lingua de eulália, fichamento

13
— Pode até ser — comenta Emília enquanto as quatro se sentam [pág. 13] num grande banco de madeira sob um caramanchão. — Mas ela fala tudo errado. Isso para mim estraga qualquer sabedoria. — Eu tive de me segurar para não rir quando ela disse aquelas coisas na mesa — acrescenta Sílvia. — Que coisas? — quer saber Vera. — Ah, sei lá... agora não me lembro — responde Sílvia. — Eu me lembro — adianta-se Emília. — Ela disse “os probrema”, “os fósfro”, “môio ingrês”... — É mesmo — confirma Sílvia —, e a mais engraçada foi: “percurá os hôme”... Sílvia ri, e Emília a imita. Irene fica séria por alguns instantes. De repente, vira- se para as duas moças e diz: — Or tu chi se’, che vuoi sedere a scranna / Per giudicar da lungi mille miglia, / Con la veduta corta d’una spanna? Sílvia, Emília e Vera, tomadas de surpresa, ficam mudas. — E então? Não querem rir também do que eu disse, como riram das coisas que a Eulália falou? — Mas você falou em italiano — diz Vera. — Se era italiano, por que devíamos rir? Eu não posso achar graça naquilo que não entendo — diz Emília. — E por que você não entende? — pergunta Irene. — Ora, porque não falo italiano — responde Emília. — E o que é que você fala? — continua Irene. — Eu falo português — diz Emília, já intrigada. — E o que é o italiano para alguém que fala português? — quer saber Irene. As moças param um instante para pensar. É Sílvia quem responde: — É outra língua. — Uma língua diferente — completa Vera. — Muito bem — diz Irene. — Vocês não entenderam o verso de

Upload: roger-lopes-silva-angeli

Post on 03-Aug-2015

69 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

Page 1: Lingua de Eulália, fichamento

— Pode até ser — comenta Emília enquanto as quatro sesentam [pág. 13] num grande banco de madeira sob umcaramanchão. — Mas ela fala tudo errado. Isso para mim estragaqualquer sabedoria.— Eu tive de me segurar para não rir quando ela disse aquelascoisas na mesa — acrescenta Sílvia.— Que coisas? — quer saber Vera.— Ah, sei lá... agora não me lembro — responde Sílvia.— Eu me lembro — adianta-se Emília. — Ela disse “osprobrema”, “os fósfro”, “môio ingrês”...— É mesmo — confirma Sílvia —, e a mais engraçada foi:“percurá os hôme”...Sílvia ri, e Emília a imita.Irene fica séria por alguns instantes. De repente, vira-se paraas duas moças e diz:— Or tu chi se’, che vuoi sedere a scranna / Per giudicar dalungi mille miglia, / Con la veduta corta d’una spanna?Sílvia, Emília e Vera, tomadas de surpresa, ficam mudas.— E então? Não querem rir também do que eu disse, comoriram das coisas que a Eulália falou?— Mas você falou em italiano — diz Vera.— Se era italiano, por que devíamos rir? Eu não posso achargraça naquilo que não entendo — diz Emília.— E por que você não entende? — pergunta Irene.— Ora, porque não falo italiano — responde Emília.— E o que é que você fala? — continua Irene.— Eu falo português — diz Emília, já intrigada.— E o que é o italiano para alguém que fala português? — quersaber Irene.As moças param um instante para pensar. É Sílvia quemresponde:— É outra língua.— Uma língua diferente — completa Vera.— Muito bem — diz Irene. — Vocês não entenderam o verso deDante que eu citei há pouco porque era italiano. Mas e se eu disserassim: “No mundo non me sei parelha, mentre me for’ como me vay, cajá moiro por vos — e ay!”?— Esse quase dá para entender, afinal é espanhol — diz Sílvia.— Não senhora — corrige Irene. — É português. [pág. 14]— Português?! — espanta-se Emília.— Português, sim, só que do século XII, Idade Média — explicaIrene. E que tal alguma coisa assim: “Estou-me nas tintas se não teapetece uma bola de Berlim”?— Vai me dizer que isso também é português? — duvida Sílvia.— Claro que é, é português falado em Portugal. Significa:“Estou pouco ligando se você não gosta de comer sonho”.Vera impacienta-se:

Page 2: Lingua de Eulália, fichamento

— Tia, aonde é que você quer chegar?— Vocês não entenderam o Dante porque o italiano é diferentedo português. Vocês não entenderam o português do século XIIporque ele é diferente do português de hoje. E não entenderam oportuguês de Portugal porque é diferente do português do Brasil.— E o que tem isso a ver com a fala errada da Eulália? —pergunta Emília.— A fala da Eulália não é errada: é diferente. É o português deuma classe social diferente da nossa, só isso — explica Irene.— Para mim é errado — diz Emília.— É errado dentro das regras da gramática que se aplicam aoportuguês que você fala — diz Irene. — Mas na variedade não-padrãofalada pela Eulália essas regras não funcionam.— Variedade não-padrão? Que coisa é essa, tia? — perguntaVera.Irene dá um suspiro, sorri e diz:— Essa é uma história comprida, Vera, e não sei se dá pararesumir aqui, no jardim, nesta tarde fria de julho, depois de tercomido tanto no almoço.— Mas agora eu fiquei curiosa — diz Vera.— Eu também — diz Sílvia.— E eu mais ainda — diz Emília. — Quero ver a senhora... vocême convencer que a Eulália não fala errado.Irene se levanta e diz:— Vamos combinar o seguinte. Hoje à noite, a gente se reúnena sala, acende a lareira, se enrola nuns cobertores e bate um longopapo sobre este assunto. Por coincidência, eu estou mesmopreparando um livrinho que trata destes problemas. Vou aproveitar oresto da tarde para ler um pouco e lá por volta das oito horas a [pág.15] gente se encontra. Enquanto isso, Vera, leve as meninas parapassear aqui pelos arredores. Combinado?— Combinado — diz Vera.— Antes eu quero saber o que foi aquilo que você disse emitaliano...Irene sorri:— São uns versos da Divina Comédia, de Dante. A tradução édifícil, mas significam alguma coisa como: “quem você, tãopresunçoso, pensa que é para julgar de coisas tão elevadas com acurta visão de que dispõe”?Emília e Sílvia se entreolham.— É impressão minha, ou foi uma indireta? — pergunta Sílvia.— Indireta nenhuma, querida — responde Irene, puxandoSílvia para junto de si e abraçando-a com carinho. — São uns versos

Page 3: Lingua de Eulália, fichamento

bonitos que guardei de cor, só isso.— E aquele português da Idade Média, o que era? — perguntaEmília.— São os primeiros versos de uma cantiga de amor — respondeIrene. — Essa cantiga é considerada o texto mais antigo escrito emlíngua portuguesa, data de 1189. É tão antiga que até hoje osfilólogos discutem sobre o significado exato das palavras... Mas agorachega de conversa. Vão passear. Durante o passeio, aproveitem parapensar na resposta que vocês dariam à seguinte pergunta: “Quantaslínguas se fala no Brasil?” Não digam nada agora. À noite a gente sevê. [pág. 16]

— Já que você insiste, vamos começar — diz Irene. — E querocomeçar pedindo a vocês que me respondam: “Quantas línguas sefala no Brasil?”

ÀSilêncio. As três, tímidas, não ousam arriscar uma resposta.Emília cutuca Vera com o cotovelo e diz:— Vera, você faz Letras: é obrigada a saber a resposta...Vera, assim convocada em seus brios acadêmicos, pigarreia ediz: [pág. 17]— Bom, o que a gente aprende na escola, desde pequena, é queno Brasil só se fala português.— Isso mesmo — confirma Sílvia. — No Brasil a gente falaportuguês de Norte a Sul.Irene escuta com atenção. Depois começa a falar:— É bem a resposta que eu esperava. E não havia por que serdiferente. Meninas, na tradição de ensino da língua portuguesa noBrasil existe um mito que há muito tempo vem causando um sérioestrago na nossa educação.— Que mito é esse, tia?— É o mito da unidade lingüística do Brasil.As três moças se entreolham, surpresas. Irene prossegue:— O mito da unidade lingüística do Brasil pode ser resumidona resposta que a Vera e a Sílvia me deram agora há pouco: “NoBrasil só se fala uma língua, o português”. Um mito, entre outrasdefinições possíveis, é uma idéia falsa, sem correspondente narealidade.— Quer dizer que a resposta delas é falsa, mentirosa? —pergunta Emília.— Exatamente — responde Irene.

Page 4: Lingua de Eulália, fichamento

— E por quê, tia?— Primeiro, no Brasil não se fala uma só língua. Existem maisde duzentas línguas ainda faladas em diversos pontos do país pelossobreviventes das antigas nações indígenas. Além disso, muitascomunidades de imigrantes estrangeiros mantêm viva a língua deseus ancestrais: coreanos, japoneses, alemães, italianos etc.— Mas os índios são muito poucos e vivem isolados — replicaSílvia.— É, e as comunidades de imigrantes também são umaminoria dentro do conjunto total da população brasileira — completaEmília.— A língua mais usada, mais falada, mais escrita é mesmo oportuguês — conclui Vera.— Poder ser — diz Irene. — Mas mesmo deixando de lado osíndios e os imigrantes, nem por isso a gente pode dizer que no Brasilsó se fala uma única língua. Talvez vocês se surpreendam com o quevou dizer agora, mas não existe nenhuma língua que seja uma só.— Como assim, Irene? — pergunta Emília, espantada. — Quequer dizer isso? [pág. 18]— Isso quer dizer que aquilo que a gente chama, porcomodidade, de português não é um bloco compacto, sólido e firme,mas sim um conjunto de “coisas” aparentadas entre si, mas comalgumas diferenças. Essas “coisas” são chamadas variedades.

Toda língua varia— Puxa vida, estou entendendo cada vez menos — queixa-seSílvia.— Vamos bem devagar para as coisas ficarem claras — propõeIrene. — Você certamente já ouviu um português falar, não é?— Já — responde Sílvia.— Já percebeu as muitas diferenças que existem entre o modode falar do português e o modo de falar nosso, brasileiro. De que tiposão essas diferenças? Vamos ver algumas delas:• diferenças fonéticas (no modo de pronunciar os sons da língua): obrasileiro diz eu sei, o português diz eu sâi;— Tudo bem até agora? — pergunta Irene.— Tudo bem — responde Sílvia.— Essas e outras diferenças — prossegue Irene — tambémexistem, em grau menor, entre o português falado no Norte-Nordestedo Brasil e o falado no Centro-Sul, por exemplo. Dentro do Centro-

Page 5: Lingua de Eulália, fichamento

Sul existem diferenças entre o falar, digamos, do carioca e o falar dopaulistano. E assim por diante.Irene faz uma pequena pausa. Toma um gole de chá econtinua:— Até agora, falamos das variedades geográficas: a variedade• diferenças sintáticas (no modo de organizar as frases, as oraçõese as partes que as compõem): nós no Brasil dizemos estoufalando com você; em Portugal eles dizem estou a falar consigo;• diferenças lexicais (palavras que existem lá e não existem cá, evice-versa): o português chama de saloio aquele habitante dazona rural, que no Brasil a gente chama de caipira, capiau,matuto;• diferenças semânticas (no significado das palavras): cuecas emPortugal são as calcinhas das brasileiras. Imagine uma mulherentrar numa loja de São Paulo e pedir cuecas para ela usar! Vaicausar o maior espanto!• diferenças no uso da língua. Por exemplo, você se chama Sílvia eum português muito amigo seu quer convidar você para jantar.Ele provavelmente vai perguntar: “A Sílvia janta conosco?” Sevocê não estiver acostumada com esse uso diferente, poderápensar que ele está falando de uma outra Sílvia, e não de você.Porque, no Brasil, um amigo faria o mesmo convite mais oumenos assim: “Sílvia, você quer jantar com a gente?” Nós nãotemos, como os portugueses, o hábito de falar diretamente comalguém como se esse alguém fosse uma terceira pessoa... [pág.

— Tudo bem até agora? — pergunta Irene.— Tudo bem — responde Sílvia.— Essas e outras diferenças — prossegue Irene — tambémexistem, em grau menor, entre o português falado no Norte-Nordestedo Brasil e o falado no Centro-Sul, por exemplo. Dentro do Centro-Sul existem diferenças entre o falar, digamos, do carioca e o falar dopaulistano. E assim por diante.Irene faz uma pequena pausa. Toma um gole de chá econtinua:— Até agora, falamos das variedades portuguesa, a variedade brasileira, a variedade brasileira do Norte, avariedade brasileira do Sul, a variedade carioca, a variedadepaulistana... Mas a coisa não pára por aí. A língua também ficadiferente quando é falada por um homem ou por uma mulher, poruma criança ou por um adulto, por uma pessoa alfabetizada ou poruma não-alfabetizada, por uma pessoa de classe alta ou por umapessoa de classe média ou baixa, por um morador da cidade e por

Page 6: Lingua de Eulália, fichamento

um morador do campo e assim por diante. Temos então, ao lado dasvariedades geográficas, outros tipos de variedades: de gênero,socioeconômicas, etárias, de nível de instrução, urbanas, rurais

etc.geográficas: a variedade

Porque toda língua, além de variar geograficamente, noespaço, também muda com o tempo. A língua que falamos hoje noBrasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início dacolonização, e também é diferente da língua que será falada aquimesmo dentro de trezentos ou quatrocentos anos!

— É por isso — prossegue Irene — que nós lingüistas dizemosque toda língua muda e varia. Quer dizer, muda com o tempo e variano espaço. Temos até uns nomes especiais para esses doisfenômenos. A mudança ao longo do tempo se chama mudançadiacrônica. A variação geográfica se chama variação diatópica. E épor isso também que não existe a língua portuguesa.

— Existe um pequeno número de variedades do português —faladas numa determinada região, por determinado conjunto depessoas, numa determinada época - que, por diversas razões, forameleitas para servirem de base para a constituição, para a elaboraçãode uma norma-padrão. A norma-padrão é aquele modelo ideal delíngua que deve ser usado pelas autoridades, pelos órgãos oficiais,pelas pessoas cultas, pelos escritores e jornalistas, aquele que deveser ensinado e aprendido na escola. Vejam bem que eu disse aqueleque deve ser, não aquele que necessariamente é empregado pelaspessoas cultas. Essa norma, ao longo do tempo, se torna objeto deum grande investimento...

(pg.22)

História da norma-padrão— Então essa norma-padrão é o que a gente costuma chamarde língua portuguesa? — pergunta Sílvia. [pág. 24]— Exato — confirma Irene. — No momento em que seestabelece uma norma-padrão, ela ganha tanta importância e tantoprestígio social que todas as demais variedades são consideradas

Page 7: Lingua de Eulália, fichamento

“impróprias”, “inadequadas”, “feias”, “erradas”, “deficientes”,“pobres”... E esta norma-padrão passa a ser designada com o nomeda língua, como se ela fosse a única representante legítima e legaldos falantes desta língua.(pg.24 e 25)

— Veja só, Vera, os motivos que levam determinadasvariedades a servir de base para o padrão não têm nada a ver com asqualidades intrínsecas, internas, lingüísticas destas variedades. O queestou tentando dizer é que todas as variedades de uma língua têmrecursos lingüísticos suficientes para desempenhar sua função deveículo de comunicação, de expressão e de interação entre sereshumanos. Mas por alguma razão, ou razões, só algumas servem debase para o padrão.(pg.25)

E mesmo dentro da região Sudeste existe muito preconceito,não é, tia? — intervém Vera. — A reação dos moradores das grandescidades ao modo de falar dos caipiras, por exemplo, é sempre dedeboche,— Bem lembrado, Verinha — responde Irene. — O chamadofalar caipira estende-se por uma grande área do Sul-Sudeste, queinclui o interior do Paraná, de São Paulo e uma grande porção deMinas Gerais. O traço mais marcante dessas variedades é o chamado“R caipira”, que recebe na fonética o nome técnico de R retroflexo. Defato, quase sempre este traço é ridicularizado pelos moradores dascidades grandes.— E veja que essas regiões que você citou não têm nada depobre, não é? — lembra Sílvia. — Muito pelo contrário, são regiõesmuito ricas por causa da agricultura e eu já li reportagens dizendoque o padrão de vida das cidades do interior de São Paulo, porexemplo, é comparável ao de países da Europa.— É verdade — confirma Irene. — Nesse caso, estamos diantede um preconceito muito antigo e que se encontra em muitos lugaresdo mundo: a suposta superioridade do urbano sobre o rural.(pg.27)

Bem, nós já vimos as razões por que a tão celebrada unidadelingüística do Brasil não passa de um mito, isto é, uma idéia muitobonita, muito conveniente, mas falsa e, para piorar, tambémprejudicial à educação, porque simplifica a realidade que, comovimos, é bastante complexa. No Brasil, portanto, não se fala “uma

Page 8: Lingua de Eulália, fichamento

[pág. 27] só língua portuguesa”. Fala-se um certo número devariedades de português, das quais algumas chegaram ao posto denorma-padrão por motivos que não são de ordem lingüística, mashistórica, econômica, social e cultural. Existe, portanto, umportuguês-padrão, que vamos apelidar de PP, que é essa normaoficial, usada na literatura, nos meios de comunicação, nas leis edecretos do governo, ensinada nas escolas, explicada nasgramáticas, definida nos dicionários.— Sim, já acompanhei a biografia de miss Padrão — insisteEmília —, mas e as variedades que sobraram no balaio?— O balaio, como você diz, pode ser chamado em conjunto deportuguês não-padrão, PNP para nós. Esse PNP, logicamente, apresentavariedades de acordo com as diferentes regiões geográficas, classessociais, faixas etárias e níveis de escolarização em que se encontramas pessoas que o falam. No entanto, existem alguns traçoslingüísticos comuns a todas essas variedades. Aliás, é justamentedesses traços comuns que eu vou tratar no livro que estouescrevendo.(pg.27 28)