprovida de universalidade.

    O projeto de Frege no de modo algum estrito, uma vez que sua anliseda aritmtica o conecta com a lgica e com a linguagem.

    Frege expressa, em os Fundamentos da Aritmtica:

    Do ponto de vista do pensamento conceitual, pode-se sempre assumir ocontrrio deste ou daquele axioma geomtrico, sem incorrer emcontradies ao serem feitas dedues a partir de tais assunescontraditrias com a intuio. Esta possibilidade mostra que os axiomasgeomtricos so independentes entre si e em relao s leis lgicasprimitivas, e, portanto, sintticos. Pode-se dizer o mesmo dos princpios dacincia dos nmeros? No teramos uma total confuso casopretendssemos rejeitar um deles? Seria ento ainda possvel opensamento? O fundamento da aritmtica no mais profundo que o detodo saber emprico, mais profundo mesmo que o da geometria? Asverdades aritmticas governam o domnio do enumervel. Este o maisinclusivo; pois no lhe pertence apenas o efetivamente real, no apenas ointuvel, mas todo o pensvel. No deveriam, portanto, as leis dos nmerosmanter com as do pensamento a mais ntima das conexes?40

    O logicismo fregiano acaba se mostrando como um projeto que vai maislonge do que sujeitar a aritmtica lgica. No apenas isso, ao conectar a aritmticacom a estrutura do pensamento, Frege sujeita todo o pensamento que expressa umjuzo com valor de verdade a um conhecimento analtico dado, que dispensa orecurso do empirismo e da intuio espao-temporal.

    A filosofia analtica de Frege estabelece uma ruptura com a tradiofilosfica, tanto com a lgica clssica aristotlica quanto com a filosofia kantiana e, apartir dessa ruptura, Frege tem o desafio de forjar uma trajetria que remonte asrelaes entre o pensamento, a linguagem e a verdade. Faz-se necessrio

    40 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, 14, pg. 217.

  • 36

    compreender o lugar que esses elementos ocupam dentro da lgica e qual suarelao com o mundo.

    Considerando a ciso que Frege realiza, nos aspectos acima observados,podemos dizer que o domnio das leis do verdadeiro, as referncias que nopossuem posio no espao e no tempo, bem como os sentidos, que so seusmodos de apresentao, seriam tambm objetivos? Ou elas estariam no domnio dasubjetividade? Dada a importncia que essa questo assume para Frege nadistino entre sentido, referncia e representao (ou ideia), estenderemos umpouco nossa linha de investigao para compreendermos a distino que o autorestabelece entre os campos objetivo e subjetivo.

  • 37

    2. A ESTRUTURA FILOSFICA FREGIANA

    O problema que encontramos no captulo anterior pode ser formulado daseguinte maneira: se a verdade no a verdade por correspondncia entre umaproposio lingustica e um fato emprico ento como se d a verdade nopensamento fregiano?

    Esse problema foi, como vimos, oriundo da negao da estrutura kantianada aritmtica ser um conhecimento sinttico a priori. Se a opo de Frege que oconhecimento aritmtico analtico, isso exclui, na considerao das operaesaritmticas, a derivao por experincias empricas. Dada essa ruptura com a lgicakantiana, Frege ter de redefinir o campo lgico onde a verdade poder serencontrada, alm de reestruturar, dentro de seu pensamento, a atuao do que verdadeiro e de sua relevncia para nossas proposies acerca do mundo. Afinal,quando declaramos um juzo sobre o mundo, estamos aplicando certas proposiestidas como certas e verdadeiras e dizendo que, em determinadas condies, serverdadeiro que algo seja assim, e no de outra forma. A relevncia do verdadeiroem tais circunstncias a de afirmar que, dadas certas condies (em geralempricas) ser verdadeiro o que se afirma do juzo ou das proposies que ocompem. Afirma-se, na verdade, que aquilo que se diz corresponde ao que ocorre,e essa correspondncia exata o que aduzimos com o termo verdadeiro. Essaconcepo parece ser a levada em considerao por Frege, conforme podemosverificar de uma maneira geral em Der Gedanke:

    A verdade atribuda a imagens, ideias, sentenas e pensamentos. O quechama a ateno nesta lista o fato de nela encontrarmos, ao lado decoisas visveis e audveis, coisas que no podem ser percebidas pelossentidos. O que indica a ocorrncia de um deslocamento no sentido dapalavra "verdadeiro". De fato, o que ocorre. Uma imagem, enquanto umobjeto visvel e palpvel, poder ser dita propriamente verdadeira? E umapedra, uma folha no sero verdadeiras? Evidentemente, no chamaramosuma imagem de verdadeira se nisso no houvesse uma inteno. A imagemtem que representar algo. Uma ideia tampouco dita verdadeira por simesma, mas s tendo em vista uma inteno; na medida em que ela

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    corresponde a algo. Podemos, pois, presumir que a verdade consiste emuma correspondncia entre uma imagem e seu objeto.41

    Porm, como acompanhamos no captulo anterior, Frege se posicionacontrariamente a essa concepo. Se a verdade ou verdadeiro no se refere a algocontingente, habitual, ou mesmo fsico, ditado pela experincia ou pela soma deexperincias, ento o campo de relevncia e o modo como atua o termo verdadeirona proposio necessita ser explicitado.

    Nesse captulo, acompanharemos a abordagem de Frege dos elementosque foram revisitados e reinterpretados, estabelecendo, primeiramente, o espaoonde a verdade pode ocorrer, o significado de pensamento para Frege e sua relaocom a proposio, o papel do sentido e da referncia e como eles se relacionamcom conceito e objeto.

    Objetividade e SubjetividadeFrege, em sua defesa da lgica, busca desvencilhar-se do empirismo e do

    psicologismo, em primeira instncia. A matemtica desenvolvida em sua pocaencontrava-se envolta em concepes empricas que remetiam, na prtica, aopsicologismo. De tal maneira que todas as concepes matemticas ou lgicasestavam sujeitas a serem analisadas como decorrentes de comparaes, em grausubjetivo, para com objetos empricos.

    Todavia, Frege necessita distinguir as categorias lgicas das psicolgicas demodo a assegurar a universalidade de suas concepes, pois, se tudo subjetivo,tudo resultado de interpretaes contingentes e, como tal, no poderamos nosfurtar de um relativismo no campo da lgica que reduziria a verdade a uma verdadecircunstancial, redutvel no apenas s circunstncias, mas tambm consideraode cada indivduo.

    Em Os Fundamentos da Aritmtica (1884), Frege articula a distino entre ocampo objetivo e subjetivo. O campo subjetivo o campo das representaesarbitrrias. Tais representaes partem dos objetos sensveis do mundo. No entanto,esses objetos marcam a subjetividade no apenas com sua sensibilidade, mas

    41 FREGE, G. O Pensamento, in: Anais de Filosofia, pg. 284.

  • 39

    principalmente com as impresses individuais que tais objetos produzem. ConformeFrege:

    Se o dois fosse uma representao, seria de incio apenas meu. Arepresentao de outrem enquanto tal j outra. Neste caso teramostalvez muitos milhes de dois. Dever-se-ia dizer: meu dois, teu dois, um dois,todos os dois. Admitindo-se representaes latentes ou inconscientes,haveria tambm dois inconscientes que, por sua vez tornar-se-iam maistarde conscientes. Com a sucesso das geraes nasceriam sempre novosdois, e quem sabe se em milnios eles no se modificassem, de modo a 2 x2 tornarem-se 5.42

    Alm disso, Frege acrescenta, em Sobre o Sentido e a Referncia, quesentimentos e emoes, todos de fundo psicolgico, influenciam a interpretao detais objetos, de maneira que a representao formada a partir deles nocorresponde a uma ideia lgica e universal, mas sim individualizada e pessoal.

    Conforme Frege:

    A referncia e o sentido de um sinal devem ser distinguidos da ideia(Vorstellung) associada a este sinal. Quando a referncia de um sinal umobjeto sensorialmente perceptvel, ento a ideia que dele tenho umaimagem interna, emersa das lembranas de impresses sensveis passadase das atividades, internas e externas que realizei. Essa imagem interna estfrequentemente impregnada de emoes; os matizes de suas diversaspartes variam e oscilam. At num mesmo homem, nem sempre a mesmaideia est associada ao mesmo sentido. A ideia subjetiva: a ideia de umhomem no a mesma ideia de outro. Disto resulta uma variedade dediferenas nas ideias associadas ao mesmo sentido. Um pintor, umcavaleiro e um zologo provavelmente associaro ideias muito diferentes aonome Bucfalo.43

    Dessa forma, o campo subjetivo um campo pessoal, no qual a partilha deinformaes nunca a mesma de pessoa para pessoa. Todos possuem um camposubjetivo, mas ele pessoal e intransfervel, sendo encapsulado no mundo internode cada pessoa. Tal distino expressa por Frege, onde lemos:

    No se deve esquecer que nunca as representaes de homens diferentes,por mais parecidas que possam ser, o que, por outro lado, ns nopodemos comprovar exatamente, no coincidem em nenhum ponto, edevem ser diferenciadas. Cada um tem as suas representaes, que noso por sua vez as do outro. Naturalmente, entendo aqui representaesno sentido psicolgico.44

    Se os objetos da lgica pertencessem ao campo subjetivo, pouco poderia sefazer em termos de universalidade do conhecimento. Cada um teria seu prprio

    42 FREGE, G., Os fundamentos da Aritmtica, pg. 227, 27.43 FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referncia, pg. 134.44 FREGE, G. Prlogo s Leis Bsicas da Aritmtica (Trad. Celso R. Braida), pg. 9.

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    princpio de identidade, e cada proposio seria a verdadeira expresso doentendimento daquela pessoa, tal qual ela o concebe.

    Em tais condies, considera Frege, nada impediria que, com o tempo, umapessoa pudesse chegar concluso de que a soma entre 2 mais 2 seja 5, ao invsde quatro, pois algum poderia concluir que os nmeros evoluem, de modo que, noprincpio, 2 + 2 era igual a 1, depois a 2 e, no presente momento, igual a 4. Nadaimpediria tal pessoa de pensar que o prximo da lista seria 5. Mas tal representaos seria possvel se os prprios nmeros e a concepo de suas relaes fossemigualmente psicolgicas. Ainda segundo Frege, mesmo tal concluso acerca dosnmeros no poderia ser questionada, pois ela seria verdadeira para aquela pessoae, sendo os nmeros representaes subjetivas, no haveria nenhuma refernciaque obrigasse uma pessoa a rever sua interpretao, exceto, talvez, o consensopopular, que continuaria afirmando ser 2 + 2 = 4. Porm, em tal situao, ningumpoderia objetar que, talvez um dia, o consenso mudasse e se adequasse ao daquelapessoa, e todos passassem a consentir que 2 + 2 = 5.

    Logo, se existe o campo subjetivo, e se as representaes desse campo soinfluenciadas pelas impresses internas de cada um, certamente existe um campoobjetivo, onde tais representaes devem se assentar e nele ser corrigidas eadequadas. Nesse sentido, Frege afirma:

    Habitualmente, "branco" faz-nos pensar em uma certa sensao,inteiramente subjetiva, claro; mas j no uso ordinrio da linguagem,parece-me, distingue-se frequentemente um sentido objetivo. Quando se dizque a neve branca, pretende-se uma qualidade objetiva que, luzordinria do dia, reconhecida por uma certa sensao. Caso ela sejailuminada por uma luz colorida, isto deve ser levado em conta no momentodo juzo. Dir-se- talvez: ela agora aparece vermelha, mas branca.45

    O campo objetivo consiste no espao onde os objetos do mundo seencontram, e onde igualmente nos encontramos. Apreendemos os objetos domundo por nosso intelecto e deles formamos representaes, interpretando-os.Ainda que nossas representaes subjetivas sejam pessoais e marcadas por nossasimpresses e emoes, ganhando uma forma peculiar e sendo intransferveis, osobjetos do mundo continuam estando l, permanecendo como objetos reguladoresde nossas interpretaes, podendo produzir correes de nossas representaes.

    45 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 226.

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    Porm, o campo objetivo o campo da experincia emprica, do sensvel. o mundo dos fenmenos com o qual nos deparamos. Esse mundo, a despeito dosfatos brutos que coagem nossas interpretaes e reduzem sua arbitrariedade, nunca,porm, de forma completamente eficiente, um mundo cujo conhecimento s adquirido a posteriori, mediante a experincia. Frege afirma, a respeito desseespao objetivo do mundo dos objetos sensveis:

    O espao, segundo Kant, pertence ao fenmeno. Seria possvel que seresracionais diferentes o representassem de maneira completamente diferente.Na verdade, nunca podemos saber se ele aparece a uma pessoa como auma outra; pois no podemos colocar a intuio especial de uma ao lado daintuio da outra a fim de compar-las.46

    De modo que, se tomarmos a realidade como sendo composta apenas doscampos subjetivo e objetivo sensvel, no encontraremos lugar para as leisuniversais, nem para a matemtica e nem para a verdade como sendo universais apriori. No haveria mais verdades analticas, mas apenas verdades sintticas, taisquais as verdades que todas as cincias procuram, mas das quais nenhum princpiopermanente poderia ser extrado. Tomando igualmente o caminho da lgica kantiana,teremos sempre de recorrer a uma intuio para validar nossas percepes, e nelasno encontramos objetividade que possa ser compartilhada.

    A verdade, por essa concepo, bem como as leis da lgica ou da aritmtica,seriam sempre derivadas de relaes entre o subjetivo e o emprico e, portanto,contingentes. Seriam, segundo Frege, as verdades de Stuart Mill, todas derivadasde experincias obtidas do contato direto e da observao do meio. Frege observa:

    A concepo de Mill conduz necessariamente exigncia de que para cadanmero se observe um fato em particular, porque em uma lei geral perder-se-ia exatamente a peculiaridade do nmero 1.000.000, que pertencenecessariamente sua definio.47

    Sendo construdas por derivao, tais leis ou verdades no deixam de serarbitrrias e podem ser ressignificadas com o tempo, passando a representar outrascoisas, estabelecidas por consenso. Novamente, camos em um relativismo. As leisda lgica e as leis do verdadeiro estariam sujeitas ao pensar, pois no seriamapreendidas, mas sim construdas por derivao emprica. E, como construes do

    46 FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 226.47 FREGE, G., Os Fundamentos da Aritmtica, pg. 211.

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    pensar, submetem-se ao domnio da psicologia, pois se enquadrariam no camposubjetivo.

    Frege, todavia, no considera as leis do verdadeiro, ou os elementos lgicos,bem como os nmeros e suas relaes como sendo frutos do campo subjetivo, eresultados do ato de pensar como representaes derivativas do mundo emprico.Frege as entende como objetivas, analticas e apreensveis pelo ato de pensar.Segundo o autor, mesmo nas intuies subjetivas, algo de objetivo pode serencontrado:

    Entretanto, h ainda nelas algo objetivo; todos reconhecem os mesmosaxiomas geomtricos, ainda que to somente de fato, e devem faz-lo a fimde poderem orientar-se no mundo. Nelas objetivo o que conforme a leis,conceitual, judicvel, o que deixa exprimir em palavras.48

    Frege reconhece que o campo para toda uma categoria de elementosconstituintes do mundo no encontra-se no campo subjetivo e nem tampouco nocampo objetivo sensvel.

    O domnio objetivo definido por Frege possui caractersticas distintas docampo sensvel: Distingo o objetivo do palpvel, espacial e efetivamente real. Oeixo da Terra e o centro de massa do sistema solar so objetivos, mas preferiria nocham-los de efetivamente reais como a prpria Terra.49

    Os elementos presentes nesse campo no-sensvel possuem objetividade,constituem-se como referncia, so independentes de quaisquer comparaeshumanas com o campo objetivo sensvel e, ainda que ningum jamais viesse seaperceber deles, eles sempre estariam estabelecidos, de modo que, em qualquertempo ou lugar, a razo poderia apreend-los, e eles estariam inalterados, sempreda mesma forma, e sempre constituindo-se como leis do ser verdadeiro.

    A objetividade, portanto, pode ser entendida, como Frege afirma:

    Assim, entendo por objetividade uma independncia com respeito a nossosentir, intuir, representar, ao traado de imagens internas a partir delembranas de sensaes anteriores, mas no uma independncia comrespeito razo; pois responder questo do que so as coisas

    48 Idem, pg. 226.49 Idem, pg. 225.

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    independentemente da razo significa julgar sem julgar, lavar-se e no semolhar.50

    O campo objetivo concebido por Frege nos Fundamentos da Aritmtica denominado como campo objetivo no-efetivo, no sensvel.

    Consideramos, como vimos acima, que Frege estabeleceu trs instncias naconstituio da realidade. A concepo de um plano objetivo no-efetivo permite aFrege desenvolver, como Dummett (1973) afirmou, um contexto no qual a realidadeindepende de quaisquer fatores empricos para se fazer conhecer de forma analtica.De acordo com Dummett:

    A imagem pode ser chamada de verdadeira, na medida em quecorresponde de perto com o que se pretende representar. A verdade deuma imagem , portanto, relacional: podemos julgar se uma imagem ouno verdadeira somente se sabemos qual o outro termo da relao, ouseja, o objeto representado. Por outro lado, a verdade de uma sentena(completa) ou do pensamento que expressa no relacional: no h aquesto de termos primeiro que descobrir o estado de coisas que asentena se pretende descrever e compar-la para ver se correspondenteou no; a sentena simplesmente verdadeira ou falsa sem qualificao.51

    Se a imagem, enquanto cpia, mais verdadeira quanto mais se aproximado objeto que representa, as sentenas nada devem a esses correspondentesempricos. Dizer que uma sentena simplesmente verdadeira ou falsa semqualificao implica em dizer que uma sentena possui uma dinmica intrnseca talque o verdadeiro dado pelas prprias leis que determinam o pensamento expressona sentena. Nesse aspecto, mesmo os fatos contidos nos pensamentos nodependeriam das amarras da correspondncia com referenciais sensveis. o queDummett sugere em seguida:

    Fatos, na ontologia de Frege, no so mais constituintes da realidade, doreino da referncia, ao lado de objetos, valores de verdade, conceitos,relaes e funes. Eles so, ao contrrio, identificados com pensamentosverdadeiros: um fato que Anbal cruzou os Alpes simplesmente umaoutra forma de dizer O pensamento de que Anbal cruzou os Alpes verdadeiro. Fatos, como pensamentos verdadeiros, portanto, pertencem,no ao reino de referncia, mas quele do sentido.52

    Mais uma vez, a relevncia de sentido e referncia aparece como umelemento de ruptura em relao ao pensamento de Frege poca da Conceitografia.Se os fatos pertencem ao que Dummett denomina reino dos sentidos, ento o que

    50 Idem, pg. 226.51 DUMMETT, M. Frege, Philosophy of Language, pg. 464.52 Idem, pg. 464.

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