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10 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE NICOLLE LEMOS DE ALMEIDA PINHEIRO DO SONHO À PUBLICAÇÃO: O ALCANCE LITERÁRIO DAS FANFICS São Paulo 2014

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

NICOLLE LEMOS DE ALMEIDA PINHEIRO

DO SONHO À PUBLICAÇÃO: O ALCANCE LITERÁRIO DAS FANFICS

São Paulo

2014

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NICOLLE LEMOS DE ALMEIDA PINHEIRO

DO SONHO À PUBLICAÇÃO: O ALCANCE LITERÁRIO DAS FANFICS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como pré-requisito à obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Trevisan

São Paulo

2014

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NICOLLE LEMOS DE ALMEIDA PINHEIRO

DO SONHO À PUBLICAÇÃO: O ALCANCE LITERÁRIO DAS FANFICS

Dissertação apresentada à Universidade

Presbiteriana Mackenzie como pré-requisito à

obtenção do título de mestre em Letras.

Aprovado em 5 de agosto de 2014.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Trevisan – Orientadora

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães

Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Marcelo Furlin

UMESP – Universidade Metodista de São Paulo

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Às autoras, leitoras e voluntárias do processo editorial de uma fanfic, que traduzem os próprios sonhos em linhas e, constrangidas ou confiantes, fazem da escrita sua maior aliada.

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P654d Pinheiro, Nicolle Lemos de Almeida.

Do sonho à publicação : o alcance literário das fanfics /

Nicolle Lemos de Almeida Pinheiro. – 2014.

91 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Presbiteriana

Mackenzie, São Paulo, 2014.

Referências bibliográficas: f. 83.

1. Fan fiction. 2. Literatura contemporânea. 3. Ficção

adolescente. 4. Jornada do herói. I. Título.

CDD 401.41

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Agradecimentos

À minha vovó Elma, exemplar único em todo o planeta de uma completa

perseverança, alegria, força e vontade de viver. Meu perdão pela ausência nas

ligações interurbanas e meu agradecimento emocionado pela lista de elogios com

que você sempre, ainda que a distância, me motivou.

À minha mamãe Bianca, por “apagar” tantos incêndios e se dispor incansavelmente

a me ajudar com tudo o que fosse necessário neste trabalho. Te agradeço por esse

espírito desprendido e voluntário que tanto me inspira. A meu papai Augusto, por

suscitar em mim, desde muito pequena, a paixão pelos livros, pela escrita e pelo ser

humano. Ao meu irmão Guilherme, meu eterno bebê, pelas madrugadas de ideias,

risadas e lanchinhos noturnos. Obrigada por seu amor.

À minha irmã (porque “melhor amiga” estaria aquém do real) Milena, minha “marida”,

por todo o carinho, tolerância, amor, dedicação e incentivo com que tem me

presenteado desde o dia em que te conheci, ainda na faculdade de Jornalismo.

Obrigada por todas as dores, alegrias, cafés, sonhos e piadas internas. Mas, acima

de tudo, obrigada pela fidelidade com que você teima em me tratar e por não desistir

de estar eternamente por perto, ainda que longe...

À minha orientadora Ana Lúcia Trevisan, por sua paciência, competência,

direcionamento e estímulo, mantendo-me no foco diante das dificuldades

enfrentadas e me fazendo crer no sentido desta dissertação. Muito obrigada por

caminhar comigo e acreditar nesse projeto. À liderança da Universidade da Família,

meu atual trabalho, pela compreensão quando momentos de ausência se fizeram

necessários para a conclusão deste trabalho. E a cada um que me presenteou com

palavras de incentivo e esperança, amigos ou conhecidos, minha gratidão por suas

orações e por crerem em mim mais que eu mesma.

Ao meu Deus, o dono da minha vida e de cada uma das minhas habilidades, por dar

sentido a elas e me permitir desenvolver uma fé pensante. Que meus sonhos

possam seguir, eterna e incansavelmente, até o último dos meus dias, os desejos do

seu coração.

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“Caminhante, não há caminhos.

Faz-se o caminho ao andar.”

Antonio Machado

"Ninguém deixará de reconhecer a excelência

estética dessas páginas."

Márcia Abreu

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RESUMO

A ficção, em suas mais variadas formas, tem o poder de suscitar no ser humano

reações que seus próprios autores desconhecem. Os fãs, admiradores de

determinada pessoa, personagem, obra ou ideia, se sentem motivados, em um

contexto de efervescente criatividade, a traçar seus próprios rumos narrativos em

relação à figura que admiram. Como uma dessas manifestações, surgem, então, as

fanfics (fan = fãs e fics = de ficção), produções textuais romanceadas que têm como

ponto de partida o foco da admiração de um fã. Com o tempo e o advento da

internet, o contexto da produção destas histórias ganhou configurações

surpreendentes, como a possibilidade de leituras interativas (em que o leitor desfruta

da narrativa sob a perspectiva de alguma personagem) e uma organização editorial

diferenciada, em que autores e leitores interagem entre si alternando papéis e

reduzindo a hierarquia literária típica existente entre emissores e receptores. A

atenção com a qualidade textual das histórias escritas e sua publicação seriada –

trabalho destinado às beta-readers, ou leitoras-beta - também simbolizam um

aspecto importante na produção e divulgação das fanfics, levantando o conceito da

legitimação literária em um gênero desenvolvido por “amadores”. Cabe ainda neste

cenário um paralelo histórico entre as fanfics e os folhetins franceses responsáveis

pela gênese do romance brasileiro: populares, acessíveis, românticos e publicados

de maneira seriada, os folhetins democratizaram a leitura ainda no século XIX,

fenômeno semelhante ao que ocorre com as fanfics atualmente, no século XXI.

Após contemplar a estrutura narrativa interna e o contexto externo que norteia a

produção e publicação das fanfics, bem como as relações existentes em seu

processo de emissão e recepção e suas possíveis origens históricas, se torna

relevante avaliar também os recursos e estratégias literárias utilizadas pelos

adolescentes escritores (como pano de fundo para esta avaliação, é utilizada a

jornada do herói proposta pelo escritor e cineasta Christopher Vogler, que classifica

em 12 os estágios pelos quais o herói ou o protagonista, passa durante sua

trajetória).

Palavras-chave: Fanfic. Literatura Contemporânea. Ficção Adolescente. Jornada do

Herói.

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RESUMEN

La ficción, en sus diversas formas, tiene el poder de provocar reacciones en los

seres humanos que no son conscientes de sus propios autores. Los fans,

admiradores de una persona en particular, personaje, trabajo o idea, se sienten

motivados, en un contexto de creatividad efervescente, sacar sus propias

trayectorias narrativas en relación con la figura que admiran. Como una de estas

manifestaciones aparecen, entonces, las fanfics (fan = fan fiction y fics =),

producciones textuales románticas que tienen como punto de partida el centro de

admiración de un fan. Con el tiempo y el advenimiento de Internet, el contexto de la

producción de estas historias gañó ajustes sorprendentes, como la posibilidad de

lecturas interactivas (que el lector disfruta de la narrativa desde la perspectiva de un

personaje) y una organización editorial distinta, en la que autores y lectores

interactuam papeles, reducciendo la jerarquía típica de la literatura existe entre los

transmisores y receptores. Atención a la calidad textual de cuentos escritos y su

publicación en serie - el trabajo destinado a los beta-readers o lectores beta -

también simbolizan un aspecto importante en la producción y difusión de fanfics,

elevando el concepto de legitimidad en un género literario desarrollado por

"aficionados ". Es también en este escenario un paralelo histórico entre los fanfics y

la génesis de las publicaciones seriadas brasileños románticas francesas: popular,

asequible, romántico y publicado en serie, series democratizaron la lectura en el

siglo XIX, similar al fenómeno que se produce con fanfics hoy, en el siglo XXI.

Después de contemplar la estructura narrativa interna y el entorno externo que guía

la producción y publicación de fanfics, y existiendo en el proceso de envío y

recepción y sus posibles orígenes históricos, se vuelve relevante también evaluar los

recursos y las estrategias utilizadas por los escritores literarios adolescentes (como

fondo para esta revisión está el viaje del héroe propuesto por el escritor y cineasta

Christopher Vogler, que describe las 12 las etapas de que se utiliza el héroe o

protagonista en su trayectoria).

Palabras clave: Fanfic. Literatura Contemporánea. Fiction adolescente. Viaje del

Héroe.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................... 10

1 A ORIGEM DAS FANFICS ...........................................................................13

1.1 Os folhetins: a popularidade da literatura de “segunda mão” ....................... 15

1.2 Internet: reinventando o passado ................................................................19

2 INSPIRAÇÕES: FIGURAS E RAZÕES QUE MOTIVAM ...............................25

2.1 Desejo de controle ....................................................................................... 25

2.2 Proximidade e emissor da mensagem: a força da personagem ....................28

2.3 Estrutura narrativa .......................................................................................30

3 DO OBJETO DE ESTUDO: O SITE FANFIC OBSESSION .............................33

3.1 A estrutura do site .......................................................................................33

3.2 O triângulo da receptividade: as relações entre autoras, leitoras

e beta- readers ....................................................................................................40

4. O CASO DA FANFIC 500 DAYS IN LONDON ...............................................44

4.1 A autora .........................................................................................................44

4.2 Inspiração da autora: a banda One Direction ................................................45

4.3 Abre-se o diário: analisando a fanfic...............................................................46

4.3.1 Verossimilhança: a realidade pelos olhos de quem escreve

e lê ...........................................................................................................................50

4.3.2 A jornada do herói: arquétipos e estruturas míticas .............................56

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................................80

REFERÊNCIAS.........................................................................................................83

ANEXOS ..................................................................................................................84

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Introdução

Há uma inquietude antiga que impulsiona mãos e mentes a criar. Seja para

satisfazer desejos comuns a todo ser humano, suprir os vácuos que a realidade nos

impõe ou retratar a beleza e a tragédia inerentes às mais variadas situações em que

a vida nos coloca, o criar se faz presente. E é neste espaço imaginativo regido por

nossos instintos mais essenciais que nasce o que chamamos ficção. Quando

analisada sob o prisma da espontaneidade, não restrita às altas esferas das belas

letras e dos critérios pré-estabelecidos de literariedade, um vasto campo textual e

criativo se revela.

Inserido neste universo pulsante de criações, a relação entre o leitor e a

trama, por exemplo, ganha perspectivas variadas, tão interessantes quanto as

próprias criações. No fio da mensagem, o lugar da recepção relaciona-se com todo a

dinâmica da comunicação, não apenas pelas coordenadas do emissor, mas também

pela presença de quem recebe a mensagem. Ou seja: diante de um leitor criativo, o

autor não possui controle sobre o que criou, como se perdesse o direito de

propriedade de sua história a partir do momento em que a torna pública. O criar, que

tanto impulsiona autores, motiva também leitores. A receptividade, portanto, não

segue um padrão pré-definido, e pode desencadear reações dos leitores que vão do

simples contentamento com a leitura à necessidade de dar continuidade à vida dos

personagens. Nesse último caso, a dimensão ficcional é tão intensa e motivadora

que gera no público uma espécie de inquietação sintetizada pela seguinte pergunta:

“e se...?”.

Desse modo, é possível se perguntar: e se Hercule Poirot, o consagrado

detetive belga da escritora britânica Agatha Christie, não tivesse falecido em Cai o

Pano (1975), após a resolução de seu último caso, deixando inconsolável o fiel

companheiro Arthur Hastings? Ou se das tramas tão finamente tecidas por Agatha

saltasse, anos depois, uma herdeira de Hercule – ou uma antiga paixão – que desse

continuidade ao legado do personagem?

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Indo um pouco mais além: e se o ex-beatle John Lennon e sua esposa Yoko

Ono, tão conhecidos pela luta ativista em favor da paz, não tivessem sido separados

pela morte em 8 de dezembro de 1980, quando um fã disparou 5 tiros contra o

cantor? Ou: o que ainda seria dos 4 integrantes se a banda não tivesse sido

oficialmente desfeita em 10 de abril de 1970?

Perguntas como estas levam às alturas a imaginação de leitores e fãs. É

exatamente essa combinação (a leitura e a admiração por determinado personagem,

seja ele real ou não) que tem funcionado como uma espécie de combustível na

realização do desejo de continuidade da vida das personagens por parte do público:

e se? E se?

Como em uma vazão, em que a força encontra meios de escapar, as

primeiras histórias “continuadas” começaram a surgir no Brasil. Não oficiais, não

biográficas, não pertencentes às altas esferas literárias - apenas histórias que

saciavam a ânsia de admiradores e fãs. Historicamente, as chamadas fanfics (do

inglês, fan = fã, fics = ficção) nascem como uma espécie de diário em terceira

pessoa, traçando novos rumos para personagens reais ou ficcionais que já existiam.

Com o desenvolvimento da web e de páginas de relacionamento (como o Orkut, o

Facebook e suas comunidades e grupos de afinidades) as fanfics passaram a ser

publicadas por seus autores na internet – em sua grande maioria mulheres, jovens e

adolescentes. O fenômeno, então, ganha repercussão, atingindo leitores que

compartilhavam do mesmo desejo de continuidade em relação às personagens de

algum livro, filme, cantor, grupo musical ou figura pública. O “E se” ganhou um

convite do “Saiba como seria”, e as histórias escritas pelos fãs foram recebendo

configurações estéticas e editoriais surpreendentes. O fenômeno da publicação

online das fanfics deu origem a uma nova estrutura literária, carregada de símbolos

e significados, em que autores, leitores e texto estabelecem entre si uma relação de

cumplicidade e amor à fantasia.

Diante desse cenário, este estudo se propõe a analisar o gênero fanfic, bem

como de sua origem, contexto editorial e alcance, levando em conta a perspectiva

que orienta este tipo de produção textual e a reciprocidade de seu público. As fanfics

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refletem de maneira dinâmica as relações que se estabelecem entre autor, mediador

(as chamadas beta readers, função que será detalhada mais adiante), leitor e texto.

Torna-se pertinente, também, a discussão do valor estético de tais obras e

seu lugar no universo literário contemporâneo. Visto que o reconhecimento editorial

e a publicação destes textos se tornam fenômenos cada vez mais intensos, é

importante olhar tais produções sob a perspectiva de critérios tidos como

legitimadores no âmbito literário. Para traçar esse paralelo, uma fanfic em particular,

(500 Days In London, veiculada no site Fanfic Obsession), foi utilizada como recorte

dentre as demais e avaliada sob a perspectiva dos 12 estágios da Jornada do Herói

proposta pelo escritor Chistopher Vogler em sua obra A jornada do escritor (2011).

Para a análise da estrutura editorial que envolve as fanfics, foi adotado como

objeto e referência de estudo o site brasileiro Fanfic Obsession. Um dos mais

acessados pelas leitoras do gênero, o chamado FFO possui um vasto acervo de

histórias já publicadas e em andamento, promove concursos, desafios e premiações

entre as autoras e leitoras, é referência em interatividade e possui uma sólida

organização estrutural e de postagens das histórias.

Com a proposta de se avaliar a origem das fanfics, bem como as razões que

motivam sua produção, as relações de emissão e recepção, a estrutura editorial e a

organização interna baseada na consagrada jornada do herói, tem-se o intuito de

trazer à luz a relevância literária de um gênero criativo que vive à margem das

literaturas consagradas. Fruto do impulso criativo de um público receptor (fãs), as

fanfics traduzem a riqueza com que a ficção aguça o intelecto do ser humano e

motiva-o, pelo simples prazer da leitura, a alimentar uma rede editorial vista e vivida

apenas por eles mesmos.

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A origem das fanfics

A origem deste tipo de escrita ficcional se apoia em duas possíveis vertentes,

que são complementares. Em um primeiro plano, essa origem pode ser observada

como uma releitura dos folhetins franceses do século XIX, responsáveis em grande

parte pelo nascimento do romance brasileiro. Marcados por uma veiculação

fragmentada e de grande apelo popular, os folhetins geraram certa democratização

da leitura em um contexto de alto analfabetismo e centralização cultural por parte

das classes dominantes da época, trazendo para as primeiras páginas dos jornais

um material literário até então restrito ao público dos livros impressos.

Em um segundo plano de origem das fanfics está essa mesma influência do

gênero folhetim, porém reinventada ao longo do tempo (tendo como subprodutos a

radionovela e a telenovela, por exemplo), ressurgindo na produção ficcional

contemporânea (a webnovela e a fanfic). Vinculado agora à web e suas redes

sociais, os “atuais folhetins”, salvos os devidos contrastes temporais e estruturais

detalhados nos próximos capítulos deste trabalho, mantém aspectos marcantes do

gênero folhetinesco clássico, como a veiculação em “fatias”, a manutenção do

suspense e a grande identificação popular.

Tem-se em mãos, portanto, duas ideias de nascedouro para as fanfics: a que

nos remete à origem do romance brasileiro através dos folhetins do século XIX; e a

que combina o advento da internet, com suas linguagens e ferramentas próprias de

produção literária, à influência histórica dos folhetins. Basicamente, enquanto a

primeira vertente de origem trabalha com a raiz histórica do romance, a outra toma

como enfoque a reinvenção desse mesmo romance, produzido sob novas

perspectivas e com características próprias da literatura atual desenvolvida na

internet.

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Entretanto, antes de se detalhar cada uma das vertentes de origem, é

importante ressaltar um aspecto comum entre elas – característica que simboliza

tanto a essência da produção folhetinesca como da produção de fanfics: a

popularização da literatura.

De um lado vê-se o Brasil da primeira metade do século XIX, despontando

em sua vida cultural baseada na importação dos costumes e ideais europeus. A

literatura que antes se restringia, em sua maioria, aos instantes de entretenimento

da elite feminina da época, passa a atingir as camadas mais populares da sociedade

sendo publicada em jornais, em “fatias”, por meio dos folhetins. A democratização da

produção e da leitura se estende quando, além das obras francesas traduzidas,

passam a ser veiculados os romances nacionais (que embora espelhassem o

modelo de vida europeu, abriram as portas para obras como A Moreninha, em que a

personagem central se aproximava mais do padrão de beleza da mulher brasileira

do que da europeia). Fazendo uso da atraente forma seriada, os folhetins cativavam

os leitores e se infiltraram no cotidiano da sociedade da época, que ávida por saber

o desenrolar das histórias que acompanhavam, tornavam-se assíduos na leitura dos

jornais. Percebe-se, portanto, uma popularização da literatura em dois níveis: no

âmbito da democratização da leitura e da própria produção literária.

Do outro lado vê-se o Brasil do século XXI, com grande parte de sua

população alfabetizada e inserida em uma cultura de múltiplas influências. Na

década dos anos 2000, com a popularização da internet e posteriormente das redes

sociais, os jovens brasileiros passaram a ter um acesso diferenciado às inúmeras

vertentes do romance: os livros em suas versões e-book, os filmes assistidos online,

os capítulos das telenovelas postados em vídeos na web. Nesse contexto de

efervescência do romance na web, surge a webnovela – gênero escrito e divulgado

exclusivamente na internet - que dá origem às fanfics. Embora atualmente haja, de

modo geral, fácil acesso da sociedade brasileira à internet e a todas as vertentes do

romance aqui mencionadas, é importante visualizar a popularização sob a

perspectiva que utilizamos anteriormente, ou seja, não apenas do consumo, mas

também da produção. Nesse aspecto, salta aos olhos a influência da web

especialmente no âmbito literário: ela tanto permitiu aos leitores um acesso

diferenciado às obras que os interessavam, como possibilitou que autores

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produzissem e divulgassem suas obras sem os custos e trâmites editoriais das obras

impressas. Não há praticamente nada que impeça alguém de ler, comentar, produzir

e divulgar romances na internet. Nessa configuração atual, portanto, vemos um novo

modo de ler e de produzir literatura, marcado por leitores atuantes (que se conectam

diretamente aos autores, e vice-versa), experiências de leitura interativas e

produções ainda mais democráticas.

Para uma compreensão detalhada do processo de nascimento das fanfics,

as duas vertentes de origem, bem como suas influências de popularização da

literatura, seguem expostas aqui separadamente.

1.1 Os folhetins: a popularidade da literatura de “segunda mão”

Como mencionado anteriormente, a primeira vertente de origem das fanfics

nos remete ao nascimento do romance ficcional brasileiro. Entretanto, não tratamos

aqui dos clássicos ou das produções consagradas, mas àquelas obras que as

inspiraram. Ao analisá-las, propõe-se um estudo dos bastidores “não-cultos” do

romance brasileiro como ponto de partida para a fanfic. Marlise Meyer, em sua obra

Folhetim, uma história, conecta essa literatura de “segundo time” – como a autora

chama as novelas franco-inglesas que abriram as portas para a disseminação do

folhetim no Brasil – contribuíram as origens de nosso romance:

Muito ambicioso, meu plano inicial visava, a partir de um cotejo de textos e processos narrativos, analisar o papel formador dessas leituras na elaboração de nossa ficção em prosa. Não eram, no entanto, os grandes modelos “cultos” (Walter Scott, Hugo, Balzac) que me interessavam. [....] Pretendia essencialmente verificar a asserção segundo a qual o folhetim romântico francês tivera função preponderante na gênese do nosso romance. (MEYER, 1996, p. 26).

Para traçar este panorama, Meyer fez um extenso levantamento que foi

publicado em duas partes: a que percorre o caminho do folhetim na França, e a

outra, no Brasil. Na primeira parte, a autora busca a nascente deste tipo de

produção ainda no início do século XIX. Na época, o termo folhetim, ou le feuilleton,

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caracterizava não um tipo de produção literária, mas sim um lugar específico no

jornal - o rodapé - geralmente na primeira página. Essa área delimitada tinha um

intuito: o do entretenimento. Nela se falava de quase tudo: piadas, charadas,

receitas de cozinha, peças teatrais, livros, entre outros temas. Com um espaço nos

jornais exclusivo para a imaginação do leitor, escritores menos experientes podiam

“treinar sua narrativa” ao publicar os textos em série ali, o que proporcionou um

fortalecimento à ficção.

A fórmula seriada do “continua no próximo número” deu certo. De uma

estratégia jornalística nasce um novo gênero de romance: “o indigitado, nefando,

perigoso, muito amado, indispensável folhetim “folhetinesco” de Eugène Sue,

Alexandre Dumas pai, Soulié, Paul Féval, Ponson du Terrail, Montépin, etc, etc.”

(MEYER, p.58). A partir daí, o próprio modo de publicação e ficção da época são

afetados, e praticamente todos os romances passam a ser apresentados nos jornais

e revistas em forma de folhetim.

É importante reforçar que esse modo particular de publicação das histórias

favorecia também ao jovem autor o acesso à divulgação – o que ocorre no cenário

contemporâneo com as fanfics. É a popularização de que falamos anteriormente: por

serem espaços mais “democráticos”, tanto o rodapé dos jornais como a internet

(meio através do qual são publicadas as fanfics) permitem que autores

desconhecidos ou sem tanta experiência publiquem seus romances. Sem as

barreiras editoriais clássicas intrínsecas a publicação de um livro, os leitores são

cativados de um modo muito mais fácil – em parte pela estratégia da seriação, eficaz

e sedutora; em parte pela própria estrutura do folhetim, mais acessível que o livro.

Deve-se ressaltar também que não houve um conflito de interesses entre as

obras folhetinescas e os livros. Ao contrário, já que as fatias de romances publicadas

funcionavam como perfeitas iscas para a posterior compra dos livros em volume.

Esse fenômeno ocorreu também no Brasil, a princípio com o Jornal do Comércio – e

é justamente aí que adentramos na segunda parte da análise de Meyer: a introdução

folhetinesca em nosso país.

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De modo geral, pode-se dizer que seguimos a estrutura francesa. Os

primeiros romances publicados nos rodapés dos periódicos brasileiros eram,

sobretudo, traduções do francês, como o clássico Mystères de Paris, de Eugène

Sue, que aportou por aqui na edição de 1º de setembro de 1844 do Jornal do

Comércio. Meyer nos expõe esse panorama:

E enquanto continuam se sucedendo listas de “moderníssimas novelas”, no rodapé do jornal vão se sucedendo as fatias de romance-folhetim traduzidas dia após dia do francês, introduzindo angústia e suspense com o fatídico “continua-se”. [...] Até que, finalmente, chegam ao rodapé, em português, os tão esperados Mistérios de Paris. [...] Salvo uma ou outra interrupção, “vem à luz” todos os dias e ocupa praticamente o suplemento dominical inteiro. [...] Nem um mês depois de iniciada a publicação, em 1º de outubro de 1844, sai, pela primeira vez na história do jornal, um reclame enorme, com tipos garrafais, ocupando toda a sua largura, em rodapé: “Acham-se à venda em casa de J. Villeneuve * Cia., rua do Ouvidor, 65, OS MISTÉRIOS DE PARIS. Primeira parte – um volume – nítida edição – 1$00”. [...] Não faltam testemunhas do impacto de Os mistérios de Paris. (1996, p. 284).

Impacto, aliás, é um aspecto determinante ao pousarmos os olhos no

vínculo entre os folhetins e os leitores de nosso país. Romances como Mistérios de

Paris foram sucedidos por outros e outros, em um fenômeno que invadiu mentes e

corações ávidos por viajar nas linhas românticas da ficção:

[...] é a curiosidade das filhas de família que lêem todos os dias o folhetim do Jornal do Comércio, cada qual mais doida para chegar ao fim da história. E a curiosidade de uma mulher é como uma mariposa ao redor da luz: não descansa enquanto não se satisfaz. (1996, p 291).

De fato, a curiosidade é a força motriz da publicação em série. Valendo-se

dessa e de outras estratégias, autores e tradutores folhetinescos – bem como os

autores de fanfics – fatiaram suas tramas e as lançaram direto no imaginário do

público. Ana Lúcia Silva Resende de Andrade Reis, em seu artigo O Romance de

Folhetim no Brasil do Século XIX, destaca o suspense como uma ação que

fomentava a aquisição dos jornais na época:

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Para os jornais o arranjo era extremamente vantajoso, já que o

número de leitores teve um salto vertiginoso que fez, em

determinados momentos, a publicação dos romances folhetim

fracionados diariamente ser o sustentáculo de vendas. Para os

autores, apesar das dificuldades iniciais com a novidade na forma de

publicar, as estruturas folhetinescas foram pouco a pouco sendo

assimiladas como estratégia apelativa a ser usada na construção dos

romances. A cada final de capítulo tornava-se inevitável a dúvida: “E

agora, o que é que vai acontecer?” Assim, ao aguçar a curiosidade

do público leitor, garantia-se a vendagem e aumentava-se o número

de assinantes [...]. Dessa forma, sempre que se finalizava um

capítulo, o enredo alcançava um momento culminante, o texto era

interrompido propositalmente, a fim de manter o suspense e a

expectativa dos próximos acontecimentos. Caso o leitor quisesse

saber o desfecho da história, precisava comprar a edição do dia

seguinte, quando sairia publicada a continuação. (REIS, 2014, p.4)

A receptividade dos leitores também é um fator relevante nesse quadro,

especialmente pelo efeito de proximidade com eles alcançado. É possível, daí,

traçar outro paralelo com as fanfics: por se tratarem de produções escritas

especialmente por e para adolescentes, as fanfics são histórias carregadas de

traços diretos e indiretos do cotidiano deles e de seus dramas pessoais. São

recorrentes os problemas de relacionamento com os pais, o refúgio através da

amizade com a melhor amiga, o dia-a-dia na escola (muitas personagens centrais de

fanfics estão no colégio) e, obviamente, os relacionamentos amorosos, seu nascer e

crescer, suas idas e vindas, dores e encantamentos. Ao funcionar como um caminho

de fantasia que supre as lacunas existenciais, gera identificação e entretém o leitor,

as fanfics, tal como os folhetins, cativam seu público com muita facilidade. O recurso

da seriação, ancorado no corte estratégico do capítulo, também acaba por gerar

uma conexão eficaz com o receptor, que aguarda ansiosamente a continuidade das

histórias:

Comum a todos, e importantíssimo, era o suspense e o coração na mão, um lencinho não muito longe, o ritmo ágil de escrita que sustentasse uma leitura às vezes, ainda soletrante, e a adequada utilização dos macetes que amarrasse o público e garantissem sua fidelidade ao jornal, ao fascículo, e, finalmente ao livro. (MEYER, 1996, p. 303).

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Em suma, é possível perceber que aspectos como o meio de publicação,

acessível a leitores e autores, a estrutura de corte e seriação das obras, os temas

românticos e o aguçar da curiosidade e fidelidade do leitor fazem do folhetim um

gênero que, mesmo separado por dois séculos das contemporâneas fanfics, se

conecta a elas em traços nítidos de similaridade. Conclui-se, portanto, que os

folhetins, entendidos como expressões literárias que saciavam o imaginário

romântico do público e se conectavam diretamente a ele, foram precursores de uma

série de produções românticas que os sucederam, como a radionovela, a telenovela,

a webnovela e, finalmente, dentro deste último grupo, as fanfics.

1.2 Internet: reinventando o passado

A segunda vertente de origem da fanfic, que remete ao desenvolvimento da

internet e das redes sociais, pode ser observada nas webnovelas (novelas

publicadas na web) e que podem ser definidas, no Brasil, como uma espécie de

primeira fase das fanfics. A partir do ano 2000, com a popularização da internet nos

lares brasileiros, blogs, redes sociais e sites voltados para fãs permitiram que o

público não apenas tivesse a possibilidade de se integrar, mas de compartilhar

interesses e produções próprias:

Em 2002, nasceram o Fotolog e o Friendster. Esse primeiro produto consistia em publicações baseadas em fotografias acompanhadas de ideias, sentimentos ou o que mais viesse à cabeça do internauta. Além disso, era possível seguir as publicações de conhecidos e comentá-las. [...] Em seguida, ao longo de 2003, foram lançados o LinkedIn (voltado para contatos profissionais) e o MySpace (que foi considerado uma cópia do Friendster). [...] 2004 pode ser considerado o ano das redes sociais, pois nesse período foram criados o Flickr, o Orkut e o Facebook — algumas das redes sociais mais populares, incluindo a maior de todas até hoje. O Orkut dispensa apresentação. A rede social da Google foi durante anos a mais usada pelos internautas brasileiros, até perder seu título para a criação de Mark Zuckerberg em dezembro de 2011. Um dos

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levantamentos mais recentes aponta que cerca de 29 milhões de pessoas ainda o utilizam. (DAQUINO, 2012)1

Desse modo, jovens e adolescentes fãs de determinada novela, filme,

banda ou livro passaram a reunir-se online e compartilhar experiências, impressões

e informações. E dentro desse cenário, o desejo de escrever ao seu próprio modo

uma ficção sobre a figura admirada ganhava força.

Fãs da personagem Harry Potter, da autora J. K. Rowling, por exemplo,

traçavam suas próprias linhas para a vida do pequeno bruxo; admiradores da novela

Rebelde, produção mexicana transmitida pela emissora SBT entre o ano de 2005 e

2008, escreviam ficções ora sobre os casais estabelecidos pelo autor original, ora

sobre possíveis romances entre os atores que os interpretavam, ora mesclando a

trama e a vida real; e assim, fãs dos mais variados tipos de produções foram

trazendo à tona suas próprias novelas – que, por serem publicadas na internet, logo

foram batizadas com o nome webnovelas. A linha que permite uma classificação

específica entre webnovelas e fanfics é tênue, mas, de modo geral, é possível dizer

que a primeira representa o gênero em si (todas as produções literárias românticas

veiculadas na web), enquanto a última caracteriza um tipo específico dela – as

fanfics que são escritas e publicadas por fãs, tendo como personagens centrais a

figura que admiram.

Não foi possível precisar a data exata em que as primeiras webnovelas

teriam sido publicadas, mas pode-se identificar um aumento vertiginoso no número

de produções e acessos por volta do ano de 2004, com o surgimento do Orkut no

Brasil. Nos fóruns criados nas comunidades do Orkut foram surgindo as primeiras

publicações seriadas e os vínculos de incentivo entre leitores e autores. Esses

fenômenos não se restringiam ao Orkut - como já mencionado, as webnovelas

também eram publicadas em sites e blogs - mas esta rede de relacionamento em

1 DAQUINO, Fernando. A história das redes sociais: como tudo começou. Disponível em

http://www.tecmundo.com.br/redes-sociais/33036-a-historia-das-redes-sociais-como-tudo-comecou.htm . Acesso em 12 de abril de 2014.

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particular concentrava a maior parte dos fãs e oferecia uma estrutura mais completa

e eficaz de postagens, comentários e divulgação através de suas “comunidades”.

Por volta do ano de 2008, com o início da popularização do Facebook no

Brasil, o Orkut foi perdendo sua força. O curioso é que o Facebook possui uma

estrutura distinta e não admite a criação de fóruns nos moldes utilizados até então, o

que não permitia que as postagens das histórias fossem feitas diretamente na rede

social, como funcionava com o Orkut. Ganharam força nesse processo, portanto, os

sites especializados na postagens de fanfics. Portais específicos para este tipo de

gênero e cada vez mais estruturados com categorias, classificação etária,

competição de histórias, eventos, revisão de textos e leitura interativa.

Esses dois últimos aspectos merecem um destaque especial. O primeiro

deles, o da revisão de textos, por ter dado origem a uma nova figura, totalmente

estratégica na qualidade editorial e postagem das fanfics: a beta-reader. No caso do

site escolhido para análise neste trabalho, o Fanfic Obsession, essa é a

nomenclatura dada à pessoa responsável pela leitura, correção, classificação e

postagem das fanfics. Nos demais sites, há uma ou mais pessoas que

desempenham essa tarefa, ainda que não sob tal nomenclatura (a questão da beta-

reader e seu papel serão exploradas no Capítulo 3).

O segundo aspecto, da leitura interativa, também merece destaque. Não só

por permitir ao leitor uma experiência literária única e personalizada, colocando-o no

centro da trama ou onde ele queira estar, como também torna palpável o anseio que

por séculos acompanha leitores dos mais variados gêneros: o desejo de

protagonização.

Para entendermos o percurso da interatividade, é preciso caminhar passo a

passo. E o primeiro deles é entender que a leitura interativa não é adotada por todos

os autores e sites de fanfics. As obras que apresentam essa alternativa de leitura

são chamadas de fanfics interativas e já são escritas por seus autores sob essa

perspectiva.

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A leitura interativa é uma das vantagens da utilização da internet como

plataforma de divulgação e exemplo prático da evolução dos sites destinados às

fanfics. Cada vez mais empenhados em atingir o ápice de uma experiência de

vivência da trama, autores e moderadores dos sites passaram a instalar um sistema

de pop-ups (abertura de janelas paralelas da internet) em que diversas perguntas

são feitas ao leitor antes do acesso à história. Ao responder a tais perguntas, o leitor

tem a possibilidade de definir os nomes das personagens da trama e outros

detalhes, como endereços residenciais, nomes de locais que as personagens

frequentam, e, especialmente, quem será seu par romântico na fanfic.2

Usemos como exemplo a fanfic tomada para análise: a 500 Days in London,

postada no site Fanfic Obsession, nosso objeto de estudo. Gisele Castro, autora da

fanfic, optou por torná-la interativa e definiu previamente as perguntas que

considerava adequadas para tal leitura. Desse modo, ao clicarem no ícone que dá

acesso a fanfic, os leitores têm acesso às pop ups que deverão responder para ler a

história na “sua” versão. Ao final das perguntas, se depararão com uma trama em

que as personagens, bem como os outros detalhes requisitados nas perguntas,

seguirão o script determinado por ele próprio.

Outro aspecto relevante oferecido às produções literárias veiculadas na

internet é que há grande proximidade, ainda que virtual, entre autores e leitores. É

comum nas redes sociais, por exemplo, a formação de grupos que reúnem

admiradores de determinada fanfic. Desse modo, é possível que a fanfic “A”, por

exemplo, suscite a criação espontânea de um grupo de nome “A” ou

“admiradores/leitores de A” no facebook (embora esse processo ainda possa existir

em outras redes de relacionamento, como no Orkut). Nesses grupos é frequente a

interação dos leitores com o autor, especialmente sobre o tema da fanfic e a

postagem dos capítulos. Assim, se a fanfic “A” tem como tema central a personagem

de Harry Potter, as leitoras compartilham entre si e com a autora notícias, vídeos,

fotos e outros materiais relacionados não só aos livros e filmes da saga, como

também aos atores que a interpretam. É nesses grupos também que se reforça o

2 Um exemplo de interatividade na leitura de fanfics se encontra no Anexo A deste trabalho.

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vínculo com os leitores, já que o autor dá algumas prévias do que irá acontecer com

as personagens da fanfic, suscitando a expectativa de seu público.

É curioso, portanto, observar essa nova configuração entre “emissor” e

“receptor”: retomando a figura dos folhetins, enquanto neles há um distanciamento

entre os autores e seus leitores, no caso das fanfics a hierarquia natural que

distingue um autor de seu leitor é extremamente reduzida. Por serem, ambos,

admiradores de um tema específico, há uma cumplicidade nata entre eles, um ponto

de convergência que reduz as distâncias. Em suma, são todos fãs – com a ressalva

de que um deles escreve sobre a figura admirada, enquanto os demais o seguem,

incentivando e acompanhando a produção.

Isto se dá porque a identificação do leitor, essencial no processo de

receptividade de um texto literário, é a essência de uma fanfic. A fanfic já nasce com

o intuito de satisfazer o sonho narrativo de um fã – o que, independentemente da

vontade do autor, também é compartilhado com os demais fãs da figura admirada

que é base da sua história. Somando-se a isso o fato de que a internet permite uma

resposta imediata ao texto, é fácil compreender não só o modo como os leitores

incentivam e acompanham a produção, mas os desdobramentos gerados por eles,

como os grupos paralelos de relacionamento mencionados.

Outra nova configuração que surge com as fanfics, fator que comprova a

redução hierárquica destacada anteriormente, é a figura do “autor-leitor”. Não é

incomum muitos dos leitores escreverem suas próprias fanfics e, paralelamente a

isso, incentivarem a leitura das obras de seus colegas. No próprio desenvolvimento

deste trabalho, a autora da fanfic selecionada para análise, a paulista Gisele Castro,

apontou diversas colegas escritoras, também leitoras, como referência de estudo. O

vínculo de proximidade e incentivo mútuo entre autores e leitores de fanfics supera,

portanto, a hierarquia que por séculos norteou a estrutura literária clássica que

conhecemos.

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As fanfics se apresentam como uma produção, portanto, que democratiza

não só a relação entre emissor e receptor, como também a própria produção

literária. Para escrever uma fanfic, basta ser fã e divulgar sua história em um dos

sites destinados à publicação de fanfics. Mas é importante ressaltar que, ainda que

democrática, a livre produção não garante às autoras o sucesso de suas fanfics.

Mesmo nos sites especializados há fanfics que se destacam das outras, geralmente

pelo número de leitores que as acompanham. Ainda assim, não há critérios que não

legitimem as fanfics menos lidas ou as retirem dos sites em que são publicadas. A

dinâmica editorial das fanfics não envolve editoras, margens de lucro, agentes

literários ou outros aspectos que determinem o fracasso da obra; o insucesso de

uma fanfic é silencioso, geralmente sentido apenas pela própria autora através da

falta de reciprocidade dos fãs-leitores – o que não ocorre com a dinâmica das

produções impressas, que imputem no autor a responsabilidade de cativar o público

e mantê-lo fiel à obra, estando ele sujeito a perder seu meio de divulgação caso a

resposta dos leitores não seja a esperada.

No caso das fanfics, portanto, o conceito de popularização ocorre no nível

da produção textual (realizada a um baixo custo, sem os critérios editoriais típicos da

mídia impressa, com livre produção e divulgação), da leitura (acessível e interativa,

permitindo uma experiência única e personalizada) e da interação entre leitores e

autores (através de fóruns, comunidades, grupos ou comentários diretos).

Concluindo este primeiro ciclo, percebe-se, portanto, que a origem das

fanfics é apresentada aqui de duas formas distintas. Na primeira, entende-se como

ponto de partida as primeiras publicações folhetinescas lançadas no Brasil; na

segunda, vê-se a fanfic como uma reinvenção do romance tradicional originada

através da web e das redes sociais, plataformas-base para as publicações e para

uma nova concepção de leitura, leitores, autores e as relações de emissão e

recepção estabelecidas entre eles.

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Inspirações: figuras e razões que motivam

As fanfics nascem do desejo de saciar o imaginário do público no que se

refere à continuidade ou à criação de histórias que envolvem as figuras que os

autores admiram. No entanto, é necessário aprofundar esse conceito para

compreender o desenvolvimento do processo que origina uma fanfic. Tratando-se do

imaginário feminino e adolescente, maior público produtor e consumidor das fanfics,

é possível perceber que a essência motivadora das histórias é, em sua grande

maioria, figuras famosas do universo juvenil. São cantores, como John Mayer, Justin

Bieber, Taylor Swift, Miley Cyrus; grupos musicais, como One Direction, McFly,

Good Charlotte, Fresno, Cine, e até Beatles; e personagens de livros, filmes e

seriados, como os da Saga Crepúsculo, Harry Potter, Supernatural, Gossip Girls,

Friends, entre outros.

As fanfics, seja qual for a inspiração que as tenha motivado, apresentam

traços recorrentes que, se não definem um padrão, ao menos nos direcionam a ele.

Levando em conta que um dos grandes objetivos desse tipo de produção é a

soberania sobre a trajetória de quem se admira, fica mais fácil compreender tais

características. Vamos a elas:

2.1 Desejo de controle

Toda fanfic tem o intuito de trazer a figura admirada para o círculo do controle

do autor. A pergunta “e se...?” finalmente ganha um direito de resposta, que está à

mercê da criatividade de quem narra a história. Qual adolescente não gostaria de

direcionar os passos de seu ídolo, as decisões que ele irá tomar, o hotel em que vai

se hospedar, quais itens do cardápio irá escolher e, especialmente, com quem ele

se envolverá amorosamente? Quais jovens não gostariam de utilizar uma borracha,

apagando o que consideraram errado na vida de quem admiram, reescrevendo sob

sua perspectiva o que creem que poderia ter acontecido? Quais deles não gostariam

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de ter o poder de tecer os próximos capítulos da vida de seus ídolos? Esse universo

que pertence ao imaginário das fãs é a matéria prima para a estrutura da ficção

própria das fanfics.

O desejo de controle, entretanto, não costuma entrar em choque com a

questão da verossimilhança. Ter o controle sobre cada aspecto da vida de um

personagem, quando se trata de fanfic, é algo que não pode se aproximar do

absurdo ou passar muito distante da realidade - caso contrário, a história é

automaticamente rejeitada pelos leitores. Existe, portanto, um limite para a

imaginação nas fanfics: a criatividade do autor é ainda mais aceita pelos leitores a

medida em que este insere elementos reais da vida do ídolo na história.

É interessante, neste aspecto, aprofundarmos a questão da

verossimilhança. De acordo com o conceito encontrado no Dicionário de Termos

Literários de Carlos Ceia, há duas grandes formas de verossimilhança que se inter-

relacionam. Uma delas é interna, ligada à coesão própria da obra e aos elementos

fundamentais da construção narrativa; a outra é externa, que conecta a estrutura do

discurso narrativo com uma série de outros discursos sócio-culturais em que a obra

é pulverizada:

A verossimilhança externa utiliza um conhecimento já sedimentado

por parte do receptor da obra artística, o que facilita sua leitura e

aceitação. A certeza do receptor, ou no caso, do consumidor, decorre

de indicadores externos, de discurso já arqueologicamente

constituído e fixados como sentido comum. A verossimilhança

interna, ao contrário, apoia-se intrinsecamente na necessidade

morfológica da própria organização da narrativa. Na verossimilhança

externa, a referência é bastante explícita ou pelo menos de mais fácil

verificação. Na interna, depende da composição, do arranjo das

partes entre si e da significação que pode então produzir. (CEIA,

2014).3

3 CEIA, Carlos. E-dicionário de termos literários. Disponível em http://www.edtl.com.pt/ . Acesso em

12 de abril de 2014.

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No caso das fanfics, é possível afirmar que a verossimilhança ganha toda a

perspectiva que rege a produção literária. No processo narrativo, cria-se a ilusão da

verdade, que parte de um conhecimento comum partilhado pelas autoras e leitoras.

A coerência em relação a este conhecimento comum, que corresponde à

verossimilhança externa, é tão crucial na receptividade das leitoras quanto a coesão

e o sentido da narrativa, que são a verossimilhança interna. Embora a essência da

fanfic se baseie no livre romancear de um fã sobre a figura que admira, é necessário

que a narrativa obedeça aos critérios mínimos em que a verossimilhança (tanto

interna como externa) se baseia. Quanto mais elementos verossímeis a história

apresenta, mais credibilidade e identificação ela gera.

Outro aspecto interessante da verossimilhança é o papel desempenhado

pelos fatos reais. A força desses elementos é determinante no processo de criação

pela sensação de proximidade e controle que provocam. Em A personagem de

ficção, Antônio Cândido ressalta essa questão ao relacionar as informações que

absorvemos na leitura de um romance à sensação de domínio e satisfação:

Em consequência, no romance o sentimento da realidade é devido a

fatores diferentes da mera adesão ao real, embora este possa ser, e

efetivamente é, um dos seus elementos. [...] digamos que uma

personagem nos parece real quando o romancista “sabe tudo a seu

respeito”, ou dá esta impressão, mesmo que não o diga. É como se a

personagem fosse inteiramente explicável; e isto lhe dá uma

originalidade maior que a da vida, onde todo o conhecimento do

outro é, como vimos, fragmentário e relativo. Daí o conforto, a

sensação de poder que nos dá o romance, proporcionando a

experiência de “uma raça humana mais manejável e a ilusão de

perspicácia e poder” (Ob, cit., p.62). Na verdade, enquanto na

existência quotidiana nós quase nunca sabemos as causas, os

motivos profundos a ação dos seres, no romance esses nos são

desvendados pelo romancista, cuja função básica é, justamente,

estabelecer e ilustrar o jogo das causas, descendo a profundidades

reveladoras do espírito. (CÂNDIDO, p. 66)

De fato, a relação estabelecida entre o leitor e a verossimilhança contida

no romance envolve aspectos que vão além da coerência e da credibilidade da obra.

A sensação gerada pelo conhecimento, seja em relação a uma personagem ou ao

contexto narrativo que a envolve, gera um processo de identificação e proximidade

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intensos no leitor. Essas e outras estratégias literárias muitas vezes são

estabelecidas com um objetivo primordial: permitir que a experiência entre leitor e

trama seja eficaz ao ponto em que ele viva a história. Tal aspecto nos leva ao

próximo item: a estratégia do enunciatário.

2.2 Proximidade e emissor da mensagem: a força da personagem

Trazer o ídolo ou a personagem admirada para perto é outra característica

fundamental dessas produções. Em sua grande maioria, as fanfics são narradas em

primeira pessoa, fazendo com que as meninas vivam a experiência da proximidade,

envolvendo-se diretamente com os ídolos ou sendo inseridas nas histórias das quais

antes eram apenas expectadoras. Trata-se de um mergulho direto na fantasia, uma

co-participação. É o direito de viver a trama como parte dela.

Colocar-se no lugar da personagem principal, ou outra com a qual o leitor se

identifique, é um processo natural, não restrito à literatura. Com a tendência natural

de identificação do leitor, no caso da internet esse processo é ainda mais eficaz com

o recurso da interatividade. Por meio dela, a experiência de personalização ganha

perspectivas maiores diante da nova figura do leitor-personagem. Ele passa não só

a aceitar a verdade proposta pelo autor, como também a viver tal verdade. Sobre a

relevância da personagem na trama e sua relação intrínseca com a verdade, Antônio

Cândido ressalta:

No meio deles [o enredo, a personagem e suas ideias], avulta a personagem que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos. [...] Não espanta, portanto, que a personagem pareça o que há de mais vivo no romance; e que a leitura deste dependa basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor. (CÂNDIDO, p. 54)

As fanfics são um exemplo claro da aplicação de mecanismos como os

citados acima. Baseadas também em relações de identificação, projeção e

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transferência, as narrativas das fanfics tratam dos desejos essenciais dos

adolescentes, transportando-os para uma realidade que lida com suas expectativas

em relação a si, ao outro e ao mundo que os rodeiam. Problemas em relação ao

próprio corpo, conflitos interpessoais e aspirações românticas são temáticas

frequentes nas fanfics, sejam tratadas diretamente pelas autoras ou embutidas na

trama através de processos de idealização. Um exemplo de idealização frequente

são as protagonistas que apresentam características físicas, emocionais, sociais ou

relacionais desejadas por quem lê e escreve a fanfic. Isso não significa que as

narrativas das fanfics resultam em histórias repletas de êxitos, ao contrário: muitas

das personagens recebem, por transferência, desafios e problemas pessoais dos

próprios autores – o que também caracteriza um processo de identificação.

Não é incomum, por exemplo, uma autora que apresente problemas de

relacionamento com os pais optar por um dos seguintes caminhos ao criar sua

protagonista: 1) fazer dela alguém que também apresente problemas com os pais; 2)

fazer dela alguém que se relacione extremamente bem com eles. Ambas são

opções que exprimem desejos de escape, resolução, idealização e identificação,

ações espontâneas e frequentes em produções literárias feitas por jovens e

adolescentes.

Há outro aspecto curioso em relação ao processo de identificação do leitor

quando se fala em fanfics: o enunciatário. Graças à leitura interativa, o emissor da

mensagem como primeira ou terceira pessoa ganha novas perspectivas, novas

versões de “eu”. Se em uma história normal há duas formas de narrativa, nas

histórias interativas encontramos mais duas: a primeira pessoa interativa e a terceira

pessoa interativa. Ambas as formas permitem ao leitor efetivamente “ser” o

protagonista da história, e não apenas “se colocar” em seu lugar. Vamos às elas.

Na primeira pessoa interativa, a narração atinge o ápice da perspectiva de

participação e vivência do leitor. Isso ocorre porque no processo de interatividade é

permitido ao leitor inserir seu próprio nome, sobrenome e outros itens pessoais no

texto da história. Por exemplo: ao ler no texto de uma fanfic interativa a frase “Ali

estava meu nome escrito no quadro-negro: Ana Rodrigues” (sendo Ana uma leitora),

ela se verá inserida na trama sob duas perspectivas: a perspectiva dela em relação

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ao mundo, ou “de dentro para fora”, através da frase “ali estava meu nome”; e a

perspectiva do mundo em relação a ela, ou “de fora para dentro”, através da frase

“Ana Rodrigues”.

Em uma fanfic narrada em terceira pessoa interativa, o leitor também

experimenta a força da vivência da trama, mas sob a perspectiva de “expectador de

si mesmo”. Tomemos como exemplo a mesma frase anterior sob uma perspectiva

indireta, na terceira pessoa: “Ali estava seu nome escrito no quadro-negro: Ana

Rodrigues”. A leitora irá experimentar a sensação de ver uma história protagonizada

por ela, mas contada por outra pessoa - diferente de uma história narrada na terceira

pessoa sem o recurso da interatividade, em que seria necessário se colocar no lugar

da protagonista - e não ser a personagem.

2.3 Estrutura narrativa

Além de expressar e atender ao desejo de participação das fãs, gerar

proximidade com as leitoras e permitir uma leitura interativa que fortalece a vivência

da trama, as fanfics também apresentam um aspecto importante do ponto de vista

literário: sua organização narrativa. É notável o cuidado com o arranjo narrativo e a

atenção das autoras para padrões editoriais típicos de obras publicadas - ações

relevantes, visto que tratamos aqui de uma literatura, de certo modo, marginalizada.

Antes de discorrermos sobre a estrutura narrativa das fanfics, é importante

abordarmos brevemente a ideia que define literaturas consideradas “legítimas” ou

“consagradas” e os critérios que as caracterizam como tal. Em um contexto como o

meio literário, esta exposição lança luzes quanto ao valor narrativo das fanfics.

Afinal, quais aspectos da literariedade de um texto tornam uma obra relevante?

Márcia Abreu, em sua obra A cultura letrada, reforça a força que fatores

externos ao texto possuem na classificação do valor literário de uma obra:

Estamos tão habituados a pensar na literariedade intrínseca de um texto que temos dificuldade em aceitar a idéia de que não é o

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valor interno à obra que a consagra. O modo de organizar o texto, o emprego de certa linguagem, a adesão a uma convenção contribuem para que algo seja considerado literário. Mas esses elementos não bastam. A literariedade vem também de elementos externos ao texto, como nome do autor, mercado editorial, grupo cultural, critérios críticos em vigor. [...] O prestígio social dos intelectuais encarregados de definir Literatura faz que suas idéias e seu gosto sejam tidos não como uma opinião, mas como a única verdade, como um padrão a ser seguido. (ABREU, 2006, p 74)

A autora aponta um conflito comum no meio literário: a depreciação dos

valores internos da obra (organização do texto, linguagem, narrativa, conteúdo) em

relação aos critérios externos que a legitimam no meio literário (nome do autor,

mercado editorial, grupo cultural, critérios em vigor). Isto não significa, em absoluto,

que obras consagradas por tais critérios legitimadores não tenham real valor

intrínseco; quer dizer apenas que, por outro lado, esses mesmos critérios invalidam

ou designam a planos inferiores obras relevantes que não se enquadram na esfera

das Belas Letras. O “reconhecimento” acaba não sendo um selo de qualidade, e sim

um selo de “aprovação” de determinada esfera.

Diante disso, é possível concluir que se torna irrelevante uma análise

intrínseca de um texto? De modo algum. Ela se torna ainda mais importante na

valorização de obras que eventualmente não sejam legitimadas por critérios

externos a ela. Desse modo voltamos então ao intuito apontado aqui inicialmente: a

relevância de uma análise da estrutura narrativa das fanfics.

De modo geral, a linguagem dessas produções é direta e espontânea. A

coloquialidade é frequente, com uso de gírias e palavras que expressam

intensidade, como as de baixo calão – expressões orais e escritas bem típicas do

público adolescente. Há semelhança com a narrativa de um diário, embora a

estrutura apresente padrões de esmero editorial (atenção com a revisão dos textos,

organização, enredo).

O cuidado com os outros elementos básicos da narrativa, como tempo,

espaço, personagens (bem como o já pontuado foco narrativo) é visível. As autoras,

ainda que jovens, se organizam em parceria com as responsáveis pelo site para

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estruturação das fanfics. Desse modo, todas as produções postadas apresentam um

padrão editorial semelhante, são avaliadas em qualidade e respondem às

categorizações estabelecidas pelo site em que serão divulgadas (a dinâmica de

relações estabelecidas nesse processo serão detalhadas no capítulo seguinte desta

análise).

Nesse sentido, pode-se dizer ainda que as fanfics, em geral, apresentam

prólogo ou algum tipo de abertura, introdução; seriação em forma de capítulos, com

cortes sistemáticos que mantém o suspense da trama; classificação de gênero,

como suspense, terror, comédia-romântica, drama, épico, entre outros; e

classificação etária (fanfics com conteúdo adulto ou violento são consideradas

“restritas”).

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Do objeto de estudo: o site Fanfic Obsession

Voltado para leitoras e escritoras de fanfics, o site

www.fanficobsession.com.br, abreviado e chamado de FFO, é um dos mais bem

estruturados e visitados do gênero. Focada especialmente na divulgação de fanfics

interativas, a página não só apresenta um acervo de fanfics já produzidas ou em

andamento, mas oferece uma plataforma completa e sistematizada de postagem,

leitura e interatividade, com critérios de organização literária e editorial

surpreendentes.

O FFO, entretanto, não é o único do gênero. Sites como o Fanfic Brasil

(http://fanfics.com.br/) e o Niah (http://fanfiction.com.br/) são excelentes referências

de conteúdo e já compõem a grade de sites dos leitores de fanfics. A ideia deste

estudo, entretanto, é oferecer um parâmetro de análise mais amplo e completo em

cada um dos aspectos mencionados anteriormente (relação entre autoras e leitoras,

interatividade na leitura, categorização de fanfics, esmero editorial, número de

histórias, acessos às fanfics) e, nesse sentido, O Fanfic Obsession se torna a opção

de estudo mais viável e eficaz.

3.1 A estrutura do site

Colorida, com opções de personalização da página e de fácil navegação, a

home do site (representada na ilustração abaixo) cativa facilmente o público-alvo. O

menu principal, localizado na barra central, apresenta os botões Fictions, Leitores e

Regras. Através dele, as leitoras têm acesso às categorias de fanfics e seus status

(se já foram finalizadas ou estão em andamento), bem como a todas as informações

necessárias para enviar uma fanfic, votar nos concursos, participar da rotina do site

e obedecer às normas de convívio e publicação. Nos destaques centrais estão as

fanfics eleitas como melhores do mês e do ano, além da autora mais votada.

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Ilustração: uma das versões da home (página inicial) do site.

(Outras versões estão listadas no Anexo C deste trabalho).

Fonte: www.fanficobsession.com.br

No destaque superior ao lado do banner estão as 10 produções mais

acessadas até o momento, os ícones de acesso direto às páginas do site no Twitter,

no Facebook e no Formspring, os temas disponíveis para o usuário personalizar a

página (algumas das opções de personalização constam no Anexo C deste trabalho)

e o acesso às capistas, função que será detalhada mais adiante). As atualizações de

capítulos, bem como avisos, recados ou qualquer outro tipo de postagem são

lançados no corpo principal do site, à direita. Nele também são feitas indicações de

fanfics às leitoras.

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Para que uma fanfic componha a grade de fics do site, um caminho deve ser

obrigatoriamente percorrido. É notória a organização da equipe de garotas visando a

qualidade editorial dos textos publicados, e, para que isso ocorra, uma hierarquia é

claramente definida. Na área de FAQ do site, as funções da equipe são expostas às

leitoras. Em suma, o tópico betagem da área esclarece bem essa questão, expondo

que o processo de postagem de uma fic se inicia com o envio dela para a equipe,

que irá analisá-la e submetê-la à avaliação de uma beta-reader, responsável pela

leitura, revisão e correção (gramatical, ortográfica e coesiva) dos textos. A beta-

reader também posta os capítulos, funcionando como uma ponte entre a autora, que

envia seus textos, e as leitoras que acompanham o site e lêem as publicações.

Reprodução de uma das áreas de dúvidas do próprio site, a ilustração abaixo

exemplifica a maneira como as moderadoras respondem às principais dúvidas do

público sobre a relação de “apadrinhamento” da beta-reader, bem como de sua

função:

Ilustração: trecho do tópico “Betagem” do site.

Fonte: Recorte da área de FAQ do site www.fanficobsession.com.br

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O aspecto das beta readers merece um destaque à parte. Traçando um

paralelo com o contexto editorial comum, as betas-readers, ou leitoras-beta, são

equivalentes a “agentes literários”, que percorrem com o autor o caminho da

avaliação da obra até sua publicação. A diferença, no caso, é que o trabalho das

betas é feito voluntariamente.

Isso nos leva a outro aspecto curioso da betagem: embora seja feito de

maneira voluntária, o trabalho executado pelas betas é muito concorrido. Este fato é

atestado pelo processo de seleção de betas promovido periodicamente em dois dos

grandes sites de fanfic brasileiros: o Fanfic Obsession e o Niah. A triagem de

meninas é rigorosa e envolve etapas como publicação de edital, inscrições, teste,

divulgação do gabarito e “estágio supervisionado”, como expõe a figura abaixo:

Ilustração: cronograma de seleção de beta readers do site Fanfic Obsession.

Fonte: https://www.facebook.com/fanficobsession , página do Fanfic Obsession no facebook (em 16/05/2014)

Após o período de estágio, as candidatas aprovadas finalmente estão aptas

a “betarem” as histórias. Avaliando o processo de seleção rigoroso e a necessidade

das meninas de conciliar a betagem com suas rotina de estudo, trabalho e demais

afazeres, é possível compreender a razão pela qual as adolescentes se propõem a

realizar o trabalho de avaliação e postagens das fanfics: o bom e antigo prazer que a

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leitura oferece. É importante também ressaltar que, como muitas das leitoras são ou

foram autoras de fanfics, é frequente nas beta readers o sentimento de solidariedade

em relação às “colegas” que escrevem. Tal sentimento, entretanto, não minimiza o

rigor na avaliação das histórias; ele apenas simboliza a empatia que funciona como

fator motivador do trabalho voluntário realizado pelas betas. A seriedade exigida na

betagem é um requisito tão relevante que no site Niah é possível encontrar, na área

Liga dos Betas, um código de conduta para a ação da betagem:

1 - Serás humilde em tuas betagens, jamais usando de arrogância ao demonstrar teu conhecimento. 2 - Betarás por solidariedade, e tão somente isso. Não esperarás nada em troca. 3 - Compartilharás teu conhecimento com teus autores visando o crescimento deles. 4 - Jamais abandonarás uma fic a não ser que a falta de tempo ou negligência/arrogância do autor dê motivos para isso. 5 - Respeitarás o autor, por mais que discordes de suas escolhas; a fic é dele, ele decide no final. 6 - Não betarás "nas coxas", dedicar-te-á com seriedade. 7 - Serás cortês, educado, gentil e, quando for proveitoso, rigoroso e incisivo, jamais, porém, faltar com respeito. 8 - Serás sincero, nunca temendo a crítica honesta. 4

Além de papéis próprios, o universo das fanfics também pressupõe um

dialeto particular, e para mergulhar nele é necessário conhecer alguns dos termos

que o traduzem. É importante ressaltar que a multiplicidade de expressões traz

também uma carga significativa da organização do triângulo formado por autoras,

leitoras e betas, que será explorado logo adiante.

4 Código de Conduta da Liga dos Betas. Disponível em http://fanfiction.com.br/liga_dos_betas/ .

Acesso em 14 de junho de 2014.

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A classificação das fanfics é um exemplo do dialeto utilizado. Nos sites, as

histórias podem ser divididas por gênero, como romance, comédia, drama, terror e

suspense, mas também podem ser classificadas como POV (point of view), fluffy,

slash, threesome, shortfic, songfic, longfic e tantas outras - destaque para esta

última, longfic, que define as fanfics mais longas e com tramas mais elaboradas:

essa á a categoria na qual 500 Days in London, fanfic escolhida para análise neste

trabalho, se encaixa.

São muitas as categorias que definem as fanfics. Apenas no site de busca

wikipedia.com estão listados 49 tipos5 de fanfics e suas denifições: curtas, longas,

açucaradas, melancólicas, desenvolvidas em realidades alternativas, com morte de

um personagem central, cronologia não-linear (muitos flashbacks), com cenas de

sexo, baseadas em músicas, entre outras. Não há uma fonte oficial de referência

literária que permita desvendar o autor da origem dos termos; mas é possível

concluir que, assim como a produção e a divulgação das histórias, suas

classificações são fruto de um comportamento espontâneo das próprias autoras e

leitoras, que começou com a profileração das primeiras fanfics.

É relevante mencionar que os sites especializados não adotam todas estas

categorias na distribuição das fanfics, já que são termos bem específicos, um tanto

quanto “técnicos” e não conhecidos em sua totalidade pelo público. Nos sites o mais

frequente é a classificação em gêneros e na fonte “base” de inspiração da história:

um livro, um filme, uma banda, uma novela, um seriado ou outros.

Por exemplo: no site Fanfic Obsession, a busca por fanfics é feita através do

botão “Fanfics”. Ao acessá-lo, o leitor encontra, por ordem alfabética, categorias

como: Atores, Atrizes, Cantores, Cantoras, Filmes, Gay, Heróis, Livros, Realeza,

Seriados, Sagas e outras. As imagens abaixo mostram alguns recortes da interface

da área de categorias do site:

5 São elas: Doujinshi, Mary Sue, Cross Over, Darkfic, Deathfic, Drabble, Double Drabble, Slash,

Femmeslash, Fanon, Dark Lemon/Orange, Fetichismo, Fluffy, MPREG, NCS, POV, SAP, Side Storie, SM, Maintext, Subtext, Threesome, TWT, Voyeurism, What If, Shotacon, Lolicon, Hentai ou Restrita, Citrus, Canon, Oneshot, Shortfic Songfic, U.A. (Universo Alternativo), Longfic, R.A. (Realidade Alternativa). Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fanfic .

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Ilustração: exemplos de categorias de fanfics no Fanfic Obsession.

Fonte: https://www.facebook.com/fanficobsession (acesso em 4 de novembro de 2013).

Nas imagens utilizadas acima, logo em frente as subcategorias, também é

possível visualizar as indicações “em andamento” e “finalizadas”, indicando às

leitoras as fanfics já escritas e aquelas que ainda estão sendo postadas. Ao clicar na

categoria “Crepúsculo”, por exemplo, as leitoras têm acesso aos nomes de todas as

fanfics disponíveis para aquele tema, como também o gênero a que pertencem

(comédia, drama, ação, terror, romance, aventura, suspense), a sinopse da história,

o nome da autora, o nome da beta reader, a classificação etária e se a fanfic é

“restrita” ou não (se possui cenas de sexo).

Por fim, é relevante reforçar que outros léxicos típicos do universo das

fanfics, como o já mencionado betagem (revisão e publicação das histórias), fandons

(grupos de fãs) ou fics (abreviação da palavra fanfics), bem como toda a estrutura de

classificação das histórias, o aspecto estético do site e a moderação de atividades

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ali existentes, são ações que partem das próprias adolescentes. E é a relação de

emissão, recepção e compreensão mútua existente nesses processos que compõe

o tripé de toda a estrutura discursiva das fanfics: o triângulo existente entre autoras,

leitoras e beta-readers.

3.2 O triângulo da receptividade: as relações entre autoras, leitoras e beta-readers

Em um jogo de emissão, recepção e compreensão que vai bem além do

texto, autoras, leitoras e beta-readers estabelecem entre si relações que se diferem

da hierarquia literária habitual. Enquanto na leitura de um livro a emissão da

mensagem é feita em uma linha “de mão única” que parte do autor para o leitor,

pode-se dizer que em uma fanfic há um “filtro auxiliador” no processo de emissão da

mensagem (as beta-readers), bem como uma alternância de papéis: leitoras podem

ser autoras, autoras também são leitoras e ambas podem ser beta-readers, se

aprovadas no devido processo de seleção para tal. Em uma ilustração, é possível

expressar o processo de emissão e recepção e o fluxo de atividades centrais que

envolvem uma fanfic:

Ilustração: O triângulo da receptividade: emissão, recepção e fluxo de ações na publicação de uma fanfic.

Fonte: de autoria da aluna.

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Através da imagem é possível perceber que as relações entre os pólos

do triângulo são recíprocas, isto é, há interações contínuas que tornam a

estrutura de relações dinâmica, não estática, reduzindo as distâncias entre

autoras e leitoras.

Partindo de 1, temos a relação entre autoras e beta-readers. A fanfic (o

manuscrito) é enviada a uma beta para avaliação e esta retorna para a autora

com seu veredito. Caso a beta escolhida pela autora não possa ou não queira

postar sua fanfic, a autora pode ir em busca de outra quantas vezes desejar.

Mas, o interessante nesse processo, é a relação de interdependência entre

ambas as partes. Se por um lado, a autora precisa de uma beta para que sua

fanfic tenha visibilidade no site, por outro, a beta precisa das autoras para que

sua própria existência no triângulo tenha sentido. Na etapa 1, ao lado das betas,

também existe a presença das capistas (não demonstrada na imagem),

responsáveis pela produção das capas da fanfics. As capistas executam uma

espécie de trabalho auxiliar, também voluntário, produção similar à capa de um

livro.

Na etapa número 2 do processo, após as correções e a avaliação, as

beta readers finalmente levam a fanfic a público (leitoras). A sinopse e a

classificação da fanfic são feitas e liberadas no site, e é iniciada a postagem em

capítulos. Quem detém todo o processo de publicação das fanfics no site Fanfic

Obsession é a beta.

Uma flexibilidade interessante na relação entre as leitoras e as betas é a

possibilidade de inversão de papéis: por avaliarem as histórias, betas são,

naturalmente, leitoras de fanfics; as leitoras, por sua vez, podem se tornar betas

se desejarem participar do processo seletivo e se aprovadas nele.

Na etapa 3 do processo há a relação entre leitoras e autoras – e aí

reside o maior exemplo de redução da hierarquia. As autoras não só dependem

da receptividade das leitoras para que a fanfic ganhe projeção no site

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(periodicamente, são eleitas as fanfics do mês e do ano no Fanfic Obsession,

bem como lançados concursos sazonais de fanfics), como também pedem a elas

que dêem sua opinião sobre a fanfic que estão lendo. Não é incomum uma

autora pedir a opinião das leitoras sobre a fanfic e estiular as leitoras a lerem a

fanfic de outras colegas autoras.

Outro exemplo de redução de hierarquia no processo 3 é a já

mencionada alternância de papéis. Uma autora naturalmente foi (ou é) uma

leitora de fanfics, assim como uma leitora pode facilmente vir a se tornar autora.

Essa alternância de papéis é possível especialmente por um fato: as fanfics são

um tipo de produção ficcional baseada na relação de incentivo mútuo entre as

fãs. Não há um distanciamento editorial ou social que impeça uma leitora de

escrever suas próprias fanfics, pelo contrário: os sites oferecem suporte para tal

através das beta-readers e de outras ferramentas, como aulas de português ou

dicas gramaticais e ortográficas.

É relevante mencionar, ainda que o site Niah! não seja nosso principal

objeto de estudo, a atenção que o mesmo concede à questão do auxílio às

leitoras iniciantes. Na sessão Português, as adolescentes podem ter acesso

gratuito a aulas com conteúdo de ortografia, gramática, coerência, coesão e

todos os aspectos de desenvolvimento da narrativa (estruturação da história,

composição de personagens, cronologia, entre outros). As aulas são divididas

em três níveis: O Caminho do Ninja Amador, o Caminho do Ninja

Semiprofissional e o Caminho do Mestre Ninja Supremo, e oferecidas

voluntariamente pela equipe do site, composta geralmente por autoras de fanfics,

escritoras independentes, amantes da literatura e graduadas em letras ou áreas

correlatas.

A relação representada em 3 na ilustração do Triângulo da

Receptividade traduz a essência que envolve a produção de fanfics: suporte e

incentivo ao às escritoras “amadoras”. Este é o aspecto crucial que distingue tal

produção ficcional de uma produção literária clássica: a parceria existente entre

leitoras (receptoras), autoras (emissoras), beta-readers (editoras) e equipe de

apoio linguístico e discursivo. O distanciamento entre as detentoras do

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conhecimento e as receptoras dele é tão reduzido quanto a distância dos papéis

que cada uma desempenha.

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O caso da fanfic 500 Days in London

4.1 A autora

Paulista de 26 anos, Gisele Castro é formada em Letras, dá aulas de inglês e

mora na cidade de Ribeirão Preto. 500 Days in London não é sua primeira fanfic,

mas se destaca como a obra que realmente a projetou como autora e que caminha

para a publicação em livro. O grupo no Facebook que reúne os leitores da fanfic já

soma mais de 3.700 membros, e tanto Gisele como os leitores não deixam de

atualizá-lo com postagens sobre as bandas One Direction e McFly (grupos musicais

que são tema da fanfic), bem como sobre outros assuntos de interesse do público.

Ilustração: Gisele Castro, autora da fanfic 500 Days in London, diante do London Eye, um dos principais cartões

postais de Londres e também cenário de seu romance.

Fonte: acervo pessoal.

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4.2 Inspiração da autora: as bandas One Direction e McFly

Ilustração 1: os britânicos do One Direction, personagens centrais da trama.

Ilustração 2: o grupo irlandês McFly, que também ganham destaque na história.

Fontes: acervo online do site www.fanpop.com (Figura 1) e

Photogalery do site www.evertim.com.uk/mcfly (figura 2)

O coração de fã de Gisele é dividido entre dois “amores” britânicos: os

rapazes do One Direction e os jovens do McFly. Os cantores do One Direction são,

atualmente, campeões como tema de fanfics no site FFO. Na trama da autora, as

duas bandas estão presentes, mas o One Direction é o grupo que efetivamente

protagoniza a história.

Composto por Niall Horan, Zayn Malik, Liam Payne, Harry Styles, and Louis

Tomlinson, o grupo pop nasceu no ano de 2010 por meio do reality show X-Factor,

programa britânico conhecido por revelar novos talentos musicais. Em 2 anos de

carreira e 2 álbuns, os garotos conquistaram o coração e o imaginário de

adolescentes em todo o mundo.

Formado em 2004, por sua vez, o Mcfly possui um estilo mais voltado ao pop

rock. Tom Fletcher, Danny Jones, Dougie Poynter e Harry Judd, também britânicos,

já somam 5 álbuns e 19 singles. Embora não estejam no centro da trama da 500

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Days in London, os rapazes do McFly são peças marcantes no desenvolvimento do

enredo.

4.3 Abre-se o diário: analisando a fanfic

Eleita a fanfic do ano de 2012 pelas leitoras do site, 500 Days In London (500

dias em Londres) é uma longfic de 36 capítulos. Por apresentar uma estrutura

interativa, a fanfic não impõe nomes fixos às personagens, ficando a critério do leitor

estabelecê-los. Entretanto, esta nomeação é apenas uma questão de

personalização da experiência de leitura, já que a trama original e quem figura nela

possuem características traçadas pela própria autora. (Este é um aspecto relevante

a ser lembrado: a leitura interativa permite que o leitor seja uma das personagens,

nomeie outras e insira alguns dados pessoais na trama; mas a essência das

personagens, seus traços de estilo e personalidade, bem como o desenrolar da

história, ainda são definidos pelo autor, não pelo leitor. O que irá acontecer ao leitor

como personagem ainda é uma “surpresa” para ele).

500 Days In London conta a história de uma adolescente paulista, filha única e

fã de rock, que é aprovada no curso de fotografia da Escola de Artes de Londres

(London College of Communication) e acaba se envolvendo amorosamente, por

acidente, com um dos integrantes da banda One Direction. A autora divulgou no

grupo da fanfic no facebook a seguinte consideração sobre sua personagem: “[ela]

nunca se achou a garota mais bonita e nem sequer dava importância pra isso. Seu

único objetivo sempre foi crescer na vida e ser aquilo que seus pais nunca puderam

ser. Com isso na cabeça, dedicou-se a estudar e tentar uma bolsa na escola que

queria em Londres - e foi o que aconteceu”.

Esse é o foco primário da personagem central: a fotografia. É notável, já no

prólogo da fanfic, o desejo da garota de sair de onde está e ir em direção ao sonho.

Lê-se:

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Prólogo

“Prezada Senhorita (nome da leitora)6:

Temos os prazer de informar que seu requerimento para ingressar na

Escola de Artes London College of Communication foi APROVADO.

Favor enviar a documentação necessária para o seguinte endereço:

(...)”. Eu só fiquei parada ali no meio da minha cozinha com as mãos

tremendo e olhando pra aquele papel timbrado, meu nome estava ali.

MEU NOME! E o melhor de tudo, a palavra APROVADO brilhava e

eu esqueci completamente de ver o que estava escrito abaixo. Essa

parte de papelada eu posso deixar para meus pais, o importante é

que eu consegui ENTRAR NA ESCOLA DE ARTES DE LONDRES!

Isso significa que minha bolsa foi aceita, isso significa que meus pais

não vão desembolsar com o curso, isso significa que finalmente vou

sair dessa cidade de merda eu vou PRA LONDRES!” (CASTRO,

2012)7

A fotografia funciona como um ponto de apoio importante na trama: ao mesmo

passo em que reforça o talento e a individualidade da protagonista, também é o

ponto de partida para o romance entre os personagens. Logo em seu primeiro

passeio pela cidade, a garota faz um tour para tirar algumas fotos e encontra no

London Eye, um dos principais pontos turísticos de Londres, os integrantes da

banda One Direction recebendo algumas fãs.

O interessante é que a autora opta por fazer da personagem principal uma

“anti-fã”: ela não apenas não tem ideia de que os meninos que encontra ali são

famosos como na realidade é grande admiradora de outro grupo musical: o McFly.

Ainda assim, surge nela certa admiração pelos rapazes que encontra, afinal, são

bonitos, simpáticos e atenciosos. Ela passa então a fotografá-los.

O comportamento despretensioso da protagonista acaba despertando o

interesse de um dos meninos. Acostumado a estar rodeado por fãs, se torna

interessante para ele encontrar alguém que nem ao menos o conhece. Ele decide,

então, chamar a atenção da menina atrapalhando-a durante as fotos.

6 Lembrando que a ausência do nome da personagem em parênteses (ou a expressão “nome da

leitora”) caracteriza uma fanfic interativa. 7 Foi adotada, para a autora da fanfic, o mesmo estilo de citação dos demais autores mencionados

neste trabalho: o sistema autor-data.

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O que provoca o primeiro encontro entre os personagens não é, como poderia

se concluir a princípio, uma ação óbvia de uma fã que se aproxima da figura

admirada. O encontro romântico entre os personagens é coerente com a trama

tecida pela autora, e tem como pretexto o desejo da protagonista de fotografar – que

é, até o momento citado da narrativa, sua única paixão. O encontro acontece logo no

Capítulo 1 da fanfic, como narra a protagonista:

Os meninos usavam sobretudo e as meninas pareciam estar em

volta deles como urubus! Eles eram muito bonitos, mas eu nunca os

tinha visto na minha vida. Eles paravam, tiravam fotos, sorriam,

davam gargalhadas, as meninas quase desmaiavam, eles eram

carinhosos, davam beijos, autógrafos... Eram famosos? [...] Enquanto

batia a foto percebi um corpo mais atrás que se mexia cada vez que

eu dava um clique. Tirei a câmera dos meus olhos e olhei em volta,

mas não vi ninguém. Continuei batendo, e quando eu focava de novo

em outro lugar via o mesmo corpo fazendo poses, caras e caretas

para a câmera. Finalmente quando foquei nessa pessoa percebi que

era um dos meninos que estava a alguns minutos atrás perto do

London Eye, um dos adolescentes. Fiz cara de surpresa, pensei que

nunca mais os vería de novo (no caso, ‘o veria’ porque ali só tinha

um deles). Fingi indiferença e continuei batendo fotos, mas para cada

novo foco ele estava ali, uma hora sorrindo, outra fazendo careta,

outra hora ameaçando abaixar as calças em público!

- HEY! – Eu berrei quando ele levantou a calça jeans que ao meu ver

estava larga demais. – Você está poluindo minhas fotos.

- Você sempre costuma bater fotos de pessoas estranhas? Ele veio

até mim com um sorriso brincalhão no rosto. Todos os britânicos são

simpáticos?

- Acho que essa é uma pergunta errada para uma estudante de

fotografia – respondi meio arrogante. - Que foi? Vai querer me

processar por algum tipo de invasão?

- Você é sempre tão arisca assim? Ele riu. O vento londrino passava

por seus cabelos dando um ar mais bagunçado. (CASTRO, 2012).

Na versão original da fanfic de Gisele, o “importunador” da sessão de fotos,

cantor escolhido como par romântico da protagonista, é Harry Styles, de 19 anos. É

possível perceber, por meio do texto da fanfic, a maneira como a autora constrói a

representação literária do jovem músico: um rapaz brincalhão, seguro e disposto a ir

em busca do que deseja. Rodeado por admiradoras, ele não hesita em deixá-las

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para provocar justamente aquela que, distante das outras, parecia demonstrar um

interesse puramente fotográfico por eles.

Mas porque escolher Harry? Que outros aspectos a autora capta da versão

real do cantor e transpõe para o personagem? Em publicação realizada no grupo da

fanfic, a autora descreve a personagem:

“Ele é britânico, de boa família e bons valores. Cresceu no ramo

musical, sempre soube o que queria fazer da vida, e quando uma

grande oportunidade lhe foi dada, não pensou duas vezes antes de

abraçá-la. [...] Ele nunca foi do tipo namorador, mas faz o tipo

romântico, daquele que se entrega e é capaz de dizer que te ama

logo na primeira semana, porque é o que ele está sentindo”.

(CASTRO, 2013)

Figura: Harry Styles, um dos integrantes da banda One Direction, que na versão original da trama é o par

romântico da protagonista.

Fonte: acervo online do site www.fanpop.com .

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Apesar de todos os encantos do rapaz, a trama gira justamente em torno dos

conflitos que a protagonista8 enfrenta ao se envolver com um popstar: em primeiro

lugar, por ele ser o oposto de suas expectativas e por, ainda assim, ela não

conseguir resistir ao envolvimento; em segundo, pela insegurança diante da reação

das fãs e da necessidade de adequação ao que a própria protagonista julga ser a

namorada ideal para o rapaz. Sobre isso, a autora diz:

“Ela queria alguém rockstar, que usasse camisa xadrez, não lavasse

o cabelo, fumasse e tocasse guitarra. Ao invés disso apareceu um

mauricinho de boyband inglesa, todo produzido na maquiagem e com

mil contratos e garotas aos seus pés. [...] Será que é preciso

modificar todo o seu jeito de ver o mundo, roupas e corpo para se

adequar em uma sociedade que valoriza tanto a beleza e a

exposição física? Até que ponto ela iria para agradar o namorado e a

mídia? [...] Seria possível colocar os dois juntos e nenhum lado sair

machucado?”. (CASTRO, 2012)

Este é o conflito base da trama. Para desenvolvê-lo com fluidez, Gisele, bem

como outras autoras de fanfics, faz uso de algumas estratégias literárias que,

contínua e sistematicamente, têm sido eficazes na interação com as leitoras do

gênero romântico. Por serem aspectos mais recorrentes na trama, serão destacadas

a questão da verossimilhança e alguns arquétipos básicos que compõem a clássica

“jornada do herói” – percurso baseado nos arquétipos clássicos de Jung, na

narrativa mítica de Campbell e no conto popular de Proop. Após essa leitura, é

possível fazer uma análise mais profunda das conexões que se estabelecem entre a

autora, as leitoras e o texto em si.

4.3.1 Verossimilhança: a realidade pelos olhos de quem escreve e lê

Já avaliado anteriormente, o aspecto da verossimilhança ganha aqui, na

análise da fanfic 500 Days in London, configurações mais amplas. Em primeiro

lugar, porque, se de fato ela não existe no texto, a trama perde sua credibilidade

diante dos leitores; em segundo, porque, basicamente, as fanfics são produções que

8 Novamente: devido a interatividade da fanfic, o termo “protagonista” será utilizado toda a vez que a

personagem central for mencionada.

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trabalham totalmente com o imaginário das fãs. Logo, até mesmo um texto

essencialmente imaginário precisa de aspectos reais para estabelecer sua conexão

com quem o lê.

No caso de 500 Days In London, o recurso da verossimilhança é utilizado pela

autora - conscientemente ou não - de diversas maneiras. Uma delas é por meio da

construção do espaço em que se passa a trama: Londres. Cidade em que a banda

One Direction teve origem e onde vivem os rapazes do grupo, a capital britânica é o

destino que toda fã gostaria de conhecer. A própria autora da fanfic confessa que

sonhou 14 anos em visitá-la, e finalmente conseguiu: em abril de 2013, Gisele pisou

em solo britânico e conheceu pessoalmente locais que, meses antes, já haviam sido

descritos por ela mesma em sua fanfic.

A autora, então, vai criando na mente de suas leitoras o cenário necessário

para a trama: os detalhes de seu quarto no alojamento da universidade, o frio e o

céu constantemente nublado, a beleza e o comportamento dos londrinos.

Especialmente no início da narrativa, nos primeiros dias da protagonista em

Londres, o aspecto descritivo é ainda mais forte:

"Os britânicos falam rápido demais, enrolados demais e correm

demais! Acho que já fui quase atropelada umas cinco vezes, e

quando falo palavrões em português ficam me olhando com cara

feia, QUAL O PROBLEMA? Meio emburrada consegui chegar até o

táxi; um cara meio gordo, careca, branco demais abriu a porta pra

mim (lado OPOSTO do qual estou acostumada no Brasil) e

educadamente com um sotaque absurdo perguntou qual o endereço.

As horas que gastava diariamente vendo Harry Potter, Nárnia e

ouvindo The Police me ajudaram bastante a entender o sotaque

britânico – ninguém nesse mundo fala mais enrolado do que Rupert

Grint! Dei pra ele um papel com o endereço e ele sorriu dizendo que

o local era bem próximo. Houve aquela conversa de ‘você é de

onde?’ e mais os detalhes pessoais de sempre, e, quando dei por

mim, já estava de frente com um prédio absurdamente enorme lotado

de adolescentes na frente. [...] Comecei a bater fotos de outras

pessoas, algumas paravam e sorriam pra mim. Explicava que eu era

uma estudante nova de fotografia e elas eram absurdamente

educadas (em especial os turistas). Tudo me fascinava, o chão em

Londres era o chão mais lindo e limpo que eu já vi na vida – ou era

um grande exagero da minha cabeça". (CASTRO, 2012).

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Além da construção do espaço e do recurso descritivo, outra faceta da

verossimilhança foi amplamente utilizada por Gisele e o é também por outras

autoras de fanfic: a inserção na trama de pessoas e circunstâncias reais ligadas aos

rapazes da banda. Desse modo, entram no universo ficcional outros personagens

reais além dos próprios rapazes, como ex-namoradas, amigos próximos,

assessores, seguranças - todos chamados por seus nomes reais. Um exemplo nítido

desse recurso na fanfic é o momento em que a protagonista descobre que Olivia

Shawn, fotógrafa e ex-namorada de Danny Jones, integrante do grupo McFly, será

sua professora em uma de suas disciplinas do curso:

Ali na minha frente a nossa grade de horário, ali uma atividade que eu obrigatoriamente teria que participar e eu intimamente não queria participar. (nome da amiga), ao meu lado, estava muito feliz com

essa possível tragédia. Fotógrafa: Olivia Shawn. Banda: One Direction. Atividade: Os alunos do primeiro semestre do curso de fotografia terão o prazer de acompanhar a professora Olivia (renomada fotógrafa – já trabalhou com moda, bandas e é especializada em casamentos) em um photoshoot para a revista SugarScape da banda do momento, One Direction. Os alunos poderão conversar sobre dúvidas, além de ver o trabalho de um fotógrafo ao vivo. Sobre a banda, os alunos também poderão ter acesso aos meninos, porém se foquem no trabalho e não na banda. [...] Tudo bem, a Olívia já namorou o Danny, mas isso eu acho que são águas passadas! Ele agora tá namorando aquela miss nada e a Olívia tá mais linda, fofa e perfeita do que nunca. E espera, ELA VAI SER NOSSA PROFESSORA?? Momento fangirling total, eu A AMO! Na verdade ela é um dos motivos pelos quais eu me tornei fotógrafa, conheço o trabalho dela por causa do McFly, mas desde então eu virei fã. E agora essa linda vai ser minha professora, e essa linda vai fotografar o One Direction e nós vamos juntos. Como alunos. Caralho! (CASTRO, 2012).

Além de gerar um vínculo de identificação entre leitoras e autora, a inserção

de personagens reais, como Olivia Shawn, proporcionam a sensação de verdade tão

desejada por quem lê. Esse é o momento, muitas vezes, em que algumas lacunas

são esclarecidas às fãs, ainda que sob o viés da suposição e da imaginação da

autora - como o fato, por exemplo, de os rapazes da banda namorarem ou não por

conveniência. No capítulo 3 da fanfic, quando a protagonista é levada pelo

segurança do One Direction para seu primeiro encontro romântico com um dos

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rapazes, o diálogo entre ambos gira em torno desse tema. Gisele traça sua teoria

para o fato (amplamente discutido por muitas fãs), expressa em uma das cenas da

fanfic. Ao aceitar o convite para sair com o cantor, a protagonista descobre, para sua

surpresa, que ele já tem uma namorada:

- Co-compro-compro hã?

- Comprometido – ele falou mais pausado pensando que eu fosse ou

uma retardada ou não sabia falar inglês. – Tem uma namorada.

- Eu... Eu não sabia – falei baixo. – Então, por que ele me chamou

pra vir pra cá?

- Ah meu Deus – ele coçou a nuca, quantas vezes ele não deve ter

visto essa cena?

- Desculpa, acho que eu não devo fazer essas perguntas para o

senhor, e sim pra ele, estou certa?

- Eu já respondi essa pergunta umas mil vezes por ele – ele sorriu. –

Embora ele tenha uma namorada, é mais ou menos fachada pra

mídia. É necessário agora no começo da carreira ele ter alguém ao

lado, como posso explicar, Teen Vogue acha muito mais bonito fazer

uma sessão de fotos com ele e a namorada do que com ele sozinho.

- Então ele namora uma menina apenas porque é necessário? –

Perguntei quase aumentando minha voz um decimal acima. – Que

ridículo.

- Concordo – o fortão deu de ombros. – É por isso que ele dá essas

escapadas com as fãs – eu ia abrir a boca pra falar algo, mas já fui

interrompida. – Só pedimos que não comente nada, não tire fotos,

seja discreta e não fique no pé dele por Twitter, Facebook ou

qualquer outro meio de comunicação virtual. E caso ele te ligue após

a noite de hoje, não atenda.

- Fique tranquilo, eu não vou falar nada – quase bufei, sim, eu era a

peguete da noite! (CASTRO, 2012).

Além das figuras reais, como mencionado, as circunstâncias reais também

compõem o quadro da verossimilhança em uma fanfic. Ao unir um personagem

ficcional - uma menina comum - a um personagem real - um cantor famoso

internacionalmente - é preciso lidar com aspectos existentes no universo anônimo da

jovem, no universo público do rapaz e no âmbito comum aos dois. Desse modo,

Gisele faz uso de comportamentos e situações típicas a toda adolescente: a

dificuldade em lidar com os pais, a coloquialidade na linguagem (com o uso

frequente de gírias, palavrões e expressões típicas do universo das fãs), a presença

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constante das redes sociais, o convívio com outros adolescentes, os conflitos com a

aparência e a relação de projeção e identificação com a figura admirada.

Marca característica das fanfics, a linguagem coloquial é um dos aspectos que

mais contribuem para a interação verossímil entre texto e leitor. Um “palavrão” que

traduz raiva, alegria ou surpresa; a presença do humor e da ironia naturais à fala

espontânea adolescente; a utilização de caixa alta no texto, sinal típico da linguagem

digital que indica grito ou ênfase: cada um desses aspectos estabelecem fortes

laços de identificação com o público.

Um dos exemplos desse recurso pode ser percebido em uma cena do

Capítulo 3 da fanfic, quando a protagonista e sua melhor amiga estão prestes a ir ao

primeiro show dos rapazes. O convite havia partido do próprio cantor, que reservou

locais especiais para as meninas e pretendia apresentá-las aos demais integrantes

da banda. No dia esperado, entretanto, a protagonista amanhece doente por ter

comido salmão – fato que desperta a fúria da amiga inglesa, fã da banda, já que

ambas não poderiam ir ao show:

- NO BRASIL NÃO TEM PEIXE NÃO, C******? É PEIXE!!!

Sábado, dia do show, e lá estava eu agarrada na privada colocando

todo o peixe com um tempero suspeito pra fora. Já eram seis da

tarde, o show estava começando. Harry me mandou umas cinco

mensagens, uma mais fofa que a outra, e por último uma

bronca: ‘obrigado por me deixar com cara de pamonha na frente dos

meus amigos’. Desculpa Harry, não acho que seria legal seus

amigos me conhecerem exatamente no dia em que to colocando

salmão pra fora até pelo nariz.

(nome da amiga), ao invés de ser solidária, estava me mandando pra

puta que pariu a cada cinco minutos e falando umas palavras

estranhas que eu tinha certeza de que eram de Bolton. Ela não

respondeu nenhuma mensagem do Harry em meu nome, embora eu

tenha pedido isso mil vezes. Ela estava brava, mas a culpa não era

minha! Nós almoçamos hoje pela primeira vez na escola e o tempero

britânico pode ser bem diferente quando você não está acostumada;

eu comi salmão e salada, e eu juro que aquele salmão estava com

gosto de atum. Não demorou muito pro meu estômago reclamar e,

hm, desde as 3 da tarde aqui estou, desnutrida e agarrada ao vaso

sanitário sem uma amiga compreensiva ao meu lado. Já tinha ligado

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para minha mãe e ela tinha me passado a receita do soro caseiro

que eu tomava no Brasil – TÃO difícil – e eu já tinha tomado, mas,

até aquela hora, nada. E, de acordo com o meu reflexo no espelho,

eu estava verde. (CASTRO, 2012)

O recurso da caixa alta e a menção do palavrão no início da narrativa marcam

nitidamente o grau de insatisfação da personagem. Também estão ali a forte

coloquialidade (“agarrada na privada”, “uma mais fofa que a outra”), a presença do

humor e da ironia (“cara de pamonha”, “TÃO difícil”, “eu estava verde”) e a busca

pela mãe em uma situação de dificuldade (“já tinha ligado para minha mãe”).

Outro aspecto que fortalece o vínculo de identificação entre as leitoras e o

texto é a descrição, na trama, do cotidiano adolescente no meio digital. Presentes

em toda a trama, situações que envolvem as redes sociais marcam o envolvimento e

os subsequentes conflitos entre a protagonista e o cantor. O twitter, por exemplo, é a

rede social que se destaca no princípio do envolvimento entre o casal:

Agora sim eu consegui pegar a porcaria do computador do colo

da null. Olhei para meus followers e ali estava aquela merdinha com

uma foto do Harry Styles me seguindo! Fui para minhas replies e

estava uma notificação ‘Harry Styles started to follow you’ e eu tive

que colocar minha mão na boca pra não gritar. Como assim, meu

Deus? [...] Agora o Harry ia ver que não sou popular, que os meus

tweets em geral são só sobre comida e nerdices e tá tudo em

português! Ele não vai entender nada mesmo, então por que eu tô

nervosa? A ideia de ter ele me seguindo no Twitter me dava arrepios,

eu vou ter que me vigiar pra não escrever merda? E se ele falar

comigo, e se alguma fã vier me xingar? (CASTRO, 2012).

Followers (seguidores), replies (notificações) e tweets (postagens) são

expressões claramente identificadas pelo público usuário do Twitter. A autora,

portanto, insere a personagem em um ambiente familiar às leitoras ao passo em que

desenvolve o romance entre o rapaz e a protagonista. Além de simbolizar a primeira

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forma de contato virtual entre os dois, o uso do Twitter na trama revela também, de

maneira muito natural, as inseguranças da personagem consigo mesma (“ia ver que

não sou popular”), os anseios da garota em relação ao rapaz (“A ideia de ter ele me

seguindo no Twitter me dava arrepios”, “vou ter que me vigiar pra não escrever

merda?”) e o medo da repercussão que o fato de ser próxima de uma celebridade

causaria em sua vida (“e se alguma fã vier me xingar?”).

4.3.2 A jornada do herói: arquétipos e estruturas míticas

Uma fanfic é, em essência, uma narrativa completa. Ao avaliar a 500 Days

in London, é possível identificar certas etapas que remetem à trajetória mítica

heroica. Ou seja: a trajetória narrativa implícita à fanfic é correlata à trajetória de

muitos heróis míticos, estratégia que também atrai e norteia os leitores. Para que a

análise fique clara, é importante retomar aqui o conceito que define a jornada do

herói.

É possível entendê-la como um conjunto de elementos que frequentemente

integram o comportamento e as circunstâncias da vida humana. Uma das definições

da jornada aparece no trabalho do escritor Joseph Campbell no livro O herói de mil

faces, que também se conjuga com o pensamento do psicólogo suíço Carl J. Yung e

sua teoria do inconsciente coletivo. Ambos baseavam-se na ideia de que certos

elementos e padrões da mitologia se repetiam frequentemente no âmbito oral e

narrativo (no caso da análise de Campbell) e em relatos de sonhos (no caso dos

pacientes de Yung). A fim de perceber as relações entre os estudos de Campbell e

as narrativas literárias, destacamos a obra A Jornada do escritor, de Christopher

Vogler, que utiliza a estrutura heroica para traduzir as muitas formas de estratégias

narrativas que compõem os diferentes relatos ficcionais. Vogler explica como se

estabelece a relação entre os mitos e o processo de identificação do leitor:

Os personagens que se repetem no mundo dos mitos, como o jovem herói, o (a) velho (a) sábio (a), o que muda de forma e o antagonista na sombra são as mesmas figuras que aparecem repetidamente em nossos sonhos e fantasias. É por isso que a maioria dos mitos (e histórias construídas sobre o modelo mitológico) tem o sinal da

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verdade psicológica. Essas histórias são modelos exatos de como funciona a mente humana, verdadeiros mapas da psique. São psicologicamente válidas e emocionalmente realistas, mesmo quando retratam acontecimentos fantásticos, impossíveis ou irreais. Isso explica o poder universal delas. As histórias escritas segundo o modelo da jornada do herói exercem um fascínio que pode ser sentido por qualquer um, porque brotam de uma fonte universal, no inconsciente que compartimos, e refletem conceitos universais (VOGLER, 2011).

É importante ressaltar que a jornada não se limita a um esquema estático

ou a uma fórmula única de criação que norteia as produções literárias. O intuito dela

é identificar e caracterizar elementos que refletem as mais básicas necessidades

emocionais do homem – elementos que se combinam e se reinventam, com

“detalhes que são diferentes em cada cultura, mas são fundamentalmente sempre

iguais” (VOGLER, 2011).

Tal dinamismo se reflete com clareza na obra de Vogler. Ao aliar os estudos

míticos de Campbell e a psicologia de Yung às narrativas contemporâneas, o livro A

Jornada do Escritor funciona como uma espécie de guia prático para aqueles que

redigem histórias e lidam com a narrativa – ou, ainda, para os que apenas querem

mergulhar nos conceitos que os norteiam. Autora do prefácio da obra, a escritora

Ana Maria Machado justifica a relevância do estudo:

Como essas duas funções da linguagem – comunicação e expressão – se completam, e raramente vemos alguém que busque na escrita de uma história apenas a manifestação de uma delas, um livro como este acaba sendo uma ferramenta útil para todos os que de alguma forma lidam com a narrativa: roteiristas, cineastas, videomakers, contadores de histórias, dramaturgos, romancistas, críticos, professores, estudantes de letras. Para uns, poderá ser um instrumento que ajude a tirar dúvidas e a orientar sua própria escrita. Para outros, certamente servirá como precioso modelo de análise, permitindo que se compreenda melhor a obra que se examina, vendo seus pontos fortes e fracos, discernindo falhas e qualidades especiais. (MACHADO, 2011).

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O autor, por sua vez, reforça a importância de sua obra sob outra

perspectiva. Distante da ideia de estabelecer um modelo próprio que ditasse regras

aos demais escritores, Vogler lembra que a jornada do herói não é resultado de uma

criação, e sim de um reconhecimento de padrões que se repetem de forma

universal:

A jornada do herói não é uma invenção, mas uma observação. É o reconhecimento de um belo modelo, um conjunto de princípios que governa a condução da vida e o mundo da narrativa do mesmo modo que a medicina e a química governam o mundo físico. É difícil evitar a sensação de que a jornada do herói existe em algum lugar, de algum modo, como uma realidade eterna, uma forma ideal platônica, um modelo divino [...]. Cheguei à convicção de que a jornada do herói é nada menos do que um compêndio para a vida, um abrangente manual de instrução na arte de sermos humanos. (VOGLER, 2011)

Para viabilizar esse o guia inspirado na jornada, Vogler dividiu o livro em

três partes: na primeira, Mapeando a jornada, há a retomada do modelo clássico da

jornada do herói (lançado em o Herói de mil faces, de Campbell), sua aplicação nas

mais variadas narrativas contemporâneas e a apresentação do guia proposto pelo

autor; na segunda parte, Os estágios da jornada, Vogler faz um percurso por cada

uma das etapas pelas quais o herói transita, detalhando-as; e finalmente, em

Recapitulando a jornada, o autor conclui o livro avaliando quatro filmes (Titanic, O

Rei Leão, Pulp Fiction e Ou tudo ou nada) sob a perspectiva da jornada do herói,

citando e detakhando suas respectivas problemáticas sob o panorama sócio-cultural

atual, fundamentando, assim, o guia proposto por ele.

Por detalhar a jornada em cada uma de suas fases, a segunda parte do

livro, em especial, oferece-nos o material de análise necessário para avaliar uma

narrativa sob a perspectiva mítica do herói. Por meio desse olhar, portanto, será

traçado um paralelo entre a fanfic 500 Days in London e os estágios da jornada do

herói proposto no guia de Vogler. É possível identificar, pontualmente, as figuras e

etapas míticas presentes na trajetória da protagonista de Gisele Castro.

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De forma sucinta, os pontos marcantes da jornada podem ser listados em

doze: Mundo Comum, Chamado à Aventura, Recusa do Chamado, Encontro com o

Mentor, Travessia do Primeiro Limiar, Testes, Aliados e Inimigos, Aproximação da

Caverna Oculta, Provação, Recompensa (Apanhando a Espada), Caminho de Volta,

Ressureição e Retorno com o Elixir. O herói, portanto, passeia por elas em um

percurso que, embora variável, tende a apresentar como ponto final sua superação

ou redenção. Serão pontuados a seguir, portanto, todos os estágios míticos da

jornada identificados no percurso da protagonista de Castro.

1. Mundo Comum

Primeiro estágio da narrativa heroica, o mundo comum é onde o herói se

encontra antes de ser levado à aventura. É o universo do cotidiano, do ordinário. É

comum, em grande parte das narrativas, haver o contraste entre o mundo comum (o

passado do herói) e o mundo especial (onde a aventura se desenvolve).

O mundo comum da protagonista de Castro é o Brasil. Precisamente, sua

casa. Ali, em uma manhã de domingo, a personagem recebe uma carta que irá tirá-

la do contexto atual e inseri-la no contexto especial (é o “chamado do herói”, o

segundo estágio, que será abordado a seguir). Em seu mundo comum, no princípio

da narrativa, a personagem mostra ao leitor quem é, onde está e o que deseja: uma

adolescente recém-formada no segundo grau que se vê entre a vontade dos pais de

que ela faça o vestibular, e a sua, de realizar um intercâmbio na Inglaterra para

cursar Fotografia na Escola de Artes de Londres. Para contextualizar o leitor, no

início da narrativa, ela retoma rapidamente o conflito com os pais e o processo de

inscrição, até o momento em que recebe a resposta da escola com sua aprovação:

Terminei meu terceiro colegial com honra, passei em todas as matérias e fui homenageada na formatura. O único problema é que meus pais queriam que eu fizesse algum vestibular, coisa que eu não queria. Depois de longas noites de briga, discussão e eu me trancando no quarto fazendo greve social, meu pai finalmente me autorizou a ficar um ano ‘de folga’ para eu pensar melhor nas oportunidades que a vida iria me trazer. Mas eu não queria ficar de folga, eu sabia muito bem o que queria. Eu sou fanática por fotografia

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e a Escola de Artes de Londres é a melhor DO MUNDO! Por isso, meio que escondida eu acabei enviando meu formulário para eles em meados de novembro; para minha total surpresa agora no meio de janeiro eu recebo uma carta avisando que eu passei, fui aprovada e posso finalmente começar meu curso (CASTRO, 2012).

A aprovação na escola londrina, apresentada ao leitor sob a forma de uma

carta no epílogo da trama, é o primeiro fato narrado na fanfic e representa o ponto

de partida para a aventura da protagonista. Este é, realmente, o centro do mundo

comum proposto por Vogler. Entretanto, é relevante observar e ponderar sobre os

demais aspectos inseridos no mundo comum que enriquecem e esclarecem pontos

importantes do caráter do herói e do ponto de partida da própria trama - dentre eles,

o título da história, a imagem de abertura, a identificação com o herói e os

problemas internos e externos. Passaremos a uma avaliação breve de cada um

deles.

O título da fanfic, 500 Days in London, é significativo porque sugere a ideia

de que a aventura tem início e fim marcados para acontecer. Isso gera no leitor a

dúvida: ao final dos 500 dias, só restarão lembranças? Ou a experiência vivida

durante esse período será o ponto de partida para uma realidade que vai além?

Como diz Vogler, “(...) um bom título pode se tornar uma metáfora de vários níveis

para a condição do herói ou de seu mundo”. Simultaneamente ao título, o leitor se

depara com a capa da fanfic, ou imagem de abertura:

Ilustração: Capa da fanfic 500 days in London

Fonte: www.fanficobsession.com.br

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É possível perceber que ao fundo uma adolescente fotografa o grupo. No

plano principal estão as mãos de outra (ou seria a mesma?) adolescente com uma

máquina fotográfica em punho, bem como um porta-retrato com a imagem registrada

no plano de fundo. A capa, portanto, permite dois tipos de interpretações: uma

imediata, que faz com que o leitor identifique elementos centrais ligados à história (o

ato de fotografar, a banda, as fãs) e outra mais profunda, que se torna clara à

medida em que a trama vai avançando: o fato de a foto estar no porta-retrato indica

que a história será uma recordação? Até que ponto a protagonista será uma

“expectadora” do que se passa com os rapazes – como a maior parte das fãs é - e

até que ponto terá um papel ativo na vida deles?

É curioso lembrar também que para que as duas interpretações façam

sentido, o leitor deve ter domínio sobre alguns símbolos e signos comuns às fãs: 1)

London, como no título, ou Londres, é a cidade natal e onde moram os rapazes da

boyband One Direction. Logo, ir para lá significa ter acesso às raízes deles e a locais

que frequentaram ou frequentam – desejo de muitas fãs; 2) As pulseiras usadas pela

adolescente da foto, com o nome da banda inscrito, são muito usadas em shows por

fãs. Pressupõe-se, portanto, que a adolescente da capa é uma fã, e não apenas

uma fotógrafa.

A imagem da fã e dos rapazes na capa, bem como a narrativa inicial que a

personagem principal faz de si mesma, dos pais e da situação em que está no

mundo comum, geram no leitor um processo de identificação, como lembra Vogler

ao dizer que “as cenas de abertura devem criar uma identificação entre o público e o

herói, um sentido que, de alguma forma, eles são iguais” (2012). E realmente são

iguais. Como o público leitor de fanfics é composto majoritariamente de

adolescentes e fãs, é natural uma identificação imediata diante do que é exposto

pela protagonista na abertura de 500 days in London: o conflito com os pais, o

desejo de realizar o intercâmbio e até a maneira da personagem se expressar, com

uma linguagem coloquial típica de adolescentes.

Outro aspecto que gera identificação nos leitores e se torna fundamental na

construção do herói são os problemas internos e externos. Quais são as lutas que a

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personagem central enfrentará contra os inimigos? E as lutas que travará consigo

mesma? No mundo comum, no caso da fanfic, ficam mais visíveis os problemas

externos: o fato de os pais não apoiarem a viagem, os desafios que a personagem

enfrentará por ser estrangeira e, posteriormente, se envolver com um cantor famoso.

Os problemas internos, entretanto, vão surgindo na trama a medida em que a

protagonista caminha no mundo da aventura: a insegurança com a própria

aparência, o sentimento de inferioridade e a dificuldade de se render ao romance e

manifestar afeto. O chamado à aventura, estágio que inicia uma espécie de terapia

para o herói, funciona como um convite à cura de questões internas que muitas

vezes o próprio herói desconhece.

2. Chamado à aventura

No caso da protagonista da fanfic, o chamado ocorre antes mesmo de sua

contextualização no mundo comum, através da carta-resposta da Escola de Artes de

Londres com a aprovação da personagem no curso de fotografia, apresentada ao

leitor através de um prólogo.

É relevante destacar o meio escolhido pela autora para chamar a heroína do

mundo comum: a carta. Frequentemente usada na jornada do herói como meio de

trazer o chamado, a carta é uma das expressões mais enfáticas de convite ao novo,

ao inesperado, ao desconhecido. O ato de tocar, abrir e ler uma correspondência

gera no herói e no leitor expectativas que abrem boas oportunidades narrativas. No

caso da fanfic, este é o modo como a protagonista reage a seu chamado:

Eu só fiquei parada ali no meio da minha cozinha com as mãos tremendo e olhando pra aquele papel timbrado, meu nome estava ali. MEU NOME! E o melhor de tudo, a palavra APROVADO brilhava e eu esqueci completamente de ver o que estava escrito abaixo. Essa parte de papelada eu posso deixar para meus pais, o importante é que eu consegui ENTRAR NA ESCOLA DE ARTES DE LONDRES! Isso significa que minha bolsa foi aceita, isso significa que meus pais não vão desembolsar com o curso, isso significa que finalmente vou

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sair dessa cidade de merda eu vou PRA LONDRES! (CASTRO, 2012).

As expressões “olhando para aquele papel timbrado”, “meu nome estava ali”

e “a palavra APROVADO brilhava” denotam a força do meio na transmissão da

mensagem: a carta, como meio físico, gera na protagonista uma materialização da

sua realização, provocando sensações que não existiriam em um comunicado

apenas oral, por exemplo. É possível dizer que a carta estende a sensação de

êxtase que a personagem sente.

A reação da personagem à notícia recebida é o tema do próximo tópico.

3. Recusa ao chamado

Há diversas maneiras de um herói receber seu chamado. Entretanto, a

reação utilizada com mais frequência por autores nas narrativas é a postura do herói

em recusa. O medo ou a surpresa pelo que está por vir tendem a criar um

comportamento de fuga geralmente manifestado por desculpas e tentativas de volta

ao mundo comum.

Há, porém, o que Vogler define como “recusa positiva” ou “herói voluntário”.

Na recusa positiva, o herói se desvencilha de uma tentação ou situação que lhe

causaria mal (como os três porquinhos na recusa em abrir a porta para o lobo mau).

No caso do herói voluntário, padrão que se encaixa no comportamento da

protagonista da fanfic avaliada, há uma aceitação imediata ou até mesmo uma

busca por seu chamado. Ao dizer que “sabia muito bem o que queria”, a

personagem expressa grande resolução em ir em direção ao seu desejo. As

expressões “parada”, “mãos tremendo” e “esqueci completamente de ver”, citadas

no prólogo, transmitem ao leitor a ansiedade na espera pelo próprio chamado. Sua

resposta, portanto, é mais que positiva – é de expectativa em relação a ele. O

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momento posterior ao recebimento da carta também traduz o comportamento típico

da heroína voluntária:

Quando meus pais conseguiram me controlar e eu finalmente parei de chorar para dizer que eu fui aprovada na minha requisição, a mistura de felicidade com surpresa tomou conta do quarto e no segundo seguinte eu estava sendo carregada no colo pelo meu pai até a cozinha e ele gritava para todo mundo ouvir que eu era o maior orgulho da vida dele. E era mais ou menos assim que a felicidade tomava conta do meu corpo, todas as minhas extremidades formigavam e eu sentia que ia vomitar e desmaiar ao mesmo tempo. Eu ia pra Londres, PRA LONDRES! (CASTRO, 2012).

Para que a trama ganhe equilíbrio, Vogler destaca que, no caso dos heróis

voluntários, é possível que haja forças indicando ao leitor quais são os perigos a

serem enfrentados no caminho. Isso suaviza a disponibilidade imediata do herói

para a aventura. Entretanto, no caso da autora da fanfic, esse recurso é usado com

muita suavidade. A protagonista só sente os reais perigos da sua jornada quando

entra no estágio de desenvolvimento do romance com o cantor. Estágio este que é

motivado por uma figura crucial no direcionamento do herói na jornada: o mentor.

4. Encontro com o mentor (ou velho sábio)

O mentor é uma figura importante na jornada. Atua geralmente no momento

do chamado do herói evocando as palavras decisivas que o induzem à sua missão,

ou oferecendo a sabedoria necessária nos momentos de conflito. A figura do mentor,

entretanto, também pode ser representada por mais de uma personagem, como no

caso de 500 Days in London.

Duas personagens em especial desempenham essa função na trama de

Castro: a companheira de quarto da protagonista, que vem a se tornar sua melhor

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amiga; e Tyra Banks, top model internacional que participa da prova final dos alunos

de fotografia. Para que a atuação de cada uma dessas personagens fique clara na

análise aqui proposta, elas serão pontuadas separadamente.

Mentora 1: A melhor amiga

A relação entre a protagonista e sua primeira mentora começa com a

chegada em Londres e cresce até o final da trama. Embora não seja uma fonte de

sabedoria em que a experiência de vida é o foco principal, como é possível supor ao

pensarmos na figura de um mentor, a melhor amiga é a figura mais presente no

cotidiano da protagonista, presenciando, atuando e frequentemente direcionando a

personagem principal nas questões mais relevantes da história. A palavra

“direcionando” transmite bem a função da mentora 1 quando observamos o

simbolismo curioso presente na cena do primeiro encontro das duas personagens:

ambas se conhecem quando a mentora encontra e devolve o passaporte que a

protagonista havia perdido:

Estava perdida em meus pensamentos quando uma voz com um grave sotaque supostamente me chamou. Virei-me e vi uma garota sorridente correndo até mim com seus cabelos longos correndo ao lado dela. Ela com certeza era daqui, tinha todo esse ar britânico que eu ainda não tinha e acho que nunca teria.

- Quer falar comigo? - Na verdade eu estou tentando falar com você desde que saiu do seu dormitório, você deixou cair seu passaporte – ela me entregou aquela coisinha verde e eu quase vomitei uma coisa verde! - Cacete – eu comecei a rir, geralmente eu começo a dar risada quando fico nervosa e tende a piorar – Nossa, muito obrigada! Muito obrigada mesmo, se eu perco isso não sei o que faria. - Iria parar no consulado – ela começou a rir – Gisele, certo? - Sim – sorri. - Desculpa, tomei a liberdade de abrir seu passaporte, precisava saber se você realmente era a dona do documento – ela disse dando de ombros – Sou Isadora, mas pode me chamar de Isa. - Muito prazer Isa – dei a mão pra ela que apertou de leve, bem que me avisaram que os britânicos são um pouco mais frios – Acho que deve saber que não sou daqui. - É meio óbvio – ela riu engraçado, dando uns soluços – Seja bem vinda a Londres. Não sou daqui também, sou de Bolton. Vim pra cá estudar fotografia. (CASTRO, 2012)

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As frases “vi uma garota sorridente correndo até mim”, “estou tentando falar

com você desde que saiu do seu dormitório” e “seja bem vinda a Londres, não sou

daqui também” sugerem a prontidão em ajudar e a identificação imediata que surge

entre as adolescentes. No decorrer da trama essa relação evolui e ambas decidem

dividir um quarto no alojamento da Escola de Artes de Londres. A proximidade física

e emocional faz com que se tornem cada vez mais próximas, até ao ponto em que a

melhor amiga passa a estar presente em quase todos os instantes cruciais da

narrativa. Um deles, especificamente, marca o início da aventura para a

protagonista: o envolvimento dela com o cantor da banda One Direction. É da

mentora 1 que vem a motivação necessária para que a protagonista opte por dar

uma chance ao rapaz, como é possível observar na seguinte cena:

Desliguei o telefone vendo a Isa pular em cima da cama e parecer absurdamente mais feliz que eu. Não vou negar que eu estava sentindo calafrios, mas não conseguia decidir se era porque:

Harry era um gatinho e talvez fosse a primeira vez em minha vida que eu fosse sair com alguém bonito

Ok, ele era famoso! Ele na verdade é famoso! Como assim?

Ele me ligou, como que essa pessoa conseguiu o telefone?

Comparando as meninas que ele possivelmente já deve ter saído eu devo ser a mais sem graça e eu não sei nada sobre ele, absolutamente nada

- Gisele? – Isa me chamou me tirando dos meus devaneios. - Que foi Isa? – eu perguntei. - Você tem aí uma meia hora pra se arrumar, o trânsito em Londres é horrível e nós costumamos ser bem pontuais – ela sorriu – O Harry vai estar te esperando. (CASTRO, 2012).

O temperamento imperativo da melhor amiga é crucial nos momentos de

dúvida da protagonista, e é seu traço de mentora que identifica a necessidade de

“empurrar” a amiga para as ações efetivas que vão mudando o curso da história. Há

um problema interno da heróina, entretanto, que não consegue ser direcionado pela

mentora, por maiores que sejam seus esforços: o problema da aparência.

A questão da aparência sugere um contraponto interessante na amizade

das duas: enquanto a protagonista lida com sua baixa auto-estima e se sente fora

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dos padrões de beleza considerados ideais pelas adolescentes (especialmente o

peso), a melhor amiga se destaca por ser muito bonita, segura e desenvolta.

Quando a insatisfação em relação ao peso ganha proporções mais sérias, a

personagem central passa a esconder da amiga como se sente e o fato de que evita

se alimentar. Embora a mentora perceba e tente auxiliá-la, não consegue.

Para suprir essa lacuna da mentora 1 e sinalizar para a protagonista, de

forma eficaz, a gravidade do seu distúrbio alimentar e de sua insegurança com a

própria aparência, a autora da fanfic insere, ainda que em uma aparição breve, a

segunda mentora: a modelo Tyra Banks, outra personagem real que vem reforçar a

verossimilhança externa que emana da trama.

Mentora 2: Tyra Banks

A aparição da top model Tyra é pontual e surge quase no final da trama,

quando as demais personagens já identificaram o problema interno da heroína em

relação à sua aparência. Durante toda a história, de forma crescente, a protagonista

deixa de se alimentar, evita situações em que precisa expor o corpo e se sente

especialmente insegura em relação às meninas magras e loiras (que, a seu ver,

correspondem ao padrão londrino de beleza). Embora seja frequentemente elogiada

pelos amigos e pelo namorado (o cantor), a impressão que tem de si mesma é

transmitida ao leitor como uma impressão distorcida da realidade.

Com essa problemática em seu ápice, Tyra Banks surge na trama. A força da

personagem é ainda maior ao observarmos que Tyra é uma personagem real, que

reforça a verossimilhança da história. Além deste aspecto, por ser uma referência

internacional no universo da moda, ter enfrentado desafios em relação à própria

aparência quando mais nova e não pertencer ao círculo de pessoas próximas à

protagonista, Tyra se torna a mentora ideal para auxilia-la em seu problema interno.

O principal diálogo entre as duas ocorre após a sessão de fotos em que a modelo é

fotografada pela adolescente e reforça a sensibilidade da mentora em relação ao

problema da heroína:

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- Gisele – ela me puxou pela mão um pouco mais longe dos meus amigos – Você tem um talento enorme menina. Eu nunca conheci uma fotógrafa de 18 anos fazer o que você fez hoje, nunca vi tanta gana em minha vida – ela sorriu – Esse talento existe dentro de você, mantenha essa chama acesa. Combinado? - Combinado – respondi. - E você é linda – ela sorriu – Sabe, quando eu desfilava na Victoria eu era a maior modelo. Sempre tive bundão, pernão, peitão, adoro minhas curvas – ela passou a mão pelo corpo e eu gargalhei – E quem disse que eu não sou sexy? Sou gostosa pra caralho, e leva um tapa quem dizer o oposto – e de novo nós rimos – Você tem um corpão, uma pele linda! Você tem sangue brasileiro, sangue britânico é muito sem graça garota. - Entendi – falei, eu sei bem onde Tyra estava querendo chegar – Não vou fazer nada estúpido, eu prometo. (CASTRO, 2012).

Ainda que o problema interno não se resolva imediatamente após a

conversa com a mentora, a protagonista segue sua trajetória de forma distinta. Tyra

se torna uma peça crucial na mudança de comportamento da adolescente.

5. Travessia do primeiro limiar

De acordo com Vogler, “o primeiro limiar é onde a aventura começa, para

valer”. Na fanfic 500 Days in London, é possível identificar um momento específico

que irá transformar a vida da heroína e finalmente atá-la ao mundo especial para a

qual foi chamada: o momento em que aceita sair com o cantor da banda One

Direction.

Após um encontro ao acaso no London Eye, um dos rapazes da banda se

interessa pela garota e tenta marcar um encontro com ela. Receosa especialmente

pelo fato de o rapaz ser famoso e ela anônima, a adolescente quase recusa o

convite. É justamente a melhor amiga – a mentora 1 – que oferece à protagonista a

propulsão necessária para que ela entre de vez na aventura: o romance com o

cantor.

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“Cheguei ao andar debaixo em dois segundos, o que a Isa estava falando não ajudava em nada, só me deixava mais nervosa! Eu não queria ir, ele pode ser bonito, mas e daí? Aposto que tem muitos outros garotos da minha idade que são bonitos, sangue europeu é sempre melhor que sangue brasileiro! Diga-se de passagem o McFly, os quatro são maravilhosos! E por eles eu viro groupie. Agora com One Direction, eu nem sabia quem eles eram a cinco dias atrás e agora estou indo em um pseudo encontro com um deles, e eu sei que vai ser estranho!” (CASTRO, 2012).

Vogler destaca aspectos importantes da travessia que auxiliam o leitor a

entender ainda mais o dilema em que o herói se encontra, como: os riscos que estão

envolvidos na travessia, o que o herói pode vir a perder com sua escolha, do que ele

claramente está abrindo mão e, finalmente, o que ele aprende (ou experimenta) ao

tomar sua decisão.

Aceitando o convite e partindo para o encontro com o cantor, motivada pela

amiga, a protagonista entra finalmente no que Vogler chama de mundo especial. Ela

diz “sim” à aventura – dando o primeiro passo na superação dos próprios medos - e

consequentemente aceita os riscos de sua escolha – o fim de seu anonimato, a

represália das fãs e a possibilidade de o cantor não estar sendo sincero em relação

a seu interesse por ela.

6. Testes, aliados e inimigos

Esta é uma etapa importante na jornada, quando o herói avança no mundo

especial e passa a lidar com os reais perigos, enfrentando-os, geralmente, com o

auxílio dos aliados. No caso da fanfic, esse momento tem início na Escola de Arte de

Londres, onde a protagonista cursa fotografia. É lá que a adolescente faz novos

amigos (aliados), passa a enfrentar represálias de uma forma concreta (testes) e é

obrigada a conviver lado a lado com as principais inimigas (colegas e fãs do cantor).

São dois os aliados que a protagonista encontra na Escola e que vão

acompanhá-la durante a jornada: Sam (um de seus colegas que se torna um amigo)

e Olivia (a primeira professora da turma de fotografia). O curioso é que, no caso de

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Sam*, a autora da fanfic cria uma atmosfera de dúvida no leitor, que fica sem saber

ao certo se o rapaz é apenas um amigo ou se irá representar uma ameaça ao

romance da trama. A descrição de Sam, quando ele surge na narrativa, deixa clara a

dúvida que a autora suscita:

- Hello? Um garoto com a pele branca como a neve, bochechas coradas, olhos azuis piscina e cabelos acobreados em um tom que misturava loiro, caramelo e cobre estava parado na minha frente com um sorriso ridiculamente perfeito no rosto. Seu porte físico parecia de um jogador de rugby – estilo baterista gostoso do McFly – e sua roupa parecia aquela amassada no fundo do guarda roupa. Calça jeans surrada, tênis mais ou menos velho nos pés, camiseta branca e uma camisa xadrez azul jogada por cima. Ele tinha um ‘quê’ Zac Efron, mas com todo aquele ar britânico de lord... Não consigo nem colocar em palavras, ele era lindo demais. Será que é famoso também e eu vou dar outra bola fora?

- Oi? – perguntei meio confusa e ele ainda sorria. - Você estuda aqui? – sua voz era doce, grossa, suave, meu Deus! - Comecei hoje, e você? – sempre tentando manter o tom casual. - Também – ele sorriu – Desculpa te incomodar, mas vi que você tá meio perdida e sozinha assim como eu – ele riu meio sem jeito e uma covinha linda e discreta apareceu do lado esquerdo do seu rosto – Sou Sam. - Prazer Sam – estendi minha mão – Sou Gisele. - Prazer é meu – ele sorriu e eu também – Posso me sentar aqui enquanto a aula não começa? (CASTRO, 2012)

Nos capítulos posteriores, entretanto, a dúvida se dissipa: Sam é gay, e

acaba se envolvendo com outro rapaz. Sam, o namorado dele, a protagonista e sua

amiga passam a fazer os trabalhos do curso juntos, se tornando cada vez mais

próximos e compartilhando os desafios que a heroína vive ao longo da história.

Olivia, a outra aliada, desempenha um papel diferente de Sam: por ser a

professora da turma e ter namorado um dos cantores que a protagonista mais

admira, Olivia gera na nela um sentimento de admiração e identificação - razão que

faz com que a menina compartilhe com ela alguns de seus problemas. Sua reação

quando descobre que Olivia será sua professora demonstra a satisfação da

personagem:

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E espera, ELA VAI SER NOSSA PROFESSORA?? Momento fangirling total, eu A AMO! Na verdade ela é um dos motivos pelos quais eu me tornei fotógrafa, conheço o trabalho dela por causa do McFly, mas desde então eu virei fã. E agora essa linda vai ser minha professora, e essa linda vai fotografar o One Direction e nós vamos juntos. Como alunos. Caralho! (CASTRO, 2012)

Quanto aos inimigos, a protagonista enfrenta basicamente um grupo que

se opõe ao romance entre ela e o cantor durante toda a trama: as fãs. São elas as

responsáveis pelo bullyng virtual (especialmente através do twitter), por agressões

físicas e por manifestações públicas de descontentamento em relação ao seu

namoro. Uma das primeiras represálias das fãs aconteceu exatamente na Escola de

Artes, durante uma apresentação musical da banda One Direction, em que a

protagonista é agredida por algumas fãs que estão na plateia:

Com o passar do refrão os pulos pioraram, os gritos também e os empurrões e chutes também. A loirinha que ama o Harry mais do que tudo apareceu ao meu lado e me deu uma cotovelada na costela. Daí pra frente eu só sei de dor, muita dor. Caí no chão de joelhos e coloquei a mão na parte atiginda enquanto as outras garotas mal se importaram de me ver ali, eu não conseguia me mexer e mal conseguia respirar. Duas garotas não me viram – ou me viram e fizeram de propósito – e começaram a pular ao meu lado, resultando em me derrubar no chão; só lembro de ser pisada nas mãos, nos cabelos, na perna, nos pés e alguém deu um chute pra trás que acertou meu lábio. Eu não conseguia falar nada, mal conseguia me mexer e se eu gritasse por ajuda ninguém ia me ouvir, eu mal conseguia ouvir os meninos cantando. Gritei um pouco mais alto quando a loirinha fez questão de pisar em minha mão, fiquei em posição fetal ali no chão só esperando a porra da música acabar e quem sabe eu conseguir me levantar (...) (CASTRO, 2012).

Vogler destaca que cada um dos 3 elementos que compõem essa etapa da

jornada (os testes, os aliados e os inimigos) são fundamentais na evolução da

história e no crescimento da heroína. Lidar com a represália virtual e real das fãs é

um desafio que acompanha a protagonista durante toda a trama, mas é notória a

mudança gradual, ainda que lenta, em sua conduta. São os testes, as situações que

provocam medo e insegurança, que preparam a heroína para o que está por vir.

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7. Aproximação da Caverna Oculta

Aproximar-se da caverna oculta é chegar perto do maior conflito da

jornada. Desde que entrou no mundo especial, a protagonista têm enfrentado os

próprios receios em relação a aparência e às fãs – que aumentaram a oposição à

garota desde que o namoro dela com o cantor foi oficializado e se tornou público.

Para o leitor, entretanto, uma questão a mais paira nas entrelinhas da

trama: o destino do relacionamento dos dois. Sendo a protagonista uma adolescente

brasileira, menor de idade e financeiramente dependente dos pais, e o cantor um

jovem londrino famoso que viajava o mundo fazendo shows, qual seria o desfecho

daquele romance?

A tensão em relação a esse aspecto aumenta quando os pais da

adolescente passam a pressioná-la a voltar para casa. favor a notícia de que ela

havia sido convidada por uma renomada fotógrafa para trabalhar no Brasil. Não

haveria, portanto, empecilhos para seu retorno. Com o fim do período letivo na

Escola de Londres, a tensão aumenta para a heroína. Ela passa a omitir dos amigos

e do namorado a proposta de emprego que recebeu no Brasil e passa a sofrer de

forma ainda mais concreta com a necessidade de voltar – e consequentemente, a

possibilidade de ver o relacionamento chegar ao fim.

A aproximação da caverna oculta é, portanto, um ponto crucial no rumo da

jornada: é ali que o herói toma a decisão de voltar ao mundo comum ou continuar no

mundo especial. O desejo da protagonista fica bem claro no momento em que

precisa dar um retorno às ligações da mãe:

Eu não podia abandonar tudo e voltar pro Brasil, não agora que, pela primeira vez estava fazendo sentido, onde eu finalmente tinha me encontrado. Estava sim, com uma oportunidade de primeira nas mãos, mas tenho certeza que algo bom iria acontecer pra mim na

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Europa, tinha que acontecer! Eu batalhei tanto, pra que isso agora? Abandonar tudo na primeira oportunidade? “Mãe, eu não vou voltar. Te ligo depois do natal, por favor não surte até lá e desculpa estragar a ceia. Te amo – Gi x”

Essa foi a mensagem mais difícil que eu já escrevi desde que vim pra cá.

É esse cenário de tensão emocional que antecipa a próxima etapa da jornada:

a provação.

8. Provação

Na fanfic, a provação é caracterizada pelo que Vogler chama de “crise

retardada”, aquela que “deixa mais tempo para os preparativos e a aproximação [da

caverna oculta], e permite que se vá, lentamente, construindo um grande momento

no fim do segundo ato”. Na crise retardada, portanto, a provação acontece não no

meio da trama, como nas crises centrais, e sim no fim dela. É o que ocorre na fanfic

500 Days in London.

A provação vem para a protagonista quando o namorado toma conhecimento

da proposta de emprego que a adolescente recebeu e resolve comprar a passagem

de volta para ela. Quando revela à namorada que tomou essa atitude, a crise

principal se instala, e o relacionamento dos dois chega ao fim:

- EU NÃO QUERO VOLTAR! - MAS VOCÊ VAI! – ele levantou – Você vai, eu não quero saber, nem que eu tenha que te ignorar que arrancar você da minha vida, EU VOU! PORQUE EU NÃO VOU DEIXAR VOCÊ PERDER ESSA CHANCE POR MIM! - POR NÓS! - NÃO EXISTE MAIS NÓS! – ele berrou com toda a força que restava. O quarto ficou frio, escuro apesar da lâmpada estar brilhando em cima de nossas cabeças. Eu queria o abraço dele, queria que ele se virasse pra mim e disesse que isso tudo era uma brincadeira, que óbvio que não ia voltar pro Brasil e que nós ainda estávamos juntos. Ou, que ele mentisse. Dissesse que não me amava, não me queria, que sou chata, irritante, feia, nojenta! Terminar comigo dizendo que

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me ama torna tudo tão mais complicado, difícil. E dói, demais. (CASTRO, 2012).

A partir deste instante, a protagonista passa a digerir sua nova realidade:

iria voltar ao seu mundo comum e precisava se desconectar de seu mundo especial.

O processo é doloroso para a personagem, já que ela sente que é incapaz de se

adaptar novamente à rotina que vivia.

9. Recompensa

Há um momento na jornada, entretanto, que representa uma espécie de

motivação para o herói após o sofrimento: a etapa da recompensa. Após enfrentar

seus maiores receios e ser obrigado a lidar com a dor, o herói se deleita em uma

espécie de “bálsamo da recompensa”.

Vogler destaca que as cenas de amor estão presentes com frequência na

etapa da Recompensa e ressalta que “os heróis não se tornam realmente heróis até

a crise. Antes disso, são apenas aprendizes. Não merecem ser amados de verdade

até mostrarem sua disposição para o sacrifício”. A cena de amor, portanto, coroa o

desfecho da provação, oferecendo ao herói uma espécie de “presente” por suas

ações. Na fanfic, a cena de amor acontece alguns instantes depois de seu triste

retorno ao Brasil, durante os preparativos da festa de fim de ano da família da

protagonista:

Corri uns quinhentos metros até chegar ao posto, e quando eu vi quem me esperava, uma alegria insana se apossou de mim. Parei de frente já sentindo as lágrimas serem levadas pelo vento praiano, e sentindo meu corpo vibrar por inteiro. Harry estava ali, não era uma miragem, era ele, ERA ELE! Seus cabelos dançavam conforme o vento, seu rosto estava com as bochechas vermelhas devido ao frio e seus lábios mais convidativos do que nunca. Usava uma camisa branca e uma calça jeans clara, estava encostado na grade de madeira olhando para o oceano e com as mãos cruzadas na frente do corpo. Vendo essa imagem eu só conseguia lembrar de Renato Russo em Tempo Perdido. (CASTRO, 2012)

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Outro aspecto interessante destacado por Vogler na etapa da Recompensa

é o amadurecimento do herói. É neste período que ele tem a oportunidade de ver e

entender seu próprio crescimento, avaliar a jornada e decidir que rumo terá que

tomar para concluir seu chamado.

10. Caminho de volta

O caminho de volta são os pontos de mudança de direção que marcam o

final da história. Para a heroína da fanfic, não há um fato apenas que simboliza essa

mudança, e sim um conjunto deles. O encontro com o cantor, que marcou a etapa

da Recompensa, não simbolizou um retorno do relacionamento – pelo contrário: foi

uma oportunidade para ambos de se despedirem e pensarem racionalmente sobre o

relacionamento, sem a tensão que culminou no término:

Ficamos em conversas, namoro, choro e segundo round até o dia seguinte. Não foi tão pior como eu tinha imaginado, já que nós dois estávamos preparados para a despedida e, oficialmente, o nosso fim. Mas, como eu disse pra ele e nós conversamos a noite, ainda acreditamos em milagres e eu, de verdade, acredito que há um mundo melhor pra nós dois. Precisa ter, porque, se não, tudo isso o que vivemos foi uma grande peça do destino, nos dando o gosto da felicidade e nos arrancando depois. Merecemos mais, merecemos felicidade plena, por favor. (CASTRO, 2012).

É notável, nesse estágio, o amadurecimento da personagem. O término do

relacionamento, que antes simbolizava um sacrifício impensável, hoje é visto por ela

como a melhor decisão a ser tomada. O mundo especial ainda é o mundo em que a

personagem quer estar, mas não o que ela pode estar, e tal mudança é aceita com

maturidade por ela diante das circunstâncias apresentadas. A mudança de direção

mais importante deste estágio, que ocorre paralelamente à aceitação sincera da

personagem de que o melhor que deve fazer é permanecer no Brasil, vem com a

notícia de que a protagonista não foi aprovada na Escola de Artes de Londres. Sua

tentativa de voltar ao mundo especial fracassa, e ela percebe que precisa se

desconectar realmente do universo em que estava:

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Suspirei e pisquei algumas vezes até focar em alguma coisa de novo. Era como se Rodrigo estivesse de olho em mim desde que eu cheguei e agora cansou de me ver chorando pelos cantos e me deu um belo tapa na cara de realidade. Tenho plena certeza que estava deixando meu passado e a saudade me influenciar, meus trabalhos aqui não estavam sendo cem por cento e ouvia os burburinhos que rolavam pelos corredores, de que a Miriam estava ficando um pouco decepcionada comigo. Se eu perdesse essa chance, aí sim eu estava ferrada de quatro! Não tinha mais Londres, não tinha outro trabalho, não tinha curso e não ia ter grana. Tinha que voltar a me focar, esse era o essencial. (CASTRO, 2012)

É essa mudança de conduta que direciona a personagem à sua ressureição.

11. Ressureição

A ressureição é o instante em que o herói incorporou suas lições e está

pronto para lidar com sua nova realidade. A ressurreição da protagonista da

fanfic é nítida no momento em que ela volta a Londres para participar de sua

festa de formatura. Ela volta ao mundo especial por um breve período e passa

pela “prova de fogo”: rever o ex-namorado, os amigos e a cidade em que esteve,

estando agora no mundo comum.

A etapa da ressurreição, porém, é o período em que o herói pode

ressurgir despido de seus problemas internos e externos, evoluído, maduro, ou

caminhando para tais resoluções. Isso se reflete na protagonista da fanifc ao

voltar a Londres para a formatura de sua turma de fotografia:

O vestido era longo, colado em meu corpo e tomara que (não) caia. Meu cabelo estava solto e apenas com a franja presa em um pequeno topete. Eu o tinha cortado meses antes de ir pra Inglaterra novamente, e agora ele estava batendo em meus ombros e bem mais repicado que o normal, o que me agradava e muito. Em meu ombro esquerdo havia uma tatuagem de uma polaroid de 1990, presa a um cordão de metal preto e branca. Era bem delicada e foi uma das primeiras “rebeliões” que fiz em São Paulo, quase causando em minha mãe um AVC. Eu também prometi aos meus pais que ia me cuidar mais e procurar um terapeuta, coisa que eu fiz depois de

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quatro meses e ainda estou no tratamento, o que me ajudou muito, em especial a trabalhar minha confiança e auto estima. Não estou cem por cento, mas agora estou mais consciente de minhas ações e esolhas. Delicadamente em meu pescoço tinha a corrente de bússola que Harry me deu, ela acabou sendo um objeto de proteção para mim, e mesmo ele não atendendo minhas ligações, me vi na obrigação de usá-la hoje. Ela representava muito mais do que um presente dele, ela sempre me ajudou a achar minha direção certa, e olha que coisa mais irônica... Depois de um ano que saí de Londres, aqui me encontro novamente. O ciclo está fechando. (CASTRO, 2012).

Por outro lado, a ressurreição é também o instante da provação final, o

desafio de desfecho, e, consequentemente, podem aparecer aspectos da

trajetória ainda mal resolvidos. A própria personagem identifica o caráter cíclico

de sua jornada e vê que é hora de atar as pontas soltas. Para ela, a prova final é

simbolizada pelo reencontro com o ex-namorado:

Um ano tinha se passado, praticamente, desde a última vez que nos vimos, e quase seis meses que não conversávamos. Como que, de repente, todo o sentimento parecia voltar como um soco no estômago? Eu apertei as mãos de Isa e Sam ao meu lado e sorri pra Harry, querendo dizer que eu estava muito feliz de ele estar ali, porque minha viagem pra Londres não estaria completa se eu não o visse. (CASTRO, 2012)

E é exatamente após este o encontro que a protagonista, madura em

relação a seus problemas internos, consegue se despedir do romance que viveu

com o cantor:

Todos os dias em que passei ao lado de Harry, ao lado dos meninos e em Londres passaram como um flash bem diante dos meus olhos. E, apesar de tudo, nunca imaginei que nosso reencontro fosse ser tão normal e tão pé no chão. Algo em mim já tinha superado Harry Styles, porque nós dois somos de mundos totalmente diferentes e seria impossível continuar esse conto de fadas, então decidi por mim mesma colocar uma pedra em cima desse assunto. E me dava mais alívio em saber que ele sentia o mesmo, e que não havia resquícios de mágoa nem nada. Apenas dois adolescentes que cresceram, seguiram com a vida e viram que, as vezes, esquecer um amor e se concentrar nas coisas importantes faz muita diferença, e não mata ninguém. (CASTRO, 2012)

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12. Retorno com o elixir

Todo herói, ao começar a jornada, sai em busca de algo. Ainda que seja

surpreendido no decorrer do caminho ou que não saiba exatamente o que o espera,

ele sai rumo a um objetivo e deve traçar seu caminho de volta diferente do que era

quando iniciou a jornada. À bagagem que o herói traz de sua jornada Vogler dá o

nome de “elixir”.

O objetivo da protagonista da fanfic 500 Days in London era cursar

fotografia na Escola de Artes de Londres. Como heroína voluntária, ela não fez

menção de recusa ao seu chamado, mas não tinha intenção de se envolver com um

cantor famoso (fato que se tornou o centro de toda a trama). A partir deste ponto,

todos os demais conflitos da trama ganharam força, especialmente o problema da

autoestima (sua própria aceitação e a necessidade de aceitação por parte das fãs) e

a dificuldade de se envolver e se arriscar emocionalmente.

Ao final da etapa da Ressurreição, o leitor percebe a mudança interna (a

maneira diferente reagir às mesmas situações) e externa (a confiança diante da

própria aparência) da protagonista. E embora ela deixe claro que seu processo de

crescimento não foi finalizado, suas ações confirmam transformações profundas na

volta para o mundo comum. O elixir do herói, nesse caso, é o elixir da experiência

que leva à maturidade. O ponto alto da consciência que a heroína demonstra ter de

sua mudança ocorre no baile, logo após o encontro com o ex-namorado:

Todos os dias em que passei ao lado de Harry, ao lado dos meninos e em Londres passaram como um flash bem diante dos meus olhos. E, apesar de tudo, nunca imaginei que nosso reencontro fosse ser tão normal e tão pé no chão. Algo em mim já tinha superado Harry Styles, porque nós dois somos de mundos totalmente diferentes e seria impossível continuar esse conto de fadas, então decidi por mim mesma colocar uma pedra em cima desse assunto. E me dava mais alívio em saber que ele sentia o mesmo, e que não havia resquícios de mágoa nem nada. Apenas dois adolescentes que cresceram,

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seguiram com a vida e viram que, as vezes, esquecer um amor e se concentrar nas coisas importantes faz muita diferença, e não mata ninguém. (CASTRO, 2012)

O elixir da experiência havia gerado uma nova heroína.

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Considerações Finais

Em sua análise sobre os critérios que tornam uma obra consagrada no âmbito

literário, a escritora Márcia Abreu destacou a força com que a convenção social – ou

a convenção sobre o que se estabelece como uma obra digna de crédito – interfere

em nossos julgamentos:

Os livros que lemos (ou não lemos) e as opiniões que expressamos sobre eles (tendo lido ou não) compõem parte de nossa imagem social. Uma pessoa que queira passar de si uma imagem de erudição falará de livros de James Joyce, mas não de obras de Paulo Coelho. Essa mesma pessoa, se tiver de externar idéias sobre Paulo Coelho, dirá que o desaprova. Mesmo que não tenha entendido nada de Ulisses ou tenha se emocionado lendo O alquimista. A escola ensina a ler e a gostar de literatura. Alguns aprendem e tornam-se leitores literários. Entretanto, o que quase todos aprendem é o que devem dizer sobre determinados livros e autores, independentemente de seu verdadeiro gosto pessoal. (ABREU, 2004, p 39).

A observação da autora reflete uma realidade histórica na cultura brasileira: o

gosto literário pessoal acaba sendo sufocado quando representa uma voz

dissonante do conceito “adequado” de literatura. Isto leva algumas pessoas a

emitirem opiniões superficiais sobre determinada obra ou autor, presas a um pré-

julgamento “oficial” que determina o que é ou não literatura:

Por trás da definição de literatura está um ato de seleção e exclusão, cujo objetivo é separar alguns textos, escritos por alguns autores do conjunto de textos em circulação. Os critérios de seleção, segundo boa parte dos críticos, é a literariedade imanente aos textos, ou seja, afirma-se que os elementos que fazem de um texto qualquer uma obra literária são internos a ele e dele inseparáveis, não tendo qualquer relação com questões externas à obra escrita, tais como o prestígio do autor ou da editora que o publica, por exemplo. Entretanto, na maior parte das vezes, não são critérios lingüísticos, textuais ou estéticos que norteiam essa seleção de escritos e autores. Dois textos podem fazer um uso semelhante da linguagem, podem contar histórias parecidas e, mesmo assim, um pode ser considerado literário e o outro não. Entra em cena a difícil questão do valor, que tem pouco a ver com os textos e muito a ver com posições

políticas e sociais. Por exemplo, já houve um tempo em que não se viam com bons olhos as produções femininas, pois as mulheres eram tidas como intelectualmente inferiores. Assim como os negros. Faça

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um teste: procure livros de história da literatura e veja quantas autoras são citadas até o final do século XIX. E quantos negros? Você, com certeza, conseguirá contar mulheres e negros consagrados nos dedos de uma só mão. Nos mesmos livros, procure referências a obras escritas por gente pobre. Talvez você nem precise da outra mão... Passe agora para o século XX e veja em quantas delas são analisados autores de best sellers. Feche a mão – você não vai mais precisar dela. Não é possível garantir a seleção dos textos literários apenas pela definição de gêneros (poesia, prosa de ficção, teatro etc.), por procedimentos lingüísticos (ritmo, rima, métrica etc.) ou pela utilização de figuras de linguagem (metáfora, aliteração, antítese etc.). O romance, por exemplo, é um gênero literário, mas nem todo romance é considerado literatura, assim como a rima é um procedimento literário, mas nem tudo que rima é considerado literatura, da mesma forma que a assonância é uma figura literária, mas nem toda repetição sonora é considerada literatura, e assim por diante. [...] Para que uma obra seja considerada Grande Literatura ela precisa ser declarada literária

pelas chamadas “instâncias de legitimação”. Essas instâncias são várias: a universidade, os suplementos culturais dos grandes jornais, as revistas especializadas, os livros didáticos, as histórias literárias etc. Uma obra fará parte do seleto grupo da Literatura quando for

declarada literária por uma (ou, de preferência, várias) dessas instâncias de legitimação. Assim, o que torna um texto literário não são suas características internas, e sim o espaço que lhe é destinado pela crítica e, sobretudo, pela escola no conjunto dos bens simbólicos. (ABREU, 2009, p. 40, 41).

Diante de tal conjectura, é possível traçar um paralelo entre o grupo de obras

marginalizadas mencionadas por Abreu e o propósito desta dissertação: as fanfics.

Como apresentado nesta análise, as fanfics são produções com raízes sociais

históricas presentes ainda no século XIX, com a vinda dos folhetins franceses para o

Brasil e sua crescente influência na gênese de nosso romance. Populares,

acessíveis e divulgadas em capítulos, as fanfics (bem como os folhetins) levaram o

entretenimento romântico para as camadas menos privilegiadas da sociedade,

abrindo as portas também para escritores amadores ou iniciantes.

Com uma estrutura narrativa coerente com os anseios de seu público, as

fanfics se apoiam na relação de proximidade e controle que a trama proporciona ao

leitor em relação à figura ou personagem que ele admira. O anseio por tornar cada

vez mais rico o processo de leitura levou autoras, leitoras e admiradoras a

organizarem, de modo espontâneo e voluntário, um processo editorial de produção,

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revisão, categorização, arte-finalização, publicação e divulgação das histórias. As

relações entre emissoras, receptoras e editoras, traduzidas nesta análise como o

triângulo da receptividade, refletem fluidez nos papéis desempenhados e permitem

que, democraticamente, uma leitora seja também autora ou beta-reader.

A proximidade nas relações e a coloquialidade na linguagem adotada na

maioria das fanfics não as isenta, entretanto, de uma estrutura interna atenta à

coerência narrativa, com a presença de todos os elementos que compõem uma

trama coesa. Nesse sentido, a análise da fanfic 500 Days in London sob a

perspectiva da jornada do herói confirma a cuidadosa estratégia das autoras de se

comunicarem efetivamente – e qualitativamente - com o público.

Isto posto, por meio das análises e das observações realizadas anteriormente

sobre os critérios sociais que legitimam ou não algumas opções literárias, é possível

identificar nas fanfics um exemplo de microcosmo literário ausente da visibilidade do

grande público e não legitimado pelas instâncias oficiais, mas extremamente popular

e sistematizado por aqueles que se alimentam delas. O poder de realização pessoal

proporcionado tanto pela leitura como pela escrita de fanfics dá sentido, portanto, a

uma das necessidades criativas mais básicas do ser humano: o de imaginar.

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REFERÊNCIAS

ABREU, Márcia. Cultura Letrada: literatura e leitura. São Paulo: Unesp, 2006. CÂNDIDO, Antônio; ANATOL, Rosenfeld; PRADO, Décio de Almeida; GOMES, Paulo Emílio Salles. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011. CASTRO, Gisele. 500 Days in London. Disponível em <www.fanficobsession.com.br> . Acesso em 28 de abril de 2013. CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos Literários (EDTL). Disponível em <http://www.edtl.com.pt>. Acesso em 15 de março de 2013. MEYER, Marlise. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ONE DIRECTION: A year in the making, parte 1. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=4oauuwCqJsA> . Acesso em 10 de abril de 2013. ________. parte 2. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=w-Vspo5uHoM>. Acesso em 10 de abril de 2013. REIS, Ana Lúcia Silva Resende de Andrade. O romance de folhetim no brasil do século xix – modelos e inovações. Disponível em <http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/abralic/textos/ana_reis.doc>. Acesso em 12 de abril de 2014. SAMPAIO, Theane Neves. Estudos de recepção através de fanfictions: uma proposta. Disponível em < http://pucposcom-rj.com.br/wp-content/uploads/2011/11/Estudo-de-

Recep%C3%A7%C3%A3o-Atrav%C3%A9s-de-Fanfiction-Theane-Sampaio-2.pdf>. Acesso em 28 de abril de 2013. VOGLER, Christopher. A jornada do escritor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

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ANEXO A: Exemplo de interatividade na leitura da fanfic 500 Days in London

(pop ups de questões que surgem antes da leitura)

1.

2.

3.

4.

5.

6.

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ANEXO B: Reprodução da capa da 500 Days In London no site Fanfic

Obsession:

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ANEXO C: Opções de personalização da home do site

1. Versão com o cantor John Mayer:

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2. Versão com o filme De volta para o futuro:

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3. Versão com os atores do Disney Friends For:

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4. Versão com a banda One Direction:

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ANEXO D:

Transcrição da postagem de Gisele Castro, autora da fanfic 500 Days in

London, em 2 de outubro de 2012, no grupo 500 days in London, no Facebook,

sobre a publicação em livro de sua fanfic:

“Buenas meninas ♥

Bom, primeiro, novidade: 500 days VAI VIRAR LIVRO! Conversei hoje com meu

professor de literatura (que me deu 10 na prova pq sou foda lol) e expliquei pra ele

meu projeto do livro, bem como "em que" estou baseando a estória. Depois dele rir

um pouco ele gostou pq o tema é bem diferente e 'não há livros que falam de abusos

na internet para adolescentes' ou seja, to no lucro \o/

Termino meu curso em dois anos, então tenho esse limite para deixar a 500 days no

jeito para finalmente fazer a publicação. E, óbvio, já to aqui começando a fazer a

versão dela pro inglês (eu fiz o primeiro capítulo, ficou tããõ fofinho). Então, já

entrando na vibe da publicação e divulgação do futuro livro, a Beatriz Glória deu uma

idéia GENIAL - como sempre.

Eu gostaria que vocês, leitoras, gravassem vídeos contando o que vocês sentem

com relação a 500 days in London. Tá valendo TUDO! O que mais gostou, com o

que se identificou, quando chorou, o que gostam na fic, o que não gostam... Enfim,

relatem pra mim o que fez a 500 days se tornar TÃO especial pra vocês ♥

Não tem data limite, então vocês podem gravar os vídeos quando quiserem e

postarem aqui NESSE TÓPICO! Queria que rolasse uma divulgação bem bacana,

porque isso me dá forças também pra continuar o projeto e ao final de 2015 ter meu

primeiro livro publicado - graças a ajuda de TODAS vocês.

É isso gente, conto com a colaboração de todas (e todos?) e agora pode

oficialmente começar a contagem regressiva para o livro. Vou postando sempre que

der se sair mais alguma novidade, yaaay :) Bjão - Gi

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