liberdade de expressão e universidade pública

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Page 1: Liberdade de expressão e Universidade Pública

"Revolução" de 1964? Ainda hoje existe intensa disputa sobre a verdade dos fatos que levaram nosso país a um regime

político marcado pelo terror, tortura e injustiça social. Os números oficiais apontam que mais de 70 mil pessoas foram presas e perseguidas e 457 mortas e desaparecidas, das quais muitas sequer tiveram seus restos mortais encontrados. Sendo que, se levarmos em consideração o extermínio indígena nas regiões norte e centro-oeste do Brasil, essa estatística pode chegar a 2 mil assassinados pelo governo militar.

Referir-se ao Golpe de 1964 como "Revolução", além de um insulto às vítimas dos crimes cometidos nesse período, é um equívoco histórico. O desenrolar dos fatos que antecederam o ocorrido entre os dias 31 de março e 1º de abril mostram que a tomada ilegal do poder visava refrear o apoio expressivo que amplos setores da sociedade brasileira prestavam às reformas sociais propostas pelo presidente João Goulart em seu plano de governo.

Intervenção na aula do professor Gualazzi Alguns dias antes do 31 de março, movido pela coincidência da data de sua aula com o o "aniversário de 50 anos do início do regime militar", o professor Gualazzi avisou seus alunos e alunas que prepararia uma exposição especial para contar sobre o significado daquela época em sua vida pessoal. Sabendo da tradição do professor de prestar homenagens à "Revolução de 64", nós do Canto Geral pensamos, então, em preparar uma intervenção em tal aula - e assim o fizemos.

O objetivo da intervenção feita foi sensibilizar as e os estudantes e chamar a atenção para as atrocidades cometidas no regime defendido por Gualazzi. Nesse sentido, preparamos desde elementos visuais, musicais e textuais até uma simulação teatral de uma cena de tortura. Além disso, convidamos Antônio Carlos Fon, ex-militante de resistência à ditadura que foi preso e torturado para fazer a contraposição ao discurso do professor.

Essa intervenção se inseriu no conjunto de manifestações artísticas que o grupo realizou na Faculdade no contexto de aniversário do Golpe - como a ressignificação de espaços marcantes da São Francisco que tiveram relação com o período lembrado e a renomeação das salas do térreo em homenagem a mortos e desaparecidos durante a ditadura - e buscou evidenciar que a atitude do professor representou uma afronta ao movimento de busca pela verdade e memória do que ocorreu na ditadura. Vale notar que é ainda mais grave que ele sustente tal discurso fazendo uso de sua posição acadêmica em uma Universidade Pública.

E a liberdade de cátedra: como fica? Precede ao debate sobre liberdade de expressão, ultimamente bastante invocado para criticar a intervenção, a discussão sobre a liberdade de cátedra. A liberdade de cátedra é reconhecidamente uma conquista da Constituição de 1988 por assegurar a defesa ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas. No entanto, é necessário lembrar que ela não pode ser objeto de abuso de poder.

A promoção, em aula, de discursos que desrespeitam a liberdade de consciência dos estudantes e sequer apresentam correlação com a matéria ensinada, tal como aquele proferido pelo professor Eduardo Gualazzi, ao expor suas memórias pessoais nos idos de 64 a 85, é uma postura extremamente autoritária. Cabe aqui ressaltar que minutos mais cedo à intervenção organizada pelo Coletivo Canto Geral, o professor contava para a sala como se orgulhava de ter humilhado quatro alunos que discordaram da sua posição ideológica durante uma aula.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E UNIVERSIDADE PÚBLICA

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Dessa forma, é possível reconhecer que, naquele momento, o professor passara dos limites de sua liberdade de cátedra e fazia, ali, uso do espaço e de sua posição enquanto professor para um ato político. Mais além, utilizar a posição de professor para proferir tal discurso é agravado quando se leva em conta o modelo de ensino adotado pela faculdade, com uma estrutura hierarquizada e com pouco espaço para que os alunos efetivamente coloquem suas ideias para o conjunto da classe.

Um último ponto que vale questionar aqui foi o uso do nome e símbolo da Faculdade no documento entregue aos alunos pelo professor, e que continha o discurso que preparara para aquela aula. Ao fazer isso, mais uma vez o professor foi além da liberdade a ele garantida e vinculou toda a instituição a seu discurso de homenagem ao regime civil-militar.

A faculdade, a ditadura e a Comissão da Verdade da São Francisco A Faculdade de Direito do Largo São Francisco foi reconhecido palco de resistência à Ditadura.

Ocupada pelo movimento estudantil em 1968 em resposta às imposições do AI-5, foi em seu pátio que se deu a famosa leitura da “Carta aos Brasileiros”, importante documento de enfrentamento do regime de exceção. Por outro lado, também abrigou diversos atores políticos responsáveis pela elaboração e justificação das ações militares, especialmente a partir de um ponto de vista jurídico.

No entanto, não é apenas pelo número de mortes e desaparecimentos que se mede a violência e o autoritarismo de uma ditadura. É também fundamental identificarmos as reminiscências deixadas por ela nas instituições do Estado de Direito. Nesse sentido, embora a Constituição de 1988 configure um rompimento com o regime militar, grande parte de nossa legislação infra-constitucional ainda vigente surgiu nesse período. Um exemplo claro é o instituto da prisão para averiguação, amplamente aplicado desde as chamadas Jornadas de Junho, foi prática investigatória largamente utilizada pela Polícia Judiciária durante a ditadura civil-militar. Assim, a instauração de Comissões da Verdade não apenas cumpre o papel de apurar as atrocidades cometidas durante o Estado de Exceção e identificar os agentes e financiadores daquelas políticas que se encontram em ação nos dias atuais. Em 2012, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco organizou sua própria Comissão da Verdade, que no entanto foi abandonada pelos docentes, tornando-se inativa. Acreditamos que a atuação dessa Comissão poderia refrear comportamentos como os do professor Eduardo Gualazzi, mas não nos calaremos apenas porque este espaço nos é negado.

“Podem me prender

Podem me bater

Podem até deixar-me sem comer

Que eu não mudo de opinião”

CANTO GERAL

“Hoje você é quem manda

Falou, tá falado

Não tem discussão

A minha gente hoje anda

Falando de lado

Olhando pro chão, viu

(...)

Apesar de você

Amanhã há de ser

Outro dia”