lições das coisas - agnaldo farias
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LIÇÕES DAS COISAS
Revista da pós-graduação na FAUUSP.
Prof. Dr. Agnaldo Farias
Que coisas? Pois são os objetos, essa gama infinitamente variada de coisas
cotidianas, artesanais e industriais, minúsculos e monumentais, íntimos e públicos,
materiais e imateriais produzidas pelo homem para o seu conforto e que
especialmente depois da era industrial, ainda mais impulsionada após a invenção
do design, passaram a proliferar numa velocidade espantosa, a ponto de
Baudrillard no seu estudo referencial sobre o assunto, começar perguntando se seria
possível classificar “a imensa vegetação dos objetos como uma flora ou uma fauna,
com suas espécies tropicais, glaciais, suas mutações bruscas, suas espécies em vias
de desaparição?” (1) As metáforas escolhidas por Baudrillard são procedentes.
Basta que nos detenhamos numa simples cadeira, colher ou lustre, não é preciso e
nem convém ir muito longe, para que verifiquemos o número virtualmente infinito de
versões conhecidas desses objetos. E o fato de que o componente funcional de na
maioria eles mantenha-se teimosamente o mesmo, só serve para aumentar o
mistério da perpétua variação de suas aparências. “Flora ou fauna” são
designações coerentes pois há algo de orgânico no modo como um faqueiro
assemelha-se a ramificação arbórea de facas, colheres e garfos ou em como a
televisão assemelha-se ao tronco de uma família que se espraia em aparelhos de
dvd, projetores e monitores, de microtelas dos aparelhos celulares aos símiles
domésticos de telas cinemascope com os quais os consumidores mais ávidos de
ilusões, e devidamente abonados, pretendem romper as torpes limitações de uma
das paredes da casa em que mora.
E como não lembrar a primeira e essencial lição trazida dentro do mais banal dos
objetos, qual seja o fato de que todos eles possuem algo de nosso, como uma
criatura que leva adiante os traços de seu criador? Tal pai tal filho. Tal homem tal
objeto. Os objetos, deles disse Barthes, “são a nossa assinatura no mundo”,
alertando ainda que “não devemos nos esquecer que um objeto é o melhor
mensageiro de um mundo que está por cima da natureza.” (2) E quanto a isso nem
será preciso avançar pela demonstração de cada objeto é a simultânea negação
da natureza mais trabalho humano objetivado. Basta lembrar que todos eles
possuem a nossa medida, mais não fosse são ergonômicos. E é por isso que
freqüentemente são antropomórficos, quando não nos passam a vívida sensação
de serem animados. Quem, durante as indefectíveis madrugadas insones da
infância, ao menos uma vez não se quedou paralisado na cama com a certeza de
que o paletó encabidado numa cadeira era o vulto de um homem? E que tal o
relógio de pulso, que Julio Cortázar define como um “pedaço frágil e precário de
você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo, que deve ser atado a
seu corpo com sua correia como um bracinho desesperado pendurado a seu
pulso?” (3) Há também as referências zoomórficas exploradas pelos designers de
hoje em dia, cujo um dos melhores exemplos é o espremedor de limão “aracnídeo”
que Philippe Starck projetou para a Alessi no princípio da década de 90, e que
foram brilhantemente antecipadas por Hanna e Barbera, autores do memorável
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seriado infantil “Flintstones”, que apresentava o aspirador de pó como um pequeno
animal doméstico que se leva pela tromba e uma vitrola ancestral que trazia como
braço e respectiva agulha um pássaro debruçado com o bico enfiado nas ranhuras
do disco.
Houve um tempo em que parecíamos controlar, e já com muito custo, as novidades
no campo da produção material. Em seu “As Cidades e as serras”, Eça de Queiroz
oferece um retrato carregado nas tintas do entusiasmo pela civilização de seu
protagonista, Jacinto, esforçando-se por corresponder ao seu entendimento do
homem civilizado como aquele apto “a recolher dentro de uma sociedade e nos
limites do progresso (tal como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos
os proveitos que resultam de saber e de poder.” (4) De um aparelho telefônico ao
pequeno ascensor que ligava a cozinha à sala de jantar, o palacete situado no 202
da Campos Elíseos tinha de tudo. E note-se que o problema do Jacinto não se
estendia ao conhecimento e controle dos fatos e objetos do passado e sim os do
presente, em seu inexorável fabrico do futuro. Caso seu arrebatamento fosse em
direção aos feitos civilizacionais realizados, o problema se exponenciaria, e as
vastas e já atulhadas salas de seu casarão rebentariam no esforço de comportar o
excedente.
O impulso de cercar-se de objetos e informações, e aqui insinua-se uma segunda
lição das coisas, é algo tão antigo quanto o homem. Pomian refere-se a esse
atavismo afirmando que “pode-se constatar sem risco de errar (grifo meu) que
qualquer objeto natural de que os homens conhecem a existência e qualquer
artefato, por mais fantasioso que seja, figura em alguma parte num museu ou numa
coleção particular”. (5) De uma forma ou de outra todos nós somos colecionadores.
Desde a infância até a velhice. Toda a sorte de objetos materiais, coisas concretas,
palpáveis, que tanto podem ser efêmeros quanto atravessarem nossa existência,
sobrevivendo-a. No início há o inevitável fascínio pela diversidade das coisas,
fortuitas como maços de cigarros, lápis, tampinhas de garrafa, além dos
indefectíveis álbuns de figurinhas que cedo conferem à esse atavismo um formato
mais profissional. Há um misto de processo de conhecimento com o gosto pelo
desdobramento tentacular da nossa presença no mundo. A garrafa de coca-cola
egípcia ao mesmo tempo em que noticia a existência de gente em um ponto
remoto além do horizonte, gente que, face as letras de que fazem uso, só podem se
comunicar através de uma estranha algaravia, afirma aquele que a possui como
alguém mais poderoso, mais importante por deter algo que escapa aos outros,
extraordinário por possuir ter a posse do extraordinário.
Da criança que coleciona figurinhas aos ancestrais dos museus modernos, os
gabinetes de maravilhas surgidos a partir da segunda metade do século XIV, o
denominador comum desse vasto universo é o desejo de controle, uma afirmação
de poder sobre o invisível, seja ele espacial – aquilo cuja proveniência é, senão
longínqua, ao menos fora do raio do nosso trânsito habitual; seja ele temporal –
aquilo que vem do passado. Empenhar-se na lida com esses dois vetores
rigorosamente inesgotáveis significa obtenção de poder e, por extensão, prestígio.
Dois substantivos impossíveis de serem saciados. Haverá algum colecionador que
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não sucumba a nostalgia de não poder ir além, ainda que se trate um colecionador
da palavra FIM, título de uma gravura de Waltércio Caldas (1946) que traz
estampada 12 versões dela?
Mais do que a simples mobilidade do objeto no tempo e no espaço, um atributo
que por si só confina com uma espécie de magia, como é o caso de certos objetos
herdados e que são cultuados como verdadeiros talismãs, o fascínio pelo objeto
deve-se as noticias que ele traz acerca de quem o produziu. Prosseguindo por mais
essa lição lembremo-nos de Leroi-Gourhan que, versando sobre a etnologia como
“ciência da diversidade humana”, cujo “campo de investigação não está limitado
nem no espaço nem no tempo”, argumenta que a tecnologia, entendida como o
ramal da etnologia dedicada ao estudo dos produtos das técnicas, é a única “que
permite apreender os primeiros atos propriamente humanos e acompanhá-los de
milênio em milênio até os dias atuais.” (6) Além da sua qualidade de testemunho
acerca de uma cultura dada, informações sobre aos instrumentos da técnica de
“aquisição dos produtos necessários à vida material – produtos animais (caça,
pesca, criação), vegetais (recolecção e agricultura) e minerais – e ao seu consumo
através da alimentação, do vestuário e da habitação” (7), os objetos surpreendem
pela desenvoltura com que circulam pelo mundo, ultrapassando em muito os
deslocamentos das comunidades nômades, cujas migrações, ainda segundo Leroi-
Gourhan, por intensas que sejam ou tenham sido, no geral nunca exorbita o interior
do próprio território e, mesmo quando isso acontece, têm um papel menos
importante do que costumamos pensar. (8)
Os exemplos são infinitos. No nosso caso, brasileiros e acostumados que estamos a
incensar o adágio oswaldiano “Tupi or not Tupi”, o que no geral fazemos
despojando a frase de sua ironia para, em contrapartida, enfatizar o nosso caráter
antropofágico, essa lição sobre a repercussão e transformações entre as culturas
através dos objetos é algo digno de ser considerado com mais vagar. Ainda Leroy-
Gourhan chama-nos a atenção para o fato de que a metade mais aparente da
vida material do Japão, como a escrita, a língua oficial e erudita, o budismo, as
indústrias têxteis etc, serem de inspiração chinesa, muito embora “os chineses nunca
conquistaram o Japão e nunca se encontrará o mínimo vestígio dos seus esqueletos
nas grandes ilhas do arquipélago”. (9) A antropofagia e, mais do que ela, a
“objetofagia”, com o perdão do neologismo, é uma característica dos homens em
geral. E a referência chinesa vem a calhar, em primeiro lugar pelo momento em
que vivemos, no qual, perplexos, assistimos ao reerguimento do poderio daquele
país, cujos efeitos se fazem sentir nos mais variados aspectos da nossa vida
cotidiana, a começar por alguns itens do nosso vestuário. Mas bastaria dar uma
passada pela cidade mineira de Sabará, um dos berços do nosso barroco, o
primeiro grande momento de nossa expressão artística, para uma visita à capela da
Nossa Senhora do Ó, e depararmo-nos com os motivos pictóricos chineses, vários
deles realizados com o pigmento vermelho típico do período, ambos, motivos e
tinta, provenientes da mesma Macau ocupada pelos portugueses.
Corroborando a tese de Lucien Febvre, um dos pioneiros de uma nova visão da
história, co-fundador da revista “Annales d‟histoire économique et sociale”, os
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objetos falam. A história “pode fazer-se, deve fazer-se [...] com tudo o que a
habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar seu mel [...] Logo, com
palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas
daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro [...] Numa
palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o
homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as
maneiras de ser do homem”. (10)
Vivemos rodeados pelos objetos porque sua existência é extensão de nossa
existência mesma. E, ao menos presuntivamente, garantia e promessa de conforto,
mitigamento da solidão, o que se confirma quando, depois de uma viagem,
regressando-se a casa e ao convívio tranqüilizador com os nossos co-moradores, ou
simplesmente quando a noite vai alta e a atmosfera se aquieta, tornando
perceptível o peculiar palrar de seus tique-taques, estalidos, ronronares ou até o
silêncio que se amplifica bruscamente, em seqüência aos staccatos do motor da
geladeira. Mas é fato que a tranqüilidade dessa convivência está sempre a ponto
de dissolver. Essa proximidade de nós, patente em suas feições e na nossa
inclinação em efetuar projeções psicológicas, faz com que os objetos convertam-se
em “outros”, inabordáveis, misteriosos e ameaçadores. Não é assim que Clarice
Lispector os trata em seu conto “Amor”, quando Ana, a protagonista, com a casa
vazia e o sol alto, contemplava os móveis limpos com o coração apertado de
espanto, um sentimento redimido pelo amanhecer de um novo dia, quando
“encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem
arrependidos.” (11) E não é que esse quadro de estranhamento vem se agravando
mais e mais? Especialmente após a segunda metade do século passado, após a
integração de novas tecnologias ao processo produtivo, a entrada em cena das
técnicas de miniaturização, do transistor ao chip, da informática e da robótica, e a
estupenda ampliação dos bens produzidos, o processo ficou tão dinâmico que
diante de certos objetos temos a sensação que, atirados para fora do barco da
história, vemo-lo afastando-se de nós rapidamente. Mais do que nunca sentimo-nos
impotentes diante da “marcha do progresso” a ponto de sorrir das pretensões de
Jacinto, tão factíveis no vagaroso século XIX. Nossas casas são ocupadas,
bombardeadas por toda sorte de objetos. No meio dessa vertigem sentimo-nos
precocemente envelhecidos, seres cristalizados em meio a um ambiente marcado
pela fugacidade. Um pouco como a população da cidade no magistral
“Amarcord” de Fellini, que se lança ao mar numa miríade de barcos e canoas para
contemplar de perto a passagem do Rex, o transatlântico, paquiderme
tecnológico, orgulho da pátria. A expectativa pelo objeto vai se dissipando com a
noite a medida em que o mar embala o sono de todos. Quando então,
discretamente anunciado por uma sirene abafada, uma sombra imensa invade a
escuridão silenciosa indiferente aos aplausos e gritos emocionados de todos diante
da desmesura. Assim é a história, diz Fellini, assim é a produção de bens que nos
consagra e que, por outro lado, ignora-nos como um barco imenso que navega
resolutamente em direção ao futuro, como se não fossemos nós, com nossos
afazeres tão diminutos, nossas tristezas e alegrias, nossas feiúras, nossas idealizações
e fracassos, os responsáveis pela sua construção.
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O objeto, além de flores, pêras, maçãs, peixes, caveiras..., na arte. Outras lições
De um modo ou outro o objeto sempre esteve presente na produção artística.
Impossível pensar na representação do homem, tema imemorial e anterior a própria
invenção da arte, sem que ele não esteja ataviado com algum objeto, arma ou
vestimenta, por simples que sejam. Contudo, o objeto só passa a merecer alguma
evidência, ganhar espaço como protagonista, na passagem dos séculos XVI para o
XVII, na esteira da criação das academias e na consolidação das “pinturas de
costumes” e da “natureza-morta” como gêneros artísticos, ainda que considerados
secundários em relação aos outros gêneros, a pintura histórica, mítico-religiosa, a
paisagem desde que imbuída de algum desses atributos, e o retrato, todos esses
dotados de uma significação que transcendia aos limites domésticos e comezinhos
dos dois primeiros. Sem se estender na questão, convém prudência em sua análise
uma vez que a pintura de costume, tal como a praticada por Johannes Vermeer
(1632-1675), o mestre de Delft, estava longe do prosaísmo pejorativamente
associado ao gênero. E o florescimento desse gênero nos países baixos deve ser
creditado ao impedimento do protestantismo para a representação de cenas
religiosas. O caráter doméstico dessa pintura, pelo que era desprezada pelos
acadêmicos na conta de “arte feminina”, estendia-se à natureza-morta, como se
pode confirmar nos inúmeros exemplares constituídos por arranjos com cornucópias
de frutas, buquês de flores, além de animais caçados e pescados.
Também aqui deve-se cuidar para não reduzir o gênero a um problema de
composição e de relações cromáticas, o que também não quer dizer que esses
fossem problemas de pequena monta e não chegassem as raias de elaborações
formais das mais intrincados. Discorrendo sobre a natureza-morta, Shapiro, depois de
advertir que “os objetos escolhidos para a natureza-morta – a mesa com comida e
bebida, as louças, os instrumentos musicais, o cachimbo e o tabaco [...] pertencem
a campos de valor específicos: o privado, o doméstico, o gustatório, o convival, a
vocação e o hobby, o decorativo e o suntuoso e, menos freqüentemente, num
clima negativo, objetos oferecidos à meditação como símbolos da vaidade,
lembranças do efêmero e da morte”, lembra que eles transmitem ainda “o sentido
do poder humano sobre as coisas, ao produzi-las e utilizá-las; são instrumentos assim
como instrumentos de sua habilidade, seus pensamentos e apetites.” (12)
De fato, e nomeadamente na Espanha onde através de mestres como Francisco de
Zurbarán (1598-1664) e Juan Sánches Cotán (1560-1627) a natureza-morta atingiu
um patamar superior, o gênero abordou um universo preponderantemente
simbólico, patente na variante de “clima negativo”, segundo Shapiro, denominada
por vanitas, cuja origem remonta à passagem bíblica do livro do Eclesiastes (I, 2) em
que se lê: “Vaidade de vaidades e toda vaidade.” Fiéis ao espírito da Contra-
Reforma, as obras pertencentes a esse sub-gênero, nas quais elementos perecíveis
como flores e frutas não raro vinham acompanhadas de caveiras, pretendiam
induzir o espectador à meditação sobre a vida. (13)
A alteração do estatuto do objeto na arte, sua passagem do plano secundário
onde estava relegado para uma posição de destaque foi uma decorrência do
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programa realista introduzido por Gustave Courbet (1819-1877) na cena estética
francesa no final da primeira metade do século XIX. A ênfase dada ao objeto na
obra dos Impressionistas, com destaque à Vincent Van Gogh (1853-1890) e, mais
ainda, Paul Cézanne (1839-1906), cuja importância para o cubismo de Georges
Braque (1882-1963) e Pablo Picasso (1881-1973) merece ser qualificado como
seminal.
Colagem cubista e a era do objeto
“Penso que um quadro se parece com o mundo real quando está feito de mundo
real”
Robert Rauschenberg (14)
A simples formulação de um ponto de vista como esse de Robert Rauschenberg
(1925), artista cuja carreira despontou nos Estados Unidos no começo dos anos 50
para ser quase imediatamente identificada como Neo-dadaísta, graças ao uso de
elementos extraídos da vida cotidiana, mostra, simultaneamente, a atualidade da
colagem, procedimento cubista inventado em Paris por Braque e Picasso durante o
ano de 1912. Será legítimo compreender as peculiares “combine-painting” desse
artista, obras que apagavam as fronteiras entre escultura e pintura, materiais nobres
com toda sorte de detritos – “A pintura está relacionada com arte e vida [...] Um par
de meias não é menos adequado para uma pintura do que madeira, pregos,
terebentina, óleo e tecido” (15) – como colagens em versão radicalizada. E foi o
cubismo que, além de eleger a natureza-morta como o grande gênero artístico, o
que em parte era devido a postura anti-acadêmica que os impulsionava, juntou à
sua pintura, através da colagem e da assemblage, fragmentos de produtos típicos
da vida citadina e industrial. Pedaços de jornais, papéis de parede, rótulos de
garrafas, cartas de baralho etc. De acordo com Shapiro, a colagem cubista, isto é,
a agregação formalmente elaborada de “objetos reais à tela ao lado do pigmento
tradicional – [era o] ponto culminante de uma tendência a ver a pintura em si como
coisa material e a eliminar por diversos meios os limites entre realidade e
representação.” (16)
Por sua vez, Rosalind Krauss, sem negar as considerações acima, defende a
invenção da colagem pelos cubistas como um efeito da ação combinada de três
fatores, a saber: o impacto causado pela poesia “Zona” de Guillaume Apollinaire,
publicada em 1912 no interior do livro “Álcoois”, no qual o autor celebra “os
prazeres lingüísticos dos cartazes e sinais urbanos”; a adoção de materiais baratos e
efêmeros, e sua utilização dentro de parâmetros mais próximos às estratégias de
design como críticas ao protocolo das belas artes, assim como a busca da
experiência estética nas margens daquilo que era socialmente regulado como
indício da liberdade artística; os conflitos nos Balcãs reportados pela imprensa do
período e selecionados pelos artistas para protagonizarem seus recortes de jornais,
dão prova da dimensão realista de seu trabalho plástico, afastando-o da acusação
de simples operação formal. (17)
Marcel Duchamp e o ready-made – mais e inesperadas lições
7
“Se o Sr. Mutt fez ou não com suas próprias mãos a fonte, isso não tem importância.
Ele escolheu-a. Ele pegou um objeto comum do dia-a-dia, situou-o de modo que se
significado utilitário desaparecesse sob um título e um ponto de vista novos – criou
um novo pensamento para o objeto.” Marcel Duchamp (18)
“A arte é possível sem intenção artística e pode ser melhor sem ela.” Hiroshi
Sugimoto (19)
Se a colagem é o gênero o ready-made é a espécie. Embora tenha surgido um ano
depois da colagem, em 1913, o ready-made, isto é, a apropriação e re-
contextualização no âmbito da arte de um objeto qualquer produzido em escala
industrial, de autoria anônima, cuja ordem funcional supera qualquer pretensão
estética, joga o problema para um território muito mais amplo, do qual a colagem é
apenas um caso particular, e denominado posteriormente por alguns teóricos,
como assemblage. O contato de Marcel Duchamp (1887-1968) com os cubistas é
um fato notório até porque naquela altura ele estava alinhado com o grupo
chegando a integrar suas exposições, uma adesão rompida no mesmo ano de
1912, o ano do surgimento da colagem e, portanto, ano zero do objeto “ao vivo” na
obra de arte. Inúmeros historiadores da arte responsabilizam à pressão efetuada por
seus irmãos, os artistas Raymond Duchamp-Villon (1876-1918) e Jacques Villon (1875-
1963), para que ele retirasse do Salão dos Independentes, reduto dos cubistas,
realizado no verão daquele ano, sua pintura “Nu descendo a escada”, provocativa
e fora dos preceitos do grupo. Uma situação desgastante e que o próprio Duchamp
declarou ser responsável por sua atitude de abandonar a pintura, cuja orientação
“retiniana”, ou seja, dirigida mais para os olhos do que para o pensamento,
desagradava-o profundamente. (20) Mas a reação do artista não se resumiu a isso,
o incidente levou-o a iniciar uma obra pautada em novos materiais e questões, cujo
primeiro grande produto levaria anos para ser feito “A noiva despida por seus
celibatários, mesmo” (1915-1923), também conhecido por “Grande vidro”, uma
pintura a óleo sobre vidro. Paralelamente, mais próximo do que nos interessa, ele
começou sua anti-obra, a apropriação de objetos, os já mencionados ready-
mades, abrindo fronteiras que seriam consideradas anti-artísticos. (21)
Rosalind Krauss argumenta que esse fato, de resto confirmado por Duchamp, não
logra explicar a amplitude do problema. Mais do que uma desavença, o ready-
made significou, em primeiro lugar, a alternativa encontrada por Duchamp contra a
insistência do cubismo em permanecer na esfera representacional mesmo com a
extraordinária abertura propiciada pela colagem e a conseqüente utilização de
materiais extra-artísticos. Essa compreensão do problema teria sido acompanhada
à distância, e provavelmente sem que um tenha tomado consciência do outro,
pelo artista russo, Vladimir Tatlin (1885-1953), cujos contra-relevos produzidos a partir
de 1914 foram impulsionados pela mesma crítica, feita por Tatlin depois de uma
breve estadia e Paris, onde se inteirou das colagens cubistas assim como suas
realizações no âmbito da escultura. O segundo ponto da linha de raciocínio de
Krauss concerne ao fato de que tanto Duchamp quanto Tatlin, na medida em que
recusavam o compromisso milenar que a arte mantinha com a representação - é
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bem verdade que já abalado pela irrupção, poucos anos antes, do abstracionismo
de Wassily Kandinsky (1866-1944) - e, mais ainda, pelo modo como encampavam
materiais e temas que nada tinham a ver com a “dignidade” dos meios e materiais
clássicos, sentiram na pele a “verdade sobre o caráter burguês” da arte, vale dizer,
revelou-se a eles que, diversamente de autônoma, a arte havia se transformado
numa instituição. (22)
O paralelo entre ambas invenções cessa tão logo se compara as duas produções,
pois enquanto Tatlin, em 1915, emprega os termos “construção” para designar suas
peças feitas de materiais industriais e processos eminentemente mecânicos, e
“tectônica” para enfatizar a conexão entre a investigação formal e os princípios
políticos do Comunismo, o ready-made de Duchamp, na medida em que se
pautava em objetos pré-existentes, retirados de circulação e incorporados em um
outro circuito semântico, leva ao extremo o questionamento da própria noção de
arte, lançando proposições muito distintas de seu colega russo. Resta salientar que a
divergência entre os dois pode ser resumida no fato de que enquanto Duchamp
operava com os limites do sistema de arte, fazendo com que parte de sua obra,
nomeadamente o ramal apoiado no ready-made, tivesse a ironia por tônica, Tatlin,
ao contrário, era um produtor dos mais ativos, profundamente interessado em
pensar a articulação entre arte e indústria.
Concentrando-se na fração irônica da obra de Duchamp, com a qual ele testava
os limites do território da arte, e que com muita justiça é denominada como anti-
obra, comecemos parafraseando Octávio Paz lembrando que “os ready-made são
objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los,
converte em obra de arte”, para então concluir que esse mesmo gesto “dissolve a
noção de obra.” (23) Deslocar um objeto qualquer para o campo da arte significa o
mesmo que questionar a relação e a arbitrariedade que separa um objeto utilitário
de um estético e, por extensão, indagar se uma obra de arte pode ser feita por um
anônimo. Como duchampianamente propõe Sugimoto na epígrafe deste
segmento do texto, “A arte é possível sem intenção artística e pode ser melhor sem
ela”. Valorizando o gesto casual e não o gesto movido pelo eventual interesse
estético de um objeto dado, Duchamp valoriza o conceito, a idéia que preside
toda ação. Indo adiante no raciocínio, Duchamp abriu mão da sua condição de
artista, compreendido como aquele que “cria” obras de arte, em troca do artista
como aquele que se apropria, uma estratégia capaz de provocar o colapso do
meio artístico fundamentado em valores como o caráter artesanal da obra de arte,
cujo primeiro e principal corolário era justamente a figura do autor. Tomando o
objeto feito anonimamente, Duchamp desferia um golpe mortal na noção clássica
de arte.
Quando em 1913 ele apresentou a “Roda de bicicleta”, tecnicamente um ready-
made modificado ou assemblage (24), Duchamp, como já foi dito, converteu-se na
principal voz a se levantar contra a arte retiniana e a noção do artista como um
trabalhador manual, noções que haviam se consolidado no século XIX no processo
de reação à progressiva perda do papel de quase total exclusividade da pintura na
produção de imagens e símbolos. A eficácia da transmissão dos conteúdos éticos,
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religiosos e políticos subjacentes era uma prerrogativa do artista e do sistema de
exibição posto a seu serviço. A proliferação de imagens proveniente da fotografia,
ao passo em que provocou o desalojamento da arte desse lugar fortaleceu, em
contrapartida, o espaço do museu e congêneres, entendidos como espaços onde
as obras de arte, paulatinamente liberadas dos seus compromissos anteriores,
poderiam ser apreciadas pelos seus atributos formais. Ao mesmo tempo em que
consagrou uma produção artística desvinculada do compromisso com grandes
temas, centrada em seus próprios elementos internos, o museu consolidou uma
forma de fruição compatível com ela, ajudando a formação de um novo público e
ensejando o florescimento da atividade crítica. A estabilização desse circuito criou
uma situação sem precedentes: para que um objeto fosse considerado obra de
arte, para que ele pudesse produzir significados legítimos, além de seus atributos
metalinguísticos, ele deveria ter a chancela de um museu ou de um crítico. Vista sob
esse ângulo, o que se entendia como obra de arte estava protegido de qualquer
outra compreensão externa. Estava? Não, aí entra Duchamp “trocando os antigos
critérios estéticos de feitura, material e gosto („essa pintura ou escultura é boa ou
má?‟), para novas questões com potencial ontológico („o que é arte?‟),
epistemológico („como saber se é?‟) e institucional („quem determina?‟).” (25)
A alternativa proposta por Duchamp significou implosão da lógica do sistema
artístico enviando-lhe um objeto outro, um objeto industrial, anônimo,
desfuncionalizado, nem feio nem bonito, um objeto apenas. Ao fazê-lo demonstrou
que a produção de sentido não é algo que se esgota no objeto instituído como
artístico e que, além disso, arte é uma prerrogativa de quem olha, não
necessariamente de quem faz. Deslocado de seu habitat, o objeto doméstico, à
maneira de um trocadilho - jogo que Duchamp tanto gostava, passa a demoníaco;
colocado em outro contexto, desmontada a sintaxe, o objeto converte-se em outro,
de afável e familiar transforma-se em obstáculo, corpo estranho.
Notas
1. Jean Baudrillard – O sistema de objetos. São Paulo: Perspectiva, p. 9.
2. Apud Mark Francis & Hal Foster – Pop: themes and movements. Londres:
Phaidon Press, p. 196.
3. Julio Cortázar – “Preâmbulo às instruções para dar corda ao relógio”; In:
Histórias de cronópios e de famas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972,
p. 20.
4. Eça de Queiroz – As cidades e as serras. Belo Horizonte, Itatiaia, 1962, p. 13.
5. Krzysztof Pomian – “Coleção”, In: Ruggiero Romano (org.) – Enciclopédia
Einaudi – Vol. 1. Memória – História. Porto: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1984, p. 51.
6. André Leroi-Gourhan – Evolução e as técnicas – 1. O homem e a natureza.
Lisboa: Edições 70, 1984, p. 11. Levando adiante seu raciocínio, Leroi-Gourhan
defende que “os Australantropos [o mais antigo entre os homo faber], que
10
têm mais de um milhão de anos, possuíam já a nossa postura vertical e
fabricavam utensílios muito primitivos.”
7. idem, p. 18.
8. idem, p. 12.
9. idem, p. 13.
10. Jacques Le Goff – “Documento/Monumento”, In: Ruggiero Romano, op. cit.,
p. 98.
11. Clarice Lispector – Laços de família. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
12. Meyer Shapiro, As maçãs de Cézanne, In: A arte moderna – Séculos XIX e XX.
Ensaios escolhidos. São Paulo: Edusp, 1996, pp. 59/61.
13. A dimensão metafísica era o pano de fundo de grande parte dessas obras, o
que já era indiciado pela denominação em holandês, stillleven e inglês, still
life, e a pressuposto contido de que mesmo até mesmo uma fruta qualquer
possui uma vida interior silenciosa e somente perceptível para a sensibilidade
capaz de atravessar sua casca. O assunto não tem limites e estende-se por
outras modalidades de arte. Na literatura, por exemplo, Leyla Perrone-Moisés,
em seu livro de ensaios “Flores da escrivaninha” (São Paulo: Cia das Letras,
1990), entre as páginas 44 e 66, debruça-se com sua habitual agudeza sobre
um romance menor de Balzac, “O lírio do vale”, “trezentas páginas que
podemos qualificar de chatas”, demonstrando que entre elas estão, “talvez,
as páginas mais eróticas da Comédia Humana [...] e são descrições de
buquês de flores.” Em seu livro “Objects on a table” (Washington, D.C.:
Counterpoint, 1998, Guy Davenport disserta com desenvoltura e interesse
sobre a presença e o significado dos objetos em literatura e artes visuais.
14. Citado por Calvin Tomkins em “The bride and the bachelors: five masters of the
avant-garde”. Londres: Penguin Books, 1976, pp. 193-194.
15. Robert Rauschenberg – Untitled statement, In: K. Stiles & P. Selz (org.) –
“Theories and documents of contemporary art”. Berkeley: University of
California Press, 1996, p. 321.
16. Shapiro, op. cit., p. 63.
17. Rosalind Krauss, In: H. Foster; R. Krauss; Y. Bois; B. Buchloh – “Art since 1900.”
New York: Thames & Hudson, 2004, pp. 112-117.
18. Citado por Calvin Tomkins em “Duchamp: uma biografia”. São Paulo:
Cosac&Naify, 2004, p. 193.
19. Citado por Cecília Fajardo-Hill em “Objetos afortunados.” Catálogo de
exposição. Miami: CIFO – Cisneros Fontanals Art Foundation, 2007, p. 21.
20. “Desde Courbet acredita-se que a pintura é endereçada à retina; este foi o
erro de todo mundo. O frisson retiniano! Antes a pintura tinha outras funções,
podia ser religiosa, filosófica, moral [...] É absolutamente ridículo. Isso tem que
mudar; não foi sempre assim”. In: Pierre Cabanne – “Marcel Duchamp – O
engenheiro do tempo perdido”. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 73.
21. De acordo com as palavras de Duchamp em sua famosa entrevista à Pierre
Cabanne: “o „Nu descendo a escada‟ foi recusado no Salão dos
Independentes, em 1912. Gleizes está por trás disso; a tela causou um tal
escândalo, que antes da abertura, eles encarregaram meus irmãos de me
pedirem que retirassem o quadro. Então veja... PC -- Este gesto pode ser
incluído entre as razões que o levaram a tomar, mais tarde, uma atitude anti-
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artística? - Isto ajudou a me libertar completamente do passado, no sentido
pessoal da palavra. Eu disse: “Se é assim, não é a questão de entrar num
grupo, não quero contar com ninguém a não ser comigo, sozinho.”, idem, p.
52.
22. Krauss, op. cit., pp. 125 e seguintes.
23. Octavio Paz – Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo:
Perspectiva, 1977, pp. 21/22.
24. assemblage é uma modalidade de construção plástica na qual se enquadra
a colagem, simples ou complexa, não importa, mas que se define por ser
composta de materiais distintos quanto as suas características físicas como
também quanto ao uso que dele se fazia – o pé de uma mesa de madeira, o
papel jornal, o selim e o guidom de ferro de uma bicicleta etc - e, como tais,
portadores de temporalidades, informações e conceitos diversos.
25. Krauss, op. cit., p. 128.