limites da supremacia do interesse pÚblico … · confia ao senhor a tua sorte, espera nele, e ele...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
LIMITES DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO QUANDO CONTRAPOSTOS AO INTERESSE DO CIDADÃO
DENISE MARTINS MOURA SILVA
São Cristóvão-SE 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
DENISE MARTINS MOURA SILVA
LIMITES DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO QUANDO CONTRAPOSTOS AO INTERESSE DO CIDADÃO
Dissertação apresentada à Universidade Federal de Sergipe - UFS, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração Constitucionalização do Direito.
Orientador: Prof. Dr. Henrique Ribeiro Cardoso.
São Cristóvão-SE 2013
DENISE MARTINS MOURA SILVA
LIMITES DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO QUANDO CONTRAPOSTOS AO INTERESSE DO CIDADÃO
Dissertação apresentada à Universidade Federal de Sergipe - UFS, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, área de concentração Constitucionalização do Direito.
Aprovada em 09/07/2013.
Banca Examinadora:
___________________________________________
Prof. Dr. Henrique Ribeiro Cardoso Universidade Federal de Sergipe - UFS
Orientador
___________________________________________ Prof. Dr. Lucas Gonçalves da Silva
Universidade Federal de Sergipe - UFS 1ª Examinador
___________________________________________ Prof.° Dr.º Adrualdo de Lima Catão
Universidade Federal de Alagoas - UFAL 2ª Examinador
Ao Amor, materializado através de meus amados filhos, Carla e Rodolfo. Não se esqueçam que o coração fala e que ele diz amor.
Pelo crescimento na minha fé em Deus, sendo Ele o meu Fiel Condutor, não me deixando desanimar e sempre me lembrando do que é coragem.
Aos meus amados pais, por serem os mais perfeitos mestres da minha vida. A vocês, todo o meu amor.
A Luiz Mário, meu marido, meu companheiro e meu amigo, paciente nessa caminhada. Obrigada, por me apoiar sempre, por amor.
A Carla e a Rodolfo, filhos amados e que são o meu estímulo e a minha força para a concretização desse mestrado.
A Família Moura - S2, mesmo sabendo que a torcida é constante, obrigada por compreenderem as ausências e suportarem a minha inquietação.
A Suzana, amiga-irmã, sempre de todas as horas, todo o meu eterno agradecimento.
Aos professores da UFS, em especial, Henrique Ribeiro Cardoso, dedicado orientador, pelos ensinamentos jurídicos e por me orientar a perseguir o ideal.
Ao reencontro com a amiga Ana Paula Machado e aos novos encontros com pessoas especiais durante esse mestrado da UFS, como Anna Paula Santana e Vilma Machado, pelas quais tenho toda gratidão, amparada na amizade recíproca e nas dificuldades de um discente.
Aos amigos do TJSE: Natanael, Riveraldo, Wagner, Langêsson, Raimunda e Hortência pelo verdadeiro apoio na realização dos trabalhos.
A Nilza, por me auxiliar no bom andamento do lar.
Sem vocês, essa dissertação nada seria.
“Põe tuas delícias no Senhor, e os desejos do teu coração Ele atenderá. Confia ao Senhor a tua sorte, espera Nele, e Ele agirá. Como a luz, fará brilhar a tua justiça; e como o sol do meio-dia, o teu direito.”
Salmo, 36: 4,6.
RESUMO
A presente dissertação versa sobre o dito princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular, sendo este considerado no direito administrativo brasileiro como um dos seus pilares, quando contrapostos aos interesses do cidadão. Objetiva-se examinar se esse princípio implícito realmente existe no ordenamento jurídico. Para tanto, em sede introdutória, discorre-se sobre notas históricas acerca do direito administrativo e do poder estatal, além de buscar a origem e relevância do princípio da supremacia do interesse público, investigando o conceito indeterminado do interesse público, bem como os diversos entendimentos acerca do comentado princípio e sua influência na construção do direito administrativo atual com reflexos diante essencialmente do período do Estado Social, em busca da conquista de uma cidadania plena de direitos. Em seguida, passa-se a investigar a situação do indivíduo, diante dos direitos e garantias fundamentais, inerente à sua dignidade humana. Prossegue-se fazendo uma averiguação acerca dos conceitos existentes sobre norma jurídica, pormenorizando o conceito de princípio jurídico, além de identificar a proporcionalidade como medida de ponderação de valores fundamentais e não como princípio. A conclusão alcançada perpassa pelo sopesamento e pela mitigação do princípio em prol do Estado Democrático de Direito e da proteção ao cidadão.
Palavras-chave: Supremacia; interesse público; interesse particular; Estado; cidadão; princípio.
ABSTRACT
This dissertation examines the stated principle of the supremacy of the public interest over private interest, which is considered in the Brazilian administrative law as one of its pillars, as opposed to the interests of the citizen. The objective is to examine whether this implicit principle really exists in the legal system. Therefore, based on introductory talks-about historical notes about administrative law and state power, and seek the origin and relevance of the principle of the supremacy of the public interest, investigating the indeterminate concept of the public interest as well as the various understandings light on this principle and its influence on the construction of administrative law with current reflections on essentially the period of the welfare state, in pursuit of achievement of full citizenship rights. Then goes on to investigate the situation of the individual, on the rights and guarantees inherent to human dignity. We continue doing an investigation on existing concepts about legal standard, detailing the concept of legal principle and identify proportionality as a measure for weighting of core values and not as a principle. The conclusion reached by pervades counterbalancing and the mitigation principle in favor of the democratic rule of law and protecting citizens.
Keywords: Supremacy; public interest; particular interest; state; citizen; principle.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I .......................................................................................................................... 14
1 – ORIGEM E RELEVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO PARA A CONSTRUÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO .................... 14
1.1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................ 14
1.1.1 – Da normatização do direito administrativo ..................................................... 15
1.1.2 – Do poder estatal - contextualização .................................................................. 21
1.2 – INTERESSE PÚBLICO VERSUS INTERESSE PRIVADO ................................ 35
1.2.1 – Concepção clássica .............................................................................................. 35
1.2.2 – Concepção da nova doutrina ............................................................................. 39
1.3 - ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O INTERESSE PRIVADO ................................................................................. 46
1.3.1 – Definição do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado ................................................................................................................................ 46
1.3.2 – Sustentação doutrinária do princípio da supremacia do interesse público sobre interesse privado ...................................................................................................... 48
1.3.3 – Crítica e desconstrução doutrinária do propalado princípio da supremacia do interesse público sobre o privado ................................................................................ 50
CAPÍTULO II ......................................................................................................................... 64
2 – UM NOVO SUJEITO DA RELAÇÃO DE DIREITO ADMINISTRATIVO: CIDADÃO ............................................................................................................................... 64
2.1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................ 64
2.2 – TRAJETÓRIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ........................................... 65
2.2.1 – Contextualização dos direitos fundamentais .................................................... 65
2.3 – ASPECTOS DA CIDADANIA A SEREM CONSIDERADOS ............................. 75
2.3.1 – Cidadania no Brasil ............................................................................................ 84
2.4 – VALORIZAÇÃO DO CIDADÃO: PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA . 92
2.4.1 – Dignidade da pessoa humana como argumento da inexistência da supremacia do interesse público sobre o privado ......................................................... 101
CAPÍTULO III ..................................................................................................................... 105
3 – A JUSTA MEDIDA: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA VERSUS CIDADÃO ........... 105
3.1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS .............................................................................. 105
3.2 – PRINCÍPIOS E REGRAS, SUAS DISTINÇÕES ESSENCIAIS ........................ 106
3.2.1 – Supremacia do interesse público como princípio jurídico ............................ 113
3.3 – REGRA DA PROPORCIONALIDADE ............................................................... 115
3.3.1 – Contextualização ............................................................................................... 115
3.3.2 – Proporcionalidade segundo Robert Alexy ...................................................... 123
3.3.3 – Da incompatibilidade da supremacia do interesse público com a regra da proporcionalidade ............................................................................................................ 126
3.4 - ATUAL POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO ............................................................... 128
3.4.1 – Contextualização ............................................................................................... 128
3.4.2 – Controvérsias administrativas ........................................................................ 131
3.4.3 – Da inexistência do princípio da supremacia do interesse público como fundamento jurisprudencial ........................................................................................... 136
CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 150
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 160
11
INTRODUÇÃO
A supremacia do interesse público sobre o particular tem sido tradicionalmente
descrita como um princípio jurídico do direito administrativo que constitui um dos principais
alicerces teóricos desse ramo jurídico e que conduz as ações da Administração Pública,
enaltecidas pelas prerrogativas estatais que lhes são atribuídas.
Desde o momento do seu surgimento, mostrou-se para a doutrina brasileira,
unissonamente, o seu valor e a sua significância, afirmando-se que seria o princípio
constitucional capaz de realizar o interesse público amparado nas atribuições vinculadas à
Administração Pública. Na atualidade, grande coro de publicistas nacionais passou a
questionar a existência desse princípio norteador do direito administrativo ou, em se
reconhecendo a sua existência, a necessidade de sua reconstrução de modo a se compatibilizar
com os direitos fundamentais, evitando malversações na sua utilização.
Diante desse entrave, o que se pretende com essa dissertação é identificar o atual
enfoque doutrinário e jurisprudencial acerca dos limites para o uso desse debatido princípio, à
luz da mutação social e jurídica, da valorização humana e da desmistificação do poder
soberano da Administração, pautada pela constitucionalização do direito administrativo.
Será intenção verificar se esse dito princípio se relaciona com a questão dos
controles dos atos administrativos da Administração Pública e do controle das políticas
públicas pelo Poder Judiciário.
A relevância do tema é evidenciada pelo olhar contemporâneo no direito público,
no qual a Administração não deve tratar a sociedade como súdita ou administrada, mas, sim,
como integrada por cidadãos amparados nos seus direitos fundamentais, possuidores de
dignidade humana. Sustentar-se-á no desenvolver do tema que o desfecho da problematização
narrada deve ser no sentido da desconstrução princípio da supremacia do interesse público
sobre o particular.
O estudo que se apresenta constitui o trabalho central do Programa de Pós-
Graduação em Direito, na área de concentração Constitucionalização do Direito, da linha de
pesquisa Direito Público Contemporâneo, da Universidade Federal de Sergipe, versando sobre
os limites da supremacia do interesse público contrapondo-se aos direitos fundamentais do
cidadão.
12
Com o desenvolver do tema, pretender-se-á demonstrar que o direito
administrativo pode se valer de um conjunto de princípios constitucionais fundamentais,
concretizados, especialmente, na dignidade da pessoa humana, trazendo-os para a realidade
democrática que faz a supremacia do estado ser relativizada.
Para o deslinde da questão, a Constituição Federal é referenciada durante todo o
desenvolver do tema, sem possibilidade de abandono, tendo em vista a fundamentalidade dos
princípios constitucionais, noção de Estado Democrático de Direito, além de ser limite para a
interpretação jurídica numa sociedade justa, em que interesses contrapostos devem ser
ponderados.
Será priorizado, para o presente estudo, o exame das posições doutrinárias de
autores nacionais e estrangeiros, acerca da supremacia do interesse público sobre o particular,
preocupando-se em demonstrar a atual visão das discussões sobre o tema. Os autores
utilizados foram escolhidos de acordo com a fundamentalidade de cada obra acrescida ao
tema em questão, cotejando-se as diversas opiniões necessárias para efetivar os contrapontos
durante o desenvolvimento do tema. Será somada a coletânea de jurisprudências buscadas nos
diversos tribunais brasileiros, a fim de construir bases sólidas e concretas para a adequada
análise da questão.
Na hipótese vertente, a opção pela pesquisa bibliográfica doutrinária e, mais
especificadamente, pela análise de obras e artigos científicos publicados, justifica-se em razão
da discussão sobre a matéria haver surgido no campo doutrinário, de maneira que, a partir da
leitura de tais fontes, poder-se-á identificar posições contrárias e favoráveis aos limites no uso
da supremacia do interesse público pela Administração Pública.
Como fonte subsidiária para o estudo, a internet será de grande valia, voltada para
a pesquisa jurisprudencial e legislativa.
Para a condução metodológica do presente estudo, será desenvolvida uma
pesquisa qualitativa exploratória, ladeada por um tratamento reflexivo e sistemático,
utilizando-se dos métodos histórico, analítico e dialético da dogmática jurídica.
No Capítulo I será feita uma retrospectiva histórica acerca da normatização do
direito administrativo, bem como a contextualização das fases do poder estatal com reflexos
na Administração Pública, subordinando-se ao Estado de Direito. Em seguida, será analisado
o interesse público segundo a visão clássica da doutrina e o viés atual diante da
indeterminação desse conceito jurídico. Ainda será oportuno definir a supremacia do interesse
13
público sobre o particular, momento em que será apresentada a sustentação doutrinária focada
na existência desse dito princípio, como também será discorrida a crítica que fundamenta a
sua inexistência como princípio jurídico.
Um novo sujeito da relação do direito administrativo, o cidadão, será identificado
no Capítulo II, momento que será analisada a trajetória dos direitos fundamentais, aspectos da
construção da cidadania deverão ser considerados, mormente no Brasil, além da importância
constitucional dada ao princípio da dignidade da pessoa humana para o cidadão. Será
demonstrada a existência ou não da supremacia do interesse público sobre o particular através
do argumento da dignidade humana.
Por derradeiro, no Capítulo III, será apreciada a justa medida do cidadão versus a
Administração Pública, sendo necessário para tanto o estudo da teoria dos princípios e regras
fazendo o enfrentamento da estrutura normativa definida na dissertação com a supremacia do
interesse público como princípio. Também será verificada a contextualização da regra da
proporcionalidade, especialmente segundo critérios de Robert Alexy e será verificada a sua
compatibilidade ou não com a supremacia do interesse público, alargando, assim, as críticas
ao referido princípio.
Finalizando esse capítulo e tomando por base os fundamentos teóricos discorridos
ao longo do texto, será colacionado, ainda, o atual posicionamento jurisprudencial desse
debatido princípio através de casos práticos dos tribunais brasileiros, inclusive enfrentando
outras atuais controvérsias administrativas, como mérito e legalidade administrativa.
14
CAPÍTULO I
1 – ORIGEM E RELEVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO
INTERESSE PÚBLICO PARA A CONSTRUÇÃO DO DIREITO
ADMINISTRATIVO
1.1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Para compreender o contexto e a estrutura de um princípio jurídico é interessante
averiguar os seus fundamentos históricos e sociais que irão explicar a sua origem, a fonte
normativa da qual ele emana e as razões políticas que deram azo à sua inserção no mundo
jurídico de determinado Estado, investigando a significação histórica do momento da sua
criação.
Nesse passo, a determinação do princípio da supremacia do interesse público
sobre o particular no direito positivo brasileiro é dada através dos estudos teóricos, políticos e
normativos que o embasaram como premissas para alicerçá-lo no mundo jurídico como
categoria de princípio constitucional implícito, especificando o seu conteúdo jurídico, seus
elementos constitutivos e a sua utilização nos casos concretos.
A sua natureza implícita é demonstrada por não se depreender o seu conteúdo de
modo expresso do texto da Constituição Federal, mas por interpretações pontuais na Lei
Maior, além de ter sido construído por trabalhos doutrinários, chegando até mesmo a ser
rechaçado da categoria de princípio, por uma minoria da doutrina administrativista.1
A aceitação desse princípio pela Administração Pública brasileira se manifesta
através das prerrogativas que lhes são auferidas a partir dos regramentos do regime jurídico a
que está submetida, mostrando-se relevante para a perfeita atuação do poder público estatal
perante a sociedade tutelada.
Esse primeiro capítulo terá como objetivo discorrer sobre a normatização do
direito administrativo (1.1.1), além da contextualização do poder estatal (1.1.2), buscará a
distinção dos modelos do interesse público e do interesse privado (1.2), além de identificar a
gênese e contrapontos da supremacia do interesse público na ordem jurídica brasileira (1.3).
1 No correr da dissertação, será oportuno elencar a ideia de Humberto Bergmann Ávila, contrária à supremacia do interesse público como princípio constitucional, por ter sido quem iniciou o questionamento.
15
1.1.1 – Da normatização do direito administrativo
O direito administrativo se apresenta, dentro das ramificações do direito público,
de maneira singular, pois não possui uma única compilação de suas normas, mas várias
codificações fragmentadas que discorrem sobre o tema, apesar de ter surgido numa época em
que figuravam as grandes codificações nos idos do século XIX.2
Até meados do século passado, conforme versa Patrícia Ferreira Baptista, o direito
administrativo se desenvolveu ―em países de tradição romancista por meio de construções
jurisprudenciais, processo típico do direito anglo-saxão, o qual, por sua vez, até meados do
século XX recusava a existência de tal disciplina jurídica‖.3
Para fins didáticos mais relevantes para a realidade brasileira, e registrando
ruptura com o passado, fixa-se como marco inicial para o estudo da origem do direito
administrativo a partir da Revolução Francesa, sendo a sua existência embasada em dois
pilares dessa revolução quais sejam: a separação dos poderes estatais com a independência
das funções do Estado, especialmente identificando a existência da função administrativa
autônoma, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, protegendo os indivíduos da
Administração.4
Merece esclarecer que a atividade administrativa, para Marçal Justen Filho,
consiste ―na promoção dos direitos fundamentais e na implementação concreta da
democracia, por meio de agentes organizados burocraticamente numa estrutura estável, mas
que não assegura a absoluta imparcialidade funcional e estrutural‖. Diferenciando, assim, das
demais funções do Estado que sejam a legislativa e a judicial e passando a configurar o
período histórico com o rompimento do absolutismo monárquico.5
Esse ramo jurídico de direito público nasceu, pois, na França e durante o século
XIX se expandiu ao se afirmar como direito regulador da Administração em relação ao direito
privado, além de atribuir a função jurisdicional ao Conselho do Estado e a de estabelecer um
equilíbrio entre as prerrogativas administrativas e os direitos dos cidadãos, serve-se Patrícia
2 Como observa Jean RIVERO. Curso de direito administrativo comparado. Tradução de José Cretella Jr e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.79-80: ―O fato maior é a ausência de codificação. [...] é preciso procurar as regras administrativas aonde elas estiverem[...]‖. 3 BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Transformações do Direito Administrativo. Renovar, 2003, p. 2. 4 Nesse sentido BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Idem, p.3-4, enfatizando que a função garantista do direito administrativo não surgiu imediatamente. 5 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed. Belo Horizonte: Fórum. 2012, p. 69.
16
Ferreira Baptista da lição de Cassese.6 Todos esses fatores de crescimento do direito
administrativo foram tendo assento na jurisprudência coletada pelo Conselho diante da
ausência de um sistema de normas que o amparasse legalmente.
Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a França, para reforçar e proteger a
autonomia dos poderes do Estado, ―instituiu um sistema de controle de legalidade interno
exclusivo para a Administração, o Contencioso Administrativo, para não submetê-la à
jurisdição comum, e desenvolveu um ramo do direito público para reger especificamente a
sua atuação, o Direito Administrativo‖.7
Aliada à escassez de codificação e à sistematização jurisprudencial, ao longo do
século, a doutrina se mostrou atuante a ponto de desenvolver princípios norteadores desse
direito conforme observa Jean Rivero que no direito administrativo comparado, verifica-se a
―importância internacional da doutrina”, sendo os doutrinadores, ―os responsáveis pela
unidade dos direitos‖.8 No Brasil, o desenvolvimento do direito administrativo foi
sedimentado essencialmente à luz da doutrina e da jurisprudência, como bem ensina Carlos
Ari Sunfeld, ―A transmissão da cultura do direito administrativo, seguindo uma tradição
antiga, tem sido realizada por esses livros de referência, escritos por juristas especializados‖.9
Sob forte influência da doutrina e da jurisprudência francesa,10 o direito
administrativo teve suas origens fulcradas nas noções da racionalidade de puissance publique
e do serviço público, teorias desenvolvidas através das respectivas escolas, a partir do século
XIX.
A Escola de puissance publique11 buscava explicar o direito administrativo a
partir da diferença entre as seguintes atividades: (a) de autoridade, exercidas pelo Estado nas
6 CASSESE, Sabino. Las bases del derecho administrativo. Madri: INAP, 1994, p.54-55 apud BAPTISTA, Patrícia Ferreira, Op. cit., p.4-5. 7 NETO. Diogo de Figueiredo Moreira. Mutações do direito administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 10. 8 RIVERO, Jean. Curso de direito administrativo comparado. Tradução de José Cretella Jr e Agnes Cretella. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.238-239. 9 SUNDFELD. Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012, p.21. 10 Através do papel do Conseil d’Etat, foi se desenvolvendo uma visão garantística sobre a origem e a função do direito administrativo: ―trata-se de Direito que ‗nasce quando o Poder aceita a submeter-se ao Direito‘‖. ―[...] surge como o Direito da Administração Pública e não como o Direito dos administrados‖. OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública. O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade. Lisboa: Almedina, 2007, p. 275 e p.281. 11 LAUBADÈRE, André de. Traité élémentaire de droit administratif. 3. ed. t. I. Paris: LGDJ, 1963, p. 38-39 apud HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Tese de Mestrado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 26. Disponível em: < http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/26126/Dissertacao%20-%20Daniel%20Wunder%20Hachem%20-%20UFPR%20-%20Brasil.pdf?sequence=1>. Acesso em: 14 mar.2013.
17
situações em que seus órgãos aplicavam mandamentos do tipo ―ordens, proibições,
regulamentações unilaterais‖, manifestando uma ―vontade de comando‖ sobre os particulares;
e (b) de gestão, realizadas em posição de igualdade com os cidadãos e submetidas às regras de
direito privado. Ao praticar as primeiras, o Estado estaria exercendo ―atos de puissance
publique‖ ou ―atos de autoridade‖, que se sujeitariam a um regime jurídico exorbitante do
Direito comum, que permitia à Administração a utilizar um poder de comando em face dos
particulares.
A essa época, o direito administrativo se voltaria para a realização precisamente
dessas atividades, e sua racionalidade poderia ser explicada a partir da noção de puissance
publique. O ponto focal dessa corrente de pensamento, portanto, é outorgado aos poderes
especiais ostentados pelo poder público. Essas prerrogativas exorbitantes, cujo manejo se
justificaria por conta da posição de superioridade do Estado frente aos particulares,
traduziriam a ideia central do direito administrativo.12
A Escola do Serviço Público (Escola de Bordeaux)13 surgiu sendo contrária a esse
posicionamento, propondo-se a explicar porque desaparece o sistema de direito público
fundado na noção de puissance publique, enfatizando a sua substituição pelo conceito de
serviço público. Argumenta que enquanto as tarefas do Estado limitavam-se aos serviços de
guerra, de polícia e de justiça, era compreensível que a sua regulação jurídica se explicasse
pelas ideias de soberania estatal e puissance publique. Muito embora, em razão das
transformações que afetaram as relações entre Estado e cidadão na segunda metade do século
XIX, as necessidades de interesse geral passaram a demandar do poder público não apenas a
manutenção da ordem pública, mas também a organização da vida econômica, social e
cultural da coletividade, forçando-o a promover a educação, prestar assistência com relação à
saúde e viabilizar o fornecimento do transporte público.14
Visando a satisfação das necessidades de interesse geral, as atividades de
prestação acima elencadas e oferecidas pelo Estado à sociedade, resumir-se-iam em serviços
públicos, cuja característica principal da Administração não seria somente o seu poder de
comando, mas sim procurar atuar em favor da coletividade como um todo.
Da tradução livre para o português, puissance publique significa poder público. 12 É a posição de Maurice Hauriou, para quem ―a base do direito administrativo é a atividade da puissance publique‖ apud HACHEM. Op. cit., p. 26. 13 MORAND-DEVILLER, Jacqueline. Cours de Droit Administratif. 6. ed. Paris: Montchrestien, 1999, p. 19 apud HACHEM. Op. cit., p. 26-27. 14 Nesse sentido, LAUBADÈRE, André de. Op. cit. apud HACHEM. Op. cit., p. 27 e cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 44-45.
18
Sob o influxo dessas ideias, percebe-se que a legitimação da existência do Estado
se assenta na da possibilidade da Administração Pública estar intimamente ligada ao dever de
realização dos anseios sociais, da prestação dos serviços públicos e tem no direito
administrativo o suporte jurídico para regular as suas atividades.
Assim, o direito administrativo, sob esse enfoque do serviço público ser a
principal atuação da Administração Pública, deixa de lado as prerrogativas do Estado em
relação aos cidadãos e passa a se preocupar em assegurar as necessidades coletivas.
Nesse contexto, o conjunto desses ideais e das diversas leis esparsas que regulam
temas isolados da Administração Pública, sem uma coletânea única de normas que regem as
ações do Estado frente aos anseios desses cidadãos, têm sido assentados durante o último
século de acordo com sua concepção à época.
Merecem ser transcritos os ensinamentos Jean Rivero com relação ao direito
administrativo e ao regime administrativo:
O direito nunca é senão a transposição em forma jurídica das concepções éticas, sociais e econômicas que prevalecem numa civilização. Assim, no direito administrativo: as suas regras pressupõem um certo número de opções fundamentais, tocando quer as relações da Administração com os particulares, quer os melhores métodos de construção e de gestão do organismo administrativo. O regime administrativo de um país é portanto definido simultaneamente pelas regras jurídicas que constituem o seu direito administrativo e por aquelas opções, as principais das quais o direito retém e sanciona, mas que merecem ser estudadas em si mesmas, numa perspectiva técnica e não jurídica.15
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, ―só se pode falar em Direito
Administrativo, no pressuposto de que existam princípios que lhe são peculiares e que
guardem entre si uma relação lógica de coerência e unidade compondo um sistema ou regime:
o regime jurídico-administrativo‖.16 Com esse entendimento, o autor aponta duas ―pedras de
toque‖ que devem incorporar esse regime através da consagração de dois princípios, quais
sejam: supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade, pela
Administração, dos interesses públicos, estando assentados no binômio: prerrogativas da
Administração-direitos dos administrados.17
Embora essa visão dada ao direito administrativo em está regido
fundamentalmente por esses princípios e por não possuir uma codificação única, por ser uma
15 RIVERO, Jean. Direito administrativo. Tradução Rogerio Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1981, p. 24. 16 MELLO, Op. cit., p. 53. 17 Idem, p. 55-57. Para o autor, esses princípios justificam as noções de serviço público, puissance publique, ou utilidade pública.
19
disciplina jurídica autônoma, esse ramo do Direito se mostrou isolado da evolução do
contexto jurídico como um todo, não acompanhando a tendência observada após a
consagração da Constituição de 1988 no Brasil, através do fenômeno da Constitucionalização
do Direito, ―cujo efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e
axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico‖.18
Sublinham-se as lições traçadas por Miguel Carbonell acerca do tema:
El proceso de constitucionalización supone dotar de contenido normativo a todas las disposiciones contenidas en Ia carta fundamental; desde luego, su fuerza normativa dependerá en mucho de Ia forma en que estén redactadas, de los alcances interpretativos que les haya dado Ia jurisdicción constitucional y de los ejercicios analíticos que hagan los teóricos, pero de Io que no debe quedar duda es de que Ias normas constitucionales son, ante todo y sobre todo, normas jurídicas aplicables y vinculantes, y no simples programas de acción política o catálogos de recomendaciones a los poderes públicos.19
Para Luís Roberto Barroso, ―o constitucionalismo surge como uma doutrina de
limitação de poder do Estado. Como consequência, desde as suas origens, sempre foi a
essência da Constituição a separação dos Poderes e a garantia dos direitos‖. Continua a
lecionar que ―a Constituição é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas
do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com
ela incompatível‖.20
Associado a essa ideia de supremacia da Constituição, o movimento da
constitucionalização do direito administrativo foi apresentado por Luís Roberto Barroso
18 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. In: A constitucionalização do direito: Fundamentos teóricos e aplicações específicas. Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (Coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.16-17. ―A aproximação entre constitucionalismo e democracia, a força normativa da Constituição e a difusão da jurisdição constitucional foram ritos de passagem para o modelo atual‖. Sob o fundamento de Hesse quando anunciou que os fatores reais de poder não devem sobrepor à Constituição, onde esta não deve ser considerada a parte mais fraca. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. Segundo Virgílio Afonso da Silva, com o movimento de constitucionalização do direito o eixo essencial da ordem jurídica deixa de ser a lei e passa a ser a constituição. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 49. 19 CARBONELL, Miguel; JAMARILLO, Leonardo García. El canon neoconstitucional. Madrid: Trotta, 2010, p. 160. 20 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 82-84. Para Canotilho o sentido de constituição: ―[...] (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; (3) organização do poder político segundo esquemas a torna-lo um poder limitado e moderado‖. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 52.
20
através de três conjuntos de circunstâncias a configuração do modelo atual, no qual diversos
paradigmas estão sendo repensados ou superados, que todas elas se somam para quais sejam:
a) a existência de uma vasta quantidade de normas constitucionais voltadas para a disciplina da Administração Pública;
b) a seqüência de transformações sofridas pelo Estado brasileiro nos últimos anos;
c) a influência dos princípios constitucionais sobre as categorias do direito administrativo.21
Para Rafael Carvalho Rezende Oliveira, a constitucionalização do direito deve ter
como enfoques:
O aspecto material da constitucionalização do ordenamento consiste na aproximação da moral ao Direito. Há uma tendência hoje, conforme já demonstrado, entre os juristas em se adotar uma visão ―não-positivista‖ do Direito.
Quanto ao aspecto estrutural-funcional, o fenômeno da constitucionalização acarreta a alteração da estrutura das normas constitucionais. As Constituições procuram valer-se cada vez mais dos princípios como forma de amoldar, nos seus textos, interesses conflitantes existentes em uma sociedade pluralista.
[...] O terceiro aspecto (político), mencionado por Alfonso Garcia Figueroa, consiste no deslocamento do protagonismo do Legislativo para o Judiciário. Os princípios constitucionais ampliam a margem de discricionariedade judicial.22
Leciona Regina Maria Macedo Nery Ferrari sobre o tema que ―é a incidência
direta dos princípios constitucionais, no campo da atividade administrativa e no seu
entorno‖,23 sendo fato que com esses mais recentes conceitos para a aplicação da ordem
jurídica, o direito administrativo não pode permanecer encastelado na mesmice da
supremacia.
Sendo assim, o direito administrativo não se manteve imune ao fenômeno da
constitucionalização do direito. Está sendo um dos ramos do sistema jurídico mais atingido
porque se passou a considerar que a Administração fundamenta sua atividade diretamente na
Constituição, devendo, pois, respeitar-lhe os valores e princípios.24
21 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. In: A constitucionalização do direito: Fundamentos teóricos e aplicações específicas. Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (Coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 37. 22 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Constitucionalização do direito administrativo: o princípio da juridicidade, a releitura da legalidade administrativa e a legitimidade das agências reguladoras. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.27-28. 23 FERRARI, Regina Maria Maceo Nery. A constitucionalização do direito administrativo e as políticas públicas. Revista de Direito Administrativo & Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, Ano 10, n. 40, p.1-336, abr/jun.2010, p. 281. 24 Cf. sentido de BEDENDI, Luis Felipe Ferrari. Ainda existe o conceito de mérito do ato administrativo como limite ao controle judicial dos atos praticados pela administração? In: DI PIETRO, Maria Sylvia
21
Entretanto, cuida-se alertar que uma mudança de paradigma imposta pela
Constituição e uma decorrente necessidade de adaptação da legislação ordinária por
imposição constitucional, não implica mudança rápida quando o paradigma não muda para a
sociedade e, também, para os operadores de direito. Muitas vezes a prática jurisprudencial se
mostra refratária a mudanças, mantendo-se presa a paradigmas superados não só pela
Constituição, mas como também pela legislação ordinária aplicável ao caso.25
Feitas essas considerações acerca da normatização dessa disciplina jurídica
autônoma26 e da sua introdução ao modelo da constitucionalização do direito, vale seguir
percorrendo quanto à evolução social do Estado, tendo em vista ser ela o ramo jurídico
regulador das suas ações.
1.1.2 – Do poder estatal - contextualização
O direito administrativo no Brasil tem por objeto o estudo da disciplina jurídica da
Administração Pública que integra a organização estatal, o modo de ser e de atuar do Estado.
Desse modo, para sua melhor compreensão, necessário se faz conhecer os aspectos
fundamentais do Estado, em especial o quadro político-institucional do Estado tal como vem
caracterizado no texto constitucional do país.27
As raízes desse ramo jurídico do direito público se vinculam nas formulações
originárias ao Estado do século XIX, daí a sua importância na contextualização histórica ao
longo das suas transformações sofridas com o correr do tempo.
Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. (Coord). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 285. 25 Cf. leciona SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 40-41. O autor ainda traz como exemplo para essa situação, as mudanças introduzidas pelo Código de Defesa ao Consumidor em que juízes recusam nas suas decisões a aplicação do art. 51, §1º, com base no pacta sunt servanda . 26 Para Celso Antônio Bandeira de Mello: ―direito administrativo é o ramo do direito público que disciplina a função administrativa, bem como pessoas e órgãos que a exercem‖. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.37. 27 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 16. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 33.
22
Doutrinariamente,28 diversas expressões vinculam o Estado nesse citado século
tais como: Estado Liberal, Estado burguês, Estado nacional-burguês, Estado censitário,
Estado garantista, Estado-autoridade, Estado legislativo, dentre outras terminologias.
A utilização desses termos para configurar o Estado se deu diante das
características acentuadas do Estado absoluto e se mostra sob o aspecto interno, com
soberano, em que as prerrogativas de domínio passam a ser exercidas não mais pela vontade
do monarca, mas em nome do povo ou da nação. O poder estatal passa a ser substituído pelo
poder pessoal, com uma unidade e centralização de poder, ao mesmo tempo em que o
comando político se despersonifica, segundo os novos atributos do Estado quais sejam: a
laicidade, finalidade e racionalidade.29
Para Odete Medauar,30 a essa época, havia no Estado grupos autônomos,
independentes e livres, dotados de igualdade política e jurídica como oposição a esse Estado
absoluto e se consagravam liberdades e garantias de liberdades e de direitos dos indivíduos,
passando da categoria de súditos à de cidadãos. Assim, se identificam os valores do Estado
que sejam ―garantia de liberdade, da convivência pacífica, da segurança, da propriedade
privada‖, sendo o Estado instrumento de garantias dos direitos individuais, decorrendo, nessa
quadra, a utilidade e a necessidade.
Para a autora, o individualismo31 jurídico significa que as relações de direitos e
deveres têm como agente as pessoas humanas, com a abolição dos privilégios
aristocráticos, valorizando, assim, a supremacia do indivíduo contra as ingerências e atitudes
coercitivas do poder estatal.
Essa configuração de modelo do Estado eclodiu através de um movimento global
contra a velha ordem durante a Revolução Francesa,32 que, consequentemente, influenciou o
28 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo em evolução. 2. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 78. 29 De acordo com o entendimento de MEDAUAR, Idem, p. 79. 30 Idem, p.80. 31 Na visão dada por Teresa Negreiros para o individualismo tem-se que ―a autonomia do sujeito de direito constituiria um espaço de livre atuação demarcado externamente pela fronteira da ordem pública‖. NEGREIRO, Teresa. A dicotomia público-privado frente ao problema da colisão de princípios. In: Teoria dos direitos fundamentais. TORRES, Ricardo Lobo (Org.), 2. Ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro, 2009, p. 360. 32 Interessante trazer ao texto a visão dada por Tercio Sampaio acerca da positivação ocorrida com a Revolução Francesa: ―O direito, com a Revolução Francesa, torna-se uma criação ab ovo. Com isso, ele instrumentaliza-se, marcando-se mais uma vez a passagem de uma prudência prática para uma técnica poética. Ou seja, para usar uma distinção aristotélica (Ética a Nicômaco, 1094 a 21), o direito passa a ser concebido como poiesis, uma atividade que se exterioriza nas coisas externas ao agente (por exemplo, com madeira fabricar uma mesa) e que por isso exige técnica, isto é, uma espécie de knowhow, um saber-fazer, para que um resultado seja obtido. Deixa, pois, de ser concebido, como o fora desde a Antigüidade, como uma praxis, uma atividade que não tinha um adimplemento exterior a ela mesma e ao agente; ela não visava senão ao bem agir (ético) do próprio agente,
23
ritmo para o futuro desenvolvimento da história humana e se mostrou intimamente vinculada
à história da democracia.
No sentir de Carlos Nelson Coutinho, a necessidade do contrato social surgiu
como ―demandas da burguesia em ascensão no momento em que essa classe representava
todos os que não eram aristocratas nem membros do clero, ou seja, todos os que constituíam o
que os franceses chamavam ‗terceiro Estado‘‖.33
Assim, segundo anuncia Paulo Bonavides, o modelo do Estado Liberal foi
caracterizado pela intervenção mínima do Estado na ordem econômica e social, dada a
prevalência do liberalismo econômico e dos direitos individuais (direitos civis e direitos
políticos) que objetivava limitar o poder estatal, conforme se refere: ―À Constituição cabia
tão-somente estabelecer a estrutura básica do Estado, a espinha dorsal de seus poderes e
respectivas competências‖. Esse período foi caracterizado pela legalização da proteção dos
direitos individuais.34
Conforme lições de Norberto Bobbio, esses limites do Estado compreendem dois
aspectos: limites dos poderes e limites das funções do Estado. Relaciona-se ao limite do
poder, o Estado de Direito e ao último, o Estado mínimo. Diz-se que o Estado Liberal se
afirma na luta contra o absolutismo através do Estado de Direito e contra o Estado máximo,
em defesa do Estado mínimo.35
Leciona Mário Lúcio Quintão Soares que ―A concepção liberal, em seu sentido
político e econômico, procurou proteger o indivíduo que, dentro de seu marco social,
afigurava-se sempre livre para adquirir a sua liberdade‖. Ainda ensina que ―a idéia de
liberalismo está historicamente vinculada à propriedade e ao afã de lucro‖.36
No sentido de Salo de Carvalho, ―O movimento humanista e racionalista, após as
vitoriosas batalhas jurisprudenciais, foi o ponto culminante de degradação do antigo regime e
sua -eupraxi.a . Está aí o núcleo do fenômeno da positivação do direito em seu sentido social.‖ Em FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 4. ed. revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 2003, p.75. 33 COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre cidadania e modernidade. Praia Vermelha, v. 1, n. 1, Rio de Janeiro: UFRJ, 1997, p.150. 34 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.229-230. Também nessa mesma seara, MEDAUAR escreve ―na fórmula do Estado Liberal ou Estado Abstencionista, pretendia o distanciamento do Estado em relação à vida social, econômica e religiosa dos indivíduos, como garantia de independência da sociedade às injunções do Estado. Daí o mínimo de funções que lhe cabiam, a quase ausência de atuação do Estado no âmbito econômico e social‖. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 16. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.36. 35 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. 4. ed.. São Paulo: Brasiliense. 2000, p. 17-18. 36 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Op. cit., p. 86.
24
da gênese do Estado Liberal‖.37 Assim, ―exclui do conceito do Estado de Direito qualquer
conteúdo de cunho jusnaturalista, universal, imutável, e, portanto, anterior ao Estado‖.38
Assim, para Plauto Faraco de Azevedo, o direito deve sempre regulamentar os
fatos reputados relevantes à vida social, buscando a segurança e previsibilidade do agir
humano, contendo sempre os valores correlativos da ordem e da justiça.39
O positivismo invade todos os ramos das ciências sociais, inclusive o Direito, a
partir da metade do século XIX. A era de um Direito somente positivo, em que a norma é
posta pela autoridade estatal, separada da norma ética, tendendo-se à identificação da justiça
com a legalidade,40 levando à formação do Estado de Direito.
Nesse sentimento, restou configurado o Estado de Direito uma vez que aplica a
política da igualdade perante a lei, notabilizando a garantia de segurança conquistada ―por
normais gerais e impessoais destinadas a eliminar o arbítrio dos detentores do poder‖.41 As
leis pairam igualmente acima de todos os grupos da sociedade, sem representar determinado
talante do governante, mas sendo objetivamente imparcial.42
Marçal Justen Filho43 identificou que antes da afirmação do Estado de Direito, a
atividade administrativa do Estado era pouco permeável ao direito e ao controle jurisdicional,
ou seja, o ato praticado pelo monarca não permitia controle uma vez que ele não podia errar
ou que o conteúdo do Direito revelaria a sua vontade. O autor destaca, ainda, que o Estado de
Direito se inclinou para eliminar critérios religiosos e carismáticos como legitimação do poder
político e que a evolução histórica levou à agregação de dois novos elementos ao seu
37 CARVALHO, Salo de. Da desconstrução do modelo jurídico inquisitorial. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org). Fundamentos de história do direito. 3. ed. Belo Horizonte, 2006, p.217. 38 JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade humana: princípio constitucional. Curitiba: Juruá, 2009, p. 184. 39 AZEVEDO, Plauto Faraco de. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.25. 40 No sentido de AZEVEDO, Plauto Faraco de. Aplicação do direito e contexto social. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.25. 41 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo em evolução. 2. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 80. 42 Para o estudo em questão, ―O fato de o direito tornar-se escrito contribuiu para importantes transformações na concepção de direito e de seu conhecimento. A fixação do direito na forma escrita, ao mesmo tempo em que aumenta a segurança e a precisão de seu entendimento, aguça também a consciência dos limites. A possibilidade do confronto dos diversos conjuntos normativos cresce e, com isso, aumenta a disponibilidade das fontes, na qual está a essência do aparecimento das hierarquias. Estas, no início, ainda afirmam a relevância do costume, do direito não escrito sobre o escrito. Pouco a pouco, no entanto, a situação inverte-se. Para tanto contribuiu o aparecimento do Estado absolutista e o desenvolvimento progressivo da concentração do poder de legislar‖. Fundamento retirado de FERRAZ JUNIOR, Op. cit., p.72-73. 43 Para esse notável administrativista, ―a compatibilidade dos atos estatais com a ordem jurídica é o critério mais fundamental para a validade da atuação estatal‖. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8. ed., Belo Horizonte: Fórum, 2012, p.75.
25
conceito, quais sejam: a superioridade da Constituição44 e a supremacia dos direitos
fundamentais.
Percebe-se, assim que a validade de um ato administrativo deve ser
compatibilizada com essa norma de hierarquia superior, prevalecendo sobre as demais, além
de que o Estado de Direito tem como fundamento, a supremacia dos direitos fundamentais.
Sob a ótica de Odete Medauar, ―para maior certeza e segurança dos indivíduos, os direitos na
esfera privada e na esfera pública adquirem consagração constitucional‖.45
Sob o influxo da ideia do Estado de Direito tornar possível regulamentar preceitos
que protegem direitos dos indivíduos perante a Administração, limitando, desta forma, o
poder das autoridades é que o direito administrativo se vincula a essa concepção de Estado,
uma vez que fixa normas para as atividades da Administração.46 Assim, o direito
administrativo voltou-se à proteção dos administrados diante da ação administrativa.47
Para José Joaquim Gomes Canotilho:
O direito da administração pública converteu-se, porém, com o desenvolvimento do Estado Liberal, em direito positivo do estado. Tal como havia sucedido com os códigos civis, o direito da administração sofre a atractividade do estado, afasta-se da constituição e constitui-se como corpus autônomo e suficiente que incluirá, entre outras coisas, um sistema próprio de actos (o acto administrativo) e um sistema autónomo de justiça administrativa, separada e diferente da jurisdição ordinária (contencioso administrativo).48
Destaca-se nessa primeira fase do constitucionalismo moderno, o fundamento do
Estado de Direito o qual presume a aplicação equitativa da lei a governantes e governados,
conforme Mário Lúcio Quintão Soares expõe quando descreve o pensamento de Rosseau,
como expressão das leis, de acordo com a tese do Contrato Social:
Partindo do pressuposto da impossibilidade de cada indivíduo superar pelas suas próprias forças os obstáculos decorrentes da desigualdade humana existente no estado de natureza. ROUSSEAU propõe as condições do pacto legítimo através do qual o indivíduo, após renunciar sua liberdade natural, receba em contrapartida a liberdade civil.
44 No sentido complementar à ideia, na atualidade, o Estado de Direito deve ser vinculado não apenas às normas expressas, mas também à sujeição de valores. 45 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo em evolução. 2. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 80. 46 Conclusão dada à vinculação de Estado de Direito ao direito administrativo. MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 16. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p.35. 47 BAPTISTA, Patrícia. Op. cit., p.18. Complementando o sentido no período do Estado Liberal. 48 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 123.
26
No processo de legitimação do pacto social, tornam-se essenciais a igualdade entre as partes contratantes e a renúncia parcial dos direitos, pois há direitos, fundados na natureza, inalienáveis.49
Para o autor, o grande contributo de Montesquieu à teoria do Estado deu-se pelas
concepções antiabsolutistas, delineando um regime constitucional caracterizado pela não-
confusão de poderes, através da sua teoria sobre a separação dos poderes ou de funções
legislativas, executivas e judiciais acopladas a um sistema de freios e contrapesos que se
tornou dogma do constitucionalismo demoliberal.50
Ensina Henrique Ribeiro Cardoso que o Estado de Direito, apresenta-se, de início,
como Estado de Direito Liberal e que: ―Neste modelo de Estado, o poder do político é
limitado em razão de sua divisão em três funções típicas, bem como em razão da redução do
Estado ao mínimo de atribuições‖.51
Desse Estado de Direito decorrem os direitos de primeira geração como vida,
integridade física, propriedade, liberdade, sendo a liberdade o valor principal deles. ―A
concepção liberal, em seu sentido político e econômico, procurou proteger o indivíduo que,
dentro de seu marco social, afigurava-se sempre livre para adquirir sua liberdade‖.52
Como resultado do processo do poder político na administração que se acentua na
segunda metade do século passado, o Estado mostra uma configuração diferente da até então
apresentada. O Estado passou a ter atuação com profundas consequências nos setores
econômicos e sociais da coletividade, passando do Estado Liberal para o Estado Social,
ampliando-se as funções sociais e assistenciais gerando consequentemente um aumento na
máquina administrativa, em quantidade e em complexidade das suas funções.53 É, pois, o
sistema de proteção social, que se iniciou nas últimas décadas do século XIX e no começo do
século seguinte, que concedeu ao Estado uma função interventiva e regulatória na área do
bem-estar social.
49 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p,75. 50 Idem, p.72-73. Conforme Medaur: ―se distinguiam três funções estatais – legislação, execução e jurisdição -, que deveriam ser atribuídas a três órgãos distintos e independentes entre si. Na época, essa divisão significou uma reação ao enfeixamento de poderes na figura do monarca, significou um freio ao poder e sobretudo uma garantia dos direitos dos indivíduos.‖ MEDAUR. Idem, p.37. Demoliberal equivale ao liberalismo enquanto "moral social". Em: http://www.infopedia.pt/$demoliberalismo. 51 CARDOSO, Henrique Ribeiro. O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.16. 52 SOARES, Op. cit., p. 86. 53 Conforme entendimento de MEDAUR, Op. cit., p.36.
27
Conforme bem fundamenta Marçal Justen Filho, nesse período, ―fatores sociais,
ambientais, econômicos e individuais impediam que o indivíduo se realizasse como sujeito
autônomo e usufruísse de sua dignidade‖.54 Ainda na ideia deste mestre, por esses diversos
fatores, foi necessária a implantação e o desenvolvimento de serviços públicos e de atividades
empresariais a partir de investimentos estatais, sendo, desta forma, o Estado meio de
desenvolvimento econômico e social com características intervencionistas.55
A expressão de Estado-Providência foi reverenciada remontando às ideias do
século ainda XIX, diferentemente à terminologia mais atual dada ao mesmo período que é
Welfare State, expressão utilizada pelos ingleses para designar o Estado de bem-estar ou
Estado Social.56
Welfare State significa:57
Uma particular forma de regulação social que se expressa pela transformação das relações entre o Estado e a economia, entre o Estado e a sociedade, a um dado momento do desenvolvimento econômico. Tais transformações se manifestam na emergência de sistemas nacionais públicos ou estatalmente regulados de educação, saúde, previdência social, integração e substituição de renda, assistência social e habitação que, a pardas políticas de salário e emprego, regulam direta ou indiretamente o volume, as taxas e os comportamentos do emprego e do salário da economia, afetando, portanto, o nível de vida da população trabalhadora.
Nessa perspectiva, para Mário Lucio Quintão Soares:
[...] O Estado social de direito tornou-se Estado administrador, permitindo o predomínio da Administração sobre a política ou da técnica sobre a ideologia. Procurou satisfazer o objetivo de compatibilizar, dentro do mesmo sistema, o capitalismo, como forma de produção, e a consecução do bem-estar social geral.
O cidadão-proprietário, peculiar ao estado de Direito, essencialmente liberal, viu-se transformado em cidadão-cliente do Estado do Bem-Estar Social, através da materialização de direitos fundamentais.
Enfim, o Estado do Bem-Estar Social , com suas intervenções, preservou a estrutura capitalista, mantendo, artificialmente, a livre iniciativa e a livre concorrência e compensando as desigualdades sociais mediante a prestação estatal de serviços e a concessão de direitos sociais.58
54 FILHO, Op. cit., p.75. 55 Idem, p.76. 56 O Plano Beveridge que originou do relatório elaborado por William Beveridge, sobre o sistema britânico de segurança social, em 1942, foi o primeiro documento a marcar os princípios do Welfare State. Esse documento teve repercussão em vários países, que passaram a organizar a política de segurança social. Segundo informa NOGUEIRA. Vera Maria Nogueira. Estado de bem-estar social – origens e desenvolvimento. Santa Catarina: Katálysis. Estado: sociedade civil e democracia. n.5 jul./dez. 2001, p.91-92. 57 VIANNA, Maria Lúcia Teixeira Werneck. A americanização(perversa) da seguridade social no Brasil: Estratégias de bem-estar e políticas públicas. Rio de Janeiro: Revam: UCAM, IUPERJ, 1998, p.37. 58 SOARES, Op. cit., p.212.
28
Desse contexto de forma regulação social se depreende que todos os indivíduos
devem ser abrangidos, uma vez que o Estado se mantém na postura de provedor dos serviços
sociais para a sociedade como um todo e de integrador diante dos problemas causados com a
industrialização.
Sob o influxo dessas ideias, Vera Maria Ribeiro Nogueira leciona que a origem e
a consolidação do Welfare State não podem ser justificadas sem se levar em conta o processo
de expansão do capitalismo contemporâneo, que vai além de um sistema econômico que
define os meios de produção, mas que também direciona a vida na sociedade civil e no cunho
político.59
Nesse cenário, o formato do Estado-Providência vai tomando nova configuração à
medida que a evolução histórica percorrida durante esses séculos contribuiu para a
constituição do Estado Moderno.
A importância desses ideais acerca da afirmação de que os indivíduos têm
direitos, livremente do papel que ocupa na sociedade, deve ser lembrada fazendo ver que
houve uma ressalva contra a prática do absolutismo e um clamor contra a desigualdade de
direitos oriundos da política feudal, além da luta assistida de uma classe trabalhadora não
proprietária, força produtiva fruto da industrialização, por uma cidadania democrática. A
responsabilidade do Estado visando à proteção social se deu lentamente dentro desse contexto
histórico, como sendo uma das formas de controle para a classe trabalhadora, lutadora por
seus direitos.
Num sentido político, a ideia explicativa para o surgimento do Estado do Bem-
Estar Social se fundamenta na solidariedade social protetora em que transfere parte da
responsabilidade individual para a esfera social, enaltecendo o movimento da democracia.
Em face desse quadro político e econômico, refletindo sobre a vida social, cuja
característica foi constatada através da solidificação do mecanismo da cidadania social,60 o
Welfare State mostrou ser um fenômeno peculiar do século passado em que a cidadania se
revelou como o seu centro, voltando-se para o social fundamentalmente.
59 NOGUEIRA, Op. cit., p.93. 60 Thomas Humphrey Marshall em seu título Cidadania, Classe Social e Status identificou a cidadania em sentido moderno, como um conjunto de direitos de natureza civil, politica e social. O civil refere-se ao à liberdade individual, o político se relaciona à escolha de propostas da sociedade através do voto (direito de votar e de ser votado) e o social diz respeito a um mínimo bem-estar econômico e de segurança. MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
29
O Welfare State, como modelo de política social, estabelece-se como um elemento
estrutural ao capitalismo contemporâneo, sendo que significou mais do que um incremento
nas políticas sociais. Representou um esforço de reconstrução econômica, moral e política do
mundo industrial desenvolvido e uma defesa à possibilidade de arraigarem-se as ideias
comunistas.61 Na economia, sofreu influências do pensamento keynesiano, este avesso ao
modelo ortodoxo,62 proporcionou a intervenção do Estado na economia diante da
incapacidade do sistema capitalista conseguir empregar todos os que querem trabalhar, além
de imputar ao Estado o direito e o dever de conceder benefícios sociais que garantam à
população um padrão mínimo de vida. Esse padrão ainda representou a defesa das ideias de
justiça social, solidariedade e universalismo e na política, foi parte de um projeto de
construção nacional da democracia liberal.63
Corroborando com a análise, Odete Medaur64 enfatiza que a ordem econômica e
social deve ser entregue aos cuidados do Estado, razão pela qual surgiu a noção de Estado
empresário tendo em vista a ênfase dada à empresa, seja de capital privado, misto e público e
a noção de Estado distribuidor visando à realização da justiça social, através da distribuição
de bens econômicos e sociais, assegurando a defesa dos economicamente mais fracos.65
Sob esse influxo, o período impôs a intervenção do Estado como instrumento
propulsor do desenvolvimento econômico e social e sua atuação vinculada à concretização
dos direitos fundamentais.66
Para Gustavo Justino de Oliveira, o período foi marcado por uma busca de
redefinição do papel do Estado, dos elementos nucleares desse modelo estatal, através de
políticas públicas de reforma e de reestruturação com reflexos na Administração Pública, uma
vez que uma das ―principais tarefas do direito administrativo é a de viabilizar, através de
61 Conforme ensinamento de NOGUEIRA, Op. cit., p.99. 62 No contexto das ciências econômicas, os ortodoxos acreditam no livre equilíbrio entre oferta e demanda, sem a intervenção estatal. 63 Para Bobbio, ―o renascido interesse pelo pensamento liberal tem duas faces: por um lado é a reivindicação das vantagens da economia de mercado contra o Estado intervencionista, por outro lado é a reinvindicação dos direitos do homem contra toda forma nova de despotismo‖. Em BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p.131. Considerando-se que a democracia liberal está sendo contraposta às ideias ditatoriais fascista e bolchevista disseminadas nesse período. Ainda sobre a democracia, Bobbio em uma segunda obra relata que ―[...] apenas os Estados democráticos protegem os direitos do homem: todos os Estados autoritários do mundo são ao mesmo tempo antiliberais e antidemocráticos.‖ Em BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. 4. ed.. São Paulo: Brasiliense, 2000, p.44. 64 MEDAUR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 88-89. 65 Completa o sentido, FILHO, Op. cit., p.76. 66 Idem, ibidem.
30
mecanismos institucionais, a efetivação de direitos, não somente individuais, mas sociais,
coletivos e difusos, ou seja, centralizar-se na figura do cidadão-administrado como indivíduo
detentor de direitos perante o Estado-administração‖.67
Para Patrícia Ferreira Baptista, o Estado-Providência provocou uma substancial
mudança no quadro das atividades da Administração Pública, passando a encarar igualmente
o papel de prestadora.68
Apesar desse contexto do Estado, por volta da década de sessenta do século
passado, ―ocorreu a crise do Estado-Providência ou do Welfare State devido basicamente à
crise do regime de acumulação consolidado no pós-guerra‖. Essa crise restou comprovada
diante do ―resultado da internacionalização dos mercados e a transnacionalização da
produção‖.69
Demonstrada essa crise, surge o questionamento sobre a ingovernabilidade do
Estado contemporâneo em virtude do sistema político-social vigente versus a deficiência na
atuação dos governantes, promovendo controvérsia doutrinária entre o menos Estado ou o
mais Estado.70
Para os defensores do Estado mínimo, esse período passa a ser questionado diante
das intervenções estatais, assistencialismos políticos, pela burocratização da vida social e
econômica que provocam efeitos mais perniciosos do que os causados pelas anomalias de
mercado que pretendem corrigir quais sejam: ineficácia das prestações, falta de produtividade
dos serviços públicos, inflação e déficit público.71
Assim, a partir da segunda metade do século XX, surgiu o período do
neoliberalismo, releitura do liberalismo clássico face às exigências de um Estado regulador e
assistencialista, significando que o pensamento econômico defende a absoluta liberdade de
mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta mediação
ocorrer em setores imprescindíveis e numa intensidade ínfima.72
67 OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito administrativo democrático. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p.18. 68 BAPTISTA, Op. cit., p.18. Para a autora, na mesma obra, página 10, a Administração Pública, sob a forma de direito privado para regular relações jurídicas em que a Administração estivesse desprovidas do poder de império, intensificou-se na segunda metade do século XX, com o desenvolvimento do Estado-Providência. O intervencionismo estatal diminuiu fronteiras entre o Estado e a sociedade, tendo levado a Administração a ingressar em domínios que antes estavam restritos à atuação dos particulares. 69 SOARES, Op. cit., p. 213. 70 MEDAUR, Op. cit., p.91. 71 Cf. SOARES, Op. cit., p. 215. 72 Cf. WIKIPÉDIA. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Neoliberalismo>. Acesso em: 20 mar. 2013.
31
Conforme leciona Mário Lúcio Quintão Soares, ―os neoliberais propõem que o
Estado recupere suas tradicionais funções políticas e transfira ao setor privado determinadas
tarefas que permitam, em economia globalizada, a livre circulação de bens, serviços e
capitais‖.73
Complementa a ideia, Henrique Riberio Cardoso quando leciona que ―O estado
sai de cena como prestador e surge como agente normativo e regulador da atividade
econômica‖, uma vez que essa modalidade surgiu como redefinição do papel do Estado
Social.74
Esse período foi marcado por experiências de sistemas políticos abertos,
democracia em detrimento aos sistemas substancialmente oligárquicos convivendo com a
liberdade individual. Mesmo com o pós-guerra tendo seus efeitos amortizados na economia
mundial face à participação do Estado-Providência através de seus sistemas de proteção
social, o Estado Social mostrou sinais de fadiga diante do crescimento das despesas sociais e
da redução das receitas, impondo limites ao sistema de proteção.75
A compreensão sob exame foi trazida diante das novas ideias introduzidas por
Rawls,76 fundada sobre alicerce contratualista, de um contrato original entre pessoas racionais
propondo um modelo de sociedade mais justa, remontando a ideia do contratualismo
contemporâneo ao fazer reflexões sobre o seu caráter e as suas vicissitudes.
Tendo em vista esse novo ideário acerca do contratualismo, Norberto Bobbio
fundamenta que o neocontratualismo é uma proposta de novo pacto social, global e não-
parcial, de pacificação geral e de fundação de um novo ordenamento social diante da
crescente ingovernabilidade das sociedades complexas e da debilidade crônica de que dá
provas o poder público nas sociedades econômica e politicamente mais desenvolvidas.77
Observa Henrique Ribeiro Cardoso que:
No Estado Regulador há uma alteração da suposição de que seja o Estado que deva prestar, através de seus agentes, os serviços públicos. Não só os serviços industriais devem estar inteiramente no âmbito do setor privado, como também os serviços públicos. A orientação é a substituição do Estado-prestador pelo Estado-regulador.
73 SOARES, Op. cit., p. 213. 74 CARDOSO, Op. cit., p. 46. 75 MEDAUR, Odete. O direito administrativo em evolução. p. 89-90. 76 Cf. sentido do trecho da obra de Rawls: ―This explains the propriety of the name “justice as fairness”: it conveys the idea that the principles of justice are agreed to in an initial situation that is fair‖. Tradução livre. RAWLS, John, A theory of justice. Oxford University Press: 1972. Tradução: Varmirech Chacon. Brasília: Universidade de Brasília, 1984, p.11. 77 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 163.
32
Por essa orientação, todos os serviços públicos que puderem ser prestados pela livre iniciativa, deverão sê-lo. Apenas educação e seguridade social devem permanecer sob controle do Estado, evitando-se sua mercantilização.78
Nesse cenário de mutação, influenciado pela evolução política estatal, a
relatividade histórica acaba por sobressair como uma das caraterísticas do direito
administrativo, conforme leciona Patrícia Ferreira Baptista, uma vez que a disciplina teve de
se adaptar diante dos processos de desregulação, desestatização e privatização que ora
aconteciam.79
Para Daniel Sarmento, o poder público vai se amparar através de métodos quase
sempre associados às empresas privadas, ou então vai transferir a elas a execução de tarefas
tradicionalmente tidas como públicas.80 Nesse cenário, comenta-se sobre uma ―Administração
Pública ―consensual‖, que substitui o uso de ordens cogentes pela soft law, preferindo, em
regra, induzir o administrado à adoção dos comportamentos desejados através de negociações,
incentivos, etc., do que obrigá-lo verticalmente a agir desta ou daquela maneira‖.81
Continua o autor discorrendo que o processo de globalização econômica82 ―não só
encurtou distâncias e diluiu fronteiras como também fragilizou o Estado, que tem cada vez
menor capacidade para condicionar soberanamente a atuação das forças presentes no seu
território‖. Consequentemente, os poderes privados se revigoraram no momento em que os
78 CARDOSO, Op. cit., p. 48. 79 BAPTISTA. Op. cit., p. 19. Complementando o sentido, a autora, p.10, comenta que em busca da eficiência, a Administração fez aumentar o recurso ao direito privado, uma vez que ela se volta para a realização de atividades públicas por pessoas privadas, através das privatizações e das parcerias das mais diversas naturezas. 80 Esse processo ficou conhecido como ―fuga do Direito Administrativo para o Direito Privado‖, fenômeno tratado por Maria João Estorninho. In: ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública. 2 ed. Coimbra: Almedina, 1999 apud SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.42. 81 BAPTISTA, Idem. Percebendo as mutações do direito administrativo nas democracias contemporâneas, a consensualidade é tratada como forma de participação, posta como forma preferível à imperatividade e com relação à administração dos interesses públicos, dá-se a consensualidade através da cooperação e da colaboração. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 40-41. Leciona também sobre esse tema BAPTISTA, Patrícia. Op. cit., p. 262 e ss. Também Vasco Pereira da Silva leciona que a Administração Pública está se voltando para uma práxis administrativa que leva à consensualidade. SILVA, Vasco Manoel Pascoal Dias Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996, p.100-103. 82 Globalização representa o fenômeno de integração e de aproximação das pessoas, entre países, considerando aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos, impulsionado pela tecnologia das comunicações e da informática.
33
agentes econômicos se libertam das imposições estatais, passando a distanciar-se da ideia de
soberania.83
Nesse feixe de ideias, leciona Henrique Ribeiro Cardoso que:
Reafirme-se que o Estado Liberal ou burguês, o Estado Social e o Estado Neoliberal ou Regulador, são modalidades de Estado de Direito ou constitucional.84 As características básicas são as mesmas: a liberdade protegida, poder limitado, e o povo como titular do poder político.85
Diante das distintas fases que nortearam o poder estatal no curso da história, e
com movimento reflexo na atuação da Administração Pública, vale deixar demonstrada a sua
evolução, segundo lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
A administração pública , aqui entendida em seu sentido funcional e lato, como a gestão de interesses gerais constitucionalmente cometida às organizações políticas, passou por sucessivas fases evolutivas, sintetizáveis da seguinte forma: a do absolutismo, a do estatismo e a da democracia.
A fase do absolutismo, em que prevalecia o interesse do rei, caracterizando a administração regaliana .
A fase do estatismo, em que passou a prevalecer o interesse do estado, caracterizando a administração burocrática .
A fase da democracia, ascendendo como prevalecente o interesse da sociedade, caracterizando a etapa da administração gerencial.86
Analisando esse contexto, Paulo Bonavides leciona acerca da democracia, regime
de governo garantidor dos direitos do cidadão: ―O Estado social da democracia distingue-se,
em suma, do Estado social dos sistemas totalitários por oferecer, concomitantemente, na sua
feição jurídico-constitucional, a garantia tutelar dos direitos da personalidade‖.87
Seguindo o sentimento de Norberto Bobbio, a democracia deve conviver
associada com o modelo do Estado Liberal, conforme assim leciona:
Ideais liberais e método democrático vieram gradualmente se combinando num modo tal que, se é verdade que os direitos de liberdade foram desde o início a condição necessária para a direta aplicação das regras do jogo democrático, é igualmente verdadeiro que, em seguida, o desenvolvimento da democracia se tornou o principal instrumento para a defesa dos direitos de liberdade. Hoje apenas os
83 SARMENTO, Op. cit., p.42. 84 Na nota 64, CARDOSO cita que: ―A constituição da República Federativa do Brasil estabelece no seu art, 1º: ―A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]‖‖. CARDOSO, Op. cit., p. 18. 85 Idem. 86 MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro, Renovar, 2007, p. 17. 87 BONAVIDES, Paulo. Do estado social ao estado social. 6. ed. revisada e ampliada. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 204.
34
Estados nascidos das revoluções liberais são democráticos e apenas os Estados democráticos protegem os direitos do homem: todos os Estados autoritários do mundo são ao mesmo tempo antiliberais e antidemocráticos.88
É pouco provável que um Estado não-liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que um Estado não-democrático seja capaz de garantir as liberdades fundamentais.89
Vale discorrer a respeito desse estado de poder, o democrático, tendo em vista que
somente através da conquista deste é que o indivíduo passa a ser situado como cidadão na
sociedade, caracterizando-se, assim, um agente perante a Administração Pública, não
possuindo feições somente de gente, consolidando, assim, esse momento como marco
propulsor para os questionamentos acerca da relação travada entre o Estado e o cidadão.
A concepção do Estado Democrático é dada pela noção de governo pelo povo,
vinculando-o à preservação da liberdade e da igualdade de direitos, e manutenção dos direitos
sociais, através da participação do povo na organização do Estado e na formação da atuação
do governo, significando o modo de exercício de poder, fundado na soberania popular.
Limita-se, assim, o poder do Estado através do direito, como garantia aos indivíduos contra o
seu arbítrio, consubstanciando, no caso brasileiro, na expressão constitucional Estado
Democrático de Direito.90
É a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que se passam a ter
garantidos os direitos fundamentais aos indivíduos, verificando-se, com isso, que havia
grande distanciamento da concepção da democracia vigente no país, refletindo, desta forma,
na atuação da Administração Pública em que o indivíduo era considerado um súdito, não um
cidadão dotado de direitos. Esse sentimento democrático deve influenciar no modo de atuar
da Administração, levando à prática de uma democracia administrativa.91
Discorrido sobre a importância do poder estatal nesses últimos séculos, nas
relações sociais e por consequências diretas inferindo na disciplina do direito administrativo,
no caso por reger as relações de desigualdade entre os particulares e Administração Pública,
88 BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 6. ed. 4. ed.. São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 44. 89 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 33. 90 MEDAUR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 99-108. 91 No sentir de MEDAUR, Odete. Direito administrativo moderno. 16. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 34-35.
35
tornar-se válido penetrar nos conceitos mais relacionados ao tema da dissertação na seção que
se segue.
1.2 – INTERESSE PÚBLICO VERSUS INTERESSE PRIVADO
1.2.1 – Concepção clássica
O direito administrativo é formado sobre dois pilares básicos, quais sejam: a
supremacia do interesse público sobre o interesse privado e a indisponibilidade do interesse
público. E sobre estes dois amparos é que se dispõem as prerrogativas de potestade pública e
as sujeições de potestade pública que atribuem o conteúdo da atividade administrativa que se
justifica em virtude do interesse público, sem que a sua existência, as prerrogativas e
limitações perderiam o significado92 e não se conceberia o regime jurídico-administrativo, o
conteúdo da atividade administrativa.
Se o primeiro pilar torna acessível à Administração meios para assegurar a
prevalência do interesse público sobre o privado, o segundo, em sua contrapartida, acarreta-
lhe obrigações que garantem uma atuação administrativa objetivada à realização dos
interesses da sociedade, pois estes estão vinculados à função do administrador.93
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, o interesse público não se confunde com o
interesse do Estado; esse interesse constitui-se no interesse do todo, do próprio conjunto
social em que o indivíduo possa ser visualizado como integrante da sociedade, não podendo
os seus direitos particulares, em regra, serem prevalecidos em detrimento dos direitos da
coletividade.94 Cuida-se da dimensão pública dos interesses individuais, ou dos interesses de
92 BORGES, Alice Gonzalez. Interesse público: um conceito a determinar. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. n.205. p.109-116. jul./set. 1996, p.109. 93 Observa a professora Alice Borges, em outra revista, que ―tais prerrogativas e sujeições só encontram sua única razão de ser em face do interesse público que as justifica. Sem sua existência, perderia qualquer significado, em um Estado Democrático de Direito‖. Ainda escreve a autora sobre o tema: ―a fim de justificar o autoritarismo do direito administrativo se vincula a ideia das suas prerrogativas de potestade pública e pouco se comenta do caráter serviente que o interesse público possui‖. BORGES, Alice Gonzalez. Supremacia do Interesse público: desconstrução ou reconstrução? Revista Diálogo Jurídico. Salvador. n.15. jan-fev-mar 2007, p.4. 94 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 59.
36
cada indivíduo integrante da sociedade, não podendo os seus direitos, em regra, serem
equiparados aos direitos sociais.95
Sustenta Celso Antônio Bandeira de Mello que o interesse público não é algo
autônomo, que existe por si mesmo, distinto e como realidade apartada e estranha dos
interesses dos indivíduos. Para o autor, é uma função qualificada desses interesses, quer dizer,
uma das possíveis formas de sua manifestação. Justifica o autor que os interesses dos
indivíduos se expressam mediante duas noções: uma particular, que corresponde às
conveniências exclusivamente pessoais do indivíduo, vista de modo singular, unitário
(interesse de não ter o seu imóvel expropriado); uma pública, representada pelo interesse do
indivíduo considerado como membro da sociedade na qual é incorporado (interesse do mesmo
indivíduo de que exista o instituto da desapropriação, com a devida recompensa ou
substituição de valor).96
Entende o autor que a primeira das dimensões traduz o interesse privado -
―individual, particular que se liga às conveniências de cada um no que concerne aos assuntos
de sua vida particular‖97 e a segunda, o público-interesse do todo. Dessa forma, o interesse
público não é algo independente, constituído autonomamente que existe por si mesmo: ele é
dependente dos interesses dos indivíduos, razão pela qual ser formado precisamente pela
dimensão pública.
No dizer de Jorge Hector Escola, o interesse público é o interesse em que todos se
têm tornado participantes e beneficiários:
El interés privado – libertades y derechos – y el interés público no son, de esa manera, dos ideas opuestas y antitéticas. Por el contrario, el interés público, que concluye en el bienestar general, no es sino la condición y el elemento indispensable para que todo interés privado pueda, real y efetivamente, prevalecer y conseguirse.98
O autor, ainda versando acerca da compreensão sobre o interesse público, enfatiza
que:
Es la presencia de esos interesses individuales coincidentes y compartidos por un grupo cuantitativamente preponderante de indivíduos, lo que da lugar, de ese modo, a un interés público, que surge como un interés de toda la comunidad, siendo indiferente entrar a discutir, por ahora, si la consciência social o colectiva expressada debe imputarse a un ente extra o superindividual, que en la realidade no
95 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual do direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 35. 96 MELLO, Idem, p. 60-61. 97 Idem, p.61. 98 ESCOLA, Jorge Hector. El interés público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma. 1989, p.36.
37
existe, o si debe reconducírsela a las conciencias individuales, que son las que valoran y quieren el interés, que se hace público a través de su sumatoria. El interés público encuentra siempre su origen en el querer axiológico de los indivíduos [...].99
Diante dessa constatação, que o interesse público guarda relação íntima com os
interesses dos indivíduos, o jurista formula o seu conceito, sob o olhar social, nos seguintes
termos: ―o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do conjunto de
interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de
membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem‖.100
O entendimento do publicista resta significação à doutrina brasileira por ter sido o
primeiro estudo acerca da supremacia do interesse público, anterior que foi à Carta Cidadã,
uma vez que identificou os seguintes aspectos: que o interesse público não é algo contrário
aos interesses dos indivíduos, e isso não porque ele seja idêntico a eles, mas por ser formado
por uma dimensão pública, e que o interesse público não se confunde com o interesse do
aparato estatal, do Estado enquanto pessoa jurídica, pois este possui, do mesmo modo, tanto a
dimensão pública e quanto a dimensão particular.101
Identifica-se, pois, um privilégio outorgado ao Estado visto que ―o Poder Público
se encontra em situação de autoridade, de comando, relativamente aos particulares, como
indispensável condição para gerir os interesses públicos postos em confronto‖.102
Para Hely Lopes Meirelles, a supremacia do interesse público sobre os cidadãos
passa a ser fundamento de privilégios e prerrogativas desfrutadas pelo poder público,
privilégios e prerrogativas que não podem ser desconhecidos nem desconsiderados pelo
intérprete ou aplicador de regras e princípios desse ramo do direito. Nesse contexto: ―Sempre
que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer
este, uma vez que o objetivo primacial da Administração é o bem comum‖.103
Com esse papel tão importante para a consagração do direito administrativo, o
interesse público representa para a doutrina dominante um conceito indeterminado,104 pois
99 ESCOLA, Op. cit., p. 238. 100 Idem, p 61. 101 Idem, p. 62. 102 MELLO, Op. cit., p.70. 103 MEIRELLES, Helly Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.50. 104 Uma vez que os limites de um conceito jurídico indeterminado não podem ser bem definidos, necessário se faz observá-los no caso particular conforme lembra Enterria: ―com la técnica del concepto jurídico indeterminado la Ley refiere una esfera de realidad cuyos limites no aparecen bien precisados en su enunciado, no obstante lo cual es claro que intenta delimitar un supuesto concreto”. ENTERRIA, Eduardo Garcia de; FERNANDEZ, Tomas-Ramon. Curso de Derecho Administrativo I. 5. ed. Madrid: Civitas, 1993, p. 455.
38
mostra ser expressão fluida, vaga, imprecisa, de difícil significado, como leciona Eros
Roberto Grau:
São indeterminados os conceitos cujos termos são ambíguos ou imprecisos – especialmente os imprecisos – razão pela qual necessitam ser completados por quem os aplique. [...] os parâmetros para tal preenchimento – quando se trate de conceito aberto por imprecisão – devem ser buscados na realidade [...] [...] concepções, essas, que variam conforme a situação das forças sociais.105
A análise do contexto de interesse público, através da lição de Jean Rivero:
O homem, ser social, não pode bastar-se a si mesmo; o livre jogo das iniciativas privadas permite-lhe prover a algumas das suas necessidades, graças à divisão do trabalho e às trocas, mas há outras, e das mais essenciais, que não podem receber satisfação por esta via, seja porque, comuns a todos os membros da colectividade, excedem pela sua amplitude as possibilidades de qualquer particular – é o caso das necessidades de segurança nacional – seja porque a sua satisfação é por natureza isenta de qualquer lucro, de modo que ninguém se oferecerá para a assegurar. Estas necessidades a que a iniciativa privada não pode responder e que são vitais para a comunidade como um todo e para cada um dos seus membros constituem o domínio próprio da Administração; é a esfera do interesse público.106
O motor da acção administrativa, pelo contrário, é essencialmente desinteressado: é a prossecução do interesse geral, ou ainda da utilidade pública, ou uma perspectiva mais filosófica, do bem comum.
O interesse geral não é, portanto, o interesse da comunidade considerada como uma entidade distinta dos que a compõem e superior a eles; é muito mais simplesmente, um conjunto de necessidades humanas – aquelas a que o jogo das liberdades não provê de maneira adequada e cuja satisfação, todavia, condiciona a realização dos destinos individuais. A delimitação do que entra no interesse geral varia com as épocas, as formas sociais, os dados psicológicos, as técnicas; mas se o conteúdo varia, o fim continua o mesmo: a acção administrativa tende à satisfação do interesse geral.107
Analisando a concepção de interesse público dentro de determinado ordenamento
jurídico-positivo, tem-se como ―aquele a que a Constituição e a lei deram tratamento especial;
fins públicos são aqueles que o ordenamento assinalou como metas a serem perseguidas pelo
Estado‖.108
O pensamento trazido por Alice Gonzalez Borges, para o interesse público é o de:
[...] Um somatório de interesses individuais coincidentes em torno de um bem da vida que lhes significa um valor, proveito ou utilidade de ordem moral ou material, que cada pessoa deseja adquirir, conservar ou manter em sua própria esfera de valores.
105 GRAU, Eros Roberto. Direito, conceitos e normas jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1988, p. 72. 106 RIVERO, Jean. Direito administrativo. Tradução Rogerio Ehrhardt Soares. Coimbra: Almedina, 1981, p.14. 107 Idem, p.15. 108 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.35.
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Esse interesse passa a ser público, quando dele participam e compartilham um tal número de pessoas, componentes de uma comunidade determinada, que o mesmo passar a ser também identificado como o interesse de todo o grupo, ou, pelo menos, como um querer valorativo predominante da comunidade.
[...] Pode acontecer que uma parcela da comunidade não reconheça ou não identifique aquele interesse como seu, ou cujo próprio interesse se ache, até, em colisão com esse querer valorativo preponderante.
[...] Em uma ordem democrática, não se impõe coativamente. Somente prevalece, em relação aos interesses individuais divergentes, com prioridade e predominância, por ser um interesse majoritário.
O interesse público e o interesse individual colidente ou não coincidente são qualitativamente iguais, somente se distinguem quantitativamente, por ser o interesse público nada mais que um interesse individual que coincide com o interesse individual da maioria dos membros da sociedade.
109
Reiterando esse entendimento, em uma segunda obra sobre o tema, Alice
Gonzalez Borges transcreve que o interesse passa a ser público, quando dele participam e
compartilham um número de pessoas, integrantes de uma comunidade determinada, que passa
a ser igualmente identificado como interesse de todo o grupo, ou, pelo menos, como um
querer valorativo predominante da comunidade.110
Nesse sentido, quando um interesse individual é substituído por um interesse
público, este deve ser compensado pela perda de seus direitos e interesses, mediante sua
prévia e justa conversão em outro valor. Normalmente quando acontece esta situação, a
Administração se utiliza do instituto da indenização através, por exemplo, do pagamento pelo
bem expropriado.111
1.2.2 – Concepção da nova doutrina
Nas quadras das ilações acerca do interesse público, Marçal Justen Filho traz a sua
contribuição ao tema, enfatizando o que não se enquadra nessa concepção, como um dos
suportes para o regime jurídico administrativo:
É imperioso tomar consciência de que um interesse é reconhecido como público porque é indisponível, porque não pode ser colocado em risco, porque suas características exigem a sua promoção de modo imperioso.
109 BORGES, Alice Gonzalez. Supremacia do Interesse público: desconstrução ou reconstrução? Revista Diálogo Jurídico. Salvador. n.15. jan-fev-mar 2007, p.9-10. 110 BORGES, Alice Gonzalez. Interesse publico: um conceito a determinar. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. n.205. p.114-16. jul./set. 1996. 111 Cf. previsão em MELLO, Op. cit., p. 69.
40
[...] o titular do interesse público é o povo, a sociedade (no seu todo ou em parte). Mas os governantes refugiam-se neste princípio para evitar o controle de seus atos pela sociedade.
Fundamentar decisões no ―interesse público‖ produz a adesão de todos, elimina a possibilidade crítica. Mas ainda, a ―invocação do interesse público‖, imuniza as decisões estatais ao controle e permite que o governante faça o que ele acha que deve ser feito, sem a comprovação de ser aquilo, efetivamente, o mais compatível com a democracia e com a conveniência coletiva.112
Para Luís Roberto Barroso, ―o interesse público se realiza quando o Estado
cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a único cidadão‖. Fundamenta
essa possibilidade, quando o interesse público é identificado no momento em que atende à
pretensão do particular, mesmo que o fato não esteja relacionado a um direito fundamental,
como, por exemplo, quando do conserto de um buraco de uma rua que ocasiona desconforto
para somente um estabelecimento comercial.113
Patrícia Ferreira Baptista relata que a identificação do interesse da Administração
com o interesse público e a incerteza na sua determinação são alguns dos problemas que
dificultam a aceitação incondicional de tal preceito do direito administrativo
contemporâneo.114
Numa visão propagada pela nova geração de publicistas brasileiros, Daniel
Sarmento aponta como fundamento para a indeterminação do conceito do interesse público a
dificuldade de ―extrair, à moda de Rousseau, uma noção hegemônica de bem comum ou de
vontade geral‖, diante do contexto da fragmentação e pluralismo que são o retrato das
sociedades contemporâneas.115
Nesse quadro, ―a indeterminação semântica do conceito pode permitir às
autoridades públicas que o manuseiem as mais perigosas malversações‖.116 Pode insurgir
112 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito administrativo reescrito: problemas do passado e temais atuais. Artigo publicado na Revista Negócios Públicos, ano II, nº 6: 39-41. 113 BARROSO. Luís Roberto. Prefácio: O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da supremacia do interesse público. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. xv. Numa visão mais conservadora, Fábio Medina Osório postou que o princípio da supremacia do interesse público estaria constitucionalmente orientado para a promoção do bem comum e não para a proteção dos interesses privados em todas as hipóteses de conflitos e colisões. OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro? In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. n. 220. p.69-107. abr./jun. 2000. 114 Patrícia Baptista. Op. cit., idem, p. 184. 115 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.27. 116 Idem.
41
algum tipo de interesse duvidoso que leve à prática da arbitrariedade cometida à ordem
democrática e aos direitos fundamentais, estando a sociedade, à margem, do controle dos atos
administrativos.
No dizer de Daniel Sarmento, o interesse público se mostra como um novo
modelo para fazer ressurgir as ―razões de Estado‖, preceitos antes colocados como obstáculo
intransponível para o exercício de direitos fundamentais e transformar-se num novo incentivo
ao patrimonialismo, onde não há distinção entre o público e o privado.117
Humberto Bergmann Ávila, pioneiro a seguir nova linha de pensamento quanto ao
interesse público, analisa através da ideia de Peter Häberle, se este pode ser descrito
objetivamente:
Considerando-se que ele se relaciona com diferentes normas e conteúdos (p.ex. normas de competência e normas que prescrevem direitos e garantias), é concretizado por meio de diversos procedimentos (p.ex. judicial, administrativo) e constitui-se por meio de um permanente processo diacrônico de compreensão do Estado em uma dada comunidade (p. ex., compreensão do significado de Estado de Direito).118
Então, assim, o autor pronuncia: ―o importante é que a indeterminabilidade
empírica vai de encontro ao postulado da explicitude das premissas, decorrente da própria
segurança jurídica‖.119
Ainda comenta Humberto Bergmann Ávila que ―o interesse privado e o interesse
público estão de tal forma instituídos pela Constituição Federal que não podem ser
separadamente descritos na análise da atividade estatal e de seus fins‖.120
Assim, elementos privados estão incluídos nos próprios fins do Estado, o interesse
público e os privados não estão principalmente em conflito, como se espera de uma relação de
prevalência.121 Para Häberle, invocado através de Humberto Bergmann Ávila, esse
entendimento é traduzido quando diz que ―o interesse privado é um ponto de vista que faz
parte do conteúdo de bem comum da Constituição‖.122
117 SARMENTO, Op. cit., p.27-28. 118 HÄBERLE, Peter. Öffentliches interesse als juristisches problem. Bad Homburg: Athenäum, 1970, p.526 apud ÁVILA, Humberto Bergman, Repensando o ―princípio da supremacia do interesse público sobre o particular‖. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 190. Esclarecendo, processo diacrônico tem a ver com evolução. 119 ÁVILA, Op. cit., p. 190. 120 Ibidem. 121 Idem, p. 190-191. 122 HÄBERLE. Op. cit., p. 526 apud ÁVILA, Humberto Bergman. Op. cit., p. 190.
42
Merece ressaltar ainda a observação trazida por Humberto Bergmann Ávila acerca
do tema, visando a melhor compreensão:
A verificação de que a administração deve orientar-se sob o influxo de interesses públicos não significa, nem poderia significar, que se estabeleça uma relação de prevalência entre os interesses públicos e privados. Interesse público como finalidade fundamental da atividade estatal e supremacia do interesse público sobre o particular não denotam o mesmo significado.123
Na cadência dessas mais recentes ideias, Gustavo Binenbojm trouxe a sua
contribuição dizendo que a definição do interesse público se encontra em xeque na atualidade
brasileira porque ―deixa de estar ao inteiro arbítrio do administrador, passando a depender de
juízos de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais e outros valores e interesses
metaindividuais constitucionalmente consagrados‖.124
Numa menor representação, mas com vasta sonorização diante da nova visão
desse paradigma clássico do direito administrativo, interesse público, insurgiu uma demanda
doutrinária por esse movimento que se posiciona em sentido contrário à superioridade do
interesse público sobre o interesse privado, sugestionando, assim, alterar o tradicional papel
da Administração Pública brasileira, diante da legitimidade democrática.
Patrícia Ferreira Baptista faz coro a essa nova toada através da melhor dogmática
contemporânea, fundada na concretização dos direitos fundamentais constitucionais, em
especial, da dignidade humana que visa revigorar o estudo do direito administrativo. Para a
autora: ―Da condição de súdito, de mero sujeito subordinado à Administração, o administrado
foi elevado ao status de cidadão‖, identificando nova função administrativa, direcionada para
o respeito e a concretização dos direitos fundamentais, a participação administrativa
desempenha papel de destaque. Nesse sentido, ―o cidadão consegue dialogar com a
Administração‖.125
123 HÄBERLE. Op. cit., p.526 apud ÁVILA, Humberto Bergman. Op. cit., p. 191. 124 BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 128. 125 Patrícia Ferreira Baptista também faz referência ao cidadão e não ao súdito frente à Administração, diante da configuração do Estado Democrático de Direito que emergiu do momento histórico que levou o indivíduo para o centro das atenções da vida estatal, administrativa. BAPTISTA, Op. cit., p.128-131.
43
Assim, cabe à Administração Pública, no seu dia a dia, interpretar o interesse
público tendo em vista as hipóteses da realidade viva,126 aplicando-o de acordo com a
finalidade a que lhe foi atribuída.
Cabe nessa seara, distinguir o interesse público em duas dimensões: primário e
secundário. Considera-se interesse público primário aquele que é formado pelo complexo de
interesses individuais prevalentes em uma dada organização jurídica de uma sociedade,
representando uma unidade de interesses coincidentes, vários interesses buscando o mesmo
sentimento. Constituirá o elemento importante a ser levado em conta numa situação, que a
Administração estará obrigada a apoiar-se nas suas escolhas quando da sua atuação
funcional.127
No dizer de Luís Roberto Barroso ―o interesse público primário é a razão de ser
do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar
social. Estes são os interesses de toda a sociedade‖.
Ainda para o citado autor, o interesse público secundário ―é o da pessoa jurídica
de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica de direito - quer se trate
da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias‖.128 Entendimento simples
assim para interesse secundário: o interesse do erário.
Marçal Justen Filho lembra que o interesse secundário não é público,129 visto que
essa categoria de interesses pode ser reconduzida tanto à Administração Pública quanto a um
particular. Enquadram-se nesse modelo, por exemplo, a solicitação de licença para
funcionamento de um estabelecimento comercial sem a devida higienização do local, bem
como o interesse que tem o poder público em auferir maior receita na instituição de nova taxa
acima da capacidade do contribuinte. Há, nesses casos, interesse pessoal, próprio, sem
qualquer vinculação do sentimento público visando a uma coletividade de interesses.
126 BORGES, Alice Gonzalez. Interesse público: um conceito a determinar. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. n.205. p.109-16. jul./set. 1996, p.109. 127 MELLO. Op. cit., p. 65-69. 128 BARROSO, Luís Roberto. Prefácio: o estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da supremacia do interesse público. In: SARMENTO, Daniel (org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005. p. xiii. Para a tradicional doutrina, o interesse verdadeiramente público é o interesse primário. Corrobora com o sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello. MELLO. Op. cit., p. 65-69. 129 JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, nº 26, São Paulo: Malheiros, p. 115-136, 1999, p.118.
44
A compreensão sob exame conduz à ideia de que a sociedade é o principal sujeito
de direito do interesse público, quem possui a sua titularidade, e que ao Estado cabe
fundamentalmente a sua melhor gestão ainda que nos tempos atuais seja obstaculizada face à
atuação dos particulares em assumirem atividades da Administração, através dos interesses
classificados como públicos, por exemplo, atividades exercidas pelo terceiro setor.130
Para Daniel Sarmento, ―uma das grandes dicotomias sobre as quais se erigiu o
pensamento político e social foi exatamente a distinção entre o público e o privado‖.
Prossegue dizendo que os conceitos de público e de privado estão mergulhados na cultura,
tendo variado substancialmente no tempo e no espaço, e que as fronteiras entre o público e o
privado são extremamente móveis e instáveis, e que a prioridade atribuída a cada um dos
elementos desse par também varia diante das mutações políticas e cosmovisivas.131
O autor, no estudo entre o público e o privado, analisa basicamente três principais
critérios propostos visando demarcar os campos pertinentes ao direito público e ao direito
privado: o critério da prevalência do interesse, o da natureza das relações jurídicas travadas e
o subjetivo.132
Ao analisar o critério da prevalência do interesse, contesta o autor acerca das
matérias que o direito público corresponde a uma preponderância dos interesses públicos,
diante do Estado de Direito, enquanto que ao direito privado restaria a disciplina das questões
que se relacionam mais diretamente aos indivíduos, deixando para um segundo momento os
interesses da coletividade. Aduz que esse critério de separação entre esses ramos do Direito
pode ser contraditado: o direito público deve regular-se pelo respeito aos interesses privados
do cidadão, sobretudo dos que se qualifiquem como direitos fundamentais, para não incorrer
no erro de definir o direito público como espaço de prevalência do interesse público em face
do individual. Por outra senda, nos ramos que costumam ser localizados no interior do direito
privado, civil, empresarial, por exemplo, podem aparecer como normas de ordem pública que
limitam e condicionam interesses individuais em favor de valores e de interesses coletivos.133
130 Com evidência para a atuação das atividades desempenhadas pelas ONGs (Organizações não governamentais), pelas OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse público) e pelas OSs (Organizações Sociais) que constituem o terceiro setor, aquele que compõe o espaço público não-estatal que surgiu do emagrecimento do setor público e da assunção de tarefas públicas por entidades privadas, desvinculando-se diretamente de órgãos estatais. 131 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, p.29-30. 132 Idem, p.30. 133 Idem, p.31.
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O autor, ao relatar o segundo critério para essa distinção, o da natureza das
relações jurídicas travadas, diz respeito à natureza das relações estabelecidas pelos sujeitos em
cada um destes campos: no direito público, relações de autoridade e subordinação entre o
Estado e o cidadão; no direito privado, relações de paridade e de coordenação, travadas por
agentes em situação de igualdade, sendo contraditado uma vez que as relações privadas são
eivadas por desigualdades fáticas, em que personagens estatais não se fazem presentes na
relação de poder e de dominação, além de que a visão de autoridade do poder público guarda
vestígios do Estado Absoluto através da relação de subordinação existente entre a
Administração e o cidadão.134
A sua derradeira análise aponta que o critério subjetivo do direito público é aquele
em que nas relações jurídicas figuram sempre o Estado, enquanto o do direito privado é o
ramo do ordenamento jurídico em que os poderes públicos não se fazem presentes. Ideia
contraditada pelo citado autor, tendo em vista que não é de agora que relações privadas
podem tomar o Estado como parte a exemplo do registro público, além de hoje perceber que a
Administração Pública possui um viés no direito privado e do fenômeno recente da
constitucionalização do direito presente nesse ramo jurídico.135
Para o administrativista, a separação do público/privado é tênue para explicar o
cenário atual, em que há múltiplos espaços da vida humana regidos por variadas lógicas:
Tais espaços, na verdade, não são separados de modo tão rígido e esquemático, penetrando-se e entrecruzando-se frequentemente. E, muito embora eles possuam características e peculiaridades próprias, devem ser cortados transversalmente pelos princípios emancipatórios atrelados aos direitos humanos e à democracia, que não podem mais permanecer cingidos com exclusividade à esfera das relações em que o Estado se faça presente.136
Assim, conclui o autor que para essa questão entre o público e o privado deve
haver somente um ordenamento jurídico, que tem no seu cume a Constituição, cujos
princípios e valores devem estar presentes em qualquer relação dessa seara.137
Tecidas essas diferenciações acerca do interesse público, resta demonstrada quão
árdua é a tarefa de apurar uma definição única acerca do seu conceito, tendo em vista o
enrijecimento do interesse público nas funções do Estado, acarretando a evolução do seu
conceito de forma pragmática, bem como a sua desmistificação nos últimos tempos através de
134 SARMENTO, Op. cit., p.31-32. 135 Idem. Diante do pós-positivismo e da reforma do Estado. 136 Idem, p.48. 137 Ibidem.
46
valores como a supremacia da Constituição e princípios fundamentais em detrimento ao
processo de despersonalização do poder, diante do curso da história da sociedade.
É fundamental que o conceito analisado observe a marcha que caminha a
sociedade, a sua transformação. O interesse público de hoje pode não ter sido interesse
público no passado, ao tempo em que possa não vir a ser nem útil nem conveniente para o
futuro.
Assim, sem refutarem a novel doutrina, autores tradicionalistas comungam que o
interesse público deve estar presente no ordenamento jurídico, mesmo que seja para cumprir a
finalidade do ato administrativo, diferentemente de outros institutos jurídicos do Direito. O
interesse público, diante do atual estágio dos direitos fundamentais, para ser interpretado,
deve-se fazer uma análise da circunstância em que está inserido, dos fins a que deve atingir,
da época em que ocorre, em face de uma situação concreta, através dos valores
constitucionais.
Nesse contexto, bem se percebe, então, que o interesse público pode ser
suplantado pelo interesse privado, tendo em vista não ser menos importante que o interesse
público diante de confrontos de direitos fundamentais.
Ao versar sobre o controvertido conceito do interesse público dentro do estudo do
direito administrativo, vale se debruçar, tecendo alguns comentários e críticas acerca do
princípio da supremacia do interesse público no ramo jurídico pátrio, a seguir.
1.3 - ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO
SOBRE O INTERESSE PRIVADO
1.3.1 – Definição do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse
privado
O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado surgiu no direito
brasileiro à década de sessenta do século passado, tendo sido disseminado por Celso Antônio
Bandeira de Mello gizando-o como tão significativo princípio para o direito administrativo
brasileiro, colocando-o como um dos dois pilares do regime jurídico, ao lado da
47
indisponibilidade do interesse público, sujeitando a Administração Pública à legitimação de
prerrogativas e imposição de limitações.138
Sob a égide desse dito princípio, vislumbram-se para o autor duas consequências
jurídicas quais sejam: posição privilegiada atribuída aos órgãos públicos na tutela dos
interesses públicos e posição de supremacia desses órgãos diante das relações com os
particulares. Dessa posição privilegiada, brota uma série de benefícios que a ordem jurídica
confere com o fim de assegurar a proteção aos interesses públicos como: presunção de
legitimidade e de veracidade de seus atos, além de atribuir prazos processuais maiores quando
da sua intervenção. Quanto à segunda consequência, a supremacia, vigora a verticalidade das
relações entre a Administração e os particulares, plasmando o autoritarismo e situação de
comando do poder público perante estes. Essa desigualdade em favor da Administração leva à
possibilidade de modificação unilateral de relações já estabelecidas e da Administração
exercer o poder de polícia.139
Da conjugação dessas duas consequências, ainda se observam mais duas outras
prerrogativas atribuídas ao Estado que é a autotutela e a exigibilidade de atos
administrativos.140
Esse dito princípio foi identificado na Constituição Federal, mas não sendo
radicado em um específico dispositivo, apesar de ser apontado concretamente através dos
princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente
(art. 170, III, V e VI), além do art. 5º, XXIV e XXV quando discorre sobre a desapropriação e
a requisição, institutos inerentes ao direito administrativo.141
Nessa esteira, o autor caracteriza o princípio considerando a sua elevada
significação axiológica dentro do direito administrativo, na medida em que o Estado torna-se
autêntico defensor do interesse coletivo e o interesse público passou a ser visto como
justificação para a sua supremacia.142 Assim, esse mesmo autor defende a existência desse
princípio dentro dos limites da legalidade administrativa no contexto do Estado Democrático
de Direito.
138 MELLO, Op. cit., p. 70-73. 139 MELLO, Op. cit., p.70. 140 Idem, p.71. 141 Cf. MELLO, Op. cit., p.96. 142 Idem.
48
Afirma o jurista que o princípio da supremacia do interesse público sobre o
privado deve objetivar apenas os interesses públicos primários ―que são os interesses da
coletividade como um todo‖.143
Nunca é demais relembrar o pensamento trazido pelo autor ―que o interesse
público, ou seja, o interesse do todo, é ‗função‘ qualificada dos interesses das partes, um
aspecto, uma forma específica, de sua manifestação‖.144
1.3.2 – Sustentação doutrinária do princípio da supremacia do interesse público sobre
interesse privado
Certo é que a ideia introduzida por Celso Antônio Bandeira de Mello ecoou com
vasta aceitação doutrinária no país, tendo em vista, fundamentalmente o período em que foi
introduzido,145 à época da ditadura, pós-revolução, em que a obediência hierárquica era a
ordem social vigente, restando comprovada a relação de dominação do Estado perante os seus
administrados. Conforme esse autor leciona que a supremacia do interesse público sobre o
interesse privado ―É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um
possam sentir-se garantidos e resguardados‖.146
Para o administrativista, uma vez considerada a supremacia do interesse público
sobre o interesse particular como princípio constitucional implícito147 do direito
administrativo, ele o enquadrou como:
[...] Mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere tônica e lhe dá sentido harmônico.148
Em arremate às ideias de Celso Antônio Bandeira de Mello, pugna-se pela
existência do combatido princípio tendo em vista a prerrogativa que o Estado necessita para
exercer a função administrativa, buscando, desta forma, a efetivação do interesse público
143 MELLO, Op. cit., p.24. 144 Idem, p.57-58. 145 A publicação do artigo por Celso Antônio Bandeira de Mello deu-se em 1967. 146 Idem, p. 70. 147 Para Mello, o princípio está implícito porque não há qualquer positivação expressa na Lei Maior, mais que a supremacia do interesse público pode ser evidenciada concretamente através do poder do Estado através dos institutos da desapropriação e da requisição (CF, art.5º, XXIV e XXV). Idem, p. 96. 148 Idem, p. 966-967.
49
coletivo; ainda se identifica um segundo requisito para a sua existência que é possuir
fundamento de validade no ordenamento jurídico explícito ou implícito, tendo em vista seu
caráter normativo.
Convém mencionar doutrinadores que recepcionaram tais ideias, a exemplo de
Maria Sylvia Zanella Di Pietro que atribui a supremacia do interesse público como um dos
princípios implícitos da Administração Pública, vinculando nas suas primeiras publicações o
interesse público à ideia de finalidade, bem-estar coletivo e à ampliação dos serviços
públicos.149
A autora associa o fundamento atribuído ao Estado de poder que a lei lhe confere,
não podendo a autoridade administrativa ―prejudicar um inimigo político, beneficiar um
amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros‖, pois assim, ―estará fazendo
prevalecer o interesse individual sobre o interesse público, e, em consequência, estará se
desviando da finalidade pública prevista na lei‖.150 Fica, assim, consubstanciado, o vício do
desvio de poder.
Ao discorrer sobre o princípio da supremacia do interesse público, Lúcia Valle
Figueiredo enfatiza que ―se é o interesse público está em jogo – portanto, de toda a
coletividade –, é lógico deva ele prevalecer sobre o privado‖.151
Para José dos Santos Carvalho Filho, ―as relações sociais vão ensejar em
determinados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas
ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público‖. Ele elencou como nítidos
exemplos da supremacia a desapropriação e o poder de polícia do Estado, ―por força do qual
se estabelecem algumas restrições às atividades individuais‖.152
Em um segundo momento, o mesmo autor afirma que a posição de supremacia do
Estado não pode alvejar fins despóticos, mas tem o intuito de proteger e garantir os indivíduos
no que concerne aos interesses públicos. Realça que é impossível conceber o Estado mesmo
149 Di Pietro coloca que a natureza das normas de direito público devem ser objetivadas para alcançar o bem-estar coletivo. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.65. 150 DI PIETRO. Direito administrativo. Idem, p.66. 151 FIGUEIREDO, Op. cit., p. 67. 152 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 35.
50
em tempos atuais que não congregue a necessária autoridade para sobrepor o interesse público
aos interesses privados.153
Em nota conclusiva acerca das ideias desse autor, percebe-se a sua fidelidade à
existência do debatido princípio, fundada pelo caráter autoritário exercido pela ação
administrativa do Estado diante do particular em busca da realização do interesse público.
Nem precisa ressaltar que a maioria da doutrina se filia, ao longo dessas décadas,
aos fundamentos centrais do seu propagador e às ideias que foram sendo acrescidas à essência
do princípio pelos seus seguidores, restando como simples conclusão que a supremacia vence
quando da colisão do interesse público com o do particular.154
Muito embora essa forte tendência solidificada por inteiras três décadas do século
passado, uma nova frente de doutrinadores surgiu nos finais anos noventa, sendo representada
por Humberto Bergmann Ávila, quando questionou a adequação do referido princípio aos
tempos mais atuais da Administração Pública, quando da publicação do seu artigo
―Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular‖,155 conforme
detalhamento na seção que se segue.
1.3.3 – Crítica e desconstrução doutrinária do propalado princípio da supremacia do
interesse público sobre o privado
Para o presente trabalho, é significativo trazer o fundamento inicial que a doutrina
mais moderna se utilizou para rechaçar a supremacia do interesse público sobre o interesse
privado como princípio constitucional implícito, ideia posta por esse administrativista quando
ele traz em seus ensinamentos a função normativa de um princípio.
O primeiro sentimento de rechaço se manifesta na oposição da ideia de Celso
Antônio Bandeira de Mello quando o coloca na posição de princípio constitucional, mesmo
153 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Interesse público: verdades e sofismas. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. (Coord). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 74. 154 Somam-se a esse quadrante de ideias perfilhando a aplicabilidade do princípio: Diógenes Gasparini (Direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992) Lúcia Valle Figueiredo(Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1994), Celso Ribeiro Bastos (Curso de direito administrativo, São Paulo: Saraiva, 1994). Romeu Felipe Bacellar Filho (Direito administrativo, São Paulo: Saraiva, 2005), além dos antes comentados no texto. 155 ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n.24, p.159-180, 1998.
51
sendo implícito, quando, no entanto, ele define a supremacia como um ―verdadeiro axioma
reconhecível no moderno Direito Público‖.156
Humberto Bergmann Ávila não intentou descuidar do interesse público frente às
funções atribuídas para a Administração Pública e, como consequente, para a teoria do direito
administrativo, todavia voltou a sua análise para a adequação tão somente da supremacia do
Estado.157
Com esse sentimento, esse autor inicia a sua crítica tomando por base a
supremacia do interesse público sobre o privado segundo definições preliminares do
princípio: como axioma, como postulado e como norma.
Passando a verificar a supremacia do interesse público como axioma,158 identifica
que representa um princípio evidente por si mesmo, de fácil entendimento, não sendo
necessário o esforço para a sua compreensão, bastando apenas se aplicar a lógica, ou seja,
teorema cuja veracidade é aceita por todos não carecendo ser demonstrada. Como postulado,
reconhece a supremacia do interesse público como fato ou objeto, cuja admissão é necessária
para estabelecer uma demonstração e ainda enfatiza que o postulado normativo, deve haver a
possibilidade do conhecimento do contexto normativo jurídico; assim, o mestre rechaça com o
argumento de que não seria condição de possibilidade do conhecimento do fenômeno jurídico.
Por derradeiro, se relacionar a supremacia do interesse público sobre o interesse privado como
norma, norma-princípio também o autor a refuta dessa categoria, visto que decorre de normas
de condutas ou instituição de valores e fins para interpretação e aplicação do Direito, que uma
vez sendo configurada como princípio necessitaria da ponderação,159 e, no caso de tensão com
outros princípios, busca-se a otimização da norma em diferentes graus quando da sua
concretização.
Como foi atribuída a definição do citado princípio por Celso Antônio Bandeira de
Mello, ―proposição cuja veracidade é aceita por todos‖160 caracteriza um verdadeiro axioma
jurídico, pois não carece de comprovação, além de ser atribuída à supremacia desse interesse
a categoria de princípio, norma-princípio, pelo administrativista visando regular as relações
entre o Estado e o particular.
156 MELO, Op. cit., p. 70. 157 ÁVILA, Idem. 158 Para Patrícia Baptista, a literatura jurídica faz uso do termo ―axioma‖ para explicar tipos de raciocínio jurídico aceito por todos. BAPTISTA. Op. cit., p.185, nota 8. 159 No sentido de Ávila. Idem. 160 ÁVILA, Op. cit., p.161.
52
Humberto Bergmann Ávila ainda discute a imprecisão do termo ―interesse
público‖ além do funcionamento como vem sendo exposta a supremacia do interesse público
quando sugere repensar esse princípio, sem que haja qualquer questionamento acerca da sua
importância e da adequação do interesse público para o direito administrativo brasileiro. Para
tal, analisa a possibilidade de ser um axioma, um postulado e uma norma-princípio.161
O autor prossegue os seus questionamentos quando procura detalhar se esse
referido ―princípio‖ pode ser descrito como um princípio jurídico ou norma-princípio de
acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, além de também analisar se o debatido
princípio pode ser entendido com uma condição para a explicação desse mesmo ordenamento
jurídico.162
Partindo da distinção entre princípios e regras, o autor esclarece que para ele não
há dúvida de a supremacia do interesse público sobre o interesse particular não é uma norma-
princípio porque:
[...] sua descrição abstrata não permite uma concretização em princípio gradual, pois a prevalência é a única possibilidade (ou grau) normal de sua aplicação, e todas as outras possibilidades de concretização somente consistiriam em exceções e, não, graus [...]
[...] Uma tensão entre os princípios não se apresenta de modo principal, pois a solução de qualquer colisão se dá mediante regras de prevalência, estabelecidas a priori e não ex post, em favor do interesse público, que possui abstrata prioridade e é principalmente independente dos interesses privados correlacionados (p. ex. liberdade, propriedade).163
Prossegue o autor analisando a ausência de fundamento de validade e justifica que
―não pode ser descrito como um ―princípio jurídico-constitucional imanente‖, mesmo no caso
de ser explicado com um princípio abstrato e relativo, pois ele não resulta, ex constitutione, da
análise sistemática do Direito‖.164
Um segundo ponto para o tema possui indeterminalidade abstrata ―que vai de
encontro com o postulado da explicitude das premissas decorrente da própria segurança
jurídica‖. Rechaça, ainda, quando afirma que ―o interesse privado e o interesse público estão
de tal forma instituídos pela Constituição brasileira que não podem ser separadamente
descritos na análise da atividade estatal e de seus fins‖.165
161 ÁVILA, Op. cit., p.175-182. 162 Idem, ibidem. 163 Idem, p.184-185. 164 Idem, p.186. 165 Idem, p.190.
53
Outra grande questão trazida pelo autor é se a supremacia é um postulado
normativo de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro. Como resposta, leciona quanto à
delimitação do interesse público que:
Um postulado explicativo do Direito Administrativo não pode ser uma regra de prevalência, mesmo que essa preferência seja ―apenas‖ abstrata e relativa. Ao contrário de uma regra de preferência, poder-se-ia falar sobre o bem comum como idéia por detrás das normas e dos fins estatais, mas que representaria a unidade de uma multiplicidade de interesses públicos verificáveis no Direito e na sociedade (o que terminaria, por via diversa, por corroborar o aqui formulado postulado da reciprocidade, em vez do ―princípio da supremacia‖).166
Afirma o autor que a supremacia do interesse público sobre o interesse privado
não pode ser considerado como um postulado do direito administrativo visto que ―não pode
ser descrito separada ou contrapostamente aos interesses privados: os interesses privados
consistem em uma parte do interesse público‖ e complementa a sua teoria que ―ele não pode
ser descrito sem referência a uma situação concreta, e, sendo assim, em vez de ‗um princípio
abstrato de supremacia‘ teríamos ‗regras condicionais concretas de prevalência (variáveis
segundo o contexto)‘‖.167
Por fim, refuta como princípio pela ―parcial incompatibilidade com postulados
normativos extraídos de normas constitucionais, sobretudo com os postulados normativos da
proporcionalidade e da concordância prática, hoje aceitos pela doutrina e jurisprudência
brasileiras‖.168
Observa, ainda, através das lições de Eberhard Schmidt-Assmann que a
importância do interesse privado com relação ao interesse público é que ―não há uma
automática supremacia dos interesses públicos‖.169 Deve haver, outrossim, uma ponderação,
não somente dos interesses reciprocamente implicados, mas, também, dos interesses públicos
entre si‖.170
Demonstra o autor que a função da supremacia do interesse público quando
analisada diante das relações administrativas é que ao direito administrativo foram
incorporadas uma multiplicidade de relações face à característica da administração
166 ÁVILA, Op. cit., p. 206. 167 Idem, p.214. 168 Idem, p.191. 169 SCHMIDT-ASSMANN, Eberhard. Das allgemeine Verwaltungsrecht als Ordnungsidee: Grundlagen und Aufgaben der verwaltungsrechtlichen Systembildung.Berlin u.a., Springer, 1998, p. 137 apud ÁVILA. Idem, p.208. 170 Idem, p.208.
54
cooperativa e o Estado, novos conceitos basilares do direito administrativo e direito
administrativo multipolar.171
Restando analisar o interesse privado como individual, o autor não encontra
sustentação na afirmação de que o interesse privado encontra-se no interesse público, pois que
em alguns momentos o particular deve juridicamente ser tratado como indivíduo e em outros,
como parte da comunidade; nem sempre os interesses individuais encontram-se inseridos no
interesse público. Sendo assim, são merecedores da aplicação da ponderação de valores.172
Como desfecho às suas ideias, o princípio da supremacia do interesse público
sobre o interesse privado não é rigorosamente, um princípio jurídico ou norma-princípio:
- Conceitualmente ele não é uma norma-princípio: ele possui apenas um grau normal de aplicação, sem qualquer referência às possibilidades normativas e concretas;
- Normativamente ele não é uma norma-princípio: ele não pode ser descrito como um princípio jurídico-constitucional imanente;
- Ele não pode conceitualmente e normativamente descrever uma relação de supremacia: se a discussão é sobre a função administrativa, não pode ‗o‘ interesse público (ou interesses públicos), sob o ângulo da atividade administrativa, ser descrito separadamente dos interesses privados.173
Diante dessas ideias traçadas e seguindo orientação dada pela Teoria Geral do
Direito e pela Constituição, decorrem duas importantes consequências: a de que ―não há
norma-princípio da supremacia do interesse público sobre o particular no Direito brasileiro‖,
uma vez que ―a Administração não pode exigir um comportamento do particular (ou
direcionar a interpretação das regras existentes) com base nesse ‗princípio‘‖, como bem
lembra o autor, essencialmente as atividades administrativas que impõem restrições ou
obrigações aos particulares. A segunda consequência é a de unidade da reciprocidade de
interesses entre o interesse público e o privado, ou entre o Estado e o particular, levando a
uma principal ponderação entre os interesses reciprocamente relacionados, fundamentada na
sistematização das normas constitucionais.174
171 Cf. sentido de ÁVILA, Idem, p.209-210. ―Administração cooperativa e Estado cooperativo (decorrência da privativação de serviços públicos ou mesmo da necessidade de fiscalização e cooperação em novas áreas como meio ambiente, saúde pública, comunicações, telefonia, correios, mídia eletrônica, as quais não revelam tanto relações antinômicas, mas uma coordenação recíproca entre vários interesses), novos conceitos basilares do Direito Administrativo (resultado da modificação de titulares dos serviços: como fica a definição de serviço público sem ter como titular o Estado, como fica a proteção de interesses numa sociedade pluralista e diversificada), Direito Administrativo multipolar (decorrência dos vários interesses envolvidos: individuais, sociais, de grupos, etc.). 172 Idem, p. 211. 173 Idem, p. 213-214. 174 Idem. Para exemplificar, o autor trouxe no artigo expressamente algumas situações que rechaçam o princípio, por meio de atividades administrativas que não podem ser ponderadas em favor do interesse público e em
55
Conclui Humberto Bergmann Ávila que o princípio da supremacia do interesse
público não se adequa ao conceito de princípio jurídico, diante da teoria de princípio
contemporânea que o concebe como mandamento de otimização,175 mas como princípio ético-
político, cujo influxo de ideias se encontra fora da ciência do Direito, ou seja, o fundamento
das posições privilegiadas da Administração em relação aos administrados, mostrando-se
como uma necessidade racional para a comunidade política.176
Com o fim de aprofundar o debate proposto por Humberto Bergmann Ávila
acerca do tema da supremacia do interesse público sobre o privado, Fábio Medina Osório em
seu artigo ―Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no Direito
Administrativo Brasileiro?‖, expôs algumas reflexões, filiando-se igualmente à corrente de
Robert Alexy quanto à definição dos princípios.177
Assim, esse autor ensina que não cabe trazer a definição precisa do que seja
interesse público, por certo que não traduz uma ―‘fórmula mágica‘ dada a grande diversidade
de conteúdos que um interesse público comporta‖, posto que ―o conteúdo e a caracterização
dependem de múltiplos fatores, normativos e metanormativos, que mereceriam debate
aprofundado‖, e ainda aponta que esse instituto não pode ser confundido com o ―‘bem
comum‘, perseguido pelo Direito como um todo, dada sua maior determinação conceitual‖.178
Tangenciando o raciocínio de Humberto Bergmann Ávila e concordando com
parte de suas conclusões, Fábio Medina Osório prossegue dizendo, entretanto, em nota, acerca
da existência do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado no direito
administrativo brasileiro, uma vez que seja rejeitada a ideia de um princípio que desrespeite o
conjunto de direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal: detrimento dos interesses privados envolvidos: ―o esclarecimento dos fatos na fiscalização dos tributos, a determinação dos meios empregados pela Administração, a ponderação dos interesses envolvidos, pela Administração ou pelo Poder Judiciário, a limitação da esfera privada dos cidadãos (ou cidadãos contribuintes), a preservação do sigilo”. Na concepção de Ávila, ―a ponderação deve, primeiro, determinar quais os bens jurídicos envolvidos e as normas a ele aplicáveis, e, segundo, procurar preservar e proteger, no máximo, esses mesmos bens‖. Idem, p.215. 175 Cf. Robert Alexy que leciona ―princípio jurídico‖ como mandamento de otimização e uma vez verificado confronto entre mais de um princípio no caso concreto, deve-se valer da ponderação e da proporcionalidade. O tema será mais detalhado em capítulo seguinte (3.3 – Regra da Proporcionalidade). In: ALEXY, Robert. Teoria de dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2011 e CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação. A teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filósofos. Curitiba: Juruá, 2009. 176 Idem, p. 179-180. 177 A tese de Robert Alexy permite distinguir regras de princípios, ambos concebidos como espécies de normas jurídicas e substancialmente distintas. O terceiro capítulo da dissertação tratará mais detalhada mente sobre o tema. 178. OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro? In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. n. 220. p.69-107. abr./jun. 2000, p,73.
56
[...] Concordando com a maior parte das conclusões de Humberto Bergmann Ávila relativamente à funcionalidade de normas- princípio e à impossibilidade de um princípio radical e apriorístico de prevalência do interesse público sobre o privado, na medida em que seria inconcebível e inadmissível um tal princípio constitucional de ―supremacia do interesse público sobre o privado‖ que de antemão, nas relações do Estado com os particulares, determinasse a invariável preponderância dos interesses públicos em detrimento dos interesses privados, em todas as hipóteses de conflitos ou colisões e de forma radical e absoluta‖.179
É o momento do texto em que o citado autor mais aproxima o seu fundamento
teórico das ideias inovadoras de Humberto Bergmann Ávila. Mesmo inclinado em concordar
com a base principiológica alemã adotada, Fábio Medina Osório insiste em caminhar no
sentido em que a prevalência do interesse público sobre o privado é uma norma constitucional
direcionada especificamente ao controle das atividades públicas, não acarretando, ―um
privilégio da Administração Pública em detrimento dos interesses dos particulares
(propriedade, liberdade)‖.180
Lembra que a Administração Pública deve atuar dentro de maior rigidez ou não
deve atuar com a mesma liberdade dos particulares; ―a verdade é que a supremacia do
interesse público sobre o privado não traduz possibilidade de arbítrio aos agentes públicos‖.181
Concorda, ainda, o autor que a ―prevalência de um interesse público sobre o
privado, na órbita judicial, somente pode ocorrer nos casos concretos, jamais de forma
abstrata (enquanto princípio), absoluta, radical e inafastável, como, de resto, ocorre com o
fenômeno nessa esfera‖.182 Apresenta-se como um simples valor, como qualquer outro, mas
que significa uma normatividade constitucional que vincula o legislador e o administrador
público nas decisões, ao tempo em que constitui garantia aos cidadãos contra o desvio de
poder ou de finalidade.183
Por derradeiro, afirma que ―a superioridade do interesse público sobre o privado é
uma norma constitucional que incide no direito administrativo brasileiro, ora como regra, ora
como princípio‖.184 Conclui o texto, invocando a fragilidade da terminologia empregada
supremacia do interesse público sobre o privado e a indeterminação do termo interesse
público, recomendando maior debate acerca da importância do tema.185
179 OSÓRIO, Op. cit., p. 81. 180 Idem, p. 89. 181 Idem, p.90. 182 Idem, p.103. 183 Complementando o sentido. Idem, p.104-105. 184 Idem, p.105. 185 Idem, p.107.
57
Arrematando as suas ideias, Fábio Medina Osório mostra-se favorável à existência
do debatido princípio, fundamentando-o como diretriz para a finalidade da Administração
Pública, como outorga de prerrogativas à Administração Pública, além de ser atividade
restritiva de direitos individuais.
Patrícia Ferreira Baptista traz o fundamento oferecido por Humberto Bergmann
Ávila quando diz que o combatido princípio da supremacia do interesse público não se
amolda mais no conceito de princípio jurídico e que se trata de princípio ético-político,
estando este fora da ciência do Direito, como também está fora o fundamento das posições
privilegiadas da Administração em relação aos administrados.186 ―Ser princípio jurídico ou
ético-político, o ponto em questão é que não mais se mostra possível continuar reproduzindo e
propagando acriticamente o dogma da supremacia do direito administrativo brasileiro‖,
concordando que há ―dificuldades para o seu enquadramento teórico, aqui já destacadas‖.187
Nessa linha, admite a autora que ―os novos rumos tomados pela filosofia jurídico-
política contemporânea, alicerçados na jurisprudência dos princípios e na teoria do discurso,
apontam para uma revisão do axioma. ―Ainda que não seja para invalidá-lo, como fez
Humberto Ávila, no mínimo para redimensioná-lo ou matizá-lo‖,188 como prefere Odete
Medaur‖.
Sob essas perspectivas, Patrícia Ferreira Batista apresenta fundamentos para
revisão do dogma da supremacia do interesse público, sendo pontuados em três situações:
crise da legalidade, novas categorias de interesses introduzidas pela sociedade atual que a
supremacia as desconhecia e a própria indeterminação do conceito de interesse público.189
Analisando a crise da legalidade, a autora inicia dizendo que a supremacia do
interesse público teve sua origem em decorrência do princípio da legalidade administrativa.
Lembra a separação dos poderes, que foi encarregado ao legislador encontrar a determinação
do interesse público a ser realizado pelo administrador. Assim, vincula a lei à ―expressão
legítima das finalidades e necessidades de uma determinada comunidade política‖,190 devendo
186 BATISTA, Patrícia Ferreira. Transformações do Direito Administrativo. Renovar, 2003, p.189-190. 187 Idem, p.191. 188 Idem, ibidem. Redimensionar o princípio pela ideia de que ―à Administração cabe realizar a ponderação de interesses presentes numa determinada circunstância, para que não ocorra sacrifício a priori de nenhum interesse; o objetivo dessa função está na busca de compatibilidade ou conciliação de interesses, com a minimização de sacrifícios‖. MEDAUR, Odete. Direito administrativo moderno. 16. ed. rev. atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 142. 189 Idem, p. 191-203. 190 Idem, p. 192.
58
ser perseguida sem qualquer dose de ponderação ou discrição. Caracteriza, assim, a submissão
da Administração Pública à vontade do legislador, pela lei, legitimada pelo princípio da
participação política. Mas o cenário atual apresenta significativas mudanças com a crise da
lei, uma vez que o conteúdo do princípio da legalidade administrativa apresenta variações a
ponto de aceitar a não vinculação do administrador à lei.191
A autora sinaliza, pertinentemente, que essa situação levou ―a Administração em
condições de se apropriar da determinação do interesse público a ser por ele efetivado‖.192
Retrata ser muito difícil sustentar a supremacia de um interesse público assim determinado,
considerando que o arbítrio voltou disfarçado, mesmo tendo sido afastado quando da
construção do princípio da legalidade.193
Prossegue no segundo fundamento quando analisa que a sociedade contemporânea
é uma sociedade pluralista e que a dicotomia interesse público-privado não é mais suficiente
para resolver o problema do fim da Administração Pública, uma vez que foram categorizados
outros interesses: difusos, coletivos e sociais que a supremacia ignorava.194Além de que novos
direitos individuais foram elevados à condição de direitos fundamentais e da ênfase dada por
Teresa Negreiros à inoperância dessa dicotomia diante da consagração constitucional da
dignidade da pessoa humana.195
Como último fundamento para afastar a supremacia como princípio jurídico,
Patrícia Ferreira Batista lembra que a indeterminação da essência do interesse público
dificulta a aceitação da supremacia como um dogma do direito administrativo. Concorda a
autora que o interesse público é um valor que não pode ser estático196 e que dá fundamento a
191 BATISTA, Op. cit., p. 194-195. Refere-se ao princípio da juridicidade em que alguns autores admitem a submissão do administrador não à lei, mas ao Direito, ampliando o feixe de legislação possível para a definição do interesse público, diante da complexa vida da sociedade contemporânea, necessitando haver o intervencionismo estatal; assim, a lei não pode dar conta de todos os interesses que o Estado passou a tutelar o que amplia as possibilidades de fixação do interesse público pela própria Administração. Discorreram sobre o tema, BARROSO, Op. cit., p. 40, OLIVEIRA, Op. cit., p. 72-77 e BAPTISITA, Op. cit., p. 108. 192 Idem, p. 197. 193 Idem, ibidem. 194 Idem, p.200. 195 ―Fica claro, portanto, que num sistema de proeminência da dignidade da pessoa, perde eficácia legitimamente a oposição entre o público e o privado, já que, contrariamente ao que preside a uma relação dicotôminca, o uso axiológico destas duas esferas não mais admite a sua conceituação como esferas reciprocamente exclusivas e impermeáveis‖. NEGREIRO, Teresa. A dicotomia público-privado frente ao problema da colisão de princípios. In: Teoria dos direitos fundamentais. TORRES, Ricardo Lobo (Org.), 2. Ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro, 2009, p.370. 196 Mostrou sensível alteração conforme o modelo de Estado, liberal, intervencionista, neoliberal.
59
atividade administrativa, sem unidade de fixação de um critério de formação desse
interesse.197
Na mesma senda, a questão do interesse público é posta por Eros Roberto Grau
como a grande questão do direito administrativo, sob a visão ―corporificada da lei, situação
em que não pode mais continuar monopolizando esse ramo de direito, pois esse ramo precisa
evoluir para atuar como instrumento eficaz de regulação de um espaço público marcado pela
pluralidade de atores e de interesses em jogo, essência da sociedade contemporânea‖.198
Corroborando com as lições de Humberto Bergmann Ávila, Rafael Carvalho
Rezende de Oliveira afirma que ―não existe um interesse público único, estático e abstrato‖.
Mas sim, finalidades públicas que necessariamente não afrontam os interesses privados. Com
base nesse entendimento, ensina que seria mais adequada a nomenclatura princípio da
finalidade pública. Nesse caminho doutrinário, a legislação vem ampliando a atuação dos
cidadãos nas tomadas das decisões públicas.199
Sob o entendimento de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, esse dito princípio da
supremacia inexiste, tendo em vista que no Estado Democrático de Direito não se pode
imaginar hierarquia automática de interesses, públicos sobre privados.200
Partindo da negativa de ser princípio, a supremacia do interesse público sobre o
particular, está a acepção de Gustavo Binenbojm uma vez que origina essa ideia quando
atribui que ―a dogmática administrativista estruturou-se a partir de premissas teóricas
comprometidas com a preservação do princípio da autoridade, e não com a promoção das
conquistas liberais e democráticas, servindo como instrumento para a preservação da mesma
lógica de poder‖.201 Imputa, assim, como categoria forjada dessa origem autoritária, o
debatido princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular.
Corrobora, enfaticamente, o autor com a ideia da desconstrução da supremacia
como princípio:
Uma norma que preconiza a supremacia a priori de um valor, princípio ou direito sobre os outros não pode ser qualificado como princípio. Ao contrário, princípio, por
197 BATISTA, Op. cit., p.201-202. 198 GRAU, Eros. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p.125. 199 CARVALHO, Op. cit., p.110-111. 200 MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 15 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.95. 201 BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: SARMENTO, Daniel (Org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 165-166.
60
definição, é uma norma de textura aberta, cujo fim ou estado de coisas para o qual aponta deve sempre ser contextualizado e ponderado com outros princípios igualmente previstos no ordenamento jurídico. A prevalência apriorística e descontextualizada de um princípio constitui uma contradição em termos.
Por outra via, a norma da supremacia pressupõe uma necessária dissociação entre o interesse público e os interesses privados.
A imbricação conceitual entre interesse público, interesses coletivos e interesses individuais não permite falar em uma regra de prevalência absoluta do público sobre o privado ou do coletivo sobre o individual.
202
O autor prossegue questionando qual o sentido em se falar de um princípio
jurídico que sempre afirme, ao final do processo ponderativo, que ele sempre prevalecerá.
Enfatiza, então, que ―um princípio que se presta a afirmar que o que há de prevalecer sempre
prevalecerá não é um princípio, mas tautologia‖.203
Filiado, também, à corrente doutrinária que é a favor da desconstrução do
princípio em comento, Daniel Sarmento questiona a compatibilidade da ideia de supremacia
do interesse público sobre o privado com o conceito de pessoa que foi recepcionado pela
Constituição de 1988, fundamentando-o através da teoria da moral.204
Segundo o autor, essa teoria pode ser demonstrada tomando por base duas
possibilidades: o organicismo e o utilitarismo, para justificar a supremacia do interesse da
coletividade sobre o pertencente a cada um dos componentes. O organicismo valoriza sempre
o público em detrimento do privado, em que o interesse público seria superior e diferente ao
somatório dos interesses particulares dos membros de uma comunidade política e se aproxima
de uma filosofia autoritária. Destaca, assim, organicista a ideia de que existe um interesse
público inconfundível com os interesses pessoais dos integrantes de uma sociedade política e
superior a eles, não se sustentando em um Estado Democrático de Direito.205 Na doutrina
utilitarista, o público se confunde com tais interesses e baseia-se nos interesses dos indivíduos
que compõem a sociedade política, visando fomentar o bem-estar, o prazer, a felicidade ou as
preferências racionais para um maior número de pessoas que puder atingir. Nesse caso, os
indivíduos podem ter interesses conflitantes e se assim ocorrer, recomenda-se atribuir um
peso igual aos interesses de cada um, objetivando a solução mais justa para o caso e com
202 BINENBOJM, Op. cit., p. 166. 203 Idem, p. 167. 204 SARMENTO, Op. cit., p. 51-52. 205 Conforme os regimes social-alemão e stalinismo.
61
relação aos direitos fundamentais, devem ser respeitados se isto convier à promoção do bem-
estar geral.206
Valendo-se da crítica de Rawls207 acerca do utilitarismo, o publicista ensina que se
deve reconhecer a intrínseca dignidade constitucional da pessoa humana de que os indivíduos
são portadores, e que devem ser tratados como fins em si mesmos, e não servir como meio
para o atingimento dos fins sociais.208
Prossegue, com afinco, o autor através da teoria do individualismo,209 oposta às
antes argumentadas, que possui como verdade a primazia incondicional dos interesses
particulares de cada um sobre aqueles pertencentes à coletividade, além de que os direitos
fundamentais eram vistos essencialmente como direitos de defesa em face dos governantes,
não considerando, à primeira vista, o ser humano como um cidadão.210
Essa visão individualista é refutada por Daniel Sarmento por não se sustentar na
ordem constitucional brasileira, tendo em vista que a Constituição Federal se baseia sobre
uma visão personalista, que foca na pessoa humana, e não no Estado, a medida de todas as
coisas através de um ser concreto, situado, com necessidades materiais, carências e
fragilidades. Vai permitir, assim, que o poder público se volte para a promoção e defesa dos
direitos fundamentais das pessoas, bem como ainda deve protegê-las contra os arbítrios do
Estado. Não considera o Estado como um adversário ao cidadão.211
Diante do significado dado à pessoa humana pela Constituição de 1988, o autor
trabalha com a ideia de personalismo, reconhecendo que a autonomia individual é preservada
e fomentada, identificando em cada mulher ou homem, um ser racional e responsável, com
moral suficiente para traçar a sua existência.212
Assim, Daniel Sarmento se baseia na característica da atual Constituição brasileira
que tem no princípio da dignidade da pessoa humana a sua razão maior de ser, centrada nesse
princípio, e que não se coaduna com qualquer discurso que lhe ponha em risco, ou que
206 SARMENTO, Op. cit., p.51-64. Cf. sentido de Rawls: ―the rights secured by justice are not subject to political bargaining or to the calculus of social interests‖. Tradução livre. RAWLS, Op. cit., p. 3-4. 208 SARMENTO, Op. cit., p.64. 209 O individualismo foi a filosofia subjacente ao Estado Liberal-Burguês, que surgiu na Europa e nos Estados Unidos no século XIX e no século XX e que hoje reaparece através do pensamento neoliberal, possuindo a característica essencial de enxergar a sociedade atomizada, favorecendo o espaço para a competição e não para a solidariedade e a cooperação. 210 Idem, p.65-67. 211 Idem, p.72-73. 212 No sentido de Rawls.
62
subestime os direitos fundamentais à medida que oferece guarita às virtudes e aos deveres
cívicos dos cidadãos. Nesse sentido do personalismo, não há que se falar em supremacia do
interesse público sobre o particular, bem como em primazia incondicionada dos interesses
individuais perante os coletivos.213
Visão bastante acertada e racional que Daniel Sarmento teve para fundamentar a
sua tese de objeção ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, bem
como as demais construções doutrinárias teóricas que lhe antecederam e que vão abrir espaço
na seção seguinte para dedicar atenção ao estudo dos direitos fundamentais, semente para a
contraposição desse princípio.
Carlos Ari Sunfeld, ao comentar sobre o direito administrativo, como um direito
em reforma, coloca que o princípio do interesse público sobre o privado é ―visto agora pelos
críticos não só como vazio, mas também como instrumento, mesmo involuntário, do
autoritarismo‖ uma vez que ―teóricos mais jovens lançaram, com ampla aceitação, uma forte
contestação a um dos princípios científicos que, há muitos anos, o autor defendia como
fundamental ao direito administrativo‖.214
Conclui-se, sumariamente, a partir dos contrapontos arrazoados pelos autores
referidos que:
1 – O interesse público não se identifica com o bem comum; este é a composição
harmônica do bem de cada um com o de todos; não é o direcionamento dessa composição em
favor do interesse público.215
2 – O interesse público não pode ser descrito em separado dos interesses
privados.216
3 – O dito princípio da supremacia do interesse público por não está previsto
expressamente em dispositivo constitucional algum, não pode ser extraída de uma análise
sistemática do Direito.217
213 SARMENTO. Op. cit., p.77-79. 214 SUNFELD, Op. cit., p.47. O autor a quem Sunfeld se refere é Celso Antônio Bandeira de Mello. 215 ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular In: SARMENTO, Daniel (Org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.174. 216 Idem, p. 211. 217 Idem, p. 186. Fábio Medina Osório, entretanto, nas suas reflexões sobre o pensamento de Humberto Ávila coloca que o referido princípio em exame é reconhecido na Constituição Federal. OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro? In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. n. 220. p.69-107. abr./jun. 2000, p. 86.
63
4 – A supremacia do interesse público não é conceitualmente nem
normativamente uma norma-princípio, restando-se impossibilitada para descrever alguma
relação de supremacia.218
5 – Absoluta inadequação entre o princípio da supremacia do interesse público e a
ordem jurídica brasileira, em face dos riscos que sua assunção representa para a tutela dos
direitos fundamentais.219
6 – A supremacia do interesse público é fulcrada no organicismo e no utilitarismo,
enquanto que o Estado Democrático de Direito se baseia no personalismo que foca na pessoa
humana, e não no Estado, a medida de todas as coisas serem através de um ser concreto,
situado, com necessidades materiais, carências e fragilidades.
7 – O direito público, com base na Constituição pluralista, não pode ser mais visto
como garantidor do interesse público titularizado pelo Estado, mas sim garantidor dos direitos
fundamentais positivos ou negativos.220
8 – A supremacia do interesse público sobre o particular não é um princípio
jurídico, de acordo com a estrutura normativa atribuída ao conceito de princípio jurídico,
proposta por Robert Alexy e que é defendida por Humberto Bergmann Ávila.
Assim, as críticas aqui apontadas constituem argumentos favoráveis à inexistência
do forjado princípio da supremacia do interesse público sobre o privado no direito
administrativo brasileiro.
218 ÁVILA, Op. cit., p.214. 219 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.27. 220 ARAGÃO, Alexandre Santos de. A ―supremacia do interesse público‖ no advento do estado de direito e na hermenêutica do direito público contemporâneo. In: SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. In: Teoria dos direitos fundamentais. TORRES, Ricardo Lobo (Org). 2. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 2-3.
64
CAPÍTULO II
2 – UM NOVO SUJEITO DA RELAÇÃO DE DIREITO ADMINISTRATIVO:
CIDADÃO
2.1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No capítulo anterior, foi discorrida a relevância do princípio da supremacia do
interesse público para a construção da Administração atual, reflitindo a questão sobre a
normatização do direito administrativo, bem como contextualizado o poder estatal,
identificando a essencialidade do período do Estado Social para a consagração dos direitos
sociais.
Em trajetória similar, foram postos em discussão os conceitos e a abrangência do
interesse público e o papel do Estado diante da finalidade pública visando toda a coletividade.
Da análise desse dito princípio, foi sublinhada a posição doutrinária que dá
sustentação à supremacia como princípio, como também foi destacada a crítica e a
desconstrução doutrinária desse propalado princípio diante dos interesses do cidadão, sujeito
possuidor de direitos da relação do direito administativo.
Imprescindível, assim, para maior alcance da temática do presente estudo, uma
reflexão acerca dos direitos fundamentais, pormenorizando as suas conquistas através da
perspectiva do cidadão, antes considerado um súdito frente às ações do Estado.
O cidadão é hoje visto como um agente, sujeito imbuído de direitos, direitos estes
constitucionalmente garantidos e fundamentais, capazes de refrear a atuação do Estado, não
mais superior a tudo e todos. Nesse cenário, o poder estatal se encontra limitado quando
diante da liberdade individual, própria do ser cidadão.
Atribuindo-se a devida dimensão à cidadania em um sistema democrático de
Direito, faz-se conveniente refletir acerca da sua situação e das suas perspectivas diante do
atual panorama da Administração Pública e do cidadão, sujeito possuidor de direitos, de modo
que se possa desvendar o velho axioma do direito administrativo de supremacia do interesse
público sobre o privado.
Forçoso, assim, identificar a cidadania através da conquista dos direitos civis,
políticos e sociais, discorrendo sobre a trajetória dos direitos fundamentais atribuídos ao
65
indivíduo (2.2), adentrando nos aspectos históricos e reguladores da cidadania a serem
considerados (2.3), e, em arremate, analisando o princípio da dignidade humana como valor
maior do cidadão (2.4).
2.2 – TRAJETÓRIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.2.1 – Contextualização dos direitos fundamentais
Visando à adequada conceituação da expressão direitos fundamentais utilizada
pela Constituição Federal, tem-se que direitos fundamentais ―são direitos público-subjetivos
de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que
encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o
exercício do poder estatal em face da liberdade individual‖.221
Sob os aspectos formais, os direitos fundamentais são instituídos pela
Constituição Federal, não sendo possível a identificação desses direitos prescritos por
legislação ordinária ou sendo criados pela jurisprudência. Assim sendo, são encontrados em
uma pluralidade de dispositivos constitucionais, não se restringindo a um único artigo ou
capítulo, dada a sua própria complexidade de manifestação.222
Nesse sentido, entende Dimitri Dimoulis que os direitos fundamentais no sistema
jurídico se assentam na fundamentalidade da forma que foi instituída, ou seja, diz ser
condição jurídica quando um direito fundamental somente seja garantido mediante normas
que tenham a força jurídica própria da supremacia. Avança nos ensinamentos quando diz que
221 DIMOULIS, Dimitri. Definição e características dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais e estado constitucional. Estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. LEITE, George Salomão. SARLET, Ingo Wolfgang. (Coord). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.119. Fábio Konder Comparado faz a distinção entre os ―direitos humanos‖ e os ―direitos fundamentais‖ quando leciona que ―estes últimos são os direitos humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional; são os direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais.‖ COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 8 ed., São Paulo: Saraiva, 2013, p.71. Cf. DIMOULIS. MARTINS: ―É um termo genérico que pode abranger os direitos individuais e coletivos, os direitos sociais e políticos, os direitos de liberdade e os de igualdade‖. Cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 53. 222 Cf. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 141.
66
―os direitos garantidos na Constituição são considerados fundamentais, mesmo quando seu
alcance e relevância social forem bastante limitados‖.223
Robert Alexy, no que se refere especificamente às normas de direito fundamental,
adota um critério formal para a identificação das disposições que as consagram. Nesse
sentido, no tocante à Constituição alemã, seriam disposições de direitos fundamentais aquelas
ordenadas sob o título ―Direitos Fundamentais‖, além de outras associadas ao manejo da
reclamação constitucional ali prevista.224
Nesse sentir, prossegue afirmando que somente se configuram normas de direito
fundamental aquelas normas atribuídas que apresentem uma correta fundamentação referida a
direitos fundamentais.225 Neste ponto já se nota indícios da importância que a argumentação
jurídica assume na sua teoria para se determinar o que vale e/ou prevalece no âmbito dos
direitos fundamentais.
Para Luigi Ferrajoli, a concepção de direitos fundamentais é ―de todos aqueles
direitos subjetivos que dizem respeito universalmente a ―todos‖ os seres humanos enquanto
dotados do status de pessoa, ou de cidadão ou de pessoa capaz de agir‖. A compreensão da
universalidade se baseia no sentido lógico e avalorativo da qualificação universal da classe de
sujeitos de que são titulares, e mostra-se vantajosa esta definição, pois prescinde dos fatos,
sendo válida para qualquer tipo de ordenamento jurídico.226
Dessa forma analisada, podem vir a ser formalizados como os direitos que, por
seu conteúdo material, se constituem como essenciais à existência do Estado na forma como
concebido pela Constituição, de acordo com os fundamentos da República, em especial na
cidadania e no princípio da dignidade da pessoa humana.
Tomando a visão interpretativa para os direitos fundamentais, tem-se que:
Toda interpretação dos direitos fundamentais vincula-se, de necessidade, a uma teoria dos direitos fundamentais; esta, por sua vez, a uma teoria da Constituição, e ambas – a teoria dos direitos fundamentais e a teoria da Constituição - a uma indeclinável concepção do Estado, da Constituição e da cidadania, consubstanciando uma ideologia, sem a qual aquelas doutrinas, em seu sentido político, jurídico e social mais profundo, ficariam de todo ininteligíveis. De tal concepção brota a
223 DIMOULIS, Dimitri. Definição e características dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais e estado constitucional. Estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. LEITE, George Salomão. SARLET, Ingo Wolfgang. (Coord). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.119-120. 224 ALEXY, Robert. Teoria de dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2011, p.68. 225 Idem, p. 74. 226 FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e bens fundamentais. Tradução de SALIM, Alexandre. COPETTI NETO, Alfredo. CADEMARTORI, Daniela. ZANETI JÚNIOR, Hermes. CADEMARTOTI, Sérgio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p.9-10.
67
contextura teórica que faz a legitimidade da Constituição e dos direitos fundamentais, traduzida numa tábua de valores, os valores de uma ordem democrática do Estado de Direito onde jaz a eficácia das regras constitucionais e repousa a estabilidade de princípios do ordenamento jurídico [...].227
[...] Os direitos fundamentais, em rigor, não se interpretam; concretizam-se.228
Assim, para a averiguação dos direitos fundamentais, deve-se ver o momento da
sua aplicação ao caso em concreto, o contexto na real situação, não se limitando à vontade à
época do legislador tendo em vista que ―as formulações da Constituição são muito abstratas e
genéricas‖, carecendo, algumas vezes, da intervenção do legislador infraconstitucional para
complementar o sentido de um direito fundamental.229
Para José Joaquim Gomes Canotilho, a primeira função dos direitos fundamentais
é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado:
Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica indicvidual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdades negativas).230
Nesse sentido, esses direitos caracterizam-se por ―impor uma não intromissão no
espaço de autodeterminação do indivíduo‖ e ―objetivam a limitação da ação do Estado.
Destinam-se a evitar ingerência do Estado sobre os bens protegidos (liberdade, propriedade,
por exemplo) e fundamentam pretensão de reparo pelas agressões eventualmente
consumadas‖.231
Essa função de defesa possibilita alguns desdobramentos na doutrina, uma vez
que ―vedam interferências estatais no âmbito de liberdade dos indivíduos e, sob esse aspecto,
constituem normas de competência negativa para os Poderes Públicos‖232 e assegurando,
assim, as liberdades.
Complementa a questão esse autor português quando ensina que os direitos
fundamentais podem assumir, ainda, uma segunda função que é a incumbência de prestação
227 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 23. ed. , São Paulo: Malheiros, 2008, p.596. 228 Idem, p.607. 229 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 60-61. 230 CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 408. 231 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.179. 232 Idem, ibidem.
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social quando do ―direito do particular a obter algo através do Estado (saúde, educação,
segurança social)‖.233 Esses mesmos direitos ―partem do suposto de que o Estado deve agir
para libertar os indivíduos das necessidades‖.234
Nesse contexto, espera-se um comportamento ativo do poder público na sociedade
civil, caracterizando-se por uma exigência de prestação positiva, e não de uma omissão; numa
relação jurídica, esse direito corresponde a uma obrigação de dar ou de fazer.235
Para o tema em pauta, os direitos fundamentais de participação devem ser
compreendidos como os direitos orientados a garantir a participação dos cidadãos na
formação nacional, correspondendo, assim, aos direitos políticos.236 Situam-se entre os
direitos de defesa ou de prestação.237
Leciona Dimitri Dimoulis sobre a finalidade essencial dos direitos fundamentais
que é de ―conferir aos indivíduos238 uma posição jurídica de direito subjetivo, em sua maioria
de natureza material, mas às vezes de natureza processual e, consequentemente, limitar a
liberdade de atuação dos órgãos do Estado‖.239
Assim, os direitos fundamentais, mediante a supremacia constitucional, garantem
que nenhuma autoridade estatal desrespeite os direitos dos indivíduos, manifestando-se nas
relações caracterizadas pela desigualdade entre o indivíduo e o Estado.240
A matriz fundamentadora dos direitos humanos está nos processos de luta para se
identificar a dignidade humana, e também nos processos que asseguram a sua manutenção,
sejam estes processos sociais ou jurídicos.
Afirma, ainda, Norberto Bobbio que o importante em relação aos direitos do
homem, hoje, não é tanto justificá-los, mas, sim, protegê-los:
O problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual
233 CANOTILHO, Op. cit., p.408. 234 MENDES; BRANCO. Op. cit., p. 181. 235 Idem, ibidem. 236 Idem, p. 189. 237 O autor ressalta que Canotilho, Alexy e Sarlet adotam essa divisão e que existe outra corrente doutrinária que colocam os direitos políticos como uma terceira categoria de direitos fundamentais, com características mistas de direitos de defesa e de prestação. Idem, p. 189. 238 ―Nota 11: Utilizam-se aqui os termos ―pessoa‖ e ―indivíduo‖ como sinônimos para indicar o titular de um direito fundamental‖. DIMOULIS, Dimitri. Definição e características dos direitos fundamentais. Direitos fundamentais e estado constitucional. Estudos em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. LEITE, George Salomão. SARLET, Ingo Wolfgang. (Coord). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.123. 239 Idem, ibidem. 240 Cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 107. Ao se referirem ao efeito vertical dos direitos fundamentais.
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sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.241
Através das lições de Dimitri Dimoulis, constata-se que os direitos fundamentais
devem constar de três elementos essenciais quais sejam: Estado, indivíduo e texto regulador.
Quanto ao Estado, sem sua existência não há razão de ser dos direitos fundamentais, visto que
estes direitos têm a função de delimitar o poder desse Estado em face do indivíduo. No
tocante ao elemento que traz a ideia do indivíduo, vê-se a sua essencialidade para os direitos
fundamentais tendo em vista que nas sociedades do passado, as pessoas estavam vinculadas
como membros de grupos como clãs, famílias, sendo privados dos seus direitos pessoais,
próprios e se sujeitando aos da coletividade; sendo assim, importa tratar o indivíduo como ser
independente e autônomo.242 Por fim, a existência de um texto regulador e supremo,
desempenhado pela Constituição no sentido formal que defina as relações entre os dois
sujeitos identificados.243
Para a presente dissertação, essa tríade será o ponto central para a análise de
eventual supremacia do interesse público sobre o privado, tendo em vista a trajetória dos
direitos constitucionais garantidos aos indivíduos a fim de que a Administração Pública
exerça as suas atividades administrativas sob o olhar da dignidade humana inerente ao
cidadão, sujeito de direitos, valendo-se da ponderação de valores quando a situação requeira.
Consagrando o cidadão como o sujeito nessa relação com a Administração
Pública e tendo em mente os seus direitos, inclusive a proteção aos fundamentais, oportuniza-
se dizer que ―é o Direito, e não apenas a lei, que define o estatuto jurídico dos particulares e
da Administração, e que regula o seu relacionamento jurídico‖. Mais do que isso, a
consagração de direitos fundamentais, implica que:
Podem ser protegidos particulares que não apenas aqueles cujos direitos subjectivos decorrem da aplicação de normas de direito ordinário ou que são imediatos destinatários de actos administrativos, mas também aqueloutros que sejam lesados pela actuação administrativa no domínio protegido por esses mesmos direitos constitucionalmente fundados. Titulares de direitos subjecticos públicos são, pois, tanto os indivíduos a quem eles foram concedidos diretamente pela ordem jurídica, como aqueles que foram lesados por uma actuação administrativa, que não os tinha como imediatos destinatários, mas que em virtude dessa agressão (ou da
241 BOBBIO, Norbberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25. 242 Devido aos direitos fundamentais da liberdade, da igualdade. 243 DIMOULIS, Dimitri. MARTINS, Leonardo. Op. cit., p.25-26.
70
eventualidade dela) podem alegar um direito de defesa decorrente dos direitos fundamentais.244
Partindo dessa identificação do sujeito de direito diante da relação com o Estado,
e tendo em vista que mais de um direito fundamental possa estar limitando o exercício de
outro direito fundamental (bem-jurídico constitucional) a partir de uma medida ou omissão
estatal, passa a ser objeto da doutrina jurídica e dos tribunais traçar os limites que permitam o
exercício harmônico dos direitos fundamentais colidentes diante de um caso concreto,245
visando minimizar o antagonismo entre tais ideias.
Nessa pegada, deve-se voltar ao estudo para a estrutura das normas de direitos
fundamentais. A radiografia estrutural de tais normas pressupõe a distinção entre as suas duas
espécies: regras e princípios.
A distinção entre ambas se dá no plano qualitativo. Princípios são mandamentos
de otimização que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas apresentadas. Ensejam, assim, diferentes graus de satisfação
do que comandam. As regras, de outro modo, representam determinações observáveis
somente na exata medida do que exigem.246
A diferenciação entre as duas espécies normativas fica mais clara se examinar as
reações observáveis nas colisões entre princípios e nos conflitos entre regras.247
Como mandamentos de otimização que são, os princípios conflitantes restringem
mutuamente as suas possibilidades jurídicas de aplicação. Em face deste impasse, cabe ao
intérprete, à luz do caso concreto, fixar as condições sob as quais um princípio deve ter
precedência sobre o outro. Ou seja, comparar os pesos de princípios colidentes significa
cotejar as razões que levam um deles a prevalecer em face do restante, estritamente sob as
condições colocadas.248 Enquanto o conflito entre regras se dá no plano da validade,
deslocamento para fora do ordenamento a regra não aplicada, o choque de princípios se dá
244 No sentido de SILVA, Vasco Manoel Pascoal Dias Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996, p; 281-282. 245 Cf. lição de DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Op. cit., p. 170. 246 ALEXY, Op. cit., p. 91. 247 Cf. Alexy, Idem, p.93: O embate entre regras se resolve (i) pela adição, em uma das regras, de uma cláusula de exceção que elimine o conflito ou (ii) pela declaração de invalidade de uma das regras, o que pode ser feito com base nos consagrados critérios de solução de antinomias. Os conflitos entre regras se dão na dimensão da validade. No caso das colisões de princípios, não se deve recorrer a nenhum desses expedientes. O que ocorre é a precedência de um princípio sobre o outro sob determinadas condições presentes no caso concreto. Caso sejam alteradas as condições, a relação de precedência não necessariamente se mantém. Tensionados dois princípios, busca-se definir qual dos dois interesses neles consagrados carrega maior peso no caso concreto. 248 Idem, p. 97.
71
internamente ao sistema e tem como pressuposto a validade dos princípios colidentes. A
contradição, nesse caso, se ambienta na dimensão do peso.
Essa diferenciação é importante, pois Robert Alexy adota um modelo misto de
regras e princípios para as disposições de direitos fundamentais. Com efeito, o autor constrói
uma estrutura de duplo nível, formada pelos princípios que puderem ser corretamente
utilizados a favor ou contra uma decisão de direito fundamental e as regras, que podem conter
tentativas de estabelecer sentidos normativos em face das diferentes exigências
principiológicas, na medida em que apresentam suportes fáticos e cláusulas de restrição
diferenciados.249 Caso essa tentativa de se estabelecer determinações normativas diretas não
seja bem sucedida, a decisão constitucional requer a via do sopesamento e, consequentemente,
o acesso a nível dos princípios.250
Avança o autor ensinando que as normas de direitos fundamentais não só se
espalham alternativamente pelos dois níveis acima expostos, como também podem reunir
nelas próprias ambos os níveis, caracterizando-se como normas de caráter duplo. Isso ocorre
quando na norma constitucional é incluída uma cláusula restritiva sob a forma de princípios,
sujeitando-se a sopesamentos.251 A introdução dessa cláusula restritiva em função de
princípios colidentes é guiada pela regra da proporcionalidade,252 que será analisada
posteriormente.
Considera-se, pois, analisando o contexto dos direitos fundamentais como valor,
haver colisão de direitos fundamentais ―quando o exercício de um direito fundamental por
parte de seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular‖,
havendo um ―autêntico conflito de direitos‖. Pode haver de outra maneira a colisão, quando
esta se dá entre um direito fundamental e com outros bens constitucionalmente protegidos.253
Para sanar essa inevitável tensão entre princípios, cuja concretização depende da
reserva do possível fática e jurídica, a solução desse antagonismo não se dará com a exclusão
do sistema do princípio desprestigiado naquela situação concreta, mas com a ponderação do
peso que cada um deles obtém como fator decisivo no caso real.
249 ALEXY, Op. cit., p. 139. 250 Idem, p. 140. 251 Idem, p. 141. 252 Para o eixo teórico dessa dissertação adota-se a denominação de regra, visto que não é sopesamento com nenhum outro princípio, mas sim um modelo de ponderação, conforme os ensinamentos de Robert Alexy. 253 Cf. CANOTILHO, Op. cit., p. 1270. Esse último sentido é a chamada colisão imprópria.
72
O método da ponderação é utilizado para valorar a dimensão dos direitos
fundamentais em questão; ―trata-se, pois, de mecanismo legítimo e indispensável para o bom
funcionamento de uma Constituição que se pretende aberta‖.254
No dizer de Luis Prieto Sanchís:
Es la ponderación, es decir, teniendo en cuenta las circunstancias del caso, se establece entre los principios una relación de preferencia condicionada; pues si se estableciese una relación de precedencia absoluta o incondicionada estaríamos en realidad formulando una excepción a una de las normas.255
Esse método de valoração de bens busca subsídios em outras ciências sociais tais
como: política, história e sociologia conexas com o problema jurídico e se vale da
discricionariedade jurídica; fato é que pode haver arbitrariedades se o julgador aniquilar
direitos e interesses quando do momento da ponderação.
Entretanto, há situações em que o constituinte antecipou o juízo de ponderação
entre interesses individuais e coletivos, dispondo como os conflitos devem ser tratados, como
exemplo, o direito de propriedade e o interesse coletivo em ver realizada obra pública ou
obter serviço público, cuja concretização depende de expropriação de bem particular:
O constituinte, ao tempo em que assegurava o direito de propriedade, dispôs que a desapropriação era possível, desde que à contrapartida do pagamento de uma indenização justa, prévia e em dinheiro. O caso não é de prevalência absoluta de um interesse da coletividade sobre o interesse particular – como seria a permissão de um simples confisco – mas de uma acomodação entre os dois, mediante adoção de uma solução intermediária, pela qual ambos os interesses são preservados em alguma medida, sem a supressão total de qualquer deles.256
Ainda no contexto da interpretação jurídica, resta provado que outros métodos de
interpretação clássicos (cronológico e hierárquico, por exemplo) não satisfazem o traçado das
fronteiras de todos os princípios constitucionais, seja porque não há uma prevalência
hierárquica257 ou prevalência de tempo, mesmo para o caso das emendas constitucionais. As
regras podem incidir ou não diante dos pressupostos fáticos, ao passo em que os princípios
podem ser aplicados dentro das possibilidades fáticas e jurídicas para o caso concreto, sendo-
254 SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais e a ponderação de bens. In: Teoria dos direitos fundamentais. TORRES, Ricardo Lobo (Org) 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.72. 255 SANCHÍS, Luis Prieto. Ley, principios, derecho. Madrid: Dykinson, 1998, p.58. 256 BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 163. 257 Devido ao Princípio da Unidade da Constituição uma vez não possibilita o escalonamento entre as diferentes normas constitucionais.
73
lhes atribuídos pesos e seguem a regra da proporcionalidade, através da verificação da
necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.258
Leciona Robert Alexy que os cidadãos possuem competências259 protegidas pelos
direitos fundamentais. É o caso da competência para entabular um contrato, para adquirir
propriedade ou para criar associações. Tais disposições revelam um direito fundamental
prima facie a não eliminação de uma posição, que pode ser explicada como uma proibição
endereçada ao legislador ou à Administração Pública contra a eliminação de certas
competências dos cidadãos.260
Do exposto acima, pode-se depreender que competências e liberdades estão
relacionadas. A capacidade constituída pela norma de competência é peça elementar da
liberdade de ação do cidadão. Ademais, como dito, a competência acresce um elemento
constitutivo à ação individual, ampliando-a.
Segue dizendo que ao Estado também são providas competências, porém, estas
são configuradas sob uma perspectiva negativa. Nesse sentido, as normas negativas de
competência dirigem o Estado a uma posição de não-competência e, consequentemente, o
indivíduo a uma posição de não-sujeição. A não-competência, em verdade, demarca a área em
que o Estado é proibido de agir, em respeito ao direito do indivíduo de não ser atingido em
sua posição de não-sujeição.261
Repisando a relação dos direitos fundamentais com o Estado, tem-se que ―o
Estado legitima-se e justifica-se a partir dos direitos fundamentais e não estes a partir daquele.
O Estado gira em torno do núcleo gravitacional dos direitos fundamentais‖.262
Nesse passo, a Administração também se vincula aos direitos fundamentais, uma
vez que torna nulo o ato praticado com ofensa a esses direitos; assim, deve interpretar e
aplicar as leis em sua conformidade, o que significa dizer que a atividade discricionária da
Administração não pode deixar de respeitar os limites que circundam os direitos
fundamentais.263
258 Idem, p. 91-93. Este tema, regra da proporcionalidade, será abordado no próximo capítulo. 259 Cf. Robert Alexy: ―A competência adiciona à capacidade de ação do indivíduo, algo (...) que ele por natureza não possui‖. ALEXY, Op. cit., p.238. 260 Idem, p. 245. 261 Idem, p. 248. 262 SHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, p. 223. 263 MENDES; BRANCO, Op. cit., p. 169.
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Voltando-se para as lições de Gustavo Binenbojm tem-se:
O reconhecimento da centralidade do sistema de direitos fundamentais instituído pela Constituição e a estrutura maleável dos princípios constitucionais inviabiliza a determinação a priori de uma regra de supremacia absoluta do coletivo sobre o individual. A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público aliada à natural dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse público reside na própria preservação dos direitos fundamentais, e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto da coletividade, impõem ao legislador e à Administração Pública o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até um grau máximo de otimização.264
Vale lembrar que a defesa dos direitos fundamentais é da essência da função do
Poder Judiciário visto que possui tarefa clássica de defender direitos violados ou ameaçados
de violência,265 compreendendo a doutrina que deve ser atribuído a este Poder o dever de
conferir máxima eficácia possível aos direitos fundamentais, podendo até gerar o poder-dever
de recusar aplicação a preceitos que não os respeitem.266
Paulo Bonavides, trabalhando com o conceito de concretização, com lastro em
Friedrich Müller (uma vez que observa que para a melhor hermenêutica dos direitos
fundamentais267 apostrofa que estes não são valores, mas que são normas),268 leciona que a
aplicação desses direitos surpreende ―por sua importância, utilidade e aplicabilidade na
solução de questões constitucionais de direitos fundamentais‖.269
Sustenta Daniel Sarmento que esse método de hermenêutica concretizadora
potencializa o ideal da Constituição aberta, uma vez que visa ―conciliar, no caso concreto, as
Quando os autores se referem à Administração, estão considerando que a ―expressão compreende não somente pessoas jurídicas de direito público, mas, igualmente, pessoas de direito privado que disponham de poderes públicos, de faculdades do jus imperium, ao tratar com o particular‖. 264 BINENBOJM, Op. cit., p.149. 265 Cf. art. 5º, XXXV, CF/88. 266 No sentido de MENDES; BRANCO, Op. cit., p. 173. 267 Müller ensina que concretizar significa ―dilatar os conteúdos constitucionais, exauri-los, aperfeiçoá-los‖. BONAVIDES, Op. cit., p.621. 268―compreende ele a norma jurídica como algo mais que o texto de uma regra normativa. De sorte que a interpretação ou concretização de uma norma transcende a interpretação do texto, ao contrário portanto do que acontece com os processos hermenêuticos tradicionais no campo jurídico. A concretização possui assim um raio de abrangência muito mais largo e a respectiva ―metódica‖, na linguagem do autor, abraça todos os meios de trabalho mediante os quais se chega a concretizar a norma e a realizar o direito‖. BONAVIDES. Op. cit., p.499. ―Friedrich Müller propõe metódica do direito constitucional centrada na estrutura da normatividade, rumo à concretização do referencial normativo e, de tal modo, a metódica jusconstitucional deve ser fundamentada por uma teoria do direito: mas não por uma teoria sobre o direito (...) mas por uma teoria do direito quer dizer, por uma teoria da norma jurídica . Ao leitor o problema é posto, seus contornos e senões bem definidos; Friedrich Müller esboça, então, uma metódica do direito constitucional. Centra-se na relação entre observância da norma e concretização da norma , entre prescrição constitucional e motivação de comportamentos‖. GODOY, Arnaldo Moraes. Métodos de trabalho do direito constitucional, de Friedrich Müller. Uma resenha. Disponível em: http://www.arnaldogodoy.adv.br/publica/metodos_de_trabalho_do_direito_constitucional_de_friedrich_muller.html. Acesso em: 23 mai. 2013. 269 BONAVIDES, Op. cit., p. 648.
75
tensões entre princípios constitucionais, sem definir hierarquias rígidas e propicia o convívio
entre valores e princípios antagônicos‖.270
Tendo em vista que o ponto central da dissertação é o cidadão diante do Estado, e
os seus direitos, especialmente a dignidade da pessoa humana que é inerente ao ser, toma por
empréstimo a lição de Thomas Humphrey Marshall, do que seja cidadania, representando a
conquista plena de direitos do indivíduo. A cidadania, pois, é tida como ―um status concedido
àqueles que são membros integrais de uma comunidade‖ sendo considerados iguais ao
observar o respeito aos direitos e obrigações.271
Segundo o autor, a cidadania é composta por três elementos: civil, político e
social. O civil é composto dos ―direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e
de vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade, de concluir contratos
válidos e o direito à justiça‖. O elemento político é dado pelo ―direito de participar do
exercício do poder político‖ e o elemento social se apresenta por ―tudo o que vai desde o
direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por
completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que
prevalecem na sociedade‖. Para o autor, o último elemento é caracterizado através da
educação e da saúde.272
Para José Murilo de Carvalho, seguindo a esteira de Marshall e traçando um
paralelo acerca da concepção de cidadania no Brasil, leciona que a garantia destes direitos
sociais ―depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo‖
e estes direitos se baseiam na justiça social.273
A cidadania plena é dada pela conquista desses direitos fundamentais,
especialmente da dignidade da pessoa humana, conforme a seguir detalhado.
2.3 – ASPECTOS DA CIDADANIA A SEREM CONSIDERADOS
O surgimento dos ideais da cidadania remonta aos tempos da antiguidade clássica,
entre os gregos e os romanos, estabelecendo ―o elo entre o homem livre e a cidade,
270 SARMENTO, Op. cit., p. 93. 271 MARSHALL, Thomas Humphrey. Tradução de Metom Porto Gadelha. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p.76. 272 Idem, p. 63-64. 273 Cf. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.9-10.
76
reconhecendo-lhe direitos e impondo-lhe obrigações, orientando-lhe a conduta cívica e
despertando-lhe a consciência das virtudes‖.274
Para Carlos Ari Sundfeld, nesse período da antiguidade clássica, a cidade é a
unidade política, sendo o grego um cidadão, integrante da cidade e de cujos órgãos ele
participa, satisfeito por se submeter a uma ordem (à lei) e não à vontade de um homem. A lei
é elemento essencial da identificação do grego com a cidade, sendo sagrada, imutável e
atribuída a um poder divino. Juridicamente, as questões se voltam para os cidadãos, não se
cogitando o exame judicial das questões envolvendo o poder público. O Estado estava acima
dos tribunais, inexistindo, assim, um direito à liberdade individual contra a autoridade.275
No período do patrimonialismo, a concepção de cidadania fica envolta nos
privilégios e nas regalias dos que detém a situação dentro de uma mesma função social. ―Os
poderes militares, administrativos, fiscais e jurisdicionais dos senhores feudais serão
explicados pela situação patrimonial, pela posse da terra, regulada pelo direito privado‖.276
Nesse período, a ―incipiente noção de cidadania se justificava com a teoria do status, que
expressa a qualidade de membro de um certo corpo social ou determinado estamento‖.277
Para Maria das Graças Almeida Moura, os direitos individuais ainda permanecem
sem definição nessa era medieval tendo em vista que se caracteriza por tentar priorizar ideais
de cidadania de diferentes segmentos sociais como: o real, as corporações de ofício, os
senhores de feudos e a força da Igreja.278
Prosseguindo a linha do tempo, urge a necessidade de ordem e de autoridade, face
à instabilidade vigente no período anterior; a centralização do poder em torno de um soberano
irá identificar as regras das suas relações com os súditos, através da formação do Estado com
a submissão de todos a uma mesma ordem jurídica, com exceção do próprio Estado que não a
se submeteria, mas ao contrário, exerceria o poder ilimitado de polícia perante os súditos, uma
vez que lhes impunha obrigações ou restrições às suas atividades.279
Essa visão de modelo de Estado absoluto acabou por se render diante das diversas
revoltas sociais que se sucederam, inclusive com a Revolução Industrial caracterizada pelo
274 TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. TORRES, Ricardo Lobo (Org), Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 247. 275 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 30-32. 276 Idem, p. 33. 277 TORRES, Op. cit., p. 254. 278 MOURA, Maria das Graças Almeida. Estado, cidadão e cidadania. Campinas: Komedi, 2005, p.68. 279 SUNDFELD. Op. cit., p. 34.
77
uso de tecnologia no processo produtivo e que teve como consequência a valorização do
trabalho humano e a vigência do sistema econômico capitalista.
A cidadania teve, portanto, maior divulgação através das ideias propaladas quando
da Revolução Francesa, no final do século XVIII, fase que se verificou expansão e
abrangência dos direitos fundamentais através da ampla disseminação dos direitos de
igualdade, de liberdade e de fraternidade.
Conforme o entendimento de Maria de Lourdes Manzine-Covre, a concepção
dada para cidadania é:
O próprio direito à vida em sentido pleno. Trata-se de um direito que precisa ser construído coletivamente, não só em termos do atendimento às necessidades básicas, mas de acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel do (s) homem(s) no Universo.280
Sustenta Maria das Graças Almeida Moura que cidadania ―é uma postura
individual e estatal de se portar alguém ou o ente político diante de situações juridicamente
protegidas‖.281
Estudos sociológicos foram aprofundados acerca da concepção da cidadania, que
―mereceu atenção pela possibilidade de expansão do quadro de direitos‖.282 Exerceu grande
influência para a consolidação desse conceito o ensaio que foi apresentado na Inglaterra por
Thomas Humphrey Marshall.
O autor tomou-a por base dois eixos essenciais: a cidadania e a classe social, uma
vez que a cidadania conduz à igualdade visto que condena a desigualdade qualitativa entre os
homens e a classe social e aceita a desigualdade quantitativa e econômica entre eles,
admitindo a participação na herança social que significa ―reivindicação para serem admitidos
como membros completos da sociedade, isto é, como cidadãos‖. Há uma espécie de igualdade
humana básica associada com a participação integral na comunidade, mesmo com os
diferentes níveis econômicos encontrados na sociedade.283
Tem-se que no período do Estado Liberal, a igualdade e a liberdade foram geradas
como conteúdos formais, ou mais precisamente como conteúdos negativos, ensejadores da
posição de defesa em face do Estado. Ao invés de indivíduos iguais em oportunidades e
280 MANZINE-COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 11. 281 MOURA, Idem, p. 92. 282 Idem, p. 248. 283 MARSHALL, Op. cit., p. 61-62.
78
possibilidades de participação na vontade política do Estado, identificaram-se indivíduos
iguais frente ao Direito, no sentido reduzido à lei.284
Nessa visão clássica do liberalismo, a sociedade era o locus da cena social, onde
os indivíduos encenavam seus papéis, escritos por si, cabendo ao Estado garantir a
normalidade,285 entendendo como normalidade a garantia dos seus direitos. Com a vitória do
liberalismo, houve o desarrimo da fundamentação que vinculava status à cidadania, surgindo
um novo olhar para a própria ideia de contrato social.286
Postula, ainda, o autor inglês, que o percurso que conduziu a evolução da
cidadania na Inglaterra se deu, de início, com fusão geográfica do Estado sendo enraizado nas
vilas, nas cidades e nas guildas e, posteriormente com a dissociação entre os três elementos do
direito devido à mudança econômica, observando que os direitos civis287 foram formados no
século XVIII garantindo a liberdade a todos: direito a trabalhar e ao acesso à justiça através
do Direito Consuetudinário.288
Entende Maria de Lourdes Manzine-Covre que ―os direitos civis dizem respeito
basicamente ao direito de dispor do próprio corpo, locomoção, segurança‖, chegando até a
parecer meio óbvio essa ideia inferida a esse tipo de direito.289
Afirmam-se os direitos civis como os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles
―direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para grupos
particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado‖, de acordo com as ideias de
Norberto Bobbio sobre o desenvolvimento dos direitos do homem.290
Com relação aos direitos políticos, estes iniciaram no século XIX, constituindo ―o
privilégio de uma classe econômica limitada‖, com ares de capacidade ao invés de direito;
284 Cf. JACINTHO, Op. cit., p.185-186. 285 AMARAL, Gustavo. Interpretação dos direitos fundamentais e o conflito entre poderes. In: Teoria dos direitos fundamentais. TORRES, Ricardo Lobo (Org), 2. ed. , Rio de Janeiro: Renvocar, 2001, p. 100. 286 TORRES, Op. cit., p. 254. ―A explicação fundada no contrato, ou melhor, na relação jurídica contratual entre o cidadão e o Estado, encontra duas objeções de monta: a cidadania não cria vínculos jurídicos apenas entre o cidadão e o Estado, mas também entre os próprios cidadãos, em virtude da eficácia contra terceiros que os direitos fundamentais exibem; a relação entre direitos e deveres do cidadão e do Estado é assimétrica, como veremos, o que prejudica a idéia de relação contratual, que é sinalagmática essencialmente‖. 287 Para Bobbio, os direitos civis correspondem aos direitos de liberdade, ou um não agir do Estado. Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 6. 288 MARSHALL, Op. cit., p. 64-69. 289 MANIZINE-COVRE. Op. cit., p. 11. 290 BOBBIO, Op. cit., p, 32.
79
somente no século XX, com a possibilidade do sufrágio universal, é que esses direitos foram
plenamente conquistados. 291
Compreende-se o sentido de direitos políticos quando dizem respeito:
À deliberação do homem sobre sua vida, ao direito de ter livre expressão de pensamento e prática política, religiosa, etc. Mas, principalmente, relacionam-se à convivência com os outros homens em organismos de representação, direta (sindicatos, partidos, movimentos sociais, escolas, conselhos, associações de bairros etc,) ou indireta (pela eleição de governantes, parlamento, assembleias), resistindo a imposições dos poderes (por meio de greves, pressões, movimentos sociais).292
Com esse sentimento de cidadania, sob o viés dos direitos políticos, percebe-se
maior participação do cidadão frente a escolhas para o Estado e, assim, a liberdade política
adquire novas conotações uma vez que há maior participação política direta nos destinos do
país através do voto, o que leva a minimizar a situação de súdito frente à Administração
Pública.
Nessa quadra de ideias, pode-se inferir que os direitos políticos concebe a
liberdade não apenas negativamente como não impedimento, mas positivamente, como
autonomia tendo como consequência a participação mais ampla, generalizada e frequente dos
membros da sociedade no poder político (liberdade no Estado).293
Observa-se que o percurso de conquistas dos direitos políticos fortalece os direitos
fundamentais, neles se integrando, uma vez que constituem a dimensão reivindicatória e
ativa.294
O surgimento dos direitos sociais se deu com a ―participação nas comunidades
locais e associações funcionais‖ observando a Poor Law295 e o processo educacional, a
educação primária sendo gratuita e obrigatória, pois o ―objetivo da educação durante a
infância é moldar o adulto em perspectiva‖, configurando ser um ―requisito necessário à
liberdade civil‖.296
291 MARSHALL, Op. cit., p. 69-70. 292 MANZINE-COVRE, Op. cit., p. 15. 293 Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 32. 294 TORRES, Op. cit., p, 272. 295 Poor Law significa ―amplo programa de planejamento econômico cujo objetivo geral não era criar uma nova ordem social, e sim preservar a existente com um mínimo de mudança essencial‖. Constituiu a separação entre os direitos sociais e cidadania tendo em vista que os pobres abriram dos direitos da liberdade com a consequência da perda dos direitos políticos e sociais. Idem, p. 71-72. 296 MARSHALL, Op. cit., p. 70-74.
80
Avança, ainda, o autor inglês identificando duas distinções de tipos de classe
quais sejam: primeiro, a classe como hierarquia de status em que a diferença entre uma classe
e outra está em termos de leis e costumes dado o caráter coercivo da lei; segundo, as que são
produto derivado de outras instituições como propriedade, educação e estrutura da economia
nacional.297
Diante de um entendimento extremamente certeiro acerca dessas instituições, o
autor assevera que o direito de propriedade ―não é um direito de possuir propriedade, mas um
direito de adquiri-la, caso possível e de protegê-la, se puder obtê-la‖; quanto ao direito de
liberdade de palavra, o autor comenta que possui pouca serventia se, ―devido à falta de
educação, não se tem nada a dizer que vale a pena ser dito, e nenhum meio de se fazer ouvir
se há algo a dizer‖.298
Fica demonstrada que a igualdade dos direitos civis não existia de fato, somente
existia de direito, por volta dos séculos XVIII e XIX, tendo em vista que o acesso não estava
disponível para o indivíduo, em face de duas determinantes: preconceitos de classes e efeitos
de distribuição de renda desiguais. Essas ocorrências passaram a ser atenuadas através da
educação, do acesso à justiça gratuito e do reconhecimento de que uma capacidade igual
acerca dos direitos não era suficiente para o alcance de uma igualdade social.299
Thomas Humphrey Marshall leciona que os direitos políticos estavam ameaçados
pelo capitalismo e que o progresso social era perseguido por meio do fortalecimento dos
direitos civis e não pelo estabelecimento dos direitos sociais, muito mais pelo uso do contrato
do mercado livre do que pela adoção de um salário mínimo e previdência social. Também o
sindicalismo criou ―um sistema secundário de cidadania industrial paralelo e complementar ao
sistema de cidadania política‖.300
Para o autor, ―o status adquirido por meio da educação acompanha o indivíduo
por toda a vida com o rótulo de legitimidade‖, o que possibilita o indivíduo ter mais
oportunidades de estrutura de ocupação, promovendo, ao cidadão, justos direitos.301
Para maior alcance da ideia de igualdade, o autor defende a tese de duas faces
para esse movimento, ambas com o fim de atenuar desigualdades ilegítimas. Eis seu
pensamento:
297 MARSHALL, Op. cit., p. 76-77. 298 Idem, p.80. 299 Idem, p. 80-83. 300 Idem, p. 85-86. 301 Idem, p. 100-102.
81
Há limitações inerentes ao movimento em favor da igualdade. Mas o movimento possui um duplo aspecto. Opera, em parte, através da cidadania e, em parte, através do sistema econômico. Em ambos os casos, o objetivo consiste em remover desigualdades que não podem ser consideradas como legitimas, mas o padrão de legitimidade é diferente. No primeiro, é o padrão de justiça social, neste último, é a justiça social combinada com a necessidade econômica. É possível, portanto que as desigualdades permitidas pelos dois aspectos do movimento não coincidam. Distinções de classes podem sobreviver que não possuam nenhuma função econômica apropriada, e diferenças econômicas que não correspondam às distinções de classes aceitas.302
Numa concepção do direito moderno, a igualdade ―além de ser um princípio
informador de todo o sistema jurídico, reveste-se também da condição de um autêntico direito
subjetivo‖.303 Nesse sentido, cabe ao cidadão o direito de não ser diferençado, mesmo diante
da alegada supremacia do Estado.
Mostra-se relevante a sustentação dada à igualdade material quando se enfatiza
que ―não é uma redução dos seres humanos a uma condição idêntica, mas a garantia concreta
de condições idênticas de viver suas diferenças‖.304
O momento político-social do Estado Social vigente, Welfare State, pretendia-se
―acrescentar ao regime das liberdades tradicionais, as exigências de justiça social‖,305 em que
a ―organização do tecido social em classes sociais criteriosamente distribuídas segundo a
propriedade dos meios de produção e a consequente acumulação de riquezas seria a tônica da
coexistência humana, abrindo um fosso entre elas‖.306 ―Período marcado pela riqueza e pelas
condições econômicas favoráveis à ação providencial do Estado‖.307
Nesse sentir, tem-se que o surgimento dos direitos sociais está associado à
transição do Estado Liberal para o Estado Social, em que se privilegia a proteção do
indivíduo, diante do extremo poder econômico notado no Estado Liberal.308
Na oportunidade, o respeito ao atendimento das necessidades humanas básicas
dão fundamento para os direitos sociais. Identificando-os como os que devem repor a força de
302 MARSHALL, Op. cit., p. 109. 303 BASTOS, Ribeiro Celso. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 170. 304 CAPLAN, Luciana. O direito humano à igualdade, o direito ao trabalho e o princípio da igualdade. In: Direitos humanos e direito do trabalho. PIOVESAN, Flávia; CARVALHO, Luciana Paula Vaz de. (Coord). São Paulo: Atlas, 2010, p.121. 305 Cf. JACINTHO, Op. cit., p. 187. 306 Idem, ibidem. 307 TORRES, Op. cit., p.249. 308 ALVES, Marcos César Amador. Trabalho decente sob a perspectiva dos direitos humanos. In: Direitos humanos e direito do trabalho. PIOVESAN, Flávia; CARVALHO, Luciana Paula Vaz de. (Coord). São Paulo: Atlas, 2010, p. 331.
82
trabalho, direito ao trabalho, e que, consequentemente, dá sustentação ao corpo humano
através do direito a saúde, educação, habitação.309
Necessário se faz a inserção de políticas públicas sociais de prestação desses
serviços essenciais pelo Estado Democrático, através de uma atuação concreta, visando à
consagração desses direitos fundamentais sociais para uma sociedade mais democrática.
Nesse sentido, o compreender de Sérgio Resende de Barros para políticas públicas é que ―são
diretrizes de interesse público que informam programas de ação governamental segundo
objetivos a serem alcançados e que, para esse fim, condicionam a conduta dos agentes
estatais‖.310
Os direitos sociais sendo proclamados passam a ser expressão do amadurecimento
de novas exigências e de novos valores como os do bem-estar e da igualdade não apenas
formal, mas que pode ser chamada de liberdade através ou por meio do Estado.311
Sustenta Maria das Graças Almeida Moura que:
A cidadania estabelece, para aqueles que a vêem como o único caminho para a harmonia interpessoal, um sentimento de bem-estar, de dever cumprido com a própria consciência e com o Estado de Direito por escolha da própria sociedade. No voto, vemos toda essa vibração pulsar em nossos corações, pois nessa ação individual o cidadão possui, em suas mãos, a oportunidade de referendar sua posição diante desses valores internos que irão se exteriorizar por seu ato de votar em outro cidadão que ele considere representante desses valores de liberdade alcançados ao das eras. Nossa sociedade instalada é resultado de nossos próprios valores pessoais, visto temos escolhido em escrutínio secreto, aqueles que nos representam e que os temos na conta de defensores dos direitos e garantias fundamentais e de toda ordem constitucional e jurídica vigentes.312
Assim, extrai-se a essencialidade dos direitos sociais e a relevância jurídica de sua
tutela, visto que são direitos que visam o mínimo existencial, sendo englobados,
nomeadamente, no conteúdo jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana.313
Interessante contribuição que foi trazida por Luigi Ferrajoli, acerca do tema,
quando enfatiza que ―hoje a cidadania e a capacidade de agir restaram como as únicas
diferenças de status que ainda delimitam a igualdade das pessoas humanas‖.314
309 MANZINE-COVRE, Op. cit., p.14. 310 BARROS, Sérgio Resende de. O Poder Judiciário e as políticas públicas: alguns parâmetros de atuação. Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/pt/o-poder-judiciario-e-as-politicas-publicas--alguns-parametros-de-atuacao.cont>. Acesso em: 21 jun. 2013. 311 Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 32. 312 MOURA, Op. cit., p. 92-93. 313 ALVES, Op. cit., p.331. 314 FERRAJOLI, Op. cit., p.12.
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A conquista da cidadania oportuniza atenuar as desigualdades existentes entre as
classes sociais. A desigualdade perde força diante do fortalecimento da cidadania, mas que
não chega ao ponto de atingir uma igualdade absoluta. Além da cidadania, outro aspecto
relevante para o movimento de redução da desigualdade é o sistema econômico que associa a
justiça social, visão da cidadania, com a necessidade econômica do cidadão.315
Em arremate às considerações ―marsahallianas‖ do que vem a ser cidadania,
visualiza-se a busca do fundamento da construção da cidadania, auferindo-se que o atual
ordenamento jurídico pátrio clama pela necessidade de privilegiar os direitos do cidadão, que
segundo Manoel Gonçalves Ferreiro Filho são ―poderes‖,316 e como poderes vêm a mitigar e a
sopesar a soberania estatal, em uma sociedade que não mais desprestigia os direitos
fundamentais e que já é consciente de que para o aperfeiçoamento da ideia da justiça social, o
arbítrio e autoritarismo intrínsecos ao poder do Estado devem ser repensados.
Percebe-se, portanto, que os direitos civis, políticos e sociais, que compõem os
direitos do cidadão, ―não podem ser desvinculados, pois sua efetiva realização depende de sua
relação recíproca‖. Nesse sentido, ―são dependentes da co-relação de forças econômicas e
políticas para se efetivar‖.317
Ricardo Lobo Torres leciona que outra contribuição para a concepção da
cidadania teve origem com a índole liberal sendo capitaneada por Dahrendorf, desenvolvida
na Inglaterra, dando contributo à teoria das classes e menor importância aos direitos sociais no
contexto da cidadania, reduzindo-os ao mínimo existencial.318
Nesse quadro de ideias, esse autor compreende a cidadania ―como o pertencer à
comunidade, que assegura ao homem, a sua constelação de direitos e o seu quadro de deveres,
só a análise ética e jurídica abre a possibilidade de compreensão desse complexo status”.319
Corroborando com o cenário mais atual acerca da concepção do conceito de
cidadania, Jordi Borja refere-se a ela como uma realidade dinâmica que foi se ampliando
como resultado do desenvolvimento social e civil do Estado Democrático e que enfrenta
duplo desafio: existem fatores que levam ao questionamento acerca dos conteúdos da
315 Conclusão cf. entendimento de Marshall. Idem, p. 109. 316 FERREIRO FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.43. 317 MANZINE-COVRE, Op. cit., p.15. 318 TORRES, Op. cit., p.249. SARLET leciona o mínimo existencial como condições materiais indispensáveis para uma vida com dignidade. Op. cit., p. 146. 319 TORRES, Op. cit., p. 251.
84
cidadania adquirida ao tempo em que novos fenômenos colocam a necessidade de ampliar os
conteúdos e renovar o conceito de cidadania.320
2.3.1 – Cidadania no Brasil
Tecidas as considerações sobre a concepção da origem da cidadania na Inglaterra,
verifica-se, a seguir, o seu descompasso com a trajetória brasileira.321
No caso brasileiro não há o que se falar em cidadania antes da constituição do
período republicano, visto que o país passou pela colonização portuguesa, sendo regido por
períodos de capitania, feudo e regência até a proclamação da sua independência, adotando,
inclusive, o regime de escravidão para o trabalho.
O sentimento de cidadania que aflorou foi através do patriotismo do povo
brasileiro em busca de sua independência, participando de guerras e pondo fim à forma de
governo da monarquia, através da participação dos militares, e a instituição da República
federativa.
O Brasil passou por grandes transformações políticas e sociais a partir da década
de trinta do século passado. Essas mudanças refletiram no campo da cidadania, especialmente
com relação ao avanço nos direitos sociais; os direitos políticos não tiveram o mesmo arrojo
em virtude da alternância entre os períodos da oligarquia (Primeira República), ditaduras e
regimes de governos mais democráticos, bem como os direitos civis se comportaram seguindo
nessa mesma esteira.322
O momento que antecedeu ao avanço dos direitos sociais foi caracterizado por
grandes influências da crise mundial de 1929, quais sejam: abalo na economia da cultura do
café; início da formação da Coluna Prestes que pregava ideias comunistas; início do
movimento do tenentismo; surgimento do movimento cultural da Semana de Arte Moderna,
sendo relevante na alteração da estrutura do ensino, deixando de ser menos acadêmico para se
tornar mais técnico; disseminação da cultura do sanitarismo pelo interior do país; crítica
ferrenha à oligarquia da Velha República e elaboração de nova constituição com feições
320 BORJA, Jordi. O papel do cidadão na reforma do estado. In: Sociedade e estado em transformação. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser; WILHEIM, Jorge; SOLA, Lourdes (Org) São Paulo: UNESP; Brasília: ENAP, 1999, p.362-365. 321 Será considerado o período da República tendo em vista que coincide com o desenvolvimento do direito administrativo no país. 322 CARVALHO, Op. cit., p.87-88.
85
liberalistas, aos moldes da Constituição de Weimar,323 que inaugura a regulação da ordem
econômica e social no país. Também foi identificado como um período de fomento
econômico através do crescimento industrial, da construção de estradas de ferro, do
desenvolvimento da siderurgia e do petróleo.324
A existência de uma cidadania social se relaciona com a existência de uma esfera
pública atuante a um dever prestacional de bens sociais por parte do Estado325 a uma
população que almeja apenas o bem-estar social, sem qualquer questionamento ou ambição
frente à supremacia do Estado.
Importante retratar que durante o período de 1937 a 1945 o país vivenciou a
presença da ditadura civil, sendo garantida pelas forças armadas, ―em que as manifestações
políticas eram proibidas, o governo legislava por decreto, a censura controlava a impressa, os
cárceres se enchiam de amigos do regime‖. A sua marca era de ser um regime autoritário, mas
não com as faces do totalitarismo fascista, nazista ou comunista.326
Todo esse cenário histórico fundamenta a introdução dos direitos políticos no
Brasil, pois esses fatores se somaram favorecendo que a era Vargas inaugurasse a conquista
desses direitos através do início do voto secreto nas eleições de 1933, da justiça eleitoral,
visando à redução das fraudes nas eleições e representando conquistas democráticas, bem
como introdução do voto feminino, significando avanços na cidadania política.327
Como garantia para a defesa do cidadão, o mandado de segurança individual
passou a existir no plano do direito pátrio desde 1934, representando uma conquista dos
cidadãos que tiverem seus direitos ameaçados por autoridade pública ou no exercício de
atribuições do poder público, visando sanar ilegalidade ou abuso de poder.
Os direitos dos trabalhadores, que até a época da Velha República, não admitiam a
atuação do Estado na área trabalhista e se limitavam ao social, foram inseridos através da
Consolidação das Leis do Trabalho em 1943 e que se mantém até os dias de hoje, com poucas
modificações; ainda foi criado o Departamento Nacional do Trabalho; foi decretada jornada
323 ―A Constituição de Weimar representa o auge da crise do Estado Liberal do séc. XVIII e a ascensão do Estado Social do séc. XX. Foi o marco do movimento constitucionalista que consagrou direitos sociais, de 2ª geração/dimensão (relativos às relações de produção e de trabalho, à educação, à cultura, à previdência) e reorganizou o Estado em função da Sociedade e não mais do indivíduo‖. Constituição de Weimar: Disponível em:< http://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_de_Weimar>. Acesso em: 13mai.2013. 324Cf. CARVALHO, Op. cit., p. 89-107. 325 Os direitos sociais correspondem a uma ação positiva do Estado. Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 6. 326 Idem, p. 109. 327Cf. CARVALHO. Op. cit., p. 101.
86
de trabalho de oito horas para o comércio e a indústria; foi regulamentado o trabalho feminino
e o dos menores; férias e salário mínimo foram instituídos e foi criada a Justiça do Trabalho.
Aliados aos direitos trabalhistas, também foram tomando vulto os direitos previdenciários
com a criação de institutos de aposentadoria e de pensão. Aparentemente, todos os
trabalhadores se beneficiaram com esses direitos postos, mas o que restou comprovado foi
que o sistema deixou de regulamentar uma faixa muito grande de mão de obra como os
trabalhadores, autônomos e domésticos,328 isso em função de uma concepção de ―política
social como privilégio e não como direito‖.329
A força sindical foi configurada aos moldes de uma ―cidadania limitada por
restrições políticas‖, uma vez que o sindicato deixava de ser uma instituição de direito privado
e passava a ter personalidade jurídica pública, órgão consultivo do governo com única
representação sindical.330
Nas quadras desse relato, o que se vislumbra é que os direitos sociais foram
introduzidos no país, mesmo antes dos direitos civis e políticos terem dado os primeiros
passos para a construção da cidadania brasileira. Com essa percepção, as conquistas do
cidadão, nesse momento, ainda se apresentavam incipientes frente ao poderio exercido pelo
Estado, tendo em vista que a esfera de liberdade do cidadão em relação ao Estado,331
configurada pelos direitos civis, e de liberdade no Estado,332 dada através dos direitos
políticos, não tinham sido proclamadas como realidade no país.
Na sequência dos fatos políticos ocorridos no Brasil à época de 1945-1964,
solidificou-se o sentimento do nacionalismo em defesa de monopólios estatais do petróleo,333
da energia elétrica, protecionismo industrial, sendo permitida a entrada do capital externo, e
do populismo herdado da era Vargas face à introdução das políticas sociais. O país teve o
momento de grande incentivo ao desenvolvimento econômico, com a implantação de
indústrias automobilísticas, incentivando a captação de recursos, inclusive estrangeiro, e da
força sindical.334
328 Esta última categoria teve os seus direitos garantidos neste ano, através da Emenda Constitucional n.º 72, de 2013 que estabelece a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais. 329 Cf. entendimento de José Murilo de Carvalho. Idem, p. 112-115. 330 Idem, p. 115-116. 331 Cf. BOBBIO, Op. cit., p.33. 332 Idem, ibidem. 333 A criação da PETROBRÁS se deu em 1953. 334 Cf. CARVALHO, Op. cit., p. 127-129.
87
Em 1960, o cenário político do país elegeu um presidente e um vice-presidente da
república de partidos políticos divergentes, chegando à renúncia do titular e à instauração do
parlamentarismo como regime de governo até a realização de novas eleições, passando nesse
ínterim por um plebiscito visando à definição do tipo de regime, vencendo o presidencialismo.
Esse momento foi de forte participação política, sendo com a mesma intensidade
demonstrada, através das organizações, das forças sindicais e estudantis aderirem à existente
radicalização entre a situação, direta, e a oposição, esquerda. 335
Os diretos sociais foram estendidos aos trabalhadores rurais, quando o governo
promulgou o Estatuto dos Trabalhadores Rurais (1963) e foi aprovada a Lei Orgânica da
Previdência Social (1960) que uniformizou as normas da previdência e ampliou a cobertura
para os profissionais liberais; quanto aos direitos políticos, o voto passou a ser obrigatório,
direto e secreto para todos os cidadãos à exceção do analfabeto, mas foram reduzidos quando
da proibição dos militares poderem ocupar cargos políticos, bem como da cassação do
registro do partido comunista numa época em que outros partidos políticos estavam sendo
criados e com maior representação, sendo estimulado pelo acréscimo de votantes, mesmo com
eleições fragilizadas pela ocorrência de fraudes.336
As conquistas políticas foram se assentando através da participação popular, mas
foram rechaçadas tanto pela elite de direita (liberalista) como de esquerda por não estarem
preparados para viver numa democracia representativa.337
A despeito de o período viver um modelo de democracia incipiente, o país
atravessou período de ditadura militar, após o golpe em 1964. Esse período foi caracterizado
pelo autoritarismo e pela repressão, atingindo a esfera dos direitos civis e políticos antes
conquistados.338 Viveu-se num período de anticidadania e foi em nome da Declaração dos
Direitos do Homem que se trabalhou contra a tortura, o arbítrio das prisões, o
desaparecimento e o exílio das pessoas.339
Através dos atos institucionais editados pelo presidente da República, os direitos
políticos de líderes políticos, sindicais, intelectuais e militares foram cassados por um período
de dez anos, além de aposentadorias forçadas de funcionários, intervenção nos sindicatos,
335 Cf. José Murilo de Carvalho, Op. cit., p.130-136. 336 Idem, p. 138-147. 337 Idem, p.147-153. 338 Cf. José Murilo de Carvalho, Op. cit., p.160. 339 MANZIN-COVRE, Op. cit., p. 59.
88
invasões armadas, bem como o fim das eleições diretas para a escolha do presidente da
República, além da supressão dos partidos, estabelecendo-se somente dois partidos políticos.
O direito de opinião foi restringido, a censura à imprensa limitou a liberdade de
opinião, proibição de greve, direito à vida sendo cerceado devido à prática da tortura, eleições
indiretas para o Poder Executivo federal e estadual, o Judiciário teve suas funções subtraídas
quando se estabeleceu que os juízes militares julgariam as causas civis ocorridas contra os
militares, além da suspensão da revisão dos atos do governo em grau de recurso.340
Assim, nesse período, ainda não se tinham estabelecidos os direitos da liberdade e
nem o mínimo existencial no país, tendo em vista que esses ―exibem o status negativus, que
significa o poder de autodeterminação do indivíduo, a liberdade de ação ou de omissão sem
qualquer constrangimento por parte do Estado‖, enquanto que este último representa um
―direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de
intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas‖.341
Os direitos sociais sofreram expansão, mesmo a essa época de restrição de direitos
políticos e civis, uma vez que a previdência foi unificada e universalizada, inclusive com a
inclusão dos empregados domésticos e autônomos antes desamparados, criação do Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço; no entanto, houve o fim da estabilidade do emprego.342
O Estado tecnocrático-militar resolveu o problema dos direitos sociais e do salário
social, uma vez que viabilizou o atendimento a esses direitos através de projetos empresariais
que de início atendiam a grupos, em especial a classe média, dando-se através do Banco
Nacional de Habitação e cadernetas de poupanças. A essa época, o ensino superior foi
proliferado através do estabelecimento de faculdades particulares, bem como ficou
caracterizada a entrada da iniciativa privada no campo da saúde.343
Merece fazer uma ligação desse período histórico nacional com o tema pertinente
à dissertação, tendo em vista que o axioma da supremacia do interesse público foi
amplamente divulgado no país a essa mesma época, ou seja, com uma estrutura política
hierarquizada, autoritária e que facilmente a enquadraria como princípio constitucional
implícito para fazer valer a força do Estado, perante o cidadão castrado dos seus direitos e
340 MANZIN-COVRE, Op. cit., p. 161-170. 341 Cf. TORRES, Op. cit., p.265-266. 342 Cf. José Murilo de Carvalho, Op. cit., p.170-173. 343 Cf. sentido de MANZINE-COVRE, Op. cit., p. 60.
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limitando a sua significância a ser somente um súdito diante do regime jurídico-
administrativo.
As feições do país foram mudando após abertura política, a partir de 1974, tendo
os direitos políticos e civis de volta, através da concessão da anistia para os exilados políticos,
fim do bipartidarismo e retomada das eleições diretas para governador dos estados e para a
presidência da República em 1989 e fortalecimento da força sindical.344
Lembra Maria das Graças Moura que ―os direitos políticos conferem aos eleitos
aquela legitimidade para no interesse do povo trabalhar os destinos nacionais com fins
públicos, isto é, à coletividade deve satisfações quando lhes der objetivos contrários aos
determinados na Carta Política‖.345
Complementa Ricardo Lobo Torres que:
Os direitos políticos se incluem na cidadania, que se adjetiva como cidadania democrática .
É através do voto e do processo eleitoral que se fortalecem as instituições democráticas.
O voto é elemento determinante não só da liberdade política como também da justiça política.346
O crescimento econômico iniciado no governo de Juscelino Kubitschek de
Oliveira e visto com maior fulgor na era dos militares provocou o ―milagre econômico‖,
trazendo maior satisfação à classe média e maior oferta de empregos com menores salários
aos trabalhadores.347
O resgate da cidadania no Brasil, em seu sentido jurídico, encontrou o seu ponto
culminante no art. 1º, inciso II, da Constituição de 1988, que a incluiu entre os fundamentos
do Estado Democrático de Direito, abrindo novas perspectivas para análise acerca do tema.348
Assim, com a promulgação dessa Carta Constitucional, intitulada como
Constituição Cidadã,349 foi que os direitos civis, políticos e sociais dos brasileiros foram
344 MANZIN-COVRE, Op. cit., p. 173-195. 345 MOURA, Op. cit., p. 108. 346 TORRES, Op. cit., p. 269. 347 Idem, p. 209. 348 Idem, p. 253. 349 No sentimento de Carlos Ari Sundfeld: ―a idealização em torno do caráter garantista da Constituição tem obscurecido o que é seu traço central: o haver instituído um constitucionalismo chapa branca, destinado a assegurar posições de poder a corporações e organismos estatais ou paraestatais. O conteúdo da Carta de 1988 é menos para proteger o cidadão frente ao Estado que para defender essas corporações e organismos contra as deliberações governamentais e legislativas.[...] Isso fez da Constituição uma Lei Maior de organização
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retomados com solidez, uma vez que se tornou opcional o voto do analfabeto e ampliou a
idade eleitoral para dezesseis anos, acabou com a fidelidade partidária e institutos jurídicos do
mandado de injunção e habeas data foram criados visando garantir o direito de buscar na
justiça o cumprimento de dispositivos constitucionais não regulamentados e ter acesso às
informações mantidas pelo poder público, como também do mandado de segurança coletivo; a
população votou pelo impedimento do primeiro presidente da República eleito,350
caracterizando uma vitória cívica.351
Lembra Mário Lúcio Quintão Soares que:
A cidadania ativa no Estado democrático de direito pressupõe um cidadão politico, apto a fazer valer suas reivindicações perante os governantes, que devem arcar com as responsabilidades de seus atos.
Esta nova cidadania, erigida pelo novo paradigma, consiste na capacidade de participar no exercício do poder político e da gestão dos negócios da comunidade.352
Seguindo as lições de Dalmo de Abreu Dallari:
A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social.353
Apesar de todos os ganhos vindos com a nova constituição em matéria de direitos
fundamentais, os direitos civis são os ―que apresentam maiores deficiências em termos de seu
conhecimento, extensão e garantias‖. A falta de garantia desses direitos se verifica quanto à
segurança individual e à integridade física, estando estes relacionados com a questão policial,
pela falta de confiança ou temor da sociedade com a instituição.354
Por outra banda, partindo-se para a verificação da exigibilidade concreta dos
direitos sociais, alguns remédios constitucionais foram criados como ―a iniciativa popular de
administrativa (que assegura, aos organismos e corporações estatais e paraestatais, proteção contra as reorganizações por meio de lei), de diretrizes orçamentárias (que gante verbas aos setores tais ou quais, por meio de repartições e vinculações de receita tributária, engessando as leias orçamentárias) e de vantagens de servidores públicos (vencimentos, previdência etc). ‖ SUNDFELD, Op. cit., p. 56. 350 O presidente eleito foi Fernando Collor de Mello. 351 Conforme ensinamento de José Murilo dos Santos, Op. cit., p.200-209. 352 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.222. 353 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1998, p.14. 354 SANTOS, José Murilo dos, Op. cit.,p. 210-214.
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leis (art.61, § 2º), é um deles, mas situa-se fora da esfera do Judiciário‖. Além do já citado
mandado de injunção.355
A igualdade social pregada como uma das primeiras garantias constitucionais
ainda está inacessível para muitos na nação brasileira, diferentemente do defendido por
Thomas Humphrey Marshall que colocava as liberdades civis na base piramidal da cidadania.
A educação é o fator que mais identifica o exercício dos direitos civis e políticos, pois a falta
de educação acarreta o desconhecimento e consequente isenção de questionamentos acerca de
direitos vinculados à pessoa.356
No caso brasileiro houve uma excessiva valorização do Poder Executivo em
detrimento dos demais poderes, sendo esse merecimento atribuído, substancialmente, através
da ditadura civil de Vargas e com a ditadura militar.
No sentir de José Murilo de Carvalho, a cidadania é um ―fenômeno histórico‖ e o
Brasil teve de seguir o seu próprio caminho, diferentemente do modelo inglês, em função
dessa trajetória histórica nacional que conduziu o surgimento dos direitos que a compõem.
Assim, a ―construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a
nação‖.357
Resta consolidado que para a construção da cidadania no Brasil foi dada maior
ênfase em um dos direitos, o social em relação aos demais, e foi observado que a sequência na
qual os direitos foram adquiridos, o social precedeu aos políticos e aos civis, e estes, por
derradeiro, a partir da Constituição de 1988.358
Ricardo Lobo Torres leciona ao complementar a ideia de que a noção de cidadania
resgatada pelos juristas e pela Constituição Federal pode contribuir para o equilíbrio entre
valores e princípios e para a sua concretização na era dos direitos, favorecendo, assim, a
ponderação destes direitos.359
Questionando acerca da cidadania, uma vez que o seu conceito é atrelado ao de
democracia efetivamente constituída, Maria das Graças Almeida Moura indaga se: ―O Estado
cidadão, ao instituir a cidadania como Princípio Fundamental, respeita a observância de que, o
355 LOPES, José Reinaldo Lima. Judiciário, democracia e políticas públicas. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 31, nº 122, p.255-265, maio/jul.1994, p.257. 356 Idem, p.209-220. 357 Idem, p. 11-12. 358 Cf. SANTOS, José Murilo dos, Op. cit., p.9-11. O indivíduo é considerado cidadão pleno quando for titular desses três direitos: civis, sociais e político. 359 TORRES, Op. cit., p. 329.
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interesse público deva ser o paradigma do estado e que os direitos e as garantias fundamentais
devam ser efetivados por ele, Estado cidadão‖.360
Essa indagação é pertinente na Administração Pública brasileira visto que os
valores enraizados da supremacia do interesse público se fazem reluzir na condução das
atividades funcionais do Estado e das expectativas dos cidadãos, possuidores que são de
dignidade humana.
2.4 – VALORIZAÇÃO DO CIDADÃO: PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
A Constituição Federal de 1988, ―batizada‖ pelo então presidente da constituinte,
Ulysses Guimarães, de a ―Constituição Cidadã,‖ preceitua no seu artigo primeiro que a
República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e
do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos
fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana, posicionando-as como direito
fundamental das pessoas.361
A Declaração Universal da ONU, antes mesmo da Constituição de 1988,
consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e em direitos,362 o que veio a
reforçar o princípio da igualdade, não permitindo tratamento discriminatório ou arbitrário.
A igualdade perante encargos públicos, sendo outra manifestação do princípio da
igualdade, deve seguir a seguinte orientação: ―impostos e restrições ao direito de propriedade
devem ser repartidos de forma igual pelos cidadãos‖ e no caso de existir um ―sacrifício
especial de um indivíduo ou grupo de indivíduos justificado por razões de interesse público,
deverá reconhecer-se uma indenização ou compensação aos indivíduos particularmente
sacrificados‖.363
Ser cidadão é ter em mente de que é sujeito de direitos. Direitos estes à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade de direitos, enfim, direitos civis, políticos e sociais. A prática da cidadania pressupõe o cumprimento de deveres também. O cidadão tem de ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e complexo organismo que é a coletividade, a nação, o Estado, e visando
360 MOURA, Maria das Graças Almeida. Estado, cidadão e cidadania. Campinas: Komedi, 2005, p. 93-94. 361 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 11 mai. 2013. 362 BRASIL, Declaração universal de direitos humanos da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em: 15 mai. 2013. 363 Cf. CANOTILHO, Op. cit., p. 431.
93
o bom funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição, chegando, assim, ao objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem comum.
364
O grande questionamento é se o interesse público sempre pode vir a superar o
interesse individual do cidadão. Perpassa por esta indagação o atual pensamento dos
doutrinadores administrativistas, uma vez que o valor da pessoa humana deve prevalecer, hoje
nitidamente presente através do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, e
que o Estado deve estar cônscio dos limites no uso da supremacia para que se alcance o
interesse do fim colimado, mantendo as rédeas do sistema organizado, democrático e não
anárquico. O fim deve ser a satisfação da coletividade sem que este fim se choque com os
interesses e valores fundamentais de cada um dos membros da sociedade.
Diante da relação Estado-cidadão, destaca-se que a supremacia exercida pelo
Estado deve ser mitigada em face do cidadão, pessoa detentora de direitos inerentes ao ser.
Em situações percebidas no cotidiano em que há violação de direitos, dentre tantas bases
jurídico-normativas apontadas na tentativa de enquadramento, tem sido o princípio da
dignidade da pessoa humana aquele que com mais harmonia sustenta os julgados nos casos
concretos.
Portanto, é pertinente discorrer sobre o princípio norteador do Direito que mais
intimamente ligado está ao presente trabalho, o princípio da dignidade da pessoa humana.
Na compreensão de Luís Roberto Barroso, a dignidade humana tendo suas raízes
na ética e na filosofia moral, é, originalmente, um valor, ―um conceito vinculado à
moralidade, ao bem, à conduta correta e à vida boa‖. Somente no século XX, após a Segunda
Guerra é que dignidade humana se tronou uma meta política , incorporando-se ao discurso
político das grandes potências de Estado, sendo um fim a ser alcançado pelas instituições
nacionais e internacionais.365
364 SANTANA, Marcos Silvio de. O que é cidadania. Disponível em: <http:// http://www.advogado.adv.br/estudantesdireito/fadipa/marcossilviodesantana/cidadania.htm>. Acesso em: 27 jun. 2012. 365 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Tradução: MELLO, Humberto Laport de. 1. Reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.61.
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A dignidade humana possui, nesse contexto, duas dimensões a serem
consideradas: interna, expressa no valor intrínseco ou próprio de cada indivíduo; e externa,
representando seus direitos, responsabilidades, assim como os deveres perante terceiros.366
Merece informar o destaque dado por Ingo Wolfgang Sarlet ao pensamento
sustentado por Kant:
[...] O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. Portanto, o valor de todos os objetos que possamos adquirir pelas nossas ações é sempre condicional. Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio(e é um objeto de respeito).
367
Para Ingo Wolfgang Sarlet, o pensamento filosófico de Kant em relação ao valor
intrínseco da dignidade permanece firme e abraçado pelos doutrinadores contemporâneos,
através do postulado antiutilitarista, no sentido ―[...] de que a dignidade da pessoa humana,
esta (pessoa) considerada como fim, e não como meio, repudia toda e qualquer espécie de
coisificação e instrumentalização do ser humano‖.368 O postulado antiautoritário foi exposto
por Luís Roberto Barroso quando esclarece que ―é o Estado que existe para o indivíduo, e não
o contrário‖. 369
Ainda, esse autor, informa que ―a concepção jusnaturalista diz que o homem pelo
simples fato de ser uma criatura humana por si só já seria titular de direitos que devem ser
respeitados pelo outro, pela sociedade e pelo Estado‖.370
Tem-se, ainda, na concepção kantiana que a autonomia ―é o elemento ético da
dignidade humana‖, como bem fundamenta Luís Roberto Barroso: ―É o fundamento do livre
arbítrio dos indivíduos que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e
de ter uma vida boa, é a autodeterminação, capacidade de fazer escolhas pessoais ao longo da
vida‖.371 Vale ressaltar, também, o valor comunitário da dignidade que representa o elemento
366 BARROSO, Op. cit., p.62. 367 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988, 9. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 40. 368 Idem, p.45. 369 BARROSO, Op. cit., p.77. 370 Idem, ibidem. 371 Idem, p.81.
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social da dignidade, através dos valores e crenças sociais do grupo social e das normas
impostas pelo Estado e ―enfatiza o papel do Estado e da comunidade no estabelecimento de
metas coletivas e de restrições de direitos e liberdades em nome de certa concepção de vida
boa‖.372
Certo é que a dignidade sempre foi, e continua sendo, tema de bastante
importância em qualquer sociedade. Todos os doutrinadores concordam que a dignidade da
pessoa humana é real e todos os dias as situações em que ocorre sua violação são facilmente
identificadas, seja pelo Judiciário, seja nos atos simples do dia a dia. Porém, o que não parece
fácil é elencar todas as possíveis afrontas à dignidade.
Cabe salientar que a dignidade é algo intrínseco à pessoa, pertencente a ela, mas
que dela não pode dispor, não podendo ser dada, nem trocada, nem vendida nem violada. Daí,
portanto, não há que se falar em recorrer ao Judiciário para resgatar dignidade, mas sim
recorrer ao Estado-juiz para que o Estado ou outra pessoa, quem a tenha violado, indenize o
ofendido (efeito punitivo-educativo) pelo mal que lhe foi causado e, no caso do Estado,
também retome a posição-dever de prestador de condições que preservem a dignidade
humana. Não é outro o comportamento da magistratura diante do caso concreto.
Com esse mesmo posicionamento, Ingo Wolfgang Sarlet discorre acerca da
dignidade da pessoa humana:
[...] Qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana, pode e (deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo [...].ser criada, concedida ou retirada (embora possa ser violada),[...]373
Sendo a dignidade intrínseca ao homem, ela existe antes e independentemente do
direito, já que o direito é fato social e, portanto, somente se manifestando diante da
necessidade e realidade de uma sociedade.
Uma dimensão trazida pela doutrina para o estudo da dignidade da pessoa humana
é a histórico–cultural, na qual toda sociedade tem seus padrões de comportamento definidos e
que podem ser diferentes de outras sociedades no tempo e espaço.
Diante da globalização, a dimensão histórico-cultural é tema que deve ser
enfrentado. Pois, partindo da concepção de Kant, a dignidade é algo que nasce com o
indivíduo e dele não se descola, sendo assim não seria certo admitir que uma mesma ação
para um brasileiro atingisse sua dignidade e para um americano não.
372 BARROSO, Op. cit., p.87-88. 373 SARLET, Op.cit., p.52-53.
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Logo, nos dias de hoje, ainda é possível identificar sociedades civilizadas que
adotam, como normais, legais e dignos, diferentes padrões de comportamento. Portanto,
grande é a importância que o ordenamento jurídico, expressamente, eleve à categoria de
direito fundamental a dignidade da pessoa humana. Posição adotada pelo Brasil e que não é
frequente em outras nações. Ou seja, só será um Estado Democrático de Direito se atuar
conforme os princípios fundamentais; é o Estado em função da pessoa humana e não o
contrário.
Acertada a análise feita por Ingo Wolfgang Sarlet que traz uma reflexão sobre o
tema e informa que não se pode alcançar a justiça sem a preservação da dignidade humana:
[...] Onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta(a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.374
Continuando a desvendar o princípio da dignidade humana, tem-se que o
desrespeito à dignidade humana se manifesta de forma ativa ou passiva. Ativa quando através
de uma ação, intencional ou não, provoca lesão à dignidade do outro. Passiva quando aquele
que tem o dever de proteger e não protege, concorrendo indiretamente para a lesão. Esta
última pode ser mais bem entendida observando o caso do Estado que tem como dever
promover condições para que todos tenham garantida sua dignidade, seja através de moradia,
trabalho, educação, dentre outros, e não o faz.
Pode-se verificar pela leitura dos artigos da Constituição Federal de 1988 que
fazem referência expressa à dignidade da pessoa humana que, em nenhum momento, o
legislador teve a intenção de atribuir ao Estado o dever de conceder dignidade, mas fica claro
que a intenção foi atribuir ao Estado o dever de proteger e promover o desenvolvimento da
pessoa humana, desta forma conservando algo que já é seu, a dignidade.
Ainda observando a relação entre a República e a dignidade da pessoa humana,
tem-se:
―Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve ao homem, não é o homem que serve os
374 SARLET, Op. cit., p. 71.
97
aparelhos político-organizatórios. A compreensão da dignidade da pessoa humana associada à idéia de homo noumenon justificará a conformação constitucional da República Portuguesa onde é proibida a pena de morte (artigo 24.º) e a prisão perpétua (artigo 30.º/1). A pessoa ao serviço da qual está a República também pode cooperar na República, na medida em que a pessoa é alguém que pode assumir a condição de cidadão, ou seja, um membro normal e plenamente cooperante ao longo da sua vida.‖375
Desse feixe de ideias, concebe-se dignidade como um entrelaçamento de sentidos
que expressam responsabilidades e respeito, entre pessoas e Estado, assegurando-se um
mínimo para que a vida seja digna.
Sendo assim, um importante, porém difícil, ponto a ser analisado diz respeito ao
grau de importância do princípio da dignidade humana diante dos outros princípios também
abraçados pela Lei Maior.
No entendimento de Jussara Maria Moreno Jacintho,376 a Constituição brasileira é
formada por vários sistemas que visam a coesão e a harmonia da interpretação jurídica, sendo
esta conduzida com respeito aos direitos fundamentais, dentre eles, em especial, a dignidade
da pessoa humana, norma constitucional principiológica. Assume a dignidade, pois, duas
funções: é valor segundo a hermenêutica e é norma instituidora de direito material
consubstanciado em norma-princípio ou norma-regra.377
Comungando com as ideias, Luís Roberto Barroso, diz ser a dignidade humana
um valor fundamental, mas que não deve ser tomado de forma absoluta:
Valores, sejam políticos ou morais, adentram no mundo do direito usualmente assumindo a forma de princípios.378 E embora direitos constitucionais e princípios constitucionais frequentemente se justaponham, esse não é exatamente o caso aqui. A melhor maneira de classificar a dignidade humana é como princípio jurídico com status constitucional, e não como um direito autônomo, [...].379
375 CANOTILHO, Op. cit., p.225. 376 JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade humana princípio constitucional. Curitiba: Juruá, 2009, p.33-34. 377 No mesmo sentido de Jacintho, observa Luís Roberto Barroso, que o primeiro papel da dignidade humana é funcionar como fonte de direitos e o segundo é o interpretativo, sendo a dignidade humana, núcleo essencial dos direitos fundamentais como a igualdade, a liberdade, o direito de voto; sendo assim, ela vai necessariamente informar a interpretação de tais direitos constitucionais, ajudando a definir o seu sentido nos casos concretos. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Tradução: MELLO, Humberto Laport de. 1. Reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.66. 378 Transcrição na nota 297: ―Os valores, é claro, também subjazem às regras. Mas, nesse caso, o julgamento valorativo já foi feito pelo legislador quando criou a regra, considerada como uma norma objetiva que prescreve um determinado comportamento. Os princípios, por outro lado, são normas mais abstratas, que oferecem razões, deixando mais espaço para os juízes e as cortes determinarem o seu significado nos casos concretos‖. BARROSO, Op. cit., p.64. 379 Idem, p.64.
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Argumenta, ainda, o autor que a dignidade humana como princípio, também não
deve ser tomado de forma absoluta uma vez que se um princípio constitucional pode estar por
trás tanto de um direito fundamental quanto de uma meta coletiva e se colidirem entre si,
ocorreria um impasse. Então para solucionar o caso, deve tomar a dignidade humana como
princípio e valor fundamental com precedência na maior parte dos casos, aliando-se ao fator
cultural e político.380
Visão prática é admitir que ―o princípio da dignidade da pessoa humana, e não só
ele, como todo princípio, deve cumprir uma função integradora e hermenêutica, [...] na
medida em que servem de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não apenas
dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o ordenamento
jurídico‖.381
Corre nesse mesmo sentido a percepção de Lygia Maria de Godoy Batista
Cavalcanti quando afirma que a ―aplicação do princípio da dignidade humana é um
mandamento derivado da ordem jurídica interna e da ordem jurídica externa e que seu
referencial ético justifica a sua posição superior no ordenamento jurídico e a sua capacidade
de sobrepor-se, inclusive, à norma em caso de conflito‖.382
Ressaltando esse posicionamento, na função hermenêutica do princípio da
dignidade da pessoa humana, pode-se afirmar num dever de interpretação conforme a
Constituição e os direitos fundamentais, estando bem afinado com o pensamento de Juarez
Freitas que declara que ―em favor da dignidade não deve haver dúvida‖.383
Ainda, cumpre apontar a importância da aplicação do princípio da dignidade da
pessoa humana não só quando ocorrer violação, mas, sobretudo, no dia a dia, exigindo o
cumprimento de ações preventivas do Estado, direcionadas à preservação da dignidade. Nesse
sentido aponta Lassalle em sua tese fundamental entendendo que questões constitucionais não
são questões jurídicas, mas sim questões políticas.384
380 BARROSO, Op. cit., p.66-67. 381 SARLET, Op. cit., p. 95. 382 CAVALCANTE, Lygia Maria de Godoy Batista. Direitos Humanos: essência do direito do trabalho. Coordenadores SILVA, Alessandro da; MAIOR, Jorge Luiz Souto; KENARIK, Boujikian Felippe e SEMER, Marcelo. São Paulo: LTr, 2007, p. 141. 383 FREITAS, Juarez. Tendências atuais e perspectivas da hermenêutica constitucional, in: AJURIS nº 76, 1999, p.406 apud SARLET, Op. cit., p. 100. 384 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991, p.9.
99
Nesse compreender, a busca da justiça não deve se distanciar da ordem e nem da
realidade, essas duas são imanentes e o princípio da dignidade da pessoa humana é
ingrediente essencial para atingir o ―céu na terra‖.385
Segundo Jussara Maria Moreno Jacintho,386 deve-se lembrar da grande
contribuição que a dogmática dos direitos fundamentais, no caso específico, a dignidade da
pessoa humana fornece ao se estabelecer como fronteira à atuação do Estado diante da sua
intervenção na esfera individual de cada um de nós indivíduos, cidadãos.
Nesse quadrante de ideias, a dignidade da pessoa humana não poderá ser
conceituada de maneira inflexível, uma vez que uma definição dessa natureza não harmoniza
com o pluralismo e a diversidade de valores que se manifesta nas sociedades democráticas
contemporâneas, razão pela qual o seu conceito deve ser visto como processo permanente de
construção e que o conteúdo da noção de dignidade da pessoa humana, quanto ao seu conceito
jurídico-normativo, clama por uma constante concretização e delimitação da práxis
constitucional, sendo atribuída essa função aos órgãos estatais.387
Assim, o seu conteúdo deve ser determinado ―no contexto da situação concreta da
conduta estatal e do comportamento de cada pessoa humana‖; nesse sentir, a dignidade
humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais, da comunidade em geral, de
todos e de cada um, condição dúplice que aponta para uma paralela e conexa dimensão
defensiva e prestacional da dignidade.388
Nesse toar, enfatiza o autor diante de algumas das funções presentes nos direitos
fundamentais, a função limitadora que é imposta ao Estado:
[...] A segunda função – já mencionada – relaciona-se com os limites impostos ao Estado e ao poder, tanto, quando estes reconhecem e garantem os direitos fundamentais, como, quando a realidade denominada de Estado democrático de direito necessita da materialização daqueles para se legitimar [...]389
385 BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p.37. O autor informa que o humanismo implica em atribuir a humanidade o destino de viver no melhor dos mundos. 386 JACINTHO, Op. cit., p.69. 387 SARLET, Op. cit., 2012, p. 51-52. 388 Idem, p.58. Também comenta sobre a dignidade, Irene Patrícia Nohara quando ensina que a dignidade assumiu dupla dimensão: de limite: à ação estatal violadora de direitos fundamentais e de tarefa: onde o Estado foi visto como prestador de serviços públicos, e, portanto, viabilizador de direitos sociais. NOHARA, Irene Patrícia. Reflexões críticas acerca da tentativa de desconstrução do sentido da supremacia do interesse público no direito administrativo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. (Coord). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p.129. 389 Idem, p.69.
100
Aproveitando esse ensinamento, vale registrar para o presente estudo, a opinião de
Robert Alexy quando diz que o direito fundamental deve manifestar cinco traços,390 dentre os
quais, o de ser vinculado diretamente à dignidade humana.
Em todas as situações, é a necessária ponderação dos bens em causa, com vistas à
proteção eficiente da dignidade da pessoa, aplicando-se também a regra da proporcionalidade,
que, por sua vez, igualmente, encontra-se conectado ao princípio da dignidade.391
Ainda, a dignidade da pessoa humana poderá ser enaltecida quando da
necessidade de manutenção do mínimo existencial, também devendo ser encarada diante dos
casos em concreto da pessoa diretamente atingida, não podendo ser diluída no contexto
coletivo, uma vez que visa ao comprometimento de condições indispensáveis para uma vida
com dignidade.392
Ressaltando a fundamentalidade acerca da dignidade da pessoa humana no
sistema jurídico, tem-se que ela aparece como um princípio unificante, razão e fim do Estado,
e que vem ligada à ideia de respeito e de solidariedade entre os homens, assim tornados
pessoas.393
Lecionando acerca da importância desse princípio sob exame, Flávia Moreira
Guimarães Pessoa394 enfatiza que ―o princípio da dignidade humana é essencial dentro do
contexto de análise dos direitos fundamentais. Ele, o princípio, como valor fundamental,
exerce uma atração no conteúdo dos demais direitos fundamentais. Com efeito, sem o
reconhecimento dos direitos fundamentais, nega-se a própria dignidade da pessoa humana‖.
Nessa pegada, Marcos César Amador Alves sustenta que:
A dignidade da pessoa humana é, fora de questionamento, o alicerce fundamental do pensamento social, político e filosófico, sendo sua proteção o conteúdo central de toda a construção jurídica contemporânea. Sua tutela é a causa maior da construção dos direitos humanos.395
390 Os cinco traços são: 1) ser vinculado diretamente à dignidade da pessoa humana; 2) portanto concernir a todos os seres humanos; 3) ter valor moral; 4) ser suscetível de promoção ou garantia pelo direito; e 5) pesar de modo capital para a vida de cada um. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales apud FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.123. 391 Cf. SARLET, Op. cit, p. 137-138. O princípio da proporcionalidade será detalhado no próximo capítulo. 392 Idem, p.145-146. 393 NEGREIRO, Teresa. A dicotomia público-privado frente ao problema da colisão de princípios. In: Teoria dos direitos fundamentais. TORRES, Ricardo Lobo (Org.), 2. Ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro, 2009, p.368. 394 PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Curso de Direito constitucional do trabalho: uma abordagem à luz dos direitos fundamentais, Salvador: Editora JvsPodivm, 2009, p.28-29. 395 ALVES, Marcos César Amador. Trabalho decente sob a perspectiva dos direitos humanos. In: Direitos humanos e direito do trabalho. PIOVESAN, Flávia; CARVALHO, Luciana Paula Vaz de. (Coord). São Paulo: Atlas, 2010, p. 348.
101
É, pois, a dignidade humana o princípio constitucional que se sobrepõe a todos os
demais princípios no modelo de Estado de Direito Democrático brasileiro, que foi introduzido
a partir da Constituição de 1988, por ser a garantidora dos direitos do indivíduo, da evolução
da pessoa humana. É também através da dignidade da pessoa humana que devem ser
mitigados os demais princípios que correrem para o bem-estar e para suas conquistas do
cidadão frente o autoritarismo do poderio estatal limitando as relações que os tenham como
sujeitos de direito.
Numa visão prática, a questão por vezes patente no âmbito teórico, enfrenta
dificuldades quando da solução de casos concretos. Tais dificuldades, entretanto, não
desobriga o aplicador do direito de solucioná-los a contento.
2.4.1 – Dignidade da pessoa humana como argumento da inexistência da supremacia do
interesse público sobre o privado
Relativamente aos administrativistas, em geral, não se percebe qualquer
discordância acerca da essencialidade dos direitos e garantias fundamentais na Constituição
Brasileira, destacando-se a dignidade da pessoa humana. A razão desta harmonia acerca
desses valores constitucionais se deve em função da posição ocupada no texto constitucional,
pois se materializam nos primeiros capítulos, inferindo-se, assim, a preocupação dos
constituintes originários em resguardar e em proteger o indivíduo.396
Na sequência da análise da importância dos direitos fundamentais no contexto
constitucional, sendo essa mais uma anuência entre os autores, reconhece-se o vasto catálogo
de direitos sendo posto à proteção do indivíduo. Identificam-se, a título de exemplo, todo o
396 Cf. Flávia Piovesan comenta acerca da nova tipologia dos conteúdos na Carta de 1988 que privilegia o cidadão nos primeiros dispositivos: ―um Direito inspirado pela ótica do Estado, radicado nos deveres dos súditos, transita-se a um Direito inspirado pela ótica da cidadania, radicado nos direitos dos cidadãos‖. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12 ed. São Paulo: Saraiva. 2011, p.165. Cf. Daniel Sarmento, ―[...] a Constituição inverteu o que era até então a tradição nacional, e consagrou no seu corpo os direitos fundamentais antes das normas relacionadas à estrutura, aos poderes e às competências do Estado. Tal fato não foi mera coincidência. Ele é sintoma de uma clara opção do constituinte, que perfilhou a idéia de que os direitos fundamentais não são dádivas do poder público, mas antes a projeção normativa de valores morais superiores ao próprio Estado‖. SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, p. 102-103.
102
art. 5º e todo o art. 7º da Constituição Federal como garantia fundamental ao regime
democrático de direito, prevendo inclusive o rol dos direitos sociais.
Para demonstrar a força vinculante e dirigente dessas espécies de direitos,397 o
texto constitucional traz expressamente no art. 5º que: ―§ 1º - As normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata‖.398
Assim, tecidas essas considerações unânimes da doutrina administrativista acerca
da importância exercida pelos direitos fundamentais na manutenção do Estado Democrático
de Direito, importa para o texto, enfatizar que esses direitos garantem o cidadão, tutelando os
seus interesses particulares perante o poder estatal através dos direitos de defesa (ou de
liberdades) representando normas de competência negativa para o Estado mesmo que esteja
buscando a realização do interesse público.399
Como a dignidade da pessoa humana é o princípio norteador do
constitucionalismo moderno, o que se assenta nos tribunais é a predominância, ainda, do
interesse público sobre o particular, forçoso se faz elucidar algumas opiniões acerca dessas
duas forças normativas constitucionais.
No dizer de Marçal Justen Filho relacionando o direito administrativo com a
dignidade humana:
São os direitos fundamentais que constituem o regime de direito administrativo em todos os níveis do ordenamento jurídico.
O regime de direito administrativo e o exercício do poder político apenas adquirem sentido completo e perfeito quando relacionados à supremacia da dignidade humana (CF/88, art. 1º, III), como síntese dos direitos fundamentais.400
Sob esse enfoque dado à supremacia da dignidade humana, à luz dos direitos
fundamentais, no regime de direito administrativo, não há como manter viva a ideia que
prevalece nesse ramo do direito através de um dos seus pilares: a supremacia do interesse
397 PIOVENSAN, Op. cit., p. 35/36 77/78 398 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 11 jun. 2013. Daniel Sarmento continua afirmando: ―O constituinte também não quis que o generoso e não exaustivo elenco dos direitos que reconhecera quedasse inefetivo, consagrando assim o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais‖. SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2005, p. 103. 399 Lembrando que os direitos de defesa protegem o cidadão contra ação negativa do Estado e os direitos a proteção, o Estado protege o indivíduo realizando um interesse particular, ação positiva de prestar do poder público. 400 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 140-143.
103
público, uma vez estando consagrada a Carta Constitucional de 1988, precursora e garantidora
que é desses direitos em prol do cidadão.
Reportando-se a Humberto Bergmann Ávila, no momento em que analisa o
debatido princípio da supremacia do interesse público sobre o particular quantos aos limites
normativos, tem-se que:
A Constituição brasileira institui normas-princípios fundamentais, também partindo da dignidade da pessoa humana: direitos subjetivos são protegidos, procedimentos administrativos garantidos; o asseguramento da posição dos indivíduos e de seus interesses privados é estabelecido frente ao concorrente interesse público; etc. A Constituição brasileira, muito mais do que qualquer outra, é uma Constituição cidadã, justamente pela particular insistência com que protege a esfera individual e pela minúcia com que define as regras de competência da atividade estatal.401
Corroborando com esse pensamento, Paulo Ricardo Schier faz algumas
considerações que merecem ser relacionadas nessa dissertação, como:
Portanto, é a partir dos direitos fundamentais (pois são os direitos vinculados ao homem) que se deve compreender uma Constituição. Esses é que justificam a criação e o desenvolvimento de mecanismos de legitimação, controle e racionalização do poder. Estado de Direito, princípio da legalidade, separação dos poderes, técnicas de distribuição do poder no território e mecanismos de controle da Administração Pública, por exemplo, são instrumentos que giram em torno da proteção daqueles direitos fundamentais que, embora historicamente tenham se desenvolvido e se modificado, permaneceram como núcleo legitimador do Estado e do Direito.
Assim, os direitos, liberdades e garantias fundamentais não são compreendidos como ―concessões‖ estatais e nem tampouco podem ser vistos como um ―resto‖ de direitos que só podem ser afirmados quando não estejam presentes outros interesses mais ―nobres‖, quais sejam, os públicos. Ao contrário, os direitos fundamentais ―privados‖ devem integrar a própria noção do que seja o interesse público e este somente se legitima na medida em que nele estejam presentes aqueles. A regra, portanto, é de que não se excluem, pois compõem uma unidade normativa e axiológica. 402
Percebendo claramente que o seu pensamento se assenta pela rejeição à
supremacia do interesse público sobre o privado e reconhecendo, entretanto, a existência do
regime jurídico do direito administrativo sustentado no princípio do interesse público
constituído dos interesses individuais.403
401 ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular In: SARMENTO, Daniel (Org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 186-187. 402 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 222-228. 403 Idem, p. 242.
104
Se for defendida a possibilidade de vigência do princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular sob uma visão mais amena, fraca,404 ter-se-ia num conflito
de interesses, por certo, uma primazia prima facie ao invés de uma primazia absoluta do
interesse público. Entretanto, esse entendimento não se mostra coerente com o sistema
constitucional vigente por fragilizar os direitos fundamentais, pois estes já iniciariam em
franca desvantagem em relação aos interesses públicos. Poderia, por outra banda, se pensar
em primazia prima facie dos direitos fundamentais conforme leciona Robert Alexy, tendo em
vista que a Constituição brasileira visa defender bens jurídicos essenciais à dignidade humana
frente os Poderes Estatais, inclusive se estiverem perseguindo interesses coletivos.405
Desse contexto, a entronização da supremacia do interesse público num patamar
hierárquico privilegiado se mostra em descompasso no sistema constitucional brasileiro, em
que há um núcleo essencial em defesa dos direitos fundamentais, centralizado na dignidade da
pessoa humana.
Assim, quando contraposto um direito fundamental e tendo em vista à supremacia
da dignidade humana, o interesse público não se torna melhor dotado com a referência à sua
supremacia, devendo desprender-se da posição jurídica que lhe foi imposta, como princípio
constitucional implícito, mas se limitando à realização da finalidade pública em si.
Em suma, abstrai-se a incompatibilidade existente entre a supremacia do interesse
público e a dignidade humana, reiterando a prevalência existente no texto constitucional dos
direitos fundamentais, como modelo jurídico especial de proteção.
Visando enfrentar essa aparente dicotomia existente entre o público406 e o privado,
como dois campos que traduzem interesses distintos, diante de uma relação entre o Estado e o
cidadão, o tema que se ocupará o próximo capítulo procurará demonstrar que essa força da
pessoa humana possuidora de direitos poderá mitigar ou até mesmo refutar a sobreposição
estatal abstrata.407
404 Cf. antes mencionado o pensamento de Fábio Medina Osório. 405 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 101-102. 406 Interesse público é compreendido como o somatório de interesses individuais ou cf. MELLO: ―interesse público, ou seja, o interesse do todo, é ‗função‘ qualificada dos interesses das partes‖. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. A noção jurídica de ―interesse público‖. In: Grandes temas de direito administrativo. 1. ed. 2. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 182. 407 A sobreposição estatal absoluta é entendida pela supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
105
CAPÍTULO III
3 – A JUSTA MEDIDA: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA VERSUS CIDADÃO
3.1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Nos capítulos anteriores, foi identificada a relevância do dito princípio da
supremacia do interesse público para a Administração e os pontos controversos que o
desconstrói doutrinariamente diante do reconhecimento do cidadão como sujeito de direito da
relação do direito administrativo, diante da identificação da trajetória e da contextualização
dos direitos fundamentais para a consagração da cidadania plena através dos direitos civis,
políticos e especialmente os sociais, inclusive analisando a situação nacional. Além de ser
núcleo desses direitos fundamentais, a dignidade humana é argumento que dá lastro à
inexistência desse combatido princípio.
Para a busca do bem comum e do atendimento da finalidade pública, a
Administração Pública se inspira nos princípios fundamentais e administrativos que são
norteadores da conduta do Estado quando do exercício de atividades administrativas.
Servindo-se dos conhecimentos dos capítulos anteriores e com a necessidade de
maior embasamento no tema, justifica-se conhecer a estrutura das normas jurídicas, princípios
e regras, elencando as suas principais diferenças, mostrando sua essencialidade para a análise
teórica e prática da regra da proporcionalidade, medida de ponderação de valores.
Quando do conflito no ordenamento jurídico entre dois ou mais princípios, o
intérprete deve observar o grau de preponderância entre eles utilizando-se do critério de
ponderação de valores (ou de interesses) através da regra da proporcionalidade,
estabelecendo-se os seus elementos de adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito, objetivando que nenhuma limitação a direitos fundamentais resulte em
desproporcionalidade, tendo em vista que os princípios são revestidos de razão ou valor.
Tomando por base o estudo de Robert Alexy acerca da Teoria dos Direitos
Fundamentais em que os princípios passam a ser categorizados como espécies de normas, e
não mais como mandamentos nucleares e sistematizados pela dogmática jurídica, passam ser
oriundos das Constituições e das leis e possuem aplicação diferenciada das regras, também
106
espécies de norma,408 mostrando-se, pois relevante para o presente capítulo, a análise
diferenciadora entre essas duas espécies de norma para melhor enquadrar a proporcionalidade.
Aplica-se, pois, essas normas em uma ordem máxima definida e funcionando
como indicadores de medida e de controle tanto da decisão judicial como dos atos legislativos
e administrativos. Sendo assim, só se poderá considerar válida a conduta administrativa se
estiver compatível com este critério de valoração quando da ocorrência de tensão entre dois
princípios.
O desenvolvimento do capítulo iniciará observando as principais diferenças
conceituais existentes entre regras e princípios, relacionando-se com a desconstrução do dito
princípio da supremacia (3.2), além de elaborar suporte teórico para a manutenção da
supremacia do interesse público sobre o particular como princípio jurídico (3.2.1); em
seguida, será discorrido sobre a regra da proporcionalidade para o ordenado jurídico (3.3),
destacando-se o fundamento de Robert Alexy para essa regra (3.3.2) e sua incompatibilidade
com a supremacia do interesse público (3.3.3), além de apresentar situações práticas de
enfrentamento de colisão envolvendo a Administração Pública e o cidadão (3.4), sublinhando,
assim, as atuais controvérsias administrativas (3.4.2) e alguns casos práticos (3.4.3).
3.2 – PRINCÍPIOS E REGRAS, SUAS DISTINÇÕES ESSENCIAIS
O fascínio motivado pela promulgação da Constituição de 1988 que respaldou a
reivindicação de novos direitos e garantias constitucionais, sendo traduzidos em inúmeras
vezes em princípios fundamentais, favoreceu sobremaneira o debate sobre os princípios, em
função da sua estrutura, importância, especialidade ou matéria.409
Durante esses vinte e cinco anos de vigência da Carta Cidadã, mostra-se ser
corriqueiro atribuir como princípios, textos que levam a entender como normativos, mas cujo
conteúdo, de tão escasso, não revela a norma que supostamente contêm.410
408 Cf. CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação. A teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filósofos. Curitiba: Juruá, 2009, p.193. 409 Virgílio Afonso da Silva afirma que esse critério, o estrutural adotado por Alexy, para distinguir princípios de regras não leva em consideração nem fundamentalidade, nem generalidade, nem abstração, nem outros critérios materiais, imprescindíveis nas classificações tradicionais, podendo ser que um tradicional princípio, observando os critérios de sua teoria, seja uma regra. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 30. 410 Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012, p.63.
107
Hodiernamente, os operadores do Direito estão cada vez mais dispostos a invocar
a utilização dos princípios como fonte de Direito, daí a necessária distinção das regras,
visando à produção de decisões mais precisas diante da indeterminação que muitas das vezes
o emprego de um princípio pode causar.
É verdade que o importante não é saber qual a denominação mais correta desse ou
daquele princípio. O decisivo, mesmo, é saber qual o modo mais seguro de garantir sua
aplicação e sua efetividade. Ocorre que a aplicação do Direito depende precisamente de
processos discursivos e institucionais sem os quais ele não se torna realidade.411
Considerando as lições iniciais de Humberto Ávila, têm-se que princípios e regras
são normas de primeiro grau, diferenciando-os dos postulados normativos que são
considerados normas de segundo grau uma vez que se qualificam como normas sobre
aplicação de outras normas.412 Assim, ao lançar a proposta conceitual das regras e dos
princípios, o autor leciona que:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a descrição conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.413
Passando a identificar as espécies de normas, Luis Prieto Sanchís assevera que
princípios e regras significam:
En suma, la ―apertura‖ de los principios representaria una suerte de delegación constitucional o legal a fin de que sea el juez quien fabrique la premisa mayor de su razonamiento; representaría, por tanto, un fortalecimiento de la posición del intérprete.
La diferencia estructural o morfológica talvez se hace más patente en la segunda acepción, es decir, en las directrices o mandatos de optimización, cuya fragmentariedad afecta a la consecuencia jurídica: unas normas, las reglas, sólo admiten un cumplimiento pleno, mientras que otras, los principios, admiten un cumplimiento gradual.414
411 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.24. 412 Idem, p. 122. 413 Idem, p. 78-79. 414 SANCHÍS, Luis Prieto. Ley, principios, derecho. Madrid: Dykinson, 1998, p.60.
108
Virgílio Afonso da Silva propõe uma classificação que distingue os princípios das
regras de acordo com o grau: teorias com distinção forte, teorias com distinção débil e teorias
que rejeitam a possibilidade de distinção. Com relação à teoria de distinção forte, tem-se que
princípios e regras possuem estruturas lógicas diversas e também forma de aplicação diversa,
não cabendo diferenciá-los com relação à abstração. A segunda teoria, teoria com distinção
débil, parte do pressuposto de que a diferença entre ambos não é assim tão marcada, havendo
somente uma diferenciação no grau, indicando que o termo ―princípio‖ induz a uma maior
generalidade e importância do que o termo ―norma‖. Por fim, a terceira, que rejeita a
possibilidade de distinção, defende que ambos, princípios e regras, possuem as mesmas
qualidades lógico-deônticas.415
Percebe-se, assim, nas ideias desse autor que o princípio é concebido de acordo
com o nível de fundamentalidade diante do ordenamento jurídico.
Lecionando acerca dos princípios constitucionais, Luís Roberto Barroso destaca o
papel prático dos princípios no ordenamento jurídico constitucional, enfatizando a sua
finalidade ou destinação: de início, cabe embasar as decisões políticas fundamentais tomadas
pelo constituinte e expressar valores superiores que inspiram a criação ou reorganização de
um Estado. No segundo lugar, os princípios funcionam como um fio condutor dos diferentes
segmentos do Texto Constitucional, dando unidade ao sistema normativo e por fim, os
princípios se dirigem aos poderes estatais, condicionando a atuação dos poderes públicos e
pautando a interpretação e a aplicação de todas as normas jurídicas vigentes.416
Vale questionar a supremacia diante do papel prático do interesse público na
atuação do Estado. No manejo jurídico clássico desse refratário princípio, não se dá margens a
uma segunda interpretação, somente a de que há a superioridade do interesse público sobre o
particular, tendo como um dos fundamentos para essa afirmação, o limite conceitual de
princípio jurídico.
Sob influências das lições de Josef Esser e Karl Larenz, Humberto Ávila propõe
que a distinção entre regras e princípios seja dada em função do fundamento normativo para a
tomada de decisão, havendo, assim, uma distinção qualitativa e que os princípios sejam
pensamentos diretivos de uma regulação jurídica existente ou possível, mas que ainda não são 415 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011, p.31. A teoria de Robert Alexy se enquadra na classificação que propõe distinção mais forte e que será utilizada como referencial na dissertação, princípio como mandamento de otimização. 416 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 145.
109
regras suscetíveis de aplicação, na medida em que lhes falta o caráter formal de proposições
jurídicas, isto é, a conexão entre uma hipótese de incidência e uma consequência jurídica‖.417
Contextualizando a invocação a Canaris, esse autor informa que duas
características os diferenciam: o conteúdo axiológico uma vez que ―os princípios, ao contrário
das regras, possuiriam um conteúdo axiológico explícito e careceriam, por isso de regras para
sua concretização‖; apresenta, ainda, uma segunda característica de distinção que é o ―modo
de interação com outras normas: os princípios, ao contrário das regras, receberiam seu
conteúdo de sentido somente por meio de um processo dialético de complementação e
limitação‖.418
Mormente a teoria desse citado autor sofre grande influência de dois outros
juristas: Ronald Dworkin e Robert Alexy dada à repercussão para a interpretação do Direito, e
tendo em vista que as leis mostram-se incapazes de solucionar os problemas jurídicos
decorrentes das relações do cidadão, inclusive dele com o poder estatal.
Para Ronald Dworkin, tem-se que o sistema de normas é dicotômico que se
diferenciam entre si através de regras e de princípios, estes necessários à fundamentação dos
casos complexos em que o positivismo, através das regras, não consegue resolver.419 As
regras são reconhecidas porque são aplicadas ao modo tudo ou nada, enquanto que os
princípios são aplicados segundo a dimensão de peso, assim, então, lecionando:
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.
420
Depreende-se, assim, que a aplicação da regra não pode ser dada de modo
gradual, mas no tudo ou nada, no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é
preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é
417 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros. 2008, p.35-36. 418 ESSER, Josef. Grundsatz und norm in der richterlichen fortbildung des privatrechts, 4. tir, p.51 apud Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros. 2008, p.35. 419 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p36. 420 Idem, p. 39.
110
considerada válida.421 As regras podem ter exceções, mas estas devem incorporar os
enunciados das regras.422
Para esse autor, os princípios não determinam absolutamente a decisão, mas
somente contêm fundamentos que devem ser conjugados com outros fundamentos
provenientes de outros princípios. Prossegue ensinando o fundamento do princípio jurídico
através do exemplo que o diferencia de política, em que princípios descrevem direitos e
políticas descrevem metas.423
Nesse conjunto de informações, Ronald Dworkin enfatiza que os argumentos de
princípios se predispõem à defesa de direitos do cidadão, enquanto argumentos políticos se
propõem à defesa de interesses da coletividade.424 Para a dissertação, poderiam ser
considerados argumentos de princípios os direitos fundamentais, especialmente a dignidade
do cidadão, enquanto que argumentos políticos são os interesses públicos do Estado, ditos
como coletivos.
O autor considera, ainda, que se houver colisão entre regras, uma delas deve ser
considerada inválida e se houver colisão entre princípios, deve verificar a dimensão do peso
atribuído a cada princípio e aquele que apresentar maior peso se sobreporá ao outro, sem
invalidá-lo.425
Mostra-se forçoso para a dissertação analisar a compatibilidade ou
incompatibilidade do debatido princípio da supremacia do interesse público sobre o particular
de acordo com o conceito de princípio jurídico, derivando daí a necessidade de maior
detalhamento acerca da teoria de Robert Alexy que está sendo acolhida como fundamentação
para a desconstrução desse dito princípio.
Partindo dessa ideia de que a diferença entre princípios e regras se baseia numa
diferenciação quanto à estrutura lógica e não na distinção de grau, e aprofundando as ideias de
Ronald Dworkin, Robert Alexy propõe a ―diferenciação, segundo a qual os princípios
jurídicos consistem apenas em uma espécie de normas jurídicas por meio da qual são
estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades
normativas e fáticas‖.426
421 DWORKIN, Op. cit., p.39. 422 Idem, p.40. 423 Idem, p.40-41. 424 Idem. 425 Idem, p.42-43. 426 Idem, p.37.
111
Conforme já antecipado em capítulo anterior, a distinção entre esses tipos de
normas se dá no plano qualitativo. Princípios são mandamentos de otimização, que ordenam
que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas
apresentadas. Ensejam, assim, diferentes graus de satisfação do que comandam. As regras, de
outro modo, representam determinações, observáveis somente na exata medida do que
exigem.427
A diferenciação entre as duas espécies normativas fica mais clara se examinar as
reações observáveis nas colisões entre princípios e nos conflitos entre regras.
O embate entre regras se resolve pela adição, em uma das regras, de uma cláusula
de exceção que elimine o conflito ou pela declaração de invalidade de uma das regras, o que
pode ser feito com base nos consagrados critérios de solução de antinomias. Os conflitos entre
regras se dão na dimensão da validade.428
Quando da colisão de princípios tenta-se obter a precedência de um princípio
sobre o outro, sob determinadas condições presentes no caso concreto. Caso sejam alteradas
as condições, a relação de precedência não necessariamente se mantém.429 Tensionados dois
princípios, busca-se definir qual dos dois interesses neles consagrados carrega maior peso no
caso concreto. Em conformidade com as lições de Robert Alexy, a tensão: ―não pode ser
solucionada com base em uma precedência absoluta de uma desses deveres, ou seja, nenhum
desses deveres goza, por si só, de prioridade‖, 430 mas observando ―uma relação precedência
condicionada‖.431
Os princípios conflitantes restringem mutuamente as suas possibilidades jurídicas
de aplicação. Em face deste impasse, cabe ao intérprete, à luz do caso concreto, fixar as
condições sob as quais um princípio deve ter precedência sobre o outro. Ou seja, comparar os
pesos de princípios colidentes significa aferir as razões que levam um deles a prevalecer em
face do restante, estritamente sob as condições colocadas.432
Humberto Bergmann Ávila se apoia nessa teoria de princípios para fundamentar o seu artigo ―Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular‖. 427 ALEXY, Robert. Teoria de dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 91. 428 Cf. ALEXY, p. 92-93. 429 Idem, p. 93. 430 Idem, p.95. 431 Idem, p.97. 432 Idem.
112
Esse sopesamento conduz à aplicação da consequência jurídica indicada pelo
princípio prevalecente. Tem-se, assim, como produto da solução dos conflitos entre
princípios, a definição de uma regra, que determina, à luz de determinado substrato fático (as
condições do caso concreto), a incidência do consequente normativo previsto pelo princípio
que prepondera. Essa regra configura uma norma de direito fundamental atribuída.433
Pelo exposto sob as lições de Robert Alexy, vê-se que os princípios apontam
razões prima facie, não definitivas. Vale dizer, as razões contidas nos princípios apontam uma
direção, não diretamente referida ao caso concreto. As regras, por sua vez, ressalvados os
casos em que se estabelecem exceções, contém razões definitivas, prontas e suficientes para a
concretização do dever ser.434
Nesse quadro de ideias que fundamenta esses dois tipos de normas, Virgílio
Afonso da Silva adverte que o termo princípio é plurívoco e que o jurista deixa de perceber
esse fato e passa a usar o termo como se todos os autores que fazem referência o fizessem de
forma unívoca. Aceita, de início, a distinção apresentada por Robert Alexy, mas no correr dos
trabalhos o termo princípio continua a ser utilizado no sentido tradicional, ou seja, com a
clássica definição de Celso Antônio Bandeira de Mello435 que enfatiza que princípios são
―mandamentos nucleares‖ de um sistema. As duas teorias se apresentam excludentes, tendo
em vista que princípio, para a teoria de Alexy, não faz referência à fundamentalidade da
norma em questão e se tem que uma norma é considerada como princípio não por ser
fundamental, mas sim por ter a estrutura de mandamento de otimização.436
Considerando esses ensinamentos, tem-se que o princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular sinaliza uma precedência prima facie a priori e em
abstrato do interesse público sobre o interesse particular, denotando-se numa relação abstrata
de prevalência absoluta, incompatível com a concepção de ―princípio‖ uma vez que este
prevê uma relação concreta de prevalência relativa, cujo conteúdo depende das circunstâncias
do caso e cujos efeitos só são desencadeados caso verificadas as condições de prevalência do
princípio envolvido.437
433 ALEXY, Op. cit., p. 99. 434 Idem, p.104-106. 435 Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 966-967. 436 SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011, p.35-36. 437 ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular In: SARMENTO, Daniel (Org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.185-186.
113
Esse referido princípio é uma regra abstrata de preferência no caso de colisão em
favor do interesse público, nunca, porém, uma norma-princípio prima facie, segundo
conclusões aferidas por Humberto Bergmann Ávila. A questão sobre o seu fundamento de
validade fica, assim, irrespondida, restando ser incompatível com a definição de princípio.438
Lembra Carlos Ari Sundfeld que hoje se vive num ambiente de ―geleia geral‖ no
direito público brasileiro, em que princípios vagos podem justificar qualquer decisão. O
profissional do Direito ao construir soluções para o caso, não deve invocar ou elogiar
princípios, mas deve buscar respeitar o espaço de cada instituição, comparar normas e opções,
estudar causas e consequências, ponderar vantagens e desvantagens a fim de que não induza à
prática de arbitrariedade, mas sim a prática do Direito.439
Resta, pois, apresentar algumas contradições teóricas que pugnam pela existência
desse debatido princípio no ordenamento jurídico brasileiro, tomando por base os
fundamentos conceituais.
3.2.1 – Supremacia do interesse público como princípio jurídico
Ainda representando a maior fração da doutrina administrativista brasileira que
difunde a definição de princípio jurídico como sendo um mandamento nuclear que se irradia
por diferentes normas do sistema normativo, importando, apenas, que a norma ocupe uma
posição de destaque e a sua fundamentalidade no sistema jurídico.
Esse conceito clássico toma por base o conceito de princípio jurídico de acordo
com o grau de centralidade que a norma possui e que pode irradiar para as demais num
determinado sistema, ou seja, princípio é norma de maior envergadura no sistema normativo,
diferentemente das teorias de Ronald Dworkin e de Robert Alexy anteriormente apresentadas
e norteadoras para a dissertação que utilizam como critério fundamental para diferenciar
princípios de regras, a estrutura normativa.
Tem-se que este conceito clássico não atribui diferenças entre princípio e regra
conforme a estrutura normativa de cada uma dessas espécies. Dele pouco diz respeito sobre a
natureza do mandamento do princípio, se prima facie ou se definitivo, sobre o modo de
438 ÁVILA, Op. cit., p 185. 439 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012, p.60-61.
114
aplicação, se gradual ou se através do tudo ou nada, e, ainda como solucionar a colisão entre
dois princípios, se dentro do critério da validade ou de atribuição de peso.
Diante dessas considerações, vê-se a impossibilidade da aplicação da supremacia
do interesse público sobre o particular de modo gradual, daí a identificação de um dos
fundamentos da incompatibilidade de ser princípio jurídico.
Celso Antônio Bandeira de Mello enfrenta as críticas com relação ao conceito por
ele apresentado e adotado pela tradicional doutrina pátria, uma vez que, se observar o
conceito a partir das ideias dos juristas acima citados, não tem como refutá-lo, porque se
valem da precedência fática, enquanto que ele utiliza um outro conceito para princípio, o de
ser mandamento nuclear do sistema jurídico, com precedência a priori; logo, é o modo dele
asseverar a postura da supremacia do interesse público como princípio jurídico devido à sua
força irradiante para o Estado.
Fábio Medina Osório ao argumentar o citado princípio da supremacia à luz da
teoria de Robert Alexy, comenta que:
O ―princípio‖ da superioridade do interesse público sobre o privado poderia ser, além de princípio, uma ―regra‖. Quando se trata de vislumbrar o único fim possível da Administração e os agentes públicos, notadamente para a função administrativa, ele parece atuar, ao menos em muitos casos, como um ―tudo ou nada‖ nas ações administrativas. Ao incidir, determina que se atenda o interesse público em detrimento do privado, tornando imperiosa uma atuação do agente público nesse sentido, é dizer, situando em plano secundário e subalterno os interesses privados seus ou de terceiros, prevalecendo o interesse público.440
Na concepção de Daniel Wunder Hachem a supremacia do interesse público sobre
o particular é princípio jurídico diante da análise da estrutura normativa, conforme se assenta:
Se, por outro lado, o caso for de colisão entre dois interesses amparados pelo Direito positivo, sendo um inerente a toda a coletividade e outro titularizado apenas por um indivíduo ou um grupo, a norma se aplicará como um princípio, determinando prima facie a realização otimizada do primeiro, que deverá prevalecer consoante as circunstâncias fáticas e jurídicas presentes. Nesse último sentido é que se pode conceituar a norma constitucional da supremacia do interesse público como um mandamento de otimização: ela impõe que o interesse da coletividade seja realizado na maior medida possível, justificando inclusive a sua prevalência sobre outros interesses igualmente albergados no ordenamento jurídico.441
440 OSÓRIO, Op. cit., p.103. 441 HACHEM, Daniel Wunder. Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Tese de Mestrado, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. Disponível em: < http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/26126/Dissertacao%20-%20Daniel%20Wunder%20Hachem%20-%20UFPR%20-%20Brasil.pdf?sequence=1>. Acesso em: 14 mar. 2013, p. 373.
115
Assim, esse autor propõe que o combatido princípio da supremacia do interesse
público sobre o particular seja realizado no maior grau possível, otimizando-o diante do
interesse da coletividade, diga-se, do interesse público.
No melhor entendimento para essa doutrina, capitaneada por Celso Antônio
Bandeira de Mello, os princípios jurídicos não são concebidos a partir de sua estrutura
normativa, mas, sim pelo seu grau de fundamentalidade diante do sistema normativo. Assim,
enveredam por entronar a supremacia do interesse público sobre o particular como princípio
constitucional.
3.3 – REGRA DA PROPORCIONALIDADE
3.3.1 – Contextualização
A regra da proporcionalidade teve a sua origem e o seu desenvolvimento tomando
por base a evolução dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, através da
evolução do Estado com o surgimento do Estado de Direito,442 por volta do século XVIII,
quando da necessidade de limitar o poder soberano de atuação frente aos súditos.443
442―Se o princípio assenta-se na ideia de Estado de Direito, tem-se a sua projeção não só para a relação entre o cidadão e o Estado, mas também para as relações entre os poderes‖. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p.250. 443 Cf. Henrique Ribeiro Cardoso, ―Alexy não é o criador da regra da proporcionalidade. Foi o Tribunal Constitucional alemão que o desenvolveu a partir do julgamento de processos paradigmáticos – como o sempre mencionado caso Lüth, um clássico de ponderação – estabelecendo seus elementos – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação) – aplicados em uma ordem má-definida, funcionando como indicadores de medida e de controle da decisão judicial e de atos legislativos e administrativos‖. Assim, o entendimento para esse Tribunal passa a ser, com o deslinde deste caso, o de que ―os direitos constitucionais constituíam uma ordem objetiva de valores, a serem ponderados no caso concreto‖. CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação. A teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filósofos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 206. Ainda sobre o caso Lüth: ―Nesta decisão, o tribunal, embora conceda que direitos fundamentais sejam, em primeira linha, direitos de defesa dos cidadãos contra o Estado, desenvolve uma função complementar que, durante décadas, suscitou as maiores controvérsias no âmbito da dogmática dos direitos fundamentais, nos seguintes termos: ‗A Constituição, que não pretende ser uma ordenação axiologicamente neutra, funda, no título dos direitos fundamentais, uma ordem objetiva de valores, por meio da qual se expressa um (...) fortalecimento da validade (...) dos direitos fundamentais. Esse sistema de valores, que tem seu ponto central no livre desenvolvimento da personalidade e na dignidade humana no seio da comunidade social, deve valer como decisão fundamental para todos os ramos do direito; legislação, administração e jurisprudência recebem dele diretrizes e impulsos‘‖. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre particulares. 1. ed. 3. tiragem. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 42.
116
Sedimenta-se, pois, a ideia da proporcionalidade como limitação de excesso das
ações do Estado em face do cidadão, no âmbito do direito administrativo, conforme as lições
previstas por José Joaquim Gomes Canotilho:
O princípio da proporcionalidade dizia primitivamente respeito ao problema da limitação do poder executivo, sendo considerado como medida para as restrições administrativas da liberdade individual. É com este sentido que a teoria do estado o considera, já no séc. XVIII, como máxima suprapositiva, e que ele foi introduzido, no séc. XIX, no direito administrativo como princípio geral do direito de polícia (cfr. Art. 272.º/1). Posteriormente, o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido por princípio da proibição de excesso (Übermassverbot), foi erigido à dignidade de princípio constitucional (cfr. Arts. 18.º/2, 19.º/4, 265.º e 266.º/2).444
Prosseguindo no entender de Paulo Bonavides, o princípio da proporcionalidade é
alvo em matéria de defesa de direitos fundamentais perante o poder do Estado:
Com esse princípio nasce também um novo Estado de Direito cuja solidez constitucional resulta, sem dúvida, da necessidade de instaurar em toda ordem social os chamados direitos da segunda e da terceira gerações, a saber, os direitos sociais, econômicos e culturais, a par dos direitos da comunidade, quais, por exemplo, a autonomia, a proteção ao meio ambiente, o desenvolvimento e a fraternidade.445
Através da regra da proporcionalidade, ―é possível hoje recolocar a administração
(e, de um modo geral, os poderes públicos) num plano menos sobranceiro e incontestado
relativamente ao cidadão‖.446 A proporcionalidade protege a liberdade, ou seja, ampara os
direitos fundamentais.447
Com esse sentimento, assenta-se a sua utilização no campo do direito
administrativo, mas em decorrência do movimento constitucional do Direito, enraizado na
importância conferida à pessoa humana oferecida pelos direitos e pelas garantias
constitucionais, especialmente pela dignidade da pessoa humana, núcleo central da
Constituição Federal, percebe-se a sua transferência e importância para o Direito
Constitucional, caracterizando-se como princípio, regra ou postulado jurídico,448 divergência
especialmente sentida no direito positivo brasileiro.
444CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 266-267. 445 BONAVIDES, Op. cit., p.394. 446 Cf. CANOTILHO, Op. cit., p. 268. 447 BONAVIDES, Op. cit., p.395. 448 Para a dissertação, será adotada a ideia de Robert Alexy, como regra de proporcionalidade. Comunga com esse entendimento CARDOSO, Op. cit., p. 201-202. Henrique Ribeiro Cardoso esclarece a posição de Alexy quando escreve que esse autor relacionou ―a proporcionalidade no Capítulo III, tópico 8, de sua Teoria de los derechos fundamentaldes como sendo uma
117
Na concepção de Eros Roberto Grau, a regra da proporcionalidade é um critério
de interpretação, consubstanciando-se num postulado normativo aplicativo e atuante no
momento da aplicação da norma de decisão (interpretação no caso concreto de acordo com os
fatos).449
No direito pátrio, a regra da proporcionalidade é reconhecida em muitas
manifestações colhidas na jurisprudência450 e tem seu fundamento situado no âmbito dos
direitos fundamentais, com sede material implícita em diversas disposições constitucionais.451
Numa visão vanguardista dada à proporcionalidade por Henrique Ribeiro Cardoso tem-se que:
máxima. Em diversas passagens de sua obra, denomina a proporcionalidade – além de máxima – de princípio (p.539, p. ex.) ou de regra (p. 112, p.ex.). Esclarece, entretanto, que a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito, não são máximas sem princípios, por não serem ponderadas frente a algo diferente. São satisfeitas ou não, e sua satisfação tem como consequência a ilegalidade. ‗Por lo tanto, las três máximas parcialdes tienem que ser catalogadas como reglas‘‖. Grifo nosso. A posição de Ávila é a de que proporcionalidade é postulado normativo aplicativo. ―O dever de proporcionalidade consiste num postulado normativo aplicativo. como já afirmado acima, o dever de proporcionalidade impõe uma condição formal ou estrutural de conhecimento concreto (aplicação) de outras normas. Não consiste numa condição no sentido de que, sem ela, a aplicação do Direito seria impossível. Consiste numa condição normativa, isto é, instituída pelo próprio Direito para a sua devida aplicação. Sem obediência ao dever de proporcionalidade não há a devida realização integral dos bens juridicamente resguardados. É dizer: ele traduz um postulado normativo aplicativo comoaqui se estipula‖. ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade‖. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, Ano I – vol. I – n º. 4 – julho, 2001, p.25. O Supremo Tribunal Federal parece ter adotado a denominação clássica princípio da proporcionalidade, a qual vem sendo reiteradamente usada desde o primeiro acórdão proferido em sede de controle da constitucionalidade, que dele fez uso como argumento jurídico, em 1993. Trata-se de leading case em matéria de proporcionalidade, sendo avaliadas a proteção do consumidor e a liberdade de iniciativa, quando a corte superior considerou que uma lei obrigando a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor no ato da compra e venda constituía violação ao princípio de proporcionalidade e razoabilidade das leis restritivas de direitos. Gilmar Ferreira Mendes em ―O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: Novas leituras‖ e Suzana de Toledo Barros em ― O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais” sustentam que a regra da proporcionalidade tem seu fundamento no princípio do Estado de Direito. Cf. SILVA, Virgílio Afonso da Silva. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 91, v. 798, abr. 2002, p. 42. 449 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 277-278. 450 Cf. sentido, Humberto Ávila comenta esses casos no STF: declaração de inconstitucionalidade de lei estadual que determinava a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor, tendo considerado o princípio da livre iniciativa violado, por ter sido restringido de modo desnecessário e desproporcional com relação ao princípio da defesa do consumidor, e não a proporcionalidade; também o STF declarou inválida a ordem judicial para submissão do paciente ao exame de DNA, sendo violada a dignidade humana do paciente em detrimento dos princípios da autodeterminação da personalidade e da universalidade de jurisdição, e não a proporcionalidade. STF, Tribunal Pleno, MC na ADI 855-2-PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 1.7.1993, DJU 1.10.1993, p.20.212 e STF, 1ª Turma, HC 76.060-SC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 31.3.1998, DJU 15.5.1998, p.44. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros. 2008, p.134. 451 Cf. entendimento de MENDES; BRANCO, a proporcionalidade encontra-se na esteira constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV), MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 254-256. Para Celso Antônio, esse princípio é respaldado nos seguintes dispositivos da Constituição Federal: art. 37 conjuntamente com os arts. 5º, II, e 84, IV. Cf. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.112.
118
Procedimental que é, o princípio da proporcionalidade não necessita de qualquer fundamentação específica na Constituição – alemã ou brasileira – derivando, exclusivamente, da estrutura das normas de direitos fundamentais, bem como das normas que estabelecem políticas públicas – os denominados bem coletivos.452
A regra da proporcionalidade, quando da sua aplicação, relaciona-se
especialmente com o primeiro dispositivo constitucional que é o princípio da república
federativa constituindo o Estado Democrático de Direito, além dos princípios da cidadania e
da dignidade da pessoa humana, núcleo dos direitos e garantias constitucionais que deve ser
protegido. Sob esse contexto, a proporcionalidade busca garantir que os cidadãos devem ser
tratados de forma equitativa perante a lei, de acordo com as necessidades de cada um,
proporcionando, assim, o atingimento de um dos objetivos fundamentais do Estado que é
reduzir as desigualdades sociais e regionais.453
Com esse sentimento, tem-se que ―o exame da proporcionalidade aplica-se sempre
que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade‖. E como a
aplicabilidade da proporcionalidade depende dessa relação de causalidade entre meio e fim,
ensina Humberto Ávila que:
Sua força estruturadora reside na forma como podem ser precisados os efeitos da utilização do meio e de como é definido o fim justificativo da medida. Um meio cujos efeitos são indefinidos e um fim cujos contornos são indeterminados, se não impedem a utilização da proporcionalidade, certamente enfraquecem seu poder de controle sobre os atos do Poder Público.454
Dessa forma, têm-se as três sub-regras da proporcionalidade que devem ser
analisadas: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Busca-se a relação
entre elas de acordo com a precedência, iniciando com a análise da adequação que precede a
da necessidade e, por fim, a análise da proporcionalidade em sentido estrito. Observa-se que
nem sempre a aplicação da regra da proporcionalidade carece da análise desses três
elementos, aplicando-se numa relação de subsidiariedade entre si, ou seja, somente prossegue
na análise da necessidade se na análise da adequação não esgotar os objetivos pretendidos.455
Na seara administrativa, a proporcionalidade configura como princípio através do art. 2º da Lei Nº 9.784 , de 29 de Janeiro DE 1999 que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. 452 CARDOSO, Henrique Ribeiro. Proporcionalidade e argumentação. A teoria de Robert Alexy e seus pressupostos filósofos. Curitiba: Juruá, 2009, p. 229. 453 Cf. artigos 1º e 3º da Constituição Federal. 454 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 163. 455 Cf. SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 91, v. 798, abr. 2002, p. 34.
119
Sobre essas três sub-regras, José Joaquim Gomes Canotilho leciona que ―a
adequação impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deve ser
apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes‖, entendendo, nestes termos, que se
trata de controlar a relação de adequação medida-fim.456
Cuidando-se do que é ser adequado, tem-se que ―não é somente o meio com cuja
utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a realização de
um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente
realizado‖. Disso se conclui que uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua
utilização não contribuir em nada para fomentar a realização do objetivo pretendido.457
Detalhando sobre a necessidade, é permitido dizer que o cidadão tem direito ter a
menor desvantagem possível, porém a não adoção de um meio menos oneroso para o cidadão
pode ser justificada diante da obtenção de determinados fins.458
Invocando a lição de Gilmar Ferreira Mendes sobre esses dois elementos da regra
da proporcionalidade, tem-se que ―na prática, adequação e necessidade não têm o mesmo peso
ou relevância no juízo de ponderação. Apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o
que é necessário não pode ser inadequado‖. Ressalta, ainda, a relevância que a prova da
necessidade tem sobre o teste da adequação, ou seja, sendo positivo o teste da necessidade,
não tem como ser negativo o teste da adequação. Mas, caso o teste, quanto à necessidade, der
negativo, o resultado positivo do teste da adequação não poderá mudar as feições do resultado
final.459
Discorrendo, ainda, sobre o elemento da necessidade, Luís Virgílio Afonso da
Silva exemplifica a seguir:
Um ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido. Suponha-se que, para promover o objetivo O, o Estado adote a medida M1, que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida M2 que, tanto quanto M1, seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o direito
456 CANOTILHO, Op. cit., p. 269-270. No sentido de Bonavides, este elemento é denominado ―pertinência ou aptidão‖ significando que determinada medida representa o meio certo para levar a cabo um fim baseado no interesse público. BONAVIDES, Op. cit., p.396. 457 SILVA, Op. cit., p, 36. 458 Cf. CANOTILHO, Op. cit., p.270. Necessidade para Canotilho é exigibilidade. Na visão de Bonavides, pela necessidade, a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja, ou uma medida para ser admissível deve ser necessária. BONAVIDES, Op. cit., p.397. 459 MENDES, Gilmar Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, no 1, vol. I, n. 5, ago.2001, p.4.
120
fundamental D em menor intensidade, então a medida M1, utilizada pelo Estado, não é necessária. A diferença entre o exame da necessidade e o da adequação é clara: o exame da necessidade é um exame imprescindivelmente comparativo, enquanto que o da adequação é um exame absoluto.460
Henrique Ribeiro Cardoso esclarece a ideia trazendo um caso prático invocando o
fundamento de Alexy para essas duas sub-regras da proporcionalidade:
Exemplifica Alexy sua adoção pelo Tribunal Constitucional alemão na questão envolvendo a fabricação de doces e confeites com a utilização de cacau em pó adicionado a grande quantidade de gordura vegetal – especialmente de arroz. A questão envolvia a proibição de comercialização destes produtos, ou a proibição da utilização do termo ―chocolate‖ em sua embalagem, com a devida advertência de conter grande quantidade de gordura vegetal. Na análise do caso, verifica-se que ambas as medidas são adequadas ao alcance de seu objetivo: ―Si una mercancía no puede ser introducida em lo comercio disminuye el peligro de que sea comprada por equivoicación‖. Havia, entretanto, um meio também idôneo (adequado) mas menos restritivo ao direito de liberdade de ofício: a etiquetação dos produtos, o que ―podía previnir el peligro de confusiones y equivocaciones 'de una manera igualmente eficaz, pero menos gravosa'‖.
A ideia de otimização está presente na decisão: o princípio da proteção dos consumidores (P2) se realiza com a obrigatoriedade da etiquetação dos produtos (M1) em medida equivalente àquela da proibição da comercialização do produto (M2). Para P2 tanto faz a adoção de M1 ou de M2. Ocorre, entretanto, que relativamente à liberdade de profissão e ofício (P1), M2 intervém de maneira substancialmente mais intensa que M1. Se tanto M1 como M2 são faticamente adequados, P1 sofrerá uma restrição menos gravosa com a adoção de M1. Desta forma, a otimização de P1 e de P2 proíbem que seja adotado M2 (proibição de comercialização do produto).461
A terceira sub-regra para a regra da proporcionalidade é a dita proporcionalidade
em sentido estrito, entendida como justa medida uma vez que:
Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de medida ou desmedida para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.462
Compreendo o sentido de Luís Virgílio Afonso da Silva para essa terceira sub-
regra, a proporcionalidade em sentido estrito, no momento em que as possibilidades jurídicas
são verificadas, tem-se:
Ainda que uma medida que limite um direito fundamental seja adequada e necessária para promover um outro direito fundamental, isso não significa, por si só, que ela deve ser considerada como proporcional. Necessário é ainda um terceiro
460 SILVA, Op. cit., p. 38. 461 CARDOSO, Op. cit, p.226. 462 CANOTILHO, Op. cit., p.270.
121
exame, o exame da proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva.463
Através desse entendimento, tem-se que ―não é necessário, para que uma medida
seja considerada desproporcional, que a restrição a um direito fundamental seja total‖.464
Relatando, ainda, sobre essa terceira sub-regra da proporcionalidade, tem-se que
quem a utiliza, defronta-se ao mesmo passo com uma obrigação e uma interdição; obrigação
de fazer uso de meios adequados e interdição quanto ao uso de meios desproporcionados.465
Com base na análise dessas três sub-regras acerca da regra proporcionalidade, a
doutrina adverte que o ―‘princípio‘ da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado
Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe
o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas
cláusulas constitucionais, a garantia do due process of law”.466
Forçoso afastar o outro sentido dado à proporcionalidade que é o da razoabilidade,
visto que esses conceitos jurídicos não guardam a mesma relação e representam construções
jurídicas diversas, diferenciando-se na estrutura e na forma de aplicação,467 além da maioria
da doutrina brasileira adotar a regra da proporcionalidade. Corrobora, assim, com essa ideia,
Virgílio Afonso da Silva quando enfatiza que:
A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e não é uma simples pauta que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoáveis, nem uma simples análise da relação meio-fim. Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela uma estrutura racionalmente definida, com sub-elementos independentes - a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito - que são aplicados em uma ordem pré-definida, e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade.468
Diferenciando, ainda, a proporcionalidade da razoabilidade, tem-se que esta ―não
faz referência a uma relação de causalidade entre um meio e um fim, tal como o faz o
463 SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, a. 91, v. 798, abr. 2002, p. 40. 464 CARDOSO, Op. cit., p. 228. 465 Cf. BONAVIDES, Op. cit., p. 398. 466 MENDES, Gilmar Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, no 1, vol. I, n. 5, ago.2001, p.16. 467 SILVA, Op. cit., p. 28-31. 468 Idem, p.30.
122
postulado da proporcionalidade‖, além de que a razoabilidade deve atuar como um dever de
harmonização do geral para o individual (dever de equidade), como instrumento para
determinar que as circunstâncias de fato devem ser consideradas com a presunção de estarem
dentro da normalidade, ou para expressar que a aplicabilidade da regra geral depende do
enquadramento no caso concreto.469
Mesmo verificando essa situação no campo jurisprudencial, tem-se que o
Supremo Tribunal Federal pode identificar a proporcionalidade e a razoabilidade diante de
sua jurisprudência,470 mas carece ressaltar que há uma qualificação distinta para os deveres de
proporcionalidade e de razoabilidade, a partir do método envolvido na aplicação de cada um
deles: ―o primeiro consiste num juízo com referência a bens jurídicos ligados a fins, o
segundo traduz um juízo com referência à pessoa atingida‖.471
Com relação ao emprego da regra da proporcionalidade, o campo mais importante
da sua aplicação é o da restrição dos direitos, liberdades e garantias por atos dos poderes
públicos. ―A Administração deve observar sempre, nos casos concretos, as exigências da
proibição de excesso, sobretudo e principalmente nos casos em que dispõem de espaços de
discricionariedade ou de espaços de livre decisão‖.472
Seguindo essa linha, tem-se que qualquer medida concreta que afete os direitos
fundamentais há de se mostrar compatível com a regra da proporcionalidade.473
Sob esse quadro de ideias e invocando a compreensão sobre a relevância da
proporcionalidade quando da sua utilização, cabe elucidar que:
A sua aplicação depende do estabelecimento de uma medida limitada e orientada pela sua máxima realização. A instituição simultânea de direitos e garantias individuais e de finalidade públicas e normas de competência, como faz a Constituição de 1988, implica o dever de ponderação, cuja medida só é obtida mediante a obediência à proporcionalidade. O dever de proporcionalidade é o dever de atribuir uma proporção ínsita à idéia de relação. O Direito tutela bens que se dirigem a finalidades muitas vezes antagônicas, cuja concretização exige, porque há correlação, uma ponderação dialética ou proporção. Inútil será buscar uma sedes materiae escrita — normativa sim — quando o fundamento de validade do dever de proporcionalidade está na estrutura da norma jurídica e na atributividade do próprio Direito.
469 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.159. 470 Habeas corpus nº 76060-SC, Relator Ministro Sepúlveda Pertence e Recurso Extraordinário nº 211043, Relator Ministro Marco Aurélio Mello. 471 ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade‖. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atrualização Jurídica, Ano I – vol. I – n º. 4 – julho, 2001, p. 30-31. 472 CANOTILHO, Op. cit., p.272. 473MENDES, Gilmar Ferreira. O princípio da proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: novas leituras. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, no 1, vol. I, n. 5, ago.2001, p. 20.
123
A relevância que o direito moderno começou a atribuir ao dever de proporcionalidade se explica pelo estabelecimento de direitos e garantias individuais nas constituições modernas. A proporcionalidade com a função de estabelecer limites à atividade estatal e de garantir ao máximo a liberdade dos cidadãos pressupõe, de um lado, a existência mesma do Estado e, de outro, a garantia de direitos individuais. Superadas as questões ligadas à consolidação do regime democrático e as discussões sobre questões formais que dela surgiam, começou-se a analisar não apenas as questões ligadas à forma de limitação da intervenção do Estado (eficácia normativa negativa) mas também aquelas relacionadas à proteção substancial do indíviduo (eficácia normativa positiva).474
Sob o fundamento de Robert Alexy, cuida-se detalhar a regra da
proporcionalidade tendo em vista que a sua teoria deve ser aplicada ao caso prático, devendo
ser manejada pelo aplicador do direito, estabelecendo ―um procedimento que permite o
controle de qualidade dos atos judiciais numa linha pós-positivista calcada na ética do
Discurso‖.475
3.3.2 – Proporcionalidade segundo Robert Alexy
A regra da proporcionalidade é o expediente utilizado para mediar os conflitos
entre princípios. É consagrada a sua decomposição em três sub-regras parciais, quais sejam: a
adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.476
Como já dito, os princípios são mandamentos de otimização, cujo conteúdo
deontológico está limitado pelas resistências fáticas e jurídicas impostas pelos demais
princípios.477
As sub-regras da adequação e da necessidade cuidam da relação dos princípios
com as possibilidades fáticas. Com efeito, determinada a consecução de um princípio,
somente é legítima a adoção de uma medida que seja adequada para tanto. Na mesma linha,
disponíveis duas medidas diferentes para que se alcance o objetivo pretendido, deve
prevalecer aquela que não onere ou menos onere os conteúdos normativos do princípio
contraposto.
474 ÁVILA, Op. cit., p. 26. 475 CARDOSO, Op. cit., 2009, p. 247. 476 Cf. ALEXY, Robert. Teoria de dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 2011. Será tomada a ideia de Robert Alexy sobre ―proporcionalidade‖ para a fundamentação da dissertação. 477 Idem, p. 117.
124
Ocorre que, realizado o juízo de necessidade e constatada a inevitabilidade da
agressão a outro princípio (ainda que no menor grau), passa-se ao delineamento das
possibilidades jurídicas de incidência dos princípios, o que se dá por meio da
proporcionalidade estrita, também conhecida como sopesamento.478 Atuando na dimensão do
peso, cuida-se de aferir qual princípio deve ter precedência, construindo-se uma
fundamentação corretamente referida aos direitos fundamentais.
Tal fundamentação é o veículo que leva à decisão, ao passo que o caminho até
esta pode ser resumido a uma argumentação especificamente vinculada ao sopesamento, que
será esmiuçada a seguir. Todavia, como intróito necessário para se enveredar pelos meandros
do sopesamento, cumpre tecer algumas considerações sobre a relação entre princípio e valor.
Robert Alexy, invocando Von Wright, divide os conceitos práticos em
deontológicos, axiológicos e antropológicos. Os primeiros se ligam ao dever, à proibição, à
permissão e ao direito a algo. Os conceitos axiológicos dizem respeito à ideia de que algo é
bom. Sua diversidade decorre da multiplicidade de critérios pelos quais algo pode ser assim
considerado. Por fim, os conceitos antropológicos são aqueles de vontade, interesse,
necessidade, decisão e ação.479
Percebe-se facilmente que os valores fazem parte dos conceitos axiológicos. Por
meio dos juízos de valor, pode-se atribuir a algo valor positivo, negativo ou neutro (juízo
classificatório), pode-se conferir a algo um número indicativo de seu valor (juízo métrico) ou
pode-se determinar, entre dois objetos, qual deles tem maior valor (juízo comparativo).480
Em uma operação de juízo de valor, este é representado pelos critérios de
valoração. Vale dizer, quando se busca aferir qual carro é mais seguro, está-se diante do valor
segurança, utilizado como critério de valoração. Comumente, são diversos os critérios de
valoração (no exemplo, segurança, design, desempenho), sendo a qualificação de algo como
bom, o resultado do juízo global de valor.
Para que se chegue a essa constatação, deve-se considerar todos os critérios
válidos de valoração, harmonizando as suas diferentes exigências. É aqui que reside a
ponderação de valores.
O mesmo se aplica aos princípios. A diferença entre estes e os valores reside
somente no campo dos conceitos práticos. Enquanto os valores são axiológicos, os princípios 478 ALEXY, Op. cit., p. 593. 479 Idem, p. 146. 480 Idem, p. 148.
125
são deontológicos. Os juízos comparativos de valores indicam o que é melhor, ao passo que a
ponderação entre princípios sinaliza o que deve ser. Feita essa distinção conceitual, pode-se
dizer que o modelo de valores e o modelo de princípios são estruturalmente iguais.
Como não se aceita a ideia de que os valores são objetos e, portanto,
evidenciáveis, o processo de estabelecimento dos critérios valorativos e a ponderação entre
eles são questões de fundamentação.
É justamente a fundamentação que confere racionalidade procedimental ao
sopesamento, garantindo o controle do processo psíquico que indicou o enunciado de
preferência.481 Em verdade, a fundamentação de enunciados de preferências condicionadas
(resultantes do sopesamento) é também a fundamentação de uma regra, que tem por
inferência as consequências jurídicas do princípio prevalecente.
Nessa fundamentação, cabe qualquer espécie de argumento constitucional, como
os dogmáticos, empíricos, jurisprudenciais, ligados à vontade do constituinte, às
consequências negativas das alternativas, entre outras.
Há, contudo, uma fundamentação especificamente relacionada ao sopesamento.
Robert Alexy a batiza de lei do sopesamento. De acordo com essa regra, ―quanto maior for o
grau de não-satisfação ou afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da
satisfação do outro‖.482 Em outras palavras, dadas as condições do caso, o grau de mitigação
de um princípio deve ser diretamente proporcional ao grau de importância do outro. Com isso,
fica claro que os pesos dos princípios são sempre relativos.
Conforme antes exposto, as colisões entre princípios devem ser resolvidas por
meio da definição de relação de precedência, que se vale do seguinte enunciado: (P1 P P2) C,
que possuem o caráter de fundamentação para uma regra concreta (C→R: sob certas
condições, C ordena a consequência jurídica R);483 onde P1 e P2 são os princípios, sendo que,
P significa a relação de precedência, C a condição da precedência no caso concreto e R a
consequência jurídica..484
A lei do sopesamento regula o avanço de um princípio sobre outro, esclarecendo
as ideias por trás desse movimento, mas é incapaz de fixar os pontos de partida de cada
princípio. A título de exemplo: caso estejam em colisão a propalada supremacia do interesse
481 ALEXY, Op. cit., p. 165. 482 Idem, p. 167. 483 CARDOSO, Op. cit., p. 232. 484
ALEXY, Op. cit., p.164.
126
público e o direito de propriedade, cada argumento no sentido de se restringir a propriedade
deve ser capaz de revelar também a importância do interesse público, e no mesmo grau.
Todavia, não se podem precisar as intensidades iniciais de importância atribuídas por cada
intérprete.
Tecidas essas considerações sobre a regra da proporcionalidade, e com o fim de
deixar registrada a contribuição e a relevância das teorias de Alexy para o Direito, toma-se
por empréstimo a lição de Henrique Ribeiro Cardoso:
A Teoria da Argumentação Jurídica e dos Direitos Fundamentais de Alexy são teorias procedimentais de correção jurídica. Por lastrarem-se numa teoria ética cognitivista, propõem que as decisões jurídicas são passíveis de uma correção normativa análoga à verdade empírica – resultam de seu procedimento argumentativo. Este procedimento argumentativo é pautado por regras do discurso jurídico, aplicáveis tanto no campo de fundamentação de decisões lastradas em regras, quanto em decisões lastradas em princípios, ainda que colidentes.
As regras da argumentação e da ponderação, embora não consubstanciem passos concatenados de um processo, pautam a conduta dos que integram qualquer procedimento que dependa de uma decisão jurídica. Delimitam, inclusive, os espaços de atuação do legislador, ao estabelecerem suas margens estruturais e cognitivas. Com fórmulas lógicas e matemáticas relacionadas ao método de aplicação da subsunção (regras) e da proporcionalidade (princípios), além de indicarem o caminho para a formação de uma norma correta, oferecem subsídios para a crítica e a revisão judicial de decisão de outros poderes – e do próprio judiciário. A segurança e a previsibilidade jurídicas, tão caras à sociedade moderna do formalismo jurídico, passam a contar, no atual estágio da sociedade reflexiva, impregnada pelo conceito de risco, com a busca da correção de decisões jurídicas como instrumento para sua consecução aproximada.
A proporcionalidade na aplicação de princípios e de diretrizes de políticas públicas deve pautar a atuação do Poder Legislativo, como expressamente expresso por Alexy, e também dos Poderes Executivo e Judiciário. O fato de em judicial review se exigir o atendimento às subregras da proporcionalidade, sob pena de invalidação, implica em reconhecer, como condição de constitucionalidade – da atividade do legislador – e de legalidade – das atividades do julgador e do administrador – a atendimento destas subregras. Não há na teoria de Alexy – que é de um constitucionalismo moderado – um amplo espaço para o ativismo judicial [...].485
3.3.3 – Da incompatibilidade da supremacia do interesse público com a regra da
proporcionalidade
Apresentados os conceitos acerca da regra da proporcionalidade, resta analisar a
sua interface com a supremacia do interesse público.
Tendo em vista que a regra da proporcionalidade visa determinar a solução de
conflitos entre bens ou valores constitucionais definidos como, por exemplo, direitos
485 CARDOSO, Op. cit., p. 244-245.
127
fundamentais que entram em rota de colisão, sendo atribuídos pesos e são solucionados
através da técnica de ponderação de valores, vê-se a sua incompatibilidade com o debatido
princípio, tendo em vista que a sua interpretação leva ao entendimento de que sempre há de
prevalecer a supremacia de um dos envolvidos no caso concreto, o interesse público, em
detrimento da outra parte que está sendo valorada, o particular.
Assim, Humberto Bergmann Ávila anuncia essa incompatibilidade, uma vez que a
proporcionalidade direciona a interpretação para a máxima realização dos interesses
envolvidos e não para uma principal prevalência. O dito princípio, pela Teoria Geral do
Direito, poderia ser definido como regra abstrata de preferência no caso de colisão em favor
do interesse público, nunca um princípio prima facie.486 Não há, assim, nesta situação,
qualquer possibilidade de harmonização entre princípios.
Para Gustavo Binenbojm, não há que se falar em dever de ponderação, ao qual se
liga à proporcionalidade, pelo fato de que o propalado princípio rejeita as especificidades de
cada caso, impondo a relação de prevalência do interesse público e desconsiderando a
pluralidade de interesses jurídicos em jogo. Desta feita, afasta a proporcionalidade.487
Em idêntica senda, Daniel Sarmento relata acerca da incompatibilidade da
supremacia do interesse público com a proporcionalidade:
Só que o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, ao afirmar a superioridade a priori de um dos bens em jogo sobre o outro, elimina qualquer possibilidade de sopesamento, premiando de antemão, com a vitória completa e cabal, o interesse público envolvido, independentemente das nuances do caso concreto, e impondo o consequente sacrifício do interesse privado contraposto.488
Mormente se tem argumentado acerca da supremacia do interesse público sobre o
particular numa versão mais fraca, ou seja, ao invés de uma primazia a priori e absoluta do
interesse público sobre o particular, ter-se-ia uma regra de precedência prima facie
significando que o interesse particular pode preponderar sobre o público.489 Entretanto,
486 ÁVILA, Op. cit., p. 184-185. 487 Cf. BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 143. 488 SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 102. 489 Cf. OSÓRO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro? In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. n. 220. p.69-107. abr./jun. 2000, p. 83.
128
também esta faceta do princípio leva ao flagrante descompasso com a ordem constitucional
brasileira por fragilizar os direitos fundamentais, já que partem em desvantagem aos
interesses públicos quando do entrincheiramento.490
Em suma, diante dessa abordagem crítica, verifica-se a incompatibilidade da
supremacia do interesse público sobre o particular com o procedimento da aplicação prática
pela regra da proporcionalidade, constituindo argumento de inexistência do dito princípio no
ordenamento jurídico brasileiro.
Entretanto, uma vez afastada a supremacia em si, e sendo necessária a solução de
conflito entre o interesse público e o interesse particular, deve-se valer das soluções
tradicionais de conflitos de leis, somadas à regra da proporcionalidade (políticas públicas
versus direitos fundamentais) em busca da solução que leve à máxima realização dos
interesses contrapostos.
É por tal razão que, no âmbito da argumentação jusfundamental, é de capital
relevância o exame do direito jurisprudencial, lapidado por uma rede de decisões concretas
capazes de fixar pontos de partida valorativos.
3.4 - ATUAL POSICIONAMENTO JURISPRUDENCIAL DO PRINCÍPIO DA
SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO
3.4.1 – Contextualização
Como o Direito é um fenômeno complexo que se manifesta em vários domínios
das ações humanas, é cabível o enfoque da jurisprudência por ser reveladora do Direito no
âmbito da atividade jurídica concreta e prática. Afirma-se que ao juiz, é dado o poder de criar
o Direito não em casos fácies e rotineiros e sim em casos considerados difíceis, pois estes em
regra são regidos por normas jurídicas que contém conceitos permeáveis ou princípios nos
quais se embutem diretrizes gerais.491
490 No sentido de SARMENTO, Op. cit., p. 101-102. 491 Cf. ensinamento de PIERRI, Deborah. A Jurisprudência como forma de unificação do direito. In: Temas controvertidos de direito processual civil aos 30 anos do CPC. (Coord) JUNIOR, Luiz Manoel Gomes. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 112-113.
129
Diante dessas considerações, justifica-se essa pesquisa jurisprudencial tendo em
vista o dito princípio da supremacia do interesse público sobre o particular diante de uma
relação contraposta ao cidadão mostrar-se ser um caso de difícil solução para a justiça,
considerando que o interesse público possui um conceito permeável e indeterminado, ao passo
que esse combatido princípio apresenta-se incompatível com essa espécie normativa,
conforme a nova doutrina administrativista.
Seguindo o pensamento da nova hermenêutica filosófica com o reflexo na
hermenêutica jurídica, sob o enfoque da existência humana, Hans-Georg Gadamer defende
que a compreensão é um ato histórico e como tal está sempre relacionada com o presente e
alerta que o preconceito é tido como uma condição de julgamento, ou seja, é pré-julgamento
que precede ao julgamento e que algumas medidas de auto percepção são possíveis quando os
preconceitos são confrontados com o novo e o inesperado.492
Assim deve caminhar a hermenêutica jurídica visando à desconstrução ou
mitigação do debatido princípio da supremacia do interesse público sobre o particular,
inserindo-se no contexto apreciado, tanto no momento da aplicação quanto da interpretação a
partir do caso concreto a ser examinado, tendo por norte a proteção do cidadão. Tem-se que
―teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática‖.493
Assenta-se a atual tendência pela qual vem refletindo o direito administrativo em
uma hermenêutica que valoriza o papel dos princípios na interpretação jurídica, mormente
pela conquista dos direitos fundamentais materializados na Carta Constitucional, favorecendo,
assim, uma nova perspectiva de justiça aos cidadãos.
Tem-se na mente da vasta doutrina brasileira que a supremacia do interesse
público é fundamento da legitimidade do manejo do regime jurídico administrativo que
caracteriza o direito administrativo e como tal, encontra-se presente em alguns institutos desse
ramo do direito público.
Também a supremacia do interesse público é fundamento para a desapropriação,
para os atributos de atos administrativos como especialmente a imperatividade e a
autoexecutoriedade, para as cláusulas exorbitantes de contratos administrativos e para o poder
de polícia, revelando-se este ser relacionado ao condicionamento do exercício dos direitos
492 LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Tradução de Hélio Magri Filho. Petrópolis: Vozes, 2007, p.8 e p.90. 493 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da construção: contribuição para a interpretação pluralista e ―procedimental‖ da construção. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 14.
130
individuais, tais como liberdade e propriedade aos interesses públicos, tendo por limite uma
atuação estatal proporcional para que não ocorra esmagamento do núcleo essencial de direitos
fundamentais tutelados pelo ordenamento jurídico.494
Nesse contexto, o propalado princípio da supremacia do interesse público não
deve ser somente visualizado nos atuais dias como condutor para as práticas das atividades
administrativas, mas também como medida de sopesamento diante dos direitos fundamentais
por quais clamam os cidadãos.
Na perspectiva da análise doutrinária, o fato é que existem duas fortes correntes
acerca da supremacia do interesse público quais sejam: a clássica,495 em que a supremacia é
princípio implícito constitucional que se assenta o regime jurídico do Estado, colocando o
interesse público acima do interesse particular; e a vanguardista,496 que propõe a
desconstrução do princípio da supremacia do interesse público.
Fácil é verificar ainda essa tendência da doutrina clássica nos julgados, visto que
ao fundamentar as decisões com base na supremacia do interesse público imediatamente
provoca a adesão de todos e elimina a possibilidade de crítica. E, ainda, ―imuniza as decisões
estatais ao controle e permite que o governante faça o que ele acha que deva ser feito sem a
possibilidade de uma comprovação de ser aquilo, efetivamente, o mais compatível com a
democracia e com a conveniência coletiva‖.497
Conforme lembra Paulo Ricardo Schier, quando a referida supremacia do
interesse público se manifesta, constitucionalmente, legalmente ou mediada pelo juiz, como
critério de solução de colisão de interesses ou bens constitucionais, ela não poderá ser
absoluta, eis que utilizada como medida de ponderação.498
494 Cf. sentido de NOHARA, Irene Patrícia. Reflexões críticas acerca da tentativa de desconstrução do sentido da supremacia do interesse público no direito administrativo. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. (Coord). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 143. 495 Essa corrente é formada por Celso Antônio Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella di Pietro, José dos Santos Carvalho Filho, Romeu Felipe Barccelar Filho, Daniel Wunder Hachem, dentre outros administrativistas que são favoráveis à mantença da existência desse princípio. 496 Fazem coro a essa corrente pugnando pela desconstrução do referido princípio: Humberto Bergmann Ávila, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Paulo Ricardo Schier, Alexandre Santos Aragão, Patrícia Baptista, Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Marçal Justen Filho. Mais modesta, há uma terceira posição para esse princípio, diante da possibilidade de reconstrução do princípio da supremacia do interesse público: Luís Roberto Barroso e Alice Gonzalez Borges. O princípio é por eles defendido, mas o que se questiona é o interesse público de modo que sejam evitadas malversações do seu uso. 497 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito administrativo reescrito: problemas do passado e temas atuais. Artigo publicado na Revista Negócios Públicos, ano II, nº 6. 498 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris., 2005, p. 241.
131
3.4.2 – Controvérsias administrativas
Vale observar que diante das transformações por que passou o Estado Liberal,
deste para o Estado Social e após para o Estado Democrático, marcadas essencialmente no
último século, a sociedade brasileira atravessa por mudanças sociais, bem como se percebe no
âmbito jurídico com a presença da força normativa da constituição,499 consagrando-se através
do movimento da constitucionalização do direito, refletido nos demais ramos, uma vez que
valores e princípios constitucionais passam a serem vetores axiológicos do ordenamento
jurídico, e em especial no direito administrativo, face à também previsão normativa da sua
matéria no Texto Constitucional de 1988.
Nesse trilhar, alguns paradigmas clássicos do direito administrativo brasileiro
passam por questionamentos no momento atual: o propalado princípio da supremacia do
interesse público sobre o interesse privado (dissertado no primeiro capítulo), além da
intangibilidade do mérito administrativo e da legalidade administrativa como vinculação
positiva à lei.500
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, mérito do ato é o campo de liberdade
suposto na lei que o administrador, segundo conveniência e oportunidade, decida entre duas
ou mais soluções possíveis perante a situação vertente, tendo em vista a finalidade legal, ante
a impossibilidade de identificar qual delas é a mais adequada.501
Diante dessa situação, o mérito ―foi criado para as hipóteses em que a lei, não
tendo como preencher todos os espaços da vida prevendo condutas à Administração, deixa a
ela parâmetros para a tomada da melhor decisão‖.502
499 Destacando o pensamento de Konrad Hesse acerca dessa força normativa da Constituição: ―a interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação‖. HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p.22-23. 500 Cf. entendimento de BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 126-127. 501 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 118. 502 BEDENDI, Luis Felipe Ferrari. Ainda existe o conceito de mérito do ato administrativo como limite ao controle judicial dos atos praticados pela administração? In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. (Coord). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 287.
132
Os questionamentos, quanto ao mérito administrativo, estabelecem-se no entorno
sobre a sua insindicabilidade jurídica ou intangibilidade, na seara da conveniência e da
oportunidade atribuídas discricionariamente ao administrador. Consiste em averiguar o quanto
dessa discricionariedade administrativa pode ser controlada pelo Poder Judiciário, tendo em
vista que os princípios constitucionais tutelam o cidadão contra arbítrios do poder estatal.
Com isso, iniciam-se as indagações se o instituto do mérito ainda pode ser
mantido aos moldes de quando foi concebido quando se estabeleceu a ideia de que cabe à
Administração fazer apenas o que a lei determina ou autoriza, sendo a discricionariedade
limitada pela lei.503
Necessário se faz antes de responder à questão suscitada, identificar a concepção
dada por Renato Alessi para o mérito administrativo, uma vez que este instituto possui duplo
aspecto: o positivo e o negativo:
Questo concetto di merito pud pertanto essere considerate sotto due diversi profili: sotto un profilo meramente negativo, come limite al potere di cognizione del giudice di mera legittimita (in senso stretto); sotto il profilo positivo, ad indicare la piena e perfetta aderenza del provvedimento alia norma giuridica, vale a dire la sua rispondenza al concreto interesse pubblico secondo un criterio di pratica oppor tunita e convenienza.504
Vê-se assentada na doutrina pátria essa tradicional ideia conceitual do mérito do
ato administrativo e do controle feito pelo Poder Judiciário, através da posição restritiva de
sindicabilidade: ―o controle judicial alcançará todos os aspectos de legalidade dos atos
administrativos, não podendo, todavia, estender-se à valoração da conduta que a lei conferiu
ao administrador‖. Nesse sentido, ―o Judiciário, entretanto, não pode imiscuir-se nessa
apreciação, sendo-lhe vedado exercer controle judicial sobre o mérito administrativo‖.505
Entretanto, no sentir de Marçal Justen Filho:
É evidente que a escolha concretamente realizada não comporta ampla revisão por outra autoridade. Se comportasse, desapareceria a discricionariedade.
503 Cf. leciona BEDENDI, Op. cit., p. 283. 504 Em tradução livre: Quanto ao positivo, leciona que há o ajustamento do interesse público, definido na norma jurídica, diante do caso concreto, de acordo com conveniência e oportunidade da Administração, tendo em vista a impossibilidade do legislador antever todas as hipóteses de incidência do interesse público para todas as situações fáticas. Com relação ao aspecto negativo, o mérito delimita um limite para a sindicabilidade jurisdicional aos atos administrativos de acordo com os espaços deixados pela norma. ALESSI, Renato. Principi di Diritto Amministrativo. t. I: I soggeti attivi e l‟esplicazione della funzione amministrativa. 4. ed. Milano: Giuffrè, 1978, p.211. 505 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual do direito administrativo. 23. ed. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2010, p. 57-58 e p. 138.
133
[...] cabe o controle para verificar se o administrador exercitou escolha nos limites da competência recebida.
Mas também existem defeitos de mérito suscetíveis de revisão. Assim se configurará, por exemplo, quando a decisão for desarrazoada, arbitrária ou destituída de qualquer aptidão a realizar de modo adequado a finalidade buscada.506
Diante da nova realidade atrelada entre o direito administrativo e o direito
constitucional, lembra Maria Sylvia Zanella di Pietro que:
Há uma tendência calcada no direito positivo e na Constituição que defende maiores limites à discricionariedade administrativa, pelo fato de que a sua atuação deve ter fundamento na lei, mas que também de observar os limites impostos pelos princípios e valores adotados explícita e implicitamente pela Constituição.507
Passando-se a observar se o controle judicial pode atingir o mérito do ato
administrativo (motivo e objeto), assevera Luís Roberto Barroso que:
Não apenas os princípios constitucionais gerais, mas também os específicos, como moralidade, eficiência e, sobretudo, a razoabilidade-proporcionalidade, permitem o controle da discricionariedade administrativa (observando-se, naturalmente, a contenção e a prudência para que não se substitua a discricionariedade do administrador pela do juiz).508
Sobre a intangibilidade do mérito administrativo convém lembrar sob a ótica da
jurisprudência pátria que:
506 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 8 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 221. É possível identificar três teorias que justificam o controle judicial da atuação administrativa discricionária: 1) teoria do desvio do poder, quando o ato está em desacordo com a finalidade da norma; 2) teoria dos motivos determinantes, quando relaciona os motivos que ensejaram o ato e os fatos; 3) teoria dos princípios, dada através do fundamento da juridicidade. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Constitucionalização do direito administrativo: o princípio da juridicidade, a releitura da legalidade administrativa e a legitimidade das agências reguladoras, p. 80-81. 507 Em contrário senso, existe uma corrente que pugna pela ampliação da discricionariedade dando maior liberdade decisória aos seus dirigentes. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Inovações no direito administrativo brasileiro. Interesse público, Porto Alegre: Notadez, ano VI, nº 30, 2005, p.7. Cf. ENTERRIA: ―La discrecionalidad surge cuando el Ordenamiènto jurídico atribuye a algún órgano competência para apreciar en un supuesto dado Io que sea de interés público. Todo poder discrecional, pues, ha tenido que ser atribuído previamente por el ordenamento‖. ENTERRÍA, Eduardo García de. Democracia jueces y control de la administración. 2.ed. Madrid: Civitas, 1996, p.143. 508 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.376. Considerando a discricionariedade administrativa como um conceito jurídico indeterminado, no sentido de COELHO: ―No exercício do controle dos conceitos jurídicos indeterminados reclama-se agora um ir além, com um Poder Judiciário que garanta o Estado de Direito, mas que seja ainda partícipe do processo político, garantidor e concretizador, na dimensão ativa, dos reclamos do Estado Social. Nessa tarefa de controle os juízes devem entrar em cena não como mero reprodutores de um saber técnico-dogmático, mas coma pergunta fundamental de como concretizar esse Estado Social de Direito e toda a principiologia constitucional‖. COELHO, Paulo Magalhães da Costa. Manual de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2004, 327-328. Atenta-se nesses casos práticos da questão do ativismo judicial versus separação de poderes.
134
À medida em que o mérito se constitui num dos pontos de maior convergência (senão o maior) entre as atividades administrativa e jurisdicional, porquanto criado como limite entre uma e outra. Analisá-lo, pois, estritamente pelo aspecto teórico-doutrinário poderia produzir um resultado deficitário e distante da realidade a qual se pretende retratar.509
Assim, o mérito se diferencia da concepção original da atual é que a lei não pode
ser tomada em seu sentido estrito e que deve abranger todos os princípios e valores, explícitos
e implícitos, constantes da Constituição Federal, especialmente os constantes no art. 37,
caput, além da razoabilidade e da proporcionalidade.510
Quanto à legalidade administrativa, considera-se como vinculação positiva à lei,
constatando-se na submissão do agir administrativo à vontade previamente manifestada pelo
Poder Legislativo. Tal paradigma costuma ser sintetizado na negação formal de qualquer
vontade autônoma aos órgãos administrativos, que somente estariam autorizados a agirem de
acordo com o que a lei rigidamente prescreve.511
Para Luís Roberto Barroso, está superada esta vinculação positiva do
administrador à lei, pela qual sua atuação está condicionada ao que o legislador determina ou
autoriza. Entende o autor que o administrador pode e deve atuar tendo como fundamento a
Constituição independentemente de qualquer manifestação do legislador ordinário. Há com
isso uma ampliação do princípio da legalidade, para o princípio da constitucionalidade ou
juridicidade, compreendendo a subordinação à Constituição e à lei, nessa ordem.512
Esse princípio da juridicidade exprime a dupla submissão jurídica do Estado,
conforme leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
509 BEDENDI, Luis Felipe Ferrari. Ainda existe o conceito de mérito do ato administrativo como limite ao controle judicial dos atos praticados pela administração? In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. (Coord). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 279. 510 Idem, p.301. 511 BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.126. Tal formulação clássica é devida, entre nós, a Hely Lopes Meirelles: ―Na Administração não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza‖. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 34. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 82-83. No sentir de Paulo Otero: ―O moderno Direito Administrativo continua, deste modo, a assentar numa concorrência de produção normativa entre órgãos legislativos, administrativos e jurisdicionais: a separação de poderes parece revelar-se aqui particularmente hostil a um monopólio do poder legislativo na produção da legalidade administrativa‖. OTERO, Op. cit., p. 274. 512 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 375-376.
135
À lei e ao Direito, clássica submissão à lei, expressa pelo princípio da legalidade e superada com a inclusão tanto da submissão à legitimidade, politicamente conotada quanto da submissão à licitude, moralmente conotada, valores constitucionalmente afirmados do Direito pós-moderno, sintetizados no conceito de juridicidade.513
Prosseguindo com as suas ideias, o autor enfatiza que esse princípio visa a atender
a mais importante finalidade do direito administrativo e que por si só o justificaria: ―proteção
das liberdades e dos direitos dos administrados‖.514
Com essa amplitude concedida ao princípio da legalidade, muitas das vezes, passa
a ser questionado acerca da sindicabilidade pelo Judiciário, dada, por exemplo, pelo controle
judicial das políticas públicas, uma vez que a interpretação do magistrado provoca a
ingerência em matérias que devem ser versadas pela Administração Pública, ferindo a
separação dos poderes.
No entanto, analisando a questão à luz de Luis Felipe Ferrari Bedendi, tem-se que
―o Judiciário, assim, pode e deve controlar a observância tanto dos aspectos meramente
formais e legais do ato administrativo, quanto dos princípios e valores constitucionais, como
seu fiel guardião‖.515
Como juridicamente as políticas públicas são vistas como instrumentos de ação do
governo, a atuação da Administração Pública passa a ser vista como resultado da justa
composição de interesses da sociedade, de acordo com a finalidade imposta pela Constituição,
vinculando, dessa forma, os órgãos estatais.516
Nesse sentido, a Constituição identifica a necessidade de implementação de
políticas públicas, materializadas através de programas de ação governamental, que
correspondem aos direitos sociais dos cidadãos, passando a ter, assim, fundamental relevância
na sua efetivação.
Cria-se, pois, uma obrigação ao Estado e aos seus poderes de dar máxima
efetividade aos direitos consagrados, através dessas políticas, deixando de serem vistos como
promessas estatais e passando a serem determinações vinculantes. Nessa pegada, reconhecem-
513 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 15 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p.247. 514 Idem, ibidem. 515 BEDENDI, Op. cit., p.301. 516 Cf. sentido de SEFERJAN, Tatiana Robles. O controle das políticas públicas pelo poder judiciário. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. (Coord). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p.304-305.
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se políticas públicas com o interesse público primário, não sendo, dessa maneira, definidas
arbitrariamente, mas sim em consonância com a Constituição.517
Assenta-se a ideia de que a atividade legislativa não mais é preponderante às
funções exercidas pelos outros poderes, como antes se observava no período do Estado
Liberal, tendo em vista que a intervenção do Judiciário para o controle de políticas públicas
não significa agressão ao princípio da separação dos poderes no momento atual.518
Com essa visão, amparada pelo princípio da juridicidade, o controle dos atos da
Administração que era tido como objetivo, recaindo apenas sobre a legalidade, passa a ser
subjetivo, oportunizando ao cidadão um direito processual garantido por clamar ao Judiciário
por um direito material concreto,519 passando os mecanismos de controle a serem
intensificados com a necessidade de respeito aos princípios constitucionais.520
Assim, passa-se a examinar a supremacia do interesse público através
jurisprudência brasileira, diante também desses paradigmas arrolados na atualidade da
Administração Pública.
3.4.3 – Da inexistência do princípio da supremacia do interesse público como
fundamento jurisprudencial
Acerca da pesquisa jurisprudencial a ser apresentada, observa-se que questões são
levadas aos tribunais para o debate, mas que, timidamente, a adesão à mitigação do princípio
da supremacia do interesse público assenta-se nos tribunais de justiça, bem ainda, nas cortes
superiores de justiça.521
517 SEFERJAN, Op. cit.,p. 307-308. 518 Idem, p.310. 519 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Apontamentos sobre o controle de judicial de políticas públicas. In: FORTINI, Cristiana; ESTEVES, Júlio César dos Santos; DIAS, Maria Teresa Fonseca (Org.). Políticas Públicas: possibilidades e limites. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 55-56. 520 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Constitucionalização do direito administrativo: o princípio da juridicidade, a releitura da legalidade administrativa e a legitimidade das agências reguladoras. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 88. 521 A busca de jurisprudência sobre a mitigação ou refutação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado nos tribunais superiores revelou que esses tribunais ainda se utilizam desse dito princípio jurídico para garantir o princípio da legalidade em prol da segurança jurídica, conforme exemplos apresentados. Apenas uma decisão monocrática do STF revela uma pequena mitigação desse debatido princípio, de acordo com a solicitação de pesquisa realizada à Seção de Pesquisa de Jurisprudência desta corte de justiça através do Número de registro da solicitação: 29743, Tipo de Pesquisa: Jurisprudência. Assunto: Supremacia do interesse público - mitigação ou refutação. Legislação pertinente e/ou maiores informações: direito administrativo direito público. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaEmail/criarSolicitacaoEmail.asp. Acesso em:
137
Vale cotejar algumas recentes decisões monocráticas do Supremo Tribunal
Federal, indicando posicionamento ainda mantendo a supremacia do interesse público sobre o
privado como princípio mediador nos julgamentos que envolvem outros princípios
constitucionais.
O princípio da legalidade em confronto com o princípio da segurança jurídica é
analisado à luz da supremacia do interesse público, como se observa através do MS
27187/DF522 com relatoria do Ministro Celso de Mello, ―no caso concreto, considerando o
princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, impõe-se que se privilegie o
princípio da legalidade, de modo a se afastar a legitimidade de aposentadoria concedida em
desconformidade com a Constituição Federal‖. Em igual posicionamento o MS 27468/DF523
tendo o Ministro Dias Toffoli como relator.
Os julgados se valem do mesmo argumento jurídico: ponderação para solucionar o
conflito existente entre o princípio da legalidade e o princípio da segurança jurídica, ambos
constitucionais. Tomando por base o princípio da supremacia do interesse público sobre o
privado, o princípio da legalidade prevalece sobre o da segurança jurídica.
Apenas a decisão, ARE 709901 / RJ,524 aponta a relatividade e a mitigação do
combatido princípio julgada pela relatora Min. Cármen Lúcia, entendendo que não pode haver
desconsideração do indivíduo uma vez que a supremacia do interesse público não deve ser
absoluta.
Entretanto, as decisões que estão sendo prolatadas nos tribunais de justiças,525
especialmente o repertório jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
10 jun. 2013. A resposta foi através de email em 10 jun.2013: ―Informamos que com os termos solicitados não foi encontrado nada específico neste Tribunal. Contudo, seguem decisões monocráticas que mais se aproximaram do assunto solicitado. Atenciosamente, Seção de Pesquisa de Jurisprudência - STF, Supremo Tribunal Federal”. 522 BRASIL, STF - MS 27187/DF. Relator: Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 29/05/2013. Publicação: DJe-104 DIVULG 03/06/2013 PUBLIC 04/06/2013. Disponível em:< http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/23344055/mandado-de-seguranca-ms-27187-df-stf>. Acesso em: 10 jun. 2013. 523 BRASIL, STF - MS 27468 / DF. Relator: Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 23/05/2012. Publicação: DJe-105 DIVULG 29/05/2012 PUBLIC 30/05/2012. Disponível em:< http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14771116/medida-cautelar-no-mandado-de-seguranca-ms-27468-df-stf>. Acesso em: 10 jun. 2013. 524 BRASIL, STF - ARE 709901 / RJ. Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA. Julgamento: 20/09/2012. Publicação: DJe-193 DIVULG 01/10/2012 PUBLIC 02/10/2012. Disponível em:< http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22438446/recurso-extraordinario-com-agravo-are-709901-rj-stf>. Acesso em: 10 jun. 2013. 525 Leva a crer que a mitigação ao combatido princípio seja localizada preponderantemente na região sul do país, deve-se pela repercussão da publicação do artigo de Humberto Ávila: ―Repensando o princípio da supremacia
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Sul, são responsáveis por lançar em seus julgados que esse assoalhado princípio se sujeita ao
cidadão diante de ofensa às suas garantias fundamentais.
Para a análise das soluções jurisprudenciais, impõe-se trazer à baila que o cidadão
brasileiro alcançou a plenitude jurídica na conquista da cidadania com a promulgação da
Constituição de 1988, uma vez que teve os seus direitos civis, políticos e sociais respaldados
no contexto constitucional, além de deixar o registro que o Estado passou por transformações,
chegando ao modelo do Estado Social, em que o Estado é visto como Estado Prestador, não
possibilitando margens para a prática do autoritarismo estatal em suas ações.
Outro não é o entendimento do desembargador Luiz Mateus de Lima, relator da
Apelação Cível e Reexame Necessário nº 769599-0, originada da 2ª Vara Cível do Foro
Regional de São José dos Pinhais da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, tendo
como Apelante: Município de São José dos Pinhais e Apelada: Leonardo Antunes Ferreira
Rodrigues (Representado), ao expor em seu voto que:
A recusa ao fornecimento do alimento/medicamento pleiteado implica em violação a direito líquido e certo, devendo ser mantida a segurança concedida, ainda mais diante da prova concreta trazida aos autos pelo apelado (pedido, recusa, receituários médicos, exames clínicos e hipossuficiência econômica). Também não deve prosperar a alegação de que o fornecimento de leite pelo Poder Judiciário implica em violação ao Princípio da Divisão dos Poderes interferindo, assim, na Política Nacional de Medicamentos, pois o direito à vida e à saúde não se encontra no âmbito dos atos discricionários (oportunidade e conveniência) da Administração Pública, mas se constitui num dever constitucional do Estado. A determinação judicial quanto ao fornecimento do leite pleiteado não ofende os Princípios da Reserva do Possível (prejuízo ao erário) e da Supremacia do Interesse Público pois, como resulta evidenciado, a vida é direito subjetivo indisponível (indispensável), devendo prevalecer em qualquer situação.526
Oportuno colacionar outro precedente527 com entendimento semelhante através da
decisão monocrática fruto do reexame necessário REEX 8751362 PR quando se postula o
fornecimento de suplemento alimentar para criança portadora de hidrocefalia, paralisia
do interesse público sobre o particular‖, um dos pioneiros a despertar sobre o tema. Também vale o registro da maior facilidade no acesso às bases de dados dos tribunais ali localizados em busca das jurisprudências relacionadas ao tema. 526 BRASIL, TJ-PR - Apelação Cível e Reexame Necessário : APCVREEX 7695990 PR 0769599-0. Relator: Luiz Mateus de Lima. Julgamento: 05/07/2011. Órgão Julgador: 5ª Câmara Cível. Publicação: DJ: 690. Disponível em: <http://tj-pr.jusbrasil.com/jurisprudencia/20204842/apelacao-civel-e-reexame-necessario-apcvreex-7695990-pr-0769599-0>. Acesso em: 30 mai. 2013. 527 BRASIL, TJ-PR - REEXAME NECESSARIO : REEX 8751362 PR 875136-2 (Decisão Monocrática). Relatora: Maria Aparecida Blanco de Lima. Julgamento: 15/06/2012. Órgão Julgador: 4ª Câmara Cível. Disponível em: < http://tj-pr.jusbrasil.com/jurisprudencia/21926970/reexame-necessario-reex-8751362-pr-875136-2-decisao-monocratica-tjpr>. Acesso em: 30 mai. 2013.
139
cerebral com comprometimento na musculatura deglutória, em que se verifica a supremacia
do texto constitucional frente a normas infraconstitucionais:
A determinação judicial do fornecimento do suplemento alimentar denominado de Nutren Júnior não implica em invasão do Poder Judiciário na competência dos Poderes Executivo e Legislativo, eis que em se tratando de um direito fundamental à saúde e a vida constitucionalmente garantido, cabe administração pública prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, independentemente de quaisquer restrições ou condicionantes de ordem burocrática.
Cumpre-se destacar que a saúde é um direito público subjetivo fundamental,
ligado aos direitos sociais, constitucionalmente garantido, cabendo ao Estado implementar
políticas públicas que atendam aos hipossuficientes, como é o caso de ambos julgados,
assegurando-lhes, na prática, a consecução de seus direitos, conforme dispõe o artigo 196 da
Constituição Federal:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.528
Nesse sentido, utilizando-se como fundamento o princípio da dignidade da pessoa
humana, nenhum cidadão poderá sofrer qualquer ato que atente contra a sua saúde, sendo que
tal garantia abrange o direito do cidadão ao recebimento de medicamentos, inclusive de forma
gratuita, desde que prescritos por profissional médico à pessoa portadora de doença e
desprovida de recursos financeiros para custear o tratamento.
O Ente Público demandado tem obrigação de fornecer o medicamento requerido,
tendo em vista que a norma prevista no art. 196, da Constituição Federal é de eficácia plena,
pois versa sobre direito fundamental indisponível, saúde, além de considerar a dignidade
humana, preceito primário da ordem constitucional.
No tocante à alegação de violação aos princípios da separação dos poderes,
supremacia do interesse público e reserva do possível, esta também não merece guarida. Isto
porque, a determinação judicial do fornecimento do medicamento não implica em violação ao
princípio da reserva do possível (lesão à ordem econômica), bem como à supremacia do
interesse público, pois, como resulta evidenciado, a vida é direito subjetivo indisponível
(indispensável), devendo prevalecer em qualquer situação.
528 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 11 mai. 2013.
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Ainda considerando o direito indisponível, saúde, o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, através da relatora Rejane Maria Dias de Castro Bins, da Vigésima Segunda
Câmara Cível decidiu monocraticamente nº 70031343130.529 Por tudo antes exposto com
relação à saúde, foi acrescentada à fundamentação deste julgado, o uso da regra da
proporcionalidade, ponderando-se os dois direitos constitucionais envolvidos, premente a
análise da existência ou não de risco ao paciente.
A existência de risco de morte torna imperativo proteger a saúde sobre o direito
estatal administrativo e patrimonial. Concretizada essa circunstância e descumprida a ordem
que tenha sido pronunciada, pode-se pensar em bloqueio ou sequestro de verba pública
suficiente para seu atendimento como meio adequado, prestando-se a atingir o fim almejado,
não havendo outro igualmente eficaz e menos danoso a direitos fundamentais.
Mostra-se tempestivo colacionar um segundo precedente com idêntico
entendimento prolatado pelo Des. Araken de Assis, qual seja a Apelação Cível n.°
598412369,530 que enaltece a supremacia do direito à vida, valor supremo, absoluto e
universal, contraposto ao direito patrimonial da Fazenda Pública, através da aplicação da
regra da proporcionalidade.
Observa-se que algumas dessas decisões apresentadas se valeram da regra da
proporcionalidade como meio de sopesamento entre valores constitucionais, não sendo esta a
medida para afastamento de um princípio em detrimento de outro, mas como critério de justa
medida para aferição de preponderância de um princípio perante outro diante de um caso em
concreto.
Passando a analisar outros julgados, resta demonstrada uma mitigação deste
propalado princípio através da apelação e do reexame necessário n.º 70041848276,531 da
Vigésima Segunda Câmara Cível do TJRS, tendo como Apelante: Município de Capão Bonito
do Sul e Apelada: Sirlei Bernardi Rankrape M.E, uma vez assim decidido: 529 BRASIL, TJ-RS. Decisão Monocrática nº 70031343130, Relatora: Rejane Maria Dias de Castro Bins. Vigésima Segunda Câmara Cível, 27 de Julho de 2009. Publicação: Diário da Justiça do dia 10/08/2009. Disponível em:< http://app.vlex.com/#/vid/-63283496>. Acesso em: 31 mai. 2013. 530 BRASIL, TJ-RS. Agravo de Instrumento: 00598412369. Relator: Araken de Assis. Data de Julgamento: 10/02/1999. Quarta Câmara Cível. Disponível em:< http://www.tjrs.jus.br/busca/?q=598412369&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields=tribunal%3ATribunal%2520de%2520Justi%25C3%25A7a%2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C3%25A1tica%7CTipoDecisao%3Anull%29.Secao%3Acivel&requiredfields=Relator%3AAraken%2520de%2520Assis&as_q=>. Acesso em 31 mai. 2013. 531 BRASIL, TJ-RS. REEX: 70041848276, Relatora: Maria Isabel de Azevedo Souza, Data de Julgamento: 28/04/2011, Vigésima Segunda Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 05/05/2011. Disponível em:<http://tj-rs.jusbrasil.com/jurisprudencia/19260665/apelacao-e-reexame-necessario-reex-70041848276-rs>. Acesso em: 30 mai. 2013.
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A invocação do princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado não garante à Administração Pública a incolumidade dos seus atos administrativos ao arrepio da observância das leis. Não confere à Administração Pública o direito de interferir na esfera jurídica dos contratados arbitrariamente. Trata-se de noção que fundamenta as prerrogativas conferidas pela lei à Administração Pública na realização da utilidade pública ou do bem comum. A nulidade da rescisão unilateral do contrato administrativo sem prévio processo administrativo não pode ser eliminada pela invocação do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado.
O julgado cuida na sua fundamentação em observar que o princípio da supremacia
do interesse público sobre o particular não assegura a validade da rescisão unilateral do
contrato. Não se pode emprestar ao assoalhado princípio razão suficiente para a conservação
do ato estatal inquinado de ilegalidade. Continua o fundamento com o forte argumento de que
a supremacia do interesse público sobre o interesse privado não se constitui em regra
jurídica,532 nem tem os efeitos pretendidos pelo apelante. É que não confere à Administração
Pública o direito de interferir na esfera jurídica dos particulares arbitrariamente. Trata-se de
noção que fundamenta as prerrogativas conferidas pela lei ao Estado na realização da
utilidade pública ou do bem comum.
Cotejando, ainda, outro julgado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
rechaça a superioridade do princípio da supremacia do interesse público através da
Apelação com revisão nº 1262252720078260000533 com o voto do relator Ferraz de Arruda.
A fundamentação que deu causa ao julgado vale-se da inteligência do art. 54, da Lei n°
8.666/93, restando demonstrado que o princípio da supremacia do interesse público sofre
mitigações ao permitir-se a aplicação supletiva de outros dispositivos legais. Prossegue esse
fundamento identificando que na lição tradicional clássica, a atribuição ao Estado de
prerrogativas extraordinárias era reflexa da supremacia estatal em vista do particular.
Entretanto, um regime de direito público que busca satisfazer o interesse público a
que o contrato deve servir, não deve sacrificar os princípios superiores de justiça e de
equidade que o próprio Estado deve propender diante da concepção do sistema constitucional
democrático instaurado pela Constituição Federal de 1988.
532 Faz referência à ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular In: SARMENTO, Daniel (Org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.213. 533 BRASIL, TJ-SP. Apelação APL1262252720078260000. Relator: Ferraz de Arruda. Data de Julgamento: 08/02/2011, 13ª Câmara de Direito Público. Disponível em: < http://tj-sp.jusbrasil.com/jurisprudencia/18130460/apelacao-apl-1262252720078260000-sp-0126225-2720078260000>. Acesso em: 30 mai. 2013.
142
De acordo com a acepção de Marcal Justen Filho:
Isso significa estabelecer que as chamadas prerrogativas extraordinárias são um instrumento para propiciar a realização da função imposta ao Estado de realizar os direitos fundamentais dos cidadãos, mas segundo uma ordem jurídica caracterizada pela natureza democrática. A dita supremacia do interesse público não equivale a alguma superioridade intrínseca do Estado sobre o particular ou sobre a sociedade civil. Existem interesses que são indisponíveis, o que conduz a que o Direito atribua ao Estado a sua realização. Mas daí não segue que o Estado seja investido de faculdades prepotentes, autoritárias.
[...] todas as competências atribuídas ao Estado, inclusive as prerrogativas extraordinárias, são manifestações do dever de promover os direitos fundamentais de todos, com observância e respeito aos valores e aos limites impostos pela ordem jurídica.534
Nessas circunstâncias, quando a regra destinar-se a proteger os interesses dos
particulares, a Administração Pública não poderá impor seu afastamento, sob pena de ofensa
aos princípios constitucionais, inclusive ao da moralidade e do abuso de poder.
Sob a práxis jurisprudencial, colaciona-se, ainda, outro julgado relacionado ao
tema, apresentado através da apelação nº 70038180782,535 com o voto da relatora Desa. Maria
Isabel de Azevedo Souza, tendo em vista que a invocação do princípio da supremacia do
interesse público sobre o interesse privado não garante à Administração Pública a
incolumidade dos seus atos administrativos.
As razões que afastam a validade do princípio da supremacia do interesse público,
uma vez invocada como fundamento para assegurar a validade do ato administrativo, nessa
decisão, baseia-se em que sua mera invocação não garante à Administração Pública a
segurança dos seus atos administrativos ao arrepio da observância das leis. À Administração
Pública não lhe é devido o direito de interferir na esfera jurídica dos particulares
arbitrariamente, a partir da noção que fundamenta as prerrogativas ao Estado na realização do
interesse público. Assim sendo, tal desiderato importaria em conferir ao Estado poder
534 JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 704-705. 535 BRASIL, TJ-RS. Apelação 70038180782, Relatora: Maria Isabel de Azevedo Souza. Data de Julgamento: 30/09/2010, Vigésima Segunda Câmara Cível, Diário da Justiça do dia 08/10/2010. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/busca/?q=70038180782&tb=jurisnova&pesq=ementario&partialfields=tribunal%3ATribunal%2520de%2520Justi%25C3%25A7a%2520do%2520RS.%28TipoDecisao%3Aac%25C3%25B3rd%25C3%25A3o%7CTipoDecisao%3Amonocr%25C3%25A1tica%7CTipoDecisao%3Anull%29.Secao%3Acivel&requiredfields=Relator%3AMaria%2520Isabel%2520de%2520Azevedo%2520Souza&as_q=>. Acesso em: 31 mai. 2013.
143
ilimitado e incompatível com a Constituição da República. Invoca, ainda, que a supremacia
do interesse público não se constitui em regra jurídica.536
Diante desses julgados apresentados, assenta-se que uma corrente jurisprudencial
formada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul se filia à ideia de Humberto
Ávila em desconsiderar a supremacia do interesse público sobre o privado como regra jurídica
segundo as razões já apresentadas no capítulo primeiro dessa dissertação, quais sejam:
- Conceitualmente ele não é uma norma-princípio: ele possui apenas um grau normal de aplicação, sem qualquer referência às possibilidades normativas e concretas;
- Normativamente ele não é uma norma-princípio: ele não pode ser descrito como um princípio jurídico-constitucional imanente;
- Ele não pode conceitualmente e normativamente descrever uma relação de supremacia: se a discussão é sobre a função administrativa, não pode ‗o‖ interesse público (ou interesses públicos), sob o ângulo da atividade administrativa, ser descrito separadamente dos interesses privados.537
Com relação aos direitos sociais, resta demonstrado através do julgado ARE
701353 RN, de relatoria do Ministro LUIZ FUX, em 25/04/2013, quando verificada omissão
do poder público quanto à aplicação de medidas de prevenção e de combate à dengue que ―é
possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente,
de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que
envolve o poder discricionário do Poder Executivo‖ .538
Ainda considerando a importância dada pelo Poder Judiciário sobre a
implementação de políticas públicas pelo Estado visando à consagração dos direitos sociais
como a educação, tem-se através da decisão nº 70052932241539 prolatada pela Oitava Câmara
Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
536 Fazendo explicitamente referência a ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular In: SARMENTO, Daniel (Org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.213. 537 Idem, p. 213-214. 538 BRASIL, STF - ARE 701353 RN. Relator: Min. LUIZ FUX. Julgamento: 25/04/2013. Publicação: DJe-081 Divulg 30/04/2013 Public 02/05/2013. Disponível em: < http://stf.jusbrasil.com/jurisprudencia/23111908/recurso-extraordinario-com-agravo-are-701353-rn-stf>. Acesso em: 18 jun. 2013. 539 BRASIL, TJ-RS - AGRAVO DE INSTRUMENTO: 70052932241, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Data de Julgamento: 04/04/2013, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 09/04/2013. Disponível em:< HTTP://WWW.TJRS.JUS.BR/BUSCA/?Q=%22POL%EDTICAS+P%FABLICAS%22+&TB=JURISNOVA&PESQ=EMENTARIO&PARTIALFIELDS=TRIBUNAL%3ATRIBUNAL%2520DE%2520JUSTI%25C3%25A7A%2520DO%2520RS.%28TIPODECISAO%3AAC%25C3%25B3RD%25C3%25A3O%7CTIPODECISAO%3AMONOCR%25C3%25A1TICA%7CTIPODECISAO%3ANULL%29&REQUIREDFIELDS=&AS_Q=&INI=180>. Acesso em: 20 jun. 2013.
144
Sem olvidar que o direito à educação se insere no rol dos direitos que devem ser assegurados com absoluta prioridade às crianças e adolescentes, nos termos do art. 227 da Carta Magna, o que obriga o Estado – em sentido lato – a prestações positivas no sentido de assegurar a todos o acesso amplo e igualitário à escola, inclusive havendo expressa previsão acerca do atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino (inc. VII do art. 208 da CF), há que se considerar que tal atendimento especializado deve ser implementado mediante políticas públicas destinadas para tanto. E, certamente, essa efetivação de direitos não ocorre do dia para a noite, notadamente porque o Estado, além desta demanda, possui tantas outras inclusive em relação a crianças e adolescentes, na área da saúde e até mesmo na área da educação, não se podendo exigir, de imediato, a resolução de problemas de acessibilidade que vêm sendo constatados há longo tempo. Devem, sim, os entes públicos obedecer à legislação que trata da adequação dos prédios das escolas aos alunos portadores de deficiência, mas não é razoável impor tal providência em prazo exíguo, como pretende o agravante.
Portanto, nesse sentido devem ser trazidas as decisões que tratam do direito à
educação, ARE 639337,540 que obriga o município de São Paulo a matricular crianças em
unidades de ensino infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus
responsáveis legais, forçando o Estado a respeitar os direitos das crianças à educação infantil
conforme art. 208, IV da Constituição Federal:
A intervenção do Poder Judiciário, em tema de implementação de políticas governamentais previstas e determinadas no texto constitucional, notadamente na área da educação infantil (RTJ 199/1219-1220), objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, que, provocados pela omissão estatal, nada mais traduzem senão inaceitável insulto a direitos básicos que a própria Constituição da República assegura à generalidade das pessoas.
Um similar julgado relacionado ao direito à educação é colacionado, RE 410715
AgR541 enfatizando que ―a educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de
toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente
discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo
governamental‖.
Esses julgados tratam de direito à educação, direito fundamental de toda criança,
do dever jurídico do município de implementar educação infantil diante de mandamento
constitucional que não se sujeita à atuação meramente discricionária da Administração. 540 BRASIL, STF - ARE 639337 AgR. Relator: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125). Disponível em:< http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20622937/agreg-no-recurso-extraordinario-com-agravo-are-639337-sp-stf>. Acesso em: 27 jun. 2013. 541 BRASIL, STF - RE 410715 AgR. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/11/2005, DJ 03-02-2006 PP-00076 EMENT VOL-02219-08 PP-01529 RTJ VOL-00199-03 PP-01219 RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 291-300 RMP n. 32, 2009, p. 279-290 Disponível em: < http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/762513/agregno-recurso-extraordinario-re-agr-410715-sp-stf>. Acesso em 27 jun. 2013.
145
Valendo-se das lições de Sérgio Resende de Barros com relação à implementação
de políticas públicas, tem-se que:
A fixação das políticas públicas não pode ser arbitrária, sobretudo em um Estado Democrático de Direito, cujo governo deve ater-se ao que lhe permite ou impõe a Constituição como expressão superior do interesse público, seja em sentido estrito (interesse da administração pública), seja em sentido amplo (interesse coletivo ou social).542
Nesse sentido, visando à garantia dos direitos sociais do cidadão, o Estado deve
suprir as suas necessidades através da fixação de políticas públicas voltadas para a saúde e
educação, despindo-se da supremacia estatal e voltando-se para consolidação desses direitos
fundamentais sociais, incremento imprescindível à democracia, atendo-se ao que a
Constituição lhe permite ou lhe impõe, como expressão superior do interesse público e para a
concessão de uma vida digna a esse cidadão.
Sendo assim, os parâmetros para a implementação das políticas públicas devem
ser fundamentados preferentemente através de previsão constitucional ou em leis
infraconstitucionais, sendo exigível a motivação da conduta comissiva ou omissiva da
Administração Pública.
Sob o influxo desse entendimento, o Estado deve implementar ações de políticas
públicas voltadas para a saúde, educação, meio ambiente, dentre outros campos, objetivando
resguardar direitos sociais do cidadão.
Observa-se, para tanto, o julgado TJ-PR nº 6819896 PR543 que averigua imóvel
com material reciclável acumulando focos de dengue, obrigando ao Estado a praticar política
sanitária no combate da citada moléstia, evitando a sua epidemia.
Resta demonstrada que a força aplicada no caso é antes de tudo devido ao amparo
infraconstitucional da lei de vigilância sanitária Lei 9782/1999 que atribui poder à
Administração para interditar, como medida de vigilância sanitária, os locais que oferecem
risco iminente à saúde.
542 BARROS, Sérgio Resende de. O Poder Judiciário e as políticas públicas: alguns parâmetros de atuação. Disponível em: <http://www.srbarros.com.br/pt/o-poder-judiciario-e-as-politicas-publicas--alguns-parametros-de-atuacao.cont>. Acesso em: 21 jun. 2013. 543 BRASIL, TJ-PR - AGRAVO DE INSTRUMENTO: 6819896. Relator: José Marcos de Moura, Data de Julgamento: 07/02/2012, 5ª Câmara Cível. Disponível em: < http://tj-pr.jusbrasil.com/jurisprudencia/21417117/6819896-pr-681989-6-acordao-tjpr>. Acesso em: 25 jun. 2013.
146
Como se vê, não é a supremacia do interesse público que autoriza o agente
público adentrar no imóvel; não é estatura de norma, mas manifesta-se como algo a inspirar a
necessária interposição de uma regra de direito, de legalidade e de proteção ao cidadão.
Ainda nesse sentido, as exposições do recurso extraordinário, RE 569223 / RJ544
que trata da importação proibida de pneus usados, sendo decidido tomando por base na
legislação infraconstitucional, no sentido da constitucionalidade do controle governamental
do comércio exterior, não se cogitando de maltrato ao art. 170, IX, da Constituição da
República, no que concerne à proteção da pequena empresa nacional, dada as considerações
de ordem ambiental:
[...] A questão referente à alta potencialidade poluente do processo de remoldagem com liberação de resíduos tóxicos no Brasil deve ser considerada em virtude da presunção de legitimidade das condutas e afirmações dos agentes da Administração Pública [...] [...] Grave lesão à ordem pública, diante do manifesto e inafastável interesse público à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da Constituição Federal).
Trata-se do indeferimento de licença de importação de pneus usados como matéria
prima destinada às indústrias brasileira de remoldados. O ato de indeferimento pela
Administração Pública se baseia nitidamente em linhas constitucionais e infraconstitucionais.
Pois sua finalidade é legítima, amparada pelo ordenamento jurídico e compatível com os
princípios constitucionais, neste caso, notadamente, com os inscritos no art. 170 da
Constituição Federal, com especial ênfase para a proteção à saúde e ao meio ambiente.
Repisando, não há que se falar que foi a aplicação do alegado principio da
supremacia do interesse público à solução do caso. O comando da sentença é extraído de uma
fonte normativa autorizada e não da dita supremacia do interesse público. Dele não pode vir
um comando específico da Administração Pública, mas de regra de direito.
O dito princípio da supremacia do interesse público, em diversos casos práticos
conforme se demonstrou, relaciona-se com a questão dos controles dos atos administrativos
da Administração Pública e do controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário.
544 BRASIL, STF – RE 569223 / RJ. Relator: Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 14/09/2010. Publicação: DJe-220 Divulg: 16/11/2010. Public: 17/11/2010. Disponível em: < http://stf.jusbrasil.com/jurisprudencia/23111908/recurso-extraordinario-com-agravo-are-701353-rn-stf>. Acesso em: 18 jun. 2013.
147
Esses são alguns parâmetros que podem e devem pautar a atuação do Poder
Judiciário em relação às políticas públicas.545 Essa atuação se faz cada dia mais necessária,
em vista da crescente complexidade técnica e operacional dessas políticas, agravada pelos
intensos conflitos de interesses nelas envolvidos.
Assim, segue importante trecho da ação constitucional, ADPF 45, que debateu
sobre a legitimidade do controle e da intervenção do Poder Judiciário na implementação de
políticas públicas, quando configuradas hipóteses de abusividade governamental, lastreando a
implementação das políticas públicas:
[...] Não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.
[...] Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.[...]546
Como pode se depreender, a busca da jurisprudência acerca da supremacia do
interesse público, muitas das vezes, tangencia a questão do controle dos atos da
Administração Pública acerca do seu mérito, em atos discricionários, ou ainda, o controle das
545 Com relação à garantia das políticas públicas dada pelo controle do Judiciário tem assentamento através da decisão monocrática do Supremo Tribunal Federal, ADPF 45-9, com relatoria do Ministro Celso de Mello, que assim prolatou: ―É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e nas desta Suprema Corte, em especial, a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIElRA DE ANDRADE, ‗Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976‘, p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático. Cabe assinalar, presente esse contexto – consoante já proclamou esta Suprema Corte – que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política ‗não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei do Estado‘ (RTJ 175/1212-1213, Rel.Min. CELSO DE MELLO). […]‖.GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle de políticas públicas pelo Judiciário. Revista de Processo, São Paulo, v.33, nº 164, p.9-28, out. 2008, p.15-16. 546 BRASIL, STF - ADPF 45. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 29/04/2004, publicado em DJ
04/05/2004 PP-00012 RTJ VOL-00200-01 PP-00191. Disponível em:< http://stf.jusbrasil.com/jurisprudencia/14800508/medida-cautelar-em-arguicao-de-descumprimento-de-preceito-fundamental-adpf-45-df-stf>. Acesso em 27 jun. 2013.
148
políticas públicas postas na Constituição Federal, nem sempre implementadas ou nem sempre
tornadas práticas pela Administração Pública.
Diante do acesso ao vasto repositório jurisprudencial do país e das ínfimas
decisões encontradas relacionadas especificamente à relativização do combatido princípio da
supremacia, corrobora a afirmação de que ―a supremacia do interesse do interesse público
sobre o privado funcione como verdadeira cláusula geral de restrição de direitos, liberdades e
garantias fundamentais, olvidando os seus limites e distorcendo todo o regime constitucional
dos direitos fundamentais‖.547
Por todo o exposto, é possível apreender do exame dos precedentes
jurisprudenciais acima declinados que os magistrados têm mitigado o alegado princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular, fundamentalmente, quando contraposto ao
direito fundamental à saúde, consubstanciando no direito à vida do cidadão, bem maior ao
lado da dignidade da pessoa humana, e à educação. Também resta aferida esta prática quando
o Estado manifesta expressamente atos de abuso de poder através da rescisão unilateral dos
contratos administrativos, bem como em processo administrativo, sem razão suficiente para a
conservação do ato estatal eivado de ilegalidade.
Certo é que essa concepção de desconstrução do dito princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular embrionariamente se forma nos tribunais de justiça,
primeiros inovadores do direito até que suas reiteradas decisões cheguem a repercutir nas
cortes superiores e lá se sedimentem frente a outros princípios fundamentais, postando o
cidadão à luz da dignidade humana que lhe é devida, diante de sua relação com Estado,
mantendo, assim, o Estado Democrático de Direito.
A jurisprudência que trata da questão do interesse público, em última análise,
tangencia questões de conflito de interesse público e o que é posto no campo dos direitos do
cidadão, mais especificadamente, no campo dos direitos sociais.
O que se percebe é que por se só o princípio da supremacia do interesse público
sobre o particular não tem densidade suficiente para que dele se extraia uma norma ou ainda,
densidade suficiente a afastar comandos legais ou constitucionais acerca de políticas públicas
postas como obrigações do Estado administrador.
547 SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime jurídico dos direitos fundamentais. In: Interesses públicos versus interesses privados: descontruindo o princípio de supremacia do interesse público. SARMENTO. Daniel (Org). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.241.
149
Os conflitos entre os interesses públicos e os interesses do cidadão relacionam-se
tanto com os direitos fundamentais quanto em relação dos direitos fundamentais sociais.
Assim, a questão da supremacia do interesse não pode ser entendida como algo a contrariar os
direitos fundamentais nem tampouco os direitos fundamentais sociais.
Por todo o exposto, tem-se que o direito administrativo nasce quando o Poder
aceita submeter-se ao Direito e chegando-se a afirmar que o direito administrativo não é o
direito da Administração, mas o direito contra a Administração no sentindo de limitação à
atuação do administrador, já que a sua atuação sujeita-se às mesmas normas substantivas às
quais a atuação dos particulares deve se pautar.548
Assim, queda-se a supremacia do interesse público diante do cidadão.
548 OTERO, Op. cit., p. 275-279.
150
CONCLUSÃO
O deslinde da questão norteadora para essa dissertação, em que a aplicação da
supremacia do interesse público pela Administração deve ser relativizada, acompanhada pelo
princípio da dignidade humana e sopesada com o amparo da regra da proporcionalidade,
induz que o administrador faça a correta ponderação entre o interesse a que se quer atingir e o
interesse do cidadão, uma vez que é um ser social possuidor de legítimas prerrogativas
individuais.
Nessa pegada, servindo-se das considerações anteriormente expostas, é
oportunizado o momento de sintetizar algumas conclusões postas ao longo do texto, mesmo
considerando a inesgotabilidade do debate em torno dos limites da supremacia do interesse
público quando contrapostos aos direitos fundamentais do cidadão.
Da normatização do direito administrativo, afere-se que não existe uma única
compilação de suas normas, mas várias codificações fragmentadas que discorrem sobre o
tema, fixando-se como marco inicial para a sua origem a Revolução Francesa, sendo a sua
existência embasada em dois pilares, quais sejam: a separação dos poderes estatais com a
independência das funções do Estado, especialmente identificando a existência da função
administrativa autônoma, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, protegendo os
indivíduos da Administração.
O direito administrativo se baseia no regime jurídico-administrativo através da
consagração clássica de dois princípios, quais sejam: supremacia do interesse público sobre o
privado e a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos, estando assentados
no binômio: prerrogativas da Administração e direitos dos administrados.
Entretanto, o direito administrativo não se manteve imune ao fenômeno da
constitucionalização do direito. Está sendo um dos ramos do sistema jurídico brasileiro mais
atingido porque passou a considerar que a Administração fundamenta sua atividade
diretamente na Constituição, respeitando os valores e princípios aí consagrados.
Analisado o reflexo dos modelos de poderes estatais no direito administrativo,
identificou-se que o Estado de Direito na fase do Estado de Direito Liberal, o poder político
era limitado em razão de sua divisão em três funções típicas, bem como em razão da redução
do Estado ao mínimo de atribuições. Decorrem, nesse período, os direitos de primeira geração
151
como vida, integridade física, propriedade, liberdade, considerando a liberdade, o valor
principal.
Nas últimas décadas do século XIX e início do século seguinte, passou-se para o
Estado Social, ampliando-se as funções sociais e assistenciais, provocando aumento na
máquina administrativa, em quantidade e em complexidade das suas funções. Assim, o
sistema de proteção social concedeu ao Estado a função interventiva e regulatória na área do
bem estar social em que os indivíduos devem ser abrangidos, uma vez que o Estado se
mantém na postura de provedor dos serviços sociais para toda a sociedade e de integrador
diante dos problemas causados com a industrialização. O Welfare State foi um fenômeno
peculiar em que a cidadania se revelou como o seu centro, voltando-se para o social
fundamentalmente.
Em meados do século passado, surgiu o neoliberalismo defendendo a absoluta
liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo a
mediação ocorrer em setores imprescindíveis e numa intensidade ínfima. O novo Estado
Liberal amparou-se em métodos quase sempre associados às empresas privadas ou através da
transferência a elas da execução de tarefas tradicionalmente públicas.
Sucede o Estado Democrático, tendo em vista que através da sua conquista é que
o indivíduo passa a ser situado como cidadão na sociedade, sendo um agente perante a
Administração Pública, não possuindo feições somente de gente, marca propulsora para os
questionamentos acerca da relação travada entre o Estado e o cidadão, refletindo, assim, na
atuação da Administração Pública em que o indivíduo era antes considerado um súdito, não
um cidadão dotado de direitos. Esse sentimento democrático deve influenciar no modo de
atuar da Administração, levando à prática de uma democracia administrativa.
Sendo ingrediente dos conceitos da Administração Pública, o interesse público é
identificado como um conceito jurídico fluido e indeterminado. Diferentemente da doutrina
clássica, que constitui o interesse público como o somatório de interesses que os indivíduos
pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade, o novo
entendimento é que o interesse público é indisponível e que ele se realiza quando o Estado
cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a um único cidadão.
Na visão atual, o interesse público não é alcançado pelo arbítrio do administrador
público, e depende de juízos de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais e
outros valores metaindividuais constitucionalmente consagrados.
152
Para se interpretar o interesse público, diante do hodierno estágio dos direitos
fundamentais, deve-se fazer uma análise da circunstância em que está inserido, dos fins a que
deve atingir e da época em que ocorre, em face de uma situação concreta e diante dos valores
constitucionais.
Não há sustentação na afirmação de que o interesse privado encontra-se no
interesse público, pois que em alguns momentos o particular deve juridicamente ser tratado
como indivíduo e em outros, como parte da comunidade; nem sempre os interesses
individuais encontram-se inseridos no interesse público. Sendo assim, são merecedores da
aplicação da ponderação de valores.
Ainda, o interesse público não se identifica com o bem comum; este é a
composição harmônica do bem de cada um com o de todos; não é o direcionamento dessa
composição em favor do interesse público.
Não existe um interesse público único, estático e abstrato. Mas sim, finalidades
públicas que necessariamente não afrontam os interesses privados. O interesse público não
pode ser descrito em separado dos interesses privados.
Da condição de súdito da Administração, o administrado foi elevado ao status de
cidadão, amparando-se na nova função administrativa, direcionada para o respeito e a
concretização dos direitos fundamentais.
Contrariamente à concepção clássica que postula que a supremacia é um princípio
implícito constitucional da Administração Pública e um mandamento nuclear do sistema que
irradia sobre diferentes normas, essencial à execução das atividades administrativas, tem-se,
conclusivamente, que a supremacia do interesse público não é um princípio jurídico, sob os
seguintes fundamentos:
Diante da estrutura normativo-jurídica de princípio, a supremacia do interesse
público não é princípio jurídico, de acordo com a estrutura normativa atribuída ao conceito de
princípio jurídico, que o concebe como mandamento de otimização, proposta por Robert
Alexy e que é defendida por Humberto Bergmann Ávila.
Sendo assim, adequa-se ao conceito de princípio ético-político, cujo influxo de
ideias se encontra fora da ciência do Direito, ou seja, o fundamento das posições privilegiadas
da Administração em relação aos administrados, mostrando-se como uma necessidade
racional para a comunidade política.
153
A sua descrição abstrata não permite uma concretização em princípio gradual,
pois a prevalência é a única possibilidade (ou grau) normal de sua aplicação, e todas as outras
possibilidades de concretização somente consistiriam em exceções e, não, graus. A tensão
entre os princípios não se apresenta de modo principal, pois a solução de qualquer colisão se
dá mediante regras de prevalência, estabelecidas a priori e não ex post, em favor do interesse
público, que possui abstrata prioridade e é principalmente independente dos interesses
privados correlacionados (p. ex. liberdade, propriedade).
A ausência de fundamento de validade justificada por não resultar da análise
sistemática do Direito, por não constar expressamente em dispositivo constitucional algum,
além de que a indeterminalidade abstrata do interesse público leva à insegurança jurídica, uma
vez que é um valor que não pode ser estático e que fundamenta a atividade administrativa.
Uma norma que preconiza a supremacia a priori de um valor, princípio ou direito
sobre os outros não pode ser qualificado como princípio, sendo sem sentido se falar de um
princípio jurídico que sempre afirme, ao final do processo ponderativo, que ele sempre
prevalecerá.
A Administração não pode exigir um comportamento do particular (ou direcionar
a interpretação das regras existentes) com base nesse combatido princípio, essencialmente as
atividades administrativas que impõem restrições ou obrigações aos particulares. A unidade
da reciprocidade de interesses entre o interesse público e o privado, ou entre o Estado e o
particular, leva a uma principal ponderação entre os interesses reciprocamente relacionados,
fundamentada na sistematização das normas constitucionais.
A prevalência do interesse público sobre o privado, na órbita judicial, somente
pode ocorrer nos casos concretos, jamais de forma abstrata (enquanto princípio), absoluta,
radical e inafastável.
Há evidenciada a incompatibilidade da ideia de supremacia do interesse público
sobre o privado com o conceito de pessoa que foi recepcionado pela Constituição de 1988,
diante da visão personalista que considera, à primeira vista, o ser humano como um cidadão.
A sociedade contemporânea é uma sociedade pluralista e que a dicotomia
interesse público-privado não é mais suficiente para resolver o problema do fim da
Administração Pública, uma vez que foram categorizados outros interesses: difusos, coletivos
e sociais que a supremacia ignorava. Portanto, absoluta inadequação entre o princípio da
154
supremacia do interesse público e a ordem jurídica brasileira, em face dos riscos que sua
assunção representa para a tutela dos direitos fundamentais.
O direito público, com base na Constituição pluralista, não pode ser mais visto
como garantidor do interesse público titularizado pelo Estado, mas sim garantidor dos direitos
fundamentais positivos ou negativos.
Portanto, esse dito princípio inexiste no Estado Democrático de Direito, pois não
se pode imaginar hierarquia automática de interesses, públicos sobre privados.
Para identificar o novo sujeito na relação do direito administrativo, o cidadão,
necessário ter feito a trajetória e contextualização dos direitos fundamentais.
Os direitos fundamentais podem vir a ser formalizados como os direitos que, por
seu conteúdo material, se constituem como essenciais à existência do Estado na forma como
concebido pela Constituição, de acordo com os fundamentos da República, em especial a
cidadania e o princípio da dignidade da pessoa humana.
Para a aferição dos direitos fundamentais, deve-se ver o momento da sua
aplicação ao caso em concreto, o contexto na real situação, não se limitando à vontade à
época do legislador tendo em vista que as formulações da Constituição podem ser muito
abstratas e genéricas, necessitando às vezes da intervenção do legislador infraconstitucional
para complementar o sentido de um direito fundamental.
Os direitos ditos fundamentais se caracterizam por atribuir uma não intromissão
no espaço de autodeterminação do indivíduo e limitam a ação do Estado sobre os bens
protegidos (liberdade, propriedade, por exemplo) e fundamentam pretensão de reparo pelas
agressões consumadas, bem como a prestação social do Estado quando do direito do
particular à saúde, educação e segurança social, libertando, assim, os indivíduos das
necessidades.
Assim, os direitos fundamentais, mediante a supremacia constitucional, garantem
que nenhuma autoridade estatal desrespeite os direitos dos indivíduos, manifestando-se nas
relações caracterizadas pela desigualdade entre o indivíduo e o Estado.
Destaca-se que os direitos fundamentais devem constar de três elementos
essenciais quais sejam: Estado, indivíduo e texto regulador. Quanto ao Estado, sem sua
existência não há razão de ser dos direitos fundamentais, visto que estes direitos têm a função
de delimitar o poder desse Estado em face do indivíduo. Quanto ao elemento que traz a ideia
155
do indivíduo, importa tratá-lo como ser independente e autônomo. Por fim, a existência de um
texto regulador e supremo, desempenhado pela Constituição no sentido formal que defina as
relações entre os dois sujeitos identificados.
Os cidadãos possuem competências protegidas pelos direitos fundamentais. Tais
disposições revelam um direito fundamental prima facie a não eliminação de uma posição,
que pode ser explicada como uma proibição endereçada ao legislador ou à Administração
Pública contra a eliminação de certas competências dos cidadãos. Depreende-se que
competências e liberdades estão relacionadas. A capacidade constituída pela norma de
competência é peça elementar da liberdade de ação do cidadão. Ademais, a competência
acresce um elemento constitutivo à ação individual.
Ao Estado também são providas competências, porém, estas são configuradas sob
uma perspectiva negativa. Nesse sentido, as normas negativas de competência dirigem o
Estado a uma posição de não-competência e, consequentemente, o indivíduo a uma posição de
não-sujeição. A não-competência, em verdade, demarca a área em que o Estado é proibido de
agir, em respeito ao direito do indivíduo de não ser atingido em sua posição de não-sujeição.
Na relação dos direitos fundamentais com o Estado, tem-se que o Estado legitima-
se e justifica-se a partir dos direitos fundamentais e não estes a partir daquele. O Estado gira
em torno do núcleo gravitacional dos direitos fundamentais.
A cidadania representa a conquista plena de direitos do indivíduo e é composta
por três elementos: civil, político e social. A cidadania plena é dada pela conquista desses
direitos fundamentais, especialmente da dignidade da pessoa humana e da igualdade, cabendo
ao cidadão o direito de não ser diferenciado, mesmo diante da alegada supremacia do Estado.
O Brasil teve de seguir o seu próprio caminho para a conquista da cidadania, em
função da trajetória histórica nacional que conduziu o surgimento dos direitos que a
compõem, tendo, assim, a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação.
Para a construção da cidadania no país foi dada maior ênfase a um dos direitos, o
social e comprova-se que a sequência na qual os direitos foram adquiridos, o social precedeu
aos políticos e aos civis, e que estes surgiram, por derradeiro, a partir da Constituição de
1988, diferentemente do modelo inglês que se deu com o civil, o político e o social, nessa
ordem.
Constata-se que o atual ordenamento jurídico pátrio clama pela necessidade de
privilegiar os direitos do cidadão que são poderes e como poderes vêm a mitigar e a sopesar a
156
soberania estatal, em uma sociedade que não mais desprestigia os direitos fundamentais e que
já é consciente de que para o aperfeiçoamento da ideia da justiça social, o arbítrio e o
autoritarismo intrínsecos ao poder do Estado devem ser repensados diante da dignidade
humana.
Em situações percebidas no cotidiano em que há violação de direitos, dentre tantas
bases jurídico-normativas apontadas na tentativa de enquadramento, tem sido o princípio da
dignidade da pessoa humana aquele que com mais harmonia sustenta os julgados nos casos
concretos.
A dignidade humana possui duas dimensões a serem consideradas: interna,
expressa no valor intrínseco ou próprio de cada indivíduo; e externa, representando seus
direitos, responsabilidades, assim como os deveres perante terceiros. E assume duas funções:
é valor segundo a hermenêutica e é norma instituidora de direito material consubstanciado em
norma-princípio ou norma-regra.
É, pois, a dignidade humana o princípio constitucional que se sobrepõe a todos os
demais princípios no modelo de Estado de Direito Democrático brasileiro, que foi introduzido
a partir da Constituição de 1988, por ser a garantidora dos direitos do indivíduo, da evolução
da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana é argumento da inexistência da supremacia do
interesse público sobre o particular visto que a entronização da supremacia do interesse
público num patamar hierárquico privilegiado se mostra em descompasso no sistema
constitucional brasileiro, uma vez que há um núcleo essencial em defesa dos direitos
fundamentais, centralizado na dignidade da pessoa humana.
Assim, quando contraposto um direito fundamental e tendo em vista a supremacia
da dignidade humana, o interesse público não se torna melhor dotado com a referência à sua
supremacia, devendo desprender-se da posição jurídica que lhe foi imposta, como princípio
constitucional implícito, mas se limitando à realização da finalidade pública em si.
Em suma, abstrai-se a incompatibilidade existente entre a supremacia do interesse
público e a dignidade humana, reiterando a prevalência existente no texto constitucional dos
direitos fundamentais, como modelo jurídico especial de proteção.
Sendo analisada a justa medida existente entre a Administração Pública e o
cidadão e tomando por fundamento a teoria de Robert Alexy, identifica-se que o debatido
princípio da supremacia do interesse público sobre o particular sinaliza uma precedência
157
prima facie a priori e em abstrato do interesse público sobre o interesse particular, denotando-
se numa relação abstrata de prevalência absoluta, incompatível com a concepção de
―princípio‖ uma vez que este prevê uma relação concreta de prevalência relativa, cujo
conteúdo depende das circunstâncias do caso e cujos efeitos só são desencadeados caso
verificadas as condições de prevalência do princípio envolvido.
Esse referido princípio é uma regra abstrata de preferência no caso de colisão em
favor do interesse público, nunca, porém, uma norma-princípio prima facie. A questão sobre o
seu fundamento de validade fica irrespondida, restando, assim, ser incompatível com a
definição de princípio. Vê-se também a impossibilidade da aplicação da supremacia do
interesse público sobre o particular de modo gradual, daí a identificação de um dos
fundamentos da incompatibilidade de ser princípio jurídico.
A regra da proporcionalidade, quando da sua aplicação como medida de
ponderação, relaciona-se especialmente com o princípio da república federativa constituindo o
Estado Democrático de Direito, além dos princípios da cidadania e da dignidade da pessoa
humana, núcleo dos direitos e garantias constitucionais que devem ser protegidos. A
dignidade busca garantir que os cidadãos devem ser tratados de forma equitativa perante a lei,
de acordo com as necessidades de cada um, proporcionando, assim, o atingimento de um dos
objetivos fundamentais do Estado que é reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Essa mesma regra visa determinar a solução de conflitos entre bens ou valores
constitucionais definidos como, por exemplo, direitos fundamentais que entram em rota de
colisão, sendo atribuídos pesos e sendo solucionados através da técnica de ponderação de
valores. Assim, constata-se a sua incompatibilidade com o debatido princípio da supremacia
do interesse público sobre o particular, tendo em vista que a sua interpretação leva ao
entendimento de que sempre há de prevalecer a supremacia de um dos envolvidos no caso
concreto, o interesse público, em detrimento da outra parte que está sendo valorada, o
particular, ou seja, rejeita as especificidades de cada caso, impondo a relação de prevalência
do interesse público e desconsiderando a pluralidade de interesses jurídicos em jogo.
Verifica-se a incompatibilidade da supremacia do interesse público sobre o
particular com o procedimento da aplicação prática pela regra da proporcionalidade,
constituindo argumento de inexistência do dito princípio no ordenamento jurídico brasileiro.
Uma vez afastada a supremacia em si, e sendo necessária a solução de conflito
entre o interesse público e o interesse particular, deve-se valer das soluções tradicionais de
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conflitos de leis, somadas à regra da proporcionalidade (políticas públicas versus direitos
fundamentais) em busca da solução que leve à máxima realização dos interesses contrapostos.
Sob a argumentação jusfundamental voltada para a desconstrução ou mitigação do
debatido princípio da supremacia do interesse público, seguindo o pensamento da nova
hermenêutica filosófica com o reflexo na hermenêutica jurídica, sob o enfoque da existência
humana, Hans-Georg Gadamer defende que a compreensão é um ato histórico e está sempre
relacionada com o presente, alertando que o preconceito é tido como uma condição de
julgamento, ou seja, é pré-julgamento que precede ao julgamento e que algumas medidas de
auto percepção são possíveis quando os preconceitos são confrontados com o novo e o
inesperado.
Apreende-se do exame dos precedentes jurisprudenciais que os magistrados têm
mitigado o alegado princípio da supremacia do interesse público sobre o particular,
fundamentalmente, quando contraposto ao direito fundamental à saúde, consubstanciando no
direito à vida do cidadão, bem maior ao lado da dignidade da pessoa humana, e à educação.
Também resta aferida esta prática quando o Estado manifesta expressamente atos de abuso de
poder através da rescisão unilateral dos contratos administrativos, bem como em processo
administrativo, sem razão suficiente para a conservação do ato estatal eivado de ilegalidade.
Afere-se que esse propalado princípio da supremacia do interesse público não
deve ser somente visualizado nos atuais dias como condutor para as práticas das atividades
administrativas, mas também como medida de sopesamento diante dos direitos fundamentais
por quais clamam os cidadãos, sendo, neste caso, relativizado.
O combatido princípio da supremacia do interesse público, em diversos casos
práticos conforme se demonstrou, relaciona-se com a questão dos controles dos atos
administrativos da Administração Pública e do controle das políticas públicas pelo Poder
Judiciário.
A jurisprudência colacionada acerca da supremacia do interesse público, muitas
das vezes, tangencia a questão do controle dos atos da Administração Pública acerca do seu
mérito, em atos discricionários, ou ainda, o controle das políticas públicas postas na
Constituição Federal, nem sempre implementadas ou nem sempre tornadas práticas pela
Administração Pública.
Certo é que essa concepção de desconstrução do dito princípio da supremacia do
interesse público sobre o particular embrionariamente se forma nos tribunais de justiça,
159
primeiros inovadores do direito até que suas reiteradas decisões cheguem a repercutir nas
cortes superiores e lá se sedimentem frente a outros princípios fundamentais, postando o
cidadão à luz da dignidade humana que lhe é devida, diante de sua relação com Estado,
mantendo, assim, o Estado Democrático de Direito.
Em última análise, a jurisprudência que trata da questão do interesse público
enfrenta superficialmente questões de conflito de interesse público e o que é posto no campo
dos direitos do cidadão, mais especificadamente, no campo dos direitos sociais.
O que se percebe é que por se só o princípio da supremacia do interesse público
sobre o particular não tem densidade suficiente para que dele se extraia uma norma ou ainda,
densidade suficiente a afastar comandos legais ou constitucionais acerca de políticas públicas
postas como obrigações do Estado administrador.
Os conflitos entre os interesses públicos e os interesses do cidadão relacionam-se
tanto com os direitos fundamentais quanto em relação dos direitos fundamentais sociais.
Assim, a questão da supremacia do interesse não pode ser entendida como algo a contrariar os
direitos fundamentais nem tampouco os direitos fundamentais sociais.
Conclui-se que a supremacia do interesse público diante do cidadão não existe já
que a atuação da Administração Pública se sujeita às mesmas normas substantivas às quais a
atuação dos particulares deve se pautar, resgatando a ideia de que o direito administrativo não
é o direito da Administração, mas o direito contra a Administração no sentindo de limitação
aos atos do administrador, quando este extrapola e invade a esfera do cidadão.
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