pedro madeira, liberdade de expressão

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Liberdade de expressão Pedro Madeira King's College London A recente publicação de várias caricaturas sobre o profeta Maomé numa revista dinamarquesa tem suscitado várias reações diferentes, sendo frequentemente posta a questão de quais devem ser os limites da liberdade de expressão. O princípio do dano O problema de saber quais os limites da liberdade de expressão faz parte de um problema mais amplo: o problema de saber quais os limites da liberdade civil. É importante frisar que este problema cai no âmbito da filosofia política, e não da metafísica. O problema metafísico da liberdade é, essencialmente, este: será que a existência das leis da natureza torna impossível o livre-arbítrio — a livre capacidade de fazer escolhas e tomar decisões? Não é este o problema em que estamos, de momento, interessados. O problema em que estamos, de momento, interessados é: em que casos pode o estado legitimamente interferir na liberdade dos cidadãos? 1

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Page 1: Pedro Madeira, liberdade de expressão

Liberdade de expressãoPedro MadeiraKing's College London

A recente publicação de várias caricaturas sobre o profeta

Maomé numa revista dinamarquesa tem suscitado várias

reações diferentes, sendo frequentemente posta a questão de

quais devem ser os limites da liberdade de expressão.

O princípio do dano

O problema de saber quais os limites da liberdade de

expressão faz parte de um problema mais amplo: o problema

de saber quais os limites da liberdade civil. É importante frisar

que este problema cai no âmbito da filosofia política, e não da

metafísica. O problema metafísico da liberdade é,

essencialmente, este: será que a existência das leis da

natureza torna impossível o livre-arbítrio — a livre capacidade

de fazer escolhas e tomar decisões? Não é este o problema em

que estamos, de momento, interessados. O problema em que

estamos, de momento, interessados é: em que casos pode o

estado legitimamente interferir na liberdade dos cidadãos?

Acho que o ponto natural de partida para tentar responder a

este problema é a defesa de Mill em Sobre a

Liberdade daquele que veio a ser conhecido como o "princípio

do dano". (Mais para a frente explicarei por que razão acho que

é o ponto de partida natural para a discussão. Por agora estou

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só preocupado em explicar o que é.) Mill formula-o do seguinte

modo, no primeiro capítulo de Sobre a Liberdade:

"É o princípio de que o único fim para o qual as pessoas estão justificadas, individual ou coletivamente, em interferir na liberdade de ação de outrem, é a autoproteção. É o princípio de que o único fim para o qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade deste, é o de prevenir um dano a outros."

A ideia do princípio do dano é, portanto, que só é permissível

limitar a liberdade de alguém para garantir a segurança de

outra pessoa. O princípio do dano, tal como está formulado,

tem vários problemas: um dos mais sérios é a sua recusa

(quase) absoluta de leis paternalistas: leis que visam impedir

que a pessoa faça mal a si própria. Se o princípio do dano

fosse integralmente respeitado, então não seria possível

obrigar as pessoas a usar cinto de segurança. Este parece um

exemplo bastante inofensivo de uma lei paternalista. Mill aceita,

de facto, a implementação de algumas leis que poderiam ser

consideradas paternalistas (Mill acharia, por exemplo, que seria

legítimo impedirmos uma pessoa de tomar uma bebida

envenenada caso a pessoa não soubesse que estava

envenenada) — mas isso não interessa agora. Falo sobre isso

mais detalhadamente na minha introdução a Sobre a

Liberdade (Edições 70, no prelo).

Ponhamos de parte esse problema e concentremo-nos no

seguinte: se concordamos com o princípio do dano, então qual

deve ser a nossa posição em relação à liberdade de

expressão? Lembremo-nos de que o princípio do dano implica,

em termos práticos, que o ónus da prova está sempre do lado

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Page 3: Pedro Madeira, liberdade de expressão

de quem quer proibir, e não do lado de quem quer permitir. Mill

argumenta que a liberdade de expressão deve ser quase total.

A única excepção mencionada por Mill (no princípio do terceiro

capítulo) é o caso da pessoa que está numa manifestação em

que os ânimos estão exaltados e grita certas palavras de

ordem que constituem uma incitação à violência. Mill acha que

não é permitida liberdade de expressão para dizer tais palavras

de ordem em tais circunstâncias. É importante frisar que

as mesmas palavras de ordem, ditas noutras circunstâncias,

seriam permitidas. Parafraseando Mill: deve ser permitido

escrever um artigo para o jornal a defender que a propriedade

privada é um roubo; mas não deve ser permitido dizê-lo à porta

da casa de um latifundiário perante uma turba exaltada.

O princípio do dano e as caricaturas de Maomé

Será que o princípio do dano é ou não favorável à publicação

de caricaturas como as que foram recentemente publicadas

sobre Maomé? Como já foi dito, o ónus da prova está sempre

do lado de quem quer proibir, e não do lado de quem quer

permitir; por isso, o ónus da prova está do lado de quem quer

proibir a publicação do tipo de caricaturas em questão. Só vejo

três tipos de argumentos que alguém que aceite o princípio do

dano mas se oponha à publicação pode usar: o argumento de

que a publicação das caricaturas constitui um dano; o

argumento de que a publicação das caricaturas constitui uma

incitação à violência; e o argumento de que a própria revista

dinamarquesa, antevendo as graves consequências da

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Page 4: Pedro Madeira, liberdade de expressão

publicação das caricaturas, se devia ter coibido de as publicar,

por um acto de autocensura. Olhemos para estes três

argumentos à vez.

Primeiro argumento contra a publicação das caricaturas

De acordo com o primeiro argumento contra a publicação das

caricaturas, a própria publicação de caricaturas do profeta

Maomé constitui um dano para todos os muçulmanos, pelo que

não deviam ter sido publicadas. Este é um mau argumento pela

seguinte razão: coloca demasiado baixa a fasquia do tipo de

comportamentos que podem ser considerados danos. Se

aceitássemos que a publicação das caricaturas constituía um

dano, então várias coisas que intuitivamente não consideramos

serem danos seriam considerados danos. Suponhamos que eu

professo a religião X, que defende que o simples facto de uma

qualquer pessoa dizer em público que não acredita no nosso

deus é ofensivo para nós, e constitui um dano. É evidente que

tal coisa nunca poderia constituir um dano — dizermos que

discordamos de uma pessoa nunca poderia, por si só, ser

considerado um dano. No entanto, se aceitássemos que a

publicação das caricaturas constituía um dano a todos os

muçulmanos, então seria difícil não considerar também um

dano a todos os que professassem a religião X o simples facto

de se dizer em público que não se acreditava no deus de X.

Logo, de modo a não colocarmos demasiado baixa a fasquia

do tipo de comportamentos que podem ser considerados

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Page 5: Pedro Madeira, liberdade de expressão

danos, devemos considerar que a publicação das caricaturas

de Maomé não constituiu um dano.

(Um aparte: sempre que apresento este argumento, muitas

pessoas reclamam que a analogia entre o islamismo e a minha

religião fictícia não colhe porque a minha religião é fictícia e o

islamismo é uma religião real. Mas isso não tem qualquer

importância para o argumento. O exemplo da religião fictícia

serve apenas para testarmos as nossas intuições sobre o que

deve ou não ser considerado um dano. Para além do mais, não

parece muito difícil acreditar que uma tal religião tenha existido.

Quando penso, por exemplo, na Inquisição Espanhola, não me

custa a acreditar que muitas pessoas reais tenham sentido que

a simples existência de pessoas com crenças diferentes das

suas constituísse um dano à sua fé. Por isso, o meu exemplo

talvez não seja tão rebuscado como possa à primeira vista

parecer.)

Há uma lição muito importante a extrair daqui: o facto de um

comportamento ser de mau gosto não significa que constitua

um dano. Para ilustrar melhor este ponto, gostaria de

apresentar um exemplo verídico. Há um ano ou dois houve na

Inglaterra alguma consternação pública porque um conhecido

cómico de stand-up fez uma piada de mau gosto sobre um

inglês que havia sido raptado por terroristas no Iraque. Todos

os dias pareciam surgir nos meios de comunicação

informações contraditórias sobre a dita vítima: uns dias dizia-se

que estava vivo, outros dias dizia-se que estava morto. O

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Page 6: Pedro Madeira, liberdade de expressão

cómico disse então qualquer coisa como: "Não acham que eles

[os terroristas] deviam simplesmente resolver o assunto de uma

vez por todas?" Penso que a maior parte das pessoas

concordará que se tratou de uma piada de muito mau gosto.

Mas devia o cómico em questão ser proibido de dizer essa

piada? Não.

É importante ter em mente que a liberdade de expressão é um

problema político, e não ético. Perguntar quais são os limites

da liberdade de expressão é perguntar em que casos pode o

estado legitimamente interferir na liberdade dos cidadãos. Não

é perguntar em que casos é imoral dizer algo em público. O

comportamento do cómico de stand-up foi imoral, mas não nos

passaria pela cabeça dizer que devíamos proibi-lo de se

comportar assim. É bom que nem todas as coisas imorais

sejam proibidas por lei. Não nos encontrarmos com um amigo à

hora marcada porque nos apeteceu ficar em casa a ver

televisão e não nos demos ao trabalho de desmarcar o

encontro é uma atitude condenável — mas não deve ser

punida por lei.

Em conclusão: a publicação das caricaturas de Maomé não

constituiu um dano aos muçulmanos.

Segundo argumento contra a publicação das caricaturas

Passemos ao segundo argumento contra a publicação das

caricaturas. De acordo com este argumento,

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Page 7: Pedro Madeira, liberdade de expressão

independentemente de a publicação das caricaturas ter ou não

constituído um dano aos muçulmanos, é de qualquer modo

verdade que constituiu uma incitação à violência, pelo que não

deviam ter sido publicadas. Este é um mau argumento

essencialmente pela mesma razão pela qual o primeiro

argumento é mau: coloca demasiado baixa a fasquia do tipo de

comportamentos que podem ser considerados incitações ao

dano. Tomemos o caso dos terroristas americanos que há

alguns anos puseram bombas em clínicas que realizavam

abortos. Suponhamos que um jornal qualquer publicava

caricaturas sobre esses bombistas, e que os bombistas

retaliavam colocando bombas nesses jornais. Depois de isso

acontecer, faria sentido dizer que quaisquer novas publicações

de caricaturas sobre os bombistas constituiriam uma incitação

à violência? É evidente que não. Publicar novas caricaturas

depois de outros jornais terem sido alvo de ataques talvez

fosse algo arriscado para a segurança das pessoas a trabalhar

no jornal, mas não constituiria, certamente, uma incitação à

violência. No entanto, se considerássemos que a publicação

das caricaturas de Maomé constituía uma incitação à violência,

então também teríamos de considerar que tais caricaturas

sobre os bombistas também constituiriam uma incitação à

violência. Logo, a publicação das caricaturas de Maomé não

constituiu uma incitação à violência.

É natural que surja agora uma dúvida ao leitor: parece

simplesmente falso que a publicação das caricaturas — tanto

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Page 8: Pedro Madeira, liberdade de expressão

no caso real como no caso imaginário — não constitua uma

incitação à violência. É importante esclarecer esta dúvida para

se entender cabalmente as duas objecções apresentadas aos

possíveis argumentos contra a publicação das caricaturas. É

importante ter isto em mente: os termos "dano" e "incitação à

violência" têm sido usados ao longo deste artigo como termos

normativos, e não como termos descritivos. O que isso significa

é, essencialmente, o seguinte: não basta que um

comportamento constitua um dano ou uma incitação à

violência, no sentido comum — descritivo — de "dano" e

"incitação à violência", para que seja um dano ou uma incitação

à violência no sentido normativo dos termos. No sentido

comum do termo "dano", os presidentes dos clubes de futebol

portugueses passam a vida a provocar dano uns aos outros —

mas tais não são danos no sentido normativo do termo, e não

devem ser proibidas. Do mesmo modo, gritar incentivos a um

pugilista durante um combate de boxe constitui uma incitação à

violência no sentido comum de "incitação à violência" — mas

não no sentido normativo, e não deve ser proibido. Neste

artigo, pois, "dano" e "incitação à violência" significam, à falta

de termos melhores, dano ilegítimo e incitação ilegítima à

violência.

Podemos, então, reformular as duas conclusões até agora

alcançadas: a publicação das caricaturas de Maomé não

constituiu um dano ilegítimo aos muçulmanos; e a publicação

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das caricaturas de Maomé não constituiu uma incitação

ilegítima à violência.

Terceiro argumento contra a publicação das caricaturas

De acordo com o terceiro argumento contra a publicação das

caricaturas, não é tanto o caso que o estado devesse proibir a

publicação — as próprias pessoas que publicaram as

caricaturas deviam ter tido o bom senso de não as publicar. Ou

seja, este argumento não defende a não publicação das

caricaturas por proibição superior; mas sim que, sabendo as

pessoas da revista que a publicação das caricaturas traria

graves problemas, elas próprias deviam ter-se coibido de as

publicar por um acto de auto-censura. Suspeito que muitas das

pessoas que se opuseram à publicação das caricaturas se

estariam a basear neste argumento, e não nos outros dois que

já discuti. É por isso fundamental explicar este argumento em

pormenor.

Antes de mais, é importante perceber a diferença subtil entre

este argumento e o segundo argumento. O segundo argumento

procura mostrar que a publicação das caricaturas foi

moralmente equivalente ao caso da pessoa que grita palavras

de ordem incendiárias em frente da casa de um latifundiário

perante uma turba exaltada. Este terceiro argumento não

procura estabelecer uma conclusão tão forte. Só procura

estabelecer o seguinte: independentemente de publicar as

caricaturas ter ou não sido moralmente equivalente a gritar

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Page 10: Pedro Madeira, liberdade de expressão

palavras de ordem incendiárias perante uma turba exaltada, é

de qualquer modo verdade que, sabendo as pessoas da revista

que a publicação das caricaturas traria graves problemas, elas

próprias deviam ter-se coibido de as publicar por um ato de

autocensura. Penso que este terceiro argumento também não

funciona; passo a explicar porquê.

Li recentemente que a Opus Dei defende que certas partes do

novo filme de Ron Howard, O código Da Vinci, baseado no livro

com o mesmo nome de Dan Brown, devem ser cortadas,

porque podem dar aos espectadores uma ideia errada da Opus

Dei. Urge agora perguntar às mesmas pessoas que defendem

que a revista dinamarquesa se devia ter autocensurado e não

publicado as caricaturas: deverá Ron Howard autocensurar-se

também e cortar as partes do filme com as quais a Opus Dei

não está satisfeita? Vejamos as duas opções à vez.

Suponhamos que dizem que sim. Isso constituiria,

efetivamente, uma redução ao absurdo da posição de que a

revista dinamarquesa se devia ter coibido de publicar as

caricaturas por um ato de autocensura. Ou seja: não faz

sentido dizer que essas partes devem, por um ato de

autocensura, ser retiradas do filme só porque não são do

agrado da Opus Dei (porque isso colocar-nos-ia numa encosta

escorregadia em direção a uma sociedade onde nada que

tivesse a possibilidade remota de ofender alguém devesse

passar o teste da autocensura e ser publicado); logo, se ao

defendermos que a revista dinarmaquesa se devia ter coibido

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Page 11: Pedro Madeira, liberdade de expressão

de publicar as caricaturas por um ato de autocensura estamos

comprometidos com a posição de que essas partes que não

agradam à Opus Dei devem, por um ato de autocensura, ser

retiradas do filme, então devemos simplesmente rejeitar a

posição de que a revista dinarmaquesa se devia ter coibido de

publicar as caricaturas por um ato de autocensura. Podemos

agora começar a vislumbrar que tipo de sociedade é que seria

gerada por uma cultura de autocensura supostamente baseada

no bom senso e no respeito mútuo — e é evidente que não

parece sítio em que a maior parte de nós quisesse viver.

Suponhamos agora que as pessoas que defendem que a

revista dinamarquesa se devia ter coibido de publicar as

caricaturas por um ato de autocensura dizem que Ron

Howard não devia retirar, por um ato de autocensura, essas

partes que não agradam à Opus Dei. Nesse caso, é de

perguntar: será que só nos devemos autocensurar e não

publicar uma opinião ou uma caricatura quando haja o risco de

os potenciais ofendidos retaliarem violentamente? Esta seria

uma atitude digna dos mais fervorosos seguidores

da Realpolitik — uma doutrina cínica da vida política (que no

século XX teve talvez em Henry Kissinger o seu expoente

máximo) de acordo com a qual os estados devem tomar

decisões unicamente com base no seu próprio interesse, e não

em ideais como a justiça e a fraternidade.

Eu consideraria que o simples facto de a posição de que a

auto-censura é justificada apenas quando haja a forte

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Page 12: Pedro Madeira, liberdade de expressão

possibilidade de os potenciais ofendidos retaliarem

violentamente se basear unicamente em razões puramente

egoístas, e não em princípios morais, já seria suficiente para

minar essa posição. No entanto, dado o grande número de

adeptos (assumidos ou envergonhados) da Realpolitik, é

provável que esta minha posição receba um sorriso

condescendente. Por isso, vale também a pena notar que

fomentar a autocensura apenas quando haja a forte

possibilidade de os potenciais ofendidos retaliarem

violentamente não é sequer uma boa ideia em termos egoístas!

Isto por uma razão simples: coibirmo-nos sistematicamente de

criticar pessoas de quem discordamos, para não provocarmos

a sua ira, é algo que cheira, na melhor das hipóteses, a

hipocrisia (dado que os muçulmanos que ficaram ofendidos

com as caricaturas obviamente já sabiam que algumas das

ideias implícitas nas mesmas estavam amplamente difundidas

na Europa); e cheira, na pior das hipóteses, a um paternalismo

altamente ofensivo (porque pode fazer que esses mesmos

muçulmanos sintam que os ocidentais acham que eles são

bárbaros com os quais não vale a pena discutir). E comprar a

paz com o forte risco de incorrer em suspeitas de hipocrisia e

paternalismo é estar a comprar uma paz podre.

É interessante observar que, neste aspecto, os estados (e, de

um modo geral, grandes grupos de pessoas) não parecem

comportar-se de modo muito diferente de pessoas individuais.

É sabido que, quando duas pessoas estão irritadas uma com a

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Page 13: Pedro Madeira, liberdade de expressão

outra, o mais pequeno incidente pode levar a grandes

discussões. Mas a solução para o problema não é

simplesmente evitar a todo o custo a discussão; isso

provavelmente só aumentaria a tensão e eventualmente faria

que qualquer discussão que viesse a rebentar causasse

inevitavelmente uma rutura irreversível. A mesma coisa se

passa, creio, no caso dos estados (e, de um modo geral,

grandes grupos de pessoas): evitar a todo o custo querelas

(comparativamente) pequenas como esta das caricaturas, e

causar assim a suspeita de hipocrisia e de paternalismo, que

por sua vez levam a uma subida da tensão, poderá talvez servir

para assegurar a paz a curto prazo, mas também aumenta

fortemente a possibilidade de que um dia venha eventualmente

a ocorrer uma rutura irreversível.

Gostaria ainda de fazer outra simples constatação empírica. A

verdade é esta: de um modo geral, é mais fácil termos respeito

por pessoas acerca das quais fazemos piadas do que por

pessoas em relação às quais estamos sempre de pé atrás para

termos o cuidado de não as ofender. Não percebo exatamente

por que razão são as coisas assim. O meu palpite é este:

fazermos piadas sobre as pessoas ajuda-nos a sentir empatia

por elas; ajuda-nos a sentir que são seres imperfeitos como

nós, e não seres estranhos de outra galáxia. Assim, não posso

deixar de aqui mencionar a resposta absolutamente exemplar

dada por Miguel Góis no blog do Gato Fedorento a dois leitores

que o criticaram por ter feito uma piada a gozar com a doença

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Page 14: Pedro Madeira, liberdade de expressão

de Stephen Hawking (veja-se a piada original no arquivo de 28

de Julho de 2004 e a resposta aos leitores em 12 de Agosto do

mesmo ano em http://gatofedorento.blogspot.com/). Diz ele que

evitar a todo o custo fazer piadas sobre deficientes constitui

"uma perversa forma de os inferiorizar". E dá mais abaixo, na

mesma resposta, um exemplo revelador de como toda essa

preocupação em fazer humor politicamente correto se acaba

por revelar uma forma encapotada de paternalismo: em várias

séries e filmes americanos, os negros costumavam ser

retratados como pessoas simpáticas "para além do

humanamente possível". Isto faz-me exatamente pensar na

atitude de alguns intelectuais que procuram a todo o custo

evitar dizer o que quer que seja de negativo em relação aos

muçulmanos — supostamente para mostrar respeito por eles, e

não os hostilizar. Tal como no caso referido por Miguel Góis, a

solução não é essa. Góis menciona então o caso exemplar da

série Tudo em família, que incluía a personagem de Lionel

Jefferson: "Mr. Jefferson é a personagem negra mais antipática

e arrogante que jamais surgiu no pequeno écran; Lionel

parodia justamente a figura do negro simpatiquíssimo e

submisso". Penso que a solução a adotar em relação ao

islamismo deve ser semelhante: não devemos ter medo de

brincar com o islamismo; a longo prazo, brincar com o

islamismo ajudará aqueles de entre nós que não são

muçulmanos a sentir empatia por eles, e a encará-los como

seres imperfeitos como todos os outros, e não como seres

estranhos de outra galáxia.

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Page 15: Pedro Madeira, liberdade de expressão

Para além da importância da liberdade de expressão para o

estabelecimento de relações fraternas entre pessoas de

diferentes proveniências, crenças e meios sociais, que até aqui

realcei, é preciso também não esquecer que, como Mill

defende no segundo capítulo de Sobre a Liberdade, um dos

grandes benefícios da liberdade de expressão é o facto de que

constitui um importante motor para a busca da verdade. Pois se

a opinião que se procura censurar for verdadeira, então

censurá-la priva-nos de descobrir a verdade; e se a opinião

censurada for falsa, então censurá-la priva-nos de

conseguirmos fornecer uma mais robusta defesa da nossa

posição. Parafraseando Mill, quando as opiniões não são

questionadas e confrontadas, tornam-se em opiniões "mortas"

— coisas que repetimos sem saber muito bem porquê. Por

isso, censurar uma opinião é sempre mau para a preservação

da saúde da democracia — quer essa opinião seja verdadeira,

ou não.

Em suma: a censura é sempre uma coisa má, quer seja

imposta superiormente, ou autoimposta; quer seja uma

censura de jure — imposta por lei — ou uma censura

meramente de facto — não imposta por lei, mas inculcada na

mente das pessoas. Como já disse, fazer por instalar um clima

em que não se publiquem caricaturas ou opiniões só para

evitar o risco de ofender outras pessoas nada augura de bom.

O princípio do dano não permite proibir a publicação das caricaturas de Maomé

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Page 16: Pedro Madeira, liberdade de expressão

Como já foi dito, o ónus da prova está sempre do lado de que

quem quer proibir, e não do lado de quem quer permitir. Por

isso, o ónus da prova está do lado de quem quer proibir a

publicação de caricaturas como as que foram recentemente

publicadas. Foram analisados os três principais argumentos

conta a publicação das caricaturas. Mostrou-se que todos os

argumentos são maus. Por isso, a conclusão geral a retirar

deste artigo é que quem aceite o princípio do dano, tal como

está formulado, deverá também aceitar que o estado não deve

proibir a publicação de caricaturas como as que foram

recentemente publicadas.

O diretor da revista dinamarquesa que publicou as caricaturas

disse que perguntarem-lhe se se arrependia de ter publicado

as caricaturas era como perguntarem a uma vítima de violação

se se arrependia de ter ido com uma minissaia para a discoteca

na sexta à noite. Acho que esta resposta acerta em cheio no

alvo: tanto a revista como a hipotética vítima de violação

fizeram algo que tinham todo o direito a fazer, mas sofreram

por isso.

Princípio do dano: o ponto de partida natural

Tal como prometido no início do artigo, passo agora a dizer por

que razão penso que o princípio do dano constitui o ponto de

partida natural para a discussão dos limites da liberdade civil.

Penso isso porque, por um lado, um princípio mais liberal, que

procure limitar ainda mais os casos de intervenção legítima do

estado na liberdade dos cidadãos, corre o perigo de nos

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Page 17: Pedro Madeira, liberdade de expressão

empurrar para o anarquismo; e um princípio menos liberal terá

de ser teoricamente muito complicado para conseguir

responder às objeções que nos chamam a atenção para

exemplos aparentemente positivos de paternalismo, como a lei

que nos obriga a usar cinto de segurança (o que não quer dizer

que um princípio menos liberal não seja afinal verdadeiro, claro:

a verdade não costuma ser simples).

Devo repetir que não acho que o princípio do dano seja o fim

da discussão — acho que é o princípio da discussão. Talvez

uma analogia ajude a entender o que quero dizer. Quando se

ensina lógica aos alunos, começa-se por ensinar-lhes lógica

clássica, e não lógicas intuicionistas ou para consistentes.

Porquê? Bom, porque tanto as lógicas intuicionistas como as

para consistentes se afastam, de algum modo, da lógica

clássica: as lógicas intuicionistas rejeitam a lei da bivalência; as

lógicas para consistentes rejeitam a lei da não-contradição.

Para que os alunos entendam bem as lógicas intuicionistas e

para consistentes — e venham a conseguir formar uma posição

informada sobre elas, positiva ou negativa — têm primeiro de

dominar a lógica clássica. Como dizia o meu professor de

lógica: primeiro aprende a andar de bicicleta como deve ser;

depois, se quiseres, já podes guiar sem mãos.

Penso que a mesma coisa se passa com o princípio do dano.

Primeiro devemos todos ter a humildade de tentar entendê-lo e

perceber quais as suas vantagens e desvantagens. Depois, se

quisermos, podemos então abandonar o princípio do dano e

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Page 18: Pedro Madeira, liberdade de expressão

tentar defender uma posição que penda mais para o

anarquismo, ou para o paternalismo.

Conclusão

Num interessante artigo que escreveu recentemente para

o Der Spiegel, Ibn Warraq começou por citar John Stuart Mill.

Passo a transcrever a citação:

"É estranho que os homens admitam a validade dos argumentos a favor da livre discussão, mas objetem a que sejam "levados ao extremo"; não vendo que a menos que as razões sejam boas para um caso extremo, não são boas para qualquer caso."

Aceitar os argumentos até aqui apresentados e mesmo assim

estar reticente em relação à legitimidade da publicação das

caricaturas seria estar a cometer o erro para que Mill alerta.

Seria como se um proprietário de escravos aceitasse os nossos

argumentos a favor da posição de que é errado bater nos

escravos, e depois logo de seguida nos perguntasse se não

fazia mal bater-lhes só às quintas-feiras.

Pedro Madeira

[email protected]

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