a filoosofia da matemática em frege

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  • 2 - A FILOSOFIA DA MATEMTICA DE FREGE O objetivo deste captulo descrever e discutir alguns pontos da filosofia da ma-temtica de Frege, bem como apresentar alguns resultados matemticos desenvol-vidos na terceira parte de Begriffsschrift (1879) e nas 46-83 de Die Grundlagen der Arithmetik. 2.1 - LOGICISMO

    Entre inmeras tendncias de pensamento na matemtica no sculo XIX,

    uma das principais foi o movimento fundacionalista22. Muitos foram os matemti-

    cos que exigiam um maior rigor nas definies de conceitos matemticos e nas

    provas de teoremas. O movimento marcou tambm o rompimento entre a geome-

    tria e a aritmtica. As definies de conceitos aritmticos tinham de ser explicados

    por meio de outros conceitos aritmticos mais bsicos. Segundo alguns comenta-

    dores, por exemplo, Demopoulos (1994), a rigorizao da matemtica e o rompi-

    mento entre geometria e aritmtica23 assinalavam uma transformao nas idias

    dos matemticos, a saber, que a aritmtica formava uma cincia independente. Em

    ltima anlise, se a aritmtica dependesse da geometria para explicar seus concei-

    tos, ento a aritmtica dependeria dos conceitos de tempo e espao24:

    Neste aspecto [o combate incurso da intuio Kantiana], as motivaes intelectuais de Frege refletem as dos analistas do sculo XIX que buscavam livrar o clculo e a teoria dos reais de qualquer dependncia da geometria e cinemtica. Assim, j em 1817 Bolzano escreveu: os conceitos de tempo e movimento so to estranhos matemtica geral quanto o conceito de espao. (Demopoulos, 1994, pg. 76)25.

    A posio de Demopoulos parece ser bastante plausvel, principalmente

    quando Dedekind (1872) escreve:

    dito freqentemente que o clculo diferencial se ocupa com grandezas cont-nuas, todavia uma explicao desta continuidade no dada em nenhum lugar e mesmo a exposio mais rigorosa do clculo diferencial no fundamenta suas provas na continuidade, mas sim as provas ou apelam, com mais ou menos cons-cincia, s noes geomtricas ou s noes sugeridas pela geometria, ou se ba-seiam em teoremas que nunca so provados de uma maneira puramente aritmti-ca. (Dedekind, 1872, pg. 316 (2)).

    22 O movimento fundacionalista, como entendemos, foi a tentativa, por parte dos matemticos, de fornecer os fundamentos mais seguros e racionais para sua cincia. 23 Por aritmtica aqui, entendemos a aritmtica dos nmeros naturais e anlise real. Quando nos referirmos apenas aritmtica dos nmeros naturais, designaremos da seguinte forma: aritmtica dos nmeros naturais. 24 Uma outra razo para o rigor era garantir a consistncia e coerncia da anlise. 25 Todas as tradues so minhas, exceto aquelas indicadas. No caso da traduo do alemo (De-dekind, Frege), o nmero que ocorre entre parnteses, se ocorrer, a paginao da traduo ingle-sa.

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    Em uma outra passagem bastante sugestiva, Dedekind (1888) escreve:

    Quando eu afirmo que a aritmtica (lgebra, anlise) uma parte da lgica, eu quero dizer que eu considero o conceito de nmero totalmente independente das idias ou das intuies do espao e do tempo; que eu o considero, ao contrrio, um resultado imediato das leis do pensamento [reinen Denkengesetze]. (Dede-kind, 1888, pg. 335 (31)).

    As duas citaes acima parecem corroborar a interpretao de Demopou-

    los. Uma questo interessante a seguinte: por que muitos matemticos do sculo

    XIX defenderam que noes ou conceitos aritmticos no poderiam depender de

    idias ou intuies de espao e tempo? difcil dar uma resposta geral para esta

    questo, mas uma das possveis respostas talvez seria que a aritmtica trata de

    objetos que no so intuitivos, que os conceitos aritmticos so abstratos. Frege

    (1874), por exemplo, escreve:

    Se mostrarmos a um iniciante como somar ngulos, ento ele sabe o que so n-gulos. E est claro tambm que um conceito to compreensivo e abstrato como o conceito de quantidade no pode ser uma intuio. De acordo com isto, existe uma diferena notvel entre a geometria e a aritmtica na maneira pela qual elas estabelecem seus princpios [Grundstze]. Os elementos de todas as construes geomtricas so intuies e a geometria se refere intuio como a origem de seus axiomas [Axiome]. Uma vez que o objeto [Objekt] da aritmtica no tem um carter intuitivo, ento seus princpios no podem ser originados da intuio. (Frege, 1874, pg. 50 (56-7)) 26 27.

    Para Frege, ento, a aritmtica totalmente independente da intuio. Em

    particular, e como a passagem acima aponta, ele est defendendo uma diferena e,

    portanto, um rompimento entre a aritmtica e a geometria28.

    Como afirmamos acima, os matemticos que tinham uma postura funda-

    cionalista tentaram definir conceitos aritmticos por meio de outros conceitos a-

    ritmticos mais bsicos. Um exemplo clssico foi a tentativa de Cauchy definir os

    26 Grundstze pode ser tambm traduzido por axiomas. Porm, na mesma citao h a palavra Axiome, ento, por isso, escolhemos traduzir a palavra Grundstze por princpios. 27 As aspas so minhas. Objekt tem de ser entendido no como objeto no seu sentido ordinrio, isto , da maneira como entendemos que o livro em cima da minha mesa um objeto, mas sim no sentido de objeto de estudo de uma determinada cincia. E nem sempre o objeto de estudo de uma cincia um objeto no sentido ordinrio. Um exemplo, dado at por Frege, que os objetos de estudo da lgica so conceitos e as relaes entre os conceitos, mas como Frege defende em vrios lugares, os conceitos so de natureza distinta dos objetos (Gegenstand) no seu sentido ordinrio. 28 Demopoulos (1998), em um outro lugar, escreve: Uma viso da filosofia da aritmtica de Frege que ganhou uma ampla aceitao aquela que marca a culminao do processo de tornar rigoroso o clculo e a teoria dos nmeros reais; colocando brevemente, Frege buscou fazer para a aritmtica o que Cauchy, Bolzano e outros fizeram para a anlise: a saber, assegurarlhe um fundamento rigoroso. Mas mesmo que o interesse no rigor seja uma clara explicao, isto nos diz quase nada. Na minha viso, a preocupao de Frege com o rigor, como a de Dedekind e outros matemticos do perodo, estava intimamente ligada sua rejeio da intuio no raciocnio aritmtico. (Demo-poulos, 1998, pg. 481).

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    nmeros reais em termos de uma seqncia de nmeros racionais. Estes, por sua

    vez, podem ser definidos como sendo pares (ordenados) de nmeros inteiros; e os

    nmeros inteiros, como sendo pares (ordenados) de nmeros naturais29. O movi-

    mento fundacionalista tinha, portanto, um aspecto reducionista, ou seja, entidades

    aritmticas de um certo tipo (por exemplo, os nmeros reais) eram definidas por

    meio de ou reduzidas a entidades aritmticas de um outro tipo mais bsico (no

    caso, os nmeros racionais). Assim, seguindo a linha de raciocnio acima, toda a

    aritmtica poderia ser definida por meio dos ou reduzida aos nmeros naturais.

    Assim, defender que a aritmtica independente de intuies (em particular, das

    intuies de tempo e espao) defender que nosso conhecimento da aritmtica

    dos nmeros naturais no dependente de intuies (em particular, das intuies

    de tempo e espao).

    O problema que Kant, em Kritik der reinen Vernunft (1a edio - 1781-2a

    edio - 1787), defende que equaes aritmticas simples, como 5+7=12, depen-

    dem da intuio (no caso, uma intuio pura, uma vez que Kant sustenta que os

    juzos da aritmtica so sintticos a priori) para serem provadas. primeira vista poder-se-ia, sem dvida, pensar que a proposio 7+5=12 uma proposio simplesmente analtica, resultante, em virtude do princpio de contra-dio, do conceito da soma de sete e de cinco. Porm, quando se observa de mais perto, verifica-se que o conceito da soma de sete e de cinco nada mais contm do que a reunio dos dois nmeros em um s, pelo que, de modo algum, pensado qual esse nmero nico que rene os dois. O conceito de doze de modo algum ficou pensado pelo simples facto de se ter concebido essa reunio de sete e de cinco e, por mais que analise o conceito que possuo de uma tal soma possvel, no encontrarei nele o nmero doze. Temos de superar estes conceitos, procuran-do a ajuda da intuio que corresponde a um deles, por exemplo, os cinco dedos da mo ou (como Segner na sua aritmtica) cinco pontos, e assim acrescentar, uma a uma, ao conceito de sete, as unidades do nmero cinco dadas na intuio. (Kant, 1787, B 15)30.

    Um representante do movimento fundacionalista poderia responder o se-

    guinte: Kant est errado em sustentar que a aritmtica dos nmeros naturais de-

    pende da intuio e, neste caso, ter-se-ia de dar uma explicao de como conhe-

    cemos as proposies da aritmtica dos nmeros naturais (por exemplo, 5+7=12)

    sem apelar intuio; ou tentar-se-ia reduzir a aritmtica dos nmeros naturais a

    algo mais bsico que no apele explcita ou implicitamente intuio e, neste ca-

    so, afirmar-se-ia que Kant est errado. Note que as duas posies, apesar de serem

    29 Os nmeros complexos podem ser definidos como pares de nmeros reais. 30 A traduo da edio da Fundao Calouste Gulbenkian.

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    bastante parecidas, no so equivalentes. A primeira posio tenta explicar que

    conceitos da aritmtica dos nmeros naturais (por exemplo, os conceitos de nme-

    ro natural, de zero, de sucessor etc.) no dependem da intuio e a explicao de

    tal fato se daria dentro da prpria teoria. A segunda ir mostrar que os conceitos

    da aritmtica dos nmeros naturais podem ser definidos por ou reduzidos a con-

    ceitos mais bsicos que no dependem da intuio. Frege opta pela segunda posi-

    o, ou seja, ele sustentar que os conceitos da aritmtica dos nmeros naturais

    podem ser definidos por ou reduzidos a outros conceitos mais bsicos. claro que

    a primeira posio permanece em aberto, porm no a discutiremos aqui.

    Mas, os conceitos da aritmtica dos nmeros naturais deveriam ser defini-

    dos por ou reduzidos a quais conceitos mais bsicos? Frege ir sugerir uma redu-

    o da aritmtica lgica. Mas, por que a lgica? Primeiro, porque a lgica ana-

    ltica, pelo menos assim defendera Kant31. Uma vez que a lgica analtica, ento

    ela no dependeria da intuio32. Se a reduo da aritmtica lgica for bem-

    sucedida, ento a aritmtica seria analtica e, portanto, no dependeria da intui-

    o33. Alm disso, Frege afirma que a aritmtica se aplica a tudo que pensvel,

    seu escopo de aplicao equivalente ao escopo da lgica e isto seria uma forte

    evidncia de que a aritmtica uma lgica desenvolvida34. Assim, o logicismo de

    Frege, a saber, que a aritmtica dos nmeros naturais tem de ser reduzida lgica,

    uma espcie de corolrio da idia de que a aritmtica no depende da intuio e

    do aspecto reducionista do movimento fundacionalista.

    2.2 O ANALTICO, O SINTTICO, O A PRIORI, O A POSTERIORI

    Como afirmamos na seo 2.1, o logicismo de Frege uma espcie de co-

    rolrio de duas doutrinas em voga no movimento fundacionalista na matemtica

    do sculo XIX a independncia da aritmtica de qualquer espcie de intuio e

    31 Na verdade, existem vrias noes de lgica em Kant. Por exemplo, a lgica pura, a lgica transcendental, a lgica aplicada. Dentre estas, somente a lgica pura considerada analtica por Kant (Cf. Kant (1781) e (1787), A55/B79; A61/B86, A598/B626). 32 Se um juzo depende da intuio, ento, segundo Kant, este juzo sinttico. 33 Isto tambm explica a recusa de Frege de elementos psicolgicos na lgica e na matemtica. Se a lgica dependesse da psicologia, sua tentativa de mostrar que a aritmtica independente da intuio fracassaria. 34 A base da aritmtica mais profunda, parece, do que a de qualquer cincia emprica e, at mesmo, a da geometria. As verdades da aritmtica governam tudo que numervel. Este o mais amplo dos domnios; pois a ele pertence no somente o que real, no somente o que intuitivo, mas tudo que pensvel. As leis dos nmeros no deveriam ento estar conectadas intimamente com as leis do pensamento? (Frege, 1884, 14).

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    a tendncia reducionista. Frege tem de fundamentar os conceitos da aritmtica na

    lgica, uma vez que a lgica analtica e, conseqentemente, no sinttica e

    assim no dependeria da intuio. Frege tem de analisar, ento, os conceitos de

    analtico e sinttico. Entretanto, Frege tambm tem de considerar os conceitos de

    a priori e a posteriori que so conceitos que esto intimamente relacionados aos

    de analtico e sinttico35.

    O trabalho de Frege de 1874 no tem nenhuma referncia ao conceito de

    analtico, nem referncias a Kant. L, ele apenas afirma que o conceito principal

    da aritmtica o de quantidade no intuitivo e que toda a aritmtica deriva-

    da deste conceito36. claro que se a aritmtica derivada conceitualmente, ento

    esta cincia seria, para Kant, analtica37. difcil afirmar se Frege tinha isto em

    mente no seu trabalho de 1874, contudo, cinco anos depois, na Begriffsschrift

    (1879), h uma evidncia que Frege considera a posio de Kant em relao aos

    conceitos de analtico e sinttico.

    No prefcio de Begriffsschrift, Frege afirma que h duas formas de se es-

    tabelecer a verdade de uma proposio, a saber: a) ou perguntando por qual ca-

    minho a proposio em questo foi estabelecida; b) ou de que maneira a mesma

    pode ser mais firmemente estabelecida. A primeira, como ele mesmo coloca, po-

    de ser respondida diferentemente por diferentes pessoas, pois a verdade estabe-

    lecida a partir da gnese do conhecimento da proposio. A segunda mais defi-

    nitiva, pois a verdade estabelecida a partir da natureza interna da proposio.

    Em Begriffsschrift, a preocupao de Frege to somente com a segunda forma

    de se estabelecer a verdade. Em outras palavras, Frege se preocupou em apresen-

    tar a prova ou justificao do conhecimento da verdade de uma proposio. E

    Frege apresenta a seguinte classificao das proposies:

    O mtodo mais rigoroso de prova obviamente o puramente lgico que, descon-siderando as caractersticas particulares das coisas, baseado somente em leis sobre as quais todo conhecimento fundamentado. De acordo com o que fora a-firmado acima, ns dividimos todas as verdades que requeiram uma prova em

    35 Se levarmos a diante a oposio de analtico e sinttico, obteramos quatro combinaes uma das quais, a saber, analtico a posteriori no ocorre. Se decidirmos, como Mill, em favor do a pos-teriori no resta nenhuma escolha, de maneira que, para ns, somente as possibilidades sinttico a priori e analtico faltam ser consideradas. (Frege, 1884, 12). 36 "Se, como mostramos, no encontramos o conceito de quantidade na intuio, mas criamo-lo por ns mesmos, ento estamos justificados em tentar formular sua definio para permitir tantas vezes quanto possvel uma aplicao, a fim de estender o domnio ao qual est sujeita a aritmti-ca". (Frege, 1874, pg. 51(57)). 37 Segundo Kant, um juzo analtico se ele um juzo discursivo, ou seja, um juzo cuja verdade depende apenas dos conceitos do sujeito e do predicado.

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    dois tipos: a prova do primeiro tipo executada puramente por lgica, enquanto a do segundo tem de ser apoiada em fatos empricos. (Frege, 1879, Prefcio).

    A passagem acima parece sugerir uma diviso entre proposies analticas

    e sintticas. As proposies provadas de maneira puramente lgica seriam analti-

    cas e, caso contrrio, as proposies seriam sintticas. Mas, aqui h um problema:

    a definio de Frege no d conta de juzos sintticos a priori. Estes juzos no

    so provados por lgica pura, tampouco precisam de fatos empricos para apoiar

    suas provas. O problema surge porque Frege (1884) defendeu, como Kant, o car-

    ter sinttico a priori da geometria. Poderamos, claro, dizer que somente depois

    da Begriffsschrift, Frege considerou a geometria sinttica a priori e, portanto,

    quando Frege fala de intuio nos seus primeiros trabalhos, ele tinha em mente

    uma intuio emprica38. Entretanto, no h nenhuma evidncia explcita de tal

    fato.

    A citao acima tambm poderia sugerir uma distino entre a priori e a

    posteriori, isto , uma proposio a priori quando provada apenas por leis lgi-

    cas; caso contrrio, a proposio a posteriori. Todavia, essa diviso no oferece

    novamente uma explicao de proposies sintticas a priori, pois, repetimos,

    uma tal proposio no provada por meios puramente lgicos, tampouco se ba-

    seia em fatos empricos. Mas, pelo menos, uma coisa evidente na Begriffssc-

    hrift: proposies (ou juzos) analticas no dependem da intuio39.

    Frege no muito claro, em Begriffsschrift, sobre os conceitos de analti-

    co, sinttico, a priori e a posteriori. A passagem indicada acima apresenta algu-

    mas dificuldades interpretativas. Contudo, em Die Grundlagen der Arithmetik,

    Frege apresentar uma distino mais elaborada entre estes conceitos. Aqui, po-

    deramos conjeturar duas hipteses: (1) ou Frege j aceitava a posio de Kant

    sobre a geometria nos seus primeiros trabalhos e, portanto, ele percebeu que sua

    definio apresentada em Begriffsschrift no era exaustiva; (2) ou Frege passou a

    aceitar a posio de Kant depois da Begriffsschrift e, portanto, uma nova distin-

    o entre estes conceitos era necessria, uma vez que a anterior (dada em Be-

    griffsschrift) no era exaustiva. importante dizer que a distino entre estes

    38 Alm da passagem de Frege (1874) citada acima, h uma no trabalho de 1873: Se considera-mos que toda geometria depende, em ltima anlise, de axiomas que derivam sua validade da natureza de nossas faculdades intuitivas, ento parece justificado questionar o sentido de formas imaginrias, uma vez que lhe atribumos propriedades que freqentemente contradizem toda nossa intuio. (Frege, 1873, pg. 1(3)).

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    conceitos em Die Grundlagen der Arithmetik, como em Begriffsschrift, uma

    distino sobre a justificativa (ou prova) da proposio40 41. Segundo Frege

    (1884), uma proposio analtica se a sua justificao (ou prova) depende ape-

    nas de leis lgicas e definies (tambm lgicas). Uma verdade sinttica se a

    sua justificao depende de alguma lei que no tem carter lgico (poderamos

    chamar tal lei de postulado). A verdade de uma proposio a priori, se na sua

    justificao nenhum apelo feito a fatos particulares, se sua justificao depende

    apenas de leis gerais que nem admitem nem necessitam de uma prova. Caso con-

    trrio, se a justificao de uma proposio depende de um fato particular, ento a

    verdade de uma tal proposio a posteriori. Note que agora Frege est em posi-

    o de defender o carter sinttico a priori da geometria, uma vez que esta cin-

    cia depende dos postulados, que no so leis lgicas, para executar suas provas

    neste caso, a geometria sinttica , mas os postulados so leis gerais que no

    admitem nem precisam de prova neste caso, a geometria a priori. H ainda

    uma srie de questes sobre estas distines de Frege, mas infelizmente no trata-

    remos delas aqui42 43.

    2.3 A NOTAO CONCEITUAL

    Como dissemos acima, Frege defende a idia de que a aritmtica no de-

    pende da intuio (em particular, da intuio pura). Alm disso, Frege sustenta

    (pelo menos at 1903) que a aritmtica redutvel lgica (uma espcie de coro-

    lrio). Esta ltima tese implica ento que os conceitos da aritmtica devem ser

    definidos por meios puramente lgicos e que seus teoremas so provados a partir

    das leis da lgica e definies aritmticas (lgicas).

    39 Cf. Frege (1879), 23. 40 Estas distines de a priori, a posteriori, sinttico e analtico, na minha concepo, no dizem respeito ao contedo dos juzos, mas a justificao para se fazer um juzo. (Frege, 1884, 3). 41 O objetivo de Frege mostrar que a distino entre analtico, sinttico, a priori e a posteriori no uma distino subjetiva, como seria o caso se estes conceitos dependessem do contedo das proposies, ou melhor, da maneira pela qual apreendemos estes contedos. 42 O leitor interessado pode ler Dummett (1991). 43 As distines apresentadas por Frege (1884) sero teis mais tarde quando discutirmos a propos-ta de Wright. Adiantando, Wright, como disse na introduo, ir propor a adio do Princpio de Hume lgica de segunda ordem, e reivindicar o logicismo da aritmtica, posto que a teoria re-sultante mais definies Fregeanas de Zero, Sucessor e Nmero Natural provam os axiomas da aritmtica de segunda ordem. Porm, o Princpio de Hume, como iremos ver, no nem uma defi-nio, nem uma lei lgica, portanto a teoria resultante no seria analtica segundo as distines acima. Na verdade, poderamos reivindicar que a aritmtica sinttica a priori, uma vez que ela depende de uma lei geral (o Princpio de Hume) que no admite prova ( claro, estamos levando

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    No entanto, para executar esta tarefa, Frege necessitava de uma notao ou

    de uma linguagem capaz de expressar as relaes dos elementos que participam

    da justificao da verdade de uma proposio de maneira no ambgua. Tal lin-

    guagem tinha de ser suficientemente clara, para que na cadeia de deduo nada de

    estranho prova pudesse entrar despercebido. Esta linguagem no poderia ser a

    linguagem ordinria, pois a mesma , segundo Frege, ambgua e inadequada44, e

    no serve para estabelecer uma deduo totalmente livre de lacunas.

    Vale a pena dizer que Frege no defende a superioridade de uma lingua-

    gem artificial sobre a linguagem natural. Segundo ele, a linguagem artificial, livre

    de ambigidade, superior linguagem natural quando aquela utilizada para

    propsitos cientficos. A cincia necessita de uma linguagem na qual seus termos

    no variem de significado de acordo com o contexto, ou seja, a linguagem deve

    manter-se rgida. Todavia, se o objetivo a arte, por exemplo, uma comdia,

    essencial uma linguagem que seja ambgua e favorea o duplo sentido. Neste ca-

    so, a linguagem natural superior linguagem artificial.

    Essa lngua artificial (denominada de notao conceitual) , como o

    prprio Frege reconhece, inspirada na Caracterstica Universal de Leibniz. No

    entanto, Frege acredita que Leibniz superestimou as vantagens de um tal mtodo

    de notao. Isto porque na viso de Leibniz a Caracterstica Universal seria um

    instrumento capaz de expressar todos os pensamentos humanos, independente-

    mente da rea. Ela seria capaz de expressar pensamentos tanto da aritmtica

    quanto da moral, tanto da cincia quanto da metafsica. Frege pretende aplicar sua

    notao conceitual apenas aritmtica45.

    Vale ento lembrar alguns dos aspectos defendidos por Leibniz sobre a

    Caracterstica Universal. Esta linguagem teria duas faces: por um lado, ela fun-

    cionaria como um clculo rationator, isto , a partir de um determinado conjunto

    em conta a definio de Frege de sinttico a priori). Wright ter de modificar a concepo de ana-ltico, se ele deseja mostrar que a aritmtica analtica. 44 Tome, por exemplo, a palavra ou nas seguintes sentenas: eu vou ao cinema ou eu vou ao teatro e o livro est na mesa ou a caneta est na cadeira. Na primeira sentena, ou est sendo usado no sentido exclusivo, isto , se a sentena for verdadeira, ento uma das subsentenas verdadeira, mas no o caso de ambas serem verdadeiras. Na segunda sentena, ou inclusivo, ou seja, se a sentena for verdadeira, ento uma das subsentenas verdadeira; ou ambas subsen-tenas so verdadeiras. 45 A aritmtica, como disse no incio, foi o ponto de partida da cadeia de pensamento que me levou notao conceitual. Portanto, eu pretendo aplic-la primeiro a esta cincia, tentando anali-sar seus conceitos e fornecer um profundo fundamento para seus teoremas. (Frege, 1879, Pref-cio).

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    de definies e axiomas (que expressariam os conceitos mais simples) seria poss-

    vel chegar s noes mais complexas (ou conceitos mais complexos). Por outro

    lado, ela funcionaria como uma lngua filosfica capaz de expressar os pensamen-

    tos humanos e suas inter-relaes mais apuradamente e sem ambigidades.

    Ora, uma tese subjacente Caracterstica Universal que os sinais so

    indispensveis (sinais aqui podem ser entendidos por palavras, figuras, numerais,

    diagramas etc.), porque atravs deles que comunicamos (de maneira objetiva)

    nossos pensamentos (ou idias, na terminologia de Leibniz). Tais sinais no so

    marcas convencionais, como Locke defendera em An Essay concerning Human

    Understanding (1690), de idias subjetivas de um "falante", mas sim marcas de

    idias objetivas que todos os animais racionais (ou "falantes") so capazes de en-

    tender (se estiverem bastante familiarizados com as mesmas).

    Podemos ento expressar resumidamente, como Donald Rutherford susten-

    ta (1995), os trs pontos centrais da Caracterstica Universal, a saber:

    1) apresentar os conceitos primitivos (ou bsicos) a partir dos quais os demais (os

    mais complexos) so obtidos;

    2) imaginar sinais adequados para representar cada um desses conceitos primiti-

    vos;

    3) e formular uma regra para combinao destes sinais.

    Exemplificando a idia de Leibniz, tome o conceito ser humano. Seguindo

    a prpria anlise Leibniziana, podemos desmembrar tal conceito em partes mais

    primitivas, a saber, ser animal e ser racional. Assim o conceito ser humano um

    conceito complexo e ser animal e ser racional, conceitos mais bsicos. Estipulan-

    do ento que estes ltimos no podem ser desmembrados em conceitos mais sim-

    ples, basta-nos ento por (2) estipular algum sinal adequado para tais conceitos.

    Sejam Ax e Rx 46 os smbolos para ser animal e para ser racional, respectivamen-

    te. Falta ento estipular alguma regra para combinar os sinais de tal forma que,

    por esta combinao, seja expresso o conceito requerido (isto , ser humano). Um

    bom candidato para esta regra pode ser a conjuno lgica que ser representada

    pelo sinal de multiplicao (.). Temos assim que ser humano = Ax.Rx (humano ,

    por definio, animal e racional, ou animal racional). No pretendemos entrar em

    muitos detalhes aqui, mas Leibniz, nos escritos entre 1678-167947, usa como si-

    46 Supondo que esses smbolos so sinais adequados. 47 Leibniz (1679). "Samples of the Numerical Characteristic".

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    nais adequados para representar os conceitos primitivos nmeros primos (isto

    porque qualquer nmero integral pode ser fatorado unicamente como um mltiplo

    de um primo) e a multiplicao numrica como regra de combinao. Assumindo

    este modelo, o exemplo dado acima poderia ficar assim: para os conceitos ser

    animal e ser racional daramos, respectivamente, os sinais 2 e 3 (nmeros pri-

    mos). Assim, o conceito ser humano teria como sinal caracterstico (ou como

    Leibniz diz, nmero caracterstico) o nmero 6 (ou seja, 2x3). Portanto, um con-

    ceito que tem um sinal caracterstico 22 um conceito que contm o conceito ser

    animal (uma vez que o nmero 22 mltiplo de 2)48.

    Voltando a Frege, uma vez que ele se inspira na Caracterstica Universal,

    ento ele deve manter, de certa forma, os trs princpios que foram apresentados

    acima. Eles so, para recapitular, 1) apresentar os conceitos primitivos da sua no-

    tao; 2) imaginar os sinais adequados para represent-los; e 3) formular regras

    para combinao dos mesmos. Na prxima seo, exporemos de maneira mais

    exata como Frege elabora sua notao conceitual.

    2.4- BEGRIFFSSCHRIFT

    Begriffsschrift foi o primeiro livro escrito por Frege. Neste livro, Frege

    pretende executar parte de seu programa logicista, tentando mostrar que o concei-

    to de ordenao-em-uma-seqncia pode ser expresso ou reduzido ao conceito de

    implicao lgica49. Mas, Frege necessitava elaborar uma linguagem adequada

    para expressar os conceitos matemticos (no caso, conceitos da aritmtica). E tal

    linguagem foi inspirada, como tambm dissemos, na Caracterstica Universal de

    Leibniz. Como dissemos acima, Frege precisa, ento, apresentar e explicar seus

    conceitos primitivos, imaginar sinais adequados para estes conceitos e, enfim,

    formular regras de combinao destes sinais. Esta tarefa executada na parte 1 de

    Begriffsschrift. O objetivo central de Frege (reduzir o conceito de ordenao-em-

    uma-seqncia ao conceito de implicao lgica) realizado na parte 3 de Be-

    griffsschrift. E na parte 2 deste livro, Frege apresenta as leis lgicas ou do pensa-

    mento (puro).

    48 Na verdade, o clculo de Leibniz um pouco mais complicado. 49 Aqui, seguimos a sugesto de Ruffino (1998) e traduzimos logische Folge por implicao lgi-ca. Como veremos mais adiante, Frege define noes de ordenao-em-uma-seqncia por meio de smbolos de implicao e quantificadores.

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  • 24

    2.4.1- OS CONCEITOS PRIMITIVOS

    Frege, na tentativa de analisar os conceitos da aritmtica, como j disse-

    mos, encontrou na linguagem natural uma fonte de impreciso e erro. Ele ento

    foi obrigado a analisar as sentenas da linguagem natural para estabelecer nas

    mesmas aquilo que era essencial em uma inferncia (lgica). Para explicar tal pro-

    cedimento em Begriffsschrift e responder as crticas feitas a sua notao conceitu-

    al, Frege (1880-1) escreve:

    Como oposto a isto [diviso das proposies da lgica em primrias e secund-rias], eu parto dos juzos e seus contedos, e no de conceitos. A relao hipotti-ca precisamente definida entre contedos de juzos possveis tem importncia si-milar para os fundamentos de minha notao conceitual como a identidade de ex-tenso tem para a lgica Booleana. (Frege, 1880-1, pg. 17 (pg. 16)).

    Ora, Frege, na passagem acima, parece assumir que o juzo a unidade da

    linguagem. E intimamente ligados aos juzos esto os contedos conceituais50.

    ento analisando os contedos conceituais dos juzos que Frege obtm seus con-

    ceitos (lgicos) primitivos. Por exemplo, tome o juzo categrico Todo humano

    animal. Segundo Frege, o contedo conceitual deste juzo expressa uma relao

    de subordinao entre conceitos, ou seja, o conceito humano subordinado ao

    conceito animal. Isto quer dizer que para qualquer coisa se ela humana, ento

    ela animal. Assim, Frege chega a dois conceitos que considera como sendo pri-

    mitivos: a implicao entre contedos conceituais e a generalizao universal dos

    contedos (ou quantificao universal)51 expressos pelas palavras se..., ento e

    para qualquer coisa, respectivamente. Da mesma maneira, podemos analisar o

    contedo conceitual expresso pelo juzo categrico Nenhum humano imortal.

    Novamente, tal contedo expressa uma relao entre os conceitos humano e imor-

    tal, a saber, que ambos so disjuntos. Isto quer dizer que para toda coisa se ela

    humana, ento ela no imortal. Note que agora apareceu a palavra no. Frege

    tambm toma a negao como sendo um conceito (lgico) primitivo.

    At agora, identificamos trs conceitos primitivos que Frege reconhece em

    Begriffsschrift. Alm desses trs conceitos, Frege reconhece tambm a noo de

    contedo conceitual e de juzo e apresenta os smbolos que os representam. Na 2

    50 Frege no nos diz o que um contedo conceitual. Ele apenas nos diz quando dois contedos conceituais so iguais, a saber, quando eles podem ser substitudos em uma inferncia preservando a dedutibilidade. 51 Note ento que para Frege no o juzo que universal, mas o contedo conceitual de um juzo que universal.

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  • 25

    de Begriffsschrift, Frege afirma que um juzo ser sempre expresso na sua notao

    conceitual pelo seguinte sinal:

    assim, por exemplo, o sinal

    indica que A o caso52 (hoje em dia, diramos que A verdadeiro). Agora, se for

    omitido o trao vertical, o juzo se transforma em mera combinao de idias.

    Assim, o smbolo

    no expressa nenhum juzo e significa apenas, segundo Frege, a circunstncia em

    que A ocorre. O trao vertical denominado por Frege de trao de juzo; o trao

    horizontal, o de contedo.

    O smbolo para a implicao entre contedos conceituais apresentado na

    5. Seguindo seu exemplo, sejam A e B contedos judicveis, ento h quatro

    possibilidades possveis, a saber, (1) A o caso e B o caso; (2) A o caso e B

    no o caso; (3) A no o caso e B o caso; (4) A no o caso e B no o caso.

    Segundo Frege, o smbolo

    significa que a possibilidade (2) no ocorre. Hoje em dia, poderamos traduzir o

    smbolo acima por AB. Note que na notao de Frege a implicao lida de baixo para cima.

    Na 7, introduzido o smbolo da negao. Seja, por exemplo, a proposi-

    o falsa 2 + 2= 5, ento a negao desta proposio verdadeira. Se a expresso

    2 + 2 = 5 for denominada por A, ento, na notao de Frege, o smbolo

    significa que A no o caso (ou no-A o caso). A negao simbolizada pelo

    trao vertical no meio do trao de contedo.

    Na 11, Frege introduz a notao para a quantificao universal. Ele es-

    creve:

    Na expresso de um juzo, podemos sempre considerar a combinao de smbo-los direita de como uma funo de um dos smbolos que ocorre nela. Se

    52 Na verdade, este smbolo tambm indica que afirmamos que A o caso.

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  • 26

    substituirmos este argumento por uma letra germnica e introduzirmos no conte-do uma concavidade contendo a mesma letra germnica, como em

    ento isto significa o juzo que a funo um fato para tudo que possamos tomar como seu argumento. (Frege, 1879, 11). 53

    Na notao lgica atual, o smbolo acima expresso por xFx. Na passa-

    gem supracitada, Frege diz que o smbolo direita do smbolo de juzo pode ser

    considerado como uma funo de um dos smbolos que ocorre nele. Chegamos a

    dois outros conceitos que Frege considera como sendo primitivos: os conceitos de

    funo e argumento. Frege estipula estes conceitos como primitivos novamente

    analisando os contedos conceituais dos juzos. Seja, por exemplo, o contedo

    conceitual do juzo Plato mortal. Este contedo analisado por Frege como

    expressando que um determinado argumento (Plato) cai sob uma determinada

    funo (ser mortal). No necessrio que o argumento seja Plato e a funo seja

    ser mortal no juzo em questo. Poderamos analisar tal juzo da seguinte maneira:

    o argumento sendo ser mortal e a funo, -Plato (ser instanciado por Pla-to)54.

    Outros juzos mais complexos podem ser analisados tambm dessa manei-

    ra. Por exemplo, Plato foi discpulo de Scrates pode ser analisado, segundo

    Frege, como se segue: Plato (argumento) e ser discpulo de Scrates (funo);

    Scrates (argumento) e ser mestre de Plato (funo); Plato, Scrates55 (argu-

    mentos) e ser discpulo de (funo56); Scrates, Plato (argumentos) e ser mestre

    de (funo)57.

    Na 10, Frege introduz os smbolos para argumento e funo. O argumen-

    to ser designado por letras maisculas latinas (A,B,C,...); a funo, pelas letras

    gregas (, , ...). Assim, (A) expressa, segundo Frege, uma funo indeter-minada de argumento A. No caso de uma relao, o smbolo introduzido por

    Frege (A,B). Se adicionarmos o smbolo de juzo a (A), ou seja, 53No tenho em meu computador a letra germnica, ento escrevemos o smbolo utilizando a Alle-gro BT. 54 No caso, -Plato uma funo de segunda ordem sob a qual cai uma funo de primeira or-dem (no caso acima, ser mortal). 55 Aqui, claro, temos um par ordenado . Note que o par inverso no satisfaz a funo ser discpulo de. 56 Frege tambm denomina funes binrias de relaes. 57 Novamente, poderamos analisar a mesma sentena como expressando que uma determinada relao (ser discpulo de) cai sob a funo de 2a ordem PlatoRScrates. Ou ento que a relao ser mestre de cai sob a funo de 2a ordem Scrates RPlato.

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  • 27

    isto significa que A tem a propriedade . No caso de uma relao (A,B), o sm-bolo

    significa que B se encontra na relao com A, ou B o resultado da aplicao do procedimento ao argumento A. Finalmente, apresentaremos o ltimo conceito primitivo que Frege consi-

    dera em Begriffsschrift, a saber, a noo de identidade de contedos (8). Este

    conceito, diferente do conceito de negao, de implicao, de generalizao, de

    argumento e de funo, no obtido atravs da anlise dos contedos conceituais

    dos juzos e, diferente dos trs primeiros conceitos primitivos, no relaciona os

    contedos conceituais, mas nomes dados aos contedos conceituais. Assim o juzo

    significa que o smbolo A e o smbolo B tm o mesmo contedo conceitual e, por-

    tanto, podemos sempre substituir A por B e vice-versa. O propsito para introdu-

    o desse smbolo se tornar mais claro quando discutirmos a parte 3 de Begriffss-

    chrift. A noo de identidade de contedo desempenhar um papel importante na

    introduo das definies de conceitos matemticos. O problema que a noo de

    identidade de contedos bastante ambgua, pois, na parte 2 de Begriffsschrift, ela

    parece desempenhar o papel da identidade entre objetos quando o seguinte axioma

    apresentado: (ab(f(a))f(b))58 (ou seja, se a igual a b e se a tem a propri-edade f, ento b tem esta mesma propriedade). Mas, como veremos, parece existir

    uma certa incompatibilidade entre a verso lgica da lei acima e a maneira como

    Frege geralmente a usa59.

    Frege, ainda na parte 1 de Begriffsschrift, apresenta sua regra de inferncia

    (6). Tomemos o seu exemplo: sejam os juzos

    e

    ento podemos inferir

    58 Veremos que Frege colocar, na maioria das vezes, nos lugares de a e b os smbolos que sero definidos na parte 3 de Begriffsschrift. a, s vezes, o definiens e b, o definiendum das definies apresentadas l. Assim, em ltima anlise, veremos que a partir de uma definio ab, Frege de-duz via (ab(f(a))f(b)) que ab. A volta, ou seja, ba obtida via (ab(f(b))f(a)). Mos-traremos isso mais tarde. 59 Chateaubriand (2001) no captulo 8 tambm indica algumas ambigidades da noo de igualda-de de contedos (com relao noo de verdade).

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  • 28

    pois, o primeiro juzo significa que a possibilidade de A no ser o caso e B ser o

    caso no ocorre. Mas, o segundo juzo significa que B o caso. Portanto, A tem

    de ser o caso, pois, caso contrrio, contradiramos o primeiro juzo60. Frege apre-

    senta o modus ponens como a sua nica regra de inferncia, mas ele tambm usa,

    implicitamente, a regra de substituio61. Na 11, Frege tambm expressa a regra

    de generalizao universal e utiliza-a nas derivaes feitas na parte 3 de Begriffss-

    chrift: Por exemplo, ao invs de

    poderamos colocar se a ocorre somente no lugar de argumento de X(a). (Frege, 1879, 11).

    Frege assume que as letras latinas minsculas (a, b, c,...) desempenharo o

    papel de variveis. s vezes, as letras do incio do alfabeto (no caso, a, b, c e d)

    sero variveis proposicionais (ou variveis para contedos conceituais), s vezes,

    variveis de argumentos (ou objectual)62. As letras f, g, h sero variveis de fun-

    es. s vezes, f tambm ser uma varivel de relao (no caso, binria). A letra

    latina maiscula F ser uma varivel de funo e ser usada nas definies dadas

    na parte 3 de Begriffsschrift. As letras latinas minsculas x, y, z sero variveis de

    argumentos (ou objectuais).

    Na primeira parte de Begriffsschrift, Frege apresenta e explica63 os concei-

    tos que ele toma como sendo primitivos (a primeira tarefa estipulada acima), as-

    sume smbolos adequados para expressar estes conceitos (segunda tarefa) e apre-

    60 Esta regra conhecida por modus ponens. 61 A regra de substituio para conceitos equivalente ao axioma de compreenso de segunda ordem. Uma vez que Frege utiliza regra de substituio para conceitos, poderamos assumir expli-citamente o axioma de compreenso de segunda ordem. Assim, o sistema formal de Begriffsschrift pode ser tomado como um sistema de lgica de segunda ordem. 62 Na verdade, isso se deve a ambigidade da noo de identidade de contedo. Como veremos, apesar de parecer que a, b, c se comportem como variveis de argumento, algumas dedues, que sero feitas, iro assumir que a, b e c so determinados smbolos que expressam o mesmo conte-do conceitual, ou seja, a, b e c seriam variveis proposicionais. 63 Na traduo de Bynum (1972), o ttulo da primeira parte foi denominado de Definio dos Smbolos. Claramente, Frege no define os smbolos de implicao, generalizao, negao, contedo conceitual, mas explica o sentido no qual eles teriam de ser entendidos. O ttulo da pri-meira seo em alemo Erklrung der Bezeichnungen. Erklrung pode ser traduzido por defi-nio, mas tambm pode ser entendido como explicao (ou esclarecimento). Os conceitos que poderiam ser definidos, segundo Frege, seriam a conjuno e a disjuno. Estes conceitos poderi-am ser definidos por meio da negao e implicao. Assim, a conjuno poderia ser definida como 5(A5B) (o caso de A ser o caso e B ser o caso o nico que ocorre) e a disjuno, como 5AB (o caso de A no ser o caso e B no ser o caso no ocorre).

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  • 29

    senta uma regra de inferncia (a terceira tarefa). A partir dos conceitos primitivos,

    Frege poder expressar as verdades lgicas ou do pensamento puro e, com a regra

    de inferncia, deduzir outras verdades lgicas. Veremos, rapidamente, como ele

    faz isso na prxima seo.

    2.4.2- AS LEIS DO PENSAMENTO

    No incio da parte 2 de Begriffsschrift, Frege escreve: Agora neste captulo, alguns juzos do pensamento puro que podem ser expressos na notao conceitual tm de s-lo em smbolos. Parece natural deduzir o mais complexo destes juzos a partir de outros mais simples, no para os tornar mais certos, o que geralmente seria desnecessrio, mas a fim de explicitar as relaes entre os juzos. Conhecer meramente as leis no obviamente o mesmo que en-tender como algumas delas esto implicitamente contidas em outras. Desta ma-neira, obtemos um pequeno nmero de leis em que (se adicionarmos as leis con-tidas na regra) est includo, embora de forma embrionria, o contedo delas [leis] todas. E uma vantagem do modo dedutivo de apresentao, pois nos ensi-na a reconhecer este ncleo [no desenvolvido] de contedos. Porque no pode-mos enumerar todo nmero ilimitado de leis que podem ser estabelecidas, obte-mos a completude somente procurando por aquelas que, potencialmente, impli-cam todas as outras. (Frege, 1879, 13).

    Na passagem acima, Frege expe sua ttica, a saber, identificar quais as

    leis lgicas mais bsicas (os axiomas) e a partir destas, com a regra de inferncia,

    obter (calcular, como diria Leibniz) leis lgicas mais complexas. Frege escolhe,

    para constituir seu conjunto de axiomas, as seguintes leis:

    (1) (2) (3) (4)

    (5) (6) (7)

    (8) (9)

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  • 30

    As leis acima64 so combinaes dos conceitos primitivos mencionados

    anteriormente. Por exemplo, a primeira, a segunda e a terceira leis s utilizam o

    conceito de implicao. A quarta, a quinta e a sexta so expressas por meio da

    implicao e negao. A stima e a oitava so expressas por meio da implicao,

    identidade (de contedo), funo e argumento. E, finalmente, a nona utiliza os

    conceitos de implicao, quantificao, funo e argumento.

    Estas nove leis so lgicas, segundo Frege, porque neg-las implicaria em

    uma contradio. Por exemplo: tome a primeira lei acima. Temos quatro possibi-

    lidades, a saber, 1) a o caso e ba o caso; 2) a o caso e ba no o caso; 3) a no o caso e ba o caso; e 4) a no o caso e ba no o caso. O juzo apresentado na primeira lei exclui a possibilidade (2), ou seja, a possibilidade de a

    ser o caso e ba no ser o caso. Assim, se assumirmos que a primeira lei no lgica, deveramos assumir a possibilidade (2). Contudo, se assumirmos a possibi-

    lidade (2), teremos de assumir que b o caso e a no o caso (isto porque ba no o caso). Assim, para que a primeira lei no seja o caso, a tem de ser o caso e

    no ser o caso ao mesmo tempo, contradio. Em ltima anlise, Frege justifica o

    carter lgico de seus axiomas em Begriffsschrift sempre apelando ao princpio de

    no-contradio65 66.

    Frege assume implicitamente algumas leis que hoje compem a meta-

    teoria. Por exemplo, Frege assume que se A uma lei lgica, ento A, que ob-

    tida a partir de A, substituindo-se algumas ou todas as ocorrncias das variveis

    proposicionais por frmulas, tambm uma lei lgica. Por exemplo, assuma a

    primeira lei, a saber, (a(ba)) (A). Se substituirmos em (A), b por ab, obte-

    64 Em notao lgica atual: (1) (a(ba)); (2) ((c(ba))((cb)(ca))); (3) ((d(ba))(b(da))); (4) ((ba)(ab)); (5) (aa); (6) (aa); (7) ((c=d)(f(c)f(d))); (8) (c=c); e (9) ((x)f(x)f(a)). 65 Isto importante porque mais tarde Frege introduzir, parece, uma outra noo de lei lgica, a saber, auto-evidncia. Adiantando, Frege em Funktion und Begriff (1891) afirmar, implicita-mente, que a Lei Bsica V uma lei lgica, posto que o lado direito da igualdade tem o mesmo sentido que o do lado esquerdo. Talvez Frege percebera que a Lei Bsica V no preenchia a exi-gncia estipulada em Begriffsschrift e at mesmo em Die Grundlagen der Arithmetik. 66 A lei lgica (9), hoje em dia, est sendo discutida. Isto porque ela nem sempre verdadeira. Assuma, por exemplo, que seu sistema lgico livre e aceita termos singulares que no denotam. Portanto, xFxFa no ser verdadeiro se a no tem denotao. Na verdade, xFxFa no ser nem verdadeira nem falsa. interessante notar que nos sistemas de lgicas atuais assumido que o universo de discurso no vazio, pois, caso contrrio, xFxFa no seria vlida ou verdadeira em todos os domnios, uma vez que em um domnio vazio, ela tambm nem verdadeira nem falsa.

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  • 31

    mos ento (a((ab)a)) (A)67. Note que (a((ab)a)) tambm uma lei lgica. Podemos assumir esta lei como uma regra de inferncia: a regra da

    substituio68.

    Frege tambm assume implicitamente que a regra de modus ponens pre-

    serva a logicidade. Ou seja, todas as leis lgicas derivadas dos axiomas mais re-

    gras de inferncia so lgicas tambm. Hoje h um meta-teorema que diz que se A

    uma tautologia e AB uma tautologia, ento B uma tautologia, isto , a re-gra de modus ponens preserva a tautologicidade69 70.

    Ele tambm assume implicitamente uma regra de substituio de funes.

    Por exemplo, tome a lei lgica (9), a saber, xFxFa. Poderamos substituir f(A) por (h (A) (g(A) f(A))). Assim, obteramos x (h(x) (g(x)f(x)))(h(a)(g(a)f(a))). Como indicamos em uma nota, a regra de substituio para conceitos equivalente ao axioma de compreenso de segunda

    ordem (na verdade, um esquema de axioma) que pode ser posto nos seguintes

    termos: Rnx1,..., xn (Rn x1,..., xnA(x)), onde A qualquer frmula e R no o-corre livre em A.

    O sistema lgico apresentado em Begriffsschrift interpretado como um

    sistema lgico de segunda ordem e com o axioma da compreenso impredicativo

    um sistema lgico adequado para a derivao dos axiomas da aritmtica de De-

    dekind-Peano. Na prxima seo, apresentaremos as definies lgicas de orde-

    nao-em-uma-seqncia e discutiremos a derivao de alguns teoremas a partir

    das definies e leis lgicas.

    2.4.3 - REDUO DO CONCEITO DE ORDENAO-EM-UMA-SEQNCIA AO CONCEITO DE IMPLICAO LGICA

    Como dissemos na seo 2.4, o objetivo central de Frege em Begriffssc-

    hrift era mostrar que o conceito de uma ordenao-em-uma-seqncia poderia ser

    reduzido ao conceito de implicao lgica. Nesta subseo, apresentaremos estas

    definies e discutiremos uma questo relacionada identidade de contedo.

    67 Poderamos substituir todas as ocorrncias de variveis em (a(ba)). 68 Esta regra vale para as primeiras seis leis que compem o clculo proposicional. 69 No difcil provar isto: assuma que A e AB so tautologias e B no uma tautologia. Se B no uma tautologia, B falso para alguma valorao. Mas, uma vez que B falso para alguma valorao e A uma tautologia, ento na valorao em questo AB falso. Portanto, se B no uma tautologia, ento AB no uma tautologia, contrariando a hiptese. 70 Isto vale para as seis primeiras leis que compem o clculo proposicional.

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  • 32

    As quatro definies de conceitos matemticos (no caso, conceitos da a-

    ritmtica) a partir das quais, juntamente com as leis lgicas (apresentadas na parte

    2), so obtidos outros conceitos matemticos bastante interessantes so (na nota-

    o conceitual) 71:

    Antes de explicarmos o significado dos smbolos acima, faremos algumas

    observaes gerais sobre estas definies. Primeiramente, note que no lado es-

    querdo do smbolo h somente os smbolos que foram introduzidos para re-presentar os conceitos primitivos (implicao, negao, quantificao, funo,

    relao). E no lado direito, h smbolos que no foram introduzidos anteriormente.

    Alm disso, aparece no incio de cada definio o smbolo

    71 As definies a seguir so apresentadas nas sees 24, 26, 29 e 31 de Begriffsschrift, respecti-

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  • 33

    Este smbolo, diferente do smbolo de juzo, no indica que o contedo que se

    segue est sendo julgado, mas sim estipulado. Assim, poderamos traduzir este

    smbolo por seja de agora em diante tal coisa. Em ltima anlise, as definies

    acima estipulam que os smbolos que ocorrem direita do smbolo de igualdade

    (de contedos) tm o mesmo contedo conceitual que os smbolos que ocorrem

    esquerda do smbolo de identidade (de contedos)72. E uma vez que uma definio

    uma estipulao, ento, segundo Frege, nenhum juzo feito (em particular,

    nenhum juzo sinttico). Contudo, somente juzos entram na cadeia de dedues e,

    portanto, Frege tem de transformar a estipulao acima em um juzo. Segundo

    Frege, uma vez que estipulado que ambos os smbolos que ocorrem direita e

    esquerda de tm o mesmo contedo conceitual, ento seu sentido fixado e, portanto, esta estipulao pode ser transformada em um juzo e, neste caso, um

    juzo analtico (pois foi estabelecido que tais smbolos representam o mesmo con-

    tedo conceitual). Assim, segundo Frege, uma vez que as definies so transfor-

    madas em juzos analticos, segue-se ento que os juzos derivados das definies

    juntamente com as leis lgicas (segundo as regras de inferncias apresentadas) so

    tambm analticos. Frege interpreta, parece, a noo de identidade (de contedos)

    como relacionando os nomes dados aos contedos e no os prprios contedos

    para mostrar que suas definies so analticas. Se a identidade (de contedos)

    relacionasse os prprios contedos, ento um Kantiano poderia reivindicar que o

    juzo apresentado nas definies seria sinttico. Na 8, temos algumas evidncias

    textuais73.

    Examinemos agora as definies individualmente. A primeira definio

    pode ser traduzida em palavras assim: para todo objeto b, se b tem a propriedade

    F, ento para todo objeto a, se a est na relao f com b, ento a tem a propriedade

    F. Frege define em (1) a relao de hereditariedade. Podemos entender a defini-

    o (1) como afirmando que a propriedade F hereditria na relao f, quando F e

    vamente. 72 Poderamos entender tambm as definies de Frege da seguinte maneira: o smbolo que ocorre direita do smbolo de igualdade de contedo uma abreviao do smbolo que ocorre esquerda. 73 Mas, o juzo requer, para sua expresso, um smbolo para identidade de contedos no intuito de combinar dois nomes. Segue-se disto que diferentes nomes para o mesmo contedo nem sempre so meramente uma questo indiferente de forma; mas, ao contrrio, se eles so associados a dife-rentes modos de determinao, eles atingem o corao da questo. Neste caso, o juzo para identi-dade de contedo sinttico no sentido Kantiano.(Frege, 1879, 8).

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  • 34

    f satisfazem a condio estabelecida acima. Frege est definindo a seguinte rela-

    o de segunda ordem (na sua notao conceitual)

    sob a qual caem pares ordenados do tipo 74 (F sendo uma propriedade, f uma

    relao). Na notao lgica atual, a definio da relao de hereditariedade pode-

    ria ser dada assim: ba(Fb &bfaFa)Her(F,f) (onde, Her(F,f) significa que F hereditria na relao f).

    A segunda definio a do ancestral forte. Em palavras, ela diz que pa-

    ra toda propriedade F, se F hereditria em uma relao f e se para todo objeto a,

    se a est na relao f com um objeto qualquer x, ento a tem a propriedade F, en-

    to um objeto qualquer y tem a propriedade F. Em outras palavras, podemos di-

    zer que y se segue aps x na relao f. Aqui, Frege est definindo a relao de

    primeira ordem seguir-se aps em uma relao f sob a qual caem pares ordenados

    de objetos . Na notao conceitual de Frege, este conceito seria

    Na notao lgica atual, a definio desta relao poderia ser:

    F((Her(F,f)&a (f(x,a) Fa))Fy)xf*y75 (onde, xf*y significa que y se segue aps x na seqncia f ou ento, se preferir, x precede y na seqncia f).

    A terceira definio a definio do ancestral fraco. Poderamos ler esta

    definio como se segue: ou z se segue aps x em uma relao f ou z igual a

    74 Os smbolos e indicam os lugares dos argumentos. 75 Frege no estipula, em Begriffsschrift, a quantificao sobre propriedades. O conceito de quanti-ficao uma funo de segunda ordem sob o qual caem funes de primeira ordem (em Begriffsschrift). Contudo, quando chegamos a este ponto, vemos que, em realidade, o conceito de quantificao uma funo de segunda ordem em diante. No caso da definio (2), temos um conceito de segunda ordem caindo sob o conceito de terceira ordem representado por F......... No sabemos dizer se, em Begriffsschrift, Frege tinha percebido este fato.

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  • 35

    x. Aqui, Frege est definindo a relao de primeira ordem pertencer a uma se-

    qncia f iniciada por76 sob a qual caem pares de objetos . Na notao con-

    ceitual de Frege, este conceito seria representado por

    Na notao lgica atual, poderamos definir esta relao como se segue:

    (xf*z v x=z)xf*=z (onde xf*=z significa: z se segue aps x na seqncia f ou z igual a x). Aqui h um problema interpretativo. Frege explicou que o smbolo de

    igualdade de contedo no relaciona contedos conceituais, mas sim nomes dados

    a estes contedos. A questo que na definio do ancestral fraco, o smbolo

    funciona como uma igualdade que relaciona dois objetos e no os nomes des-ses objetos77.

    Finalmente, a quarta definio a definio de funo. Em palavras, esta

    definio nos diz que para todo objeto e, b e a, se e est na relao f com b e a

    est na relao f com b, ento a igual a e. Aqui, definido ento uma proprie-

    dade de segunda ordem funcionalidade sob a qual caem relaes de primeira or-

    dem (satisfazendo, claro, a condio estabelecida acima)78. Esta propriedade

    pode ser representada na notao conceitual assim

    Na notao lgica atual, poderamos definir esta propriedade da seguinte

    maneira: eba(bfe &bfaa=e)F(f) (onde F(f) significa f uma funo)79. Apresentado o significado das quatro definies de Frege, agora preten-

    demos discutir a questo que sustentamos em uma nota e na subseo 2.4.1. L,

    76 Mais adiante veremos que esta relao desempenhar um papel importante na definio de n-mero natural. 77 Depois, em ber Sinn und Bedeutung (1892), Frege tratar o smbolo como sendo o smbo-lo de igualdade ordinrio. Para isso, Frege foi obrigado a fazer a distino entre o sentido e a refe-rncia de um nome (prprio). 78 As funes so relaes de um tipo especial, ou seja, uma funo uma relao que satisfaz o seguinte requisito: todo elemento que pertence ao domnio da funo est relacionado a um e so-mente um elemento do contra-domnio.

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  • 36

    afirmamos que Frege, na parte 2 de Begriffsschrift, apresenta como uma lei lgica

    primitiva (axioma) a seguinte frmula (ab(f(a))f(b)) (a frmula (7), na sub-seo 2.4.2). Como dissemos, esta lei parece tratar o smbolo como expres-sando a identidade no sentido ordinrio. Contudo, como tambm dissemos, tratado por Frege (8) como expressando uma identidade entre smbolos, e no

    entre objetos. A questo que Frege ora toma esta lei (e as leis derivadas dela) no

    primeiro sentido, ora no segundo sentido. Exemplificaremos: na 25 de Begriffss-

    chrift, Frege apresenta a seguinte deduo:

    (1) assuma a primeira definio, no caso, ba(Fb &bfaFa)Her(F,f). (2) assuma a lei lgica bsica 7, ou seja, (ab(f(a))f(b))80. (3) agora, substitua a por ba(Fb &bfaFa), b por Her(F,f) e f () por 81. (4) obtemos ento: (ba(Fb &bfaFa)Her(F,f))(b a (Fb

    &bfaFa) Her(F,f)). (5) Portanto, aplicando modus ponens entre (1) e (4), obtemos: (ba(Fb

    &bfaFa) Her(F,f))82. Neste caso, esta lei se assemelha bastante com a seguinte lei do clculo

    proposicional: ((ab)(ab)). Vale dizer que a lei lgica (ab(f(b)f(a))) (derivada da lei lgica bsica 7) tambm utilizada de uma maneira anloga

    (29):

    (1) assuma a terceira definio dada acima (ancestral fraco), isto , (xf*z v x=z) xf*=z

    (2) assuma tambm a lei lgica ab(f(b)f(a))83. (3) substitua a por (xf*z v x=z), b por xf*=z e f() por . (4) obtemos ento ((xf*z v x=z)xf*=z)((xf*=z)(xf*z v x=z)). (5) Aplicando modus ponens entre (1) e (4), temos (xf*=z)(xf*z v x=z).

    Ou seja, a lei (ab(f(b)f(a))) parece desempenhar o papel da seguinte

    lei lgica do clculo proposicional: (ab(ba)). H uma evidncia em Be-griffsschrift na qual poderamos tomar Frege como interpretando no sentido de uma equivalncia quando ele escreve o seguinte no prefcio deste livro:

    Notei somente depois que as frmulas (31)[55aa] e (41) [a55a] poderiam ser combinadas em uma nica frmula

    79 Aqui, novamente, teria de ser interpretado como a identidade no sentido ordinrio. 80 Aqui, coloquei o f em itlico para que o mesmo no seja confundido com o f que aparece na expresso ba(Fb &bfaFa)Her(F,f). 81 Isto significa que f() substituda pelo seu prprio argumento, assim f(a)=a e, no caso em ques-to, f(a)= ba(Fb &bfaFa). O mesmo vale para f(b). 82 Sua numerao em Begriffsschrift (75). 83 Sua numerao em Begriffsschrift (57).

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  • 37

    que possibilitaria, at mesmo, mais simplificaes. (Frege, 1879, Prefcio)84.

    Por outro lado, na derivao da proposio 92, a saber, (xz(xfy zf*y)) (se x igual a z e y est na relao f com x, ento y se segue aps z na relao f),

    Frege utiliza a lei lgica (f(c)((cd)f(d)))85 (derivada da lei bsica 7) como uma lei que rege a identidade de objetos. Vejamos porque:

    1) vamos assumir, como Frege faz, a proposio 91, a saber, xfy xf*y (ou seja, se y est na relao f com x, ento y se segue aps x na rela-o f). 2) tome agora a lei f(c)(cdf(d)) (proposio 53 em Begriffssc-hrift). 3) substitua c por x, d por z e f() por xfyf*y86. 4) obtemos assim a seguinte proposio: (xfy xf*y)(xz (xfyzf*y)). 5) Aplicando modus ponens entre (1) e (4), chegamos proposio xz (xfyzf*y) (92).

    Note que agora Frege considera f (na proposio 53) como sendo uma fun-

    o de primeira ordem (no caso, a funo xfyf*y) sob a qual caem objetos. As-sim, cd tem de ser interpretado, na proposio (53), como expressando a identi-dade ordinria entre dois objetos. Essa ambigidade ser dissipada em ber Sinn

    und Bedeutung, uma vez que Frege considerar os valores de verdade como obje-

    tos. Esta considerao juntamente com a distino entre sentido e referncia e a

    interpretao de como significando o sinal de identidade ordinrio, permitir uma interpretao inequvoca da lei bsica (7) e das leis derivadas a partir dela.

    H ainda outras questes em Begriffsschrift, mas infelizmente no as discutiremos

    aqui.

    Para finalizar esta seo, apresentaremos duas proposies que, acredita-

    mos, Frege consideraria como paradigmas de que a aritmtica no necessita da

    intuio para provar suas proposies. Elas so as proposies (98) e (133) (nu-

    merao de Begriffsschrift). A proposio (98) xf*y(yf*zxf*z) e afirma que a relao ancestral forte transitiva. Podemos ler a proposio 98 assim: se y se

    segue aps x na relao f e se z se segue aps y na relao f, ento z se segue

    84 Devemos esta observao a Chateaubriand (2001), captulo 8. 85 Sua numerao em Begriffsschrift (53). 86 Frege comete um erro aqui, parece, pois ele substitui c por z e d por x. Contudo, nesta substitui-o, obtida a seguinte proposio: (f(x,y)zf*y)(zxf(x,y)xf*y).

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    aps x na relao f 87. A proposio (133) (F(f) (xf*m (xf*y(yf*m v mf*y v m=y)))). Esta proposio indica que se uma relao f funcional, ento a

    relao f conecta quaisquer dois objetos m e y que esto na relao de ancestrali-

    dade f com x. Em palavras, a proposio 133 afirma que se a relao f funcional

    (ou uma funo), e se m se segue aps x na relao f, e se y se segue aps x na

    relao f, ento ou m se segue aps y na relao f ou y se segue aps m na rela-

    o f ou m igual a y88.

    2.5- DIE GRUNDLAGEN DER ARITHMETIK

    Frege, no ltimo pargrafo de Begriffsschrift, escreve: A aritmtica, como disse no incio, foi o ponto de partida da cadeia de pensamen-to que me levou a minha notao conceitual. Portanto, pretendo aplic-la a esta cincia, tentando analisar seus conceitos e fornecer um fundamento mais profun-do para seus teoremas. Aqui, apresento no terceiro captulo algumas coisas que se movem nesta direo. Alm disso, o prosseguimento do caminho sugerido, a elu-cidao dos conceitos de nmero, magnitude e assim por diante, deve constituir o assunto de outras investigaes que produzirei imediatamente aps este livro. (Frege, 1879, Prefcio). Estas investigaes demoraram cinco anos, quando Frege publicou Die

    Grundlagen der Arithmetik. interessante notar que o tom de Frege na citao

    acima sugere que ele j tinha em mente o rumo de suas pesquisas sobre o conceito

    de nmero e magnitude. Por que Frege demorou tanto para publicar o Die

    Grundlagen der Arithmetik? Esta questo tem uma importncia mais histrica do

    que filosfica e uma resposta para ela totalmente especulativa. Contudo, acredi-

    tamos que vale a pena uma pequena discusso. Gostaramos de levantar trs pos-

    sveis respostas: (1) a primeira que esta passagem era totalmente retrica e, na

    verdade, Frege ainda no tinha em mente como se dariam estas investigaes, e

    por isso a demora na publicao do livro; (2) a segunda, apresentada por Bynum

    (1972), que Frege realmente j tinha traado a sua anlise do conceito de nme-

    ro e pretendia execut-la logo aps a publicao de Begriffsschrift, mas devido

    pequena receptividade deste livro, ele foi obrigado a adiar seu objetivo no intuito

    87 O uso de seguir-se aps no significa que estamos usando a noo de tempo aqui, mas infeliz-mente difcil traduzir para a linguagem ordinria o que exatamente a proposio diz. 88 Note que dessa proposio possvel obter o princpio de tricotomia para nmeros naturais (basta interpretar a relao f convenientemente): dado dois nmeros naturais a e b ou a

  • 39

    de responder s crticas levantadas sua notao conceitual89. A resposta de By-

    num parece plausvel, uma vez que Frege publicou, em revistas especializadas,

    entre os anos de 1880-2, alguns artigos defendendo a sua notao conceitual90; (3)

    a terceira resposta est fundamentada textualmente. Frege no s tinha em mente

    o rumo de sua pesquisa sobre o conceito de nmero, como tambm a executou

    antes do ano de 1884. H uma passagem em uma carta que Frege enviou a Anton

    Marty em 29 de agosto de 1882 que fundamenta tal resposta:

    Caro Colega, Vossa carta cordial me deixou muito feliz, ainda mais que, at agora, encontrei muito pouca concordncia. Eu gostaria de vos dar mais algumas informaes so-bre minha Begriffsschrift, na esperana de que vs., talvez, tenhais a oportunida-de de mencion-la em algum peridico. Isto tornaria mais fcil para que eu publi-casse outros trabalhos. Agora, eu estou quase completando um livro no qual eu trato do conceito de nmero cardinal [Anzahl] e demonstro que os primeiros prin-cpios sobre contar os nmeros [ersten Stze ber das Zhlen der Zahl], que at agora foram considerados, em geral, como axiomas indemonstrveis, podem ser provados a partir de definies por meio de leis lgicas somente, de maneira que estes princpios podem ser considerados como juzos analticos no sentido de Kant. (Frege, 1976, pg. 163 (1980, pg. 99)).

    A passagem acima sugere que Frege, em 1882, j tinha escrito grande par-

    te de Die Grundlagen der Arithmetik. Mas por que ele ainda demorou dois anos

    para public-lo? Uma outra passagem desta carta parece elucidar a questo:

    Eu me encontro em um crculo vicioso: antes que as pessoas dem ateno mi-nha notao conceitual, elas querem ver o que eu posso fazer com ela e eu, por sua vez, no posso mostrar isto sem pressupor uma familiaridade com a minha notao conceitual. Assim, parece que dificilmente contarei com qualquer leitor para o livro que mencionei no incio [da carta]. (Frege, 1976, pg.165 (1980, pg. 102)).

    A passagem acima sugere que Frege no publicou seu Die Grundlagen der

    Arithmetik porque tinha receio de que ningum o leria. A passagem tambm insi-

    nua que o suposto livro fora escrito na notao conceitual, seno seu temor no

    teria sentido. Vale mencionar que onze dias aps enviar a carta a Anton Marty,

    Frege, em 9 de setembro de 1882, recebeu uma carta de Carl Stumpf na qual ele

    sugere que Frege escrevesse um livro na linguagem ordinria, explicando sua li-

    89 Uma das crticas principais, uma crtica levantada por Schrder (1880), era que j existia uma linguagem formal, a de Boole, em voga e a mesma j era suficiente para representar as leis do pensamento (ou da lgica). interessante mencionar que Frege no faz nenhuma referncia a Boole no seu primeiro livro. sugerido que Frege no conhecia o seu trabalho antes de Begriffsschrift e somente depois das crticas ele se familiarizou com a lgica Booleana. 90 Por exemplo, ber den Zweck der Begriffsschrift (1882-3) e ber die wissenschaftliche Berechtigung einer Begriffsschrift (1882). Alm disso, Frege tentou publicar, sem sucesso, o

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  • 40

    nha de raciocnio e, ento, no mesmo livro ou em um livro posterior pusesse suas

    idias na notao conceitual. Esta sugesto parece ter sido seguida por Frege (Fre-

    ge, 1976, pg.256 (1980, pg. 171)). Assim, apesar de ser uma especulao, pare-

    ce plausvel, dadas estas evidncias textuais, que Frege j tinha escrito grande

    parte de Die Grundlagen der Arithmetik em 1882 (na sua notao conceitual), no

    o publicou por receio de que este livro tivesse uma pequena aceitao (como ocor-

    rera com Begriffsschrift) e Frege o publicou somente em 1884 depois de reescre-

    ver o seu contedo na linguagem ordinria (seguindo a sugesto de Carl Stumpf).

    Novamente especulando, o livro escrito na notao conceitual em 1882 talvez seja

    o livro que Frege teve de descartar depois da introduo dos valores de verdade

    como objetos e da distino entre sentido e referncia91.

    Depois desta pequena digresso, voltemos a nossa ateno para Die

    Grundlagen der Arithmetik. O objetivo central de Frege neste livro formular o

    conceito de nmero em termos puramente lgicos, na inteno de executar seu

    programa logicista que comeara em Begriffsschrift. Geralmente, Die Grundlagen

    der Arithmetik dividido em duas partes, a primeira (introduo at 44) dita ser

    essencialmente negativa nos seus objetivos. Frege apresenta, discute e refuta uma

    srie de opinies referentes natureza das proposies da aritmtica, ao conceito

    de nmero cardinal, e noo de unidade. Mas, na verdade, a primeira parte tam-

    bm tem um aspecto positivo. Frege, ao refutar uma determinada opinio, implici-

    tamente estabelece a sua. Infelizmente, no discutiremos estes aspectos da primei-

    ra parte de Die Grundlagen der Arithmetik, pois nos tomaria muito tempo e espa-

    o. Contudo, gostaramos de indicar ao leitor, algumas teses positivas implicita-

    mente defendidas l por Frege. Nas 5-17, Frege argi implicitamente em favor

    da provabilidade das frmulas numricas e, alm disso, ele simpatiza com a ma-

    neira de definio dos nmeros individuais de Leibniz 92. claro que, como ele

    mesmo diz, necessria uma lei geral para provar as frmulas numricas a partir

    dessas definies93. E esta lei geral tem de ser lgica, uma vez que, como disse-

    artigo Booles rechnende Logik und die Begriffsschrift (1880-1) e Booles logische Formelsprache und meine Begriffsschrift (1882b). 91 Mesmo escrito na linguagem ordinria, Die Grundlagen der Arithmetik teve uma pequena re-cepo. Tal fato deve ter levado Frege a adiar a publicao do livro em notao conceitual. 92 Leibniz define os nmeros da seguinte maneira: 2=1+1; 3=2+1; 4=3+1 etc. Em geral, Leibniz define os nmeros individuais a partir de 1 e do acrscimo de um. 93 Uma lei geral necessria pela seguinte razo: no podemos provar as frmulas numricas so-mente a partir das definies. Leibniz, implicitamente, assume a associatividade da adio (a+(b+1)=(a+b)+1). claro que poderamos considerar esta lei como sendo um axioma. Mas, para

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    mos acima, seu objetivo mostrar que a aritmtica pode ser reduzida lgica. Nas

    18-44, Frege estabelece que o conceito de nmero cardinal (Anzahl) tem de ser

    um conceito geral (e tambm lgico), pois a partir dele que ser obtida a lei ge-

    ral mencionada acima (18)94 95. Frege tambm estabelece implicitamente o resul-

    tado que ele considerar como sendo o mais importante de Grundlagen der

    Arithmetik, a saber, que uma atribuio numrica contm uma predicao de um

    conceito96 (Cf. 22). Tal resultado alcanado atravs de sua discusso sobre se o

    nmero cardinal uma propriedade de objetos ordinrios (objetos exteriores, co-

    mo mesa, livro etc). Como o prprio Frege diz, uma mesma coleo de objetos

    ordinrios pode ter diferentes nmeros. O que muda no a coleo, mas sim a

    nossa maneira de conceb-la97. Frege tambm obtm este mesmo resultado quan-

    do considera o nmero cardinal como sendo uma coleo de unidades (defendida

    j por Euclides nos Elementos). Segundo Frege, tal noo apresenta duas caracte-

    rsticas contraditrias. Uma que todas as unidades so iguais entre si; a outra que

    as mesmas tm de ser distinguidas de alguma forma para se obter o nmero cardi-

    o objetivo de Frege, ter-se-ia de mostrar que a associatividade da adio uma lei lgica, caso contrrio seu programa logicista fracassaria. Frege ento defender a existncia de uma lei geral lgica que desempenha um papel anlogo da associatividade da adio. E a partir dela, mais as

    eros individuais, mas somente do conceito geral de nmero cardi-

    o Princpio de Hume (a lei geral), e a partir deste, ele

    uma atribuio numrica consiste em predicar algo de um conceito. (Dummett, 1991, 88).

    definies individuais dos nmeros possvel provar as frmulas numricas. 94 Frege escreve: Agora, ao considerar os objetos primrios da aritmtica, devemos distinguir entre os nmeros individuais 3, 4 e assim por diante e o conceito geral de nmero cardinal. J decidimos em favor da viso que os nmeros individuais so derivados da melhor maneira, segun-do o procedimento de Leibniz, Mill, H. Grassmann e outros, do nmero um e do aumento de um, mas estas definies permanecem incompletas na medida em que o nmero um e o aumento de um esto indefinidos. Vimos tambm que precisamos de proposies gerais [6-7] se temos de deri-var frmulas numricas destas definies. Por causa de sua generalidade, tais leis no podem se seguir das definies dos nmnal. (Frege, 1884, 18). 95 interessante mencionar que esse realmente o procedimento de Frege. A partir da terceira definio de nmero cardinal, Frege provaesboa provas dos axiomas da aritmtica. 96 Aqui, seguimos a traduo de Mattias Schirn (1996b). Dummett (1991) traduz assim: o conte-do de97 Frege escreve: Baumann rejeita a posio de que nmeros so conceitos extrados das coisas externas: A razo que coisas externas no se apresentam para ns com qualquer unidade estrita; elas se apresentam como grupos isolados ou pontos sensveis, mas temos a liberdade para tratar cada uma delas novamente como muitas. totalmente verdadeiro que, enquanto no estou em posio de alterar a cor ou a dureza de uma coisa simplesmente pensando-a de um modo diferente, sou capaz de pensar na Ilada ou como um poema ou como 24 livros ou como um grande nmero cardinal de versos. Os sentidos no so diferentes quando falamos que uma rvore tem mil folhas de quando falamos que a mesma tem folhas verdes? Atribumos a cada folha particular a cor verde, mas no lhe atribumos o nmero 1000. Se chamarmos todas as folhas de uma rvore de sua folha-gem, ento a folhagem verde, mas a folhagem no 1000. A propriedade 1000 pertence ao qu ento?. (Frege, 1884, 22).

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  • 42

    nal98. A concepo acima mencionada, a saber, que uma atribuio numrica

    uma predicao de um conceito, unifica, na viso de Frege, satisfatoriamente as

    duas caractersticas contraditrias acima, uma vez que, grosso modo, um conceito

    tem um critrio de aplicao e, portanto, o conceito informa a unidade em ques-

    to (no caso, a unidade so os objetos que caem sob o conceito). Por outro lado,

    alguns conceitos (no caso, os conceitos sortais99), a princpio, tm um critrio de

    identidade que se aplica aos objetos que caem sob ele. Dessa forma possvel

    considerar as unidades do conceito como sendo diferentes100. Assim, segundo

    Frege, o conceito (sortal) nos d a unidade e os meios para distinguir estas uni-

    dades.

    A segunda parte de Die Grundlagen der Arithmetik (45-109) conside-

    rada positiva, uma vez que Frege, a partir da sua discusso apresentada nas pri-

    meiras sees, constri a sua prpria concepo de nmero e apresenta o esboo

    de provas de teoremas da aritmtica.

    Depois dessa breve discusso dos resultados implicitamente obtidos por

    Frege na primeira parte, apresentaremos e discutiremos , rapidamente, a noo de

    nmero como objeto que defendida por Frege, o princpio do contexto e as

    46-83 de Die Grundlagen der Arithmetik.

    2.5.1- NMERO COMO OBJETO

    Como j afirmamos exaustivamente, o objetivo de Frege mostrar que a

    aritmtica dos nmeros naturais analtica, e para isso Frege pretende reduzi-la

    lgica. Uma questo central para Frege , portanto, provar a existncia de infinitos

    nmeros naturais por meios puramente lgicos. Nesta prova, a concepo de n-

    98 Como Frege mostra, vrios matemticos, tentando superar esta dificuldade, aproximaram-se de uma viso formalista da matemtica, tomando os numerais como sendo os prprios nmeros. Je-vons (ver 36-8 de Die Grundlagen der Arithmetik), por exemplo, prope a seguinte soluo, a saber, tomar todas as unidades como 1 e colocando o sinal para diferenci-las. Assim , trs seria 1+1+1. Mas, tambm poderia ser: 1+ 1+1. Portanto, na verso de Jevons, ter-amos inmeros nmeros trs. 99 Discutiremos a noo de um conceito sortal em 3. 100 Quase sempre os conceitos sortais no tm os dois critrios bem definidos. Por exemplo, tome o conceito de pessoa. Este conceito parece ter um bom critrio de aplicao, uma vez que uma cadei-ra no uma pessoa, um livro no uma pessoa, em geral, possvel distinguir uma coisa que pessoa de uma outra coisa que no pessoa. Assim temos a nossa unidade. Contudo, o conceito de pessoa no parece ter um bom critrio de identidade. Quando uma pessoa a mesma que uma outra e quando ela diferente?

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  • 43

    mero (cardinal)101 como objeto desempenhar um papel fundamental, como vere-

    mos quando discutirmos as 45-83. Aqui, discutiremos quais so as razes que

    Frege d para tal concepo de nmero (cardinal).

    J na introduo de Die Grundlagen der Arithmetik, Frege afirma que o

    nmero 1 se comporta como um objeto, uma vez ele tem propriedades que lhe so

    caractersticas (ou seja, que nenhum outro nmero tem). Uma dessas propriedades

    caractersticas, uma citada por Frege, que o nmero 1 multiplicado por ele mes-

    mo tem como resultado o prprio 1 (1.1=1). Alm disso, proposies como existe

    um nmero primo par, existem nmeros primos entre 0 e 10 parecem dar a im-

    presso que nmeros so objetos, uma vez que eles esto no escopo das variveis

    objectuais da teoria. Podemos traduzir a primeira proposio, em notao lgica,

    da seguinte maneira: x(Nat(x)&Par(x)&Prim(x)), onde Nat significa ser nmero natural; Par significa ser par; e Prim, ser primo (as propriedades ser nmero na-

    tural, ser par e ser primo podem tambm ser definidas). Essa parece ter sido uma

    das razes que fez Frege considerar os nmeros como objetos.

    H tambm outras razes para Frege considerar nmeros como objetos.

    Ele, em inmeras passagens, defende que os nmeros so objetos apoiando-se em

    evidncias da linguagem, a saber, que os numerais so antecedidos por artigo de-

    finido ( 23, 38, 57, 68, 74) e o artigo definido indica existncia e unicidade102.

    Alm disso, numerais ocorrem em sentenas de identidade (por exemplo, 2+3=5),

    e a relao de identidade , segundo Frege em Die Grundlagen der Arithmetik,

    uma relao de primeira ordem, ou seja, uma relao sob a qual caem pares de

    objetos (57)103. interessante mencionar que numerais ocorrem em algumas

    sentenas desempenhando o papel de adjetivo. Por exemplo, o zoolgico tem sete

    lees. Aqui, sete modifica o substantivo lees e, portanto, um adjetivo. Nes-

    te sentido, sete no parece desempenhar o papel de um objeto, mas de uma pro-

    priedade (de segunda ordem). Frege tambm considera esta situao. Contudo, ele

    101 Os nmeros cardinais so, segundo Frege, os nmeros que do uma resposta exata para a ques-to Quantos objetos existem que so F?, ou similarmente Quantos Fs existem? (F sendo um de-terminado conceito (sortal) e os Fs, os objetos que caem sob F). interessante notar a seguinte questo, a saber, os nmeros naturais so, na viso de Frege, um subconjunto dos nmeros cardi-nais e, assim, eles tambm so objetos, se os nmeros cardinais forem. 102 Frege tambm diz que os numerais nunca so precedidos por artigo indefinido. Segundo Frege, o artigo indefinido precedendo uma palavra indica o carter predicativo da mesma. 103 Aqui, Frege j considera a igualdade como uma relao entre objetos, contudo, como tentamos mostrar na seo anterior, em Begriffsschrift h uma certa ambigidade nessa relao. Talvez, ao

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    ir propor que sempre podemos transformar uma sentena na qual o numeral de-

    sempenha o papel de um adjetivo em uma sentena na qual o numeral desempe-

    nha o papel de um substantivo. Por exemplo, a sentena (1) o zoolgico tem sete

    lees pode ser decodificada da seguinte maneira: (2) o nmero de lees no zool-

    gico sete. Aqui, Frege argi, a palavra no funciona como uma cpula; ela

    expressa uma identidade, ou seja, o nmero de lees no zoolgico igual a sete.

    Da mesma maneira, podemos transformar a sentena (3) existem sete lees no

    zoolgico na qual sete parece ser tambm uma propriedade de segunda ordem,

    uma vez que modifica lees no zoolgico, na sentena o nmero de lees no

    zoolgico igual a sete. Segundo Frege, as trs sentenas acima expressariam o

    mesmo contedo conceitual. Por que Frege favorece a interpretao (2) em detri-

    mento das demais? Na 57, Frege afirma que nas sentenas da forma (1) e (3), o

    numeral apenas um elemento do predicado. Contudo, ele considera que as ra-

    zes dadas anteriormente em Die Grundlagen der Arithmetik (por exemplo, que

    os numerais so precedidos pelo artigo definido) j estabelecem a natureza onto-

    lgica dos mesmos, de maneira que apenas ilusrio que em (1) e (3) nmeros

    sejam propriedades104.

    Vale tambm mencionar que Frege novamente resgata a nomenclatura

    sujeito e predicado que, em Begriffsschrift, ele afirma ser irrelevante para sua

    notao conceitual. A utilizao dessa nomenclatura est diretamente ligada com

    as noes de conceito e objeto. Um conceito , para Frege em Die Grundlagen der

    Arithmetik, o predicado de uma sentena; o objeto o sujeito da sentena. Vale

    lembrar que isto s possvel em sentenas que expressam um juzo que tem um

    contedo singular (por exemplo, Plato filsofo) ou no caso de uma sentena

    que expressa uma relao de primeira ordem (por exemplo, Plato foi discpulo de

    Scrates). No caso de uma sentena como toda baleia um mamfero, o sujeito da

    relao no um objeto. Na verdade, como j dissemos um pouco mais acima,

    isso pode ser traduzido da seguinte maneira: para todo objeto x, se x baleia, en-

    to x mamfero. Assim, estamos predicando uma determinada relao entre os

    considerar a necessidade de interpretar a relao de identidade como uma relao de primeira ordem sob a qual caem objetos, Frege notou a ambigidade de sua primeira concepo. 104 Frege escreve: Na proposio o nmero 0 pertence ao conceito F, 0 somente um elemento no predicado (tomando o conceito F como sendo o sujeito real). Por esta razo evitei chamar um nmero tal como 0 ou 1 ou 2 de uma propriedade de um conceito... J chamei a ateno acima para o fato de que falamos de o nmero 1, onde o artigo definido serve para classific-lo como um objeto. (Frege, 1884, 57).

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    conceitos baleia e mamfero, a saber, que o primeiro conceito subordinado ao

    segundo. Chateaubriand (2001) interpreta sentenas desse tipo como expressando

    uma relao entre sujeito e predicado, no caso o predicado a relao de segunda

    ordem subordinao e os sujeitos so baleia e mamfero. Frege parece implicita-

    mente admitir isto. Por isso a restrio que demos acima que um objeto o sujeito

    de uma sentena que expressa um contedo individual ou uma relao de primeira

    ordem; caso contrrio, os conceitos poderiam ser admitidos como objetos, posto

    que eles so os sujeitos de sentenas que expressam uma relao de segunda or-

    dem ou uma propriedade de segunda ordem e isso violaria a terceira clusula que

    Frege expressa na introduo de Die Grundlagen der Arithmetik, a saber, nunca

    perder de vista a distino entre conceito e objeto. H uma srie de questes ain-

    da sobre a noo de nmero como objeto, contudo terminamos aqui a discusso

    sobre este tema neste captulo.

    2.5.2- O PRINCPIO DO CONTEXTO

    O princpio do contexto um dos elementos mais controversos de Die

    Grundlagen der Arithmetik. Existem inmeras interpretaes desse princpio na

    literatura secundria. No o objetivo dessa subseo tentar formular uma respos-

    ta de como deveramos interpretar este princpio, mas apresentar algumas interpre-

    taes sugeridas sobre ele.

    Frege, na introduo do livro mencionado acima, apresenta, pela primeira

    vez, o princpio do contexto, a saber, (1) nunca perguntar pelo significado105 de

    uma palavra isoladamente, mas somente no contexto de uma proposio. Alm

    desse princpio, Frege, tambm na introduo, apresenta mais outros dois princ-

    pios, a saber, o j mencionado acima (nunca perder de vista a distino entre con-

    ceito e objeto) e separar precisamente o psicolgico do lgico, o subjetivo do

    objetivo. primeira vista, estes trs princpios parecem ser princpios metodol-

    gicos e interdependentes. Por exemplo, se tomarmos o significado dos numerais

    isoladamente, poderia ser o caso de ligarmos a este significado uma determinada

    idia, e assim o primeiro princpio seria violado. Da mesma maneira, se tomarmos

    o significado de uma expresso no contexto de uma proposio, ento certamente

    saberamos o status ontolgico de tal expresso. Por exemplo, se a expresso

    105 Frege usa a palavra Bedeutung na passagem acima. Traduzi esta palavra por significado, pois Bedeutung no tem aqui ainda o sentido tcnico de referncia.

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    for um sujeito em uma proposio que tem um contedo singular, ento tal ex-

    presso significar um objeto. Se ela for o predicado de uma tal proposio, ento

    ela significar um conceito106.

    Contudo, h, no decorrer do livro, outras formulaes que no parecem ser

    apenas metodolgicas. Por exemplo, na 60, Frege diz que (2) suficiente que

    uma proposio como um todo tenha um sentido para que seja conferido um con-

    tedo para as suas partes. Na 62, ele afirma (3) somente no contexto de uma

    proposio que as palavras tm significado. E na 106, lemos o seguinte: (4)

    estabelecemos o princpio segundo o qual o significado de uma palavra tem de

    ser explicado no isoladamente, mas no contexto de uma proposio. A formula-

    o (2) parece ser uma formulao ontolgica, posto que uma condio para a

    existncia dos contedos das partes da proposio. A formulao (3), no contexto