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LEONARDO ZEHURI TOVAR A INFLUÊNCIA DAS DECISÕES DE CONSTITUCIONALIDADE SOBRE A COISA JULGADA Vitória 2006

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  • LEONARDO ZEHURI TOVAR

    A INFLUÊNCIA DAS DECISÕES DE CONSTITUCIONALIDADE SOBRE A COISA

    JULGADA

    Vitória 2006

  • LEONARDO ZEHURI TOVAR

    A INFLUÊNCIA DAS DECISÕES DE CONSTITUCIONALIDADE SOBRE A COISA

    JULGADA

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito das Faculdades Integradas de Vitória – FDV, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito. Orientador: Prof.º William Couto Gonçalves

    Vitória 2006

  • LEONARDO ZEHURI TOVAR A INFLUÊNCIA DAS DECISÕES DE CONSTITUCIONALIDADE SOBRE A COISA

    JULGADA

    BANCA EXAMINADORA:

    ________________________________________

    Prof.º Dr.º William Couto Gonçalves Orientador

    ________________________________________ Prof.º Dr.º

    ________________________________________ Prof.º Dr.º Vitória, ___de__________ de 2006.

  • A Deus, à minha família, nas pessoas da minha avó, mãe, irmã e, em especial, à minha amada esposa “Mari” pelo apoio incondicional.

  • RESUMO

    Trata o presente estudo da influência das decisões exaradas em sede de controle de constitucionalidade de leis sobre a coisa julgada individual. São abordados temas constitucionais e processuais, dentre os quais pode-se citar o papel dos princípios constitucionais no ordenamento, alguns princípios específicos de direito processual constitucional, etc. Aborda-se ainda temas referentes à segurança jurídica e à coisa julgada. É feita uma sistematização acerca dos efeitos que advém dos decisórios exarados em sede de controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado. Traça-se um pequeno esboço da doutrina que sustenta a relativização da coisa julgada. Encerrando-se a exposição com a influência das decisões de constitucionalidade sobre a esta.

  • ABSTRACT

    The present study lies in the influence of the granted decisions based upon the constitutional laws about the individual “res judicata”. Procedural and constitutional themes are described, among which the role of the constitutional principles in the legal system and specific principles of the constitutional civil procedural law. Topics referring to the jural safety and to the “res judicata” are also highlighted in this paper. A systematization attempt is done in relation to the effects coming from the granted decisions within the constitutional control. There is an outline of the doctrine which supports the relativity of the “res judicata”. As a result, the “res judicata” is detailed under the constitutional decisions.

  • INTRODUÇÃO

    O sistema jurídico brasileiro se caracteriza por sua base estar fincada em regras e

    princípios analiticamente dispostos na Constituição da República. Tal especialidade

    soma-se ao duplo modelo de controle de constitucionalidade encontrado no Brasil, que

    transforma as lides, notadamente as de direito público, em uma questão que em último

    grau é definida pelo Supremo Tribunal Federal.

    Importante se mostra a definição de parâmetros definindo a real eventual influência das

    decisões pelo Excelso Pretório em controle de constitucionalidade (difuso ou

    concentrado) sobre as demandas que já estão agasalhas pela coisa julgada. Trata-se

    de questão de relevo, que merece a fixação de premissas de desenvolvimento.

    Segue-se o trabalho então, apontando, em primeiro plano, o papel dos princípios

    constitucionais no ordenamento. O assunto é abordado devido ao fato de que, tanto o

    instituto da coisa julgada, quanto o tema do controle de constitucionalidade de leis são

    recheados de problemáticas advindas de uma adequada interpretação constitucional,

    que por vezes exige do intérprete um trabalho de sopesamento de princípios.

    Após, são apontados alguns princípios processuais constitucionais relevantes, como

    meio de tentar demonstrar que as mudanças sociais importam em uma mudança de

    paradigma da sociedade, que passa a se preocupar mais com a justiça das decisões do

    que puramente com a segurança jurídica. Busca-se neste tópico ratificar tais

    informações com o argumento de que em diversos pontos a Constituição demonstra

    sua preocupação com um processo plural e social, que sirva de instrumento para o

    exercício da cidadania.

    Logo depois, ainda são acostadas, questões concernentes a outros princípios

    constitucionais reputados relevantes, estes não específicos de direito processual, que

    podem conduzir o leitor a uma melhor compreensão do tema central, que ao final será

    explorado.

  • Discute-se em seguida, com base nos princípios elencados, em especial o da

    supremacia da constitucional, o problema da natureza jurídica da sanção de

    inconstitucionalidade, de forma a firmar entendimento pela nulidade, anulabilidade ou

    inexistência do ato inconstitucional.

    Ao depois, são traçados pontos relativos ao controle de constitucionalidade no Brasil,

    sem, contudo, esgotar o tema, já que o mesmo serve para esta pesquisa apenas como

    demonstração da importância que ele possui para a manutenção da ordem

    democrática, dentre outros aspectos relativos a seus efeitos. Defini-se ainda, também

    como pano de fundo, o que é coisa julgada, sua importância, sua intangibilidade,

    abordando-se inclusive a doutrina que defende sua relativização.

    Por opção, o trabalho não adentra no âmbito de remédios processuais que atacariam

    eventual coisa julgada individual, bem como temas relacionados com o prazo

    processual para tal manejo, etc. Visa o trabalho observar a influência, que as posições

    do STF trazem à coisa julgada, fazendo um paralelo comparativo entre o princípio da

    segurança e certeza das relações jurídicas, bem como com a supremacia da

    Constituição.

  • 2 O PAPEL DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

    2.1 JUSTIFICATIVA E IMPORTÂNCIA DE ESTUDO

    Como salientado, passar-se-á a abordar no presente tópico a primeira relevante diretriz

    para o enfrentamento da questão de fundo versada na presente pesquisa. Ora, é de

    curial sabença que a discussão envolvendo o tema desta singela passagem topográfica

    ultrapassa limites seculares, já tendo instigado teóricos que marcaram seus nomes na

    seara jurídica.

    Porém, a antiguidade da discussão não lhe retira a importância, muito ao contrário, lhe

    atribui o destaque necessário e até mesmo justifica sua menção. E isso porque, o

    estudo dos princípios, por ser relevante a diversas disciplinas, cuja teorização importa

    muito ao cientista jurídico, tais como a Teoria Geral do Direito, a Filosofia do Direito e

    até mesmo a Teoria Constitucional Contemporânea, apóia todas as conclusões que

    venham a ser firmadas no decorrer do presente texto, até pela razão de que, como

    salienta PAULO BONAVIDES, “sem aprofundar a investigação acerca da função dos

    princípios nos ordenamentos jurídicos não é possível compreender a natureza, a

    essência e os rumos do constitucionalismo contemporâneo”.1

    Nessa toada, não nos parece correto fazer afirmações desvencilhadas de um ponto de

    partida que venha fixar as funções dos princípios em nosso ordenamento, seu

    fundamento, e, sobretudo, sua normatividade.

    Logicamente que, como não poderia deixar de ser, o desiderato do presente tópico não

    é esgotar a temática, mas tão-só sistematizar, ainda que sinteticamente, os principais

    entendimentos doutrinários envolvendo o tema em comento.

    1 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 6ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 231.

  • 2.2 NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS

    Antes mesmo de adentrarmos ao tema da normatividade dos princípios é importante

    que se faça, já nesse momento, alguma digressão a respeito do conceito de princípio.

    Da análise do próprio termo princípio, sói perceber quão amplas poderiam ser as

    noções expostas por quem objetivasse atribuir um conceito a tal vocábulo. E isto se dá,

    em razão do caráter multifacetário e polissêmico2 do termo sem si.

    Percebendo também a abstração do termo princípio, MANOEL GONÇALVES

    FERREIRA FILHO, salienta que juridicamente o mesmo poderá possuir três

    significados, sendo dois deles de conotação prescritiva e um deles de conotação

    descritiva. Vejamos, por oportuno, as lições do insigne constitucionalista:

    Os juristas empregam o termo ‘princípio’ em três sentidos de alcance diferente. Num primeiro, seriam ‘supernormas’, ou seja, normas (gerais ou generalíssimas) que exprimem valores e que por isso, são ponto de referência, modelo, para regras que as desdobram. No segundo, seriam standards, que se imporiam para o estabelecimento de normas específicas - ou seja, as disposições que preordenem o conteúdo da regra legal. No último, seriam generalizações, obtidas por indução a partir das normas vigentes sobre determinada ou determinadas matérias. Nos dois primeiros sentidos, pois, o termo tem uma conotação prescritiva; no derradeiro, a conotação é descritiva: trata-se de uma ‘abstração por indução3.

    Entretanto, em que pese a expressão princípio ter como uma de suas características

    essa indeterminação conceitual e dimensional, o certo é que, hodiernamente, na fase

    interpretativa-constitucional por que se passa, os princípios jurídicos, sob qualquer

    prisma que lhe seja atribuído o enfoque, ganharam, ou melhor, tiveram reconhecido seu

    intenso grau de juridicidade. Ou seja, deixaram eles de desempenhar um papel

    secundário, para passar a cumprir o papel de protagonistas do ordenamento,

    2 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 4a ed. Malheiros, São Paulo, 1998, p. 76. 3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direito Constitucional do Trabalho - Estudos em Homenagem ao prof. Amauri Mascaro do Nascimento. Ed. Ltr, 1991, Vol. I, pp. 73-74.

  • ganhando, nessa medida, o reconhecimento de seu caráter de norma jurídica

    potencializada e predominante.

    Daí porque, BONAVIDES, citando RONALD DWORKIN, que é certamente um dos mais

    expoentes tratadistas do tema, observa que, “tanto uma constelação de princípios

    quanto uma regra positivamente estabelecida podem impor uma obrigação legal”4. Este

    também é o escólio de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, autor que, mesmo

    sem se dedicar de forma monográfica ao estudo do tema, produz lição de rara

    propriedade, como é de sua característica:

    violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais (...)5.

    Nesse mesmo diapasão, pedimos vênia para, dada a importância, levando-se em conta

    o ano de sua produção (1952), transcrevermos a lição a que nos brinda CRISAFULI:

    Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como determinante de uma ou de muitas outras subordinadas, que a pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções mais particulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem, potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.6

    Das pequenas linhas acima expostas já se pode retirar a conclusão de que,

    hodiernamente, a doutrina jurídica vem reconhecendo nos princípios jurídicos o caráter

    conceitual e positivo de norma de direito, de norma jurídica. Dessa atribuição decorre a

    conclusão, que os princípios possuem positividade e vinculatividade, o que lhes confere

    4 Op. cit. p. 238. 5 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. Ed. RT, São Paulo, 1980, p. 230. 6 Apud BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. p. 230.

  • a qualidade de normas que obrigam e possuem eficácia positiva e negativa sobre

    comportamentos públicos ou privados, bem como sobre a interpretação e a aplicação

    de outras normas, tais como as regras, ou mesmo os princípios derivados de princípios

    mais abstratos.

    É necessário registrar, todavia, que esse caráter normativo, conforme apreendido por

    RUY SAMUEL ESPÍNDOLA, “não é predicado somente dos ‘princípios positivos de

    Direito’, mas também, como já acentuado, dos ‘princípios gerais de Direito’. Reconhece-

    se, destarte, normatividade não só aos princípios que são, expressa e explicitamente,

    contemplados no âmago da ordem jurídica, mas também aos que, defluentes de seu

    sistema, são anunciados pela doutrina e descobertos no ato de aplicar o Direito”.7

    Mas a uniformidade a que chegou a doutrina nesse modo de pensar atual, não pode

    nem deve, levar à despropositada conclusão que esse modo de visualização surgiu do

    dia para a noite. Ao contrário, para conferir normatividade aos princípios a doutrina

    debateu e amadureceu reflexões que se iniciaram em meio às discussões travadas

    entre os jusnaturalistas e os juspositivistas, o que veio a ocasionar, em âmbito mais

    recente, através de uma nova forma de concepção, a chamada ótica pós-positivista do

    Direito contemporâneo. Veja-se um apertado histórico dessa evolução de pensamento.

    2.3 A ESCOLA DO JUSNATURALISMO, DO JUSPOSITIVISMO E DO PÓS-POSITIVISMO

    Como é cediço, a discussão envolvendo a normatividade dos princípios jurídicos

    perpassa por três distintos capítulos: o jusnaturalismo, o juspositivismo e o pós-

    positivismo.

    O jusnaturalismo moderno inicia sua formação a partir do século XVI. Tinha por escopo

    tal escola deixar para traz o dogmatismo medieval, bem como escapar do ambiente

    teológico em que se formou e desenvolveu.

    7 Conceito de princípios constitucionais. 2ª ed. , São Paulo: RT. 2002. p. 60-61.

  • Na fase jusnaturalista, os princípios ocupavam uma função meramente informativa

    (para valorar como certo ou errado, conforme a norma de direito positivo se

    conformasse ou não às diretrizes dos princípios), mas sem qualquer eficácia sintática

    normativa. Nesta fase os princípios jurídicos eram situados em esfera metafísica e

    abstrata, sendo reconhecidos como inspiradores de um ideal de justiça, cuja eficácia se

    cinge a uma dimensão ético-valorativa do Direito.

    Tamanha foi a influência histórica da escola jusnaturalista que, já no século XIX, com o

    advento do Estado Liberal muitos dos preceitos seguidos pelos jusnaturalistas foram

    incorporados em textos escritos. Era a superação histórica do naturalismo.

    LUIS ROBERTO BARROSO, mencionando BOBBIO, MANTTEUCCI e PASQUINO,

    noticia que, “com a promulgação dos Códigos, principalmente do Napoleônico, o

    Jusnaturalismo exauria a sua função no momento mesmo em que celebrava seu triunfo.

    Transpondo o Direito racional para o Código, não se via nem admitia outro direito senão

    este. O recurso a princípios8 ou normas extrínsecos ao sistema do direito positivo foi

    considerado ilegítimo.9”

    Surgia o positivismo. Nesta fase, tinha-se a pretensão de criar uma Ciência Jurídica

    com objetividade científica e características similares das conferidas às Ciências

    Exatas. Apartava-se, assim, o Direito da Moral, de modo a inserí-los em

    compartimentos estanques para fins científicos10.

    Em relação aos princípios, sua função era meramente subsidiária, por conta de uma

    norma antilacunas clássica em todos os ordenamentos romano-germânicos. Não que 8 Dicionário de Política. 1986, p. 659, apud: BARROSO, Luis Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. A nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Argumentação e Papel dos Princípios, in: LEITE: George Salomão. Dos Princípios Constitucionais. Malheiros: 2003. p. 105. 9 Viviane Araújo Lima (A Saga do Zangão: uma Visão sobre o Direito Natural, Renovar: 2000. p. 181) nos traz passagem um tanto quanto interessante: “Tal qual o zangão no reino animal, o macho que desde o seu nascimento esforça-se para atingir a idade adulta e assim fecundar a abelha-Rainha para morrer em seguida, o direito natural, desde os tempos mais remotos, esforça-se para fecundar o direito positivo, impregnando-o dos valores mais preciosos – justiça, liberdade, bem comum. No momento em que realiza essa tarefa (...), morre solapado pelo Positivismo imperioso e avassalador do século seguinte, pela Era das Codificações, pelas idéias surgidas com as novas correntes de pensamento jurídico, pela Escola da Exegese na França, pela Escola Histórica na Alemanha”. 10 Nos precisos dizeres de BOBBIO “A Ciência [do Direito] exclui do próprio âmbito os juízos de valor, porque ela deseja ser um conhecimento puramente objetivo da realidade, enquanto os juízos em questão são sempre subjetivos (ou pessoais) e conseqüentemente contrários à exigência da objetividade.” In: O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone Editora. 1995. p. 135.

  • se reconhecesse a normatividade dos princípios neste sistema jusfilosófico. Contudo,

    ante a possibilidade de ruir o dogma da completude do sistema normativo caso não se

    colmatassem as lacunas que viessem a ocorrer, o que era tão caro ao juspositivismo,

    optou-se pela adoção de uma aplicação diferida dos princípios somente como forma de

    solução das lacunas, a saber: não são os princípios que gozam de normatividade, mas

    a norma que conferir competência ao julgador para aplicá-los. Diga-se até, que nos

    tempos hodiernos pode-se encontrar resquícios de tal posicionamento, a teor do que se

    depreende das regras contidas no artigo 126 do CPC, segundo a qual, “O juiz não se

    exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No

    julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à

    analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”, e do artigo 108, II, do CTN

    que afirma que “na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para

    aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada, I - a

    analogia; II - os princípios gerais de direito tributário.

    Destarte, para os positivistas os princípios tinham função puramente garantidora da

    inteireza dos textos legais, servindo tão somente para suprir os vácuos normativos que

    as leis, por ventura, não lograram perfazer.

    O grande impacto do positivismo e o culto velado a seus dogmas legitimou, ainda que

    sob vestes travestidas, a feitura de autoritarismos dos mais diversos. É por isso que

    ANA PAULA BARCELOS e LUÍS ROBERTO BARROSO, dentre outros, associam a

    queda do positivismo à derrota do Nazismo na Alemanha e Fascismo na Itália. Com

    efeito, vejamos a passagem dos autores citados:

    Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram uma barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas de uma autoridade competente. Ao fim da II Guerra Mundial a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido.11

    11 BARROSO, Luis Roberto e BARCELLOS Ana Paula de. A nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Argumentação e Papel dos Princípios. In: LEITE: George Salomão. Dos Princípios Constitucionais. Malheiros: 2003. p. 107.

  • A queda do positivismo coincide com uma época em que o homem passou a se

    preocupar mais com os direitos sociais, atribuindo uma dimensão superior à

    necessidade de se solucionar conflitos independentemente das leis, viu-se que não é

    sempre que a lei é legítima, ou seja, que a norma corresponde à vontade social. A

    estimação exasperada à lei fria, conseqüentemente, passou a granjear justas críticas,

    encontrando no Brasil defensores da irrestrita relação entre diferentes elementos: o fato

    social, o valor, e, é óbvio, a norma jurídica (MIGUEL REALE e outros).

    No remanescente do mundo, outros pensadores, como RONALD DWORKIN e F.

    MULLER, passaram a sustentar, apesar de algumas adjacências, as mesmas idéias-

    base. Era o início do pós-positivismo jurídico. A nova fase passou a atribuir maior

    importância não somente às leis, mas aos princípios do direito. E os princípios,

    analisados como espécies de normas, tinham, ao contrário das regras, ou leis, um

    campo maior de abrangência, pois se tratavam de preceitos que deveriam intervir nas

    demais normas, inferiores, para obter delas o real sentido e alcance. Tudo se ressalte,

    para garantir os direitos sociais do homem.

    No pós-positivismo, os princípios jurídicos deixam de possuir apenas a função

    integratória do direito, conquistando o status de normas jurídicas vinculantes. Os

    mesmos autores dantes mencionados nos brindam com outra precisa lição, a qual, não

    obstante sua extensão, julgamos pertinente a transcrição, até para efeito de conclusão

    do presente tópico:

    A superação histórica do Jusnaturalismo e o fracasso político do Positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acercado do Direito, sua função social e sua interpretação. O Pós-Positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada Nova Hermenêutica Constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios sua incorporação, explícita um implícita, pelos textos constitucionais, e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética.12

    12 Op. cit. p. 108.

  • 2.4 PRINCÍPIOS E REGRAS

    Possui extrema relevância no tema ora enfocado a diferenciação existente entre

    princípios e regras. Os princípios, como vimos, são espécies do gênero norma, que

    podem vir revestidas ou de um preceito de caráter geral, enunciador de uma pauta de

    valores ou de um mandamento sistêmico (princípio), ou de um comando prescritivo,

    específico, de natureza concreta (regra).

    A doutrina estrangeira e nacional tem, em boa medida, partindo para a distinção entre

    princípio e regra, incluindo-os no círculo da norma jurídica. Nesse passo, à guisa dos

    ensinamentos da doutrina a seguir enunciada voltaremos, agora com maior vagar, à

    compreensão do que vem a ser um princípio jurídico.

    A partir do sentido etimológico da palavra princípio, podemos depreender que este, por

    vir do termo latino principium, enuncia a idéia de começo, de origem, circunstância que

    nos leva a antever que o princípio deve ser tido como o vetor originário de adequação,

    interpretação e concretização de um sistema jurídico. Com a maestria que lhe

    peculiariza, ROQUE A. CARRAZA consigna que:

    princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam.13

    Nesse caminhar, outra conclusão não poderemos chegar, a não ser a de que os

    princípios jurídicos como verdadeiros comandos ordenadores do sistema que são,

    devem ser entendidos, como bem elucida CARLOS AYRES BRITO, citado por ROQUE

    CARRAZA, como “os vetores de todo o conjunto mandamental, fontes de inspiração de

    13 CARRAZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 11 Ed. rev. atua. amp. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p.31.

  • cada modelo deôntico, de sorte a operar como verdadeiro critério do mais íntimo

    significado do sistema como um todo e de cada qual de suas partes"14

    Ou ainda, como diz, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, princípio é, por

    essência, “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição

    fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e

    servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a

    lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá

    sentido harmônico (...)”15.

    Compreendido desta forma o princípio jurídico, cumpre ressaltar as suas diferenças

    para com a regra, ambos, espécies do gênero norma jurídica. Pode-se dizer, conforme

    ressaltado alhures, que as regras, ordinariamente, possuem um grau de concretização

    maior, dado que regulam o fenômeno jurídico com um grau menor de abstração,

    enquanto os princípios estabelecem pautas de comportamentos, de valores, a serem

    seguidos na aplicação das regras em geral, sendo elementos informadores destas.

    Arrazoando com maior sagacidade e detidão sobre tais institutos, o constitucionalista

    J.J. GOMES CANOTILHO, salientando a parábola de se distinguir, no âmbito do

    superconceito norma, entre regras e princípios, delibera alguns critérios diferenciadores:

    a) Grau de abstração: os princípios são normas com um grau de abstração relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstração relativamente reduzida.

    b) Grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os princípios, por serem vagos e indeterminados, carecem de mediações concretizadoras (do legislador? do juiz?), enquanto as regras são suscetíveis de aplicação directa.

    c) Caráter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito).

    d) Proximidade da idéia de direito: os princípios são standards juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na idéia de direito

    14 BRITTO, Carlos Ayres. Inidoneidade do decreto lei para instituir ou majorar tributos. In RDP 66/45 apud CARRAZA, ob.cit.,p.34. 15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. Ed. RT, São Paulo, 1980, p. 230.

  • (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

    e) Natureza normogenética: os princípios são fundamentais de regras, isto é, são normas que estão na base ou constituem a ratio de regras jurídicas, desempenhando, por isso, uma função normogenética fundamentante.16

    Não resta suspeita que, mesmo não sendo definidores todos estes critérios,

    poderíamos enunciar alguns, como por exemplo, o de que os princípios são normas

    impassíveis de conflitos que os excluam do ordenamento, enquanto as regras, quando

    em antinomia, o são. Outra diferença que podemos pontuar é que, enquanto as regras

    se traduzem nos modais deônticos do permitido, obrigado e proibido, os princípios

    explanam um imperativo, ajustado com vários graus de concretização. Nesse ínterim,

    pedimos vênia para novamente fazermos uso de outra lição de CANOTILHO, na qual o

    referido autor conclui seu pensamento acerca das diferenças entre os princípios e as

    regras da seguinte forma:

    Em primeiro lugar, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização, consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos; as regras são normas que prescrevem imperativamente uma exigência (impõe, permitem ou proíbem) que é ou não é cumprida (nos termos de Dworkin: applicable in all-or-nothing fashion); a convivência dos princípios é conflitual (Zagrebelsky), a convivência de regras é antinômica; os princípios coexistem, as regras antinômicas excluem-se. Conseqüentemente, os princípios, ao constituírem exigências de optimização, permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à lógica do tudo ou nada), consoante o seu peso e a ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes; as regras não deixam espaço para qualquer outra solução, pois se uma regra vale (tem validade) deve cumprir-se na exacta medida das suas prescrições, nem mais nem menos. [...] em caso de conflito entre princípios, estes podem ser objeto de ponderação, de harmonização, pois eles contêm apenas exigências ou standards que, em primeira linha (prima facie) devem ser realizados; as regras contêm fixações normativas definitivas, sendo insuscetível a validade simultânea de regras contraditórias. Realça-se também que os princípios suscitam problemas de validade [sic] e peso (importância, ponderação, valia); as regras colocam apenas questões de validade (se elas não são correctas devem ser alteradas).17

    16 CANOTILHO, J.J.Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 3ª Ed. Lisboa: Almedina, 1999, p.1087. 17 Ibidem., p. 1087-1088.

  • Diante disso, nos parece igualmente correta a conclusão de EROS GRAU, para quem

    “as regras jurídicas não comportam exceções. Isso é afirmado no seguinte sentido; se

    há circunstâncias que excepcionem uma regra jurídica, a enunciação dela, sem que

    todas essas exceções sejam também enunciadas, será inexata e incompleta. No nível

    teórico, ao menos, não há nenhuma razão que impeça a enunciação da totalidade

    dessas exceções e quanto mais extensa seja essa mesma enunciação (de exceções),

    mais completo será o enunciado da regra.”18

    Ante tudo o que vem se expondo, forçosamente poderemos evidenciar que:

    a) os princípios são pautas de valores, que direcionam e concretizam a aplicação das

    normas jurídicas, podendo ser encontrados de forma expressa como implícita,

    enquanto as regras só podem ser expressas;

    b) as regras, quando em conflito entre si, podem expressar antinomias, enquanto os

    princípios não, haja vista que, como veremos com maior vagar adiante, os princípios -

    não se excluem de forma permanente, senão é afastada a aplicação de um deles, a

    depender da melhor solução a ser conferida ao caso concreto;

    2.5 HÁ HIERARQUIA ENTRE PRINCÍPIOS?

    Ponto que merece destaque é o questionamento acerca da existência ou não de

    hierarquia entre os princípios existentes no ordenamento jurídico.

    Segundo a doutrina de HANS KELSEN, o ordenamento jurídico pode ser visualizado

    como um complexo escalonado de normas de valores diversos, no qual cada norma

    ocupa uma posição intersistêmica, formando um todo harmônico, com interdependência

    de funções e diferentes níveis normativos. Nessa linha de raciocínio, uma norma só

    18 GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988. Interpretação e crítica. 4ª Ed. São Paulo:Malheiros Editores Ltda, 1998, pp.89-90

  • será válida acaso consiga buscar seu fundamento de validade em uma norma superior,

    e assim por diante, até que se chegue à norma última, que é a norma fundamental19.

    Assim, tendo em mira o que restou evidenciado anteriormente, ou seja, que os

    princípios estão inseridos no conceito lato de norma jurídica, e, tendo em mente

    também que as normas, na concepção retirada do autor acima citado, são

    hierarquicamente escalonadas, poder-se-ia facilmente admitir que há hierarquia entre

    os princípios.

    Com efeito, e parecendo evidenciar sobredita hierarquia, GERALDO ATALIBA observa

    que “o sistema jurídico [...] se estabelece mediante uma hierarquia segundo a qual

    algumas normas descansam em outras, as quais, por sua vez, repousam em princípios

    que, de seu lado, se assentam em outros princípios mais importantes. Dessa hierarquia

    decorre que os princípios maiores fixam as diretrizes gerais do sistema e subordinam os

    princípios menores. Estes subordinam certas regras que, à sua vez, submetem outras

    [...]”20. Todavia, em que pese, a um primeiro olhar podermos extrair tal conclusão de um

    raciocínio eminentemente lógico, o fato é que a solução para tal ponto merece uma

    análise um pouco mais detida.

    Ora, acaso estejamos levando em conta a existência de princípios constitucionais e

    princípios infraconstitucionais, dificuldade não existirá em asseverarmos que os

    primeiros são hierarquicamente superiores aos últimos. Além do mais, é lição corrente e

    plasmada entre os constitucionalistas que os princípios constitucionais são o

    fundamento de validade dos princípios infraconstitucionais. O tema, contudo, oferece

    maiores complicações quando for falado exclusivamente a respeito dos princípios

    constitucionais.

    O aplicador do direito poderia questionar-se, por exemplo, se o princípio da celeridade

    ou da efetividade seria hierarquicamente inferior ao princípio da segurança jurídica. Ou

    mesmo questionar-se se o amplo acesso à justiça poderia sofrer algum tipo de limitação

    face ao princípio constitucional da supremacia do interesse público. O professor

    GERALDO ATALIBA dantes citado, ao teorizar sobre os princípios encontradiços na 19 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4a ed. Martins Fontes, São Paulo, 1995, p. 248. 20 apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 165.

  • Constituição afirma que “mesmo no nível constitucional, há uma ordem que faz com que

    as regras tenham sua interpretação e eficácia condicionadas pelos princípios. Estes se

    harmonizam, em função da hierarquia entre eles estabelecida, de modo a assegurar

    plena coerência interna ao sistema (...)”21.

    Sob um olhar despretensioso e perfunctório, poderia se extrair da lição acima um

    posicionamento que defende a hierarquia entre os princípios constitucionais. Não nos

    parece, todavia, que seja assim. O que realmente o professor citado pretendeu elucidar

    é que, mesmo em nível constitucional, há normas cuja abstração é mais intensa que as

    demais. E isto, dizemos nós, principalmente se estivermos tratando de uma Carta

    Constitucional analítica como é o caso da brasileira. E nos casos em que ocorra a

    concomitância e convivência de normas constitucionais abstratas e menos abstratas,

    estas devem ter sua interpretação influenciada pelos valores constantes daquelas.

    Demais disso, é bom que se diga, não há normas constitucionais com um grau de

    importância maior ou menor, nem hierarquia de supra ou infra-ordenação dentro da

    Constituição. Decerto, poderemos aceitar que existem princípios com diferentes níveis

    de concretização e densidade semântica, mas, à toda evidência, não se quer com isso

    dizer que há hierarquia normativa entre os mesmos. Podem, com efeito, existir casos

    em que haja normas constitucionais em aparente conflito, tensionadas entre si, o que

    não significa dizer que uma ou outra é hierarquicamente superior.

    O Supremo Tribunal Federal já referendou o que aqui vem se expondo, ao afastar a

    possibilidade de normas constitucionais originárias inconstitucionais, apesar da

    sinalização em sentido contrário esposada por OTTO BACHOFF22. Com efeito, vejamos

    o que restou decidido pelo STF, no acórdão prolatado na ADI 815/DF, em que se

    discutia a pretensa inconstitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º, do artigo 45, da CR/88:

    Ação direta de inconstitucionalidade. Parágrafos 1. e 2. do artigo 45 da Constituição Federal. – A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo a declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras e incompossível com o sistema de Constituição rígida.

    21 apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 165. 22 O citado jurista alemão propugnava o entendimento no sentido de que alguns dispositivos inseridos pelo legislador constituinte originário poderiam ser tidos por inconstitucionais, se por algum acaso estas entrassem em contradição com os valores transcendentais, ou materialmente constitucionais, da Constituição (Cf.: Bachoff, Otto; Normas Constitucionais Inconstitucionais?).

  • – Na atual Carta Magna "compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição" (artigo 102, "caput"), o que implica dizer que essa jurisdição lhe e atribuída para impedir que se desrespeite a Constituição como um todo, e não para, com relação a ela, exercer o papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar se este teria, ou não, violado os princípios de direito suprapositivo que ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição. – Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser invocadas para sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas constitucionais inferiores em face de normas constitucionais superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas como limites ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação as outras que não sejam consideradas como clausulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas. Ação não conhecida por impossibilidade jurídica do pedido.

    Diferente, entretanto, é o entendimento da Corte Suprema quando se encontra em jogo

    a possibilidade de normas constitucionais emanadas do Poder Constituinte Derivado

    serem tidas por inconstitucionais. A razão para tal disparidade reside na circunstância

    de que o Poder Constituinte Derivado não dispõe, como o Originário, de poder ilimitado,

    haja vista ser aquele condicionado ao núcleo normativo constante do artigo 60, § 4º, da

    Lei Maior.

    Veja-se, por relevante, e à guisa de exemplo a ementa do acórdão exarado nos autos

    da ADIn 939, no qual o Supremo consignou de forma cristalina a possibilidade do

    controle de Emendas Constitucionais que, ao ser editadas, venham a ferir o artigo 60, §

    4º, dantes mencionado:

    Direito Constitucional e Tributário. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. I.P.M.F. Imposto Provisorio sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira - I.P.M.F. Artigos 5., par. 2., 60, par. 4., incisos I e IV, 150, incisos III, "b", e VI, "a", "b", "c" e "d", da Constituição Federal. 1. Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação a Constituição originaria, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precipua e de guarda da Constituição (art. 102, I, "a", da C.F.). 2. A Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, que, no art. 2., autorizou a União a instituir o I.P.M.F., incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no paragrafo 2. desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica "o art. 150, III, "b" e VI", da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutaveis (somente eles, não outros): 1. - o princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte (art. 5., par. 2., art. 60, par. 4., inciso IV e art. 150, III, "b" da Constituição); 2. - o princípio da imunidade tributaria reciproca (que veda a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de

  • impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e garantia da Federação (art. 60, par. 4., inciso I,e art. 150, VI, "a", da C.F.); 3. - a norma que, estabelecendo outras imunidades impede a criação de impostos (art. 150, III) sobre: "b"): templos de qualquer culto; "c"): patrimônio, renda ou serviços dos partidos politicos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistencia social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e "d"): livros, jornais, periodicos e o papel destinado a sua impressão; 3. Em consequencia, e inconstitucional, também, a Lei Complementar n. 77, de 13.07.1993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidencia do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, "a", "b", "c" e "d" da C.F. (arts. 3., 4. e 8. do mesmo diploma, L.C. n. 77/93). 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993.

    A partir das ilustrações casuísticas acima expostas, poderemos depreender sem

    maiores problemas que, não havendo hierarquia entre normas constitucionais, não há

    falar em hierarquia entre princípios constitucionais, mesmo porque, como

    demonstramos alhures, os princípios são espécies do gênero norma.

    Ultrapassada, contudo, tal problemática, outro problema surge, qual seja o atinente à

    possibilidade de eventual colisão entre os princípios constitucionais, e os critérios

    utilizados para a solução de tal problema.

    2.6 COLISÃO DE PRINCÍPIOS: CRITÉRIOS PARA A SOLUÇÃO DO PROBLEMA (BREVES CONSIDERAÇÕES)

    Conforme já aludido, não há hierarquia jurídica entre os princípios, conquanto

    normalmente haja entre eles uma tensão estável. Como é cediço, não raras vezes os

    princípios constitucionais apresentam entre si algum aparente antagonismo, talvez pelo

    simples fato de eles permitirem uma compreensão fluida de ampla magnitude.

    Não há falar então, em caso de colisão de princípios constitucionais, em antinomia,

    mesmo porque, não se pode puramente aplicar os critérios clássicos para resolução de

    antinomias entre regras. Algumas soluções foram desenvolvidas pela doutrina

    (estrangeira, diga-se de passagem) e vêm sendo comumente utilizadas pelos Tribunais.

  • A primeira é a da concordância prática (HESSE); a segunda, a da dimensão de peso ou

    importância (DWORKIN). A par dessas duas soluções, aparece, em qualquer situação,

    o princípio da proporcionalidade como “meta-princípio”, isto é, como “princípio dos

    princípios”, visando, da melhor forma, preservar os princípios constitucionais em jogo. O

    próprio HESSE entende que a concordância prática é uma projeção do princípio da

    proporcionalidade. Vejamos o que vem a ser a concordância prática de Hesse e a

    dimensão do peso e importância de DWORKIN.

    2.6.1 A concordância prática

    O princípio da concordância prática ou da harmonização, como consectário lógico do

    princípio da unidade constitucional, é comumente utilizado para resolver problemas

    referentes à colisão de direitos fundamentais. De acordo com esse princípio, os direitos

    fundamentais e valores constitucionais deverão ser harmonizados, no caso sub

    examine, por meio de juízo de ponderação que vise preservar e concretizar ao máximo

    os direitos e bens constitucionais protegidos.

    Nesse diapasão, a concordância prática pode ser enunciada da seguinte maneira:

    havendo colisão entre valores constitucionais (normas jurídicas de hierarquia

    constitucional), o que se deve buscar é a otimização entre os direitos e valores em jogo,

    no estabelecimento de uma concordância prática, que deve resultar numa ordenação

    proporcional dos direitos fundamentais e/ou valores fundamentais em colisão, ou seja,

    busca-se o melhor equilíbrio possível entre os princípios colidentes.

    2.6.2. A dimensão de peso e importância

    Este segundo critério tem como principal expoente RONALD DWORKIN, que em sua

    obra Levando os direitos a sério, afirma que os princípios “possuem uma dimensão que

    não é própria das regras jurídicas: a dimensão do peso ou importância. Assim, quando

    se entrecruzam vários princípios, quem há de resolver o conflito deve levar em conta o

  • peso relativo de cada um deles [...]. As regras não possuem tal dimensão. Não

    podemos afirmar que uma delas, no interior do sistema normativo, é mais importante do

    que outra, de modo que, no caso de conflito entre ambas, deve prevalecer uma em

    virtude de seu peso maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é

    válida”23.

    Assim, para DWORKIN, no dimensionamento do peso ou importância dos princípios,

    haveria única resposta correta para os casos difíceis. Sob nosso prisma, no entanto, a

    solução repousa em uma ponderação de valores, pois, como dito, inversamente ao que

    ocorre com a antinomia de regras, não há, critérios formais preestabelecidos para

    resolver o conflito entre princípios. Deverá então o intérprete, no caso concreto, através

    de uma análise necessariamente tópica, verificar, seguindo critérios valorativos, qual o

    bem jurídico que o ordenamento, em seu todo, prefere salvaguardar, de modo a

    conciliar os princípios em colisão.

    Portanto, deverá o operador, informado pelo critério da proporcionalidade, buscar essa

    composição de princípios, sempre atendendo a uma escala racional de valores,

    respeitando-se, é claro, as especificidades do caso concreto.

    2.7 CONCLUSÕES

    Nesse diapasão, conclui-se que, em primeiro lugar, essas duas soluções (concordância

    prática e dimensão de peso e importância) podem e devem ser aplicadas conjunta e

    sucessivamente, sempre tendo o princípio da proporcionalidade como ponto nodal:

    primeiro, aplica-se a concordância prática; em seguida, não sendo possível a

    concordância, dimensiona-se o peso e importância dos princípios em jogo, sacrificando,

    o mínimo possível, o princípio de “menor peso”.

    Além disso:

    23 apud ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de Princípios Constitucionais. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 65

  • 1) não há, em uma visão epistemológica, hierarquia entre os princípios constitucionais,

    mas apenas, por evidente, entre estes e os princípios infraconstitucionais;

    2) quando estiverem em conflito regras a solução para sua antinomia difere da que é

    dada para o conflito de princípios, mesmo porque no caso de colisão de princípios

    constitucionais, tecnicamente, não se tem uma antinomia, vez que não se pode

    meramente afastar a aplicação de um deles;

  • 3 ALGUNS PRINCÍPIOS PROCESSUAIS CONSTITUCIONAIS RELEVANTES AO ESTUDO PROPOSTO

    3.1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

    Observando-se a partir da leitura do tópico antecedente que os princípios possuem nos

    tempos atuais força normativa, é importante que se registre que é com base neste

    ponto de partida que a presente pesquisa caminhará. Ou seja, é à luz desse contexto

    que se busca uma melhor compreensão da Jurisdição Constitucional, da coisa julgada

    e do mecanismo que faz movimentar todo o aparato judiciário, qual seja: o processo.

    E é com base em tais idéias que já se adianta novamente que se primará por uma

    compreensão jurídica que melhor se amolde a um Estado Democrático de Direito plural

    e aberto, buscando-se a partir disso sustentar que hoje não mais devem ser tidos como

    intocáveis certos dogmas formais. Até porque, como com propriedade aduz JOSÉ

    ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO:

    os direitos elencados na Constituição podem ampliar-se, de modo que a juridicidade, a efetividade e a justiciabilidade possam tornar concretos os direitos da cidadania. A jurisprudência constitucional propiciou a ampliação dos conceitos básicos de direitos e liberdades fundamentais.24

    Esta lição, cuja intelecção é deveras clara, se apóia e encontra respaldo no fato de que

    os direitos fundamentais de todo cidadão não ficam, nem podem ficar, sujeitos a

    ideários políticos, até mesmo porque eles devem se adequar e refletir os anseios de

    nossa coletividade, que de tempos em tempos sofre mudanças das mais diversas,

    sendo, pois, exatamente por isso que é importantíssimo um estudo que realmente

    pugne pela democraticatização da máquina judiciária, sempre em prol da satisfação e

    da plenitude desses mesmos direitos fundamentais.

    24 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Jurisdição Constitucional da Liberdade. In: LEITE SAMPAIO, José Adércio (Org.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 11

  • Logo, já se pode assentar que o processo, em todo seu âmbito de atuação, seja lá qual

    for o ramo do direito material que ele esteja instrumentando, deve ser concebido à luz

    dos princípios elencados na Carta Constitucional de 1988, diploma normativo que

    denota e reconhece não só a idéia de cidadania, como também nos conduz sempre a

    uma maior e incansável tentativa de inclusão e integração social.

    Não basta, destarte, que a Carta Política contenha direitos fundamentais. É imperioso

    que o intérprete de um modo geral tenha por norte sua concretização, indo sempre em

    busca de sua implementação prática, pois, a não ser assim, o significado de tão

    importantes direitos restaria esvaziado, ou, quiçá, relegado, o que efetivamente não se

    pode conceber tamanho o alto valor simbólico que os mesmos carregam, tanto no que

    se refere à democracia constitucional propriamente dita, quanto para o ideal firme de

    justiça, objetivo maior do Estado de Direito. A doutrina de FLÁVIA PIOVESAN, vem a

    ratificar o que vem se expondo:

    Com efeito, a busca do texto em resguardar o valor da dignidade humana é redimensionada, na medida em que, enfaticamente, privilegia a temática dos direitos fundamentais. Constata-se, assim, uma nova topografia constitucional, na medida em que o texto de 1988, em seus primeiros capítulos, apresenta avançada Carta de direitos e garantias, elevando-os, inclusive, à cláusula pétrea, o que, mais uma vez, revela a vontade constitucional de priorizar os direitos e garantias fundamentais.25

    Com base em tais delineamentos e mesmo que não se tenha como alvo uma discussão

    que adentre aos meandros da teoria geral do direito e da filosofia jurídica, o certo é que

    não se pode denegar a idéia de que o processo não pode desempenhar um bom papel,

    senão a partir do momento em que seus aplicadores e condutores carreguem em si o

    ideário de justiça. Mesmo porque, é importante repisar, apenas quando os

    procedimentos determinantes das decisões jurídicas forem verdadeiramente

    democráticos, e potencializarem uma participação positiva dos interessados na

    formação dessas mesmas decisões, é que se poderá assegurar não a existência de um

    processo justo abstratamente, mas de um direito processual, que, por estar

    25 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4ª. ed., São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 55.

  • sedimentado em princípios constitucionais, buscará, incessantemente, realizar a justiça

    concretamente. No mesmo sentido JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO profere

    lição que merece transcrição integral:

    A formulação de um Processo Constitucional que possa ser instrumento de absorção das crises e dos conflitos, a nível institucional, torna-se necessária para o Estado democrático, que somente assim poderá corresponder aos apelos da sociedade contemporânea. Este Processo não será, apenas, instrumento de realizações particularistas, assentadas em concepções individualistas, que se satisfazem, com composições judiciais, que não ultrapassam interesses de minorias ou de grupos.26

    E exatamente por tais razões é que o processo, visto como instrumento de

    concretização dos direitos fundamentais, e interpretado sempre à luz da Constituição da

    República, é hoje aberto, exigindo permanente mudanças aplicativas, vencendo

    dogmas e conceitos ultrapassados, sempre com vistas a aprimorar e a tornar mais

    efetiva sua identidade constitucional democrática, abrindo, por assim dizer, suas portas

    a uma plena participação cidadã. 27

    Em arremate, é possível, já com base na pequena explanação, observar que o

    processo, visto sob o enfoque Constitucional ora destacado, assume, a cada momento,

    maior projeção, na medida em que, com a sobrevinda de novos paradigmas, abre-se

    espaço para novos questionamentos, alguns extremamente complexos e até mesmo

    polêmicos, os quais, partir do instante em que são postos à crivo da doutrina e

    26 Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 354. 27 Em sede de direito comparado se vê que, como bem aduz Pasquale Pasquino ao tratar do Recurso Constitucional Direto, o quão importante é a participação social via processo para um melhor exercício da cidadania: “Vale la pena di osservare, tornando sul rapporto fra giustizia costituzionale e democrazia, che questo tipo di ricorso sviluppa una dimensione nuova della partecipazione dei cittadini alla vita pubblica. È forse possibile descrivere questo sistema come uno in cui i cittadini hanno di più che i semplici diritti politici di partecipazione al processo legislativo, esercitati attraverso la scelta dei rappresentanti (e del governo) in occasione di elezione periodiche e competitive. Essi hanno anche il diritto di entrare in un dialogo continuo ed ininterrotto con i loro governanti, inviando ricorsi diretti ai giudici costituzionali e ottenendo risposte alle loro domande e rivendicazioni. (Tipologia della giustizia costituzionale in Europa. In: Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Roma, n. 02, p. 359 – 369, 2002).

  • jurisprudência, atribuem a ambas a difícil tarefa de conformá-los aos anseios da

    sociedade mutante28.

    Assim, depreende-se que por conta da importância, justifica-se, sempre nos limites da

    presente pesquisa, a menção, ainda que diminuta, de alguns dos princípios

    constitucionais processuais insertos em nosso Texto Maior. É o que se fará adiante,

    quando do trato aos princípios da inafastabilidade da jurisdição, do devido processo

    legal e de seu corolário lógico, o contraditório, sempre em busca de uma adequada

    sistematização de sua melhor interpretação, qual imperiosamente não pode relegar a

    patamares de somenos importância os anseios de nossa cidadania, até mesmo pela

    razão de que a participação dos destinatários imediatos da elaboração e aplicação das

    leis é um valiosíssimo engenho de controle popular das instituições.

    3.2 O PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO PREVISTO NO ART. 5°, XXXV, DA CR/88

    Vistos os aspectos generalizantes e declinada a importância do estudo do tema que ora

    se apresenta, pode-se passar ao específico que será ora versado.

    Segundo a redação do artigo 5º, XXXV, da Carta da República, bastante conhecida

    diga-se de passagem, “a lei não excluirá da apreciação do judiciário qualquer lesão ou

    ameaça a direito”. Em análise ao dispositivo supra, poder-se-ia, em princípio, interpretá-

    lo sob uma ótica restritiva, depreendendo que nele apenas se encontra preconizado o

    direito de provocar a atividade jurisdicional do Estado, fazendo movimentar a jurisdição,

    ou para nos utilizarmos de expressão abordada por WILLIAM COUTO GONÇALVES29,

    28 A respeito da jurisdição constitucional e de sua tarefa para com a sociedade, consulte-se: SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. 29 O autor divide o estudo da jurisdição em três etapas: a primeira é diz respeito à jurisdição se mostra inerte, porém disponível a todos os indivíduos e cidadãos na condição de sujeitos de direitos e deveres, e por isso foi denominada abstrata ou genérica; a segunda, compreende a etapa em que a jurisdição sai de sua inércia e abstração, passando a se restringir e materializar em medida, nos limites de pretensões, de quem a fez movimentar; já a terceira e última etapa, relaciona-se com o momento em que o jurisdicionado obtém, por meio da jurisdição uma resposta específica e eficaz, atuando na situação de

  • fazendo com que esta (a jurisdição) saia de sua etapa genérica e abstrata e passe para

    a etapa restritiva e concreta. Entretanto, acaso se tenha o cuidado de analisar com

    maior atenção o significado do aludido dispositivo, logo se percebe o quão profundo é o

    seu real significado.

    Muitos intérpretes, quando buscam identificar o real conteúdo do referido dispositivo,

    incidem no imperdoável erro de lhe conferir uma interpretação mais restritiva do que a

    que ele merece. Ora, interpretar o aludido artigo 5º, XXXV, conferindo-lhe contornos tão

    restritos é o mesmo que despi-lo de sua maior e mais importante inteligência, que é a

    que garante ao cidadão que necessita do judiciário, um aparato que efetivamente se

    preste aos seus fins. Daí, certamente se notar que o real significado e a gênese do

    referido dispositivo, estão não apenas em proporcionar ao jurisdicionado o amplo

    acesso à jurisdição. O que pretendeu o legislador constituinte originário é conferir a

    todos a possibilidade da passagem pelas três etapas da jurisdição a que alhures nos

    referidos em nota de rodapé, ou, em outro giro verbal, garantir a quem dela necessita

    um efetivo acesso à ordem jurídica justa, proporcionando uma completa satisfação da

    pretensão de direito material não cumprida espontaneamente.

    Mas é claro e escorreito que essa garantia de acesso amplo, efetivo e eficaz, não quer

    dizer que o direito de movimentar a jurisdição, tornando-a restritiva e concreta, – para

    nos valermos mais uma vez do já citado método de divisão da jurisdição em etapas –

    não possa ser condicionado ao preenchimento de determinados requisitos que, acaso

    preenchidos, permitirão ao julgador analisar o meritum causae. Tais requisitos são as

    chamadas condições da ação30 e 31.

    fato deduzida em juízo. In: Garantismo, finalismo e segurança jurídica no processo judicial de solução de conflitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 37 et seq. 30 Apesar não ser nosso objetivo discorrer acerca das condições da ação, entendemos conveniente deixar consignado que o direito de acesso amplo à jurisdição não significa que aquele que fez movimentar a máquina judiciária, só pode fazê-lo se tiver efetivamente o direito subjetivo aludido. Não significa, tampouco, que possui direito ao mérito. Significa, outrossim, que possui direito ao mecanismo estatal de solução de controvérsias. E sendo este seu único direito previamente assegurado, nada há de inconstitucional em submeter a apreciação do mérito da causa ao preenchimento de determinadas condições, impostas exatamente em razão de economia processual, de modo a evitar gastos desnecessários. 31 Apesar de poder delimitar o direito de movimentar a maquina judiciária pelo preenchimento das condições da ação, “a legislação infraconstitucional, [...] não pode, sob pena de lesão ao princípio constitucional, impedir o direito de ação, negar o direito de postulação de uma tutela urgente, ou ainda, porque resultaria no mesmo, estabelecer procedimento, cognição e provimento inadequados a uma

  • De toda sorte, o que é definitivamente assegurado a quem movimentou a jurisdição32 é,

    apenas e unicamente, o acesso ao mecanismo disponibilizado para solução de

    conflitos, que é o processo. EDUARDO MELO DE MESQUITA33, ao discorrer sobre a

    importância do processo, com muita propriedade assevera que:

    O processo, contudo, diante da dimensão constitucional que alcançara, não está tarjado a simples instrumento de justiça, mas galgara posição mais nobre de garantia de liberdade. O processo não é apenas instrumento técnico, mas instrumento político, histórico e sociológico, portanto, instrumento ético. Sem embargo do processo, traduzir-se em fenômeno jurídico.

    Um Estado democrático de direito, sem um instrumento processual-constitucional, é frágil, vez que o Direito submete-se a instrumento ordinário, estritamente técnico, sem qualquer conteúdo teleológico e axiológico e facilmente mutável.

    Demais disso, o dever imposto ao indivíduo de submeter-se obrigatoriamente à

    jurisdição não pode representar uma punição, devendo, para tanto, o Estado garantir,

    através de mecanismo instrumental adequado, a utilidade da sentença, a aptidão dela

    para entregar a efetiva34 e prática concretização da tutela.35

    E este mecanismo instrumental (o processo), para assegurar tudo aquilo que o

    consumidor de serviços judiciários (se é que assim podem ser chamados os que

    ingressam em juízo) merece, e para atingir seu real escopo (pacificação social, com

    solução de conflitos), deve se pautar por valores e princípios, os quais serão

    determinada situação conflitiva concreta.” In: MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 109. 32 Sobre a finalidade da função jurisdicional, assim leciona o mestre Moacyr Amaral dos Santos (In: Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 68), com a sabedoria que lhe é peculiar: “Isto significa que o objetivo do Estado, no exercício da função jurisdicional, é assegurar a paz jurídica pela atuação da lei disciplinadora da relação jurídica em que controvertem as partes. É verdade que, com esse objetivo, atuando a lei ao caso concreto, impondo assim a autoridade desta, o Estado reconhece e delibera quanto ao direito subjetivo, como conseqüência daquela atuação. Em conclusão, a finalidade da jurisdição é resguardar a ordem jurídica, o império da lei e, como conseqüência, proteger aquele dos interesses em conflito que é tutelado pela lei, ou seja, amparar o direito objetivo.” 33 As tutelas cautelar e antecipada. São Paulo: RT, 2002. p. 37. 34 Nunca é demais lembrar, como adverte João Batista Lopes, que “nem sempre, porém, o resultado do processo será suficiente para revesti-lo de efetividade. [...] A efetividade da tutela jurisdicional não pode prescindir do processo justo, isto é, daquele que obedece às garantias estabelecidas na Constituição.” (In: Revista de Processo – REPRO. Vol. 116. A efetividade da tutela jurisdicional à luz da constitucionalização do processo civil. São Paulo: RT, 2004. p. 34) 35 ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e colisão de direitos fundamentais. reforma do código de processo civil. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 147.

  • encontrados, ora positivados em normas infraconstitucionais, ora expressamente ou

    implicitamente estatuídos na Constituição da República.

    Já se tornou corrente a lição em nossos Manuais, a respeito de nossa Constituição ser

    classificada como um Texto Analítico. E quando se diz que a Carta Política de nosso

    país é analítica,36 está se dizendo, no mesmo passo, que ela cuida de matérias que, via

    de regra, deveriam ser dispensadas à via ordinária.

    Exatamente por ser analítica, e por muitas vezes descer a minúcias não condizentes

    com o fito de uma Constituição, é que a Carta Brasileira foi, e é, tão modificada e

    alvejada pelo legislador Constituinte Derivado. Contudo, exatamente para evitar

    qualquer disparate tendente a tornar as garantias processuais do cidadão mais um alvo

    do legislador Constituinte Derivado, o Constituinte Originário inseriu-as no artigo 5º do

    Texto Magno, conferindo a elas o status de garantia fundamental, matéria que, como

    cediço, é inalterável, à vista do que dispõe o artigo 60, § 4º, do mesmo diploma.

    Estas garantias são responsáveis por uma mudança no modo de pensar o processo

    civil, ramo do Direito que, se outrora era enxergado em visão estreita e formalista,

    hodiernamente tem sido visto sob um prisma mais adequado a seus fins. Nessa

    medida, torna-se cada vez mais corrente a utilização da expressão

    “constitucionalização do processo civil”.

    Assim, o legislador Constituinte Originário, ao inserir no Texto Magno a garantia de um

    processo pautado por valores, e que efetivamente busque a realização da paz social,

    teve em mira o fato de que, como bem salienta CARLOS ALBERTO ALVARO DE

    OLIVEIRA37, “não basta apenas abrir a porta de entrada do Poder Judiciário, [é preciso]

    prestar jurisdição tanto quanto possível eficiente, efetiva e justa, mediante um processo

    sem dilações ou formalismos excessivos.”

    Essa é a razão, aliás, que norteou a Corte Européia dos Direitos do Homem a

    proclamar, por mais de uma vez, que a Convenção Européia dos Direitos do Homem

    36 Apenas por curiosidade, vale a pena mencionar a regra do artigo 242, § 2º, da CR/88, que estatui que a manutenção do Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será de responsabilidade do Governo Federal. 37 O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: Revista de Processo – REPRO. Vol. 113. São Paulo: RT, 2004. p. 18.

  • tem por escopo proteger direitos não mais teóricos ou ilusórios, mas concretos e

    efetivos.38

    Portanto, ao prescrever o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição da República do

    Brasil, que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a

    direito”, foi consagrado, em sede constitucional, o direito fundamental de ação, de

    acesso ao Poder Judiciário. E esse acesso não pode ser tido como um mero e simples

    direito de fazer movimentar a jurisdição; deve, antes de tudo, ser visto como o direito à

    prestação jurisdicional justa e eficaz, mesmo porque, como salientado em linhas

    antecedentes, o Estado Democrático de Direito, somente pode ser resguardado de

    forma límpida e ampla, se estiver disponibilizado à população um instrumento de defesa

    de seus direitos mais embrionários. E este instrumento é o processo, pois é nele em

    que os cidadãos depositam esperanças no sentido de que sua própria dignidade será

    respeitada. Em comentário muito pertinente e que por isso merece menção, alertam

    ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, CÂNDIDO DINAMARCO E ADA

    PELLEGRINI GRINOVER:

    Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do processo. Por isso é que se diz que o processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão muito feliz da doutrina brasileira recente, em ‘acesso à ordem jurídica justa.39

    Rememore-se, entretanto, que não obstante a CR/88 ter sido a direta responsável por

    um impressionante avanço na compreensão do direito processual civil, vislumbram-se

    em casos não-raros uma intensa obstaculização da melhor aplicação do princípio que

    ora se analisa, haja vista que, por conta de dogmas que em nada refletem os anseios

    da sociedade atual o Judiciário por vezes impede a movimentação de sua máquina, o

    que, ao menos em tese, impede o reamadurecimento de pontos que mereceriam uma

    38 Idem. Ibidem. p. 19. 39 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido R., GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 14ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1998. p. 33.

  • solução nova, fato que só vem a, de certo modo, gerar grande descrença, por parte da

    nossa sociedade civil, com este Poder.

    Sendo assim, não é complicado chegar à conclusão de que o princípio em tela clama

    por uma maior participação do próprio judiciário em nossa ordem democrática, já que se

    este Poder mantiver-se alheio a tal abertura, o processo instrumental que é, jamais

    realizará seus precisos fins, permanecendo então o sistema como um núcleo fechado

    para a própria realidade, o que certamente não se coaduna com a idéia lastreada nos

    ensinamentos e conhecimentos do Professor AROLDO PLÍNIO GONÇALVES:

    A instrumentalidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos.40

    Assim sendo, encerra-se o presente tópico com a intenção de terem sido fornecidas as

    seguintes compreensões: 1) o exercício do direito de ação e de defesa processual é um

    princípio que está intimamente ligado a uma democracia participativa, pois atribui aos

    indivíduos a certeza de que todos os litígios serão dirimidos em um ambiente de maior

    clareza, de livre convencimento dos juízes e de publicidade das decisões; 2) o processo

    deve ser visualizado sempre sob uma ótica participativo e democrática, a qual tem por

    norte toda a principiologia sedimentada na CR/88, diploma que, além de romper com o

    autoritarismo do ordenamento constitucional anterior, garante a todos os jurisdicionados

    o direito de fazer movimentar o judiciário em busca de uma contenção justa de seu

    litígio, fato que por si mesmo demonstra que o processo não é um fim, mas um

    instrumento.

    3.3 DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

    Como se viu desde o início deste capítulo, o ponto a ser discutido atualmente é: como o

    os princípios processuais civis constitucionais sevem de amparo a uma efetiva tutela 40 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992. p. 171.

  • jurisdicional. Ou, em outros termos, como resguardar os direitos fundamentais,

    aplicando-os e garantindo-os na forma que melhor lhes conceda efetividade.

    Para a fixação de uma linha de raciocínio coerente mister se faz a abordagem do

    princípio em comento, principalmente porque é ele quem corporifica, em conjunto com a

    garantia da inafastabilidade da jurisdição e do contraditório, a espinha dorsal de nosso

    arcabouço de garantias processuais constitucionalmente asseguradas.

    Com base em visão histórica – bastante restrita é verdade, dado os limites que a

    presente abordagem impõem – vê-se que já na Magna Carta inglesa, cuja feitura data

    de 1215, o primado do devido processo legal ocupa grande destaque, pois a teor do

    artigo 39 do referido diploma já se dizia que:

    nenhum homem livre será preso ou privado de sua propriedade, de sua liberdade ou de seus hábitos, declarado fora da lei ou exilado ou de qualquer forma destruído, nem o castigaremos nem mandaremos forças contra ele, salvo julgamento legal feito por seus pares ou pela lei do país.

    Também do texto constante na Declaração de Direitos do Homem de 1948 o devido

    processo legal ocupa posição de destaque, conforme se vê de seus artigos VIII e XI,

    n°1, verbis:

    art. VIII – Toda pessoa tem o direito de receber dos Tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais, que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

    art. XI – 1 – Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.

    Seguindo esta linha e oferecendo ao devido processo legal a posição que ele merece, a

    CR/88 consagra em seu artigo 5º, inciso LIV, a seguinte cláusula em prol da plenitude

    da cidadania:

  • Art.5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

    LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

    Mas qual é a dimensão e o significado de tão importante princípio? Conceituar devido

    processo legal, de forma a estabelecer sua real extensão e aplicação, é tarefa árdua,

    até porque a expressão é um tanto quanto ambígua e por isso mesmo possui

    significado vago e fluido.

    Mas, como não é a intenção imediata do presente trabalho descer à minúcias a respeito

    de tão fascinante tema, limitar-nos-emos a dizer que a definição do que vem ser devido

    processo legal é variável, não sendo o direito positivo responsável por seu conceito,

    pois este é de somenos importância, notadamente quando se tem em inteligência que o

    que importa efetivamente é visualizar como este princípio influi decisivamente na vida

    das pessoas e nos seus direitos.

    Já se manifestou abalizada doutrina nacional no sentido de que a cláusula do devido

    processo legal não é estanque, mas sim variável de acordo com o momento histórico41

    em que se vive, exigindo assim do intérprete um vigor interpretativo que lhe atribua a

    devida adaptação que a compreensão constitucional exige.42

    Portanto, em linhas genéricas, pode-se cominar ao devido processo legal o condão de

    princípio que influencia e que baliza outros, tal como ocorre exemplificadamente com os

    princípios da igualdade, da legalidade e da Supremacia da Constituição, que serão

    oportunamente mencionados rapidamente no decorrer deste trabalho, e que estão

    umbilicalmente atrelados à democracia moderna.43

    41 ADA PELLEGRINI GRINOVER observa que “justiça, irrepreensibilidade, ‘due process of law’ são

    conceitos históricos e relativos, cujo conteúdo pode variar de acordo com a evolução da consciência jurídica e política de um pais” (In: As garantias constitucionais do direito de ação, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1973, p. 34).

    42 CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1989, p. 56. 43 LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, bem observa que “o princípio da legalidade está, pois, atrelado ao devido

    processo legal, em sua faceta substancial e não apenas formal. Em sua faceta substancial – igualdade

  • Existem, logicamente, outros princípios que estão ligados ao devido processo legal, tais

    como a garantia de um juiz natural, de ampla defesa e contraditório, de publicidade e

    motivação das decisões judiciais, etc. Mas o que importa para o desenrolar do presente

    trabalho é saber que o princípio do devido processo legal é compreendido sob duas

    vertentes. A primeira, de índole processual, torna indispensável o municiamento do

    cidadão a todos as garantias e exigências inerentes ao processo, de modo que se

    mostre resguardado seu direito de não ser atingido por atos sem a realização de

    mecanismos previamente definidos na lei44. Já a segunda, de índole material, exprime o

    sentido de que há a necessidade de se limitar o exercício do poder Estatal, sempre que

    o mesmo, por exemplo, se mostre irrazoável, atingindo, injustamente esfera jurídica do

    homem e da comunidade45.

    Logo, infere-se que o princípio do devido processo legal se aproxima muito de uma

    idéia de justiça participativa e democrática mencionada anteriormente, pois é ele quem

    confere a obrigatoriedade de a solução dos casos concretos, ser pautada por uma

    participação livre e simétrica do jurisdicionado, onde todas as partes possam controlar o

    desdobramento concatenado dos atos processuais.

    3.4 PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO

    Como vimos, os princípios processuais devem ser compreendidos a partir da ótica do

    Direito Constitucional, reafirmando a sólida relação entre Constituição e Processo em

    substancial – não basta que todos os administrados sejam tratados da mesma forma. Na verdade, deve-se buscar a meta da igualdade na própria lei, no ordenamento jurídico e em seus princípio” (In: O devido processo legal e a responsabilidade do Estado por dano decorrente do planejamento”, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, out./dez. 1996, p. 93).

    44 Sobre o tema a doutrina especializada aduz: “Resumindo o que foi dito sobre este importante princípio, verifica-se que a cláusula do procedural due process of law nada mais é do que a possibilidade efetiva de a parte ter acesso à justiça, deduzindo pretensão e defendendo-se do modo mais amplo possível, isto é, de ter his day in Court, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos”. In: ARAÚJO CINTRA, Antônio Carlos de; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 56. 45 O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Velloso, prolatou acórdão que em poucas palavras traz a perfeita essência do aspecto material do devido processo legal: due process of law, com conteúdo substantivo - substantive due process - constitui limite ao Legislativo, no sentido de que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (racinality), devem guardar, segundo W. Holmes, um real substancial nexo com o objetivo que se quer atingir". (In: NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7. ed. rev e atual com as Leis 10.352/2001 e 10.358/2001 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.40).

  • um Estado Democrático de Direito, pois neste vários princípios processuais, insertos

    que estão no Texto Fundamental, aparecem como garantias elementares da cidadania.

    Antes, porém, de darmos enfoque a qualquer temática específica relacionada ao tema

    do presente tópico é importante dizer que contraditório e ampla defesa distinguem-se,

    mas como bem salienta DELOSMAR MENDONÇA JR:

    ...são figuras conexas, sendo que a ampla defesa qualifica o contraditório. Não há contraditório sem defesa. Igualmente é lícito dizer que não há defesa sem contraditório. (...) O contraditório é o instrumento de atuação do direito de defesa, ou seja, esta se realiza através do contraditório.46

    Diante de tal consideração, levando-se em conta que ampla defesa, conforme doutrina

    supra, é o conjunto de garantias que a Constituição propicia ao réu para trazer para o

    processo todos aqueles elementos que, em seu íntimo, são aptos e/ou relevantes para

    o esclarecimento da verdade, nestes inclui-se, também a possibilidade de calar-se ou

    abster-se, se entender necessário. Nesse caminhar, sendo o contraditório a própria

    exteriorização da ampla defesa, merece, com efeito, maior aprofundamento,

    logicamente, dentro dos limites propostos.

    O princípio do contraditório, como consectário lógico do princípio do devido processo

    legal, ratifica mais uma vez a plena necessidade de um ambiente processual

    democrático e plural, em que todos atos exarados sejam sobrepujados por uma efetiva

    participação das partes litigantes, na medida em que, estas, apesar de possuírem

    interesses antagônicos, possuem também a função, com a atuação de seus patronos,

    de colaborar com a construção de um julgamento que se aproxime o quanto mais da

    verdade.

    Com base nesta concepção de contraditório é que é possível fazer a transposição da

    visão privatística de um processo pautado por valores meramente individuais e

    antagônicos, para a valorização de uma visão dialética em que as partes atuam de

    maneira incisiva e efetiva no livre convencimento do juiz, eis que lhes são dadas as

    mesmas inúmeras chances de influir em sua decisão final. 46 Princípios da ampla defesa e da efetividade no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 51.

  • Assim sendo, observa-se que é este princípio que nos dá bases para dizer que em

    todas as fases processuais a participação democrática das partes litigantes representa

    importante método de formação de uma decisão judicial que reflita com mais afinco os

    anseios dos jurisdicionados. Nessa medida, é o contraditório de observância obrigatória

    em todas aquelas fases ou atos do processo que possam, de qualquer forma influir

    positiva ou negativamente em quaisquer direitos das partes litigantes, sendo, portanto,

    juntamente com a garantia constitucional da ampla defesa e da fundamentação das

    decisões judiciais, importante instrumento para a construção de manifestação

    jurisdicional legítima sob o ponto de vista social. Não discrepa do raciocínio ora

    exposto, a doutrina pátria, como exemplificadamente, se vê de MARCELO ANDRADE

    CATTONI DE OLIVEIRA, que ao analisar o tema, afirma que:

    O que garante a legitimidade das decisões são antes garantias processuais atribuídas às partes e que são, principalmente, a do contraditório e a ampla defesa, além da necessidade de fundamentação das decisões. A construção participada da decisão judicial, garantida num nível institucional, e o direito de saber sobre quais bases foram tomadas as decisões dependem não somente da atuação do juiz, mas também do Ministério Público e fundamentalmente das partes e dos seus advogados.47

    Ademais, nunca é cansativo repisar que, sendo o contraditório um direito fundamental,

    não se pode cogitar da criação de obstáculos infundados que a ele sejam impostos, até

    mesmo porque, como fora analisado supra, não mais se cogita de um processo formal

    em que impere acima de tudo e de todos a força impositiva do juiz, mas sim pretende-

    se a colaboração de todos os participantes48, tudo com vistas a guarnecer a justiça das

    decisões49.

    47 CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. Pgs. 78-79. 48 Sobre a dialeticidade processual e a igualdade das partes: O PRINCIPIO DO CONTRADITORIO, COM ASSENTO CONSTITUCIONAL, VINCULA-SE DIRETAMENTE AO PRINCIPIO MAIOR DA IGUALDADE SUBSTANCIAL SENDO CERTO QUE ESSA IGUALDADE, TÃO ESSENCIAL AO PROCESSO DIALETICO, NÃO OCORRE QUANDO UMA DAS PARTES SE VE CERCEADA EM SEU DIREITO DE PRODUZIR PROVA OU DEBATER A QUE SE PRODUZIU. - O SIMPLES EQUIVOCO NA INDICAÇÃO DA NORMA LEGAL VULNERADA NÃO DEVE SERVIR DE OBSTACULO A APRECIAÇÃO DO RECURSO ESPECIAL QUANDO NITIDO O TEOR DA IMPUGNAÇÃO, MESMO PORQUE ELE SE

  • Portanto, limitando-se a abordagem ao tema central da pesquisa, conclui-se que o

    contraditório atua como um importante mecanismo garantidor do pleno exercício da

    liberdade e da própria supremacia da Constituição, eis que sua essência está voltada

    basicamente para um processo que se mantenha sempre dirigido a salvaguardar e

    realizar os valores e interesses constitucionais relevantes.50

    3.5 PRINCÍPIO MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS

    É sempre importante sejam as decisões judiciais motivadas, principalmente se diante

    destas está a resolução de um caso que envolva matéria constitucional. Mas

    especificamente sobre este pontos nos reservaremos a deixá-lo para um momento

    oportuno.

    A própria legitimidade democrática passa pela aceitação e pelo respeito de suas

    decisões tantos pelos demais poderes por ele fiscalizados, quanto, e, notadamente,

    pela opinião pública. Por isso, a legitimi