limites do direito i 2014-1

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GRADUAÇÃO 2014.1 LIMITES DO DIREITO I AUTOR: GABRIEL LACERDA

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GRADUAÇÃO 2014.1

LIMITES DO DIREITO IAUTOR: GABRIEL LACERDA

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SumárioLimites do Direito I

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................... 3

I — À ESPERA DE UM MILAGRE (THE GREEN MILE) ...................................................................................................... 6

II — DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA (TWELVE ANGRY MEN) ...................................................................................... 12

III — EM MINHA TERRA ..................................................................................................................................... 17

IV— A MORTE E A DONZELA (DEATH AND THE MAIDEN) ............................................................................................. 22

V — INVASÕES BÁRBARAS .................................................................................................................................. 26

VI — AS BRUXAS DE SALEM ................................................................................................................................ 30

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INTRODUÇÃO

Juristas, teóricos e fi lósofos tentam há milênios defi nir precisamente o que seja o sistema de normas que se costuma chamar direito. Sem chegar a um acordo. Existem escolas, correntes, variações, mas nenhuma das defi nições propostas logrou ser aceita sem contestações. São todas tão somente propos-tas ou sugestões, teórico-especulativas, verdadeiros exercícios de linguagem.

É pacífi co, porém, pelo menos na língua portuguesa, que direito é o con-trário de esquerdo, o contrário também de torto e de avesso. Empregada como advérbio, a palavra direito tem ainda o sentido de corretamente, da maneira certa; diz uma velha cantiga de roda: marcha soldado, cabeça de papel, se não marchar direito vai preso pro quartel. Em inglês, o contraste é ainda mais direto e evidente: a palavra right (que, em forma substantiva, se traduz por direito, no sentido de um direito subjetivo), em forma de adjetivo quer dizer precisamente certo e é o antônimo de wrong (errado).

Em resumo, na acepção mais intuitiva da palavra, direito se associa a algo correto. Na verdade, o sistema de normas, textos, instituições e organismos — leis, decretos, tribunais, acórdãos e doutrinas — que se estudam em uma faculdade de direito e que por vezes são agrupados na palavra Direito, escrita com inicial maiúscula — está todo imbuído de uma aspiração: ninguém dis-cordará que o direito aspira sempre o certo, nem tampouco que, em direito, certo é o mesmo que o justo.

O Direito, em outras palavras, procura sempre a Justiça.Para a palavra direito existem muitas defi nições, ainda que nenhuma possa

ser aceita como unânime; o conceito de justiça é ainda mais fl uido. Não seria exagerado dizer que justiça — ou, de novo, Justiça, com inicial maiúscula — é algo abstrato, que melhor se sente que conceitua.

A Justiça a que o Direito aspira seria talvez uma idéia análoga as idéias de Deus e de Amor. Aspira-se a Deus, podem os que Nele acreditam sentir sua presença, mas não é possível ter certeza objetiva e racional de que realmente existe e, se existir, em que exatamente consiste. O mesmo se poderia dizer de amor. Muito poucas são as pessoas que nunca em sua vida sentiram algo a que chamaram de amor. Mas talvez nenhuma delas seja capaz de distinguir precisamente esse sentimento de outros que a ele se assemelham, como, por exemplo, afeto, ternura, desejo sexual.

Da mesma forma, não seria exagerado dizer que cada pessoa é capaz de distinguir, de forma verdadeiramente instintiva, aquilo que lhe parece justo ou injusto.

Em suma, o direito seria um sistema que pretende, racionalmente, realizar algo que racionalmente não pode defi nir, um conjunto concreto que perse-gue um ideal abstrato. Em outras palavras, o Direito está sempre a buscar

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a Justiça; mas sabe de antemão que raramente, talvez nunca, poderá ter a certeza de atingi-la.

Ao contrário, frequentemente o uso correto do instrumental de que o di-reito dispõe — leis, normas, teorias, doutrinas processos e tribunais — acaba levando a resultados que não só não realizam como por vezes até se opõem ao sentimento de justiça.

Paradigma fundamental desse tipo seria a situação em que alguém é con-denado, por um crime que não cometeu, a despeito de terem sido observados todos os requisitos exigidos pelo que se convencionou chamar devido pro-cesso legal.

O contraste entre direito e justiça, as muitas seqüências de eventos em que o sistema jurídico pode mostrar — às vezes até escancaradamente exibir — sua incapacidade de realizar o ideal que persegue, contém alguns dos in-gredientes fundamentais de um bom livro ou fi lme, quase todos construídos precisamente a partir de uma contradição fundamental em torno de fatos, encadeados no tempo. Nada mais susceptível de gerar um bom argumento que situações fáticas que envolvem a eterna luta do bem contra o mal, do amor contra o ódio, do impulso contra o dever — do justo contra o injusto.

O propósito deste trabalho é exatamente discorrer, usando alguns exem-plos retirados do cinema, sobre os limites da ferramenta direito, identifi car as barreiras que existem e que impedem ou difi cultam que, usando o instru-mental jurídico, se atinja o ideal de justiça.

Não se pretende propor uma teoria ou construir um ensaio de doutrina. O objetivo deste trabalho é apenas provocar refl exão, formular perguntas espar-sas ou, talvez, uma única pergunta: como o direito pode ser aperfeiçoado em sua eterna busca para atingir o ideal da justiça? Para essa pergunta, já se sabe, não existe uma resposta defi nitiva. Apenas respostas provisórias, que variam conforme o tempo e o lugar em que a pergunta é feita.

E é precisamente esse eterno perguntar e responder que permite captar o mecanismo pelo qual o direito se movimenta.

CALENDÁRIO

12 de Fevereiro — À Espera de um Milagre (Turma I)19 de Fevereiro — À Espera de um Milagre (Turma II)26 de Fevereiro — 12 Homens de uma Sentença (Turma I)5 de Março — Não haverá aula (4ª. feira de Cinzas)12 de Março — 12 Homens e uma Sentença (Turma II)19 de Março — Em minha Terra (Turma I)26 de Março — PROVA (Turma I e Turma II)2 de Abril — Em minha Terra (Turma II)

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9 de Abril — Não haverá aula (Viagem a Brasília)16 de Abril — A Morte e a Donzela (Turma I)23 de Abril — Não haverá aula (S. Jorge)30 de Abril — A Morte e a Donzela (Turma II)7 de Maio — Invasões Bárbaras (Turma I)14 de Maio — Invasões Bárbaras (Turma II)21 de Maio — As Bruxas de Salem (Turma I)28 de Maio — As Bruxas de Salem (Turma II)4 de Junho — PROVA (Turma I e Turma II)

FREQUÊNCIA

Perderá os créditos o aluno que tiver mais de uma falta não justifi cada nem compensada.

Como todos os fi lmes serão exibidos duas vezes, quem não puder com-parecer a uma apresentação poderá assistir à apresentação na outra turma. Nesse caso, a aula perdida será considerada compensada e a falta abonada automaticamente.

As provas, como indicado no calendário, serão realizadas para as duas tur-mas em conjunto, com consulta.

Quem não obtiver, nas duas provas, a média 7 (sete), deverá fazer ainda um exame fi nal, em data a ser marcada, no qual deverá obter, pelo menos, a nota 6 para obter os créditos da matéria.

A leitura prévia da apostila não é indispensável mas permitirá um melhor aproveitamento da aula e, mais do que isso, ajudará muito nas provas.

Os alunos serão divididos em duas turmas com programa idêntico. As provas serão feitas em conjunto.

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I — À ESPERA DE UM MILAGRE (THE GREEN MILE)

RESUMO

Lançado em 1999Diretor: Frank DarabontDuração: 188 minutos

COMENTÁRIOS

Em 1817, o poeta e fi lósofo inglês Samuel Taylor Coleridge, cunhou uma expressão que depois se transformou em um conceito importante, na poesia e na literatura de fi cção em geral: suspension of disbelief (suspensão de incredu-lidade). Coleridge, um dos fundadores do romantismo inglês, reagia contra o desprestígio crescente do elemento fantástico na poesia. Predominava à época, nos meios intelectuais, uma postura que se pretendia estritamente racional, fruto do movimento conhecido como Iluminismo. Tudo que não fosse explicável usando o raciocínio objetivo era encarado como obra menor, pouco culta. O elemento fantástico, irracional, era rejeitado, até mesmo em obras poéticas. O fi lósofo inglês, contudo, defendia que é legítimo ao poeta, e ao escritor em geral, introduzir em sua obra um interesse humano e uma aparência de verdade, provocando no leitor uma atitude de suspensão da in-credulidade, graças à qual este poderia absorver e apreciar com a imaginação os elementos sobrenaturais ou fantásticos da obra.

O fi lme À Espera de um Milagre seria um exemplo nítido do uso desse recurso literário. Sem que o espectador suspenda sua incredulidade, o enre-do fantástico, girando em torno dos poderes sobrenaturais de que é dotado o personagem central, torna-se verdadeiramente absurdo. Já se assumida a postura sugerida por Coleridge e admitida a aparência de verdade, torna-se absolutamente indiscutível que John Coff ey não cometeu o crime do qual foi acusado e pelo qual foi condenado e afi nal executado. O elemento principal de prova contra ele, o quase fl agrante em que ele foi apanhado, tendo no colo o cadáver das meninas assassinadas, era apenas, no dizer dele mesmo, um tentativa desesperada de tirar delas os fl uidos malignos, os mesmos que tirou da mulher do delegado, ou até de ressuscita-las, como conseguiu fazer com o ratinho Mr. Jigles. A suspensão da incredulidade leva até mesmo a uma convicção plena de quem foi o verdadeiro assassino: o outro habitante do corredor da morte, o bandido arrogante e desafi ador Wild Bill Wharton.

A certeza dos poderes sobrenaturais de John Coff ey é, por sua vez, ofere-cida ao espectador, também de forma inquestionável, na cena fi nal do fi lme:

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o guarda Paul Edgecomb ainda vive, bem disposto e lúcido, com cento e alguns anos; e, como se não bastasse, o ratinho, Mr. Jigles, que comprova ser ele mesmo fazendo as mesmas artes que fazia no corredor da morte, já atingiu uma idade absolutamente impossível entre os animais de sua espécie.

Mas, mesmo para os guardas, que sabem com certeza que John Coff ey não é culpado, é impossível evitar que ele seja executado, gerando um claro abismo entre o direito, tal como expresso na lei, e o justo.

Na verdade, a suspensão da incredulidade é, ainda hoje, totalmente recu-sada pelo direito. A prova há de ser sempre concreta, objetiva, racionalmente demonstrável, de acordo com o que geralmente acontece. Qualquer elemen-to fantástico ou sobrenatural é espúrio na aplicação da lei.

Mas, em um tipo de circunstância, o tema chegou a ser debatido nos tri-bunais brasileiros, com relação a um tipo de prova que, para a maioria das pessoas poderia, a rigor, ser considerada sobrenatural: o depoimento, colhido por um médium espírita, de pessoa já falecida. Em pelo menos um caso essa prova já foi considerada como aceitável, embora não defi nitiva. O caso ocor-reu em Goiânia, em maio de 1976. Um rapaz de quinze anos morreu com um tiro na barriga; um amigo, que estava com ele no momento, foi acusado de homicídio. Em uma sessão espírita em Uberaba, o médium Chico Xavier incorporou o espírito da própria vítima e psicografou uma carta, dirigida aos pais da vítima, declarando que o amigo acusado não tinha culpa e que a morte tinha sido um acidente. A carta foi encaminhada aos pais da vítima que, impressionados, entregaram o documento ao juiz. Este fez juntar a carta psicografada aos autos do processo, indicando que, em sua opinião, seria necessário dar credibilidade à mensagem. O réu foi absolvido. (cf. SOUTO MAIOR, Marcel, Por trás do véu de Ísis, Editora Planeta do Brasil Ltda. São Paulo, 2004, pgs. 19/20).

A decisão foi objeto de recurso tendo sido confi rmada pelo Tribunal de Justiça de Goiás. Na decisão de segundo grau fi cou dito que não há limi-tações aos meios de prova sendo ampla a investigação, dilatados os modos probatórios visando alcançar a verdade do fato e da autoria, ou seja, da im-putação. A mesma decisão, citando obra de Eduardo Espínola Filho (Código de Processo Penal, vol.II pg. 453), afi rma:

...como resultado da inadmissibilidade de limitações dos meios de pro-va utilizados nos processos criminais é-se levado à conclusão de que, para recorrer a qualquer expediente, reputado capaz de dar conhecimento da verdade, não é preciso que seja um meio de prova previsto ou autorizado em lei, basta que não seja expressamente proibido, que não seja incompatível com o sistema geral de Direito Positivo, não repugne à moralidade pública e aos sentimentos de humanidade e decoro, nem acarrete a perspectiva de dano físico ou mental dos envolvidos que sejam chamados a intervir nas

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diligências. (cf. site www.midiaindependente.org, consultado às 17 hs. do dia 28/11/2012).

Para um espírita convicto, quando a própria vítima de um homicídio apa-rece em uma sessão e proclama a inocência do réu acusado de ter provocado sua morte, não haveria prova mais taxativa e cabal e bastaria ela para dissolver qualquer dúvida e legitimar a absolvição. Para os adeptos de outra religião, tal prova não tem qualquer valor. Para o estado laico, uma prova como a apre-sentada no caso citado foi aceita com caráter de exceção, assim mesmo por que não contrariava dos demais elementos constantes dos autos.

Retorna aqui o tema abordado no fi lme anterior e o limite básico do di-reito que é a necessidade de trabalhar com uma verdade factual que não há como descobrir com certeza plena qual é. Aparece, ao mesmo tempo, talvez um outro limite do direito — a postura de recusar o sobrenatural, o inexpli-cável, o fantástico.

Na verdade, rejeitando de plano o elemento irracional, o direito acaba afi nal paradoxalmente condenado basear-se sempre em algo, por defi nição, irracional, que é a crença. As decisões judiciais, praticamente todas elas, per-deriam consistência se não estivessem amparadas em um autêntico ato de fé. O jurista é obrigado a acreditar (ou, pelo menos, a agir como se acreditasse), que o sistema montando pela sociedade para determinar os fatos tem o poder de chegar à verdade, ao que, de fato aconteceu. De novo, a coisa julgada, diz o antigo brocardo, se tem por verdade, não é a verdade.

Mas, mesmo mantendo a suspensão da incredulidade, o abismo entre o legal e o justo ainda existiria no enredo do fi lme. De fato é praticamente impossível imaginar um caminho viável para impedir a execução de Coff ey. Por que?

Na resposta a essa pergunta, estão vários dos mais freqüentes limites que se opõem ao direito, na sua eterna busca de tornar-se um sistema de realização da justiça.

Vejamos em primeiro lugar o aspecto mais propriamente técnico: Não há propriamente uma prova, mas um indício extremamente forte, de autoria. Afi nal, John Coff ey foi capturado quando tinha nos braços os cadáveres das duas meninas recém assassinadas. Tão evidente era a situação que o próprio John Coff ey nunca negou o crime. Pelo menos, não há no fi lme notícia de que isso tenha ocorrido. A rigor, não seria mesmo exagerado dizer que ele estava em fl agrante delito. Aliás, de acordo com o artigo 302, IV do Código de Processo Penal Brasileiro considera-se nessa situação quem é encontrado logo depois (de cometido um crime) com instrumentos, armas, objetos ou papéis, em situação que faça presumir ser autor da infração.

Observe-se, entre parêntesis. que o texto admite expressamente a possi-bilidade de que a autoria de um crime seja presumida de circunstâncias de

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fato. Talvez não houvesse para a hipótese redação mais adequada, mas o fato é que a defi nição legal, aceita no direito brasileiro como elemento sufi ciente para justifi car a imediata prisão de uma pessoa e, certamente, como prova re-levante em um julgamento, acaba sendo algo que afi nal há de ser sempre ne-cessariamente um juízo subjetivo, uma convicção pessoal, não uma realidade.

Outras circunstâncias de fato reforçam a convicção de que um movimento para cancelar ou suspender a execução de Coff ey estaria fadado ao fracasso. O crime foi o mais brutal deles — duas inocentes meninas cruelmente es-tupradas e assassinadas. Sem dúvida, um daqueles delitos que provoca na sociedade em que são cometidos uma verdadeira compulsão a condenar. Não pode crime desta ordem fi car impune.

Na vida real, a indignação causada por certos crimes mais chocantes exi-ge com tanta força que se encontre e puna um culpado que muitas vezes o clamor público suscita o desprezo pelas formas legais, atropela direitos fun-damentais de defesa. A justiça, em casos desse tipo, pode chegar a funcionar como mero sucedâneo ritual do linchamento, uma vingança irracional e não uma condenação com obediência às formalidades do devido processo legal.

Desnecessário salientar ainda a relevância, no caso, do preconceito racial. O fi lme é ambientado na década de 1930, em uma pequena comunidade rural do sul dos Estados Unidos, época e local conhecidos como focos de pre-conceitos exacerbados. A comunidade branca odeia os negros. John Coff ey, negro, dotado de um corpo verdadeiramente descomunal, foi julgado por um júri de brancos, presidido por um juiz branco.

Signifi cativa a esse respeito a cena do encontro de Paul Edgecomb com o advogado que defendeu John Coff ey e que se mostra absolutamente conven-cido da culpa de seu constituinte. O suposto patrono chega a comparar John Coff ey ao cão que tinha, tempos antes, atacado um seu fi lho e lhe arrancado um olho. Sem que o fi lme tenha uma só cena ou informação sobre o júri que condenou Coff ey, já se nota que ele praticamente não teve defesa.

É verdade que, no direito brasileiro, não seria necessário no caso o pa-trocínio de um advogado para tentar anular ou, pelo menos, tentar adiar a execução de Coff ey. Um hábeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa em favor de qualquer pessoa. Mas, mesmo supondo que o idêntico sistema existisse na legislação do Estado do Louisiana à época do fi lme, em qualquer avaliação sensata seria inviável imaginar que uma tentativa desse tipo tivesse qualquer possibilidade de êxito. Por outro lado, as únicas pessoas que poderiam, de fato, tentar um processo desse tipo — os guardas do corre-dor da morte, certamente poderiam sofrer retaliações se o tentassem. Até que ponto, pode-se pensar, o fato do direito como instituição ser movimentado por agentes humanos, movidos por seus interesses e receios individuais, não será também um limite do direito na realização da justiça?

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O único elemento plausível que talvez pudesse suportar uma reabertura do processo contra Coff ey seria uma confi ssão do verdadeiro assassino que todos os espectadores se convencem que foi Wild Bill Wharton. Mas, para não deixar qualquer possibilidade, o roteiro fecha essa alternativa com a mor-te de Billy.

Na bem costurada trama, o próprio John Coff ey parece não desejar a vida. Ele é um estranho, não faz parte do sistema. De nada lhe adiantaria ser salvo da morte. Como revelado por seu advogado, ninguém sabe quem ele é, que faz, nem de onde veio. Coff ey lembra por vezes o personagem central da obra O Estrangeiro do escritor e fi lósofo francês Albert Camus, ou, quem sabe, o personagem central do notável Processo, de Alexandre Kafka O direito, a lei, os tribunais, o sistema, por vezes são, para muitas pessoas, uma estranha máquina, incompreensível, quase irreal, certamente surreal.

O estranho e solene aviso feito ao condenado imediatamente antes de sua execução, que é mostrado várias vezes no fi lme, suscita possivelmente no es-pectador essa mesma sensação. Em um ritual formal, informa-se ao homem que vai morrer que ele foi condenado pelos tribunais do estado e que sofrerá uma descarga elétrica até que a morte sobrevenha... Como se ele já não sou-besse...!!! As normas formais do devido processo legal aqui aparecem como um autêntico absurdo.

Em paralelo à trama central em torno dos poderes e do destino de John Coff ey, o fi lme abre uma outra linha de especulação sobre o tema amplo, que palpita em qualquer refl exão sobre direito, do eterno confl ito entre o bem e o mal. A trama se desenrola quase toda dentro do corredor da morte. Entre os condenados, porém, supostamente os agentes do mal, dois pelos menos, John Coff ey e Delacroix, o gentil e abobalhado dono do ratinho, são apresentados ao espectador como pessoas do bem. O outro condenado, o chefe índio, de quem não se informa a razão da condenação, exibe uma imagem de altivez e seriedade que faz suspeitar que também no seu caso ocorreu uma injustiça.

Entre os condenados à morte, há, é certo, um nítido e paradigmático agen-te do mal — Wild Bill Wharton. Mas há agentes do mal, também, entre os representantes da lei. Não é sem motivo que se insere na trama o personagem Percy Wetmore, o guarda perverso, sádico, parente do governador do estado.

As linhas entre os personagens do bem e do mal são talvez propositalmen-te exageradas, quase maniqueístas, como para dizer que, dos dois lados da lei — o de seus agentes e o de seus infratores, existem pessoas, e, nas pessoas e não nas instituições, é que há de se buscar a linha entre o bem e o mal. Ser legal não signifi ca necessariamente ser ou agir corretamente; ser reconhecido como infrator da lei não quer dizer ser mau.

O tema aparece com imensa nitidez na cena da execução de Coff ey. O gigantesco e musculoso negro, sentado à cadeira onde será executado, sereno, mentalmente cantando que está no céu, é a imagem da bondade e da paz. Na

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platéia, os pais da menina assassinada proclamam impropérios e exalam um ódio destrutivo. O condenado, que tem medo do escuro e pede que não lhe coloquem o capuz na cabeça é o amor. Os pais das vítimas do crime que lhe foi atribuído, a justiça, os tribunais, o estado, são a personifi cação do ódio. Mas, ao conceder o pedido do condenado de não ser encapuzado, o guarda Paul agride os agressores. O capuz, afi nal, é para poupar à platéia o espetáculo sinistro de ver no rosto do homem que mataram os estertores da morte que lhe foi imposta.

Fica mais uma pergunta: quantas vezes, no funcionamento cotidiano, for-mal e burocrático de um sistema que busca a justiça, o bem não estará no condenado e o mal na lei?

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II — DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA (TWELVE ANGRY MEN)

RESUMO

Lançado em 1997Diretor: William FriedkinDuração: 118 minutos.(Existe uma versão anterior, em preto e branco, de 1957, dirigida por Sid-

ney Lumet, com 98 minutos de duração).

COMENTÁRIOS

O fi lme transformou-se em um autêntico clássico, como de resto indica o fato de seu enredo original haver sido novamente usado em uma segunda versão, quarenta anos após a primeira, sem nenhuma alteração de relevo no roteiro. Discute-se um limite fundamental do direito, que atormenta seus agentes desde que existe algum sistema que se possa considerar como direito: quais os verdadeiros fatos?

Na verdade, o direito sempre se exerce sobre fatos — da mihi facta, dabo tibi just, dá-me os fatos dar-te-ei o direito. Todo sistema normativo está or-ganizado dentro do pressuposto de que o julgador conhece a verdade, sabe, como Deus, tudo que ocorreu, seja no campo das ações como até mesmo no plano das intenções.

No caso concreto analisado em Doze Homens e uma Sentença existe, sem dúvida, uma verdade absoluta, um sim ou o não, sem meio termo possível: ou o rapaz matou o pai ou não o matou.

Se não matou, ninguém poderá duvidar que a única decisão justa do pro-cesso será a absolvição. Observe-se, entre parêntesis, que, mesmo em torno desta alternativa simples, o fi lme suscita indagações e mostra limites. A mera absolvição bastaria a fazer justiça? Não seria necessário ainda dar ao acusado inocente alguma forma de indenização pelo inequívoco e imenso dano moral que sofreu, por ser erroneamente acusado, pela imensa angústia de ser preso, levado a julgamento, viver horas e horas mergulhado no terror de ser julgado culpado e condenado à morte na cadeira elétrica?

Dados os fatos que o próprio fi lme mostra, não poderia, porém, ter sido diferente. Havia uma demanda natural, certamente justa, de procurar quem teria sido o autor de um crime violento; essa procura revelou indícios rele-vantes que apontavam o rapaz como um suspeito natural; onze homens, em uma primeira rodada, em um processo regular, julgaram-no culpado. Não se

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pode dizer que processa-lo tenha sido um excesso, ou confi gurasse à primeira vista um abuso de direito.

Desde há algum um tempo — relativamente recente na história do direi-to — alguns tribunais têm reconhecido em alguns casos que inocentes que foram injustamente condenados têm direito a uma indenização. Mas, mes-mo esses casos são ainda hoje apenas casos esparsos em que alguém chegou a cumprir pena ou em que ocorreram erros grosseiros. No caso do fi lme, o único erro teria sido a natural e justifi cada suspeita que a mera absolvição supostamente corrigiria.

Já aqui, portanto, surge um encadeamento tal de fatos em que é simples-mente impossível, através do direito, tal como existe no tempo presente, fazer justiça. Se não foi o rapaz quem matou o pai, ele sofreu um dano, tão grande quanto injusto, que permanecerá sem ser reparado. O fi lme pode inclusive suscitar ou induzir modifi cações no direito legislado.

Uma das primeiras indagações que Doze Homens e uma Sentença suscita é, assim, se não caberia introduzir nas legislações dispositivos que previssem indenizações a qualquer pessoa acusada de um crime e julgada inocente.

Já se, na verdade — existente mas inalcançável — o menino fosse de fato o assassino do seu pai, a condenação seria o resultado certo, a conseqüência inevitável da aplicação da lei.

Nesta hipótese, o nível de indagação é mais profundo. Estamos diante daquela que talvez seja a mais importante pergunta que permeia o direito positivo de todos os ordenamentos e de todos os tempos: qual a reação apro-priada à conduta anti-social? Que fazer com o criminoso?

No caso do fi lme o sistema normativo subjacente aos fatos é taxativo: somos informados, logo ao início, que o veredicto de culpado conduz de for-ma automática à pena de morte. Esta seria supostamente a lei do local: todo homicídio, ou, talvez, todo parricídio, é sempre e necessariamente castigado de forma extrema.

Este dado do roteiro, certamente plausível mas não necessariamente exato, amplia e baliza o debate. Temos que especular não apenas sobre qual a pu-nição justa para cada um e todos os crimes previstos nos códigos, mas tomar uma posição no clássico dilema sobre se o Estado tem ou não tem o direito de matar.

Mas a verdadeira questão, aquela em que o fi lme mostra dramaticamente os limites do direito, tem a ver com os mecanismos de apuração da verdade. Como mencionado acima, paira sobre todo sistema jurídico, em sua busca da justiça, o pressuposto do conhecimento pleno dos fatos.

A ferramenta da cultura mais especifi camente jurídica é exatamente o pro-cesso. A lei estabelece, em tese, um justo abstrato. Através o processo, esse conceito é trazido ao plano do concreto. A lei diz que matar é errado; a lei estabelece punições para o caso o efetivamente ocorrido. É através do proces-

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so que o comando legal é aplicado, que se revela quem cometeu um crime e se lhe aplica a punição prevista.

Uma parte relevante do processo é precisamente estabelecer mecanismos formais para apurar fatos. A procura de mecanismos adequados a determinar a verdade atormenta o direito desde a remota antiguidade. Já se privilegiou a confi ssão, mesmo que extraída sob tortura; já se supôs que o próprio Deus era capaz de intervir na descoberta da verdade.

Em várias culturas em épocas diversas, prescreviam-se como normas pro-cessuais as chamada ordálias, o juízo divino em que a suposta verdade apare-cia como resultado de um duelo, uma prova de resistência a sofrimento físico ou outro tipo qualquer de teste.

Veja-se, por exemplo, o complicado processo que a Bíblia (Números V, 11 a 31) descreve para determinar se uma mulher, acusada pelo marido de adultério, cometeu ou não o crime, então hediondo de deitar-se com outro homem que não seu esposo. A mulher era forçada pelo sacerdote a beber uma água contaminada. Se nada lhe acontecesse era inocente. Se passasse mal e até morresse era culpada. Deus, presente em todo lugar, inclusive no julgamento por essa forma revelaria aos juízes a verdade, os juízes emitiriam uma senten-ça que, por defi nição, realizaria a justiça posto que decorreria diretamente da própria vontade divina. A transcrição é ilustrativa:

27 — E havendo-lhe dado a beber aquela água, será que, se ela se tiver contaminado, e contra seu marido houver transgredido, a água amaldiçoante entrará nela para amargura, e o seu ventre se inchará, e consumirá sua coxa; e aquela mulher será por maldição no meio do seu povo.

28 — E, se a mulher se não tiver contaminado, mas estiver limpa, então será livre, e conceberá fi lhos.

No roteiro do fi lme, o mecanismo utilizado para determinar a verdade é o júri, criação que se pretende racional, originária da conhecida Magna Carta documentos imposto pelos nobres ingleses ao rei, no Século XIII. Um dos muitos artigos do documento proclama que ninguém poderá ser punido sem o julgamento de seus pares. Talvez que a proposta original não fosse exatamente a pesquisa da verdade dos fatos, mas uma união de uma elite poderosa contra o poder central. O rei não poderia condenar nobres sem o julgamento dos próprios nobres. Não custa lembrar que vestígios desse tipo de atitude existem hoje expressos em diversos preceitos, inclusive artigos da Constituição.

Nesses 800 anos de existência o julgamento pelos pares assumiu formas e rituais diversos. Mas a idéia é sempre a mesma: ao invés de Deus, o senso comum, a intuição dos homens de igual condição social pode determinar a verdade da culpa ou inocência de um acusado.

A rigor, em ambas as situações, está em jogo uma questão de fé. Para quem tenha fé em Deus e na possibilidade de que Ele, onipresente, possa re-

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velar a verdade, através de rituais prescritos por Seus sacerdotes — as ordálias — constituiria um processo perfeitamente lógico. A partir de uma primeira adesão, irracional por defi nição — a crença — segue-se um mecanismo per-feitamente racional para orientar julgamentos.

Em uma análise crítica, poder-se-ia afi rmar que o julgamento pelo júri tem estrutura lógica bastante semelhante: é preciso conhecer a verdade, in-dispensável a determinar se tal ou qual fato efetivamente ocorreu e como ocorreu.

Na sociedade em que vivemos hoje, em todos os países cuja cultura cap-turou e incorporou os refl exos da Magna Carta, a opinião de um número arbitrário pessoas leigas, (doze, como no fi lme, em grande parte dos estados americanos, sete no Brasil) selecionadas ao acaso, é mecanismo aceito.

Em outras palavras: assim como os antigos acreditavam que através das ordálias chegava-se à verdade dos fatos, revelada pelo ser supremo, hoje acre-ditamos que a intuição de um grupo aleatório de indivíduos exerce esse mes-mo papel.

O fi lme, porém, desnuda os reais mecanismos que movimentam o proces-so da descoberta da verdade através do júri. Homens, não deuses, os jurados, reunidos pelo acaso, expressam seus votos movidos por fatores personalíssi-mos, por vezes, moralmente repreensíveis (como, por exemplo, o jurado que queria terminar logo o julgamento para não perder a partida de beisebol), quase sempre acionados por preconceitos ou por mecanismos afetivos in-conscientes de identifi cação ou de recusa, de simpatias ou idiossincrasias. Um jurado identifi ca-se com o pai assassinado que, como ele, tinha problemas de relacionamento com o fi lho; outro aceita como verdade o preconceito contra a juventude de comunidades periféricas e por aí vai.

Subjacente a todo processo está a premissa básica da teoria da prova: com o exercício da razão é possível sopesar indícios e probabilidades e chegar a verdade. Uma testemunha ouviu a discussão entre pai e fi lho e viu passar o acusado em fuga, descendo a escada do cortiço; outra viu, com os próprios olhos (míopes), a prática do homicídio, o rapaz comprou na mesma noite uma faca de modelo raro, igual à arma do crime.

Mas o roteiro de 12 homens e uma Sentença usando também a razão e a lógica destrói ou desqualifi ca um a um todos os elementos em que se baseava a acusava. E mostra afi nal que a verdade do processo não é a verdade daquilo que realmente ocorreu, mas uma verdade construída e idealizada, que so-mente por presunção corresponde aos fatos.

Res judicata pro veritate habetur (a coisa julga tem-se por verdade). Se tem, por verdade, não necessariamente É, a verdade.

O esforço evolutivo dos mecanismos processuais para a descoberta da ver-dade é, de resto, um dos motores da transformação do direito. Hoje, recu-samos a confi ssão obtida por tortura; recusamos também a prova obtida por

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meios ilegais; as ordálias são catalogadas como relíquias históricas. A ciência aperfeiçoa a cada dia novos mecanismos técnicos; a identifi cação pelas im-pressões digitais é prova relevante, exames de DNA afastam ou confi rmam acusações de estupro ou investigações de paternidade, mecanismos eletrôni-cos fotografam autores no momento exato em que é praticado um ato ilícito e identifi cam a imagem de seu autor, telefones celulares e dispositivos de GPS confi rmam ou negam álibis.

Em alguns casos, sem dúvida, a prova pode ser de tal forma convincen-te que o julgador poderá emitir uma sentença em que a verdade dita (ou veredicto) corresponda a uma verdade real. Mas, por muito tempo, talvez sempre, será impossível ao direito produzir mecanismos tais que efetivamente descubram, sem necessidade de construir a verdade.

Permeia fi nalmente o fi lme um último elemento em que o direito se forma a partir dos seus próprios limites — a obrigação de decidir. Um juiz ou um júri não podem deixar de resolver o processo que lhes é entregue. É absolu-tamente necessário que pronunciem o seu veredicto, que digam quem tem razão, se um acusado é culpado ou inocente, que construam e proclamem uma verdade qualquer, um sim ou não.

Por isso e para isso, a teoria do direito constrói mecanismos e atalhos que levam que ajudam a encontrar uma solução. Desses, um dos mais co-nhecidos, destilado ao longo de séculos de debates, é o princípio que, na dúvida, decide-se em favor do acusado (in dubio, pro reo). Da mesma natu-reza, seguindo o mesmo tipo de raciocínio, foram construídos muitos outros princípios que orientam julgadores que têm que a decidir confl itos: A lei só retroage para benefi ciar o réu; pai é aquele que o casamento demonstra, quando duas pessoas relacionadas, marido e mulher, por exemplo, morrem em um mesmo desastre, presume-se, para efeito de herança, que quem tinha mais anos de vida morreu antes.

Sempre, sempre, o mesmo limite do direito — a impossibilidade de che-gar com certeza plena à verdade dos fatos, a construção confessada de verda-des que sabe-se de antemão não correspondem necessariamente à realidade.

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III — EM MINHA TERRA

RESUMO

Lançado em 2005Diretor: John BoormanDuração: 98 minutos.

COMENTÁRIOS

Em Minha Terra é o retrato de um momento difícil de transição política e jurídica. Para situar e debater os muitos temas jurídicos que o fi lme suscita, é indispensável o conhecimento de algumas noções essenciais da história da África do Sul. Até o fi nal do século XIX, o território da atual república era ocupado por um conglomerado de grupos nacionais e étnicos. Conviviam ali, como verdadeiras nações distintas, colônias inglesas (Natal e Cabo), co-lônias holandesas (Transvaal e Orange) e diversas tribos nativas, cada uma com sua língua e seus costumes (zulu, shosa, etc.). Essa situação provocava constantes confl itos.

No fi nal do século XIX, foram descobertas na região jazidas signifi cantes de ouro e diamantes. A exploração da riqueza encontrada defl agrou movi-mentos populacionais, exacerbou as disputas e acabou resultando, no início do século XX, em uma sangrenta guerra. Foi a chamada guerra dos bôeres em que se confrontaram as colônias inglesas e as colônias holandesas. O confl ito terminou em um acordo que unifi cou o território em uma única colônia, sob governo inglês, mas com garantias à população de origem holandesa. A esse território foi dado o nome de União Sul Africana.

O território da união compreendia também as nações aborígenes que con-tinuaram a ser percebidas como nações separadas. Em 1931, o país se tornou independente mas continuou integrando à Comunidade Britânica, da qual só se desligou defi nitivamente em 1961, quando se tornou uma república.

A riqueza e o progresso provocaram migrações que aproximaram fi sica-mente as populações. Aos poucos, os cerca de 4 milhões de descendentes de ingleses e holandeses, foram se percebendo ameaçados pela proximidade de uma população negra, social e economicamente em posição de inferioridade, mas quantitativamente bem mais numerosa (13 milhões).

A situação se agravou quando que o país se desligou da Comunidade Bri-tânica. Assumiu o poder um governo forte que aprovou sucessivas leis que formaram o chamado apartheid. Todos os habitantes eram classifi cados em 4

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raças. Só os brancos tinham direito de voto. A população de pele escura, era obrigada a viver totalmente segregada, sujeita a controles estritos.

Do ponto de vista jurídico, o regime do apartheid oferece temas fecun-dos. Leis, decretos, regulamentos, repartições e tribunais, todo um aparato sistêmico é organizado para legitimar e administrar a separação racial. Essa ordem, considerada como intrinsecamente injusta, é objeto de pressão cres-cente de outras nações.

O direito sul-africano institucionalizava o racismo; a comunidade inter-nacional reagia. Pode-se perceber aí um movimento de expansão de um dos limites mais tradicionais do direito — sua territorialidade. O direito interna-cional pressiona pela modifi cação do direito interno.

A política do apartheid gera também um círculo vicioso típico. Um es-tatuto jurídico imposto por uma minoria desagrada uma grande parte da população que, inconformada, reage. Um ordenamento imposto à força não consegue adquirir legitimidade. O direito tem que ser aceito pela comunida-de a que se destina. Esse seria como que um seu limite positivo. Nenhuma ditadura, por mais rígida que seja, é eterna e mesmo as mais bem estruturadas acabam, mais dia menos dia, por ver ruir a ordem jurídica que impuseram à população.

A temática do período de transição fornece também rico material de re-fl exão ao estudioso do direito. Mais acima, em A Morte e a Donzela, vimos alguns ângulos do que acontece quando um ordenamento jurídico é sub-metido a transformações substanciais súbitas, provocadas por uma mudança na ordem política. Em A Morte e a Donzela, Gerardo Escobar, Ministro da Justiça, é constrangido a negociar compromissos. É necessário punir atos abusivos praticados pela ditadura derrubada. Mas a punição tem que ser ne-gociada, não pode abranger indiscriminadamente todos os atos reprováveis. As circunstâncias políticas limitam o âmbito do poder de punir.

O mesmo tipo de fenômeno é o tema central de Em Minha Terra. Com uma diferença: o fi lme mostra um modo inteiramente diverso de enfrentar os dilemas da transição. Ao invés de defi nir, em abstrato, os termos da necessária anistia criou-se na África do Sul uma comissão com o propósito descrito em seu próprio nome: Comissão de Verdade e Reconciliação. A idéia era oferecer anistia plena por todos os atos reprováveis cometidos na época anterior, tanto pelo governo ditatorial e repressor quanto por seus opositores, responsáveis por muitos atentados terroristas e sangrentos; mas condicionar a concessão a confi ssões circunstanciadas e públicas. Com isso se conheceria em toda sua extensão os horrores do passado e se enfatizaria a necessidade de construir uma comunidade harmônica, uma democracia fraterna e multirracial, o país do arco-íris, como a África do Sul passou a se designar.

A idéia é que a verdade, que os mecanismos tradicionais do direito di-fi cilmente conseguem encontrar, especialmente em um contexto complexo

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como aquele em que se passa o fi lme, é um bem em si mesmo. Deve sempre ser buscada, até porque pode servir como um instrumento de reconciliação. E, depois de tantos anos de lutas e sofrimento, a reconciliação seria mais de-sejável do que a punição.

Mais uma vez, o direito deve se adequar aos interesses maiores da comu-nidade e às circunstâncias que prevalecem em um tempo determinado. Todo processo de anistia é necessariamente um processo de concessão, quase que se poderia dizer de negociação. No regime político anterior, foram cometidos delitos graves que, em um contexto normal, a ordem jurídica buscaria punir. Mas, dentro dos processos normais, qualquer esforço punitivo encontraria sérios obstáculos. É difícil apurar os fatos, mais difícil ainda prová-los de forma a convencer um tribunal. No caso, seria preciso distinguir o que foram atos legítimos de resistência a um regime opressor o que foram agressões injustifi cadas, ou, em sentido contrário, separar as medidas plenamente le-gais que se destinavam a aplicar um sistema político, severo mas plenamente legal, de exageros sádicos.

Particularmente no caso da África do Sul, um dos maiores criminosos da época ditatorial, conhecido como Dr. Morte, não procurou a Comissão de Verdade e Reconciliação e foi acusado e processado. A despeito das provas que alegadamente existiam contra ele, em um processo democrático, com obediência de todas as garantias concedidas para o exercício do direito de defesa, ele acabou por ser absolvido.

Relevante também considerar a convivência no mesmo território de cultu-ras inteiramente distintas. Não só na língua e na cor de pele se diferenciavam as tribos nativas dos descendentes de holandeses e ingleses. A noção de justiça entre os africanos, diz um dos personagens, está centrada em torno da crença em algo chamado Ubuntu, uma ordem natural e harmônica que se acredita existir no universo e na humanidade como parte dela. Um ato de cruelda-de viola essa ordem e atinge não apenas a vítima mas o próprio agente. A palavra, informa a Wikipedia, tem sido traduzida como humanidade pelos outros, ou eu sou o que sou pelo que nós somos.

No Ocidente, a palavra foi tomada de empréstimo para designar um siste-ma operacional para computador. Na ordem jurídica que estava sendo insti-tuída na África do Sul na hora em que o poder mudou de mãos, traduzia um princípio informador de uma nova ordem jurídica, muito mais compatível com verdade e reconciliação do que com inquérito e punição.

O fi lme mostra, de forma clara e fi el à realidade, o funcionamento da comissão. O grupo viajava pelo país, oferecendo anistia a quem tivesse pra-ticado qualquer ato ou omissão que constitua ofensa ou delito em um deter-minado período de tempo. A condição para a concessão da anistia era que o interessado a requeresse, que revelasse de forma completa todos os fatos relevantes e, fi nalmente, que o ato a ser anistiado tivesse sido associado a

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um objetivo político. A comissão tinha poderes para conceder a anistia, se considerasse estavam atendidos seus requisitos. A negativa da concessão não acarretava necessariamente um processo. A comissão comunicava sua decisão ao requerente, indicando seus fundamentos e avisava às pessoas que tivessem ligação com os fatos. Ficava em aberto a possibilidade de ser iniciado então um processo crime contra a pessoa não anistiada.

Observe-se, entre parêntesis que, nesse contexto, contraria-se fundamen-talmente um dos pilares básicos do devido processo legal; de fato, é inegável que a perspectiva da anistia induz e até solicita aos requerentes que depo-nham contra si mesmos. A imagem que o fi lme transmite da atuação da comissão mostra, porém, que na hipótese, foi exatamente a não obediência a esse princípio que permitiu fazer justiça. Os princípios gerais são indispensá-veis ao direito e um instrumento preciso na administração da busca pela jus-tiça. Mas, muitas vezes, esses princípios têm que ser postos de lado. Exemplo claro, que constitui um marco na história de direito, é o do conhecido Tribu-nal de Nuremberg, que julgou os líderes da Alemanha Nazista, com base em uma lei aprovada depois de cometidos os atos de que eram acusados. Aquele que talvez seja o mais sólido princípio do direito penal, consolidado há mais de duzentos anos foi simplesmente ignorado pelo tribunal e, no entanto, a opinião francamente predominante considera que foram justas as penas im-postas, a maioria das quais, de morte por enforcamento.

A lei que autorizou o funcionamento da Comissão da Verdade, se exami-nada de forma exclusivamente técnica, à luz dos princípios gerais do direi-to, continha outras impropriedades relevantes. De fato, o grande princípio subjacente ao direito penal é a procura da objetividade. O juiz tem sempre inevitavelmente um certo grau de subjetividade na apreciação dos fatos e na aplicação das normas punitivas, mas, de um modo geral, essas normas devem procurar a objetividade, defi nindo com a precisão possível os fatos puníveis e cominando as respectivas penas. A lei Sul-Africana, porém, deixou à Comis-são, nem sequer formada por juristas, um grau de subjetividade certamente exagerado.

Como foi visto, qualquer ato ou omissão que constitua ofensa ou delito podia ser anistiado. A Comissão tinha poderes para determinar ainda se o requerente da anistia revelou ou não de forma completa todos os fatos rele-vantes. É difícil, se não de todo impossível, chegar a uma determinação desse tipo de forma objetiva. A Comissão, por exemplo, parece propor a anistia a um agente do regime que confessa, diante do fi lho das vítimas, ter friamente, assassinado a tiros os pais do menino. A cena cinematográfi ca, que não se sabe mas que se presume verdadeira, é tocante. O menino órfão se abraça ao assassino dos seus pais. Mas as perguntas permanecem: teriam sido revelados efetivamente todos os fatos relevantes? Essa revelação teria sido feita de forma completa?

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Igualmente subjetiva é a outra determinação atribuída à Comissão de de-cidir se o ato ou omissão de que se pede anistia teria ou não sido associado a um objetivo político. É verdade que, em um outro artigo, a lei fornece critérios para a determinação. Esses critérios, contudo, sequer se aproximam da objetividade. Assim é que o primeiro critério é justamente algo, por defi -nição, impossível de defi nir: O motivo da pessoa que cometeu o ato, omissão ou ofensa. Ou seja, o mesmo ato pode ser ser anistiado ou não, conforme algo que está apenas no plano da intenção do agente. O outro item da mesma lista de critérios estabelece que não é anistiável a omissão ou ato praticado em razão de perversidade, má intenção, ou rancor contra a vítima. Novamente algo pela própria natureza totalmente subjetivo.

Como no Tribunal de Nuremberg, a negação de princípios considerados essenciais à aplicação justa da lei penal é evidente; mas também, como no Tribunal de Nuremberg, o espectador de Em minha terra é levado até a fi car satisfeito que o chefe de um centro de torturas não receba o benefício e seja, no fi nal do fi lme, detido e conduzido a um tribunal, supostamente por ter cometido os atos confessados, movido por perversidade.

Revela-se aqui, com nitidez aquele que seja talvez o mais difícil de superar dos limites do direito: a norma jurídica, por natureza, mesmo quando, nos sistemas do common law, é abstraída de situações concretas, visa defi nir pa-râmetros amplos, gerar hoje um texto que vai regular fatos que vão ocorrer amanhã e cujas circunstâncias não podem ser previstas. A objetividade dese-jada acaba por ceder a circunstâncias do momento.

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IV— A MORTE E A DONZELA (DEATH AND THE MAIDEN)

RESUMO

Lançado em: 1994Diretor: Roman PolanskiDuração: 103 minutos

COMENTÁRIOS

O eterno esforço da descoberta da verdade é, mais uma vez, o primeiro dos temas que este fi lme aborda. Foi ou não Roberto quem estuprou Paulina?

É certo que, ao fi nal, fi ca claro ao espectador que sim. Mas a certeza vem apenas da confi ssão espontânea, proferida quase como um ato de vingança, no momento em que Paulina se prepara para matar Roberto, empurrando-o amarrado do precipício á beira do qual se encontram. Esta confi ssão, porém, não está registrada. Suas únicas testemunhas foram a própria Paulina e Ge-rardo seu marido. Se o caso fosse levado a julgamento, seus depoimentos, por certo, teriam muito pouco valor probatório.

Praticamente nenhum valor teria tampouco a confi ssão registrada no ví-deo gravado na casa de Gerardo, extraída sob evidente coação. A certeza de Paulina está baseada na audição e no olfato. Ela se recorda da voz e do odor do homem que a torturou. Para ela é quanto basta. Mas sua convicção não seria sufi ciente em um julgamento onde a palavra da vitima seria confrontada com a palavra do acusado. Na dúvida, o mais provável é que um júri decidisse pelo réu.

Alguns anos já se passaram, Paulina estava, na ocasião em que sofreu o estupro, sob intensa pressão, o que prejudica a credibilidade de suas memó-rias. E, como se não bastasse, Roberto construiu um álibi que difi cilmente poderia ser destruído; sua alegação que, à época do fato, estava estagiando em um hospital espanhol.

Como nos outros fi lmes até aqui comentados, a verdade real, que o espec-tador conhece, não apareceria em um julgamento.

Mas, no caso, não se cogita de julgamento. Mesmo que houvesse uma prova incontestável de sua culpa, Roberto Miranda não seria processado pelo que fez a Paulina. Uma lei, elaborada pelo próprio Gerardo, Ministro da Justiça, estabelece que as arbitrariedades cometidas durante a ditadura recém derrubada só sejam investigadas nos casos em que tenha havido morte. Pau-lina sofreu, padeceu sofrimentos intensos, lesões irreparáveis, físicas e morais. Não poderá nunca ter fi lhos; desenvolveu até uma barreira psicológica que a

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impede de ouvir e apreciar aquele que era seu compositor favorito. Mas seu algoz, ainda que fosse possível identifi ca-lo e provar sua culpa, tem inquestio-navelmente, por lei, o direito de permanecer impune.

A hipótese concreta, no caso, é bastante comum. Ocorreu no país onde o fi lme é ambientado (presumidamente o Chile), ocorreu na África do Sul, ocorreu no Brasil com a lei de anistia, há de ter ocorrido em outros países em outras épocas. As circunstâncias e ponderações de caráter sócio-político pro-duzem uma lei que torna direito positivo aquilo que não é justo. O direito, tal como pronunciado pelo novo governo, acha preferível para a sociedade a que se vai aplicar, esquecer crimes hediondos, que permanecem marcados com intensidade na memória das vítimas, enquanto seus autores e a socieda-de são autorizados, até convidados, a esquecer.

O direito, afi nal, todo direito, representa sempre escolhas. A busca da justiça é, ou supostamente deveria ser, o critério fundamental para a elabora-ção de leis. Mas não é o único. A sociedade, ou os que falam em nome dela, podem preferir, como no fi lme, que a busca de justiça ceda a interesses sociais de outra ordem.

Resta indagar se o único exemplo de conjunto de circunstâncias em que paradoxo desse tipo ocorre seria o de períodos especiais de transição de um regime de força para um regime de direito.

É certo, até freqüente, que leis que defi nem crimes, caiam em desuso por-que mudam os costumes. Durante muitos anos o adultério foi defi nido, no Brasil, como crime, mas a jurisprudência constantemente ignorou a lei, afi -nal revogada. Mas, existirão outras hipóteses em que uma lei, formalmente perfeita, consagra por opção, como em A Morte e a Donzela, uma óbvia in-justiça? Não legitimariam, por exemplo, injustiças todas as leis, essenciais à segurança do direito, que instituem a prescrição e o usucapião? É razoável permitir que o invasor se torne o legítimo proprietário do lote que invadiu? Que um assaltante, pelo simples fato da passagem do tempo, adquira pela posse título legítimo sobre o bem que roubou? Ficam as perguntas. E a no-ção, essencial, que o direito é sempre uma ponderação de interesses sociais, muitas vezes contraditórios.

Mas a questão fundamental suscitada por A Morte e a Donzela parece mais profunda, e toca em um dos pilares básicos de todas as construções jurídicas de todos os tempos, qual seja a fundamentação e o objetivo das penas impos-tas pelas leis de todas as culturas aos que cometem atos considerados lesivos à sociedade.

Por que é geralmente considerado justo punir? Há, é certo, o efeito exem-plar — punindo o criminoso gera-se receio em potenciais criminosos futuros, e assim, presumidamente, evitam-se alguns crimes. Há ainda o pretenso efei-to reparação — a punição seria justifi cada como um mecanismo de corrigir o infrator.

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Mas é também bastante disseminada a idéia de que o castigo imposto ao criminoso faz justiça à vítima de um crime. A palavra justiça é muitas vezes pronunciada como uma interjeição, expressando um clamor de vingan-ça contra o criminoso. Justiça! Justiça! pedem pai, mãe e parentes de uma criança assassinada. Essa seria até uma atitude quase natural, verdadeiramen-te cotidiana.

Paulina tinha sido também vítima de um crime bárbaro e deveria suposta-mente desejar que seu algoz fosse punido pela lei. O roteiro do fi lme, de resto mostra claramente que é esta a vontade de Paulina. Ela censura o marido ministro por ter sugerido ao presidente que só fossem investigados atos arbi-trários do esquema de repressão do governo anterior que tivessem resultado em morte. Ela, Paulina foi torturada, sofreu muito e não se conforma que uma lei possa livrar de pena quem a torturou.

Mas quando Paulina, afi nal, encontra aquele que reconhece como tendo sido quem a violentou, ela se confunde. Parece, em primeiro lugar, querer simplesmente mata-lo. Provavelmente era esse seu plano quando roubou o carro de Roberto Miranda e o atirou de um abismo, cogitando de, em se-guida, atirar dele o próprio Roberto. Mas, antes, é compulsivamente levada a tentar obter de seu algoz uma confi ssão. Uma confi ssão absurda, extraída à força, repetindo um texto ditado por ela própria, que aponta um revólver contra Roberto. Mas Paulina, assim mesmo quer compulsivamente que Ro-berto confesse.

É necessário para ela destruir, perante o próprio Roberto, a imagem de cidadão respeitável, de médico conhecido e competente que ele projeta de si mesmo. Os outros podem até continuar a aceitar essa imagem e toma-la como verdadeira. Mas ela, Paulina, seu marido — o Ministro da Justiça — ao olhar no futuro para Roberto saberão que estão contemplando um tortura-dor, um criminoso confesso. E o próprio Roberto, diante deles não poderá manter a pose. Talvez Paulina espere — ou, se não esperar, imagine — que Roberto não se esquecerá da própria confi ssão e, ao olhar-se todos os dias no espelho, veja o monstro sádico que foi na noite em que a torturou.

A técnica do diretor induz o espectador exatamente a esse sentimento quando, na última cena do fi lme, vê com desprezo a fi gura solene, agora desmascarada, de Roberto Miranda que assiste a um conserto acariciando a cabeça dos fi lhos.

E toca-se justamente A Morte e a Donzela — o famoso quarteto de Schu-bert que Paulina apreciava e que o sádico Roberto fi zera-a ouvir enquanto era estuprada. A confi ssão de Roberto curou a vítima de um dos traumas psíqui-cos que o estupro lhe provocara. A tomada de consciência pelo criminoso, admitida de viva voz, em confi ssão da própria culpa vinda do fundo de sua alma, deu a ela uma satisfação maior do que talvez lhe tivesse dado a punição.

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Justiça, justiça mesmo, incontestável, só haveria se o crime não tivesse acontecido. Depois que aconteceu, não é mais possível justiça pura. Mas, A Morte e a Donzela nos leva a pensar em satisfações outras a dar a vítimas, que não impor simplesmente um castigo ao autor de um crime.

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V — INVASÕES BÁRBARAS

RESUMO

Lançado em 2003Diretor: Denys ArcandDuração: 99 minutos

COMENTÁRIOS

Começando pelo próprio título, Invasões Bárbaras carrega ponderável e signifi cativa quantidade de simbolismo. Com efeito, o fi lme é o segundo de uma trilogia que começa com O Declínio do Império Americano e termina com A Idade das Trevas (L’Âge des Ténèbres, no original, lançado no Brasil como A Era da Inocência). A implicação é óbvia: o fi nal do Século XX observa a perda de infl uência relativa dos E.U.A. sobre o resto do mundo; os Estados Unidos decaem como, ao fi nal da antiguidade clássica, entrou em declínio e caiu o Império Romano.

O atentado às torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, que é mostrado em Invasões Bárbaras como estando a ocorrer exatamente no dia em que o personagem central é visto internado em um hospital, seria o marco de uma verdadeira mudança de era, o início de uma nova Idade Média, historicamen-te também conhecida como A Idade das Trevas.

Como será, no enredo do fi lme, essa nova era, que tem como marco o início do século XXI? O cenário que se depreende da trama desencoraja. Os valores tradicionais, que marcaram a era do predomínio americano, estão todos em decadência.

A família, centrada no amor conjugal, está em vias de desaparecimento. Remy, o personagem central, é um velho libertino. Suas antigas amigas dos tempos de universidade vivem sós, ambas com uma atitude quase cínica em relação ao amor e ao sexo. Sua mulher e sua fi lha também vivem sós. De seus amigos homens, um está casado com uma mulher que o aborrece e limita e da qual afi nal se separa. Dois outros vivem juntos e felizes, uma relação ho-mossexual. E até mesmo a namorada de seu fi lho Sébastien, que parece viven-ciar com ele uma relação estável, proclama veementemente que não acredita no amor e declara sua imensa decepção com o casamento, recordando sua infância de fi lha de pais separados.

A religião também é um valor em vias de desaparecimento. Logo ao início do fi lme, o sacramento católico da comunhão é distribuído mecanicamente por uma freira apressada que corre o hospital e chega mesmo, por engano,

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a oferecer a comunhão a um muçulmano. Remy ironiza a religião todo o tempo. Refere-se ao papa João Paulo II como um polonês sinistro e à simbólica Madre Tereza de Calcutá como uma albanesa viscosa. Como que para marcar ainda mais a mensagem, em uma cena um tanto artifi cialmente inserida no enredo, a namorada de Sébastien, que trabalha em uma famosa casa de leilões de Londres, vai, a serviço, visitar uma igreja de Montreal que tenta vender pelo melhor preço objetos de culto e imagens e esculturas de anjos e santos. Muitas igrejas estão fechando, há um grande estoque de objetos sagrados sem uso, armazenados em um galpão. E, o que é pior, não têm sequer valor co-mercial de mercado. As peças mais valiosas, antigas, já foram todas há muito vendidas.

Também o trabalho é desmerecido. Remy e seus amigos são professores desiludidos. Já abraçaram várias teorias, foram devotos de diversos ismos, hoje são apenas céticos mal remunerados. A burocrata que gere o hospital onde Remy está internado é corrupta e aceita suborno para remover o paciente para um andar desocupado. O líder sindical igualmente pede dinheiro para não usar o seu poder e objetar-se à obra necessária para remodelar o andar do hospital onde Sébastien vai internar Remy. E, também por dinheiro, devolve o computador de Sébastien que havia sido furtado do leito de Remy. O médi-co do hospital é desatento, troca o nome de Remy e não percebe quando ele se apresenta drogado. Até a polícia preocupa-se mais em manter as aparências que em coibir o tráfi co de drogas. Só quem realmente trabalha é Sébastien e sua namorada, mas trabalham em empregos argentários, ele no mercado fi nanceiro, ela em uma casa de leilões. Trabalhar, com gosto, com um ideal é coisa do passado; trabalha-se mecanicamente ou apenas para ganhar muito dinheiro.

O uso disseminado de drogas esgarça o próprio tecido social. O mercado é estável e tranquilo. A polícia sabe que existe e o tolera. De vez em quan-do, para salvar as aparências, prende um ou outro trafi cante, geralmente um imigrante incômodo. Mas sabe que a elite intelectual da sociedade precisa da droga. Pessoas sensíveis e delicadas, como a fi lha da amiga de Remy, que fornece heroína a Sebastien para aliviar as dores do pai, é uma viciada, uma junkie, um lixo.

É claro que todo esse conjunto que indica o término de uma era e o início de uma nova idade afeta o direito. A simples enumeração dos fatos da trama já mostra um verdadeiro abismo entre o estatuto legal da sociedade onde se desenrola e a respectiva realidade fática. O crime mais pernicioso, o tráfi co de drogas, é tolerado; as estruturas jurídico-sociais de proteção fracassaram. A universalização, obrigatória por lei, da saúde pública resulta em um atendi-mento democrático e igualitário, sim, mas extremamente inefi ciente. Todos são igualmente mal atendidos, sem falar no convite à corrupção a que o

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sistema parece conduzir. A organização sindical, estruturada para proteger os trabalhadores, tornou-se um instrumento ideal para a extorsão.

O descompasso entre os objetivos declarados da ordem jurídica e seus resultados na vida real acaba sendo o tema central do fi lme, especialmente se olhado na ótica de Sebastien, seu personagem principal. Afi nal, o eixo afetivo da história é o desvelo de Sébastien por seu pai agonizante, que começa como o cumprimento de uma obrigação, em homenagem à sua mãe e evolui para o desenvolvimento de um genuíno e tocante amor fi lial.

Nessa trajetória, Sébastien mostra-se ao espectador como um homem sen-sível, com um comportamento moral absolutamente louvável, a expressão mesma da bondade e do amor fi lial. Mas exatamente para exercer esse amor fi lial, Sébastien vê-se constrangido a infringir diversas leis, a cometer diver-sos crimes: suborna a diretora do hospital, atenta contra a organização do trabalho em suas negociações com sindicato, transforma seu pai agonizante em usuário de drogas, e, fi nalmente, promove a própria morte do pai em um ritual festivo.

A questão jurídica é crucial: em um mundo ideal, só deveriam ser alcança-dos pela lei penal comportamentos que a sociedade considerasse ofensivos. E, no entanto, no Canadá do novo milênio que se iniciava, o amor fi lial e a bon-dade geram várias ações passíveis de sanção criminal. Será esse descompasso natural? Estará a lei errada? Vivemos uma era em que a lei está distanciada do ideário social? Ou o fi lme retrata tão somente uma seqüência excepcional de fatos?

Um debate dentro dessas linhas difi cilmente levará a alguma conclusão defi nitiva. Mas certamente conduzirá a uma refl exão sobre a necessidade do direito de movimentar-se, sempre à procura de um equilíbrio, eternamente buscado e nunca completamente alcançado, com o ambiente social onde é produzido e se aplica.

Indo um pouco mais adiante, talvez se pudesse rotular como um dos limi-tes do direito, um dos motivos para que às vezes o direito se afaste do justo, é exatamente que o direito é gerado hoje sobre os fatos de ontem para regular o amanhã.

Menos mal que a mensagem fi nal é certamente otimista. Rémy morre, mas morre contente, em clima de festa, rodeado de amigos, com o fi lho cari-nhoso a seu lado, vendo a imagem da fi lha que, do meio do Oceano Pacífi co, lhe manda beijos e lágrimas. A viciada ganha de Sébastien o apartamento que era do pai e indica que vai caminhar para a regeneração. O telefone celular de Sébastien é atirado ao fogo, como a simbolizar a descoberta de uma nova atitude em relação ao trabalho. E, no avião que decola para o fi nal do fi lme, a companheira de Sébastien demonstra ter passado a acreditar no amor fazen-do ao namorado uma espontânea e apaixonada declaração.

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Caberia, em face a esse fi nal, considerar que as perguntas sobre o descom-passo entre o ordenamento jurídico e a trama do fi lme seriam meras circuns-tâncias? Que na verdade o direito canadense do Século XXI estaria ainda efetivamente afi nado com os valores culturais da sociedade? Talvez sim talvez não. Mas, em qualquer caso, cabe sempre especular como o ordenamento jurídico, do Canadá e do mundo, está se adaptando às colossais mudanças que a revolução tecnológica está suscitando na organização das comunidades humanas.

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VI — AS BRUXAS DE SALEM

RESUMO

Lançado em 2003Diretor: Andrew JareckiDuração: 107 minutos

COMENTÁRIOS

Exceto pelas cenas do suposto envolvimento adúltero de Abigail com John, o fi lme de Andrew Jarecki segue com fi delidade o roteiro da peça de Arthur Miller que, por sua vez, traduz de forma bastante verossímil os acon-tecimentos que ocorreram em Salem, Massachussets, na última década do século XVII. Em decorrência de um processo por bruxaria, entre 3% e 4% do total dos habitantes do vilarejo à época foram mortos, 19 pessoas enforcadas, um velho que morreu sob tortura e mais 13 acusados morreram na prisão.

Aos olhos de um espectador atual, a história causa arrepios, soa a barbárie e superstição. Não obstante, entender sua lógica, à luz dos conceitos da épo-ca, será um exercício útil a compreender os limites eternos do direito.

Atrás dos acontecimentos de Salem está um princípio básico do direito, aceito em todos os tempos e em todas as culturas: a ordem jurídica precisa re-agir a danos injustifi cados, causado por um indivíduo a outro e, com mais vi-gor, a danos causados à coletividade. Uma pessoa que, mobilizando forças so-brenaturais, provoque prejuízos é, sem qualquer dúvida, um inimigo público a ser severamente reprimido. Lesa não apenas as vítimas diretas do malefício e, ao mesmo tempo, causa enorme inquietação na comunidade. À época em que se passa o fi lme, era crença geralmente aceita que existiam feiticeiros(as) e bruxos (as) que, por meios os mais variados, poderiam provocar perdas de colheitas, epidemias, mortes de pessoas e mesmo pequenos danos.

Quase trezentos anos antes, em 1484, em obra famosa, dois respeitáveis sacerdotes afi rmavam de forma taxativa:

... as bruxas matam animais, principalmente gado, da mesma forma que matam seres humanos. São capazes de enfeitiça-los com o toque de suas mãos ou com o seu olhar. Ou colocando sob a soleira da porta do estábulo, ou junto à cocheira onde bebem água, algum feitiço amuleto ou bruxaria. (KRAMER, H. e SPRENGER, J. O Martelo das Feiticeiras. Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1991, pg. 294).

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Ainda hoje, não são poucas as pessoas que acreditam que existem no mun-do forças não explicadas, que podem ser acionadas, para o bem ou para o mal. Em meu livro O Direito no Cinema (pg.110), cito a título de exemplo, um caso ocorrido em Feira de Santana, Estado da Bahia, noticiado pelo jor-nal O Globo de 22 de abril de 2006: uma mulher, acreditando que sua vizi-nha tinha feito contra ela um feitiço que causou a morte de seu fi lho, enviou aos fi lhos dessa vizinha, um menino de 6 e uma menina de 9 anos, um pote de doces, misturado com um poderoso veneno para matar ratos, que causou a morte das crianças. No caso, a suposta vítima do feitiço, reagiu, sem dúvida de forma excessiva.

De fato, muitas pessoas, no Brasil, milhões delas, acreditam, com a mesma força com que a cultura predominante acredita na ciência e na razão (ou até com maior intensidade), que podem sofrer prejuízos por causa de feitiços ou maus olhados. A estas pessoas, o direito não oferece qualquer forma de remédio. Suas crenças simplesmente não são reconhecidas pelo ordenamento jurídico vigente.

Imagine-se, por absurdo, que a mulher de Feira de Santana, ao invés de vingar-se do feitiço que, na sua percepção, causara a morte de seu fi lho, man-dando à vizinha um bolo envenenado, denunciasse essa vizinha às autorida-des policiais e em seu depoimento declarasse: por causa de um feitiço feito por ela, meu fi lho morreu; quero que ela seja punida.

É evidente que o depoimento não seria tomado em consideração e a mu-lher seria objeto de chacota, e, quase certamente tida como louca; e até, em uma análise mais ampla, talvez até fi casse sujeita a ter que pagar danos morais à suposta feiticeira.

Tampouco na esfera cível teria acolhida, por exemplo, uma ação de perdas e danos movida por alguém que foi demitido de um bom emprego por causa de um trabalho feito por um invejoso, contra ele e que, no seu modo de ver, teria sido o real causador do dano.

No entanto, em ambos os exemplos acima, o real e o imaginário, alguém sofreu um dano e, em boa fé, quase que se poderia dizer no exercício de seu direito constitucional de liberdade de crença, acredita piamente que outra pessoa foi diretamente responsável pela ocorrência desse dano.

O direito de hoje não oferece para essa situação qualquer remédio. Sim-plesmente porque a crença da vítima não fi gura entre as crenças compartilha-das pela sociedade do lugar e da época em que vive.

E note-se que é esta mesma sociedade que parece a cada dia alargar mais o conceito de responsabilidade por danos. Nos dias atuais, a cada acidente de que se tem notícia, um desastre de ônibus, um atropelamento, a morte não esperada de um paciente em hospital, o movimento inicial que se perce-be é precisamente, apurar as causas, procurar culpados e responsabilizá-los, civil e até criminalmente. Cresce também o número de leis que criam novos

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casos de responsabilidade dita objetiva, atribuindo a obrigação de indenizar a quem quer que possa ser responsabilizado por um dano, mesmo que este decorra de atos perfeitamente legais, praticados sem dolo ou culpa.

Dir-se-á que, nos exemplos fi gurados, é impossível a comprovação objeti-va da causação do dano. E, de fato, com o nível de informação hoje disponí-vel, a assassina de feira de Santana ou, no exemplo hipotético, o empregado demitido, podem mobilizar em apoio de suas alegações, apenas a própria convicção, não compartilhada pela maioria da população.

Nada nos diz, porém, com certeza, que amanhã novas descobertas cien-tífi cas não virão a comprovar que a força psicológica defl agrada pelo desejo forte de fazer mal tem a possibilidade física de efetivamente causar esse mal. Exemplos de situações análogas ainda que não idênticas, são inúmeros. Uma prostituta tem a certeza que o fi lho que concebeu é fi lho de um determinado cliente ocasional. Há alguns anos nenhum juiz julgaria procedente uma ação de investigação de paternidade contra esse cliente. Hoje, ao contrário, a pa-ternidade seria comprovável pelo exame de DNA e seria certamente reconhe-cida em juízo. É plausível imaginar que estudos mais profundos das forças da mente venham no futuro a mostrar que cientifi camente certos estão os que crêem que maus olhados ou trabalhos colocados em encruzilhadas podem provocar danos.

No contexto desta obra, a especulação acima é, afi nal, apenas mais um modo de ilustrar uma verdade indiscutível: um dos limites mais nítidos do direito, talvez aquele que, na realidade, seja o mais difícil de transpor na sua busca pela justiça, é que tanto direito quanto justiça são conceitos culturais, produzidos por culturas determinadas, válidos apenas para lugares e épocas determinadas.

No caso das bruxas de Salem, porém, mesmo pelos padrões da época, o direito legitimou uma injustiça, tanto assim que, pouco tempo depois, em 1702, as sentenças de morte foram ofi cialmente declaradas nulas. A anulação foi justifi cada no fato de ter sido revogada uma lei que admitia a chamada prova espectral. A rigor não se tratava realmente de prova. A prova, no caso concreto, fora o depoimento das meninas, supostamente enfeitiçadas, e que acusavam pessoas de as atormentarem, sob a forma de espectros que se desli-gavam do próprio corpo.

Retraçando os fatos: houve um dano, a depressão sofrida pela fi lha do Re-verendo Parris e as convulsões e ataques histéricos de Abigail e de outras mo-ças da cidade. Era preciso determinar a origem do dano e, na falta de outra explicação, concluiu-se haver um caso de intervenção de forças sobrenaturais, no caso tanto mais plausível pois as meninas haviam sido vistas em um ritual de verdadeira feitiçaria. A escrava Tituba, parte do grupo e participante con-fessa de uma religião animista, confi rmava a hipótese. As próprias meninas, culpadas de terem sido apanhadas em uma prática considerada reprovável,

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infl uenciaram-se umas às outras para as atitudes nitidamente histéricas que assumiram.

O cenário era propício e defl agrou-se o processo. Havia uma feitiçaria, Tituba confessara — como na vida real efetivamente confessou — que se dedicava a uma religião animista e bastou um primeiro caso — as meninas acusaram uma pessoa mal vista na comunidade de atormentá-las em espectro — para que logo a onda de denúncias se espelhasse, com os resultados que o fi lme mostra e que causaram tantas mortes.

Um outro instituto tipicamente jurídico acelerou o processo. A lei da épo-ca, nesse particular com pontos de contato com o que seria, atualmente a delação premiada, poupava da pena de enforcamento, cominada às atividades de feitiçaria, as pessoas que confessassem seu crime. A confi ssão fazia que passassem a ser percebidas como vítimas de forças do mal que lutavam para superar e que precisavam mais de ajuda que de punição. Mal comparando, o processo não deixa de lembrar o drama atual das vítimas do crack que tam-bém deixam de ser perseguidas para serem supostamente tratadas se concor-dam em colaborar.

A circunstância, mostrada do fi lme de forma dramática, por John Proctor, ilustra uma vez mais, por um ângulo diverso, o esforço do direito na busca de mecanismos que ajudem a determinar a verdade dos fatos. Note-se que, à mesma época, utilizava-se amplamente na Europa a tortura como forma legítima de obter confi ssões. Foi evidentemente sob tortura que a bruxa de nome Agnes, explicou ao inquisidor que a interrogava como tinha consegui-do matar vários cavalos e vacas:

Colocamos debaixo da soleira do estábulo diferentes tipos de ossos de ani-mais e assim procedemos em nome de Satanás e de todos os outros demônios. (Kramer e Sprenger, ob.cit. pg. 294).

Na verdade identifi ca-se nos episódios de Salem, de onde se originou, aliás a expressão coloquial caça às bruxas, um dos mais críticos limites do direi-to: o sistema jurídico é frequentemente mobilizado como uma construção supostamente racional, para atender a uma demanda irracional, derivada de um clamor da comunidade. Era impossível à população local deixar de reagir com fi rmeza quando meninas de famílias puritanas sofrem evidentes distúr-bios psicológicos que são diagnosticados pelas autoridades eclesiásticas como causados por intervenção das forças do mal.

Fenômeno análogo repete-se em cenários e épocas diversas. Pode ser iden-tifi cado na orgia de sangue que foi o período da Revolução Francesa conhe-cido como o Terror que levou à guilhotina, em processos sumários, milhares de pessoas. Nos Estados Unidos, o próprio autor da peça teatral que resultou no fi lme As Bruxas de Salem, confessadamente inspirou-se na mobilização

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suscitada, nos anos 50 do Século XX, pelo Senador Joseph McCarthy, que denunciou algo a que chamou de perigo vermelho, a partir de uma lista de pessoas em posições importantes, supostamente ligadas ao partido comunis-ta. O processo foi conduzido por uma comissão parlamentar para investigar atividades anti-americanas, que levou à execração pública e perseguiu severa-mente muitas pessoas, inclusive artistas e escritores.

Episódios desse tipo continuam a ocorrer hoje e, provavelmente serão um obstáculo constante na busca do direito pela justiça. A implantação do pâni-co no ambiente social ofusca o senso de justiça e leva o direito ao caminho de tentar promover e legitimar movimentos que muitas vezes podem tornar-se fontes ignominiosas de brutais injustiças.

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GABRIEL LACERDAAdvogado, formado pela PUC — RJ e mestrado pela Universidade de Harvard (EUA). É sócio aposentado do Escritório Trench Rossi Watanabe, trabalhou em outros escritórios. Trabalhou também como advogado interno em algumas empresas, inclusive Caemi, Brascan, Petrobrás. Foi professor da PUC-RJ, e responsável por cursos na Coppe/UFRJ e na FGV onde participou da equipe do CEP. Atualmente conduz a atividade complementar; Direito no Cinema na Graduação da Fundação Getúlio Vargas. Escreveu, os livros Direito no Cinema, Nazismo Cinema e Direito, Em Segredo de Justiça, Eu Tenho Direito, O Estado é Você, Agir bem é bom, entre outros.

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FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

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Joaquim FalcãoDIRETOR

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

Rodrigo ViannaVICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO

Thiago Bottino do AmaralCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

André Pacheco Teixeira MendesCOORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Cristina Nacif AlvesCOORDENADORA DE ENSINO

Marília AraújoCOORDENADORA EXECUTIVA DA GRADUAÇÃO

Paula SpielerCOORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS