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DIEGO BARALDI DE LIMA O CINEMA MATO-GROSSENSE DOS ANOS 90: ENTRE O LOCAL E O GLOBAL Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL Cuiabá 2006

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DIEGO BARALDI DE LIMA

O CINEMA MATO-GROSSENSE DOS ANOS 90:

ENTRE O LOCAL E O GLOBAL

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL

Cuiabá 2006

DIEGO BARALDI DE LIMA

O CINEMA MATO-GROSSENSE DOS ANOS 90:

ENTRE O LOCAL E O GLOBAL

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em

Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato

Grosso – UFMT, como requisito parcial para obtenção do título

de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de concentração: Estudos Literários e Culturais

Orientador: Prof. Dr. Mário Cezar Silva Leite

Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT Instituto de Linguagens - IL

Cuiabá 2006

L7324c

Lima, Diego Baraldi de. O Cinema mato-grossense dos anos 90: entre o local e o global./ Diego Baraldi de Lima. – Cuiabá: o autor, 2006. 106p.

Orientador: Profº Dr. Mário Cezar Silva Leite. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Campus de Cuiabá.

1. Lazer – Cinema. 2. Exibição – Produção cinematográfica. 3. Análise do Discurso – Produção audiovisual. 4. Mato Grosso. CDU 791.44(817.2):81’42

Para Caroline Tobias Caramaschi (in memoriam),

que viveu intensamente;

e Marina Peserico Bitencourt,

que tem o mundo inteiro a desbravar.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Mário Cezar Silva Leite,

por ter incentivado esta dissertação;

Aos professores membros da banca de avaliação,

Durval Muniz de Albuquerque Jr.,

Lúcia Helena Vendrúsculo Possari

e Ludmila Brandão, pelas palavras de estímulo;

Às preciosas interferências e sugestões de

Suzana Guimarães,

grande interlocutora e, agora, amiga;

Aos professores do Mestrado em Estudos de Linguagens da UFMT;

Aos meus amigos, pela força nas horas difíceis;

A Luiz Borges e Cybelle Bussiki;

Aos meus pais e minha irmã que,

mesmo distantes, sempre estiveram presentes com

palavras de estímulo e carinho;

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES,

pela bolsa concedida.

RESUMO

LIMA, D. B. O cinema mato-grossense dos anos 90: entre o local e o global.

Esta dissertação faz uma análise do discurso cinematográfico presente no curta-

metragem “A Cilada com Cinco Morenos” (Luiz Borges, MT, 35 mm, 14´40´´, 1999),

de modo a enfatizar as maneiras com que o local (os elementos que se referem ao

estado de Mato Grosso, a região cuiabana, o regional) se torna visível nesta

narrativa, e seu diálogo com o global (os elementos que transcendem a região, que

promovem um diálogo com o universal, com o culturalmente mundializado). Além

disso, investiga a produção cinematográfica mato-grossense dos anos 90, dando

atenção especial ao papel desenvolvido por instituições como o Cineclube

Coxiponés da Universidade Federal de Mato Grosso, a Associação Mato-Grossense

de Áudio/Visual - AMAV, o Conselho Estadual de Cultura, a Lei Estadual de

Incentivo à Cultura e o Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, na articulação do

segmento audiovisual mato-grossense, de modo a inserir o Estado no contexto da

produção cinematográfica brasileira. Para tanto, são utilizadas, além do referencial

bibliográfico, fontes como os textos de abertura dos catálogos do Festival de Cinema

e Vídeo de Cuiabá, atas do Conselho Estadual de Cultura, matérias de jornais e

outras publicações, além dos vídeos e filmes que compõem a recente produção

audiovisual mato-grossense.

Palavras-chave: cinema, produção audiovisual, mundialização da cultura.

ABSTRACT

LIMA, D. B. Mato Grosso’s Cinema in the decade of 1990: between local and global.

The present work makes an analysis of the cinematographic discourse presented in

the short-film "A Cilada com Cinco Morenos” (Luiz Borges, MT, 14'40 '', 1999), in

order to emphasize the ways “local” (the elements/signs that are related to the State

of Mato Grosso-Brazil, the region of Cuiabá city, the region concept itself) becomes

visible in that narrative, and its dialogue with “global” (the elements that exceeds the

region and promote a dialogue with the universal signs and mundialization).

Moreover, it investigates cinema and video production from Mato Grosso in the

decade of 1990, giving special attention to the role developed for institutions as

“Cineclube Coxiponés” from “Universidade Federal de Mato Grosso” (Mato Grosso

Federal University), “Associação Mato-Grossense de Áudio/Visual - AMAV” (Mato

Grosso’s Cinema and Video Association), “Conselho Estadual de Cultura” (Culture

State Council), “Lei Estadual de Incentivo à Cultura” (Culture Incentive State Law)

and “Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá” (Cuiabá Film and Video Festival), in the

disputes for local cinema and video production, in order to introduce the State of

Mato Grosso in the context of Brazilian cinema production. Beyond the

bibliographical resources, this research uses the texts of the catalogues of “Festival

de Cinema e Vídeo de Cuiabá” (Cuiabá Film and Video Festival), documents from

“Conselho Estadual de Cultura” (Culture State Council), articles from local media and

films/videos from Mato Grosso’s production.

Keywords: cinema, cinema and video production, culture mundialization.

SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................. .01

CAPÍTULO I - A PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA

MATO-GROSSENSE DOS ANOS 90......................................................... .12

1.1.O contexto da “retomada” do cinema brasileiro e a produção cinematográfica mato-grossense............................................................ .13

1.2.As principais instituições.....................................................................21

1.2.1.Do Cineclube Coxiponés à AMAV...............................................22

1.2.2.Da Lei Estadual de Incentivo à Cultura à Mostra/Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá....................................................................29

1.3. A produção audiovisual mato-grossense oriunda da Lei e a vinculação com temáticas regionais.........................................................39

CAPÍTULO II - “A CILADA COM CINCO MORENOS”:

ENTRE O LOCAL E O GLOBAL..................................................................51

2.1.Mundialização da cultura e identidades..............................................53

2.2.Paredões milenares, celulares e congestionamentos em “A Cilada com Cinco Morenos”............................................................59

2.2.1.Características formais.................................................................63

2.2.2.Características conteudísticas.....................................................73

2.2.2.1.A carga de elementos que se referem ao local/regional.............................................................73

2.2.2.2.Oposição cidade-interior.................................................76

2.2.2.3.A trilha sonora enquanto elemento narrativo...............78

2.2.2.4.O elemento humano e suas caracterizações................80

Linhas de Fuga........................................................................................................86

Referências Bibliográficas......................................................................................91

Anexos......................................................................................................................97

I - Descrição do curta-metragem “A Cilada com Cinco Morenos”...........98

INTRODUÇÃO

Quando meu pai confirmou que realmente deixaríamos a cidade onde

vivíamos no Rio Grande do Sul para estabelecer morada no interior de Mato Grosso,

as imagens que se materializavam em minha imaginação eram de onças

espreitando atrás de árvores e jacarés cercando os arredores das casas. Naquela

época, aos doze anos, a idéia que eu tinha do lugar para onde estava mudando era

fantasiosa e repleta de grandes e surpreendentes atrações. No colégio, poucas

haviam sido as aulas sobre a geografia do Brasil que abordassem a configuração

moderna dos estados brasileiros, e Mato Grosso era apenas uma abstração

composta de um lugar-fotografia-de-livro-didático chamado Pantanal, repleto de

água, pássaros, jacarés, cobras, onças e pessoas poucas. Para mim, havia a vaga

idéia de que Mato Grosso era também um estado para o qual muitas pessoas da

região na qual eu vivia no Rio Grande do Sul estavam se deslocando, em busca de

uma nova vida, de novas possibilidades, de melhorias materiais. O caso de meu pai

era o mesmo. Seduzido pelas promessas de terras baratas e um mercado de

trabalho em expansão1 para a área contábil, com a qual trabalhava, decidiu

enveredar pelas bandas de Mato Grosso, trazendo consigo minha mãe e eu. Para

trás ficaram as pessoas com as quais havíamos convivido durante muito tempo e as

lembranças de um lugar do qual nos sentíamos - meus pais com mais intensidade -

parte.

Viajando em direção a Mato Grosso, pude encontrar caminhos e paisagens

que eu nunca havia visto. Minha vida até então havia sido uma combinação de

escola, brincadeiras com os amigos e férias no litoral catarinense, local mais

longínquo para o qual havia viajado até meus doze anos. Nasci em uma pequena

cidade do interior rural do Rio Grande do Sul, Santo Augusto2, com não mais de

quinze mil habitantes. Naquela época, aquela cidade representava um mundo

gigantesco. Desde pequeno, lembro das músicas que meu pai ouvia no toca-fitas, e

1Muito tempo antes, na década de 1970, é publicado o livro “Mato Grosso: um convite à fortuna”, de Lenine C. Povoas (1977), onde o autor enumera diversas características que fariam da região mato-grossense um lugar de grande atrativos para pessoas que buscassem novas oportunidades. Como se lê na justificativa do livro, “é incalculável o número de pessoas, especialmente no sul do Brasil, que buscam informações sobre as terras e as oportunidades de negócios no vasto Estado Central. Mas a escassez de dados atualizados sobre Mato Grosso dificulta enormemente o seu conhecimento. Essa falta de divulgação faz com que, lamentavelmente, ainda haja, no litoral, brasileiros para os quais Mato Grosso seja, até hoje, ‘uma terra longínqua, inóspita e selvagem’” (griffo do autor). 2O município de Santo Augusto foi emancipado em 1959. Localizado na região Noroeste Colonial do Estado do Rio Grande do Sul, está situado a uma distância aproximada de 480 Km de Porto Alegre - capital do estado - e tem proximidades com os municípios de Ijuí, Coronel Bicaco, Três Passos, Palmeira das Missões, Santa Rosa, entre outros. A história de Santo Augusto teve início a partir das Missões religiosas dos Jesuítas, dedicados à catequese dos indígenas.

da televisão preto-e-branco que tínhamos na sala, que, quando não ligada nos

desenhos que eu assistia todas as manhãs, geralmente mostrava os cantores das

mesmas músicas ouvidas por meu pai. Confesso que aquelas músicas não me

agradavam e, muitas vezes, traziam-me certa irritação, causando a impressão de

que eu não levava talento para ser um “bom gaúcho” (como se tal coisa realmente

existisse). A presença dos elementos da cultura regionalista3 transbordava em tudo

ao meu redor, sempre me causando um quê de desconforto: não conseguia

assimilar a necessidade do uso das bombachas, botas e lenços enrolados no

pescoço tão comuns no vestuário das pessoas que viviam em minha cidade, se não

durante o ano inteiro, pelo menos na época da Semana Gaúcha, evento que

acontecia na cidade e reunia pessoas de toda região para celebrar rituais que as

identificavam enquanto pertencentes àquelas tradições, àquela cultura. Poucos eram

os eventos ou coisas que fugissem daquela temática comum. A televisão preto e

branco era quase como que uma válvula de escape, revelando imagens e sons que

remetiam a outras formas de viver e se comportar, outras músicas, outros falares.

Musicalmente, acredito que as referências que meus pais tinham e que

fugiam das músicas do cancioneiro tradicionalista ou nativista4 eram Roberto Carlos

e alguns cantores de moda-de-viola do interior paulista e mineiro (estes, os cantores

de modas-de-viola, não deixavam, no entanto, de remeter a um mesmo tipo de

imaginário que as canções tradicionalistas e, com menos intensidade, nativistas,

traziam). Cinematograficamente, as referências mantinham aquela coerência,

através de filmes do “cinema de bombacha e chimarrão5” que tinham em

3Nilda Jacks (1998), investigando a cultura regional sul-rio-grandense, aponta “manifestações que diferenciam a cultura do Rio Grande em relação aos outros estados brasileiros, sendo que o regionalismo gaúcho, em termos culturais, começa a ganhar realce ainda no século passado (XIX, parêntesis meu) com a criação do Partenon Literário. No século em transcurso (XX, parêntesis meu), o regionalismo gaúcho consolida-se através do Regionalismo Literário, do Movimento Tradicionalista e mais recentemente, do Movimento Nativista”. 4Segundo Jacks (1998), “o Movimento Tradicionalista Gaúcho/MTG é iniciado no final da década de 1940 e atua até hoje, sendo o que mais influenciou na caracterização da cultura regional gaúcha, pelo esforço na preservação das raízes e no combate às manifestações alienígenas. No início da década de 70, surge o Movimento Nativista gerado no interior do Tradicionalismo, pretendendo a renovação da cultura regional, até então presa aos dogmas tradicionalistas, que impediam a evolução das formas musicais e poéticas, entre outras manifestações. Assim, a cultura regional gaúcha reviveu, através do Nativismo, a força de suas tradições e, quando já apresentava sinais de saturação no final da década de 1980, o movimento foi alcançado pelos efeitos da globalização, que fazem emergir a construção, reconstrução e fortalecimento de múltiplas identidades no mundo inteiro, mantendo-o atualizado como questão”. 5De acordo com a doutora em História, jornalista e professora das Ciências da Comunicação da Unisinos, Miriam Rossini, a expressão era utilizada pejorativamente pela crítica cinematográfica para referir-se à intensa produção de cinema no Rio de Grande do Sul dos anos 60 e 70.

Teixeirinha6, seu expoente máximo, além de filmes de Mazzaropi7, todos assistidos

no videocassete, que se tornara presente em minha vida no início dos anos 90. No

precário cinema de minha cidade natal, era possível assistir apenas a filmes dos

Trapalhões, Xuxa e Angélica. O único filme ao qual lembro ter assistido no cinema e

que fugia um pouco do gênero infanto-juvenil fora “Fuscão Preto8”, ainda assim

impulsionado pela crescente popularidade da protagonista do filme entre as crianças

de minha época. Ou seja, a maior parte das referências que chegavam até mim

diziam respeito a um universo ora tradicionalista, ora caipira. Mesmo viajando para

Porto Alegre, a capital do estado, a impressão que eu tinha era de que continuava

mergulhado em um sem-fim de referências ao ser gaúcho. De minhas passagens

pela capital, poucas foram as impressões que ficaram (e que depois, em viagens

futuras, se revelariam) da cultura urbana daquele lugar, da efervescência cultural

que acontecia na região metropolitana sul-rio-grandense. Os vínculos e práticas

sócio-familiares aos quais eu participava me mantinham imerso em um conjunto de

elementos culturais que se apresentavam enquanto constitutivos daquilo a que eu

deveria me juntar, fazer parte.

6Vítor Mateus Teixeira, mais conhecido como Teixeirinha (Rolante, 3 de março

de 1927

— Porto Alegre, 4 de dezembro de 1985) foi um cantor e compositor

brasileiro. Teve uma infância trágica, pois aos seis anos perdeu o pai, um carreteiro, e aos nove anos perdeu a mãe em um incêndio. Em 1961 tornou-se sucesso nacional com o lançamento de "Coração de Luto", música que falava da trágica morte de sua mãe. Ainda em 1961 conheceu em Bagé

a cantora Mary Teresinha, que se tornou sua efetiva companheira. No cinema, atuou em: Coração de Luto (Eduardo Llorente, 1996), Motorista sem Limites (Milton Barragan, 1969), Ela Tornou-se Freira (Pereira Dias, 1972), Teixeirinha 7 Provas (Milton Barragan, 1973), O Pobre João (Pereira Dias, 1974), Na Trilha da Justiça (Milton Barragan, 1976), Carmem, a Cigana (Pereira Dias, 1976), A Quadrilha do Perna Dura (Pereira Dias, 1976), Meu Pobre Coração de Luto (Pereira Dias, 1978), Gaúcho de Passo Fundo (Pereira Dias, 1978), Tropeiro Velho (Milton Barragan, 1979), A Filha de Iemanjá (Milton Barragan, 1981). 7Amácio Mazzaropi (São Paulo, 9 de abril

de 1912

— São Paulo, 13 de junho

de 1981), fez carreira no rádio, teatro, cinema e televisão. No cinema, trabalhou como ator, roteirista, produtor e diretor de filmes. Filmografia: Sai da Frente (Abílio Pereira de Almeida, 1952), Nadando em Dinheiro (Abílio Pereira de Almeida, 1952), Candinho (Abílio Pereira de Almeida, 1953), A Carrocinha (Agostinho Martins Pereira, 1955), O Noivo da Girafa (Victor Lima, 1957) , Chico Fumaça (Victor Lima, 1958), Chofer da Praça (Milton Amaral, 1958), Jeca Tatu (Milton Amaral, 1959), As Aventuras de Pedro Malasartes (Amácio Mazzaropi, 1960), Tristeza do Jeca (Amácio Mazzaropi, 1961), O Puritano da Rua Augusta (Amácio Mazzaropi, 1965), O Jeca e a Freira (Amácio Mazzaropi, 1967), Uma Pistola para Djeca (Ary Fernandes, 1969), Um Caipira em Bariloche (Pio Zamuner, Amácio Mazzaropi, 1973), O Jeca Macumbeiro (Pio Zamuner e Amácio Mazzaropi, 1974), Jeca Contra o Capeta (Pio Zamuner, Amácio Mazzaropi, 1975), Jecão, Um Fofoqueiro no Céu (Pio Zamuner, Amácio Mazzaropi, 1977), Jecão e o Seu Filho Preto (Pio Zamuner, Berilo Faccio, 1978), O Jeca e a Égua Milagrosa (Pio Zamuner, Mazzaropi, 1980), entre outros. Em “O Rural no Cinema Brasileiro”, Célia Aparecida Ferreira Tolentino (2001), faz uma análise de como a figura do “caipira” é representada em alguns filmes de Mazzaropi. 8Filme de 1983, dirigido por Jeremias Moreira Filho, com roteiro inspirado em música de mesmo nome, de Artilio Versuti e Jeca Mineiro, cantada por Almir Rogério, que protagonizava o filme com a atriz iniciante Maria da Graça Meneguel, a Xuxa, antes de a mesma ter estreado seu popular programa infantil, na Rede Globo (1986).

A mudança para Mato Grosso, em 1992, fez com que muitas das idéias que

minhas fantasias infantis haviam construído se materializassem. Mudáramos para

um distrito de um pequeno município do estado, chamado Novo Eldorado9, onde a

energia elétrica era racionada e a água era retirada manualmente de um poço.

Onças não se davam a ver, mas cobras e outros bichos peçonhentos eram comuns

no quintal de casa. Do interior rural do Rio Grande do Sul fui lançado para o interior

rural de Mato Grosso. Mesmo assim, vivendo em um local tão afastado da

urbanidade, conexões com o que havia para além daquele lugar tornavam-se

possíveis. A televisão continuava presente na sala de casa, só que agora era

necessária uma antena parabólica para sintonizar os canais. Quando não havia luz,

ligava-se o rádio à pilha na Rádio Nacional da Amazônia, algo que não fazia parte

de minhas práticas cotidianas no Rio Grande do Sul, onde o rádio não era um meio

de comunicação presente em meu dia-a-dia. No toca-fitas de meu pai (também à

pilha), continuavam as mesmas músicas trazidas do Sul, agora com maior

intensidade, pois traziam a nostalgia da terra natal, da família que ficara para trás,

dos amigos distantes. As músicas que exaltavam o estado sulista se tornariam as

mais ouvidas. “É o meu Rio Grande do Sul, céu, sol, sul, terra e cor / Onde tudo o

que se planta cresce e o que mais floresce é o amor10”, entre outras, eram o elo com

o estado idealizado, ao qual, pelo menos uma vez ao ano, toda a família - que agora

contava com mais um membro, minha irmã, nascida na capital do Estado, Cuiabá -

se dirigia para rever os que ficaram.

Minha adolescência foi vivida assim, em um conflito entre todo um imaginário

que representava uma idéia do que era ser gaúcho, ser do Sul - imaginário este que

eu nunca conseguiria incorporar com naturalidade -, e um desejo enorme por

conhecer outras coisas, visitar outros lugares, fazer parte de histórias que a

televisão e o rádio inseriam em meu cotidiano. Nesta época meu pai trabalhava

como contador em uma cooperativa de grãos, e trazia diariamente jornais e revistas

para casa, os quais eu devorava, principalmente os cadernos de cultura, tomando

parte de informações desconexas de filmes, livros, discos que eu nunca havia visto,

lido ou ouvido. Às vezes era possível associar alguma coisa lida com o que algum

canal transmitido pela parabólica trazia, e assim eu fui recortando e colando fatos e

9Na época, Novo Eldorado era distrito do município de Tapurah, localizado no noroeste do Estado de Mato Grosso. 10“Céu, Sol, Sul”. Música de Jader Moreci Teixeira, conhecido como Leonardo.

imagens que comporiam um repertório conturbado entre referências que remetiam

ao isolamento geográfico da vida no interior de Mato Grosso e as conexões

possíveis com um mundo exterior, através dos meios de comunicação presentes

naquele contexto.

Nos dois anos que vivi nesse lugar meio que escondido de tudo, mas também

de alguma forma ligado com o mundo (justamente através das imagens capturadas

pela parabólica, dos jornais e revistas de circulação nacional que chegavam até ali),

recebi poucas informações acerca das expressões culturais do estado de Mato

Grosso. A escola não o fazia, as emissoras de televisão que a parabólica

sintonizava reproduziam a programação dos pólos produtores (São Paulo, Rio de

Janeiro) e não a programação gerada pelas emissoras do estado, a rádio ouvida era

a Nacional da Amazônia. Analisando mais atentamente, havia uma carga muito

maior de referências cotidianas ao estado que eu havia deixado, no caso, o Rio

Grande do Sul, do que ao qual eu habitava. Após uma mudança para o norte de

Mato Grosso, na cidade de Sinop, essa percepção fortaleceu-se ainda mais, devido

a grande quantidade de migrantes11 oriundos da região sul do país e residentes no

local, o que fazia a cidade (não apenas entendida como o modo de ocupação

espacial daquele lugar, mas também as características do elemento humano ali

presente) lembrar muito os modos de vida que eu associava ao Rio Grande do Sul.

Um quase paradoxo: distante quase três mil quilômetros de minha cidade natal, a

impressão que eu tinha era a de que eu continuava vivendo lá.

Com o término do colegial, prestei vestibular para a Universidade Federal de

Mato Grosso, em Cuiabá, para o curso de Comunicação Social, dando impulso à

11 Cf. Siqueira, E. M. (2002: 234-5): “Foi lançado, no ano de 1970, pelo governo federal, o PIN - Plano de Integração Nacional -, o qual objetivava a efetiva ocupação da Amazônia Legal através do deslocamento de migrantes, especialmente nordestinos, para a faixa de terra que, por 10 km, margeava as principais rodovias criadas: a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém, sob a coordenação do INCRA. Essa faixa foi aumentada em 1971, com o PRO-TERRA - Programa de Distribuição de Terras e Estímulo à Agroindústria -, de 10 para 100 km e destinada à fixação de pequenos produtores rurais. (...) Essas alterações administrativas tiveram sustentação na política fundiária implementada pelo Governo Federal a partir de 1964, quando, tendo como base princípios de modernização e ampliação das fronteiras do país, foram criados vários programas de colonização, os quais contavam com polpudas verbas da SUDAM e eram apoiados por projetos diversos, a exemplo do POLONOROESTE. Esses projetos e programas de colonização estimularam a vinda de grande leva de migrantes, pra Mato Grossso, advindos das mais diversas regiões brasileiras. (...) A partir da década de 1970, a colonização ganhou um outro sentido: as terras que se situavam em Mato Grosso e Amazônia eram vistas como “espaços vazios”, inabitados, sendo necessário abrir a fronteira, atraindo para esse território elementos que, fugindo dos problemas enfrentados nas regiões de origem, migrassem em direção ao espaço aberto à moderna colonização. A coordenação desse movimento ficou a cargo do governo federal, que implantou projetos oficiais de colonização, ao lado da iniciativa privada.”

vontade de vivenciar uma experiência mais urbana. A aprovação fez com que eu

viesse para a capital do estado para estudar, além de possibilitar a saída do reduto

familiar, lançando-me a novos vôos. Estar em Cuiabá permitiu, principalmente, o

acesso a um cenário cultural que se evidenciava na cidade. A universidade, por si

só, oferecia uma programação específica para segmentos artísticos variados, e, aos

poucos, fui percebendo uma efervescência presente entre artistas de diversas áreas.

Mas era a possibilidade de freqüentar o cinema o que realmente me fascinava. Mais

ainda quando fiquei a par da realização do Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá,

no campus da universidade. Lembro perfeitamente, no primeiro Festival em que

estive presente enquanto espectador (1999, 7ª edição), dos discursos proferidos por

organizadores e apoiadores do evento, reforçando a necessidade em se investir no

audiovisual local, para que as pessoas de Mato Grosso também pudessem se ver na

tela do cinema e da televisão, como forma de preservar suas expressões culturais e

resistir à homogeneidade de imagens vindas dos grandes centros produtores. Após

aquela experiência, comecei a perceber que aquele discurso se repetia, com as

variações devidas, em todos os eventos e apresentações culturais que eu

freqüentava. Salões de arte insistiam na necessidade em investir em uma

iconografia que remetesse ao que era “intrínseco” à região mato-grossense, músicos

cantavam o pertencimento à terra, faziam odes à cor local, poetas louvavam o Rio

Cuiabá. Salvo raras exceções e momentos em que era possível acompanhar

eventos culturais que vinham de outros estados, a produção cultural local começou a

mostrar-se previsível e monotemática. Uma inquietação começou a fazer morada em

meus pensamentos. Novamente eu me sentia incomodado com um discurso que se

agarrava na tradição e pregava a continuidade de um modo de dizer as coisas que

faziam parte daquele lugar, daquela tradição.

Perceber que artistas e produtores culturais, mesmo vivendo e tendo contato

com as manifestações artísticas mais contemporâneas possíveis, insistiam na

preservação de um discurso voltado para a legitimação de um repertório ligado à

idéia de uma identidade local para a cultura mato-grossense, é o que primeiramente

motivou este trabalho.

A dissertação

Através de pesquisa realizada como conclusão de minha graduação em

Comunicação Social pela Universidade Federal de Mato Grosso, propus um

levantamento da produção audiovisual mato-grossense resultante do estímulo

trazido pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura – Lei Hermes de Abreu (Lei Estadual

nº. 5.893–A, de 12 de dezembro de 1991, publicada no Diário Oficial de 09 de

janeiro de 1.992 e modificada pela Lei N.º 6.913, de 04/07/97 e pela Lei 7.042, de

15/10/98). Com o levantamento, pude apontar que havia uma produção significativa

oriunda dos benefícios da Lei, mas em nenhum momento analisei qualitativamente

as produções realizadas. Paralelamente àquele levantamento, foram realizadas

entrevistas com os quatro cineastas mato-grossenses que haviam dirigido curtas-

metragens através daquela política de incentivo: Amauri Tangará (“Pobre é Quem

Não Tem Jipe”, MT, 1997 e “A Velha, os Meninos e o Gato que Escaparam da

Estranha Caixa Azul”, MT, 2000), Luiz Borges (“A Cilada com Cinco Morenos”, MT,

1999), Márcio Moreira (“Saringangá”, 2001) e Bruno Bini (“Baseado em Fatos Reais”,

2001). Através das entrevistas, os cineastas ressaltaram algumas transformações

trazidas para o cenário cultural local com o advento da Lei, principalmente no que

diz respeito ao fortalecimento da produção audiovisual em Mato Grosso (que até

então não contava com uma política pública eficiente para atender as demandas do

segmento audiovisual, em especial do cinema). Além disso, os cineastas indicaram

que a Lei possibilitou a nomes não consolidados a oportunidade de realizar seus

projetos em cinema e vídeo (como veremos no Capítulo I, a “retomada” do cinema

brasileiro evidencia um cenário semelhante, onde cineastas de carreiras

consolidadas dividiram as atenções com nomes até então desconhecidos na

produção cinematográfica), fomentando uma atividade que estivera, de certo modo,

estagnada nas últimas décadas no estado (enfatizo a produção em cinema,

especificamente), com raras exceções para filmes documentais de registro.

Assim que concluí minha graduação em Comunicação Social, no final de

2003, encaminhei ao Mestrado em Estudos de Linguagem (MeEL, UFMT) o pré-

projeto intitulado “A construção de um imaginário mato-grossense através do cinema

da retomada”, com a finalidade de dedicar-me um pouco mais à pesquisa do cinema

em Mato Grosso e as possíveis relações deste com o cinema dito de “retomada”,

como ficou conhecida a produção cinematográfica brasileira dos anos 90, pós-Collor.

Após ingressar no mestrado e cursar algumas disciplinas, fui redirecionando meu

objeto de estudo – a produção cinematográfica mato-grossense – às discussões

levantadas em cada disciplina. Com a participação no Grupo RG Dicke de Estudos

em Cultura e Literatura de Mato Grosso, filiado ao CNPq, comecei a me interessar

pelos modos com que a produção cultural mato-grossense representava o local, a

região, e verifiquei que a recente cinematografia mato-grossense poderia ser lugar

de estudo privilegiado para entender como a cultura regional se pretendia visível e o

que era realmente comunicado através dos discursos sobre o regional. Resolvi,

então, examinar de que forma o local - o lugar Mato Grosso - era representado no

cinema, ou ainda, que imaginário o cinema mato-grossense operacionalizava para

se localizar no contexto da produção cinematográfica brasileira, quais os temas

recorrentes a esta cinematografia.

Elegi, então, o curta-metragem “A Cilada com Cinco Morenos” para realizar

uma investigação acerca de como elementos pertencentes ao local, principalmente à

cidade de Cuiabá e seus arredores, são representados nesta obra cinematográfica.

Utilizando o conceito de “mundialização da cultura”, cunhado por Renato Ortiz, ao

referir-se ao processo de padronização hegemônico da atual fase do capitalismo,

que é verificável principalmente no campo cultural (sem afastar, no entanto, outros

tipos de expressão cultural que não aqueles observáveis neste contexto

homogeneizante do mundo ocidental); e os conceitos de “função

sacralizante/dessacralizante”, apresentados por Zilá Bernd em “Literatura e

Identidade Nacional”, para se referir às maneiras com que a busca por definição

identitária são desenvolvidas na literatura brasileira, proponho identificar o contato

entre elementos locais e globais (no sentido da cultura mundializada) presentes no

referido curta-metragem, entendendo-o enquanto materializador de uma série de

discursos sobre o local, que são veiculados em outras expressões culturais, como a

música, as artes plásticas, etc. Como Mato Grosso se torna visível através dos

discursos elaborados pelo cinema produzido no Estado?

Pressuponho que se “A Cilada com Cinco Morenos” legitima certos discursos

sobre Mato Grosso, seja no falar de seus personagens, seja na iconografia que

utiliza para localizar sua narrativa em um determinado espaço geográfico e cultural,

é porque estes discursos, em sua maioria, já têm sido construídos há algum tempo,

e têm agora no cinema mais um pilar de sustentação. De qualquer modo, é

perceptível que discursos sobre o local e sobre o regional são construídos no campo

cultural, e o cinema atua como um grande materializador destes discursos,

eternizando-os, levando-os a platéias de outros estados e países, sendo um dos

grandes meios de difusão da cultura de um local para o global. Neste percurso é

necessário apontar para o fato de que estes discursos acerca do local/regional não

são construídos espontaneamente, mas sempre em “uma disputa por afirmação,

poder, supremacia, hegemonia e unicidade envolvendo os vários discursos

regionalistas e identitários, quer literários ou não” (Leite, 2005). Mais que isso,

dentro de um contexto de globalização e “mundialização da cultura”, como entender

estes discursos sobre o local, o regional?

O modelo de pesquisa utilizado é o qualitativo, relacionando um referencial

bibliográfico específico à análise proposta. Além deste referencial, foram utilizados

como fontes os textos/discursos publicados nos catálogos da Mostra/Festival de

Cinema e Vídeo de Cuiabá, notícias veiculadas em meios impresso e eletrônico

(internet) relacionadas ao cinema mato-grossense, as atas do Conselho de Estado

de Cultura (1996-2002), bem como os filmes e vídeos que compõem a recente

produção audiovisual mato-grossense.

No capítulo I, apresento o tema desta dissertação, a produção de cinema em

Mato Grosso nos anos 90, relacionando-o primeiramente ao contexto da produção

cinematográfica brasileira da época, notadamente conhecida como “cinema da

retomada” e apontando para as já antigas relações entre Estado e cinema no Brasil.

Em seguida, remonto a trajetória desta produção (a mato-grossense) através das

principais instituições que mobilizaram o segmento audiovisual em Mato Grosso: o

papel desempenhado pelo Cineclube Coxiponés da Universidade Federal de Mato

Grosso, a realização da Mostra/Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, a criação da

AMAV (Associação Mato-Grossense de Audiovisual) e a regulamentação da Lei

Estadual de Incentivo à Cultura. Completando o capítulo, explicito a reiteração da

temática regional presente na produção audiovisual mato-grossense, através da

descrição dos curtas-metragens realizados através dos incentivos da Lei.

No segundo capítulo, descrevo um cenário cultural caracterizado pela

globalização e pela “mundialização da cultura”, onde as questões relacionadas às

“identidades culturais” são cada vez mais debatidas. Tendo como pano de fundo

este cenário, analiso formalmente e conteudisticamente o curta-metragem “A Cilada

com Cinco Morenos”, assinalando momentos em que o filme “diz” coisas sobre o

local, apoiado em uma identidade anteriormente construída, no sentido de sacralizá-

la, e momentos em que o discurso identitário sofre fissuras e se abre para o diálogo

com outros discursos, dessacralizando-se. Para tanto, utilizo autores como Nestor

Garcia Canclini, Renato Ortiz, Jesus Martin-Barbero, Stuart Hall, Ana Carolina

Escosteguy, Zilá Bernd, entre outros.

Também faz parte desta pesquisa a análise descritiva do curta-metragem “A

Cilada com Cinco Morenos”, com base no que é proposto por Francis Vanoye e

Anne Goliot-Lété12, localizada como anexo desta dissertação.

Creio que as questões levantadas por esta pesquisa relacionam-se às

abordagens trabalhadas pelos Estudos Culturais, já que estarei entendendo o

cinema enquanto um artefato da cultura, produzido por e produto de práticas sociais;

portanto, atravessado por múltiplos significados. O conceito de cultura aqui referido,

logo, não se situa na ordem da cultura como patrimônio da humanidade. Ele se

refere a um conceito dinâmico, em que cultura e política se cruzam, se

interconectam. Opto por uma acepção que não faz distinção entre alta e baixa

cultura, entre cultura popular e de elite, entre a vida narrada pelo "senso comum" e

pelo "discurso científico", já que serão entendidas aqui — todas essas diferentes

formas culturais — como discursos. Cultura, nesse sentido, é um processo e envolve

“a produção e a troca de significados, o dar e tomar sentido” (Hall,1997: 02).

É imprescindível destacar que, desde 2003, tenho atuado como colaborador

do Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, o que sinaliza um envolvimento que

talvez não fosse benéfico à condução de uma pesquisa que também propõe

investigar o papel do Festival no contexto da produção cinematográfica mato-

grossense. Entretanto, acredito que o fato de vivenciar a estrutura em questão não

me impeça de observá-la criticamente.

12Vanoye, Francis & Goliot-Lété, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Trad: Marina Appengeller. Campinas: Papirus, 1994.

CAPÍTULO I

A PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA MATO-GROSSENSE DOS ANOS 90

Neste capítulo, investigo as seguintes questões: como localizar a recente

produção cinematográfica mato-grossense13 no contexto brasileiro? Como e em que

condições históricas foi possível emergir um segmento audiovisual no Estado a partir

dos anos 90? Que discursos foram construídos e mobilizados para dar visibilidade a

esta produção?

Na primeira parte, concentro-me na localização da produção cinematográfica

mato-grossense em um contexto que ficou conhecido popularmente como “cinema

da retomada14”, já problematizando a falta de uma produção consistente anterior aos

anos 90 (principalmente nos anos 80) que justificasse este rótulo. Aponto ainda para

a vinculação da produção cinematográfica mato-grossense a uma política pública de

incentivo, o que me leva a fazer uma breve incursão pelas relações entre cinema e

Estado no Brasil.

Na segunda parte, sintetizo a trajetória das instituições que promoveram o

segmento nos anos 90, destacando a preocupação de artistas e profissionais locais

com a regionalização da produção de cinema e vídeo no Brasil, como forma de

inserir a produção local no contexto brasileiro. Na terceira parte, mostro como

grande parte da produção audiovisual mato-grossense caracteriza-se por discursos

voltados para o local e o regional.

1.1. O contexto da “retomada” do cinema brasileiro

e a produção cinematográfica mato-grossense

13Enfatizo que, ao utilizar o termo “audiovisual mato-grossense”, estarei me referindo tanto ao conjunto de vídeos e filmes produzidos no estado, quanto aos eventos e políticas destinados ao segmento. O termo “produção audiovisual mato-grossense” diz respeito apenas ao conjunto de vídeos, filmes e eventos do segmento. Já o termo “produção cinematográfica mato-grossense” referir-se-á apenas aos filmes produzidos e lançados em película. 14Optei por localizar o cinema mato-grossense no contexto da “retomada” do cinema brasileiro devido ao fato de a recente produção cinematográfica de Mato Grosso emergir a partir de meados dos anos 90, no mesmo momento histórico em que emergiu a fase a qual se convencionou chamar “cinema da retomada”. Torna-se interessante observar, na 1ª Mostra Nacional de Cinema e Vídeo de Cuiabá, realizada em novembro de 1993, para a realização de um debate intitulado “A Lei do Audiovisual para Retomada da Produção em MT”, mesmo que, em 1993, o termo “retomada” não fosse comumente utilizado para referir-se ao boom da produção cinematográfica brasileira pós-1995. Participaram do debate Geraldo da Rocha Moraes (cineasta e, na época, Secretário Nacional para o Desenvolvimento do Audiovisual), João Batista de Andrade (cineasta) e Jorge Monclair (cineasta e, na época, representante do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Cinematográfica) - [Cf Catálogo, 1993]. A realização deste debate demonstra as intenções políticas da Mostra em fazer com que realizadores de Mato Grosso tomem partido da principal política de incentivo à produção audiovisual da época, a Lei do Audiovisual.

Historicamente, é possível inserir a recente produção cinematográfica mato-

grossense a partir da segunda metade dos anos 90, justamente em um período da

produção cinematográfica brasileira que se convencionou chamar de “retomada”,

onde o governo brasileiro apresenta um novo mecanismo para incentivar a produção

de cinema no país, com a criação da Lei do Audiovisual. Mas o que se entende por

“retomada” do cinema brasileiro? O cinema mato-grossense pode ser compreendido

através desta designação? E, além disso, como entender as relações entre Estado e

cinema no Brasil?

Por “cinema da retomada”, entenderei o período subseqüente ao governo

Fernando Collor de Melo15 (1990 – 1992), onde, após a paralisação de todo o

sistema de apoio à produção e distribuição cinematográfica, bem como a

capacidade dessa atividade econômica ocupar o mercado interno, houve um

“acúmulo de filmes nos anos seguintes, produzindo uma aparência de boom”. O

crescimento da produção de filmes brasileiros é visível a partir dos benefícios

trazidos pela Lei nº. 8.685, Lei do Audiovisual, que “começou a gerar frutos a partir

de 1995, acentuando o fenômeno” (Nagib, 2002: 13), o que me leva

necessariamente a pensar a relação desta produção com o Estado brasileiro, já que

“as relações entre cultura e Estado são antigas no Brasil” (Ortiz, 1994: 80).

De qualquer maneira, como Nagib e Oricchio deixam claro em seus livros que

se propõem a analisar o período da “retomada”, não existe uma unanimidade entre

os participantes desta fase do cinema brasileiro quanto às datas que definiriam este

período, nem mesmo quanto à paralisação total da atividade cinematográfica. “Para

alguns, o que houve foi apenas uma breve interrupção da atividade cinematográfica

com o fechamento da Embrafilme, a seguir reiniciada com o rateio dos próprios

recursos da produtora extinta, através do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro”

(Nagib, 2002: 13).

15Fernando Affonso Collor de Mello foi presidente do Brasil entre 1990

e 1992. Seu governo foi marcado pelo Plano Collor

(que bloqueou a poupança dos brasileiros), pela abertura do mercado nacional e a diminuição da "reserva de mercado". Não terminou o mandato, tendo sofrido um processo de impeachment

fundado em acusações de corrupção

massiva. Em relação à cultura, seu governo caracterizou-se pela extinção dos organismos/instituições existentes, como a Fundação Nacional Pró-Memória, a Fundação Nacional das Artes Cênicas, A Fundação do Cinema Brasileiro (FCB), a Fundação Nacional Pró-Leitura, o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), a Embrafilme e a Funarte, além de rebaixar o Ministério da Cultura à uma Secretaria ligada à Presidência da República. “Tudo isso ocorre como vingança e ódio dos artistas que apoiaram maciçamente o candidato da oposição em 1989, Luís Inácio Lula da Silva, numa atitude antidemocrática e cega da realidade nacional” (Cesnik & Beltrame, 2005. 149-52).

Como o estado de Mato Grosso não estava circunscrito no cenário de

produções cinematográficas via Embrafilme, nem vinha de uma fase intensa de

produções, e tendo em vista que o primeiro curta-metragem realizado através da Lei

Estadual de Incentivo à Cultura só foi aprovado em 1996 (lançado apenas em 1997),

julgo não ser adequado utilizar a expressão “cinema da retomada” para definir a

produção cinematográfica mato-grossense dos anos 90, já que não houve

“retomada” alguma, mas sim o início de um novo ciclo de produções audiovisuais em

Mato Grosso, a partir de 1996, através de benefícios da Lei16. Mesmo com uma

produção cinematográfica significativa até os anos 7017, tomo como fato18 a baixa na

produção de cinema no Estado pós-divisão (1977), exceto pelos filmes do cineasta

sueco Arne Sucksdorff19, que fez com que olhos do Brasil e do mundo se voltassem

16Lei Estadual nº 5.893–A, de 12 de dezembro de 1991, publicada no Diário Oficial de 09 de janeiro de 1992 e modificada pela Lei N.º 6.913, de 04/07/97 e pela Lei 7.042, de 15/10/98, conhecida como Lei Hermes de Abreu. No caso da produção da “retomada” do cinema brasileiro, a Lei em questão era a Lei do Audiovisual, conforme citada no texto, lei esta que não conseguiu beneficiar projetos culturais mato-grossenses, devido à dificuldades de captação dos projetos aprovados pela mesma. 17 De acordo com Borges, em texto intitulado “O Cinema em Mato Grosso”, publicado no catálogo do 10º Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá (2003), “do primeiro filme realizado no Estado, em 1908, ‘Colônias Silvícolas de Mato Grosso’, mais de 250 filmes foram realizados na região até o ano de 1968, quando da chegada do cineasta sueco Arne Sucksdorff”. Como o próprio Borges salienta em sua dissertação de Mestrado em Cinema (1995), estes filmes caracterizavam-se em sua maioria por registros cinematográficos da paisagem local, realizados por desbravadores oriundos de São Paulo e outros estados, com o intuito de revelar Mato Grosso para o Brasil. Borges aponta ainda: “Vedadas as suas possibilidades de reconhecimento no campo da arte, as únicas modalidades de cinema que encontraram uma certa repercussão em Mato Grosso, foram o da propaganda institucional do governo, por este muito incentivada, e posteriormente a de documentários de caráter etnológico sobre os mais diversos povos indígenas que habitavam o território mato-grossense. Este tipo de produção, destituído de resultados “artísticos”, não despertou o interesse da sociedade, que desejosa de “expressões artísticas mais requintadas”, não se via representada nestes filmes e por este motivo descartou a sua única experiência de cinema. Os poucos longas-metragens realizados em Mato Grosso, que independente do resultado alcançado tinham uma pretensão artística, pelo fato de terem sido realizados pela próspera e ascendente burguesia do interior do Estado – em Campo Grande e não na capital – tiveram o mesmo fim que os demais filmes. Aliado a este fato, a pouca freqüência em que se fazia filmes no Estado contribuiu para que os mesmos fossem esquecidos”. 18Não há o registro de pesquisas que detalhem a produção ou consumo de cinema em Mato Grosso nos anos 70-80. No entanto, personagens que viveram neste período são unânimes em evidenciar a quase ausência de produção em cinema da época. Com o fortalecimento da televisão no Estado, o vídeo ganha importância no período. Mais adiante, será enfatizada a presença do Cineclube Coxiponés, da Universidade Federal de Mato Grosso, como instituição fundamental para a manutenção do interesse pelo cinema (filmes que não eram exibidos no circuito comercial de Cuiabá, debates envolvendo os filmes assistidos) no Estado no período. 19Arne Sucksdorff (03/02/1917 - 04/05/2001), sueco, diretor de cinema, considerado um dos grandes cineastas do gênero documentário. Foi mundialmente celebrado pela poesia visual e natureza cênica de seus documentários. Sua filmografia inclui Pojken i trädet (The Boy in the Tree

- O Menino da Árvore) e o filme vencedor do Oscar Människor i Stad (Symphony of a City, Ritmos da Cidade). No início dos anos 60, muda-se para o Rio de Janeiro, convidado a ministrar uma oficina de cinema. O cineasta continua fazendo documentários, como Mitt hem är Copacabana (My Home Is Copacabana

- Meu Lar é Copacabana). No final dos anos 60, muda-se para o Pantanal, onde realiza uma série de filmes documentando a vida e natureza daquele ecossistema, tornando-se um crítico incisivo do desmatamento e um fervoroso ambientalista (livremente traduzido de

para o Mato Grosso (mais especificamente, para o Pantanal), e de registros de

Lázaro Papazian.

Ainda assim, existem similaridades observáveis entre a fase da “retomada” do

cinema brasileiro e emergência da produção cinematográfica mato-grossense nos

anos 9020: a primeira é o próprio fato de esta produção surgir no mesmo período ao

qual se convencionou chamar “retomada” (meados dos anos 90); a segunda se

relaciona à viabilização da produção cinematográfica mato-grossense ser resultante

de uma política pública de cultura, no caso, a Lei Estadual de Incentivo à Cultura de

Mato Grosso (no período da “retomada”, a política estimuladora era a Lei do

Audiovisual). Por outro lado, uma característica que diferencia, mas ao mesmo

tempo aproxima o cenário audiovisual mato-grossense do cenário da “retomada”, é o

tipo de convivência promovida pela Lei do Audiovisual, etapa da cinematografia

brasileira, “em que estreantes na área do longa-metragem conviveram com

cineastas de larga experiência em um clima ameno de debate, marcado pela retórica

da diversidade (ilusória) e de esboços em variadas direções” (Xavier in Oricchio,

2003. 11).

Como não haviam em Mato Grosso profissionais de larga experiência na

realização de filmes, são beneficiados através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura

de Mato Grosso profissionais estreantes na produção de cinema, com alguma

experiência na realização de curtas-metragens experimentais de pouca

repercussão21 e vídeos. Neste sentido, não há convivência entre cineastas de larga

experiência com outros de pouca experiência. O que se percebe é um cenário que

parece igualar todos os profissionais do segmento audiovisual enquanto possíveis

beneficiados pelos recursos da Lei. Tomando o termo “campo político” na acepção

de Bourdieu (1989: 164) como “o lugar em que se geram, na concorrência entre os

http://en.wikipedia.org/wiki/Arne_Sucksdorff). Nos anos 90, Arne Sucksdorff é homenageado na 2ª Mostra Nacional de Cinema e Vídeo de Cuiabá. A vinda de Sucksdorff para o Brasil e, em seguida, Mato Grosso, está documentada na dissertação de Mestrado de Luiz Carlos de Oliveira Borges (Borges, 1995). Entre 2001-02, as discussões de segmentos organizados do audiovisual dão origem ao Projeto do Pólo de Cinema, denominado Pólo Arne Sucksdorff, em homenagem ao cineasta. Em 2003, Bárbara Fontes lança o vídeo “Arne Sucksdorff: uma vida documentando a vida”, no 10º Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá. 20“Retomada”, na recente trajetória do cinema mato-grossense, pode ser melhor aplicado para compreender a produção cinematográfica pós-2004 (já que houve uma lacuna de dois anos sem o lançamento de um filme mato-grossense - 2002 a 2003), em virtude do esgotamento da Lei, que acabou sendo extinta em 2004, quando da instituição do Fundo Estadual de Fomento à Cultura de Mato Grosso. 21Como é o caso de Luiz Borges, que co-dirigiu os curtas-metragens “Água”, “Luz” e “Espelhos”, produção coletiva realizada no Núcleo de Cinema da Universidade Federal de Mato Grosso, no início dos anos 90.

agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas,

análises, comentários, conceitos, acontecimentos”, deve-se levar em conta os

embates no campo político na disputa pela aprovação de projetos, além de lobby e

outras táticas geradas do convívio entre profissionais do audiovisual local e a esfera

governamental.

Pressuponho existirem articulações que transcendem a mera apresentação

de projetos para aprovação e recebimento de cartas para captação de recursos do

projeto aprovado. Infelizmente, a demarcação dessas articulações é problemática, já

que não consegui levantar documentação que as explicitem, exceto os embates que

já pude verificar existirem no campo cultural local, através da presença em debates,

seminários e outros eventos onde os participantes (ou não) do campo se encontram.

Ainda que “de retomada” não seja a melhor designação para situar a

produção cinematográfica mato-grossense dos anos 90, é inegável sua vinculação a

uma política pública de cultura (no caso, a Lei Estadual de Incentivo a Cultura). Ou

seja, o Estado é elemento central no contexto cultural mato-grossense. Assim, antes

de apresentar o mecanismo da Lei, e as produções por ela beneficiadas, julgo

necessário um breve panorama sobre as relações entre Estado e cultura no Brasil.

Fábio de Sá Cesnik e Priscila Akemi Beltrame (2005) sugerem em

“Globalização da Cultura”, a existência de três momentos históricos em que as

políticas culturais têm sido implantadas no Brasil22. Os dois primeiros são tirados de

Márcio Souza (2000), no livro “Fascínio ou repulsa”, e compreendem a fase da

“cultura do Estado balcão (1808 a 1929)”, desde a criação das condições para

habitação da Corte Portuguesa no Brasil, passando pela criação da Biblioteca

Nacional (1813) e a fundação da Ópera Nacional (1857), onde o Estado era o

grande mecenas, já que toda a elite estava ligada a este; e a fase da

cultura como ferramenta ideológica (1937 a 1990), onde a cultura deixa de ser entendida como desenvolvimento com a crise de 1929 e passa a ser considerada ferramenta de propaganda e um dos elementos da cena política a partir da ditadura Vargas em 1930 e, mais intensamente, a partir de 1937 com a constituição imposta por Getúlio (Cesnik & Beltrame. 2005: 151).

22Ressalto que estes blocos históricos representam uma visão geral e particular (Cesnik & Beltrame) utilizada para estabelecer um panorama amplo de como a cultura se desenvolveu no Brasil, não representando a totalidade das relações entre Estado e Cultura no país.

Neste período, são criadas Instituições como o Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, o Instituto Nacional de Música, o Instituto Nacional do

Livro. Há um intervalo democrático entre 1945 e 1964. Nos anos 40 e 50 registram-

se investimentos privados na cultura, sem participação do poder público, como a

construção do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM, 1948), por Franco

Zampani e Francisco Matarazzo Sobrinho, e a Companhia Cinematográfica Vera

Cruz (1949). Acentua-se o processo ditatorial com a recuperação do modelo de

“censura”, em 1964. Nos anos 80, as lutas pelos direitos democráticos se acirram.

Em 1990, o presidente eleito, Fernando Collor de Mello, extingue todos os

organismos de cultura existentes, rebaixando o Ministério da Cultura à Secretaria

ligada à Presidência da República.

A terceira fase é localizada por Cesnik & Beltrame a partir do início da década

de 1990, onde pode ser verificada uma nova relação da cultura com o setor privado.

É implementada a Lei Rouanet, que promove o envolvimento do setor empresarial

com diferentes segmentos artístico-culturais, através da dedução no imposto de

renda do valor investido em projetos, conforme segue:

Em 1991 o secretário da Cultura da Presidência da República, Sérgio Paulo Rouanet, obtém sucesso com seu projeto de lei, vindo a produzir o texto legal que dá base a toda a política de incentivos praticada hoje no Brasil. Essa lei possui grande rigor formal no cadastramento do projeto, na análise e na prestação de contas, sempre dentro do princípio de transparência da administração pública. Talvez por falta de permeabilidade do sistema implantado, de 1992 a 1994, somente 72 empresas investiram em cultura, com ausência absoluta de apoio dado por pessoas físicas. (Cesnik & Beltrame, 2005. 154)

Neste período, projetos oriundos de Mato Grosso têm dificuldade em captar

os recursos aprovados pela Lei, dadas as dificuldades apresentadas na mesma e a

falta de empresas de grande porte no estado.

Em “Cultura Brasileira e Identidade Nacional”, Renato Ortiz faz um balanço

das relações entre o Estado e a estruturação do campo da cultura, apontando que

estas relações se dão há muito tempo, ganhando força a partir dos anos 30, com o

aumento da rede de instituições culturais (Serviço Nacional de Teatro, revista

Cultura e Política). O autor assinala o marco representado pelo Golpe Militar23 de

23Segundo Ortiz (1994: 80-82), “64 pode ser considerado um marco na história brasileira. Na verdade, o golpe possui um duplo significado: por um lado, ele se define por sua dimensão essencialmente

1964 no direcionamento da cultura nacional24, por fazer com que o Estado Nacional

tente integrar o espaço público e, mais que isso, “integrar as diferenças regionais no

interior de uma hegemonia estatal” (Ortiz, 1994. 82), algo que nunca foi plenamente

conseguido, talvez pela impossibilidade em se alcançar tal feito, já que a marcação

das diferenças não se dá apenas no nível cultural, mas sim, e principalmente, nos

níveis social, econômico e político. Dada esta condição, torna-se difícil para o

Estado efetivar a pretensão de integrar diferenças culturais regionais, já que

algumas dessas diferenças culturais poderiam, em alguma instância, questionar o

próprio papel hegemônico do Estado, opondo-se a ele. Talvez seja esta a mais

interessante das contradições entre o Estado e a produção cultural, já que nem toda

produção cultural (e aqui enfatizo a arte enquanto inovação, ruptura) pode

compactuar com a ideologia do Estado. Como conciliar a promoção cultural através

das políticas públicas de cultura com manifestações artísticas que primam pela

inovação, pela ruptura, pela contestação das estruturas?

política, por outro aponta para transformações mais profundas que se realizam no nível da economia. Os economistas mostram que a partir do governo de Juscelino se instaura uma segunda revolução industrial no Brasil na medida em que o capitalismo atinge formas mais avançadas de produção. 64 é visto, tanto pelos economistas quanto pelos cientistas políticos, como momento de reorganização da própria economia brasileira que cada vez mais se insere no processo de internacionalização do capital. O golpe militar tem evidentemente um sentido político, mas ele encobre também mudanças econômicas substanciais que orientam a sociedade brasileira na direção de um modelo de desenvolvimento capitalista bastante específico. Tal modelo, geralmente descrito através de seus traços genéricos, concentração de renda, crescimento do parque industrial, criação de um mercado interno que se contrapõe a um mercado exportador, desenvolvimento desigual das regiões, concentração da população em grandes centros urbanos, reorganiza a sociedade brasileira como um todo. (...) Dentro deste quadro, as relações entre cultura e Estado são sensivelmente alteradas em relação ao passado. O processo de racionalização, que se manifesta sobretudo no planejamento das políticas governamentais (em particular a cultural), não é simplesmente uma técnica mais eficaz de organização, ele corresponde a um momento de desenvolvimento do próprio capitalismo brasileiro. Se, como observa Lucio Kowarick, as técnicas de planejamento são inicialmente aplicadas na área econômica, pouco a pouco elas são difundidas para todas as esferas governamentais. Essas transformações mais amplas, por que passa toda a sociedade brasileira, têm conseqüências imediatas no domínio cultural. Pode-se afirmar que, no período em que a economia brasileira cria um mercado de bens materiais, tem-se que, de forma correlata, se desenvolve um mercado de bens simbólicos que diz respeito à área da cultura. (...) Rigorosamente, a noção de mercado simbólico emerge no momento em que a esfera cultural adquire uma autonomia em relação ao mundo material. Habermas vai localizar este momento no início da sociedade burguesa, quando os homens, individualizados e universalizados, trocam no mercado seus produtos materiais. No entanto, o que caracteriza o mercado cultural pós-64 é o volume e a sua dimensão. Nos anos 30 as produções culturais eram restritas e atingiam um número reduzido de pessoas. Hoje elas são cada vez mais diferenciadas e atingem um grande público consumidor; isto confere ao mercado cultural uma dimensão nacional que ele não possuía anteriormente”. 24A idéia de “nação”, “nacional”, para mim, remete, necessariamente, a esta tentativa de integrar algo em torno da hegemonia do Estado, ou, ainda, algo que defende os interesses do Estado, da nação. Durante o texto, utilizarei “nacional” apenas quando desejar imprimir esta carga conceitual ao termo. No geral, como é o caso do cinema, preferirei utilizar a palavra “brasileiro (a)”. Ex: “cinema brasileiro” ao invés de “cinema nacional”.

Renato Ortiz (1994, 84) enfatiza que as contradições observáveis no campo

cultural são “próprias às contradições do próprio modelo capitalista brasileiro, que

acentua a diferença entre as regiões e reforça a divisão de trabalho entre cidade e

campo”. Ainda assim:

(...) é necessário compreender que paralelamente à marginalização econômica e cultural de parcelas imensas das classes subalternas, se manifesta a expansão de um mercado de bens simbólicos que tem expressão considerável na medida em que possibilita a consolidação das indústrias culturais e reorganiza a política estatal no que se refere à área da cultura. (Ortiz, 1994: 85)

A criação da Funarte e da Embrafilme dão impulso as pretensões do Estado

em integrar o Brasil através da cultura, o que é intensificado com a elaboração de

um Plano Nacional de Cultura, em 1975, que visava à concretização de um Sistema

Nacional de Cultura, que nunca foi efetivado e que agora começa a ser novamente

implementado pelo atual governo Luis Inácio Lula da Silva, através da gestão

Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2002-06). Mais uma vez, observa-se a

pretensão de integrar o país através do estabelecimento de um Sistema Nacional de

Cultura, que tentaria integrar diferenças regionais no interior de uma hegemonia

estatal, conforme é possível reafirmar no trecho abaixo:

O SFC será, assim, um sistema de articulação, gestão, informação e promoção de políticas públicas de cultura em âmbito federal, coordenado pelo Ministério da Cultura - MinC, com a participação de órgãos federais, do Conselho Nacional de Política Cultural - CNPC e da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC. A instituição do Sistema Federal, juntamente com a emenda constitucional que estabelece o Plano Nacional Cultural será um passo decisivo para a criação do Sistema Nacional de Cultura, a ser constituído com a participação dos três entes federados e a sociedade civil. Os objetivos do Sistema Federal de Cultura serão, entre outros, integrar os órgãos, programas e ações culturais do governo federal; coordenar a implantação do Sistema Nacional de Informações Culturais

- SNIC; e estimular a implantação dos Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura, para promover o desenvolvimento cultural do País em toda a sua amplitude. A participação social na definição das políticas públicas e a promoção do desenvolvimento social com pleno exercício dos direitos culturais são premissas indissociáveis da estruturação sistêmica almejada25.

É nítida a presença do Estado na regulamentação da atividade cultural

explicitada no setor audiovisual da cultura, através da Ancine (Agência Nacional do

25Extraído de: http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/gestao_da_politica_de_cultura, publicado pela Secretaria de Articulação Audiovisual em 23.03.95.

Cinema), que visa fomentar, regular e fiscalizar a indústria cinematográfica e

videofonográfica brasileira.

Recentemente, uma série de discussões envolvendo os rumos da Ancine

pôde ser acompanhada na imprensa, ficando claro que as novas proposições para a

Agência vão contra os interesses dos grandes grupos de comunicação existentes no

Brasil, o que demonstra as articulações do campo político e os níveis de

dependência dos mais variados segmentos (artistas, profissionais, organizações

não-governamentais, pequenas empresas, grupos de comunicação) em relação ao

Estado.

E em Mato Grosso, como estas relações podem ser observadas, dada a

dificuldade dos projetos elaborados em captar os recursos aprovados pela Lei, e a

falta de empresas de grande porte no estado? É para tentar responder esta pergunta

que passo a apresentar as principais instituições em prol do segmento audiovisual

(em Mato Grosso) e sua relação com o Estado em torno do audiovisual nos anos 90.

1.2. As Principais Instituições

O segmento audiovisual, enquanto um campo profícuo de atuação no cenário

cultural mato-grossense, contou com instituições que promoveram não apenas o

contato com o cinema, como também a formação de mão-de-obra qualificada para o

fazer audiovisual, como é o caso do Cineclube Coxiponés, criado em 1977 - que

inaugura uma nova relação do público local com o cinema. Instituições como a

AMAV, Associação Mato-grossense do Áudio/Visual e a Mostra/Festival de Cinema

e Vídeo de Cuiabá permitiram o encontro da classe audiovisual e sua articulação

política, resultando, entre outras conquistas, na regulamentação da Lei Estadual de

Incentivo à Cultura - que possibilitou a emergência de uma considerável produção

em cinema e vídeo no estado -, e na proposição de um Pólo de Cinema para

Cuiabá.

Da Universidade Federal de Mato Grosso26, a qual o Cineclube Coxiponés

está vinculado, é possível apontar, em vários segmentos artísticos, ressonâncias de

26A Faculdade de Direito e, mais tarde, o Instituto de Ciências e Letras, que existiam como faculdades isoladas, se transformam em Universidade Federal de Mato Grosso, a partir da Lei Federal nº 5.647, de 10 de dezembro de 1970. Institucionalizada como Fundação, a Universidade Federal de Mato

um discurso de forte caráter regionalista. É o caso das artes plásticas. Com a

finalidade de inserir o estado no cenário nacional das artes plásticas, um discurso de

cunho identitário27 foi defendido por intelectuais, desde o surgimento da

Universidade até os anos 90. Não é diferente com a produção audiovisual, que

oriunda da Lei, reforça esta ligação com o local, o regional, justamente como forma

de apresentar-se para o nacional e o global. Discursos do segmento audiovisual

reivindicam a regionalização da produção de cinema e vídeo que, em muitos casos,

ao tornar-se visível, acaba limitada a temas e paisagens regionais.

Considerando a instalação da Universidade Federal de Mato Grosso e a

divisão do Estado como momentos decisivos para a cena cultural mato-grossense é

que destacarei a criação de inúmeras instituições que deram visibilidade e

dizibilidade para o audiovisual em Cuiabá (e daí para fora) nas três últimas décadas.

1.2.1. Do Cineclube Coxiponés à AMAV

Com a fundação do Cineclube Coxiponés da UFMT, o contato dos cuiabanos

com cinematografias de variados países torna-se possível, já que, nas últimas

décadas, se resumia a exibição de filmes hollywoodianos nas salas de cinema da

capital28. É na Universidade que intelectuais ligados à cultura começam a articular

novos discursos que definem novos modos de ver e dizer o Mato Grosso,

principalmente no campo das artes plásticas e do audiovisual. “Sem dúvida alguma

a criação da Universidade Federal de Mato Grosso foi um extraordinário impulso

dado à vida cultural de Mato Grosso nos dias que correm”, escreve o historiador

Lenine Povoas (1982: 210), explicitando o caráter renovador do campo cultural

desempenhado pela Universidade.

Grosso foi estruturada nos moldes da Universidade Federal de Brasília. Cf. Povoas, Lenine de Campos. História da Cultura Matogrossense. Cuiabá: IHGMT/AML, 1982, p. 208. 27O conceito de “identidade” e sua relação com os Estudos Culturais será melhor apresentado no Capítulo II desta dissertação. 28 Borges (1995) aponta um contato com cinematografias diversas da hollywoodiana em momentos esparsos da primeira metade do século XX. Nos anos 60 e 70, “com a abertura de novas salas, o cinema americano, que até o período anterior era o único responsável pelos lançamentos no mercado cinematográfico em Cuiabá, perdeu parcialmente sua hegemonia: torna-se freqüente na capital a exibição de filmes europeus, latino-americanos, japoneses, e mesmo brasileiros. (...) Pela primeira vez, durante este período, Mato Grosso conheceu uma amostra realmente representativa do cinema nacional. Os filmes brasileiros exibidos em Cuiabá espelhavam a diversidade da produção cinematográfica do país - do Cinema Novo a Mazaroppi”.

A fundação da UFMT é central para a articulação de novos discursos que dariam o direcionamento para o fazer cultural em Cuiabá - principalmente após a criação do Museu de Cultura Popular (MACP) da Universidade Federal de Mato Grosso e do Cineclube Coxiponés, “o grande responsável pelo fato de uma certa chama do cinema permanecer acesa em Mato Grosso nos anos 70 e 80” (Borges In Catálogo, 2003).

Bem antes do Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá e dos discursos a favor

da regionalização dos conteúdos audiovisuais como forma de movimentar a indústria

audiovisual mato-grossense e registrar/difundir a cultura local, é no campo das artes

plásticas que um novo discurso mobilizando uma dada identidade local/regional

começa a ser gerado. Uma das personalidades centrais no estabelecimento deste

discurso é a historiadora Aline Figueiredo29, que atuou como figura legitimadora da

produção mato-grossense em artes visuais desde a década de 1970. Em “Artes

Plásticas no Centro-Oeste”, Figueiredo relata o processo de modernização trazido a

Mato Grosso pela inauguração da Universidade Federal de Mato Grosso e, mais

tarde, do MACP, processo do qual a própria historiadora fez parte:

Em Cuiabá, muito pouco tinha acontecido no setor das artes plásticas até o final da década de 60. (...) Ao final da década, os principais acontecimentos em artes plásticas foram marcados pela atuação da Associação Mato-grossense de Artes, que realizou em 1968 a exposição do Grupo Jovem Mato-grossense (...). Nessa ocasião, iniciavam-se as grandes transformações pelas quais Cuiabá passaria, na sua arrancada para o progresso. Em pouco tempo, a cidade assume uma posição de metrópole regional e ganha uma Universidade Federal, que então oficializaria o endosso e apoio à continuidade do movimento plástico no Estado de Mato Grosso. Universidade jovem, mas atenta ao objetivo de congregar professores, cientistas e artistas para o reconhecimento e desenvolvimento da cultura local, a UFMT assumiu para si as

29“Aline Figueiredo, nascida em Corumbá, MS, em 1946, é animadora e crítica de arte. Tendo realizado a Primeira Exposição de Pinturas dos Artistas Mato-Grossenses (1966) em Campo Grande (MS), ali fundou e dirigiu a Associação Mato-grossense de Artes (AMA, 1967/1972) e assinou a coluna de artes plásticas no Diário da Serra (1969). Em 1971, concluiu o curso de Direito pela Federação Universitária Católica de Mato Grosso. Transfere-se para Cuiabá, ingressando em fevereiro de 1973, no quadro técnico da UFMT, e, junto com Humberto Espíndola, elabora projeto para a criação do Museu de Arte e de Cultura Popular (1974). Nesse museu, além da Divisão de Artes Visuais, exerceu o gerenciamento até 1982, e, desde 1985 exerce a função de supervisora. Participando da implantação da Fundação Cultural de Mato Grosso, e, entre 1976/79, atuando na assessoria de artes plásticas, cria e desenvolve o Ateliê Livre, o Salão Jovem Arte Mato-grossense e a Pinacoteca Estadual. Autora do livro “Artes Plásticas no Centro Oeste” (Edições UFMT, MACP, 1979), recebe, por essa publicação, o prêmio Gonzaga Duque da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (Rio, 1980). Participou de Comissões organizadoras de diversas coletivas e integrou júris de diversos salões nacionais. Entre 1985/86 prestou assessoria “ad doc” na área de artes plásticas, ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), em Brasília. Desde 1970, vem ministrando cursos de História da Arte”. (Figueiredo, 1990: 90)

preocupações, bem como a continuidade das atividades da AMA, transferindo-as para o seu campus e proporcionando a estabilidade necessária para o desenvolvimento do trabalho. (Figueiredo, 1979. 173-4)

Figueiredo será a legitimadora de um discurso para as artes plásticas em

Mato Grosso, assim como Luiz Borges o será duas décadas depois, nos discursos

em torno do cinema local. Utilizo o exemplo destes dois intelectuais empenhados no

estabelecimento de um discurso local que organiza a produção cultural no Estado,

para demonstrar a idéia de Ortiz (1994: 139-40), de que os intelectuais podem ser

definidos como “mediadores simbólicos entre a produção cultural e o público

receptor, já que elaborariam uma ligação entre o particular e o universal, o singular e

o global, com ações orientadas no sentido de elaborar um conhecimento de caráter

globalizante”.

Nas obras publicadas por Figueiredo, a discussão acerca do local x universal

é elemento presente:

Eminentemente figurativa, a arte mato-grossense expressa o particular e o geral com qualidade formal. O valor formal sempre o consideramos fundamental para a aproximação da visão conceitual e básico ao afastamento do piegas e do folclórico. E quando se fala nesse assunto, há um convite à abordagem da questão regional x universal. Aliás o tema é mesmo angustiante para algumas interpretações. No Brasil existe um medo enorme da palavra regional. Até o País é sentido com esse medo de ser mas não ser. Por exemplo, quantas vezes já ouvimos ou lemos análises, com a ressalva, “embora brasileira, sua poesia é do mundo, universal”?, ou, “apesar de regional, é pintura nacional ou internacional”? Sentimos que há uma inibida confusão entre o internacional e o universal. Por que a hesitação (?), se o mundo é redondo, qualquer ponto portanto é um ponto. Sem dúvida procede da insegurança colonizada. Ora, se uma pintura mostra o Pantanal ela é regional, mas se mostra o Central Park é internacional? Uma poesia ou pintura feita em Paris ou Nova Iorque, por si só ganha o passaporte universal? Um artista estrangeiro que enfoca uma partícula do seu mundo e a apresenta em nossas bienais, por exemplo, por que não provoca tal questionamento entre nós que a aceitamos com o selo da inovação internacional? Por que o pintar do interior do Brasil, isto é, fora do Rio ou de São Paulo – onde nem se pode constatar a existência de um “eixo”, pois de fato são duas ilhas que não efetivam relação integradora – é considerado regionalismo? Daí a defesa das produções universalizantes, sem questionar se de fato são universais. E a forma? Presta-se atenção à forma da expressão? É ela quem universaliza e não o assunto. O assunto é o literário. E o literário não é literatura, muito menos pintura. (Figueiredo, 1990: 63)

Mesmo pretendendo um discurso de caráter universalizante, Aline acaba,

através de seus textos e sua atuação no MACP, fixando características que seriam

definidoras de um caráter mato-grossense. Isto pode ser observado, no campo das

artes plásticas, através de uma produção centrada na organização de paisagens,

ícones e símbolos que sintetizariam, em termos visuais, o que é próprio à região.

Este discurso conseguiu chamar a atenção de curadores de museus e críticos de

arte para Mato Grosso, principalmente nos anos 70-80 e de alguma maneira,

promoveu a inclusão de uma série de artistas locais no cenário brasileiro. A

articulação destes discursos e de um imaginário mobilizado pela produção em artes

plásticas em Mato Grosso durante as décadas de 1970-90 em torno da “identidade

local” foi estudada por Suzana Guimarães, em sua dissertação de Mestrado em

História na Universidade Federal de Mato Grosso30.

Desta discussão, o que me interessa é justamente este imaginário, este

conjunto semiótico31 legitimado enquanto identitário da região cuiabana pelos

discursos do campo das artes plásticas mato-grossenses, e que poderá, mais tarde,

se tornar perceptível em outras artes (no caso desta dissertação, a produção

cinematográfica). Através dos quadros de pintores como João Sebastião Costa,

Sebastião Silva, Gervane de Paula, entre outros, o pacu e o pintado (nomes

populares de peixes famosos na culinária mato-grossense), a onça, o tuiuiú (ave

típica da região do Pantanal), o caju e a manga se tornam recorrentes na iconografia

de Mato Grosso, sem esquecer do Rio Cuiabá e do Morro de Santo Antônio, dois

elementos da paisagem cuiabana presentes em uma variedade de obras dos mais

diferentes artistas plásticos do estado (que também estarão presentes em alguns

curtas-metragens realizados em Mato Grosso).

O imaginário operacionalizado pelas artes plásticas mato-grossenses a partir

dos anos 70 vai sendo aos poucos assimilado enquanto expressão legítima das

“coisas locais”. Um exemplo recente e interessante de como estas formas foram

incorporadas ao cotidiano da vida cuiabana são as intervenções feitas, nos anos 90,

nos muros e viadutos da cidade de Cuiabá, que são pintados por artistas oriundos

30Ver Guimarães, Suzana Cristina Souza. Arte Identidade: Cuiabá 1970-1990. Dissertação de Mestrado em História. UFMT: 2002. 31O termo semiótica/semiótico será utilizado, nesta dissertação, em um sentido mais livre, indicando o conjunto de signos ou sistemas de significação presentes nas representações da iconografia e do audiovisual mato-grossense.

do Ateliê Livre. A cidade é invadida por onças, tatus, pacus, paisagens primitivas.

Depois são alguns ônibus de Cuiabá que ganham temas com mangas, peixes, bois,

cajus, fazendo Cuiabá respirar sua produção iconográfica.

Viaduto da Av. Fernando Correia Arte: Adir Sodré, 1996. Foto: Jonas Barros

Viaduto da Rodoviária Arte: Benedito Nunes e Gervane de Paula, 1996.

Foto: Jonas Barros

“Arte em Trânsito”, 2000 - Humberto Espíndola e Jonas Barros. Foto: Jonas Barros

“Arte em Trânsito”, 2000 - Gervane de Paula Foto: Jonas Barros

Projeto Van Gogh - Vários Artistas Foto: Jonas Barros

Projeto Van Gogh II, 1998. Foto: Jonas Barros

Não seria de se estranhar que as produções audiovisuais dos anos 90

tivessem como referência este imaginário ou esta necessidade por afirmar uma

identidade para a produção local. Ao contrário do setor das artes plásticas, que

obteve uma colocação no cenário brasileiro, sendo assim legitimado, o cinema mato-

grossense só começaria a obter visibilidade (tanto local quanto nacionalmente) em

meados dos anos 90. Segundo Borges (In Catálogo, 2002), nos anos 70 e 80, a

produção local se restringia aos “registros toscos do cinegrafista armênio Lázaro

Papazian radicado na região desde 1923”. O acervo de Papazian, com mais de 178

filmes foi adquirido pelo Cineclube Coxiponés/UFMT nos anos 90. Além, é claro, da

presença do cineasta Arne Suckdorff, radicado no Pantanal.

O que se pode inferir é que durante os anos 70 e 80 a televisão se expande

em Mato Grosso, e, como acontecera em outros estados e, mais ainda,

mundialmente, há uma diminuição nos espectadores de cinema, que acabam

trocando as salas de projeção pela telinha. Devido à implantação da televisão em

Mato Grosso, muitos profissionais começam a trabalhar com o vídeo, seja para a

produção de matérias jornalísticas para as televisões locais, seja para a realização

de documentários ou ficções neste formato. Desta época, ainda têm atuação

destacada no cenário atual os videomakers Glória Albuês e Eduardo Ferreira, que

contam com um amplo portfolio de produções em vídeo.

Uma pesquisa detalhada relacionada ao cinema em Mato Grosso nos anos 70

e 80 não foi ainda realizada, o que faz com que este período constitua-se em um

campo aberto para divagações e incertezas32. De qualquer maneira, fica nítida a

importância desempenhada pelo Cineclube Coxiponés da UFMT, na articulação

entre profissionais do audiovisual que futuramente (com os benefícios da Lei

Hermes de Abreu) realizariam seus primeiros projetos em película.

O Cineclube Coxiponés tinha como principal tarefa a formação de um público

preparado para a crítica cinematográfica. Trabalhos da França, Alemanha, Canadá,

entre outros países33 eram exibidos para estudantes e interessados, difundindo os

chamados “filmes arte” e fomentando o interesse do público local pela produção

cinematográfica. No início dos anos 90, o Cineclube Coxiponés34 investiria na

formação de mão-de-obra qualificada para a produção audiovisual (oficinas,

palestras, seminários) e promoveria o contato do público local com profissionais de

32Como não dei atenção especial para esta época, utilizei apenas registros encontrados em livros de História ou catálogos do Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá para fazer um breve panorama dos anos 70-80 no que toca à produção cinematográfica. 33Conforme texto de apresentação do Cineclube Coxiponés, assinado pelo atual supervisor da instituição, José Amílcar Bertholini, em www.ufmt.br/Cineclube. 34Este órgão foi supervisionado pelo jornalista Gabriel Papazian, pelo atual realizador do Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, Luiz Borges, pelo historiador e atual gestor José Amílcar Bertolini, dentre outros.

cinema, primeiramente com as oficinas intituladas Núcleo de Cinema e

posteriormente através da Mostra de Cinema e Vídeo de Cuiabá, além da criação de

acervos específicos, como é o caso do acervo filmográfico e fotográfico de Lázaro

Papazian35.

Núcleo de Cinema, série de oficinas coordenadas por Luiz Borges — que

acabara de regressar de seu mestrado em São Paulo, em parceria com o Funcetur

(Fundação de Cultura e Turismo) — foi pautada na qualificação técnica para as

seguintes funções: argumento e roteiro, com o cineasta Carlos Reichembach;

direção, com o cineasta Denoy de Oliveira; produção com André Prata; direção de

fotografia, com Dib Lufti; som, com Eduardo Santos Mendes; e montagem, com

Eduardo Leone. As oficinas, que envolviam teoria e prática, resultaram na produção

de três curtas-metragens realizados em 35mm: “Olhos”, “Luz” e “Espelho”, criação

coletiva dos participantes das oficinas. Além disso, o envolvimento gerado pelas

oficinas fez com que os alunos se reunissem e criassem a Associação Cultural

Núcleo de Cinema de Mato Grosso, que realizou algumas mostras em cinemas de

Cuiabá.

Em meados da mesma década, a Associação Cultural Núcleo de Cinema de

Mato Grosso se reestrutura, criando núcleos de vídeo e fotografia. É criada a AMAV,

Associação Mato-grossense de Áudio/Visual36, entidade presidencialista que

participou decisivamente das discussões37 que envolveram a regulamentação da Lei

Estadual de Incentivo à Cultura. A Lei, assinada em 199138, só veio a ser

regulamentada em 1996, devido a grande pressão de segmentos culturais da capital

mato-grossense. Com a associação, profissionais envolvidos com o cinema e vídeo

se organizaram politicamente. O fotógrafo Nicélio Acácio presidiu as duas primeiras

gestões, seguido pelo videomaker e produtor cultural Menotti Griggi, pelo cineasta

35Outras informações sobre a produção basicamente caracterizada por registros documentais do “cineasta” Lázaro Papazian podem ser encontradas no livro de Márcio Moreira “Cuiabá na Lente do Foto Cháu: um Resgate Cinematográfico”, publicado em edição do autor, no ano de 2000. 36De acordo com informações disponíveis no site www.amav.org.br. No decorrer de meu texto, utilizarei a palavra audiovisual, assim grafada. 37Em entrevista ao autor, em 01/10/2003, Borges afirma: “Não havia mecanismos de incentivo, a AMAV, que foi uma entidade que foi criada a partir do Núcleo de Cinema, desenvolveu a luta pela implantação de Lei de Incentivo à Cultura. Eu me lembro que foi o setor mais atuante, o pessoal da música não tava nem aí, o pessoal do teatro não tava nem aí, e o pessoal que queria fazer cinema via que era importante ter a Lei de Incentivo, e foi o pessoal que mais batalhou pra implantar essa Lei de Incentivo, entendeu? (...) Isso foi há dez anos atrás, era uma outra realidade, né”. Cfe Lima, D. B. (2003) 38Lei Estadual nº 5.893–A, de 12 de dezembro de 1991, publicada no Diário Oficial de 09 de janeiro de 1992 e modificada pela Lei N.º 6.913, de 04/07/97 e pela Lei 7.042, de 15/10/98.

Luiz Borges, pela videomaker Keiko Okamura e pelo cineasta Sérgio Brito (atual

gestor).

Percebo ser através do convívio e articulação entre profissionais e pessoas

ligadas a estas instituições (Cineclube, Associação Cultural Núcleo de Cinema de

Mato Grosso e AMAV), que vai sendo gestado, nesse momento, um movimento em

busca de visibilidade para o audiovisual mato-grossense. Mais tarde, com as

discussões pela regulamentação da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, o segmento

seria um dos mais envolvidos para que a Lei começasse a ser realmente praticada,

já que pressuponho haver clareza (por parte dos participantes do segmento) de que

não haveria uma efetiva consolidação do setor sem a participação da esfera

governamental, através de políticas públicas para o audiovisual.

A dependência peculiar entre a Lei Estadual de Incentivo à Cultura e a

produção audiovisual mato-grossense é o que apresento a seguir.

1.2.2. Da Lei Estadual de Incentivo a Cultura à Mostra/Festival de Cinema e

Vídeo de Cuiabá

A Lei Estadual nº. 5.894, de 12 de dezembro de 1991, instituiu a Lei Estadual

de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Hermes de Abreu, em homenagem

a seu redator. Apesar de instituída em 1991, a Lei só começou a ser praticada em

1996, após a criação da Secretaria Estadual de Cultura39 (1995), ficando o Conselho

Estadual de Cultura (criado em 1994) responsável pela análise e avaliação dos

projetos apresentados.

A Lei consistia basicamente na:

39A Secretaria de Estado de Cultura foi criada pela Lei Complementar nº 36, de 11.10.1995,

regulamentada pelo Decreto nº 506 de 14.11.1995. Antes desta data era denominada Fundação

Cultural de Mato Grosso (1976). Hoje a Secretaria tem a sua sede localizada na região central da

Capital, em um prédio construído em 1940 para sediar o “Grande Hotel”, depois o Banco do Estado

de Mato Grosso – BEMAT (1965). O imóvel foi tombado pela Portaria nº 61/84, publicada no Diário

Oficial do Estado em 09/01/84, sendo integrante do patrimônio imobiliário do Estado de Mato Grosso.

Fonte: Assessoria de Comunicação da Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso.

(...) fixação de percentuais de ICMS a serem deduzidos das empresas privadas que desejassem investir na cultura. Esse passo foi extremamente importante para dar início à estruturação de procedimentos que pudessem estabelecer uma parceria entre a comunidade e o governo estadual na implementação das manifestações artístico-culturais... (Siqueira, 2002: 251)

A ação da Secretaria Estadual de Cultura vinha de encontro ao Plano de

Metas desenvolvido pelo Governo Dante de Oliveira (1995-2002), que pretendia uma

ampla modernização do estado, com uma administração baseada nos princípios da

democracia e descentralização, sustentabilidade e qualidade de vida, eqüidade

social e regional (Siqueira, 2002: 218). Por modernização do Estado, entenderei “as

reformas institucionais de ajuste e estabilização das finanças públicas, objetivando

proporcionar maior eficácia ao Estado e, em geral, desenvolvimento econômico”

(Barbalho, 2005: 45), características marcantes do Plano de Metas do Governo

Dante de Oliveira.

Em relação às funções do Conselho Estadual de Cultura, não fica explícito,

em nenhum ponto do texto da Lei40 que regulamenta a entidade, quais seriam os

parâmetros para aprovação de projetos culturais, tampouco a noção de cultura

utilizada para avaliar a abrangência dos mesmos. Constam, no entanto, em artigos

do texto, algumas prerrogativas utilizadas pelo Conselho na aprovação de projetos,

onde fica patente a preocupação com a preservação da memória e difusão de

40Lei nº 6.602, de 19 de Dezembro de 1994, que define os seguintes parâmetros para a atuação do Conselho: I - regulamentar e orientar a Política Cultural do Estado; II - apreciar o Plano Anual de Ação Cultural fiscalizando a sua execução; (nova redação dada pela Lei 6.702 de 21/12/1995); III - incentivar a edição de obras literárias cujo conteúdo vise a preservação da memória

ou difusão das diversas manifestações culturais do Estado; (nova redação dada pela Lei 6.702 de 21/12/1995); IV - apoiar as manifestações culturais, assegurando-lhes inteira liberdade; (nova redação dada pela Lei 6.702 de 21/12/1995);V - opinar sobre os pedidos de subvenção ou auxilio de entidades culturais; VI - fomentar a criação dos Conselhos Municipais de Cultura; VII - propor medidas que possibilitem a livre circulação; VIII - propor e incentivar projetos culturais relacionados com a natureza e o meio ambiente; IX - articular-se com órgãos federais, estaduais e municipais voltados às atividades culturais de modo a assegurar o conhecimento cientifico da realidade

cultural do Estado

e um desenvolvimento equilibrado dos programas culturais existentes; X - deliberar e propor medidas adequadas de proteção e conservação de obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como de arquivos, seus e monumentos naturais e locais de beleza paisagista; (nova redação dada pela Lei 6.702 de 21/12/1995); XI - emitir parecer sobre tombamentos de bens culturais; XII - criar e regulamentar a outorga de títulos honorificados; XIII - suprimido; (pela Lei 6.702 de 21/12/1995); XIV – incentivar o aperfeiçoamento e a valoração dos profissionais da cultura; XV - opinar sobre pedidos de incentivo fiscal a empresa que patrocinar manifestações culturais, na forma definida em lei; XVI - elaborar seu Regimento Interno; XVII - proceder ao cadastramento das instituições culturais, mediante a aprovação de seus estatutos, para que possam gozar de benefícios legais na área cultural; XVIII - suprimido (pela Lei 6.702 de 21/12/1995). [Griffos meus].

manifestações culturais do Estado, além de uma intrigante missão, a de “assegurar

o conhecimento científico da realidade cultural do Estado”.

Qual seria esta realidade cultural do Estado não fica claro em nenhum outro

texto publicado pelas Leis que regeram o Conselho entre os anos de 1996 até o

presente momento. Nos textos (tanto das Leis que regulamentam o Conselho quanto

as que regulamentam o Incentivo à Cultura), não ficam explicitados critérios

objetivos para a avaliação e aprovação de projetos. Esta falta de clareza do porquê

de determinados projetos serem aprovados, foi o principal fator de críticas

constantes às diversas gestões do Conselho Estadual de Cultura por parte de

produtores culturais que não tinham seus projetos aprovados pela instituição, o que

dá sinais dos embates travados no campo cultural.

Mesmo investindo maciçamente em cultura, o Estado foi alvo de críticas dos

produtores culturais, pois as regras para avaliação e aprovação de projetos não

eram claras para a sociedade civil. A relevância de muitos projetos aprovados pelo

Conselho Estadual de Cultura foi contestada. As micaretas (carnavais fora de época)

podem ser tomadas como exemplo de projetos questionados e que contaram com

os benefícios da Lei. Justificavam sua realização ao incluírem em sua programação

a presença de grupos de dança e folclore locais, paralelos ao evento, já que o

público-alvo estava mais interessado em acompanhar os shows de bandas de axé,

pelos quais pagava um alto preço no ingresso, a menos que quisesse ficar na

“pipoca”41.

Além disso, como as cartas de captação estavam vinculadas à condição do

captador de recursos do projeto beneficiado pela Lei encontrar uma empresa que

quisesse apoiá-lo, ou seja, deduzir do percentual possível do ICMS devedor a

quantia que seria repassada para o projeto cultural, uma relação viciante começou a

estabelecer-se dentro das práticas de marketing cultural das empresas. As

empresas passaram a patrocinar eventos apenas por intermédio da Lei. Nesta

época, começam a se multiplicar as assessorias de marketing nas grandes

empresas privadas de Cuiabá. Ou seja, quem não obtinha aprovação através da Lei

tinha pouquíssimas chances de conseguir concretizar seu projeto cultural. E mais:

com o aumento de projetos aprovados pelo Conselho Estadual de Cultura, ficou

41Local separado, onde as pessoas que não pagaram para participar da micareta ficam aglomeradas, esperando o trio elétrico passar.

cada vez mais difícil encontrar empresas que aceitassem patrocinar novos projetos

culturais. Aos poucos, a Lei foi se mostrando desgastada.

De qualquer maneira, a existência da Lei Estadual de Cultura e a atuação do

Conselho Estadual de Cultura proporcionaram a emergência de uma significativa

produção cultural em diversos segmentos artísticos. Em relação ao audiovisual, de

1996 a meados de 2002 (período que compreende o Governo Dante de Oliveira), os

recursos advindos da Lei possibilitaram a realização de dezenas de vídeos, cinco

curtas-metragens e um longa-metragem (concluído e lançado apenas em 2004),

além da realização de seis edições do Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá e

outros eventos relacionados ao setor.

Se levar em consideração os altos custos necessários para a realização de

um vídeo e, mais ainda, de um curta-metragem, concluirei que sem este mecanismo

de renúncia fiscal, Mato Grosso provavelmente continuaria limitado à produção

caseira de vídeos. Para o segmento audiovisual, a Lei permitiu o fortalecimento da

produção, promovendo intercâmbio entre profissionais (no caso de cinema, era

comum a vinda de técnicos de som e fotografia para participação nos curtas-

metragens realizados no Estado, dada a inexistência de profissionais da área), e o

surgimento de mão-de-obra especializada (cursos, oficinas e a própria troca de

experiências através da realização dos filmes).

Considero que uma das principais falhas no mecanismo de aprovação de

projetos do segmento audiovisual seja a não-previsão de recursos para a

distribuição dos vídeos e filmes realizados através da Lei. Como o cinema envolve

não apenas a produção de filmes, mas também a distribuição e exibição dos

mesmos, fica claro a falta de diretrizes nesta política pública de cultura (a Lei

Hermes de Abreu) que viabilizassem a estes produtos a participação em Festivais

brasileiros e internacionais e, até mesmo, facilitassem a negociação dos produtos

audiovisuais mato-grossenses com emissoras de televisão, no sentido de tornar

estes produtos conhecidos em outras localidades. Assim, após a realização dos

vídeos e filmes apoiados pela Lei, os realizadores destas produções precisavam

invariavelmente custear os gastos do filme com envio de cópias para participação

em Festivais, o que acabava reduzindo a carreira do filme42.

42Como é o caso do curta-metragem “Saringangá” (2001), de Márcio Moreira. Conforme entrevista com o diretor, em 21/10/2003, “no meu filme, em Saringangá, eu tive dificuldades na questão de até mesmo estar enviando para os Festivais. Porque o projeto não contempla, tipo assim, a divulgação, o

Uma outra reclamação constante por parte dos envolvidos na produção de

vídeos e filmes é a falta de catalogação43 dos produtos audiovisuais realizados

através da Lei. Durante muitos anos, não houve sequer a possibilidade de encontrar

cópias dos vídeos e filmes produzidos com a aprovação do Conselho Estadual de

Cultura em acervos da cidade de Cuiabá, muito menos na própria Secretaria de

Estado de Cultura. Originalmente, o texto da Lei previa no parágrafo 2º do artigo III,

que:

Os projetos de natureza fonográfica e videográfica terão por meta obter com recursos incentivados a produção básica de 1.000 (uma mil) unidades, das quais 10% (dez por cento) serão destinadas à Secretaria de Estado de Cultura44.

Segundo a Gerência de Cinema e Audiovisual da Secretaria de Estado de

Cultura de Mato Grosso45, no caso de cópias de vídeos, havia a distribuição das

mesmas para bibliotecas públicas do Estado e outras instituições. Não há, no

entanto, o controle deste repasse/distribuição, nem houve, por algum tempo, a

retenção de algumas cópias com a finalidade de criar um acervo. Outras instituições

que contam com acervos de vídeos mato-grossenses, como o Cineclube Coxiponés

e a AMAV, também não contam com cópias do conjunto desta produção.

Todas essas debilidades e ineficiências da Lei apontadas acima foram se

materializando através do principal evento articulador do campo audiovisual em

Mato Grosso, o Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, que esteve durante grande

parte de sua trajetória (desde a 5º edição) vinculado e dependente desta política de

envio para os... você gasta com telefonema, você gasta com postagem pra seleção. Aí se teu filme é selecionado você tem que mandar novamente com a película, que é um peso, manda de novo pelo correio, que é outro peso, volta esse material. Quer dizer, que em um festival você gasta no mínimo 100 reais pra estar colocando ele pra estar exibindo”. 43A dificuldade no acesso aos vídeos e curtas-metragens mato-grossenses foi o que motivou minha pesquisa de conclusão do Curso de Comunicação Social na UFMT (Lima, D. B. 2003). Na época, não haviam informações sistematizadas sobre a produção audiovisual do Estado, oriunda dos benefícios da Lei, o que evidenciava um descontrole total do que havia sido produzido através daquela política. Com base na leitura dos textos das atas do Conselho Estadual de Cultura, de 1996 a 2002, e de conversas com profissionais do segmento audiovisual, propus um levantamento desta produção que, apesar de não se pretender oficial, faz um mapeamento dos vídeos, curtas e eventos do setor realizados através da Lei. Atualmente, a Secretaria de Estado de Cultura conta com uma videoteca/acervo, onde reúne grande parte desta produção. Contudo, continua inexistindo um catálogo com informações completas dos filmes e vídeos realizados no Estado. 44 Idem 38. 45 Informações baseadas na entrevista com Júlio Seidl, Gerente de Cinema e Audiovisual da Secretaria de Estado de Cultura, em 01/10/03. Recentemente, visitei o acervo da Secretaria, que continua em desenvolvimento, sem contar com cópias de alguns vídeos realizados em anos anteriores.

incentivo. De certa forma, pode-se constatar que sem o auxílio financeiro

possibilitado pela Lei, o Festival correria riscos de não ser realizado (como de fato

aconteceu em 2002, quando do adiamento da 10º edição do Festival, em virtude do

atraso na liberação das cartas de crédito pela Secretaria de Fazenda de Mato

Grosso46).

Desde a primeira edição, a Mostra/Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá47,

não se apresentou apenas como mero evento exibidor de filmes e vídeos da

produção brasileira, mas também como promotor de debates e seminários sobre

questões relacionadas à política e à cadeia produtiva do audiovisual no Brasil,

gerando o envolvimento e troca de experiências entre o público local e profissionais

já engajados tanto na produção quanto nas políticas em torno do cinema no Brasil.

Através da observação dos textos dos catálogos das dez primeiras edições do

Festival (1993-2003), destaco algumas linhas temáticas que delineiam um perfil de

atuação e legitimação deste evento em Mato Grosso. Primeiramente, há de se

observar a repetição constante do discurso que evidencia a possibilidade trazida

pelo Festival de integrar o cenário mato-grossense a um contexto maior, que seria o

da produção audiovisual brasileira, nacional. Essa pretensão política, que se

revelaria não apenas no contato do público e profissionais locais com as produções

de cinema e vídeo brasileiros, mas, principalmente, na reivindicação pela

descentralização da produção audiovisual, pode ser observada logo no catálogo da

2ª Mostra Nacional de Cinema e Vídeo de Cuiabá, no texto assinado conjuntamente

pela Coordenadora de Cultura da UFMT, Marina Muller, pelo Supervisor do

46Cf. reportagem de Joanice de Deus, intitulada “Festival de Cinema é adiado por falta de verba” publicada no jornal “Diário de Cuiabá”, edição nº 10435, de 12/10/2002. Segundo a matéria: “O atraso na liberação das cartas de crédito da Lei Estadual de Incentivo à Cultura pela Sefaz, acabou provocando o adiamento do festival que deveria começar na próxima segunda-feira. Com abertura programada para a próxima segunda-feira, dia 14, o festival foi adiado sem data definida ainda para sua realização. O anúncio foi feito ontem, em entrevista coletiva pelo produtor do evento, o cineasta Luiz Borges, que creditou o atraso na liberação das verbas, via cartas de crédito da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, aprovadas pelo Conselho Estadual de Cultura, pelo adiamento do festival. (...) Segundo a assessoria de comunicação da Sefaz, as cartas não foram assinadas antes porque chegaram no início desta semana ao órgão. Em função da transição de governo e reuniões, o secretário não teve tempo para assiná-las antes. ‘A Sefaz não impediu de nenhuma forma a realização do Festival’, ressaltou a assessoria”. 47A 1ª Mostra de Cinema e Vídeo de Cuiabá é realizada em novembro de 1993, com caráter não-competitivo. A partir da 2º edição, a Mostra torna-se competitiva. Com a regulamentação da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, a organização do evento pleiteia a aprovação da 5º edição no Conselho Estadual de Cultura, e em 1997, a Mostra passa a ter a designação de Festival. Estruturalmente, a organização do evento conta com maior apoio financeiro, possibilitando um número maior de atividades realizadas paralelamente ao Festival.

Cineclube Coxiponés, Luiz Borges, e pelo Supervisor de Vídeo, Menotti Reiners

Griggi:

Nunca um evento realizado em Mato Grosso com tão pouco de existência, conseguiu a repercussão nacional como a Mostra de Cuiabá. (...) Ao lado de uma maioria quase absoluta de trabalhos provenientes dos grandes centros de produção situados no eixo Rio/São Paulo, florescem importantes realizações em diversos estados, o que torna urgente a adoção de medidas estimuladoras dessas produções regionais para que a descentralização cultural do país torne-se realidade. (Muller, Borges & Griggi In Catálogo, 1994)

Se a formulação de que é preciso descentralizar a produção cultural é

assumida, significa dizer que a mesma, na referida época, era centralizada, ou seja,

estava restrita a poucos centros produtores de cinema. Como o cinema é um meio

que propaga, entre outras mensagens, conteúdos que refletem o pensar e o fazer

cultural de uma determinada sociedade, tornava-se comum a reivindicação de que

outros eixos produtores de cultura também pudessem materializar suas elaborações

através do dispositivo cinematográfico, e não apenas consumir as produções

elaboradas pelos eixos centrais (Rio de Janeiro, São Paulo). Começava a tomar

força o discurso pela descentralização da produção cultural, e, no caso do cinema e

do vídeo, pela regionalização dos conteúdos audiovisuais. Mas em que exatamente

implicaria descentralizar essa produção cultural?

No caso do audiovisual, percebo que o discurso pela regionalização dos

conteúdos vem acompanhado de uma produção centralizada em temas e assuntos

que remetem a uma determinada identidade local, regional. A recorrência em temas

locais/regionais acabaria legitimando estas produções com o status de “autêntica

representação do local”.

Esta idéia da necessidade em descentralizar a produção regional será

confirmada em quase todos os catálogos do evento, e estará consoante com as

discussões de caráter nacional, conforme atesta o editor da Revista de Cinema,

Hermes Leal:

A diversidade cultural está na moda. No caso do cinema, a idéia agora é valorizar toda a produção cultural, incluindo a audiovisual, dos diferentes sotaques da cultura brasileira e criar espaços para que elas se manifestem também fora dos seus pólos de produção. Porque não acreditar na possibilidade de ser fazer cinema, e através

dele mostrar todas as manifestações culturais do seu povo (toda a nossa cultura é regional48) de forma mais contundente, e principalmente em forma de arte? Daí a importância do festival de Cinema de Cuiabá, um evento que ao mesmo tempo em que traz do Rio e São Paulo profissionais de cinema para melhorar a mão-de-obra local, também mostra para o país a imagem do Estado, através do próprio evento e pela exibição de produtos audiovisuais mato-grossenses. (Leal, in Catálogo 2003)

Outra temática recorrente será a formação e aprimoramento de mão-de-obra

especializada para o fazer audiovisual, justificada no mesmo discurso em prol da

descentralização da produção, já que, para haver descentralização, seria necessário

pessoal qualificado para este exercício. O Festival, através das várias oficinas

técnicas e teóricas, promoverá este contato com profissionais de destacada atuação

na produção audiovisual. Além disso, com os primeiros curtas-metragens realizados

através da Lei, haverá um convívio de profissionais locais com profissionais vindos

dos grandes centros produtores, o que permitirá o intercâmbio técnico e, sobretudo,

intelectual.

Através das discussões promovidas no Festival, e da participação da AMAV,

agora AMAV/ABD-MT - Associação Mato-grossense dos Profissionais de Cinema e

outras Tecnologias Audiovisuais -, uma das principais bandeiras de luta do

segmento audiovisual passa a ser a elaboração e estruturação do projeto do Pólo

Audiovisual Arne Sucksdorff (projeto este que contou com um Grupo Executivo de

Trabalho49 designado pelo Governo do Estado). O projeto50 objetivava pensar o

48Griffo meu. 49Matéria veiculada no site de notícias Midianews, em 01/11/01: “Governo cria GT para implantar Pólo Audiovisual de Mato Grosso. O governador Dante de Oliveira recebe em seu gabinete, (sic) cineastas e documentaristas e assina a portaria que cria o grupo executivo de trabalho para elaboração do projeto do Pólo Audiovisual Arne Sucksdorff em Mato Grosso. No dia 5 se comemora o dia Nacional da Cultural. O Grupo de Trabalho será responsável por articular e planejar ações que buscam incentivos para o setor. O projeto para criação do pólo audiovisual de Mato Grosso, está sendo elaborado de forma inter-institucional, com participação de várias entidades da sociedade civil e instituições, com objetivo de incluir o estado de Mato Grosso no cenário da produção audiovisual brasileira

(griffo meu) e, como conseqüência, descentralizar e democratizar o acesso às condições que viabilizem a produção, distribuição, exibição, conservação e preservação da memória, além do ensino e formação técnica. Na semana passada, Mato Grosso participou da 1ª Goiânia Mostra Curtas, onde durante cinco dias foram exibidos 120 filmes de curta-metragem, produzidos em 23 estados brasileiros. Os filmes apresentados foram “Pobre é quem não tem Jipe”, de Amauri Tangará, e “Cilada para os Cinco Morenos (sic)”, de Luiz Borges. “Os dois filmes ganharam aplausos entusiasmados do público que lotou todos os dias o Cine Lumière”, conta o documentarista Sérgio Britto”. 50No 9º Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá (2001) são realizados seminários para discutir a cadeia produtiva do audiovisual, além de um seminário específico para a criação do Pólo. Os seminários contaram com a participação de autoridades do setor audiovisual e com a presença do vice-governador de Mato Grosso, Rogério Salles, que prometeu interceder pela continuidade do

futuro do audiovisual em Mato Grosso, entendendo o cinema como ferramenta

estratégica para o desenvolvimento do Estado, propondo criar a AGENCINE -

Agência Estadual de Cinema e Audiovisual, implantando uma indústria audiovisual

no Estado, de modo a gerar emprego e renda, “reagir à hegemonia interna imposta

pelos grandes centros produtores e concentradores, não só dos discursos que

impõem modos de vida, mas, sobretudo, dos recursos disponibilizados para o setor

via orçamentos ministeriais e Leis Federais de Incentivo e dos orçamentos das

grandes corporações financeiras e empresariais51”.

Com o papel de formular, fomentar e promover a articulação, a integração e o

intercâmbio da política cinematográfica e audiovisual, além de gerenciar as ações

executivas de projetos a serem nela implementados e desenvolvidos, a AGENCINE,

através de aportes do Governo Estadual, das Leis de Incentivo Federais e outras

fontes que constituiriam o Fundo Estadual de Cinema de Mato Grosso – FUNCINE52

–, conseguiria condições para criação, produção, distribuição e exibição de produtos

audiovisuais. De acordo com o projeto, os recursos possibilitariam também a

preservação e a pesquisa da memória audiovisual, o ensino e a capacitação

profissional,

além de contribuir com os processos de interiorização e descentralização, da democratização e a socialização dos acessos a recursos tecnológicos e de saberes tão necessários para a consolidação das identidades culturais

(griffo meu) e, com elas, assegurar a nossa presença no cenário contemporâneo da indústria do cinema e do audiovisual e, consequentemente, o da comunicação53.

Apesar dos esforços empreendidos pelo segmento, o projeto do Pólo continua

sem ter sido efetivado, principalmente em virtude do descaso governamental, já que

após ter sido apresentado ao então governador de Mato Grosso Rogério Salles, em

2002, o projeto foi engavetado.

projeto. Meses depois, é constituído (sob decreto) um Grupo Executivo de Trabalho (Get-Pólo), integrando representantes das Secretarias de Estado de Cultura, Fazenda, Indústria e Comércio, e outras instituições, com a missão de organizar o projeto de implantação do Pólo. O projeto confeccionado e apresentado ao Governador do Estado, que o recebe, sem, no entanto, dar-lhe encaminhamento. 51Projeto para Implantação do Pólo Audiovisual Arne Sucksdorff Grupo Executivo de Trabalho: Get - Pólo. Constituído pelo Governo do Estado. Decreto nº 3.313, de 05 de novembro de 2001. Coordenação: Secretaria De Estado De Cultura Do Estado De Mato Grosso - MT, fevereiro de 2002. 52Lei nº 6.550, de 17 de novembro de 1994, não regulamentada. 53Idem 50.

É possível encontrar uma linha ascendente nas proposições em torno do

cinema em Mato Grosso desde a I Mostra até o IX Festival, quando tudo levava a

crer (no nível do discurso e até mesmo com base no número de produções em

cinema e vídeo realizadas no Estado) que a promoção cultural (em vários setores da

cultura) estava sendo prioritária dentro da configuração política daquele período, ou

seja, o discurso governamental (que sempre esteve materializado nos textos dos

catálogos do Festival, seja através do Governador do Estado ou do Secretário de

Estado de Cultura) dava sinais de que estava comprometido com o estímulo a

determinados produtos, eventos ou manifestações culturais de Mato Grosso. Aliança

rompida entre o 9º e 10º Festival, quando houve uma interrupção do evento por

força de uma transição governamental, que comprometeu não apenas a realização

do projeto, mas também toda a cadeia que se organizava, como se pode perceber

no texto de abertura do catálogo do 10º Festival, realizado com o atraso de seis

meses, com a pretensão de celebrar os 10 anos de conquistas no setor:

Porém, no ano passado, a quebra de continuidade da ação cultural no governo do Estado atingiu o Festival, inviabilizando também a edição do Prêmio Estímulo para três curtas-metragens e o Pólo Audiovisual não saiu ainda do papel. Há um ano e meio o setor audiovisual de Mato Grosso está parado, longa-metragem aguarda finalização e dezessete projetos audiovisuais formatados nas oficinas anteriores do Festival sequer foram incentivados. Este desvio da ação cultural maculou a Lei de Incentivo, jogando-a no descrédito geral da sociedade. (Borges in Catálogo, 2003)

Esta quebra de continuidade54 revelou não apenas a fragilidade daquela

política pública para o audiovisual (Lei Hermes de Abreu), como também a extrema

dependência do Festival à esfera governamental estadual. Apesar de ter

conquistado, ao longo de suas edições, a legitimação enquanto evento de destaque

na promoção do audiovisual brasileiro em Mato Grosso, e ser muitas vezes

confundido como responsável pelas próprias políticas locais para o setor, o Festival

de Cinema e Vídeo de Cuiabá não conseguiu garantir sua sustentabilidade através

de outras políticas que não a estadual. Como foi apontado em subcapítulo anterior,

54No caso de eventos como o Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, que exigiriam continuidade (em razão de uma trajetória/histórico que revela o impulso que trouxe aos hábitos relacionados ao consumo e produção de cinema em Mato Grosso), há sempre a necessidade em se conquistar anualmente a chancela do Conselho Estadual de Cultura (no sentido da aprovação do projeto) para serem viabilizados, o que, certamente, envolve muita articulação e negociação por parte dos realizadores destes eventos com a esfera governamental.

os produtores culturais locais não encontravam facilidade para captar recursos

através da aprovação de projetos por políticas nacionais para a cultura, como é o

caso da Lei Rouanet. Com as mudanças estabelecidas na Lei Rouanet, a partir do

12º Festival esta ação é possível, e o projeto passa a contar com um pouco mais de

autonomia em relação à política estadual.

A partir de 2004, com a discussão de novos rumos para as políticas públicas

de cultura no Brasil e em Mato Grosso, a Lei Estadual de Incentivo à Cultura deixa

de existir e é instituído, em 22 de dezembro de 2004, o Fundo Estadual de Fomento

à Cultura do Estado de Mato Grosso55, facilitando a realização de projetos culturais

por suprimir a etapa de captação de recursos (que são repassados diretamente do

Estado ao proponente do projeto aprovado), além de possibilitar uma maior

participação dos segmentos artístico-culturais na aprovação dos projetos, já que

prevê a participação no Conselho Estadual de Cultura de quatro representantes (e

suplentes) eleitos pela classe artística no Estado. Por ser uma política muito recente

e não constituir-se em objeto desta pesquisa, não abordarei outras informações

referentes ao Fundo.

1.3. A produção audiovisual mato-grossense oriunda da Lei e a vinculação

com temáticas regionais

A produção audiovisual oriunda da Lei reforça, através das imagens e

discursos que mobiliza e veicula, uma profunda ligação com o local, o regional. O

que vejo como problemático nesta ligação entre Estado e a produção audiovisual

mato-grossense é que, de certo modo, fica patente a necessidade em reiterar uma

temática local para que determinados projetos sejam aprovados pela Lei sem muitos

questionamentos. Fica a impressão de que os produtores culturais estão enredados

em uma teia que tem o regional como parâmetro conteudístico (mesmo que projetos

e eventos que não tenham o regional como temática também sejam aprovados pela

Lei). Reside a impressão de que quanto maior a bagagem de elementos que

55Lei nº 8.257.

remetam a uma dada identidade regional nos projetos apresentados ao Conselho

Estadual de Cultura, maior a possibilidade de aprovação do projeto.

Isto pode ser facilmente verificado no grande número de títulos de vídeos

realizados através dos benefícios da Lei, que imediatamente remetem a temas e a

assuntos ligados a paisagens, personalidades, manifestações culturais, momentos e

monumentos históricos de Mato Grosso. Entre os principais títulos que mostram

esta constatação, temos: “Rondon, o Último dos Bandeirantes” (Joel Leão), sobre as

expedições do Marechal Cândido Rondon em Mato Grosso; “Trindade Esquecida”

(Márcio Moreira), sobre o município mato-grossense de Vila Bela da Santíssima

Trindade, primeira capital do estado; “Baile Pantaneiro” (Amauri Tangará), que

apresenta um conjunto de imagens e sons do Pantanal mato-grossense; “Divisão de

Mato Grosso” (Joel Leão e Marcelo Okamura); “O Bairro Perdido de São Gonçalo”

(Marcelo Okamura); a série “Conheça Nossa Terra”, composta de 61 vídeos de

aproximadamente 3 minutos cada, divulgando 58 cidades mato-grossenses (foram

realizados dois vídeos sobre a cidade de Poxoréu), além de um vídeo sobre o

Pantanal Mato-grossense e um vídeo intitulado “Beleza de Chapada dos

Guimarães”, que registra os principais pontos turísticos do Parque Nacional de

Chapada dos Guimarães; e a série “Imagens da Terra”, composta de 14 vídeos que

abordam personagens, locais e manifestações culturais do estado - “A Dança dos

Mascarados”, “Anji Ytambiely – Festa do Milho”, “Cavalhadas de Poconé”, “Arte aqui

é mato”, “Dunga Rodrigues”, “Centenário de Santo Antônio de Leverger”, “Professor

Carlos Reinners”, “Vila Bela da Santíssima Trindade”, “Comunidade de São

Gonçalo”, “Carnaval Cuiabano 2000”, “Os Caretas”, “Os Cinco Morenos”, “Viola de

Cocho”, “Quilombo Mata Cavalos”.

Em relação aos cinco curtas-metragens produzidos em Mato Grosso com os

benefícios da Lei, esta ligação com o regional também se manifesta, mesmo que

mais timidamente, ainda que não haja, em suas narrativas, um discurso regionalista

explícito, no sentido da defesa e valorização de aspectos da cultura regional ou

ainda “pelo seu apego a questões provincianas ou locais, já trazendo a semente do

separatismo56” (Albuquerque Jr., 1999: 47). O que percebo, na maioria dos casos - e

56Apesar desta citação se relacionar com o que Albuquerque Jr. (1999) caracteriza como a emergência de um discurso regionalista no Brasil, acredito ser possível encontrar, ainda hoje, a presença de um discurso que preserva estas mesmas características. Mantenho, aqui, a citação integral do parágrafo em questão: “O discurso regionalista surge na segunda metade do século XIX, à medida que se dava a construção da nação e que a centralização política do Império ia conseguindo

com toda clareza -, é a reiteração de determinadas paisagens e elementos que

compõem, em conjunto, uma espécie de visualidade regional ou interiorana para o

cinema mato-grossense. Ou seja, estes curtas-metragens estabelecem uma

determinada visibilidade para Mato Grosso.

As fotos que seguem foram tiradas por mim, com uma câmera fotográfica

digital. Como não consegui fotos still dos filmes em questão, capturei estas imagens

através da exibição dos curtas-metragens em um aparelho televisor, daí a falta de

qualidade das mesmas. Entretanto, creio ser possível tomá-las como comprovação

do que estou tentando apontar: a recorrência a imagens e temas ligados ao local no

cinema mato-grossense dos anos 90. Já no primeiro curta-metragem realizado com

os benefícios da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, “Pobre é Quem Não Tem Jipe”,

de Amauri Tangará57, é apresentado um espaço telúrico idealizado, onde podem ser

acompanhados alguns momentos da infância rural de um menino (Diego Borges),

em seus primeiros confrontos com a percepção da desigualdade de classes e

possibilidade de transformação através da arte (no caso, o circo). O filme apresenta

ao espectador a rotina da vida de um menino no campo, em meio às brincadeiras

com os amigos, a descoberta da morte (através de um passarinho que ele mesmo

mata com um bodoque), o conflito com o sexo oposto, os pequenos prazeres da vida

bucólica.

O regional está presente através das locações escolhidas para o curta:

arredores de Chapada dos Guimarães, o Morro de São Gerônimo, que aparece em

se impor sobre a dispersão anterior. Quando a idéia de pátria se impõe, há uma enorme reação que parte de diferentes pontos do país. Este regionalismo se caracterizava, no entanto, pelo seu apego a questões provincianas ou locais, já trazendo a semente do separatismo.” 57Em entrevista concedida ao autor, em 30/09/03, Amauri afirma que o interesse por cinema surgira desde criança, apesar de só vir a dirigir seu primeiro projeto em curta-metragem em 1997, no caso, “Pobre é quem Não tem Jipe”. Segundo o cineasta: “Na área de cinema eu estou atuando há seis anos, um pouco mais, desde 1996. Na verdade eu comecei a enveredar por esta área em 97, com o meu primeiro filme, isto é, na área de cinema. (...) Sempre tive interesse em trabalhar com cinema, desde criança. Foi a primeira arte que eu tive acesso, foi o cinema. Eu tive o privilégio de nascer numa família camponesa, mas que tinha uma coisa interessante: minha mãe gostava muito de cinema. E mesmo a gente morando na roça, morando no mato, como se dizia, minha mãe não perdia filmes na cidade. A gente morava no norte do Paraná, em Paranavaí, que é a minha cidade natal. Nós morávamos a oito quilômetros da cidade, era próximo, e havia lá dois cinemas, e eu me lembro de estar assistindo filmes no colo da minha mãe, quer dizer, minha mãe não perdia jamais um filme do Mazzaropi, do Oscarito, os filmes nacionais, e filmes com Sarita Montiel, que eram filmes espanhóis... Sempre ia ao cinema, era uma coisa muito rara passar uma semana sem ir ao cinema”. Cf. Lima: 2003.

vários planos (tomadas), e que é uma referência em várias obras de artistas

plásticos locais.

Menino (Diego Borges) contempla a paisagem natural. Ao fundo, o Morro de São Gerônimo

Em outro momento do filme, o mesmo pano-de-fundo. Menino caminha com pássaro que matou.

Como o tom do filme é de memória (há a voz de um narrador em off, no caso,

o próprio Tangará, contando a história de um ponto distante no futuro), figurinos e

carros de cena conseguem imprimir um distanciamento temporal, fazendo com que

a narrativa visual seja lida enquanto remetendo a um passado entre os anos 50 e

60. Ao caracterizar a cidade (onde o menino tem seu primeiro contato com o circo),

o diretor opta por utilizar um único plano fixo de um casarão colonial de Chapada

dos Guimarães, o que ajuda a manter o clima saudoso do filme.

Para situar o ambiente rural da história, planos do gado, galinhas e estradas de pó.

A cidade é descrita em um único plano fixo que exibe apenas um casarão colonial.

O segundo filme lançado com os benefícios da Lei Hermes de Abreu é “A

Cilada com Cinco Morenos”, de Luiz Borges. No curta-metragem (que será objeto de

análise no próximo capítulo), a oposição cidade-interior é explicitada, assim como a

presença de uma cultura urbana (mundializada, como apresentarei em seguida) e

uma cultura mais popular, no sentido do que é tido como expressão cultural

tradicional, de tradição popular.

Personagens entram em contato com a natureza, no Parque Nacional de Chapada dos Guimarães.

A cidade de Cuiabá é apresentada com seus prédios, viadutos e congestionamentos.

Em seguida (2000), há “A Velha, os Meninos e o Gato que Escaparam da

Estranha Caixa Azul”. O título do filme enuncia o próprio desenrolar da trama, que

mistura o registro documental da passagem do projeto “Cinema para Todos58” - no

distrito de Mimoso59 -, a uma narrativa ficcional, que apresenta o primeiro contato de

uma pequena garota (Andréa Pereira) com os filmes exibidos na comunidade. Os

filmes em questão são: “A Velha a Fiar”, de Humberto Mauro, onde o personagem

da Velha é apresentado, “Pobre é Quem Não Tem Jipe”, do próprio diretor, de onde

vem o personagem “Menino”, e “Meow”, de Marcos Magalhães, animação que tem

um gato como personagem principal. Este contato se dá através da aproximação da

pequena garota com a “estranha caixa azul”, no caso, um antigo projetor

cinematográfico utilizado para a exibição dos filmes do projeto.

58Projeto aprovado pela Lei Hermes de Abreu que consistia na exibição de filmes em película em cidades do interior do Estado de Mato Grosso. 59Paisagem/local recorrente na recente produção audiovisual mato-grossense, o distrito de Mimoso faz parte do município de Santo Antônio do Leverger, situada na região que compreende o Pantanal mato-grossense. A comunidade é famosa por ter sido local de nascimento do Marechal Cândido Rondon (1865-1958), tido como “patrono da comunicação”. Rondon é celebrado como uma das personagens mais importantes da história mato-grossense.

Tenho a impressão de que o diretor busca construir uma visão idealizada do

papel do cineasta, como que integrado a uma missão desbravadora de levar o

cinema a um público distante dos centros urbanos, ou, ao menos, de registrar esta

distância, em uma espécie de denúncia à ineficiência das políticas públicas de

cultura em não aproximarem-se desses atores sociais.

Menina (Andréa Pereira) tem seu primeiro contato com a “Estranha Caixa Azul” (projetor

cinematográfico).

Sessão de cinema preparada ao ar livre. O pôr do sol idealiza o cenário.

Esta missão é exemplificada na opção do cineasta em registrar a passagem

do projeto em um único local de Mato Grosso, no caso, a comunidade de Mimoso,

que apesar de próxima de Cuiabá, é tida como espaço idealizado, bucólico, onde a

“essência” perdida na capital do Estado ainda encontra espaço para existir. O curta

tem narração em off, que apresenta ao espectador a privação dos moradores do

local em relação aos hábitos de consumo cinematográfico, e imprime à passagem

do projeto pela comunidade um tom espetacular, já que grande parte daquelas

pessoas nunca tivera contato com o aparato do cinema (a exibição dos filmes é

realizada em película, com a construção de um telão ao ar livre e a utilização de um

projetor de cinema transportado pela equipe de produção do projeto nos “rincões” do

Estado).

Fica claro o discurso que pretende integrar o Estado por meio da cultura,

através da democratização do acesso ao cinema para o público mato-grossense, o

que mais uma vez remete à Ortiz (1985), ao falar sobre o Estado Nacional, que tinha

as mesmas pretensões com seu Plano Nacional de Cultura. A passagem do projeto

em Mimoso remete à passagem do desbravador Marechal Cândido Rondon60

(personalidade cuja trajetória foi objeto de outras narrativas audiovisuais no Estado),

que também tinha o ideal de integrar Mato Grosso (e a região Norte) ao Brasil.

O curta-metragem dá visibilidade a determinadas paisagens tidas como

regionais: grandes planos da paisagem rural pantaneira, imagens da lida com o

gado, mangueiras (árvore frutífera “típica” da região), a “singeleza” do elemento

humano, etc.

As mangas de “A Velha...” remetem às mangas presentes em obras de artistas plásticos locais.

Lateral do Hotel Taiamã. “As Mangas” Arte: Gervane de Paula, 1991. Foto: Jonas Barros.

Lançado em 2001, “Saringangá”, curta-metragem de Márcio Moreira61 é um

filme também ambientado no distrito de Mimoso. O cineasta apresenta o cotidiano

60Cf. Siqueira, E. M. (2002), em verbete sobre o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon: “Nasceu a 5 de maio de 1865, em Mimoso, ex-sesmaria do Morro Grande (MT). Filho de Cândido Mariano da Silva e de Claudina de Freitas Evangelista. Seus pais morreram cedo, deixando-o órfão, com apenas 7 anos. Foi criado por seu avô materno, João Lucas Evangelista. O sobrenome Rondon foi acrescido mais tarde, em homenagem à avó paterna, Maria Rosa da Silva Rondon. Seus primeiros estudos foram realizados em Cuiabá, onde passou a morar com seu tio, Manuel Rodrigues da Silva Rondon. Os estudos superiores foram cursados no Rio de Janeiro, junto à Escola Militar da Praia Vermelha. Estudou matemática com Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Depois de formado Engenheiro Militar, Rondon voltou para Cuiabá, onde ocupou cargo de Inspetor de Fronteiras (1927-1934) e também Chefe da Comissão Telegráfica. Criou e presidiu o Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Em 1930, solicitou sua reforma como militar. Acompanhou o ex-Presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt, entre os anos de 1913 e 1914, na viagem que ficou conhecida como Expedição Roosevelt. Seu nome foi proposto para concorrer ao Prêmio Nobel da Paz. Faleceu pouco antes de completar 93 anos, no dia 19 de janeiro de 1958, no Rio de Janeiro.” 61Em entrevista concedida ao autor, em 21/10/03, Márcio Moreira afirmou que começou a interessar-se pelo audiovisual na faculdade: “Desde quando, daqueles primeiros trabalhos acadêmicos, na verdade, o primeiro trabalho aconteceu em 95, ainda como requisito de uma disciplina da Faculdade, mas assim eu me formei, em 99, e a partir daí é que foram coisas extra-faculdade”. Em relação às dificuldades encontradas para produzir em Mato Grosso, Moreira aponta: “Eu acho que a dificuldade

dos moradores da comunidade, e a vinculação destes com a figura do boi, enquanto

principal fonte econômica do local, tanto na pecuária como na utilização do animal

como força motriz para os engenhos de cana.

A presença do animal enquanto componente da narrativa não é acidental: o

boi é um dos principais elementos que movem a economia regional (do Estado de

Mato Grosso), além de ter sido convencionado enquanto ícone de uma dada

identidade regional, tendo sua expressão máxima nos trabalhos pictóricos do artista

plástico Humberto Espíndola62, o que resultou na designação do conjunto de seus

trabalhos envolvendo o imaginário do boi enquanto “bovinocultura”. O filme

explicitará esta vinculação, utilizando telas do próprio artista como componentes da

narrativa, seja nos créditos de abertura e finalização do filme, ou enquanto objeto de

cena em uma das seqüências do curta.

O diretor registra a presença da dança do Boi-à-Serra (uma das danças tidas

como típicas nas expressões culturais mato-grossenses) em Mimoso. O curta

apresenta não apenas o ritual da dança, que acontece especialmente nas Festas de

Carnaval e São Benedito, mas acrescenta um caráter mítico ao ritual. Logo no início

do filme, após algumas imagens do Pantanal e da comunidade de Mimoso, onde a

ação acontece, ouvimos a mensagem do locutor de rádio, convidando para os

festejos de carnaval: “Alô, alô, meu povo do pantanal... Hoje à noite, na comunidade

de Mimoso, não deixe de participar da grande festança do Boi-à-Serra. Mulher

bonita não paga. Não deixe de ir com muita animação nesse domingo de carnaval.

Mas cuidado, mocinha, não se esqueça de ouvir os conselhos da vovó. O Boi tá

solto e pode emprensar você na cerca. Pois quem não ouve conselho, conselho

ouve ele!”

Em uma análise anterior, entendi o referencial apresentado pelo cineasta

como um texto da cultura63, já que é apresentada a figura do Boi, não um boi comum

é a falta de equipamentos, isso encarece a produção. E a base de mão-de-obra técnica, questão de, por exemplo, isso eu falo da produção em película, hoje nós não temos editores, não temos equipamentos todos pra editar esse material aqui. Os equipamento pra filmagem nós não temos. Então dificulta e encarece a produção local”. 62Cf. Guimarães, S. C. S.(2002: 73): “O boi, uma das mais importantes fontes econômicas do Mato Grosso, configurou-se como um símbolo do Brasil Central, gerador de riquezas e também de desigualdades sociais. Esse boi foi exaustivamente explorado por Espíndola, a ponto de formular toda uma cosmologia que Frederico Morais identificou e designou de ‘bovinocultura’, compreendendo o uso de elementos da pecuária como os ferros de marcar o gado, cordas, arames, chifres, crachás ou rosetas, grandes medalhas de boi, casca de arroz, telas de aramifício.” 63Adotando a concepção apresentada por Norval Baitello Junior, ao apresentar os estudos dos semioticistas soviéticos das escolas de Tartu e Moscou. Para estes, assim como o sonho, a cultura

- o animal-boi - mas sim uma entidade/divindade bovina, sobre-humana. Na

narrativa, após algumas imagens do Pantanal e da comunidade de Mimoso, onde a

ação acontece, ouve-se a mensagem de um locutor de rádio, convidando para os

festejos de carnaval. No convite, há um recado especial para as “mocinhas”, o de

não se deixarem levar pelo êxtase da festa, já que o Boi carrega a ameaça de

“emprensá-las” na cerca. É claro que este recado é ilógico na primeira realidade64,

onde o boi é apenas um animal. Mas como todo texto da cultura é gerado na

segunda realidade65, não se pode duvidar que a ameaça torne-se verdadeira (o

cinema, enquanto segunda realidade, pode transformar tudo em verdade, pelo

menos enquanto imagem). Neste caso, o caráter do recado é puramente repressor,

o que fica claro com o fechamento da locução: “quem não ouve conselho, conselho

ouve ele”, ou seja, para as “mocinhas”, só resta uma opção: não se descuidar com o

boi.

Como o próprio filme revelará, e como parte da estrutura mítica do Boi,

sempre haverá alguém que desobedecerá a ordem e se colocará no “caminho” do

Boi. É o que acontece com a protagonista do filme, uma mulher não tão “mocinha”

assim, que se deixa levar pela dança e pelos festejos do Boi, e acaba sendo

seduzida por um homem que também estava na festa. Homem que, em momento

posterior, ao manter relações sexuais com a mulher, transforma-se em Boi, fazendo

com que a mesma fuja desesperada. Ao chegar em casa, a personagem conta o

acontecido à sua tia, que não reluta em lembrar-lhe a advertência: quem não ouve

conselho, conselho ouve ele.

Como o cinema também cria uma segunda realidade, somos realmente

levados a acreditar na existência e nos poderes do Boi. O Boi do curta-metragem, e

o do imaginário popular, remonta em alguma instância ao mito grego do Minotauro,

trancado em seu labirinto, alimentado a cada nove anos com sete moças e sete

rapazes virgens. Como o texto é caracterizado pela “incorporação da categoria

‘temporalidade’” e “a construção sígnica desta temporalidade se expressa sob

formas de encadeamento sígnicos, ordenações e hierarquizações, não

também se organiza em texto, passando a ser entendida como o conjunto de textos produzidos pelo homem. Cf Baitello Junior, Norval. O Homem que Parou os Relógios. SP: Anna Blume, 1999. 64A primeira realidade, denominada pelo semioticista Ivan Bystrina, corresponderia à realidade físico-biológica, cfe Baitello Junior, N. (1999). 65A segunda realidade corresponderia à superação das amarras físico-biológicas e possui caráter sígnico, se ordena enquanto linguagem e obedece a códigos determinados. Cf. Baitello Junior, N. (1999)

necessariamente lineares” (Baitelo Jr., 1999: 42), pode-se afirmar que o mito do

Minotauro foi adequado à seu tempo, e construído de acordo com as necessidades

daquele local onde o Boi-à-Serra agora faz morada.

Créditos de abertura do filme. Ao fundo, obra de Humberto Espíndola.

Mulher (Mara Ferraz) participa do ritual do Boi-à-Serra e localiza, entre os participantes, um homem

que a encanta.

Em momento posterior, o casal consuma a relação.

“Emprensada” na cerca, mulher percebe que seu amante transmuta-se em Boi.

Diferente dos outros quatro curtas-metragens realizados em Mato Grosso,

que de alguma maneira conduzem suas narrativas de modo a tornar visíveis

elementos sacralizados em relação à cultura local, e, principalmente, localizam o

centro da ação no interior (com exceção de “A Cilada...”, onde a cidade é

personagem de destaque), “Baseado em Fatos Reais”, curta-metragem dirigido por

Bruno Bini66, conta sua história quase que tentando ocultar estes elementos. Apesar

66Em entrevista concedida ao autor, em 30/10/03, Bruno Bini descreveu como surgiu seu interesse por cinema: “Inicialmente, me interessava mais por redação e direção de arte. Com o tempo, a produção se mostrou mais interessante pelas amplas possibilidades de comunicação em áudio e vídeo. É uma chance de explorar outros aspectos e trabalhar outras artes. Ao fazer um filme, você precisa de um bom texto (na forma de um roteiro), uma boa trilha, uma boa direção de arte, etc. É uma coisa meio ilimitada. Isso é muito atraente”.

de grande parte da trama ser apresentada em locações tendo o centro de Cuiabá

como pano-de-fundo, reside no curta a impressão de que o cenário poderia ser

qualquer cidade, e acredito ser este uma das principais vitórias do filme, que nega

qualquer atributo que poderia caracterizá-lo enquanto regionalista, mostrando seu

caráter universal, tentando apresentar-se como uma trama simples de aventura que

possa ser decodificada sem maiores problemas por qualquer tipo de platéia. Neste

sentido, o do envolvimento e entendimento da narrativa por parte do público, fica

claro o sucesso conquistado por Bini, ao realizar um filme que se comunica

eficazmente com o espectador e o envolve, em uma trama que mistura drogas, sexo

e perseguições nas ruas de Cuiabá.

Bandeira do time local compõe cenário do quarto de João (Marcelo Valente)

Perseguição no calçadão do Centro Histórico de Cuiabá

Cuia (Cassiano Carneiro) veste camiseta do time de futebol local. Neste plano, está sobre a

ponte do Rio Cuiabá onde...

... jogará a arma que usou para matar João. Grande Plano Geral da arma caindo no Rio

Cuiabá.

Alguns ícones locais tornam-se visíveis no filme, como a bandeira do time

local no quarto de João (personagem de Marcelo Valente) e a camiseta do time de

futebol cuiabano que o personagem Cuia (Cassiano Carneiro), o vilão da trama, usa.

O próprio nome Cuia remete à localidade de origem do personagem (Cuiabá), mas

sem evocar uma ligação tradicionalista, pelo contrário, o personagem é

caracterizado pela ausência de um sotaque que denuncie seu pertencimento

geográfico, além de utilizar um figurino universalizado, como os outros personagens

da narrativa.

Há também o calçadão do Centro Histórico da cidade, a ponte que separa as

cidades de Cuiabá e Várzea Grande, o Rio Cuiabá. No filme, eles estão lá, enquanto

objetos da direção de arte ou locações bem escolhidas. O diretor opta, com êxito,

por dirigir, em Cuiabá, um filme com roteiro bem amarrado e boas interpretações,

com personagens urbanos, inseridos nos códigos daquilo que Renato Ortiz (1994)

chamará de cultura mundializada67.

Assim, após constatar esta reiteração por elementos presentes na produção

audiovisual mato-grossense que remetem a uma identidade regional construída

historicamente e a uma determinada visibilidade para Mato Grosso, passo, no

próximo capítulo, a investigar como estes elementos que se relacionam ao local

podem ser entendidos na produção cultural contemporânea, e quais as

possibilidades de diálogo desta produção com um cinema mais universalizante e,

ainda, com uma cultura mundializada.

67O conceito será melhor trabalhado no próximo capítulo.

CAPÍTULO II

“A CILADA COM CINCO MORENOS”:

ENTRE O LOCAL E O GLOBAL

Nos anos 90, através de uma política pública, a Lei Estadual de Incentivo à

Cultura, são realizados dezenas de vídeos e cinco curtas-metragens (até 2001) em

Mato Grosso. Esta produção “surge” em um momento histórico em que o segmento

audiovisual local se articula por meio de um discurso que reivindica a

descentralização da produção audiovisual brasileira e, automaticamente, a

regionalização dos conteúdos audiovisuais como forma de resistir à hegemonia do

eixo Rio-São Paulo. Torna-se curioso observar que, acompanhado deste discurso

que clama pela regionalização da produção, são realizados vários vídeos e filmes

que, na temática de suas narrativas, optam por paisagens, personalidades,

manifestações culturais, momentos e monumentos históricos de Mato Grosso,

elementos que comporiam um mosaico das expressões culturais encontradas no

Estado (ou, ao menos, na parte do Estado que se torna visível através desta

produção), através de um discurso identitário. Muitas vezes, esta escolha por temas

locais acaba sacralizando os elementos que compõem o discurso destes trabalhos,

impossibilitando que estes vídeos e filmes se comuniquem eficazmente com quem

os vê de fora, existindo apenas como registros que fazem sentido para a

comunidade que divide aqueles significados ali presentes. A ênfase em temas

locais/regionais caracterizaria um discurso que aqui chamarei de regionalista.

Neste capítulo, aponto a presença deste discurso em contraposição à fase

que Renato Ortiz denomina de “mundialização da cultura”, onde, em um cenário

mundial (ocidental) caracterizado pela globalização econômica, os indivíduos

compartilhariam traços culturais adquiridos através da vivência cotidiana do

consumo (vestuário, alimentação, música, televisão), o que resultaria em “cidadãos

mundiais”. Através da apresentação deste cenário, proponho uma discussão sobre o

local/regional e global no cinema mato-grossense dos anos 90, utilizando como

objeto de análise o curta-metragem “A Cilada com Cinco Morenos”, de Luiz Borges,

tornando perceptíveis as relações entre o local e o global impressas nesta narrativa.

Mais que isso, investigo como elementos da cultura regional são

representados no filme, tanto nas manifestações de caráter “erudito”, “popular” e

“massivo”68, por acreditar que “estas instâncias do cultural estão historicamente

imbricadas pelas determinações dos processos de industrialização e urbanização,

68Entenderei estas instâncias do cultural de maneira indissociável, como propõe Martin-Barbero (2003).

às vezes mediados pela indústria cultural que é em princípio conseqüência e não

causa destes dois fatores” (Jacks, 1998:19).

2.1. Mundialização da Cultura e Identidades

Dentro de um cenário mundial (ocidental) caracterizado pela globalização e

pela mundialização da cultura, como entender a manutenção/afirmação de

expressões culturais tradicionalistas? Quando constato a existência de um discurso

presente no campo artístico-cultural mato-grossense de forte caráter regionalista,

como posso entendê-lo em relação à dinâmica de mundialização da cultura?

Para Ortiz (2003: 10), a mundialização da cultura se revela através do

cotidiano. Abordando a temática cultural no contexto da sociedade global, através da

dimensão da vida social, o autor aponta que “no processo de globalização69, a

cultura de consumo desfruta de uma posição de destaque”, transformando-se “numa

das principais instâncias mundiais de definição da legitimidade dos comportamentos

e dos valores”. Fast-foods, hotéis, aviões, computadores, Hollywood, seriam os

traços que indicariam uma vivência mundializada.

Ao descrever a desterritorialização da cultura, o autor cita o exemplo de um

“filme-global”, que seria realizado para um público-alvo mundial. Este filme poderia

ser produzido por uma major de Hollywood, dirigido por um cineasta europeu,

financiado por japoneses, com elenco internacional, com locações de cenas em

vários lugares do planeta. Ocorre o que Ortiz (2003: 108) chama de “deslocalização

da produção”, gerada pela necessidade de grandes empresas em diminuir custos, o

que as leva a descentralizarem a produção e acelerar a produtividade. Ou seja,

“uma cultura mundializada corresponde a uma civilização cuja territorialidade se

globalizou”. Compartilharíamos não mais os velhos traços que nos uniriam em torno

de uma identidade fixa e definitiva, mas sim os traços do consumo: comida,

vestuário, objetos eletrônicos. Estes traços formariam uma cultura internacional-

popular.

69Para Ortiz (2003: 16), o conceito de globalização se aplica “à produção, distribuição e consumo de bens e de serviços, organizados a partir de uma estratégia mundial, e voltada para um mercado mundial. Ele corresponde a um nível e a uma complexidade da história econômica, no qual as partes, antes inter-nacionais se fundem agora numa mesma síntese: o mercado mundial”.

Entretanto, “uma cultura mundializada não implica o aniquilamento das outras

manifestações culturais, ela coabita e se alimenta delas” (Ortiz: 31), o que significa

dizer que, apesar de hegemônico, outros tipos de expressão coexistem no contexto

da sociedade global. Isto me faz entender a disseminação dos discursos que

clamam pela valorização de determinadas identidades culturais que estariam se

“perdendo” ou sendo “esquecidas” com o ritmo frenético da produção padronizada

para o consumo como fenômenos naturais nesta etapa do desenvolvimento mundial.

Os discursos identitários que se desenvolvem nos mais variados extratos

sociais e culturais têm sido um dos assuntos mais abordados pelas várias correntes

dos Estudos Culturais. No Brasil, uma série de autores tem se dedicado ao estudo

daquilo que se convencionou chamar de “identidade nacional”, principalmente na

área das Ciências Sociais. Estabelecer o “caráter nacional” de um país tão grande e

diverso culturalmente quanto o Brasil é tema que se desenvolve desde o século XIX.

Luiz Zanin Oricchio (2003) aponta que os modernistas tentaram resolver a dialética

entre o Eu e o Outro através da antropofagia. Nos anos 60, haveria uma mudança

neste discurso, procurando-se por especificidades temáticas e estilísticas nas

linguagens artísticas desenvolvidas no Brasil, principalmente no cinema, onde se

tentava fugir do padrão hollywoodiano e consolidar um “cinema nacional”. O autor

aponta que isto não era exclusividade do Brasil, mas uma tendência verificável em

toda América Latina, em um discurso que pregava a “descolonização” cultural.

Escosteguy (2004: 155) afirma que “a globalização, a força das migrações e o

papel do Estado-nação e da cultura nacional e suas repercussões sobre o processo

de construção das identidades” têm sido importantes eixos trabalhados na presente

etapa dos Estudos Culturais. Como utilizarei a idéia de “identidade local” para referir-

me a alguns aspectos observáveis na produção cultural mato-grossense

(principalmente aquela concentrada na região da capital do Estado, Cuiabá), farei

uma breve introdução à temática das ‘identidades’ tendo sob pano de fundo a

discussão presente no campo dos Estudos Culturais, para que esta discussão esteja

devidamente contextualizada e para que o próprio conceito seja entendido dentro de

uma noção determinada e historicamente construída.

Stuart Hall (1997: 10-14) distingue três concepções de identidade: a do sujeito

do Iluminismo (pessoa humana como indivíduo centrado, unificado, dotado de razão,

consciência e ação, com núcleo interior que “emergia pela primeira vez quando o

sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o

mesmo - contínuo ou idêntico a ele - ao longo da existência do indivíduo”; a do

sujeito sociológico, que refletia a complexidade do mundo moderno e a consciência

de que o núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas sim

formado na “relação com ‘outras pessoas importantes para ele’, que mediavam para

o sujeito os valores, sentidos e símbolos - a cultura - dos mundos que ele/ela

habitava”, resultando no preenchimento do espaço entre interior e exterior,

estabilizando “tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam,

tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis; e a do sujeito pós-

moderno, que compreende um sujeito fragmentado, composto não de uma única,

mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.

Segundo Hall:

A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. (...) Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu” (veja Hall, 1990). A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. (Hall, 1997: 13-4, parêntesis do autor)

Mesmo que Hall ressalte o caráter simplificador das três concepções, creio

ser possível utilizá-las para pensar os embates no campo cultural mato-grossense,

que tenta construir (em alguns casos) uma identidade que unifica e predefine as

“coisas”, os temas de Mato Grosso, em analogia à concepção de identidade do

sujeito sociológico. A tendência é insistir nessa categorização de identidade

coerente e unificada em torno de uma “essência mato-grossense”, e evitar a mistura,

o híbrido.

Denys Cuche (2002) enfatiza que “as grandes interrogações sobre a

identidade remetem frequentemente à questão da cultura. Há o desejo de se ver

cultura em tudo, de encontrar identidade para todos”. Cuche menciona que o uso

excessivo do conceito “identidade cultural” advém dos discursos de exaltação da

diferença, que ganharam força a partir dos anos setenta. Refazendo a trajetória

destes discursos, o autor enumera diferentes concepções relacionadas à identidade

cultural: concepções objetivistas entenderiam a identidade cultural como uma

“condição imanente do indivíduo, definindo-o de maneira estável e definitiva”

(remetendo ao grupo original com que o indivíduo estaria vinculado, às raízes e à

essência deste indivíduo - identidade preexistente), ou ainda corresponderiam à

“herança cultural, ligada à socialização do indivíduo no interior de seu grupo cultural”

(neste caso, a identidade também seria preexistente ao indivíduo), onde a identidade

seria definida e descrita a partir de critérios determinantes, objetivos (origem comum,

língua, cultura, religião, vínculo a um território); as subjetivistas, onde a “identidade

etno-cultural não é nada além de um sentimento de vinculação ou uma identificação

a uma coletividade imaginária em maior ou menor grau”, importando neste tipo de

análise “as representações que os indivíduos fazem da realidade social e de suas

divisões”, o que, para Cuche, reduziria a identidade a uma questão de escolha

individual arbitrária, onde cada um poderia escolher suas identificações; relacionais,

que entenderiam a identidade como construção social elaborada em relação de

oposição de um grupo ao outro.

Se a identidade é uma construção social e não um dado, se ela é do âmbito da representação, isto não significa que ela seja uma ilusão que dependeria da subjetividade dos agentes sociais. A construção da identidade se faz no interior de contextos sociais que determinam a posição dos agentes e por isso mesmo orientam suas representações e suas escolhas. Além disso, a construção da identidade não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia social, produzindo efeitos sociais reais. (Cuche, 2002: 182)

Ao observar vários extratos da produção cultural mato-grossense, pude

constatar rapidamente que muito do que é dito, escrito, cantado, pintado e gravado

pelos artistas locais revela um determinado tipo de representação que se faz do

referente - no caso, os discursos sobre Mato Grosso -, no sentido de materializar

características que, relacionadas a outros referentes (outros Estados, outras

paisagens), identificariam-nas enquanto expressões legítimas de uma “identidade

mato-grossense”.

Neste cenário marcado pela globalização e mundialização da cultura,

características marcantes da fase atual do capitalismo, a produção cinematográfica

mato-grossense caracteriza-se pela recorrência a temas que parecem glorificar

determinados elementos culturais regionais. Esta característica deve ser entendida

enquanto resistência a uma aparentemente homogeneização promovida pelas

indústrias culturais brasileiras ou enquanto reação às possibilidades de diálogo com

outras culturas, através de discursos que negam o outro e fecham-se sobre si

mesmos?

De acordo com Albuquerque Jr. (1999) a busca por uma identidade regional

surge como reação a dois processos de universalização que se cruzam:

a globalização do mundo pelas relações sociais e econômicas capitalistas, pelos fluxos culturais globais, provenientes da modernidade, e a nacionalização das relações de poder, sua centralização nas mãos de um Estado cada vez mais burocratizado. A identidade regional permite costurar uma memória, inventar tradições, encontrar uma origem que religa os homens do presente a um passado, que atribuem um sentido a existência cada vez mais sem significado. (Albuquerque Jr. 1999:77)

Para o autor, a perda de algo que está se acabando leva os indivíduos a

construir discursos que “descubram” a região, buscando pelas raízes regionais,

inventando tradições de modo a “estabelecer um equilíbrio entre a nova ordem e a

anterior” e “conciliar a nova territorialidade com antigos territórios sociais e

existenciais”. Manter tradições seria a forma de garantir a “perpetuação de

privilégios e lugares sociais ameaçados” (1999, 76).

Como apresentarei posteriormente, com a aceleração do processo migratório

para Mato Grosso a partir da década de 1930, surge a necessidade de evitar que a

memória regional, individual e coletiva, seja perdida. A elite cultural recorrerá ao um

passado de tradições que estavam se perdendo para elaborar novos discursos

sobre a região, evitando a mistura com o estrangeiro, em uma postura muitas vezes

xenófoba e bairrista, que tenta ocultar o de fora, encarado como alienígena.

Encontrei elementos que possam dar contra de uma discussão acerca das

ligações da abordagem cultural regionalista com a cultura globalizada no livro

“Império”, de Michael Hardt e Antonio Negri (2003: 11), que descreve uma nova

ordem mundial (caracterizada por “uma globalização irresistível e irreversível de

trocas econômicas e culturais”), onde a cultura, nesta nova ordem, também sofre

uma globalização irreversível, de modo a não mais existirem as velhas “identidades

culturais” que tendem para a centralização e cristalização de traços identitários de

uma determinada cultura, mas sim um novo mecanismo, onde as identidades são

híbridas e fluidas. Apontamentos semelhantes aos que Zilá Bernd (2001) apresenta

em “Literatura e Identidade Nacional”:

A busca identitária pode, pois, funcionar de duas diferentes maneiras: a) como sistema de vasos estanques (primeiro grau) que origina cristalizações discursivas que condenam à morte a “literariedade” dos textos, pois a inquietação da linguagem é a própria essência do literário; ou b) como processo (segundo grau) em permanente movimento de construção/desconstrução, criando espaços dialógicos e interagindo na trama discursiva sem paralisá-la. (Bernd, 2003. 18)

Considerando a produção cinematográfica mato-grossense pós-Lei Hermes

de Abreu, e, mais especificamente, o curta-metragem em análise (A Cilada com

Cinco Morenos, MT, 35 mm, 15 min, Luiz Borges, 1999), creio ser possível afirmar

que estas narrativas ora se apresentam enquanto este sistema estanque que

paralisa as narrativas através de discursos que sacralizam o local, ora enquanto

processo, evidenciando o diálogo destas narrativas com outras narrativas e com o

ideário local, desconstruindo-o para re-construí-lo, transformando-o. Como é

impossível pensar estes curtas-metragens sem pressupor que os mesmos

estejam trabalhando com elementos da cultura local para talvez fundar, legitimar

ou romper com uma “identidade local” ou “identidades locais” através destas

narrativas, pode-se dizer que, de alguma forma, estes filmes estão colaborando

para que estes elementos sejam cristalizados enquanto representações legítimas

sobre o local, a região (no caso, Cuiabá e arredores), ou seja, sacralizando estes

elementos.

Esta busca de definição identitária por um indivíduo ou por uma comunidade pode caracterizar duas funções da literatura como apontou o poeta e crítico antilhano, Edouard Glissant70 (1981, p. 189-201), estudando a formação das literaturas nacionais: há a função de dessacralização, função de desmontagem das engrenagens de um sistema dado, de pôr a nu os mecanismos escondidos, de

70Cito integralmente a passagem de Glissant, traduzida por Normélia Parise, disponível na biblioteca virtual da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) - http://www.ufrgs.br/cdrom/glissant/index.html: “Consideremos a obra literária em seu alcance mais amplo; podemos convencionar que ela satisfaz a dois usos: existe função de dessacralização, de heresia, de análise intelectual, que consiste em desmontar as engrenagens de um sistema dado, em pôr a nu os mecanismos escondidos, em desmistifcar. Mas existe também função de sacralização, função de agrupamento da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seu imaginário ou de sua ideologia.” Traduzido de Glissant, Edouard. Le discours antillais. Paris: Seuils, 1981. p.190-201: Le Même et le Divers.

desmistificar. Há também uma função de sacralização, de união da comunidade em torno de seus mitos, de suas crenças, de seus imaginários ou de sua ideologia. (Bernd, 2003: 18-19)

Para observar estes possíveis momentos sacralizantes/dessacralizantes

presentes no curta-metragem “A Cilada com Cinco Morenos”, levarei em conta, além

da narrativa (trama, enredo), aspectos da trilha sonora, a maneira como a cidade é

apresentada e suas relações com o elemento humano, a oposição natureza/urbano,

e principalmente, o contato com os códigos de uma cultura de consumo -

mundializada - perceptíveis na análise do filme.

2.2. Paredões milenares, celulares e congestionamentos em “A Cilada com

Cinco Morenos”

Antes de dissertar sobre o filme, suponho ser interessante levantar algumas

informações sobre seu diretor. Luiz Borges, de acordo com o que apresentei no

primeiro capítulo desta dissertação, pode ser apontado como um dos intelectuais

responsáveis por grande parte dos discursos que criaram uma visibilidade para o

recente cinema mato-grossense. A atração de Borges pelo campo artístico começou

no Colégio São Gonçalo (escola cuiabana), através de uma peça de teatro com

Camilo Ramos. A influência do cinema veio desde cedo, quando a mãe71 o levava

para assistir filmes de Sarita Montiel e Mazzaroppi nas matinês do Cine Teatro

Cuiabá, Cine Bandeirantes e Cine Tropical.

71Em entrevista ao autor, em 01/10/2003, Borges falou sobre a influência da mãe no contato com o cinema: “Tem uma coisa interessante, que minha mãe tinha um ateliê de costura, e ela assistia aos filmes, ela era apaixonada pela Rita Hayworth, ela era uma mulher que sempre assim, ela assistia ao filme, ela tinha a cultura do cinema, ela sabia o nome do diretor, sabia o nome da atriz e a gente conversava muito em casa sobre os filmes que assistia. Então ela, depois de assistir certos filmes - como eu me lembro um chamado Gilda, com a Rita Hayworth - ela chegou em casa, pegou e fez um desenho do vestido e produziu uma peça, ela fazia desfiles nos clubes em Cuiabá, no Náutico, no Dom Bosco, fazia desfile de modas, e ela introduzia algumas coisas, dentro da costura e do design do cinema. Então essa coisa do cinema foi bastante estimulada em casa mesmo, pela cultura e o encontro familiar de todo sábado ir ao cinema, domingo ir ao cinema”. Cf. Lima, D. B. (2003).

Filho de tradicional família da capital, Borges trabalhou na produção de alguns

espetáculos musicais, mas acabou formando-se em administração de empresas, na

Faculdade Machado Sobrinho, em Juiz de Fora. Anos mais tarde, resolveu fazer o

mestrado em cinema na Universidade de São Paulo - USP. Deste período resultou

uma das poucas pesquisas72 sobre o cinema em Mato Grosso, a dissertação

“Memória e Mito do Cinema em Mato Grosso73”, que procura remontar a história do

cinema em Mato Grosso, da primeira exibição, em 1903 à década de 1970.

Após regressar de São Paulo, em 1992, promoveu o curso “Núcleo de

Cinema” (ver capítulo I), com a participação de cineastas reconhecidos no país,

como Carlos Reichembach, Dib Lufti e Denoy de Oliveira. Desta oficina, além de três

curtas-metragens coletivamente criados pelos alunos, surgiu o embrião para a

Associação Núcleo de Cinema, que mais tarde se transformaria na AMAV -

Associação Mato-grossense de Áudio/Visual. Funcionário público concursado da

Universidade Federal de Mato Grosso desde 1984, Borges trabalhou como

supervisor do Cineclube Coxiponés entre 1992 e 1998. Durante sua gestão, realizou

a Mostra/Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, evento do qual foi idealizador, além

72Outros escritos sobre o cinema em Mato Grosso podem ser encontrados em Alencastro, Moreira, Vigo e Lima. Em “Anos Dourados dos Nossos Cinemas”, Aníbal Alencastro (1996) combina memórias das antigas salas de cinema onde o autor trabalhou, com contos e outras histórias envolvendo cinema, de tom pessoal; em “Cuiabá na Lente do Foto Chau”, Márcio Moreira (2000) faz um levantamento de todos os registros cinematográficos realizados pelo fotógrafo armênio Lázaro Papazian; em “Indústria Audiovisual - Um Estudo Comparado, Uma Proposta para Mato Grosso”, monografia de conclusão do curso de Comunicação Social pela UFMT, Andréia Vigo (1999) propõe caminhos para a criação de um pólo audiovisual em Cuiabá, tendo como base para o estudo de caso experiências realizadas no Rio Grande do Sul (a proposta de Vigo foi posteriormente redirecionada para o Projeto para Implantação do Pólo Audiovisual Arne Sucksdorff, em 2001, elaborado pelo Grupo Executivo de Trabalho do Pólo, constituído pelo Governo do Estado de Mato Grosso através do Decreto nº 3.313, de 05 de Novembro de 2001); em “A Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Mato Grosso e o Destino do Produto Audiovisual Mato-grossense” (Lima, 2003), fiz um levantamento da produção audiovisual no Estado oriunda do estímulo da Lei Hermes de Abreu, investigando o acesso aos curtas-metragens mato-grossenses por parte dos estudantes de Comunicação Social de Cuiabá. 73Com a dissertação, Borges tenta recuperar a memória cinematográfica mato-grossense. Segundo o cineasta, “eu acho que o primeiro mal do Mato Grosso foi exatamente a questão da ausência da memória do cinema, porque até quando eu fui pra São Paulo, e que foi até objeto da minha pesquisa, a memória do cinema no estado, na época a única coisa que havia sobre cinema em Mato Grosso foi a presença do Arne Sucksdorff na região. Ponto. E mais nada. E eu achava estranho isso, porque um lugar como Cuiabá, que sempre foi rota de óperas, né, teve uma presença muito grande no teatro no século XVIII, eu achava curioso o fato de não ter a presença de realizadores mato-grossenses fazendo cinema. Eu lembro da infância, que eu estudava no São Gonçalo, e em frente ao São Gonçalo morava o Hélio Jacob, que é pai do Eduardo Jacob. Nós víamos o Sr. Hélio Jacob, passava trechos de filmes. E ele tinha uma câmera 16 mm, né. E aqui no Mato Grosso a arte era considerada apenas a modalidades de teatro, artes plásticas, né. Desde o grupo que surgiu a partir do trabalho de Aline Figueiredo, as artes plásticas foram muito valorizadas a partir dos anos 60. E cinema era uma coisa assim, considerada uma arte menor. E eu fui, isso que me motivou a ir pra São Paulo, pra fazer essa pesquisa”. Cf. Lima, D. B. (2003)

de ter promovido a aquisição do acervo fotográfico e cinematográfico do cinegrafista

armênio Lázaro Pappazian.

Na década de 90, Borges ganhou prestígio em Mato Grosso e no Brasil,

através da realização da Mostra/Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá, e da

participação em trabalhos de cinema. Inicialmente, trabalhou nos vídeos “Linhas

Cruzadas” (1988) e “Arca de Nois” (1989, lançado na Galeria Funalfa-SP, no

movimento Chapada Viva, pela implantação do Parque Nacional de Chapada dos

Guimarães - Borges foi militante da causa ambiental e travou embates pela

preservação de Chapada, onde reside desde então).

Após a produção dos trabalhos “Olhos”, “Luz” e “Espelho”, realizados na

oficina “Núcleo de Cinema”, foi diretor de produção do longa-metragem “Mário”, do

cineasta Hermano Penna, filmado na cidade de Juína-MT, em 1998. Realizou

também a pesquisa de locação dos filmes “Cronicamente Inviável”, de Sérgio Biachi

e “Uma Vida em Silêncio”, de Suzana Amaral. Em 1999, co-produziu o longa-

metragem “Latitude Zero”, de Toni Venturi, filme que recebeu diversos prêmios no

Brasil e exterior. Em 2001, produziu e fez assistência de direção do filme “Baseado

em Fatos Reais”, de Bruno Bini.

“A Cilada com Cinco Morenos”, curta-metragem de 15 minutos, filmado em

35mm, dirigido por Luiz Borges é a segunda produção cinematográfica em película

beneficiada pela Lei Hermes de Abreu. Hours Concours do 7º Festival de Cinema e

Vídeo de Cuiabá (1999), o filme fez carreira em festivais de cinema no Brasil, tendo

recebido o prêmio de Melhor curta-metragem no 4º Brazilian Film Festival of Miami74,

em 2000.

A análise que segue procura observar o curta-metragem “A Cilada com Cinco

Morenos” de acordo com suas características formais e conteudísticas. Como

características formais, compreenderei a maneira com que o filme apresenta-se em

sua divisão de planos, opções de enquadramento, padrões estéticos, efeitos obtidos

pela montagem e som. Para tanto, utilizei basicamente a abordagem apresentada

74O Brazilian Film Festival of Miami (Festival de Cinema Brasileiro de Miami) é organizado desde 1997 pela Inffinito Promotions, entidade dirigida pelas irmãs Adriana e Cláudia Dutra e por Viviane Spinelli. Spinelli nasceu em Mato Grosso, na cidade de Cuiabá, onde vive grande parte de sua família. Em 2000, quando da premiação de “A Cilada com Cinco Morenos”, pelo júri oficial do 4º Brazilian Film Festival of Miami, o Estado de Mato Grosso foi homenageado pela organização do Festival (o Festival homenageia anualmente um estado do Brasil). Consta nas atas do Conselho Estadual de Cultura a aprovação de dotação orçamentária para o Festival, na data de 30.05.2000, destinada à participação das marcas do Governo de Mato Grosso e Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso nos materiais oficiais do evento, como cota de patrocínio.

por Jacques Aumont em “A Estética do Filme”. Como características conteudísticas,

utilizarei alguns trechos do curta-metragem, tentando evidenciar o diálogo que este

estabelece entre o local e o global, objeto desta dissertação, ou seja, serão

explicitados os momentos em que o filme ‘diz coisas’ sobre o local e momentos em

que, mesmo tratando de temas, cores e paisagens locais, consegue transcendê-lo,

colocá-lo em discussão.

Previamente à análise das características formais e conteudísticas do curta,

assisti “A Cilada com Cinco Morenos” consecutivas vezes e, com base no que

propõem Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété fiz uma descrição apurada de todos os

planos que compõem o filme. Cada plano foi cronometrado, tendo sido observado o

enquadramento ou movimento de câmera realizado, a descrição da ação realizada

no plano e de seu conteúdo sonoro. Esta descrição detalhada encontra-se nos

anexos desta pesquisa.

Para prosseguir, creio ser relevante fazer um esboço da narrativa presente no

filme. “A Cilada com Cinco Morenos” apresenta a história de Garoto (o filme não dá

nome a seus personagens, nem mesmo nos créditos de encerramento), que, em um

momento de lazer com sua namorada, em uma cachoeira do Complexo Véu da

Noiva (região de paredões arqueológicos milenares localizada a sessenta

quilômetros da cidade de Cuiabá, Mato Grosso, em local relativamente afastado da

urbanidade, refúgio de turistas), recebe do pai a ordem de ir até a Comunidade de

Souza Lima (bairro localizado na periferia da cidade de Várzea Grande, vizinha a

Cuiabá), buscar o grupo musical Cinco Morenos (famoso grupo de rasqueado,

expressão musical da cultura popular mato-grossense) para tocar em show na festa

de 15 anos da irmã de Garoto. Paralela à jornada que Garoto e sua namorada fazem

de van de Chapada dos Guimarães (cidade próxima ao Complexo Véu da Noiva) à

Cuiabá, chega ao Aeroporto Marechal Rondon (localizado na cidade de Várzea

Grande) um violinista – com ares europeus - que irá se apresentar no Teatro da

Universidade Federal de Mato Grosso. No aeroporto, há um incidente com uma

mulher que derruba o violino do músico no chão. Para surpresa do violinista, o

carregador de malas do aeroporto faz a afinação do instrumento, deixando o músico

impressionado com a cena que presencia. Ainda em paralelo, somos introduzidos à

história do grupo musical Cinco Morenos, contada pelo Sr. Jayme, componente do

grupo. Mais tarde descobriremos que a história está sendo gravada por uma equipe

de vídeo que provavelmente está fazendo um documentário/matéria sobre o grupo.

Paralelamente à narração do Sr. Jayme, somos apresentados a algumas

cenas dramatizando momentos do passado do grupo musical Cinco Morenos.

Unindo as ações paralelas, Garoto encontra a casa de Sr. Jayme no mesmo

momento em que a gravação da equipe de vídeo é concluída e em que Sr. Raul - o

carregador de malas do aeroporto e componente do grupo Cinco Morenos - chega

de taxi, trazendo o violinista estrangeiro consigo. Garoto informa que veio buscar o

grupo. Todos embarcam na van, em direção à comunidade de Santo Antônio do

Leverger (município vizinho a Cuiabá), com a intenção de buscar cordas para o

banjo do Sr. Jayme. Chegando lá, ao descobrirem que Garoto não irá pagar metade

do cachê do grupo adiantado, e levando em consideração que pai de Garoto já havia

deixado de pagar por outro show, os Cinco Morenos resolvem abandonar Garoto e

fazer a festa no barracão da comunidade, juntamente com o violinista estrangeiro,

que se junta ao grupo em performance musical.

2.2.1. Características formais

O curta-metragem “A Cilada com Cinco Morenos” é dividido em 87 planos,

totalizando 14 minutos e 40 segundos de duração com os créditos de patrocínio e

encerramento. Todos os planos são filmados com câmera fixa, existindo várias

tomadas panorâmicas e travellings durante o filme. Há um cuidado apurado com o

enquadramento dos planos.

A maioria das tomadas/cenas do filme são externas, com exceção daquelas

gravadas dentro do aeroporto e dos salões de festa onde o grupo musical Cinco

Morenos realiza suas apresentações. Inexistem cenas de estúdio, com cenários

fabricados.

Quanto ao gênero, por se tratar de um curta-metragem, acredito

encaixar-se melhor na categoria de filme experimental, já que “A Cilada...” mistura

gêneros e, principalmente, apresenta uma ficção embalada – em algumas

seqüências - no formato documental, o que acredito ser um dos aspectos mais

relevantes desta obra. Há a ilusão da utilização da técnica do cinema-direto, que

“remete ao processo de gravação da imagem e mais especificamente ainda à

gravação do som. Ele se opõe assim, duplamente, ao cinema de ficção tradicional:

as imagens são aí gravadas sem “ensaios”, segundo o princípio da improvisação

máxima” (Aumont & Marie, 2003: 81), já que o filme propõe a intertextualidade dos

códigos do cinema clássico ficcional com os códigos do cinema documentário. Trata-

se de uma ilusão, já que todas as cenas foram gravadas de acordo com um roteiro

(pré-roteiro, em algumas cenas), onde falas foram estabelecidas para cada

personagem, inclusive aqueles que representam no filme os papéis que vivem na

realidade, como é o caso do Sr. Jayme e do Sr. Raul. Além disso, não saltam aos

olhos quaisquer indícios de câmera trêmula, ou câmera na mão, técnica muito

utilizada em documentários e no cinema-direto.

Ainda assim, acredito que o filme proporciona ao espectador uma experiência

conflitante, onde realidade e ficção75 se misturam, atravessando as fronteiras que

muitas vezes separam um cinema mais ficcional de um cinema dito documental.

Para melhor entender as discussões que envolvem o cinema e a idéia que

circula no senso comum de que este seria a arte do real, creio ser relevante, para o

andamento desta pesquisa, fazer uma breve revisão teórica baseada em autores

que procuraram se posicionar criticamente em relação ao aparato cinematográfico e

suas implicações na vida social, já que “o movimento que veio a ser conhecido como

estudos culturais interessava-se mais por situar os meios, como o cinema, em um

contexto histórico e cultural mais amplo” (Stam, 2003: 248). Como estarei analisando

um curta-metragem de ficção que é composto, em seu conteúdo, por uma espécie

de “documentário dramatizado/docu-drama”, precisarei pontuar algumas

observações acerca do cinema enquanto ficção. Gosto da opção de Ismail Xavier,

que assume “que o cinema, como discurso composto de imagens e sons é, a rigor,

sempre ficcional, em qualquer de suas modalidades; sempre um fato de linguagem,

um discurso produzido e controlado, de diferentes, formas, por uma fonte produtora”

75Em relação ao filme de ficção, aponta Aumont (1996:100): “Decerto, a representação fílmica é mais realista pela riqueza perceptiva, pela “fidelidade” dos detalhes do que os outros tipos de representação (pintura, teatro), mas, ao mesmo tempo, só mostra efígies, sobras registradas de objetos que estão ausentes. O cinema tem de fato esse poder de “ausentar” o que nos mostra: ele o “ausenta” no tempo e no espaço, porque a cena registrada já passou e porque se desenvolveu em outro lugar que não na tela onde ela vem se inscrever. No teatro, o que representa, o que significa (atores, cenários, acessórios), é real e existe de fato quando o que é representado é fictício. No cinema, representante e representado são ambos fictícios. Nesse sentido, qualquer filme é um filme de ficção”.

(Xavier, 2005: 14). Ao assumir esta postura, Xavier leva em conta que existem níveis

de ficção presentes em cada obra cinematográfica, e que um documentário, apesar

de estar apoiado em fontes verídicas, de registrar um evento que teria um grau de

veracidade maior que o filme de ficção tradicional, também pode ser entendido

enquanto ficção. O que faria diferença, em relação aos sistemas de significação, não

seria o grau de ficcionalidade/veracidade de um filme, mas sim a maneira como este

filme oculta ou revela ao espectador o dispositivo cinematográfico, como as relações

existentes entre a imagem e o som do cinema e a realidade são percebidas em

diferentes obras cinematográficas.

Assim, Xavier apontará graus de opacidade e transparência, onde a

opacidade representará um maior distanciamento crítico do espectador em relação

ao filme, e a transparência representará uma diminuição ou ocultamento deste

distanciamento crítico, fazendo com que o espectador assimile a narrativa que

assiste na tela como algo que reproduz a realidade, que tem uma existência real,

que não está convencionada por um código e por sistemas de significação. Deste

modo, haveria momentos na teoria cinematográfica que, com base na produção

cinematográfica de cada período, apontariam para filmes realizados com um grau

maior ou menor de utilização da decupagem clássica, que pode ser caracterizada

por “seu caráter de sistema cuidadosamente elaborado, de repertório lentamente

sedimentado na evolução histórica, de modo a resultar num aparato de

procedimentos precisamente adotados para extrair o máximo rendimento dos efeitos

da montagem e ao mesmo tempo torná-la invisível” (Xavier, 2005: 32).

Para melhor entender as variações formais e conteudísticas do filme, optei

por dividi-lo em quatro seqüências. Apesar de basicamente indicarem o conteúdo

das seqüências, as informações a seguir são essenciais para visualizarmos o

empreendimento formal realizado pelo cineasta Luiz Borges na narrativa de “A

Cilada com Cinco Morenos”:

Seqüência A: seqüência que apresenta a história do casal que tem

seu momento de lazer interrompido pelo pai de Garoto (Maurício Branco), que

ordena que este vá até a comunidade de Souza Lima buscar os integrantes

do grupo musical Cinco Morenos.

Garoto (Maurício Branco) recebe ligação telefônica do pai.

Após “travessia” em busca do Grupo Cinco Morenos, casal acaba sendo forçado a desistir do projeto de levar

integrantes sem desembolsar dinheiro.

Seqüência B: a seqüência do aeroporto, onde o violinista Klaus

descobre que um funcionário do aeroporto (Sr. Raul, maestro do Grupo Cinco

Morenos) é um exímio tocador de violino.

Klaus (Thomas Krauze) discute no aeroporto com mulher que esbarrou em seu violino.

O violinista fica impressionado ao ver que o carregador de malas do aeroporto sabe tocar o

instrumento.

Seqüência C: a seqüência em que somos introduzidos aos

comentários do Sr. Jayme, que conta a uma equipe de vídeo a história do

grupo musical Cinco Morenos.

Plano 58 – Sr. Jayme conta a história do Grupo Cinco Morenos

A câmera “documental” testemunha o compartilhar de um cigarro.

Seqüência D: A seqüência onde são dramatizadas algumas cenas que

compõe o passado do grupo musical Cinco Morenos.

Plano 34 - Procissão, ou “esmola” de bandeira. Plano 37 - Em passagem “idealizada”, o pintor João Sebastião pinta os “Cinco Morenos”.

Há padrões estéticos diferenciados entre as seqüências acima elencadas. As

seqüências A, B e C se assemelham por apresentarem-se dentro de uma mesma

palheta de cores. A seqüência D é explicitamente divergente das demais, por

apresentar imagens em tom sépia, demarcando as cenas relacionadas apenas à

dramatização do passado do grupo musical Cinco Morenos. A seqüência C também

difere das seqüências A e B no que diz respeito à ficcionalidade aparente. Enquanto

em A e B somos introduzidos em uma história indubitavelmente ficcional, a

seqüência C se apresenta como um possível indício de que o que está ali sendo

narrado diferencia-se do conteúdo de A e B. Afirmo isso, pois a seqüência C

relaciona-se diretamente aos códigos pertencentes à linguagem documental,

principalmente por colocar o personagem-narrador, Sr. Jayme, falando de frente

para a câmera. Só mais tarde (Plano 58) perceberemos que o depoimento do Sr.

Jayme está sendo gravado por uma equipe de vídeo, e que esta gravação compõe a

trama ficcional do filme. Apesar de o filme em si ter sido totalmente roteirizado,

baseia-se em fatos extraídos da cotidianidade do grupo musical Cinco Morenos.

Podemos afirmar que as seqüências A a D acontecem

concomitantemente, o que foi satisfatoriamente manejado durante a montagem do

filme, que se caracteriza pela montagem alternada, recurso que remonta a

montagem paralela de D. W. Griffith e as primeiras incursões no sentido de

estabelecer-se uma sintaxe cinematográfica, ou seja, um padrão capaz de contar

uma história sem fazer com que o espectador se desse conta de que aquela história

era parte de um processo de montagem, de junção de partes tomadas em diferentes

lugares, com intervalos temporais. Griffith foi legitimado enquanto instaurador do

cinema clássico, que, como aponta Ismail Xavier (2005: 36) foi “o primeiro grande

sistematizador, o modelo a ser seguido pelos cineastas”.

É claro que “A Cilada com Cinco Morenos” não pode ser enquadrado como

representante do padrão clássico do cinema, já que em vários momentos o filme

desestabiliza a narrativa clássica ao fazer a junção de algo que parece ser uma

história de ação/perseguição, com o contraponto, que aqui chamaremos de

‘documentário’ dentro do filme. Esta junção pode não se tornar perceptível no

primeiro contato com a obra cinematográfica, já que o filme parece não deixar ao

espectador a impressão de estar entendendo a tudo o que vê na tela. Muito pelo

contrário, faz com que este se questione sobre o que está acontecendo, levando-o a

buscar sinais que facilitem o entendimento da narrativa.

Ainda com relação à montagem, percebe-se a utilização do corte seco76 em

todas as divisões de planos do filme. O cineasta não utilizou em nenhum momento

outra técnica de transição de um plano para outro, nem mesmo a fusão – recorrente

em muitos filmes, efeito que mistura um plano ao seguinte para causar uma

sensação de passagem de tempo. A opção pelo corte seco pode ser justificada se

entendermos o filme como uma série de seqüências que acontecem paralelamente,

em um ritmo rápido, e que vão desembocar em um mesmo final. É como se a

história fosse pontuada através de seus cortes, em um continuum integrado de

acontecimentos que irá desembocar no desfecho, na cilada que parece se armar

para o grupo Cinco Morenos.

Em alguns momentos, o corte seco torna-se muito perceptível, o que dá a

impressão de estar empurrando o espectador para o lugar da ação. Como exemplo,

cito a passagem dos créditos de abertura do filme (plano 28) para a seqüência do

aeroporto (plano 29). Como no plano 28 estamos vendo uma série de tomadas

aéreas do Parque Nacional de Chapada dos Guimarães, em grandes planos gerais,

ao som de uma música rock, ficaria menos perceptível a passagem para o plano 29

se houvesse pelo menos um fade out, que introduziria a cena seguinte de forma

menos abrupta. A trilha sonora acaba atuando como elemento importante na

montagem de “A Cilada com Cinco Morenos”, pois ela tornará mais amenas as

passagens de plano. Novamente tomo como exemplo a seqüência de 10 planos dos

créditos de abertura do filme, com tomadas aéreas de pontos diversos do Parque

Nacional de Chapada dos Guimarães. Na medida em que a música rock progride em

suas batidas, o corte é efetuado, geralmente coincidindo com as batidas de

transição da própria música.

76Segundo Aumont e Marie (2003:66): “Chama-se corte seco a passagem de um plano a outro por uma simples colagem, sem que o raccord seja marcado por um efeito de ritmo ou por uma trucagem. Christian Metz salienta, em seu modelo de “grande sintagmática”, que se o corte seco intervém no interior de um segmento autônomo (uma seqüência de planos), ele não tem valor de pontuação; mas tem esse valor quando está situado entre dois segmentos. Quando não comporta efeito ótico materializado, como uma fusão, por exemple, ele é qualificado de “pontuação branca”. O corte seco intervém na “montagem seca”, que compreende duas variantes principais, a “montagem seca comum”, que pode ser marcada pelo ritmo, e a “montagem seca com efeito”, quando a passagem de um segmento a outro se efetua por ruptura brutal. O estilo de Robert Bresson ou o de Jean-Marie Straub são amplamente fundados em tais rupturas; no início dos anos 1960, Jean-Luc Godard sistematizou o emprego da montagem seca com efeito, o que apareceu ser um traço de modernidade”.

Durante os 10 planos dos créditos de abertura do filme, a opção pelo corte seco é “disfarçada” pela trilha sonora, que suaviza e dá ritmo à transição dos planos.

De acordo com Jacques Aumont existe uma série de efeitos causados pela

montagem na composição de um filme. Entre esses efeitos, destaco os seguintes,

utilizando “A Cilada...” para exemplificá-los:

a) efeito de ligação/disjunção/pontuação/demarcação: que, segundo o autor,

estariam associados à figura do raccord, que representa a continuidade de

movimento presente em um plano para o plano seguinte, ou “a produção de

uma ligação formal entre dois planos sucessivos” (Aumont, 1995: 67) .

Exemplos: Garoto e Garota param na beira do asfalto, abrem porta da van

(Plano 15) e saem da van (Plano 16); mulher esbarra em violino (Plano 30) e

violino cai no chão, sendo recolhido pelo Sr. Raul (Plano 31).

b) efeito de alternância/linearidade: exemplificável com a alternância dos planos

que compõem a seqüência C com os que compõem a seqüência D, que, no

caso, representam a montagem alternada do ‘documentário’ sendo contado

(Plano 47) e da dramatização dos eventos contados no ‘documentário’ (Plano

48).

c) efeito de produção de sentido denotado: função semântica “essencialmente

espaço-temporal, que compreende, no fundo, o que a categoria da montagem

‘narrativa’ descrevia: a montagem é um dos principais meios de produção do

espaço fílmico e, de maneira geral, de toda a diegese” (Aumont, 1995, 68);

Esta função semântica faz-se presente no decorrer do filme inteiro, podendo

ser entendida como tudo aquilo que se relaciona com o signo que representa

de forma icônica.

d) efeito de produção de sentido conotado: função semântica em que se

fabricam relações pela justaposição de planos, criando metáforas,

comparações. Pode ser também entendido como qualquer efeito criado pela

junção de planos, como, por exemplo, o movimento de um determinado

gesto, de modo a mostrar seu início e seu fim. Em minha análise “A Cilada”

não apresenta grandes metáforas através da justaposição de planos, mas sim

em seu conteúdo narrativo (roteiro, ícones representados na história), que

observaremos nas características conteudísticas do filme.

Além disso, Aumont apresenta as funções rítmicas, apontando que “o ritmo

fílmico apresenta-se, portanto, como a sobreposição e a combinação de dois tipos

de ritmo totalmente heterogêneo: “ritmos temporais”, que em “A Cilada”, podem

ser entendidos juntamente com a trilha sonora, que atua como mediadora das

transições entre planos, já que o diretor não optou por outros recursos para

passagens de um plano a outro; e “ritmos plásticos” (Aumont, 1995, 69), onde

poderíamos apontar o movimento produzido pela seqüência de planos do Parque

Nacional de Chapada dos Guimarães, como se aquelas imagens pulsassem,

tivessem vida própria.

Há sincronismo entre som e imagens, e em poucos momentos do filme

percebemos sons fora de campo, ou seja, que não tem sua fonte visível na

imagem. Não são perceptíveis assincronismos de som durante o filme (não-

correspondência entre som e imagem). Nos momentos em que estamos

acompanhando o “documentário” dentro do filme, temos o som off da voz do Sr.

Jayme narrando os eventos que fazem parte da trajetória do grupo Cinco

Morenos, elucidando as passagens em que momentos desta trajetória são

dramatizados. Acredito que a maior parte do som tenha sido registrada através de

tomada de som direta, no momento da filmagem, com a pós-sincronização e

mixagem de sons efetuada na finalização do filme, em estúdio.

É possível enxergar claramente que “A Cilada com Cinco Morenos”

envolveu todo um processo de decupagem de cenas e análise de

enquadramentos, o que pode ser afirmado pela qualidade final do curta-

metragem, apreciável tanto em suas características formais quanto

conteudísticas. Como minha intenção é dedicar-me mais à análise conteudística

do filme, deixo para futuros trabalhos uma observação mais atenta do conteúdo

estético-formal da obra em questão. De qualquer maneira, acredito que “A Cilada

com Cinco Morenos”, em sua abordagem formal, transcende ao rótulo de obra

cultural de abrangência regional ou local e pode tranqüilamente inserir-se no

contexto da produção brasileira de curtas-metragens, principalmente por tratar-se

de um filme experimental que coloca em tensão uma narrativa mais ficcional com

outra mais documental, questionando a própria linguagem cinematográfica77 e a

77Tão amplo quanto a discussão acerca da noção de identidade, o debate em torno da linguagem cinematográfica também é um campo de estudos controversos e marcado por trajetórias variadas, que ora pontificam o cinema enquanto linguagem, ora entendem-no enquanto um sistema elaborado por códigos e convenções próprias ao dispositivo. Como o cinema não é apenas o filme que vemos projetado em uma tela, creio ser imprescindível esclarecer algumas questões que se impõem para a continuidade desta análise, justamente relacionadas com a linguagem cinematográfica e a “impressão de realidade”, afinal, se o cinema dá visibilidade para determinadas identidades, ele também é um campo de disputas envolvendo a técnica cinematográfica, as estéticas experienciáveis em diferentes cinematografias e os estudos teóricos sobre o meio (tanto ao instrumento quanto à forma de conteúdo utilizados para a realização do processo comunicacional

no cinema). A própria idéia de “linguagem cinematográfica” é alvo de controvérsias. Para Graeme Turner (1997: 56), o cinema não é linguagem, mas gera seus significados por meio de sistemas (edição, edição de som, fotografia) que funcionam como linguagens. Para o autor, o cinema não pode ser comparado à escrita, um sistema discreto de significação, mas deve ser entendido enquanto um conjunto de sistemas significadores, que “incorpora tecnologias e discursos distintos da câmera, iluminação, edição, montagem do cenário e som – tudo contribuindo para o significado”. Michel Marie (in Aumont, 1995: 157) explicita que “a noção (de linguagem cinematográfica) está na encruzilhada de todos os problemas que a estética do cinema se coloca, e isso desde sua origem. (...) A fim de provar que o cinema era de fato uma arte, era preciso dotá-lo de uma linguagem específica, diferente da linguagem da literatura e do teatro”. Há uma proximidade aparente com Turner em Marie (1995: 158), que coloca a questão da linguagem cinematográfica como um debate que pretende refletir como o cinema funciona como meio de significação com relação às outras linguagens e sistemas expressivos. Aumont & Marie enfatizam que, independentemente do grau de narratividade de um determinado filme, assisti-lo é compreendê-lo. Para os autores, o cinema “em certo sentido, (...) diz alguma coisa e, foi a partir desta constatação que nasceu, na década de 1920, a idéia de que, se um filme comunica um sentido, o cinema é um meio de comunicação, uma linguagem” (2003, 177). Os autores fazem um esboço da trajetória dos escritos sobre a linguagem cinematográfica, apontando a falta de precisão da cine-língua/cine-linguagem de Kulechov e Einsenstein, apontando que o último procurou na “linguagem cinematográfica” o equivalente das frases e palavras da linguagem verbal. A idéia de língua e linguagem acompanharia estéticas fundadas na montagem e na marcação forte dos meios expressivos. Estéticas da transparência - de acordo com Xavier (2005) a “transparência” do discurso cinematográfico é a base da grande maioria das narrativas, onde as convenções cinematográficas e, principalmente, o som e a montagem, dão conta de realizar justamente o apagamento da percepção de que a narrativa assistida é algo elaborado e construído (em oposição à “opacidade”, que facilitaria ao espectador a percepção destas convenções) - posicionariam a linguagem enquanto valor de metáfora. A semiologia, na década de 60, tomando um aparelho nocional emprestado da lingüística estrutural recolocaria as questões envolvendo a linguagem do cinema, examinando semelhanças entre mensagens fílmicas e mensagens verbais, propondo que o cinema seria, de acordo com Christian Metz, uma “linguagem sem língua”. Novamente teríamos a idéia de que não há língua no cinema, mas sim códigos que regem momentos ou aspectos dos enunciados dos filmes. Este conjunto de códigos seria uma espécie de equivalente à língua, sem ter seu lado sistemático. Estas concepções foram rapidamente criticadas e caíram em desuso por estarem ligadas estreitamente a um estado da lingüística dominante na década de 70. A psicologia cognitiva substituiria, então, a lingüística gerativa, e o estudo do cinema seria direcionado para as determinações subjetivas de sentido, com teorias ancoradas na psicanálise. Gosto da posição de Turner, ao apontar que “se há uma gramática do cinema, ela é mínima e funciona assim: primeiro,

“impressão de realidade” tão debatida no cinema, ousando ao investir na

impureza de gêneros.

2.2.2. Características conteudísticas

Para a análise conteudística do curta-metragem “A Cilada com Cinco

Morenos”, darei atenção aos seguintes elementos presentes na narrativa do filme:

1) a carga de elementos semióticos que se referem ao local/regional;

2) oposição cidade-interior (Cuiabá-Chapada/Souza Lima/Leverger);

3) a trilha sonora enquanto elemento narrativo;

4) o elemento humano e suas caracterizações;

2.2.2.1. A carga de elementos semióticos que se referem ao local/regional;

O cenário singular do Parque Nacional de Chapada dos Guimarães, vias

rodoviárias entre viadutos e prédios da cidade de Cuiabá, o falar cuiabano, rezas e

tradições da cultura popular, o Morro de Santo Antônio, o pintado (nome popular de

peixe da região), as lavadeiras, a música regional. Da estrada de Chapada à

travessia do Rio Cuiabá (o Rio, elemento presente na obra dos mais variados

cada tomada está relacionada àquelas que lhe sã contínguas. Enquanto assistimos a um filme, geralmente retardamos nossa compreensão de uma tomada até vermos a próxima. Quando vemos uma personagem dirigindo-se a outra que está em off, nossa opinião sobre a importância dessas palavras talvez tenha de esperar até aparecer a próxima tomada mostrando a pessoa com quem se fala. Segundo, diferentemente da sintaxe da língua escrita, que em grande parte é explicitamente regulada pela cultura, as relações entre as tomadas num filme têm de ser construídas mediante conjuntos menos estáveis de convenções. Muito depende não só da “competência” do público (sua experiência, ou habilidadde, em ler um filme), mas também da capacidade do cineasta de construir relações que não sejam governadas pela convenção.” (Turner, 1997: 56-7). Turner refere-se a um cinema mais narrativo, onde o espectador teria um caminho lógico para a apreensão e entendimento do filme assistido, que obedeceria à um determinado padrão de desenvolvimento de roteiro, mas também aponta que o cineasta pode surpreender o espectador, justamente neste jogo de expectativas, desconstruindo convenções já materializadas na relação espectador-filme. Cinemas de vanguarda (surrealismo, underground americano, desconstrução) poderiam ser aqui caracterizados justamente pelo abandono às técnicas narrativas instituídas e a utilização do cinema enquanto espaço de improvisação e pesquisa de linguagem. Assim, toda a história das teorias do cinema poderia ser lido como testemunho das tentativas de elucidar, das mais diversas maneiras, como o cinema se constitui enquanto sistema de significação e como se relaciona com seu espectador e com as demais linguagens. Neste caso, sempre que me referir à “linguagem cinematográfica” estarei referindo-me a uma série de sistemas significadores (câmera, iluminação, som, mise-em-scène e edição) que compõe o que Graeme Turner chama de “prática significadora” no cinema.

artistas cuiabanos: pintores, poetas, escritores, cineastas) é grande a carga de

elementos semióticos que remetem ao imaginário cuiabano em “A Cilada com Cinco

Morenos”. O filme dá visibilidade a uma série de signos que serão entendidos com

maior facilidade à medida que o espectador for capaz de decodificá-los, entendê-los

como pertencentes a uma vastidão de códigos relacionados ao ‘local’ ou ‘regional’

enquanto “níveis de manifestação de uma região que caracterizem sua realidade

sócio-cultural” (Jacks, 1998: 19).

Possari in Almeida & Cox (2005) aponta os anos 80 como o momento em que

a sociedade local (a elite cuiabana), receosa que os migrantes vindos para Mato

Grosso (a partir das décadas de 30-40, com a Marcha para o Oeste, promovida pelo

Governo Getúlio Vargas, processo intensificado nos anos 70, com as frentes de

migração) pudessem ameaçar as tradições culturais praticadas nesta região,

começou a realizar um “resgate”78 de algumas expressões culturais que

consideravam enquanto identitárias, ou seja, pertencentes ao que poderia ser

caracterizado enquanto essencialmente cuiabano.

Nessa profissão de fé, algumas entidades foram criadas em Cuiabá, com vistas à preservação da Cultura. Com Grupos Teatrais, Serestas, Saraus, criação de Museu de Arte e Cultura Popular, na UFMT, buscava-se preservar as identidades. Um dos mais representativos movimentos foi o Muxirum Cuiabano (Mutirão Cuiabano), cujo lema era conseguir fazer com que o linguajar e a cultura musical dos cuiabanos fossem respeitados. Consideravam os ativistas que, aos olhos dos de fora, o sotaque cuiabano era motivo de chacota e que a música, rasqueado, era de bordel. Como os idealizadores e participantes do Muxirum faziam parte da elite local e eram, em maioria, aqueles que retornaram do Rio, foi necessário demonstrar à população do tchá, tchá, tchá (e que não conhecia o Rio), que também teriam vez. É quando projetos passam

78Acredito que a palavra “resgate” seja mais adequada para indicar o pagamento de uma dívida ou, até mesmo, o recolhimento de náufragos, acidentados, feridos, cadáveres etc. Como a cultura é movente e em constante transformação, não considero a idéia de “resgate” a mais apropriada para dar conta do estabelecimento de políticas que dêem conta da existência e continuidade dos traços culturais de grupos diversos. Considero interessante a posição de Leite (2005: 221): “Um caso usual é o do aplicadíssimo pesquisador que se dá conta e sabe que esta cultura está morrendo e que precisa dele, de seu trabalho e pesquisa para resgatar, para reviver aquilo que as próprias comunidades ou sociedades vão esquecendo, rejeitando e deixando de lado pelos seus próprios movimentos de significação, re-significação, elaboração da memória e inserção em outras esferas de seu percurso e processo histórico. Falta nesta perspectiva, de resgate, muito da noção de que a cultura, no seu dinamismo, nos seus jogos e campos de disputas e poderes internos, vai modificando-se, atualizando-se, permanecendo, sobrevivendo, naquilo que permanece com sentidos para si mesma e naquilo que vai sendo eleito como gerenciador e propagador de si mesma. Nada é ingênuo ou espontâneo. Para a própria produção artístico-cultural e para uma crítica que se quer competente, especializada e séria, apenas os panegíricos, loas e exaltações bairristas - que tendem para o esvaziamento artístico do processo - não se sustentam”.

a valorizar pescadores, artesãos do barro (da beira do rio Cuiabá), músicos. As pinturas escorrem e transbordam pacus, cajus, tuiuiús, violas-de-cocho. (Possari in Almeida & Cox, 2005: 171-2)

Como apontei no capítulo I, o segmento das artes plásticas mato-grossenses

também apresentava, no conteúdo de suas obras, os elementos que Possari

seleciona no final da passagem citada. Este imaginário é, então, mobilizado no

sentido de preservar algo que esta elite acredita estar se perdendo.

Nos anos 90, com a regulamentação da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, o

discurso da preservação, da memória, do “resgate” cultural, vai coroar toda uma

produção voltada para o regional, muitas vezes folclorizado. Juntamente com o

discurso da necessidade de preservação de determinados elementos que

comporiam a essência cultural cuiabana, surge a possibilidade destes elementos

serem utilizados para vender uma imagem de Cuiabá, de Mato Grosso, para outros

estados do Brasil, para o mundo, em ações conjuntas de valorização da cultura

regional pela Secretaria de Estado de Cultura e Secretaria de Estado de Turismo.

Grandes eventos turísticos são promovidos, exibindo atrações culturais,

especialmente musicais e de dança, como o siriri e cururu (danças tradicionais

cuiabanas), performances com a viola-de-cocho (ou “alaúde brasileiro”, como

apontou Abel Santos) e o ganzá (instrumento de percussão). Nestas festas, as quais

já freqüentei algumas vezes, fica a impressão de que estas atrações musicais e de

dança são utilizadas meramente como ilustrativas de um certo patrimônio artístico-

cultural da cultura popular mato-grossense que precisa ser mostrado para os que

vêm (e vêem) de fora.

Em que medida as pessoas que são motivadas a manter vivas determinadas

culturas tradicionais (pela dinâmica interna de uma determinada comunidade, mas,

principalmente, por políticas públicas, como as leis de incentivo à cultura) estão

vinculadas (pelas mesmas políticas) ao mundo internacionalizado? Porque para

Canclini (2005), “o predomínio do consumo de meios de comunicação de massa e a

necessidade da população de conectar-se com a informação internacional só

adquire sentido e eficácia na medida em que vincula essas tradições às novas

condições de internacionalização”. O autor, ao propor políticas para a cidadania nas

grandes cidades da América Latina, considera que “as políticas que promovem

tradições locais conservam adesões e podem contribuir para que se mantenham os

perfis históricos que distinguem os habitantes de uma cidade”, já que, para o autor,

essas narrativas singulares que consagram determinados imaginários urbanos

poderiam despertar a responsabilidade cidadã. Entretanto, “sabemos quantas vezes

a xenofobia pode ser reforçada por uma política cultural baseada na reação, que

tenta criar um refúgio nostálgico do que ainda resiste à modernização e à

globalização” (2005: 109). Acredito que a afirmação exagerada de identidades locais

acabe promovendo posicionamentos xenófobos por parte daqueles que

“compartilham” daquela identidade ou, ao contrário, posicionamentos

preconceituosos por parte daqueles que identificam aquelas expressões enquanto

subalternas ou folclorizadas. Estas seriam as tensões mais inquietantes observáveis

em um contexto que afirma a preservação de determinados elementos culturais

como pertencentes à tradição de uma comunidade enquanto intrínsecos à própria

idéia que se tem daquela comunidade, como se esta estivesse fechada em si

mesma, afastada do contato com outras comunidades e privada do consumo dos

meios de comunicação (o que, definitivamente, não acontece nos arredores da

região metropolitana de Cuiabá.

No filme de Borges, percebemos estas tensões através dos personagens de

Garoto/Garota, que se referem com desinteresse ao grupo musical Cinco Morenos,

justamente por parecerem localizar o grupo em uma realidade periférica, da qual não

fazem parte. Garoto/Garota são a todo tempo caracterizados enquanto estereótipos

do jovem urbano moderno, vivenciando o agora, consumidores justamente dessa

urbanidade materializada em roupas estilosas, óculos escuros, aparelhos celulares e

música rock. Os Cinco Morenos e Garoto/Garoto vivem em universos culturais

diferenciados, e ambos parecem olhar para o outro com estranheza. Nas relações

de poder que são explicitadas através do confronto entre os personagens do filme,

nota-se que a comunicação entre eles envolve descrença e preconceito.

2.2.2.2. Oposição cidade-interior

Logo no primeiro plano do filme somos introduzidos aos chapadões milenares

do Parque Ecológico da Chapada dos Guimarães, na região do Complexo Véu da

Noiva, região muito conhecida pelos turistas que buscam um refúgio da correria da

cidade grande e local constantemente visitado pelos moradores da Grande Cuiabá

(região que abrange as cidades de Cuiabá e Várzea Grande). Ouvimos acordes de

uma batida rock. Garoto (Maurício Branco) e Garota (Carine Andrade) entram em

quadro79. Garoto pára de frente para os paredões e abre os braços, como que

querendo abraçar toda aquela beleza natural, ou se deixar envolver por ela. Mais

tarde (Plano 02) veremos Garoto e Garota sentados à beira do fio d’água que corre

para o despenhadeiro da Cachoeira Véu da Noiva. Garoto bebe um pouco de água,

lavando o rosto.

Nestas cenas, somos lançados em um espaço grandioso, bucólico, que antes

mesmo de ser contraposto ao espaço urbano (Plano 39) irá apresentar algumas

pistas que darão sinais de não estar tão isolado do mundo como possa parecer. Em

segundo plano ao Garoto e Garoto na beira do fio d’água, vemos duas pessoas

praticando rappel nos paredões próximos à cachoeira (Plano 02), sinal de que a

região já está provavelmente sendo explorada pelas empresas de turismo local, e de

que é um lugar tão apropriado para o descanso e retiro espiritual quanto para a

prática de esportes radicais. O toque de um celular – que traz a idéia de que mesmo

naquele lugar é possível se conectar com qualquer parte do mundo - perturba um

pouco mais esse cenário que se apresenta - à primeira vista - tão distante da

urbanidade, como pode parecer à primeira vista. Descobrimos que dentro da bolsa

de Garota está o celular de Garoto, que o atende e fala com o pai (Plano 04). Este

ordena que Garoto vá até a Comunidade de Souza Lima buscar o grupo musical

Cinco Morenos. “Souza Lima? Entendi... Mas onde é que é essa porra de Souza

Lima? Depois do Rio Cuiabá... Tá bom, pai. Tá bom, eu vou. Merda!” O fato de não

saber onde o bairro/comunidade de Souza Lima se localiza também permite fazer

algumas considerações acerca do personagem interpretado por Maurício Branco.

Como mais tarde saberemos, Garoto é filho de um político local. O fato de sê-

lo poderia indicar que Garoto conhecesse um pouco melhor da cidade onde seu pai

faz política. Já que uma das estratégias políticas do pai de Garoto é utilizar-se da

manipulação das expressões artístico-culturais locais para garantir a adesão

popular, é estranho perceber que Garoto não sabe nem ao menos de onde vem um

dos grupos com quem o pai está acostumado a lidar. Na minha leitura, ou Garoto é

79Para Aumont & Marie (2003), “o quadro define, portanto, o que é imagem e o que está fora da imagem. Por isso, ele foi visto muitas vezes como abrindo para um mundo imaginário (a diegese da imagem). É a famosa metáfora da “janela aberta”, atribuída a Leon Battista Alberti, pintor e teórico italiano do século XV, e retomada notadamente por Bazin”.

filho de um paurrodado80 - como são conhecidas as pessoas que se deslocam de

outros estados vindo para Mato Grosso, desligando-se de suas origens – ou passou

a vida toda estudando fora de Cuiabá, como durante muito tempo fizeram a maior

parte dos filhos da elite mato-grossense. O personagem está dissociado da idéia de

‘fruto da terra’, típico dos discursos ufanistas e de exaltação do local, onde o

elemento humano que ocupa determinado espaço geográfico tem a missão de

legitimar este espaço, conhecê-lo a fundo, principalmente no sentido de difundir

suas ‘raízes culturais’, louvando-as e respeitando-as. Garoto é um elemento que

destoa desta idéia, e que de alguma forma pode ser enquadrado mais com um

jovem moderno e alienado do espaço cultural que ocupa, atento a outras idéias

sobre Mato Grosso, vivendo a urbanidade de Cuiabá, inserido na sociedade

culturalmente mundializada, identificando-se enquanto pertencente ao grupo de

jovens modernos e mundialmente conectados em seus estilos de vida.

Há uma construção que opõe a cidade (Cuiabá) ao interior, aqui representado

pelas tomadas no Complexo Véu da Noiva, do Parque Nacional de Chapada dos

Guimarães, da comunidade de Souza Lima e da comunidade de Santo Antônio do

Leverger.

Não se fala muito sobre a cidade, mas fica subentendido que ela é o local da

correria, do concreto, do trânsito caótico, dos congestionamentos, da falta de tempo.

É também na cidade que são tramadas as artimanhas para enganar aqueles

subestimados sob o rótulo de não conhecerem os códigos da urbanidade, a

malandragem existente entre os que querem sempre tirar vantagem e aqueles que

sob aparente ingenuidade, equivocadamente acabam se sujeitando à relações de

dominação, onde o dinheiro apresenta-se como elemento central que corrompe o

elemento interiorano. O interior representado pelo curta-metragem é o espaço onde

as amizades são cultivadas (Plano 51), os pescadores tiram da água o fruto de sua

subsistência (Plano 66), as expressões da religiosidade popular têm espaço para

florescer (Plano 34).

2.3.2.3. A trilha sonora enquanto elemento narrativo

80 Assim grafado por Maria Luiza Canavarros Palma, no artigo “O Falar cuiabano em Mato Grosso – estigma, status e atalhos, in ALMEIDA, M. M. & COX M.I.P. (orgs.) Vozes Cuiabanas: estudos linguísticos em Mato Grosso. Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005. P. 157.

Considero a trilha sonora um elemento central na articulação de um discurso

que rompe com as características meramente locais/regionais do cenário/narrativa

apresentados pelo filme - que remeteriam a estes traços cristalizados de uma dada

identidade cuiabana -, destacando a tensão existente entre signos locais/regionais e

signos universais. A trilha sonora de “A Cilada com Cinco Morenos” não é composta

de músicas incidentais ou temas/arranjos para momentos ou personagens

específicos da trama, mas sim de uma série de inserções de músicas preexistentes

ao filme. A maior parte das cenas do filme, principalmente aquelas que se

relacionam com a evolução da Seqüência A são composições da banda mato-

grossense “Strauss”. A banda, que surge no cenário musical cuiabano nos anos 90,

apresenta como diferencial um trabalho de elaboração musical que conjuga o rock

com referências a sons e ritmos que teriam uma ligação com a cultura popular da

região cuiabana, como a viola de cocho e o rasqueado (como já foi enfatizado, um

ritmo musical da região cuiabana), em uma espécie de releitura do processo

semelhante operado pelo manguebeat, nos anos 80, só que sem a carga política

presente no movimento musical pernambucano.

O interessante na trilha sonora é verificar como esta põe em tensão algumas

imagens apresentadas pelo filme. Logo nas primeiras seqüências do curta, enquanto

acompanhamos os personagens de Garoto e Garota dando um passeio pelo

Complexo Véu de Noiva, em meio às paisagens distantes da urbanidade (que será

apresentada seqüências adiante), aparentemente remotas, não fosse justamente a

presença um tanto quanto invasiva do elemento humano - vemos pessoas fazendo

rappel nos paredões da cachoeira -, ouvimos acordes de uma batida rock, que mais

tarde se revelará no tema musical que acompanha os créditos de abertura do filme,

onde acompanharemos inúmeros planos da região do Parque Nacional de Chapada

dos Guimarães. Esta paisagem bucólica, que remete ao isolamento, quase que

idealizada, é contraposta aos edifícios e viadutos que surgirão nos planos seguintes,

colocando em tensão a imagem de um Mato Grosso isolado, perdido no Mato, rural

e arcaico.

A opção por pontuar vários momentos do filme com um rock-rasqueado

demonstra a universalidade pretendida por Borges e a ênfase na mistura entre uma

instância mais popular (rasqueado) e outra massiva (rock).

Além do rock-rasqueado, o filme também utiliza uma trilha popular-erudita, ao

localizar os momentos em que Sr. Jayme está contando a história do Grupo Cinco

Morenos e, logo em seguida, ao mostrar o encontro entre os músicos do grupo e o

violinista estrangeiro (Thomas Krauze), em uma fusão deste popular-erudito com o

erudito europeu (representado pelo violinista).

2.2.2.4. O elemento humano e suas caracterizações

Garoto/Garota

Através da observação do elemento humano poderemos também verificar

tensões que se estabelecem entre o local e o global. Como já apontamos, os

personagens interpretados por Maurício Branco e Carine Andrade parecem não

estar profundamente ligados ao espaço geográfico que habitam. Algo que já foi

apontado e que chama atenção é a não-atribuição de nomes para os personagens

principais. Nem mesmo nos créditos finais do curta-metragem, onde – em outras

produções – costumeiramente são apresentados os nomes artísticos das pessoas

que participaram do filme ao lado de seus nomes fictícios, têm-se essa informação.

Talvez, ao não nomear os personagens principais, o diretor do filme estivesse

apontando para o caráter exemplificador representado por Garoto e Garota, que

podem ser entendidos como uma representação de um casal de jovens da elite

local, aparentemente desterritorializados, cidadãos do mundo, em constante vagar.

O casal dialoga com o universal, não domina os códigos locais. Quando

Garoto espanta-se com o pedido do pai para que vá até a comunidade de Souza

Lima e revela que não tem idéia de onde esta região se localiza, torna-se patente

que ele não está integrado à comunidade local, que não é um cuiabano “legítimo”.

Talvez o filme queira propor justamente que este “legítimo” não existe, ou seja,

Cuiabá seria este lugar caótico localizado em meio a um paraíso natural, onde

convivem grandes prédios e pequenos casebres de ribeirinhos, sotaques diversos e

diferentes maneiras de se relacionar com estes elementos que a todo tempo tentam

se legitimar enquanto cuiabanos.

As roupas do casal, descoladas, na moda, podem ser contrapostas às roupas

das mulheres que lavam peixe na beira do rio, simples e desprovidas de

estravagâncias. A ausência de sotaque, também informa que não se trata de um

cuiabano de tchapa e cruz (como são denominados os cidadãos nascidos em

Cuiabá, que carregam o sotaque – muitas vezes estereotipado – e os costumes

locais). Talvez o casal tenha estudado fora, como muitos o fazem em Mato Grosso,

ou talvez sejam cuiabanos legítimos que não carregam as marcas de sotaque e

ligação com as tradições locais, coisa verificável na realidade. Seria contraditório

pensar que todo cuiabano carregaria as marcas do sotaque local e o conhecimento

profundo das expressões culturais existentes no território em que habita, já que

Cuiabá, bem como Mato Grosso, apresenta uma profusão de culturas em contato

constante. Canclini, ao cartografar as relações sócio-culturais estabelecidas na

cidade contemporânea, aponta que “quando a circulação cada vez mais livre e

freqüente de pessoas, capitais e mensagens nos relaciona cotidianamente com

muitas culturas, nossa identidade já não pode ser definida pela associação exclusiva

a uma comunidade nacional” (ou local, neste caso, parêntesis meu). “O objeto de

estudo não deve ser, então, apenas a diferença, mas também a hibridização”

(Canclini, 2005: 131). Esta afirmação tem lugar na análise que o autor faz sobre as

teorias do “contato cultural”, que estudariam contrastes entre grupos apenas pelo

que os diferencia uns dos outros, o que para Canclini (2005), oculta as “maneiras

desiguais com que os grupos se apropriam de elementos de várias sociedades,

combinando-os, transformando-os”. O filme seria um registro de como esta

combinação pode ser percebida, se tomarmos Cuiabá como lugar onde uma série

de culturas se encontram, permutam códigos, transformam-se. Não haveria grandes

diferenças culturais, mas sim singularidades culturais que se mantêm mesmo com o

avanço da sociedade capitalista mundializada, informatizada, homogeneizante.

O personagem de Maurício Branco apresenta ainda traços de uma

personalidade inescrupulosa e impaciente, um personagem que aprendeu a sempre

levar vantagens na vida. Um menino mimado, assim como a personagem de Carine

Andrade. Ou seja, uma visão nada romantizada do jovem mundializado da capital.

Para comprovar esta idéia, cito o conjunto de planos (08 a 17) que vão do momento

em que Garoto e Garota estão discutindo no interior da van, a caminho de Cuiabá,

até o encontro, na rodovia, com um motoqueiro (Jairo Matos), ao qual, além de

pedirem se a moto que este dirigia (uma Harley Davidson) estava a venda (para

Garoto, tudo se pode comprar), indagam se o mesmo tinha pó (gíria utilizada para

referir-se à cocaína).

Violinista

Um outro personagem interessante é o do violinista. Com um sotaque puxado

para o alemão e recém-chegado a Cuiabá para uma apresentação no Teatro da

Universidade Federal de Mato Grosso, o violinista Thomaz Krauze muda o trajeto

que inicialmente o levaria ao hotel onde ficaria hospedado (subentende-se, já que ao

chegar em frente à casa do Sr. Jayme, o violinista ordena ao taxista que leve suas

malas para o hotel – plano 60) para visitar a casa do Sr. Jayme. Isto se dá porque no

aeroporto, após um incidente com seu violino, que cai no chão em decorrência de

um esbarrão de uma mulher desatenta (plano 30), Thomaz descobre que o

carregador que empurrava suas malas tinha habilidades como violino. Após afinar o

instrumento e entoar uma melodia, o Sr. Raul, mestre do grupo Cinco Morenos,

devolve o violino para Thomaz, afirmando: “Nem destemperou!”, ou seja, o violino

continuava afinado. Thomaz fica impressionado com a situação insólita que

presencia. Cria-se a impressão de que o violinista deseja saber onde vive aquele

artista popular que, para sobreviver, trabalha como carregador de malas no

aeroporto. No subtexto, é irrefutável a dura crítica feita por Borges para a pouca

valorização dos artistas locais, que por não conseguirem sobreviver de seu trabalho,

devido a falta de reconhecimento do público, precisam encontrar outras alternativas

para sobreviver. A crítica se torna ainda mais corrosiva quando aponta que somente

o elemento estrangeiro seria capaz de reconhecer a erudição do grupo musical

Cinco Morenos, já que a sociedade local não teria maturidade intelectual para

reverenciar o virtuosismo do grupo.

Sr. Jayme/Cinco Morenos

Quando Garoto chega à casa do Sr. Jayme para buscar o grupo Cinco

Morenos e levá-los à festa de quinze anos da irmã de Garoto, Sr. Jayme adverte que

terão que passar primeiro na comunidade de Santo Antônio do Leverger, distante

alguns quilômetros do local onde estão. O desvio na rota é justificado pela

necessidade que Sr. Jayme tem em buscar cordas para o banjo, instrumento do

grupo. Garoto fica impaciente, mas prefere não discutir com Sr. Jayme, que chama

todos os integrantes do grupo para trazerem seus instrumentos para a van. O Sr.

Raul, mestre do grupo, e o violinista, estão juntos ao Sr. Jayme. Todos vão para

Santo Antônio. Chegando lá, o Sr. Jayme recebe as cordas de Mulher que cortava

peixe na beira do rio, ao lado de amiga. As mulheres parecem ser próximas do Sr.

Jayme. Garoto desce do veículo e pergunta se tudo está pronto para partirem. Nesta

hora, Sr. Jayme desafia Garoto, dizendo que o grupo só sairá dali se Garoto adiantar

a metade do cachê do show que farão para o pai de Garoto. Como Garoto não

esperava ouvir aquilo, desespera-se, sem saber o que fazer. As mulheres contam

episódio em que o pai de Garoto contratara os serviços do grupo e jamais pagara o

cachê, motivo suficiente para o Sr. Jayme estar argumentando que não sairia dali

sem o dinheiro. Garoto demonstra toda a sua irritação e desiste do grupo, indo para

a van. Sr. Jayme pede aos componentes do grupo e ao violinista que saiam do

carro. Garoto e Garota vão embora. Os Cinco Morenos, as mulheres e o violinista

vão para o barracão, onde a festa acontecerá mais tarde. Ouvimos o som off81 de Sr.

Jayme: “Naquele dia, os Cinco Morenos escapou (sic) de uma grande cilada. E o

rasqueado rolou noite adentro na Barraca da Maria”.

Assim, os Cinco Morenos, que a priori seriam submetidos a mais uma

experiência de exploração de seu trabalho musical, já demonstram conhecer os

códigos de seus exploradores. Ao pedir a Garoto que vá primeiro à comunidade de

Santo Antônio do Leverger, onde há a Barraca da Maria e o público que aprecia o

grupo musical, pode-se concluir que o Sr. Jayme está na verdade negociando o

deslocamento do próprio grupo, já que poderia ter falado sobre o pagamento do

cachê em frente à sua casa. Caso o tivesse feito, Garoto não teria pagado da

mesma maneira, mas o grupo teria permanecido na comunidade de Souza Lima.

Indo até Santo Antônio do Leverger, o grupo garantiu a diversão da comunidade e

ainda economizou dinheiro e esforço para o deslocamento. Ou seja, podemos

entender esse desfecho como uma tática do Sr. Jayme, que dá sinais de que não cai

mais em qualquer estratégia utilizada pelos políticos locais para enganar o grupo

através do não-pagamento do cachê por suas apresentações.

A caracterização do grupo musical Cinco Morenos enquanto personagem

(com ênfase no personagem Sr. Raul, que tem muitos diálogos no filme e atua como

o narrador da parte “documental” da história) efetua a desmontagem da construção

que colocaria o artista popular enquanto massa de manobra, facilmente manipulável,

ingênuo e incapaz de se dar conta das desvantagens a que é constantemente

submetido no confronto com aqueles que tentam explorar sua força de trabalho. O

filme desfaz essa imagem, colocando-o enquanto astuto e capacitado a decifrar os

códigos das relações capitalistas de exploração do trabalho artístico. Entretanto,

poderia-se dizer que o filme cria uma imagem inversa, negativa, ao mostrar através

81“Preposição inglesa tomada por abreviação de off screen (literalmente, ‘fora da tela’, ou fora de campo) e aplicada unicamente, no emprego corrente, ao som. Um som off é aquele cuja fonte imaginária está situada no fora-de-campo”. Cf Aumont & Marie (2003: 214).

desta astúcia a presença de um senso matreiro, aproveitador. Apesar de registrar

esta possibilidade, acredito que o filme não aponte para esta leitura, pelo menos não

no caso da caracterização do grupo Cinco Morenos. A caracterização negativa ficará

para uma figura que nem sequer aparece no filme, mas que está onipresente na

narrativa: o pai de Garoto, um político local que se utiliza da exploração dos artistas

populares para conseguir adesão de votos. Analiso este personagem a seguir.

Político

Em um determinado momento da narrativa de “A Cilada” (Plano 45), vemos

Garoto e Garota parados em um sinal de trânsito, em uma espécie de

congestionamento, aguardando o trânsito fluir para dar continuidade à missão de ir

até a Comunidade de Souza Lima buscar os integrantes do grupo musical Cinco

Morenos para apresentarem-se em uma festa organizada pelo pai de Garoto, um

político. No diálogo entre os personagens, acompanhamos a inquietude de Garota

tentando entender o porquê de o pai de Garoto querer misturar, em uma mesma

celebração, uma banda de rock com um grupo de rasqueado. Com cinismo, Garoto

revela: “Meu pai falou que eles são só instrumentistas. E ele disse que a valorização

da cultura regional pode render muitos votos na próxima eleição. E o melhor, sem

desembolsar muito dinheiro”.

Neste ponto, o filme põe em tensão o discurso que prega a valorização da

cultura regional, como sendo apenas um discurso que manipula as instâncias

populares.

Talvez esta seja a grande sacada de Borges, ao colocar em tensão elementos

que se apresentam, em uma série de discursos (inclusive em alguns discursos do

próprio Borges nos catálogos do Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá), como

constitutivos de uma identidade local, se não mato-grossense, dada a variedade da

geografia e das expressões culturais que se podem encontrar neste espaço

politicamente compreendido como Mato Grosso, ao menos cuiabana. Ao realizar um

filme que coloca em evidência a cidade de Cuiabá e seus arredores, principalmente

a região do Parque Nacional de Chapada dos Guimarães, Borges mobiliza uma

determinada visibilidade para estes locais, onde juntam-se antigos discursos sobre o

que dizia-se de Mato Grosso (lugar distante, interiorano, distante da urbanização,

espaço telúrico onde o homem encontra-se ligado à natureza e as manifestações da

cultura popular) e novos discursos que conectam Mato Grosso com sua atual

configuração sócio-política, de estado em processo acelerado de modernização

(urbanização dos pólos populacionais, emergência de uma cultura urbana e de

novas práticas de consumo, espaço onde tradição e inovação se tocam e se

reconfiguram).

LINHAS DE FUGA

A visibilidade construída pelo curta-metragem “A Cilada com Cinco Morenos”

coloca em tensão alguns dos principais enunciados sobre a região cuiabana: o

“paraíso natural” (Chapada dos Guimarães), tido como isolado da urbanidade, é

apresentado como um lugar que o elemento humano já desbravou, conectado ao

mundo exterior (o personagem de Maurício Branco recebe uma ligação telefônica

celular ao lado da Cachoeira Véu de Noiva). A idéia de um Mato Grosso distanciado

da urbanização é atualizada por Borges, ao exibir a cidade em suas avenidas de

asfalto, viadutos por onde corre o tráfego intenso, edifícios que se levantam na linha

do horizonte. Os saberes populares (representados na figura do Sr. Jayme, do grupo

musical Cinco Morenos) também são atualizados, e não representam um ideal

ingênuo, como se estivessem à margem dos processos de socialização, mas sim

conscientes das transformações que mudaram as maneiras de se relacionar com a

produção cultural que elaboram: os Cinco Morenos são representados como

integrados a uma cultura de consumo, onde sua música, também exige uma

compensação (cachê) para ser consumida. Borges propõe uma Cuiabá híbrida,

onde os cruzamentos entre centro e periferia, local e global ocorrem sem maiores

dilemas (o confronto se dá de forma tênue). Elementos de uma cultura mundializada

são assimilados pelos personagens centrais do filme (Garoto/Garota).

Em maior ou menor medida, a produção cinematográfica mato-grossense

pode ser entendida enquanto articuladora de novas maneiras de ver e dizer Mato

Grosso. Mesmo que o discurso do segmento audiovisual em prol da regionalização

dos conteúdos e da inserção de Mato Grosso no cenário da produção

cinematográfica brasileira venha acompanhado de uma produção com temáticas

regionais, acredito que a recorrência a estas temáticas seja característica de uma

primeira fase desta produção, e que, aos poucos, a exigência por temas mais

contemporâneos e que se relacionem de maneira mais direta com públicos que

transcendam o local se atualize em filmes que dialoguem com outras culturas, e,

principalmente, com a própria história do cinema (como é possível perceber

atualmente com o exemplo do estado de Pernambucano, onde filmes como

“Amarelo Manga”, “Árido Movie” e “Cinema, Aspirinas e Urubus” alimentam-se de

referências variadas e, além de pensar o local, dialogam com o global),

demonstrando as singularidades presentes neste espaço político conhecido como

Mato Grosso.

Sinto que, em muitos momentos, a visão de cultura partilhada pelos membros

do Conselho Estadual de Cultura ainda pode ser aproximada àquela apresentada

por Ramos (1983: 41), ao investigar as políticas culturais dos anos 50 e 60, onde O

E a essa forma identitária regionalista está intimamente associado o conceito de tradicionalismo, o qual expressa impermeabilidade a informações que violem ou questionem imagens e idéias estabelecidas antes do tempo da memória; imagens e idéias que são confirmadas e comunicadas de uma a outra geração82.

Se os produtores culturais locais aceitarem um discurso que sacraliza o local,

as expressões artísticas locais poderão estar fadadas à paralisação discursiva. A

cultura será mero ornamento e se resumirá nas operações de valorização,

conservação e “resgate” de códigos que não foram assimilados pelas

transformações que vive a sociedade em questão.

Bosi (1992: 343-4), explicita a condição do artista criador em superar as

amarras ideológicas para exercer a liberdade de criar. Para o autor, a criação é

resultado “de tensões muito fortes no interior do indivíduo criador, tensões entre as

quais é modelo exemplar o compromisso (bem ou mal resolvido) entre as forças

anímicas ansiosas por exprimirem-se e a tradição formal já historicizada que

condiciona os modos de comunicação”, sendo a expressão pessoal e a

comunicação pública as duas necessidades que regulam a linguagem do criador e

situam seu trabalho na intersecção do corpo e da convenção social. Bosi sugere que

quanto mais intensamente o criador participar da dialética que vive a sua própria

cultura, dilacerada entre instâncias altas, internacionalizantes e populares, mais rica,

densa e duradoura será a obra por ele criada. “Obras primas (...) jamais poderiam

ter-se produzido sem que seus autores tivessem atravessado longa e penosamente

as barreiras ideológicas e psicológicas que os separavam do cotidiano ou do

imaginário popular.

(...) Para esse universo e, em geral, para todo trabalho criador, o essencial é assumir uma atitude de respeito e de esperança. Não é o Estado, nem a Universidade, nem a Igreja, nem a Imprensa, nem qualquer das instituições conhecidas que deverá encarregar-se do destino das letras e das artes. O clima natural destas é o da liberdade de pesquisa formal e de descoberta de temas e

82ANJOS, Moacir dos. 20 notas sobre a identidade cultural no nordeste do Brasil. In http://www.pacc.ufrj.br/artelatina/moacir.html .

perspectivas. A arte tem seus modos próprios de realizar os fins mais altos da socialização humana, como a autoconsciência, a comunhão com o outro, a comunhão com a natureza, a busca da transcendência no coração da imanência. (Bosi, 1992. 343-4)

Durante os dois últimos anos, muitas de minhas impressões sobre a produção

cultural mato-grossense que existiam quando comecei a desenvolver essa pesquisa

ainda se mantêm, outras se modificaram, como tudo que é vivo e movente. Continua

a impressão de que muito do que é produzido culturalmente no Estado está restrito a

uma pequena elite que alimenta, produz e consome determinadas expressões

carregadas de um discurso identitário que se fecha para o diálogo com o Outro,

discurso xenófobo e orgulhoso de sua missão em sacralizar o que é “autêntico” da

terra e zelar para que as características que compõem este “autêntico” não se

percam. Haja bombeiro para resgatar tantas expressões culturais mato-grossenses

que estão se perdendo, desaparecendo, segundo alguns discursos mais exaltados.

Modifica-se a impressão de que, culturalmente, Mato Grosso era lugar do

atraso e do freio contra a inovação, espaço onde apenas a tradição tinha vez, como

fui levado a acreditar no primeiro contato que tive com as várias expressões

artísticas de Cuiabá quando aqui fixei residência. Olhando mais atentamente para

alguns extratos da produção cultural – mais especificamente, do audiovisual – é

possível verificar que há esforços por romper com a tradição, minar com um

repertório sacralizado de representações sobre Mato Grosso que só tende a

paralisar o desenvolvimento dos mais variados campos artísticos. Há uma produção

que focaliza outras maneiras de dizer e ver Mato Grosso. Outras histórias são

construídas, inventadas, sem negar o Outro, colocando em tensão antigos modos de

dizer e ver o local, propondo misturas, hibridações.

Há muito a ser pesquisado e debatido sobre a produção cultural mato-

grossense, em seus diversos campos. Se o primitivo designa o “selvagem na África

ou o popular na Europa, continuará obstinadamente significando, a partir de uma

concepção evolucionista da diferença cultural dominante até hoje, aquilo que olha

para trás, um estágio talvez admirável, porém atrasado do desenvolvimento da

humanidade e, por essa razão, expropriável por aqueles que já conquistaram o

estágio avançado” (Martin-Barbero, 2003: 43). Se percebo um certo primitivismo que

se estabelece enquanto estética no campo das artes plásticas e reverbera em outros

campos, como o audiovisual, logo pressuponho que este se apresenta enquanto

válvula de escape para uma produção artística limitada e que parece estar

desconectada do mundo e de movimentos artísticos de vanguarda. Se no contexto

da mundialização da cultura, como aponta Ortiz, coexistem as mais variadas

expressões culturais, esta produção poderia ser entendida enquanto sinal dessa

coexistência. Mas até onde esta produção se sustenta? Como repercutirá no futuro?

Que lugar os artistas de Mato Grosso pretendem para sua produção? São todas

questões para se pensar, e que ficam aqui como linhas de fuga, dado o caráter

inicial da presente pesquisa.

Identificar e interpretar as formas como o cinema mato-grossense tem

trabalhado o imaginário local é tarefa necessária. Discutir como a diversidade

cultural mato-grossense se expressará em tempos de subjetividades híbridas,

descentramentos políticos, fronteiras fluidas e globalização é essencial para pensar

a identidade “não como o fortalecimento de uma raiz única, mas como rizoma, ou

seja, a raiz multiplicada que se abre em busca do outro, aceitando o múltiplo e o

diverso como base da (re) elaboração identitária” (Bernd, 2003).

Se as imagens veiculadas pelos vídeos e filmes realizados em Mato Grosso

expressam uma verdade sobre uma possível essência cuiabana, silenciam outros

modos de viver e pensar que fazem parte da própria condição humana: a

multiplicidade. Reduzir a prática artística a um imaginário regionalista acaba

ocultando e não dando visibilidade às outras diferentes experiências artísticas,

culturais, sociais que certamente são produzidas em Cuiabá, em Mato Grosso. É

necessário desconfiar, pôr em cheque a idéia do pertencimento a uma nação, uma

mesma identidade e todos os processos que tentam anular e subordinar a

singularidade humana83.

83Este parágrafo foi parafraseado de Guimarães, Suzana. Natureza, Identidade e Imagem. Palestra na Escola Estadual de 1º e 2º Graus “Santos Dumont”. Cuiabá, 05 de abril de 2002.

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Pobre é Quem Não tem Jipe. MT, 1997.

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Atas do Conselho Estadual de Cultura (1996-2002). Cuiabá, MT.

ANEXOS

Anexo I - Descrição do curta-metragem “A Cilada com Cinco Morenos” (Luiz Borges), conforme VANOYE, Francis & GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas, SP. Papirus: 1994 (Coleção Ofício de arte e forma).

Duração do curta: 14´40´´(com créditos) 87 planos, sem contar créditos de patrocínio e créditos finais. Resumo do filme: Atendendo ao pedido do pai político, Garoto vai com namorada até a Comunidade de Souza Lima buscar o grupo musical Os Cinco Morenos, expoentes do rasqueado - ritmo musical da cultura popular de Mato Grosso -, para tocar na festa de 15 anos da irmã de Garoto. Um grupo de estudantes realiza um documentário sobre o grupo Os Cinco Morenos. Um violinista estrangeiro chega à Cuiabá e surpreende-se ao perceber que um carregador de malas do aeroporto é um exímio tocador de violino.

Legendas G.P.G. = grande plano geral / P.G. = plano geral /PC = plano de conjunto PA = plano americano / PM = plano médio / PP = plano próximo ou primeiro plano PL = close up / CAM = câmera / PDC = profundidade de campo Trav. Lat. = travelling lateral / Trav. Fr. = travelling para frente Trav. Tr. = travelling para trás / Trav. De Ac. = travelling de acompanhamento Trav. Circ. = travelling circular / Pan-Trav = panorâmica com travelling Pan = panorâmica / Mvt = movimento

Créditos de patrocínio:

Prêmio de Melhor Filme no 4º Brazilian Film Festival of Miami.

Secretaria de Estado de Cultura Governo do Estado de Mato Grosso Lei de Incentivo à Cultura

Barralcool – Usina da Barra S/A

Grupo Olvepar

Universidade Federal de Mato Grosso Coordenação de Cultura Cineclube Coxiponés

Giovanna Tecelagem Avenida Maracanã Tecidos

Primeiro Plano Cinema e Vídeo Apresenta

O QUE SE VÊ O QUE SE OUVE Plano 1 – 15´´11 GPG dos chapadões milenares do Parque Ecológico de Chapada dos Guimarães, na região do Complexo Véu de Noiva. CAM fixa registra o horizonte. Garoto e Garota entram no quadro. Garoto pára de frente para o horizonte e abre os braços, como que querendo abraçar toda aquela beleza natural, se deixar envolver por ela. Após este breve ritual, Garoto se desloca na direção de Garota, que sai do quadro. Surge uma mulher caminhando na direção oposta à de Garoto, que se vira para olhá-la mais atentamente assim que esta cruza seu caminho. Garoto sai de quadro.

Acordes de uma batida rock

Plano 2 – 08´´25 PC de pessoas em segundo plano praticando rappel em um paredão. Podemos ver as formações rochosas que compõem o lugar. Em primeiro plano, um fio d’água que se dirige para a queda da cachoeira. Garoto e Garota entram no quadro. Garota senta-se na beira da queda da cachoeira, larga bolsa sobre uma pedra. Garoto senta-se ao lado. Inclina-se para lavar o rosto no fio d’água. Raccord de movimento para

Ouvimos o barulho da água correndo em direção à cachoeira, sons da natureza.

Plano 3 – 02´´96 PP de Garoto jogando água no rosto.

Barulho da água sendo utilizada para lavar o rosto do garoto.

Plano 4 – 19´´01 PC (idem Plano 2). Garoto abre a bolsa de Garota e retira um aparelho celular. Atende-o. Conversa alegremente com o pai.

Garoto: “Pai! Eu tô aqui na Chapada, Pai! Claro...”

Plano 5 – 26´´44 PP de Garoto descontente como que ouve do outro lado da linha. Garoto olha impaciente para garota. Garoto conforma-se com o pedido do pai, desliga o aparelho, coloca-o na bolsa e sai de quadro, irritado.

Garoto: “Ah, pai, não fode, vai... Eu tô aqui na cachoeira... Souza Lima? Entendi. Tá, eu vou... Mas onde é que é essa porra de Souza Lima? Depois do Rio Cuiabá? Tá bom, pai. Tá bom, eu vou! Merda!”

Plano 6 – 12´´17 PC (idem Plano 2) de Garota olhando para o horizonte. Ao ouvir Garoto, levanta-se impaciente, pega a bolsa e sai de quadro.

Garoto: “E aí, vai ficar esperando uma nave?”

Ouvimos os acordes da batida rock. Plano 7 – 05´´42 Trav. Lat. Acompanhando andar de Garoto e Garota. Ao fundo, vemos os paredões e o horizonte.

Ouvimos a música “Aos livrados do mal”, da banda de rock Strauss.

Plano 8 – 04´´34 PG de uma van ultrapassando um ônibus de linha em uma rodovia ladeada por um paredão geológico.

Som da van ultrapassando ônibus no asfalto.

Plano 9 – 07´´69 PM de Garoto e Garota no interior da Van. CAM está no banco de trás da Van. Vemos casal discutindo e a estrada em frente ao carro.

Garota: “Você també, né! Tinha que deixar o telefone ligado, pô! Ah, se ainda fosse no cinema ou no teatro... Mas na cachoeira...”

Plano 10 – 02´´47 PL de Garoto discutindo com Garota. Em segundo plano, pela janela do motorista, vemos a paisagem natural e o horizonte.

Garoto: “Quer calar essa boca? Pára de me encher o saco!”

Plano 11 – 05´´60 PP de parte do rosto de Garoto com Garota ao fundo. Garota se cansa da discussão, pega um batom e começa a retocar a maquiagem. Vemos a paisagem ao fundo, pela janela da Garota.

Garota: “Mas que droga, né!”

Plano 12 – 03´´13 GPG de van andando pela rodovia ladeada por paredões. Uma moto começa a ultrapassar a van.

A música continua. Ouvimos barulho da moto começando a ultrapassar van.

Plano 13 – 04´´59 PP de Garoto. CAM mostra perfil do rosto de Garoto e a janela do motorista, de onde vemos motoqueiro alinhado à van, fazendo sinais para o casal.

Garota: “Olha a moto do cara! Pára o carro”

Plano 14 – 02´´30 PC de Garoto e Garota dentro do carro. CAM está em frente à direção. Garota tenta convencer Garoto a parar, colocando as mãos na direção, apertando a buzina da van.

Ouvimos a buzina da van. Garota: “Pára o carro!” Garoto: “Pára com isso. Você tá maluca? Quer morrer? Ouvimos a buzina da van.

Plano 15 – 07´´86 PG de moto parando no acostamento, em frente à VAN. CAM fixa mostra o horizonte e a vegetação da beira do asfalto. Garoto e Garota descem da van.

Barulho da moto e da van parando no acostamento. Barulho das portas da van se abrindo e fechando.

Plano 16 – 32´´67 PC de motoqueiro, Garoto e Garota. O casal de aproxima do motoqueiro. Garoto indaga sobre a moto. Motoqueiro elogia beleza de Garota. Garoto pergunta se motoqueiro tem tiro (drogas). Motoqueiro ri, tira revólver da cintura, aponta-o para cima. Garoto e Garota assustam-se e saem correndo para dentro da van. Raccord de movimento para

Garota: “Máquina turbinada, hein?” Motoqueiro: “Turbinada é você, benzinho... É uma Harley Davidson!” Garoto: “Você quer vender?” Motoqueiro: “Não!” Garoto: “E... você tem um tiro aí pra gente?” Motoqueiro: “Tiro? Tenho!”

Plano 17 – 01´´38 CAM em PP no ombro do motoqueiro, apontando revólver para placa onde lemos o título do filme.

Barulho de tiro na placa de metal.

Plano 18 –04´´58 Disparos perfuram a placa de trânsito de forma retangular onde se lê “A CILADA COM CINCO MORENOS”

Barulho de tiros na placa de metal.

Plano 19 – 07´´43 Série de planos (até 28) de tomadas aéreas do Parque Nacional de Chapada dos Guimarães, região do Complexo Véu de Noiva e Cidade de Pedra. Lemos: Maurício Branco

Do plano 19 ao plano 28, ouvimos a introdução da música “Aos Livrados do Mal”, da banda Strauss.

Plano 20 – 05´´02 Variação de Plano 19. Lemos: Carine Andrade

Mantém trilha

Plano 21 – 03´´72 Variação de Plano 19 Lemos: Participação Especial: Jaime Frederico de Oliveira / Raul Fortunato de Oliveira

Mantém trilha

Plano 22 – 04´´44 Variação de Plano 19 Lemos: Participação Especial: Jaime Frederico de Oliveira / Raul Fortunato de Oliveira

Mantém trilha

Plano 23 – 11´´84 Variação de Plano 19. Lemos: Participação Especial: Jairo Matos / Lúcia Palma / Felipa Coelho

Mantém trilha

Plano 24 – 36´´04 Variação de Plano 19. Lemos: Direção de Fotografia: André Macedo /Direção de Arte: Liete Alves / Som Direto: Marcio de Oliveira / Direção de Produção: Alessandra Keiko Okamura / Edição de Som: Eduardo Santos Mendes

Mantém trilha

Plano 25 – 11´´06 Variação de Plano 19 Lemos: Montagem: Idê Lacreta

Mantém trilha

Plano 26 – 04´´13 Variação de Plano 19 Lemos: Produção Executiva: Mário Sérgio Loschiavo / Andréia Vigo

Mantém trilha

Plano 27 – 05´´77 Variação de Plano 19 Lemos: Produção Executiva: Mário Sérgio Loschiavo / Andréia Vigo

Mantém trilha

Plano 28 – 06´´44 Variação de Plano 19 Lemos: Roteiro e Direção: Luiz Borges

Mantém trilha

Plano 29 – 03´´81 Trav. Laterial de interior do Aeroporto Marechal Rondon. Violinista caminha ao lado de seu carrinho de malas, empurrado pelo Sr. Raul. Moça entra em quadro na direção oposta.

Som interno do aeroporto.

Plano 30 – 03´´62 PL de cintura da Moça enroscando em caixa de instrumento, que cai no chão. Um braço levanta a caixa do chão.

Barulho da caixa de violino caindo no chão.

Plano 31 – 04´´37 PC de Moça e Violinista discutindo.

Violinista: “Meu senhora, onde é que a senhor pensa que está? A senhor não tem noção de espaço?”

Plano 32 – 16´´48 PC de Moça e Violinista discutindo, braços girando no ar, dedos apontados um para o outro. Moça está de costas para a CAM, que mostra, ao fundo, Sr. Raul tocando o violino. Moça se irrita e sai. Ao perceber o toque do violino, Violinista olha para trás, na direção do Sr. Raul, admirado, parecendo não acreditar na situação que está presenciando. Sr. Raul termina de executar alguns acordes e entrega o violino ao Violinista, atônito.

Violinista: “A senhora acha que pode rodar bolsinha no Porto?” Mulher: “Ah, vai pro inferno!” Ouvimos acordes do violino.

Sr. Raul: “Nem destemperou!”

Plano 33 – 18´´70 GPG em tom sépia de pessoas andando em procissão. Ao fundo vemos um morro (o Morro de Santo Antônio), e a vegetação do entorno.

Sr. Jayme: “Os Cinco Morenos tem uma história até engraçada. A gente fazia muito as tradições daqui que eram as esmolas com bandeira de São Benedito, do Divino Espírito Santo, (ao fundo, ouvimos o canto da procissão)

Plano 34 – 12´´80 PA em tom sépia de pessoas andando em procissão. CAM está atrás de uma cerca. A procissão passa lateralmente pela cerca. CAM acompanha em PAN para a esquerda.

... e a gente saía por aí pedindo esmola e cantando aqueles versos.

(mantém o canto das pessoas em procissão)

Plano 35 – 03´´95 PC em sépia de Sr. Raul e Sr. Jayme entregando instrumentos para dois meninos.

Com um tempo, com o passar do tempo, estávamos numa esmola e passa ...

Plano 36 – 24´´78 Os meninos começam a tocar os instrumentos (violofone e caixa), e seguem na direção da procissão.

... lá o João Sebastião, aquele pintor que ficou famoso aqui em Cuiabá. Ele chama o Teodorico pra ver se ele dava pra fazer um show pra ele na Universidade, porque ele ia ter uma feira dos quadros dele na UFMT. Então ele foi e pegou mais um componente. (ouvimos o tocar do violofone e da caixa)

Plano 37 – 12´´09 PG em tom sépia de três homens (três dos integrantes do grupo Os Cinco Morenos) caminhando em uma estrada de chão. Tilt down revelando um pintor (o pintor João Sebastião) pintando uma tela na beira da estrada de chão, retratando os homens na estrada.

Era o Teodorico, tocava o violino, o Jurandir tocava a caixa. E o Ditinho tocava o surdo. Nessas alturas entrou eu, Jayme, e o Miguel.

(mantém a melodia no violofone e caixa)

Plano 38 – 14´´19 PL de Sr. Jayme olhando para a CAM.

Aí depois morreu o Teodorico. Depois do Teodorico veio o mestre Raul, que toca violino e continua até hoje, ele é o mestre do conjunto Os Cinco Morenos” (mantém a melodia no violofone e caixa até o corte)

Plano 39 – 20´´85 GPG de van andando por longa avenida em cidade movimentada (Avenida do CPA na cidade de Cuiabá). A CAM em Pan acompanha a van em seu deslocamento pela avenida, revelando um viaduto, concreto, carros, prédios, a cidade em movimento.

Ouvimos a música “Rasqueado em Blues”, de Vera Baggetti e Zuleica de Arruda.

Som de carros andando na avenida movimentada.

Plano 40 – 05´´31 PM de Garoto e Garota dentro da van. CAM está em frente ao vidro frontal do veículo.

Garoto: “A culpa não foi minha. Você viu tudo! Meu pai que falou pra ir buscar esse tal de Cinco Morenos!”

Plano 41 – 04´´62 PL de Garota conversando com Garoto, irritada. Ao fundo, pela janela de Garota, vemos carros em movimento.

Garota: “Sua família é dona de aprontar! Onde é que já se viu?

Plano 42 – 02´´84 PM de Garoto e Garota dentro da van. Garota conversa, aborrecida.

Comemorar o aniversário da sua irmã num sítio na Chapada!

Plano 43 – 03´´08 PL de Garota, irritada. Pela janela de Garota, vemos carros em movimento.

E ainda misturar show de rock com uma banda de rasqueado!

Plano 44 – 03´´61 CAM no banco de trás da van em PM de Garoto e Garota. Vemos a van se aproximar de vários carros parados, um congestionamento.

Sua família é maluca!

Plano 45 – 10´´40 Vemos rosto de Garoto em PP, Garota em segundo plano. Da janela de Garota, vemos carros parados no congestionamento. Pelo retrovisor de garotos, vemos carros em fila.

Garoto: “Pode ficar tranquila... Meu pai falou que eles são só instrumentistas. E ele disse que a valorização da cultura regional pode render muitos votos na próxima eleição. E o melhor, sem desembolsar muito dinheiro...

Plano 46 – 09´´75 PM de Garoto e Garota dentro da van. CAM está em frente ao vidro frontal do veículo.

... Você sabe quanto é o cachê dos caras, hã? Vem cá... Gargalhadas.

Plano 47 – 06´´90 PL de Sr. Jayme olhando para a câmera.

Sr. Jayme: “O rasqueado aqui em Mato Grosso era o essencial de todas as casas, ficava na casa de rico, na casa de pobre, nos clubes aqui em Mato Grosso. Então com a chegada da rádio aqui...

Plano 48 – 08´´04 Trav para a direita de salão de baile. Pessoas dançam, não vemos o rosto das pessoas, estão como que em contra luz. CAM se desloca por trás de uma pilastra do local onde o baile está acontecendo, revelando o grupo Os Cinco Morenos no palco, executando uma música.

ouvimos melodia executada pelo grupo Os Cinco Morenos.

Plano 49 – 11´´76 PL de Sr. Jayme olhando para a câmera.

... na década de quarenta, foram chegando aquelas músicas estrangeiras e foi chegar o ponto do rasqueado em decadência, que chegou até o ponto que chegou.”

Plano 50 – 12´´56 Trav para a direita do salão de baile. CAM se desloca novamente por trás de pilastra. Há um único casal dançando na pista. Os Cinco Morenos continuam no palco.

Mantém melodia até o corte.

Plano 51 – 12´´10 Pan de uma menina se aproximando de área externa de um bar onde homens discutem sobre o melhor time de futebol do local, sentados à mesa. Sobre a mesa, algumas cervejas. Os ânimos estão exaltados. Menina se aproxima de homem perto da mesa.

Ouvimos vozes de homens discutindo na mesa de bar.

Plano 52 – 07´´59 A van conduzida por Garoto atravessa a Ponte Nova, que leva à cidade de Várzea Grande, em direção à comunidade de Souza Lima.

Música “A Minha Morena”, da banda Strauss.

Plano 53 – 04´´31 PC de Sr. Saindo do bar com menina,levando-a pela mão.

Mantém música.

Plano 54 – 06´´28 Pan de van saindo do asfalto e entrando em rua de chão.

Mantém música.

Plano 55 – 04´´68 Sr. e menina caminham por estrada de chão, na direção contrária a da CAM.

Mantém música até o corte.

Plano 56 – 09´´65 Pan para a direita de Sr. dando trago em cigarro e o passando ao Sr.

Sr. Jayme: “O mais engraçado do conjunto é porque todo mundo pergunta: mas por que Cinco Morenos, se são cinco pretos que compõem o conjunto?

Plano 57 – 12´´44 PL de Sr. Jayme olhando para a câmera.

Mas aí a gente sempre diz pra eles: Ah, mas foi generosidade do pintor que pintou o quadro e pintou a gente de marrom assim. Então, por isso que levou o nome de Cinco Morenos”.

Plano 58 – 05´´89 Trav para a direita, revelando a equipe de gravação que está registrando a história do grupo Os Cinco Morenos. Entrevistadora agradece à equipe e aproxima-se do Sr. Jayme.

Videomaker: “Valeu, pessoal...”

Plano 59 – 07´´30 Pan de Sr. e menina chegando à casa do Sr. Jayme. Menina senta-se no colo do Sr. Jayme. Entrevistadora ajoelha-se em frente a Sr. Jayme e agradece pela entrevista. Raccord para

Videomaker: “Obrigada, seu Jayme. Até a próxima.”

Plano 60 – 16´´16 PA de Sr. Jayme fazendo um gesto de positivo com o dedo para a entrevistadora. A CAM está atrás do Sr. Jayme. Ao ver taxi parando na estrada, menina e Sr. Jayme se levantam da cadeira.

Ouvimos barulho do taxi parando na rua de chão. Barulho de portas do carro sendo fechadas. Violinista: “Então combinado. Leve as malas pro hotel!”

Plano 61 – 10´´58 PM de Sr. Jayme indo ao encontro do Sr. Raul e do Violinista. Sr. Jayme indaga sobre o estranho, cumprimentando o Sr. Raul. Violista apresenta-se. Ao fundo, entra em quadro a van de Garoto, que sai da estrada e invade gramado da casa do Sr. Jayme. Todos olham para a van.

Ouvimos o barulho do taxi partindo. Sr. Jayme: “Quem é o moço?” Violinista: Hans Krauser, violinista que veio tocar no teatro Universitário.” Sr. Jayme: “Seja bem-vindo.”

Plano 62 – 05´´72 PL de Garoto tirando os óculos, mascando chicletes, conversando com Sr. Jayme, informando que veio buscá-los sob ordens do pai.

Barulho da van parando. Garoto: “É aqui que moram os Cinco Morenos?” Sr. Jayme: “Sim”

Plano 63 – 13´´07 PC de Sr. Jayme, Sr. Raul, Violista e van. Garoto sai da van. Sr. Jayme chama os componentes do grupo Os Cinco Morenos e solicita que estes tragam os instrumentos musicais.

Garoto: “Meu pai mandou vir buscar vocês! Já podemos ir?” Sr. Jayme: “Ô Francisco, ô Dito, ô Domingos, vamo embora, pega os instrumentos!”

Plano 64 – 06´´02 PL de Sr. Jayme olhando em direção à câmera.

Sr. Jayme: “Primeiro, meu jovem, nós temos que passar em Santo Antônio pra pegar um cordeamento pro meu banjo.”

Plano 65 – 09´´85 PL de Garoto reclamando ao ouvir exigência de Sr. Jayme. Garoto reclama sobre os instrumentos. Garoto entra na van.

Garoto: “Mais essa! Santo Antônio! Olha aí, esse bumbo vai arranhar todo o meu carro!”

Plano 66 – 12´´63 Pan em GPG do Rio Cuiabá. Vemos um barco navegando pelo rio, pescadores, a vegetação das margens.

Música “A Minha Morena”, da banda Strauss.

Plano 67 – 06´´64 GPG de van ao longe, andando na direção da câmera, na beira do rio, em área arenosa.

Mantém música.

Plano 68 – 04´´00 PL de um peixe (pintado). Vemos uma faca tentando cortar o peixe (na região da cabeça) por duas vezes.

Mantém música. Ouvimos o barulho da faca cortando o peixe.

Plano 69 – 06´´02 GPG de van andando na direção da câmera, na beira do rio.

Mantém música.

Plano 70 – 07´´58 PG de mulheres sentadas na beira do rio, cortando peixe. A CAM está dentro do Rio. A van entra em quadro, estacionando próxima as mulheres. Mulher 2 levanta-se e sai correndo em direção oposta à da van, para buscar as cordas para o banjo do Sr. Jayme.

Mulher 1: “Olha lá, seu Jayme chegou!” Mulher 2: “Ah, espera aí seu Jayme!”

Plano 71 – 01´´43 PL de Violinista saindo da van, olhando para CAM. Plano 72 – 02´´37 GPG do Rio Cuiabá. Há um pescador dentro de um barco navegando pelo rio.

Mulher 1: “Como vai, seu Jayme?”

Plano 73 – 06´´39 PC de Mulher 2 entregando as cordas do banjo para Sr. Jayme. Garoto entra no quadro, tentando apressar a saída.

Mulher 2: “Seu Jayme, o seu cordeamento!” Garoto: “E então, podemos ir?”

Plano 74 – 05´´00 PL de Sr. Jayme com céu ao fundo.

Sr. Jayme: “Ainda não. Tá faltando uma coisa. Assinar o contrato e pagar metade do cachê adiantado.”

Plano 75 – 01´´67 PL de Garota, dentro da van, reprovando o que ouve. Plano 76 – 03´´45 PC de Mulher 1, Sr. Jayme, Mulher 2 e Garoto, discutindo.

Garoto: “Contrato? Meu pai não falou de contrato nenhum.”

Plano 77 – 04´´83 PM de Mulher 1. Vemos Mulher 2 olhando com reprovação para Garoto.

Mulher 1: “Se ele não falou, problema de seu pai, porque eles não saem daqui sem o papel assinado.”

Plano 78 – 02´´07 PL de Garoto, inconformado.

Garoto: “Ah, aí pirou de vez.”

Plano 79 – 07´´91 PC de Mulher 2. Vemos Mulher 1 confirmando informações de Mulher 2.

Mulher 2: “Só se esquecesse daquela vez que o seu pai contratou o serviço dos Cinco Morenos pra tocar naquela festa de político!”

Plano 80 – 00´´89 PL de Garoto, irritado.

Garoto: “O que é que tem meu pai?”

Plano 81 – 03´´32 PM de Mulher 1 falando e Mulher 2, assentindo.

Mulher 1: “Ele combinou um preço e não pagou até hoje!”

Plano 82 – 04´´58 PL de Garoto, enraivecido.

Garoto: “Mas vocês ficaram loucos pensando que eu vá assinar esse contrato!”

Plano 83 – 09´´58 CAM atrás de Sr. Jayme mostrando em PC Sr. Jayme e Garoto. Garoto se irrita e desiste de continuar com planos do pai.

Sr. Jayme: “Então, não tem show!” Garoto: “Vão se danar!” Sr. Jayme: “Pessoal, bora retirar os instrumentos.”

Plano 84 – 09´´28 PC do interior do carro. Vemos rosto de Garota, tentando acalmar Garoto que olha pela janela, vendo o grupo sair do carro com instrumentos. Garoto dá partida no carro.

Garota: “Vamos embora, vai, vamos embora.” Garoto: “Papai vai ficar puto!”

Plano 85 – 18´´49 GPG de van saindo. Ao fundo, vemos uma espécie de galpão/salão de festas. Há varias bandeirolas entre o galpão/salão e o entorno. Enquanto a van sai de quadro, vemos o grupo musical Os Cinco Morenose as Mulheres se dirigindo para o galpão/salão. Ao lado deles, uma espécie de dança de bumba-meu-boi está sendo executada. O Sr. Jayme olha para trás, na direção do rio (que não vemos) e chama o Violinista, que entra em quadro e começa a acompanhar as pessoas em direção ao salão.

Sr. Jayme: “Naquele dia, Os Cinco Morenos escapou de uma grande cilada. E o rasqueado rolou noite adentro na ‘Barraca da Maria’.”

Plano 86 – 08´´90 Trav. Para a direita dentro do galpão, com chão de areia, onde pessoas dançam ao som os Cinco Morenos, acompanhados do Violinista ao violino.

Música dos Cinco Morenos.

Plano 87 – 23´´08 Trav para a direita, passando por trás de um dos pilares que sustentam o teto do galpão, mostrando os casais dançando na pista de areia. Vemos pessoas dançando fora do galpão, ao ar livre. Fogos de artifício explodem fora do bar. A música é executada. Os casais param de dançar e aplaudem com entusiasmo.

Música dos Cinco Morenos. Ouvimos explosão de fogos de artifício fora da “Barraca da Maria” Ouvimos aplauso do público.

Créditos de encerramento:

- Assistente de Direção: Jairo Mattos - Segundo Elenco: Carlina Jacob / Thomas Krauze / Vera Capilé / Luís de Carvalho / Camilo Cordeiro Santos / Franklim Pereira da Cunha/Jurandir Vicente Moreno - Cenografia e Figurino: Liete Alves / Edson Castro - Maquiagem: Tereza Catalan - Crédito: Ana Rita Nemer - Filmagem de Crédito: Sérgio Arenas - Still: Sandra Narelli - Assistente de Produção: Waldevino Souza Barbosa / Akerman Magalhães / Kely Almeida / Ricardo Cordeiro dos Santos / Wanda Maria Fortunato - Assistente de Montagem: Sílvia Hagashi - Assistente de Câmera: Luis Antônio de Oliveira - Continuidade: Liete Alves - Eletricista: Bento de Castro Andrade Melo - Assistente de Elétrica: Lourivaldo Rodrigues de Amorim - Maquinista: Wagner Wilson Barbosa

- Estagiários: Rômulo Fraga / Márcio Moreira / Ana Paula Santana / Rodney (Montanha) - Making Of: Eliane Pontes / Luciana Ohara / Paula Melo - Figurinos: Ivens Scaff / Iuri Saba / Luis Hoffmann / Elaine Tagor / Bruna Mattos / Jamil Sola da Silva / Enimar / Rodrigo Sartori / Sibela / Fabiana e Sheila Couto / Luciana /Douglas Moulin / Comunidades de Souza Lima e Santo Antônio - Som Direto: Márcio Oliveira - Mixagem: José Luis Sassa - Estúdio de Som: J L S Facilidades Sonoras - Motorista: Ernesto Alves da Silva / Vantonildo Nascimento / Zeno Francisco Leite / Mosanir Anselmo

- Músicas: “Me Pega, por favor, Meu Bem”- Strauss / “Morangos Mofados” - Strauss / “Pão Seco” - Strauss / “Aos Livrados do Mal” - Strauss / “A Minha Morena” - Strauss / “O Joio e o Trigo (Bateia)” - Strauss / “Sobre Pressa” - Strauss / “Ando Cansado” - Strauss / “A Lágrima Quente” - Strauss / “Rasqueado em Blues”- Zuleica de Arruda & Vera Baggetti / “As Meninas da Guarda”, “Arraiá da Fargulha”, “Cezanno” - Os Cinco Morenos

- Agradecimentos: Paulo Crestani / Antônio Feltrini / Adilson Caseli / Cristian Caseli /José Duarte / Quanta / Kodak do Brasil / Funarte / Decine / CTAV / Superfilmes / Universidade Federal de Mato Grosso / Coordenação de Cultura / Central de Locação / Prefeitura Municipal de Várzea Grande / Várzea Grande Tenis Clube / Secretaria de Cultura da Prefeitura de Cuiabá / Secretaria de Cultura de Prefeitura Municipal de Santo Antônio do Leverger /Hotel Mato Grosso Palace / Restaurante Aldeia / Edlus Pizzaria Restaurante Serra / Restaurante Choppão / Restaurante Cedros / TUT Transportes / Sinal Verde Veículos / Ben Hur Guincho / Infraero / Aeroporto Marechal Rondon / Estância 21 / Água Cristalina / Ellus Cuiabá / Central de Estética Integrada / Clube de Montanhismo / Polícia Rodoviária Estadual / Corpo de Bombeiros / Foto Oeste /Brechó “Flor do Brejo” / Transbrasil / Jurandir Antônio Francisco /Comunidade de Santo Antônio do Leverger / Comunidade de Souza Lima / Papelaria Universitária / Terra Produções / Bar do Neco / Glorinha Garcia / Luciana Vitória / Anderson / DNER / AF Cinema e Vídeo / IBAMA / FEMA / Fernando Nogueira / Clóvis Botelho / Ivens Cuiabano Scaff / Teatro Universitário / Departamento de Comunicação Social / Ben Hur e Roseli / Tom Roger / Elvino Ney Taques / Almoxarifado UFMT / Prefeitura do Campus UFMT / Celi Monteiro Queiroz / Ascom UFMT / Sebastião Rego / Rosana Camilo / Ronaldo Ribeiro dos Santos /Julia Ribeiro / Jaime Veríssimo de Campos /Glória Albués/ Elismar Bezerra / Joel Lima Novaes e Robson / TV Universitária / Multipadrão / Luiz Romena / Conselho Estadual de Cultura / Recuperadora Lopes / João Quinzana / Marcelo Okamura / Juarez Vargas / Toninho – Várzea Grande Tênis Clube / Engeglobal / Pirâmide Palace Hotel / André Klotzel / Zita Carvalhosa / Sirena Roque de Assunção / Francisco Mosqueira / Clélia Bessa / Luiz Carlos Nigro / Selma e Glen / Cybelle Bussiki / Marisa Batalha /

Dolby Digital in selected theatres

Fim

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