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LIÇÕES DE VIDA KIERKEGAARD ROBERT FERGUSON Tradução: Clóvis Marques

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LIÇÕES DE VIDA

KIERKEGAARD

ROBERT FERGUSON

Tradução:

Clóvis Marques

Título original:Life Lessons from Kierkegaard

The School of Life

Tradução autorizada da primeira edição inglesa, publicada em 2013 por Macmillan, um selo de Pan Macmillan, uma divisão de Macmillan Publishers Limited, de Londres, Inglaterra.

Copyright © 2013, Robert Ferguson

Copyright da edição brasileira © 2018: rua Marquês de S. Vicente 99 – 1o | 22451-041 Rio de Janeiro, RJtel (21) 2529-4750 | fax (21) [email protected] | www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodução não autorizada desta publicação, no todoou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Preparação: Diogo Henriques | Revisão: Carolina Sampaio, Otávio FernandesProjeto gráfico: Carolina Falcão | Capa: Estúdio Insólito

CIP-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Ferguson, RobertF392L Lições de vida: Kierkegaard/Robert Ferguson; tradução Cló-

vis Marques. – 1.ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

Tradução de: Life lessons from KierkegaardISBN 978-85-378-1729-2

1. Kierkegaard, Soren, 1813-1855. 2. Filosofia dinamarque-sa. I. Marques, Clóvis. II. Título.

CDD: 198.917-45455 CDU: 1(489)

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INTRODUÇÃO

Eu já conhecia Kierkegaard há cerca de vinte anos quando seu pensamento começou a me interessar pessoalmente. O que na verdade me atraiu foi algo com que me deparei ao pesquisar para uma biografia que estava escrevendo do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen. Nas minhas leituras, encontrei indicações de que em Brand, a peça que praticamente o lançou e que tratava de um padre, Ibsen empreendia uma verdadeira investigação dra-mática sobre como pode funcionar na prática a noção do filósofo como alguém que passa a vida a serviço de uma ideia. Ibsen dizia ter lido pouco Kierkegaard e entendido “menos ainda”; mas as ideias de Kierkegaard haviam criado na Escandinávia o clima intelectual no qual Ibsen nasceu, de modo que não era exatamente necessário que o dramaturgo tivesse lido sua obra para estar perfeita-mente familiarizado com seu pensamento.

Ao começar a ler Kierkegaard, logo me dei conta de que sua vida tinha sido assim, voltada de maneira in-tensa, perturbadora e apaixonada para uma única ideia.

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LIÇÕES DE VIDA: KIERKEGAARD

Também foi ficando cada vez mais evidente para mim que na verdade ele era um dos maiores escritores confes-sionais que eu conhecera. Uma máxima em particular se destaca desse período, uma observação quase lacônica segundo a qual a vida só pode ser entendida olhando-se para trás, mas deve ser vivida olhando-se para a frente. Até hoje lembro-me invariavelmente dela quando me sento de costas num trem. Pela primeira vez na vida eu en-tendia quem eram os grandes filósofos e por que eram importantes: eram pessoas que procuravam conferir sentido a suas vidas e, nesse processo, tentavam ajudar- nos a conferir sentido à nossa.

Søren Kierkegaard nasceu na Dinamarca em 1813, o caçula de uma família de sete filhos. Antes que comple-tasse 22 anos, só ele e um irmão não tinham morrido. Duas irmãs morreram ao dar à luz, ambas aos 33 anos, e Kierkegaard estava convencido de que também não passaria dessa idade. Um amigo lembrou-se de tê-lo ouvido dizer que dali para a frente só leria “obras de homens que tenham sido executados”. Ele achara graça, considerando o comentário um típico exemplo do senso de humor do jovem Kierkegaard. Mais tarde, porém, deu-se conta de que estava sendo convidado a discutir a questão da morte, e lamentou não ter aceitado o convite. A marcante experiência da brevidade da existência hu-mana levou Kierkegaard a pensar na vida como uma preparação para a morte, e esta consciência por sua vez

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INTRODUÇÃO

deu-lhe um forte sentimento do valor do tempo. Em quinze anos de vida literária ativa, sua produção foi extraordinária. Num único dia de 1843, ele publicou três livros. Cada linha é marcada pelo mesmo sussurro premente: todo momento é importante.

O pai de Søren, Michael, pertencia à classe campo-nesa mais baixa. Em 1777, aos 21 anos, foi liberado do serviço por seu senhor e em pouco tempo fez fortuna como importador de tecidos. Aos quarenta anos, já acumulara riqueza suficiente para se aposentar. Søren nasceu quando ele tinha 56 anos e estava casado, em segundas núpcias, com Ane, uma antiga governanta. Michael Kierkegaard era um homem profundamente religioso. Conta-se que aos quatorze anos, cuidando no pasto do rebanho de seu senhor, ele amaldiçoou Deus pela injustiça de seu destino, e ao que parece a dramá-tica mudança que sobreveio em sua vida depois dessa explosão de raiva o encheu de culpa. Ele imbuiu Søren de uma visão sombria do cristianismo, da qual o filho se ressentiu por muito tempo, achando que não tivera infância. Mais tarde, ele viria a encarar esse legado como uma oportunidade de reinventar sua própria concep-ção do que realmente significava ser cristão. Com a morte do pai em 1838, Søren herdou uma fortuna, que o eximiu da necessidade de ganhar o próprio sustento, permitindo que se dedicasse plenamente às atividades que escolhera para sua vida: as de pensador e escritor.

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No centro da vida e das ideias de Kierkegaard está uma extraordinária história de amor. Em maio de 1837, na casa de um amigo em Copenhague, ele conheceu a precoce e talentosa Regine Olsen, passando a cortejá-la. Em 1840, quando ela estava com dezoito anos, ele a pediu em casamento, e ela aceitou. Em setembro de 1841 ele rompeu o noivado, publicando pouco depois o livro que o tornou famoso em toda a Escandinávia, e que ainda hoje é talvez o mais frequentemente associado a seu nome: Ou isso ou aquilo.

Como quase todos os frutos da prodigiosa atividade literária de Kierkegaard, Ou isso ou aquilo foi publicado sob pseudônimo. Escrito em diferentes vozes e estilos, o livro tem como seção mais famosa ou comentada o

“Diário de um sedutor”, relato de um jovem chamado Johannes sobre os incríveis esforços em que se empe-nha para conquistar o amor de uma jovem. Descobre-se que o sucesso é o objetivo de todo esse empenho; tendo conquistado seu coração, ele põe fim ao relacionamento, livre para sair em busca de novo alvo para sua divertida campanha de conquista.

O real motivo do rompimento de Kierkegaard com Re-gine é um dos grandes enigmas de sua vida. Em seus escritos posteriores, especialmente os Diários e papéis, fica claro que ele continuou a amá-la, tanto que legou a ela, ao morrer, em 1855, o pouco dinheiro que tinha, explicando que o fazia porque considerava que aquele

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INTRODUÇÃO

noivado equivalia a um casamento. Mas ela há muito estava casada, e a herança foi recusada.

Em Ou isso ou aquilo, Kierkegaard apresenta ao leitor uma divisão de três “estágios no caminho da vida” (na verdade, quatro, embora o primeiro nunca seja mencio-nado como tal), cada um representando um avanço em relação ao anterior: o filisteu, o estético, o ético e o reli-gioso. Embora usasse pseudônimos para escrever “nas vozes” de pessoas de todos esses estágios (evidenciando notável afinidade com as do “estágio estético”), a seu pró-prio ver ele sempre fora um escritor religioso, empe-nhado em convencer os leitores da absoluta necessidade de percorrer o caminho filisteu-estético-ético-religioso até Cristo. Seu envolvimento com algo “irracional” como o cristianismo levou diversos filósofos a não considerá-lo

“propriamente” um filósofo, e ele tinha consciência de que sua posição era considerada intelectualmente dúbia por muitos. Mas um dos paradoxos mais estimulantes a respeito de Kierkegaard é que, apesar de seu amor por Cristo, ele também tinha uma das mentes mais racionais, intelectualizadas, analiticamente precisas e psicologica-mente agudas que a maioria de nós jamais encontrará. Para mim, ler um texto seu é como fazer uma longa ca-minhada em companhia fascinante. Boa parte do que ele diz é por demais hermético e complicado, e mesmo excessivamente pessoal, para que eu entenda de fato; mas uma parte muito, muito maior é esclarecedora, profunda,

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intelectualmente estimulante e enriquecedora. Sendo agnóstico, não posso seguir Kierkegaard até os portões do céu que ele tão claramente enxerga à sua frente, e sempre nos separamos antes que ele chegue ao destino final. Mas pelo menos do meu ponto de vista, é muito mais divertido fazer uma viagem interessante do que chegar a algum lugar.

Uma das ideias mais frequentemente associadas a Kierkegaard é que um “salto de fé” é necessário para en-tender e aceitar o esmagador significado do Novo Tes-tamento e a afirmação da divindade de Cristo. Também aqui é difícil saber se entendemos exatamente o que ele quis dizer. A mim, contudo, parece que se referia à ideia de que uma abordagem racional do conhecimento sempre haverá de se deparar, no fim das contas, com li-mites, mas que mil impulsos subjetivos continuam sus-surrando em nossos ouvidos que esses limites não são de modo algum o fim. E a ideia do “salto de fé” seria assim tão irracional? Qualquer criança, ao ouvir pela primeira vez que o universo começou com um Big Bang, imedia-tamente quer saber o que havia antes. A melhor resposta da ciência é que havia uma “Singularidade”, um estado em que as leis e horizontes conhecidos da nossa ciência simplesmente não vigoram. O “salto de fé” de Kierkega-ard não é uma resposta menos natural que a resposta à suprema pergunta para saber exatamente quem – ou o quê – está cuidando do restaurante no fim do universo.

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INTRODUÇÃO

Kierkegaard nunca teve boa saúde. Um dia, andando na rua, suas pernas falharam. Ele conseguiu chegar até o Hospital Frederiks em Copenhague e se internar. Apa-rentemente, considerou desde o início que a doença era fatal, e ao longo das oito semanas seguintes seu orga-nismo foi entrando em colapso. Pouco antes desse episó-dio, ele atacara violentamente a Igreja luterana da Dina-marca, acusando seus padres e bispos de não passarem de uma burocracia religiosa interessada sobretudo em deixar todo mundo – inclusive eles próprios – satisfeito. Ele morreu em 11 de novembro de 1855, com apenas 42 anos. O médico que tratou dele em seus últimos dias es-creveu apenas a pergunta “Tuberculose?” no prontuário do paciente, mas a causa da morte ainda hoje é objeto de debate.