lemony snicket - quando voc a viu pela ltima vez e

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SÓ PERGUNTAS ERRADAS

__________

Quem poderia ser a uma hora dessas?

Quando você a viu pela última vez?

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PARA: BolsoDE: LSARQUIVAR EM: Manchado-pelo-mar, relatórios sobre;sequestro, investigações sobre; Tiro Furado;paradeiro, investigações de; láudano; sósias; et cetera.2/4cc: VFDhq

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Havia um vilarejo, uma estatueta e também uma pessoa sequestrada. Quando estive no

vilarejo, fui contratado para resgatar essa pessoa e pensei que a estatueta havia se perdido para

sempre. Eu tinha quase treze anos e estava errado. Sobre tudo. Eu devia ter feito a pergunta: “Como é

que alguém desaparecido pode estar em dois lugares ao mesmo tempo?”. Em vez disso, z a pergunta

errada — quatro perguntas erradas, mais ou menos. Esta é a história da segunda delas.

Estava frio, era de manhã e eu precisava cortar o cabelo. Eu não gostava nada daquilo. Quando você

está precisando cortar o cabelo, parece que não tem ninguém tomando conta de você. No meu caso,

isso era verdade. Não havia ninguém tomando conta de mim no Braços Perdidos, hotel em que eu

estava morando. Meu quarto chamava-se Suíte Extremo Oriente, apesar de não ser uma suíte, e eu o

dividia com uma mulher chamada S. eodora Markson, apesar de não saber o que o S queria dizer.

Não era um quarto bom, e eu tentava não passar muito tempo nele — exceto quando estava

dormindo, tentando dormir, ngindo que dormia ou fazendo uma refeição. eodora cozinhava a

maioria das refeições, apesar de “cozinhar” ser uma palavra muito so sticada para descrever o que ela

fazia. O que ela fazia era comprar coisas num mercadinho meio vazio a algumas quadras do hotel e

esquentá-las numa pequena chapa ligada na tomada. Naquela manhã o café foi um ovo frito, que

eodora me serviu numa toalha do banheiro. Ela sempre se esquecia de comprar pratos, embora

eventualmente se lembrasse de me culpar por deixá-la esquecer. A maior parte do ovo cou grudada

na toalha, então não comi muito, mas eu tinha encontrado uma maçã não muito machucada e agora

estava sentado no lobby do Braços Perdidos, com o miolo pegajoso na mão. Não havia muita coisa no

lobby além de mim. Havia um homem chamado Próspero Perdido, que administrava o lugar com um

sorriso que me fazia pular para trás como se ele fosse um bicho saindo de uma gaveta; havia um

telefone numa cabine pequena que estava quase sempre ocupada; e havia uma estátua de gesso de

uma mulher sem roupas e sem braços. Ela precisava de um suéter, comprido e sem mangas. Eu gostava

de sentar no sofá sujo abaixo dela para pensar. Se você quer saber a verdade, eu estava pensando em

Ellington Feint, uma garota com sobrancelhas estranhas e encurvadas, parecidas com pontos de

interrogação, olhos verdes e um sorriso que podia signi car qualquer coisa. Havia algum tempo que

não via aquele sorriso. Ellington Feint havia fugido, levando uma estatueta no formato da Fera

Ressonante. Em lendas muito antigas, a fera era uma criatura terrível, com quem marujos e

moradores se preocupavam em encontrar. Eu só me preocupava em encontrar Ellington. Eu não sabia

onde ela estava ou quando poderia vê-la novamente. O telefone tocou bem na hora combinada.

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— Alô? — eu disse.

Houve uma pausa cautelosa antes de ela dizer “bom dia”.

— Bom dia — ela disse. — Estou fazendo uma pesquisa voluntária. “Uma pesquisa” quer dizer que

você responderá perguntas, e “voluntária” quer dizer que…

— Eu sei o que voluntária quer dizer — interrompi, conforme o planejado. — Signi ca que vou me

oferecer voluntariamente.

— Exatamente, senhor — ela disse. Era engraçado ouvir minha irmã me chamando de senhor. —

Esta seria uma boa hora para responder algumas perguntas?

— Sim, eu tenho alguns minutos — eu disse.

— A primeira pergunta é: quantas pessoas estão atualmente em sua residência?

Olhei para Próspero Perdido, que estava do outro lado da sala, parado atrás do balcão olhando para

as unhas. Logo ele perceberia que eu estava no telefone e encontraria um motivo para car parado em

algum lugar onde pudesse escutar melhor a conversa.

— Eu moro sozinho — eu disse —, mas só por enquanto.

— Sei exatamente do que você está falando.

Pela resposta da minha irmã eu soube que ela também estava num lugar sem privacidade.

Ultimamente não era muito seguro falar ao telefone, e não só porque alguém poderia ouvir a

conversa. Havia um homem chamado Tiro Furado, um vilão que se tornou o foco das minhas

investigações. Tiro Furado tinha a habilidade enervante de imitar a voz de qualquer pessoa, o que

signi cava que nem sempre dava para ter certeza de quem estava do outro lado da linha. Também

não dava para ter certeza de quando Tiro Furado apareceria novamente ou quais seriam seus planos.

Eram coisas demais para não ter certeza.

— Na verdade — minha irmã continuou —, as coisas na minha residência se tornaram tão

complicadas que não tenho certeza se poderei continuar indo à biblioteca.

— Lamento ouvir isso — eu disse, um código que signi cava que eu lamentava ouvir aquilo. Até

pouco tempo antes minha irmã e eu vínhamos nos comunicando através do sistema de bibliotecas.

Agora ela parecia me dizer que aquilo não seria mais possível.

— Minha segunda pergunta é: você prefere visitar um museu sozinho ou acompanhado?

— Acompanhado — eu disse rapidamente. — Ninguém deveria ir sozinho a um museu.

— E se você não pudesse levar seu acompanhante de costume — ela perguntou —, porque ele está

muito longe?

Passei uns poucos segundos olhando xamente para o telefone em minha mão, como se eu pudesse

espiar através dos buraquinhos e enxergar até a cidade onde minha irmã estava trabalhando como

aprendiz, assim como eu.

— Então você deveria levar outro acompanhante — eu disse —, em vez de visitar um museu

sozinho.

— E se não houvesse outros acompanhantes disponíveis? — ela perguntou, e então sua voz mudou,

como se alguém tivesse entrado na sala. — Essa é a minha terceira pergunta, senhor.

— Então você não deveria ir ao museu — eu disse, mas então também fui interrompido pela gura

de S. eodora Markson descendo as escadas. Seu cabelo veio na frente — uma maçaroca selvagem,

como se diversas cabeças cheias de cabelo estivessem lutando entre si — e o resto dela veio atrás, alto

e carrancudo. Há muitos mistérios que eu nunca desvendei, e o cabelo da minha tutora talvez seja o

mais curioso deles.

— Mas, senhor… — minha irmã ia dizendo, mas tive de interrompê-la novamente.

— Mande lembranças minhas ao Jacques — eu disse, uma frase que, aqui, queria dizer duas coisas.

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Uma era “Eu preciso sair do telefone”. A outra coisa que a frase queria dizer era exatamente o que ela

disse.

— Aí está você, Snicket — eodora me disse. — Estive procurando você por toda parte. É um

caso de desaparecimento.

— Não é um caso de desaparecimento — eu disse pacientemente. — Eu disse a você que estaria no

lobby.

— Não seja bobo — eodora me disse. — Você sabe que não presto muita atenção no que você

diz pela manhã e, por isso, você deveria fazer os ajustes necessários. Se você estará em algum lugar

pela manhã, me diga isso à tarde. Mas onde você está não vem ao caso. Pois esta manhã, Snicket, nós

somos investigadores de paradeiro.

— Investigadores de paradeiro?

— “Investigadores de paradeiro” é uma expressão que, neste contexto, signi ca “pessoas que

encontram desaparecidos e os trazem de volta”. Vamos lá, Snicket, estamos com muita pressa.

eodora tinha um vocabulário impressionante, o que pode ser fascinante quando usado no

momento adequado. Mas quando você está com muita pressa e alguém usa um termo como

“investigadores de paradeiro”, que você provavelmente não vai entender, nesse caso um vocabulário

impressionante é muito irritante. Outra maneira de dizer isso é dizer que é vexante. Outra maneira

de dizer isso é dizer que é aborrecido. Outra maneira de dizer isso é dizer que é enfadonho. Outra

maneira de dizer isso é dizer que é exasperante. Outra maneira de dizer isso é dizer que é perturbador.

Outra maneira de dizer isso é dizer que é maçante. Outra maneira de dizer isso é dizer que é

impertinente. Outra maneira de dizer isso é dizer que é importunante. Outra maneira de dizer isso é

dizer que é enervante. Outra maneira de dizer isso é dizer que é enfurecedor ou revoltante ou

insuportável ou amargurante ou envenenante, ou que faz você perder a cabeça ou arrancar os cabelos,

ou faz seu sangue ferver, ou faz sua temperatura subir, ou deixa seu rosto vermelho, ou deixa você

enlouquecido, ou pronto para a briga, ou a ponto de explodir, ou fulo da vida, ou com sangue no olho

e, como você pode ver, também é uma perda de tempo quando não há tempo a perder. Saí do Braços

Perdidos junto com eodora, em direção ao lugar onde seu esportivo caindo aos pedaços estava mal

estacionado em relação ao meio- o. Ela deslizou para o banco do motorista e colocou o capacete de

couro que sempre usava quando dirigia, e que era o principal suspeito no mistério envolvendo o

porquê de seu cabelo estar sempre tão esquisito.

Nós estávamos em um vilarejo chamado Manchado-pelo-mar, que não cava mais à beira-mar e

praticamente nem era mais um vilarejo. As ruas estavam tranquilas e muitos prédios estavam vazios,

mas aqui e ali eu podia ver sinais de vida. Passamos pelo Faminto’s, um restaurante que eu ainda

precisava conhecer, e vi pela janela a silhueta de diversas pessoas tomando café da manhã. Passamos

pelo Comidas Incompletas, onde comprávamos nossos mantimentos, e vi um ou dois consumidores

caminhando entre as prateleiras meio vazias. No Café Gato Negro havia uma gura solitária no

balcão, apertando um dos três botões automatizados que forneciam, respectivamente, café, pão ou

acesso ao sótão, o qual já tinha servido como um bom esconderijo. Nesse passeio de carro também

percebi uma coisa nova no vilarejo — alguma coisa colada nos postes e tábuas que lacravam as portas

e janelas das casas abandonadas. Os cartazes estavam colados até nas caixas de correio, muito embora

de dentro do esportivo em disparada eu só conseguisse ler uma palavra escrita neles.

— Este é um assunto crucial — eodora dizia. — Nos deram este caso importante pelo nosso

sucesso anterior com o roubo da estatueta da Fera Ressonante.

— Eu não chamaria de sucesso — eu disse.

— Não me interessa como você chamaria — disse eodora. — Tente parecer mais com o seu

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antecessor, Snicket.

Eu estava cansado de ouvir falar do aprendiz que viera antes de mim. eodora tinha gostado mais

dele, o que me fazia pensar que ele era pior.

— Nós fomos contratados para devolver aquela estatueta aos donos legítimos — lembrei a ela —,

mas isso acabou se revelando um dos truques de Tiro Furado, e agora tanto o objeto quanto o

bandido podem estar em qualquer lugar.

— Acho que você só está com dor de cotovelo por causa daquela garota, Eleanor — disse

Theodora. — Cupidez não é uma qualidade desejável num aprendiz, Snicket.

Eu não tinha certeza do que “cupidez” signi cava, mas começava com “cupido”, o deus alado do

amor, e eodora estava usando o tom de voz que todo mundo usa quando quer provocar um menino

que tem meninas como amigas. Eu me senti corando e não quis dizer o nome dela, que não era

Eleanor.

— Ela está correndo perigo — eu disse, em vez disso —, e eu prometi ajudá-la.

— Você não está se concentrando na pessoa certa — disse eodora, jogando um grande envelope

no meu colo. O envelope tinha um lacre negro que havia sido rompido. Dentro não havia nada além

de um pedaço de papel com a fotogra a de uma garota vários anos mais velha do que eu. Ela tinha o

cabelo tão loiro que parecia branco e usava óculos que faziam seus olhos parecerem muito pequenos.

Os óculos eram cintilantes, ou talvez só re etissem o ash da câmera. Suas roupas pareciam novinhas

em folha, com listras pretas e brancas novinhas em folha como as de uma zebra recém-polida. Ela

estava parada de pé no que eu suponho que fosse seu quarto, que também parecia novinho em folha.

Pude ver a beirada de uma cama reluzente, e uma cômoda reluzente repleta de troféus que pareciam

ter sido entregues ontem. A maioria dos troféus que eu vi tinha a gura de atletas em cima. Essas

guras tinham formas brilhantes e estranhas. Elas me lembravam das ilustrações num livro de

ciências, explicando as coisas muito pequenas das quais supostamente o mundo era composto. As

únicas coisas na foto que não pareciam novinhas em folha eram o chapéu que ela usava, o qual era

redondo e tinha a cor de uma framboesa, e a carranca em seu rosto. Ela parecia descontente de ter sua

foto tirada, e também parecia usar sua expressão de descontentamento com bastante frequência.

Impresso abaixo da garota carrancuda estava seu nome, SRTA. CLEO KNIGHT, e no topo do cartaz estava

impressa outra palavra, numa fonte muito maior. Era a mesma palavra que eu tinha visto nas cópias

do panfleto espalhadas por toda a cidade.

DESAPARECIDA.

A palavra se referia à garota, mas poderia se referir a qualquer outra coisa no vilarejo. Ellington

Feint havia sumido. O esportivo de eodora percorreu rápido dois quarteirões inteiros,

completamente livres de lojas e pessoas. Percebi que estávamos indo na direção do prédio mais alto do

vilarejo, uma torre na forma de uma enorme caneta. Um dia este vilarejo já foi conhecido por

produzir a tinta mais escura do mundo, retirada de polvos apavorados que tremiam em poços

profundos que um dia estiveram embaixo d’água. Mas o mar havia sido dragado, deixando para trás

uma imensidão selvagem e sombria de algas que, de alguma forma, ainda sobreviviam apesar de a

água ter desaparecido. Hoje em dia ainda sobravam alguns polvos, mas no m não restará nada além

das algas cintilantes da Floresta Aglomerada. “Em breve tudo desaparecerá, Snicket”, eu disse a mim

mesmo. “Sua tutora está certa. Você está com muita pressa. Se você não se apressar para encontrar o

que está desaparecido, nada restará.”

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A torre em forma de caneta tinha uma porta surpreendentemente pequena, com um letreiro

grande demais. As letras diziam TINTA S.A., e a campainha tinha o formato de uma pequena mancha de

tinta escura. Era o nome do maior negócio em Manchado-pelo-mar. eodora estendeu o dedo

coberto por uma luva e tocou a campainha seis vezes. Não havia uma campainha no mundo que

Theodora não tocasse seis vezes quando visse.

— Por que você faz isso?

Minha tutora ajeitou a postura para car o mais alta possível e tirou o capacete para que seu cabelo

a deixasse ainda mais alta.

— S. Theodora Markson não precisa explicar nada para ninguém — ela disse.

— O que o S quer dizer? — perguntei.

— Silêncio — ela sussurrou, e a porta se abriu para revelar dois rostos idênticos e um cheiro

familiar. Os rostos pertenciam a duas mulheres de aparência preocupada, vestindo roupas pretas

quase inteiramente cobertas por aventais brancos enormes, mas o cheiro eu não conseguia identi car.

Era doce e inadequado, como um punhado de flores malévolas.

— Você é S. Theodora Markson? — uma das mulheres disse.

— Não — Theodora disse. — Eu sou.

— A gente estava falando de você — disse a outra mulher.

— Ah — eodora disse. — Nesse caso, sim. E este é o meu aprendiz. Vocês não precisam saber o

nome dele.

Eu disse a elas mesmo assim.

— Eu sou Zada e esta é Zora — disse uma das mulheres. — Somos as empregadas da família

Knight. Não se preocupe em tentar nos diferenciar. A srta. Knight é a única que consegue. Você vai

encontrá-la, não vai, sra. Markson?

— Por favor, me chame de Theodora.

— Nós conhecemos a srta. Knight desde que ela era um bebê. Fomos nós que a trouxemos do

hospital quando ela nasceu. Você vai encontrá-la, não vai, Theodora?

— A não ser que você pre ra me chamar de sra. Markson. Eu realmente não me importo se for de

um jeito ou de outro.

— Mas você vai encontrá-la?

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— Eu prometo fazer o meu melhor — eodora respondeu, mas Zada olhou para Zora, ou talvez

Zora olhou para Zada, e as duas fecharam a cara. Ninguém quer ouvir que você vai fazer o seu

melhor. É a coisa errada a dizer. É como dizer “Provavelmente não vou bater em você com uma pá”.

De repente todo mundo fica com medo de que você faça o contrário.

— Vocês devem estar morrendo de preocupação — foi o que eu disse em vez disso. — Nós

gostaríamos de saber todos os detalhes do caso, para que possamos ajudá-las o mais rápido possível.

— Entrem — Zada ou Zora disse, e nos conduziu por uma sala que pareceu, a princípio,

desesperadamente minúscula e bastante escura. Quando meus olhos se acostumaram à escuridão,

pude ver que aquilo que inicialmente parecia ser as paredes eram grandes caixas de papelão

empilhadas em todos os lugares possíveis, fazendo com que a sala parecesse menor do que realmente

era. A escuridão, porém, era real. Quase sempre é. O cheiro cou mais forte assim que a porta foi

fechada — tão forte que meus olhos se encheram d’água.

— Desculpem pela bagunça — disse uma das mulheres de avental. — Os Knight estavam se

preparando para a mudança quando aquela coisa horrível aconteceu. O sr. e a sra. Knight não cabem

em si de tanta preocupação.

Os olhos de Zada e Zora também estavam cheios d’água, ou talvez elas estivessem chorando, mas

elas nos guiaram pelo vão entre as caixas, passando por um corredor escuro até uma sala de estar que

parecia ter sido inteiramente encaixotada e depois desencaixotada especialmente para a ocasião. Um

abajur alto estava em cima de sua caixa, com o cabo de força serpenteando até a tomada. Um sofá

estava metade para fora de uma caixa com formato de sofá e, em outras duas caixas abertas, havia

duas cadeiras sobre as quais estavam as únicas coisas naquela sala que não pareciam prontas para

serem carregadas até um caminhão: o sr. e a sra. Knight. A cadeira do sr. Knight era de um branco

brilhante, e suas roupas, de um negro escuro; com a sra. Knight era o contrário. Eles cabiam

direitinho nas cadeiras, mas não pareciam não caber em si de tanta preocupação. Pareciam estar

muito cansados e confusos, como se nós os tivéssemos despertado de um sonho.

— Boa noite — disse a sra. Knight.

— É de manhã, madame — disse Zada ou Zora.

— Está frio mesmo — disse o sr. Knight, como se estivesse concordando com algo que alguém havia

dito, enquanto olhava para as próprias mãos.

— Esta é S. eodora Markson — prosseguiu uma das mulheres de avental — e o seu aprendiz.

Eles estão aqui por causa do desaparecimento de sua filha.

— O desaparecimento de sua filha — a sra. Knight repetiu calmamente.

O marido virou-se para ela.

— Doretta — ele disse —, a srta. Knight desapareceu?

— Você tem certeza, meu caro Ignatius? Não acho que a srta. Knight iria desaparecer sem deixar

um bilhete.

O sr. Knight continuou olhando para as mãos, até que enfim piscou e olhou para nós.

— Oh! — ele disse. — Não tinha me dado conta de que tínhamos visitas.

— Boa noite — disse a sra. Knight.

— É de manhã, madame — disse Zada ou Zora, e eu quei com medo de que aquela conversa

estranha estivesse prestes a se repetir do começo.

— Viemos por causa da srta. Knight — eu disse rapidamente. — Sabemos que ela desapareceu e

queremos ajudar.

Mas o sr. Knight estava olhando novamente para as mãos, e o olhar da sra. Knight também se

perdeu, na direção de uma porta nos fundos da sala, onde um homenzinho redondo observava a todos

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nós através de seus oculozinhos redondos. Ele tinha uma barbicha no queixo que parecia estar

tentando fugir de seu sorriso sórdido. Ele parecia o tipo de pessoa que diz que não tem um guarda-

chuva para emprestar, mas na verdade tem vários e simplesmente quer ver você encharcado.

— O sr. e a sra. Knight não estão em condições de receber visitas — ele disse. — Zada ou Zora, por

favor, tirem-nos daqui para que eu possa atender os meus pacientes.

— Sim, dr. Flammarion — disse uma das mulheres de avental, fazendo uma pequena reverência e

nos levando para fora da sala. Eu olhei para trás e vi o dr. Flammarion tirando uma enorme agulha do

bolso, o tipo de agulha que os médicos gostam de espetar em você. Reconheci o cheiro e corri para

acompanhar os outros, que saíam da sala. Fizemos o caminho de volta atravessando um corredor

estreito que estava ainda mais estreito por causa das colunas de caixas, e então de repente estávamos

numa cozinha que fez com que eu me sentisse muito melhor. Não estava escuro. A luz do sol entrava

pelas janelas grandes e limpas. Tinha cheiro de canela — um aroma muito melhor do que o que eu

vinha sentindo —, e ou Zada ou Zora correu até o forno e tirou uma travessa de pãezinhos de canela

que me zeram cobiçar um café da manhã decente. Uma das mulheres de avental pôs um deles num

prato para mim, ainda fumegante. Qualquer pessoa que dá a você um pãozinho de canela saído

diretamente do forno é um amigo para o resto da vida.

— O que há de errado com os Knight? — perguntei depois de agradecê-las. — Por que eles estão

agindo de maneira tão estranha?

— Eles devem estar em choque por causa do desaparecimento da lha — disse eodora. — Às

vezes as pessoas agem de maneiras muito estranhas quando uma coisa terrível acontece.

Uma das mulheres de avental deu a Theodora um pãozinho de canela e sacudiu a cabeça.

— Eles já estão assim há algum tempo — ela disse. — O dr. Flammarion vem trabalhando como

boticário particular da família há algumas semanas.

— O que isso quer dizer? — perguntei.

— Flammarion é um pássaro grande e cor-de-rosa — disse Theodora.

— Um boticário — continuou a mulher, muito mais prestativamente — é um tipo de médico, e

também um tipo de farmacêutico. Por muitos anos o dr. Flammarion trabalhou na Clínica Colofão, na

periferia do vilarejo, antes de vir para cá tratar os Knight. Ele está usando uma medicação especial,

mas eles simplesmente continuam piorando.

— Deve ter sido muito perturbador para a srta. Knight — eu disse.

Zada e Zora pareceram muito tristes.

— A srta. Knight cou muito sozinha — uma delas disse. — Vem um sentimento de solidão

quando alguém que você gosta se torna um estranho.

— Então não tem ninguém se preocupando com a srta. Knight — eodora disse, pensativa. Os

pãezinhos de canela eram daquele tipo todo enroladinho, como a concha de um caramujo, e minha

tutora o havia desenrolado antes de começar a comer, de modo que suas mãos caram cobertas de

glacê e canela. Era o jeito errado de fazer aquilo. Ela também estava errada a respeito de ninguém

estar se preocupando com a srta. Knight. Eram Zada e Zora que não cabiam em si de tanta

preocupação. Eu me inclinei para a frente e olhei primeiro para Zada e depois para Zora — ou talvez

tenha sido o contrário. E então, enquanto minha tutora lambia os dedos, z a pergunta que está

impressa na capa deste livro.

Era a pergunta errada, tanto nesse momento quanto mais tarde, quando perguntei a um homem

enrolado em ataduras. A pergunta certa nesse caso seria “Por que ela estava usando uma peça de

roupa que não era dela?”, mas esta não é uma história sobre as vezes em que z as perguntas certas,

por mais que eu quisesse que fosse.

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— A srta. Knight esteve conosco ontem de manhã — uma das mulheres disse, usando seu avental

para esfregar os olhos. — Ela estava sentada bem onde você está agora, tomando seu café da manhã

costumeiro de cereal Schoenberg. Depois ela passou algum tempo no quarto antes de sair para

encontrar um amigo.

— Quem era esse amigo? — perguntei.

— Ela não disse. Ela simplesmente saiu dirigindo e não voltou.

— Ela tem idade suficiente para dirigir?

— Sim, ela tirou a carteira alguns meses atrás, e seus pais compraram um Dilema novinho para ela.

— É um bom carro — eu disse. O Dilema era um dos carros mais extravagantes da época. Dizia-se

que era possível bater um Dilema contra a parede de um prédio e sair do outro lado sem um amassado

ou arranhão, mesmo que o prédio talvez desabasse.

— O sr. e a sra. Knight dão à lha tudo que ela quer — disse a mulher de avental. — Roupas novas,

carro novo, e todo tipo de equipamento para os experimentos dela.

— Experimentos?

— A srta. Knight é uma química brilhante — Zada ou Zora disse com orgulho. — Ela costumava

passar a noite acordada fazendo experimentos no seu quarto.

— Imagino que ela tenha aprendido isso ao vê-las cozinhando — eu disse. — Este pãozinho de

canela é o melhor que já provei.

Elogiar alguém de maneira exagerada é conhecido como adulação, e geralmente com adulação

você consegue o que quiser, mas Zada e Zora estavam preocupadas demais para me oferecer um

segundo pãozinho.

— Provavelmente ela herdou as habilidades da avó — disse a mulher. — Ingrid Nummet Knight

fundou a Tinta S.A. quando era uma jovem cientista, após anos experimentando com várias tintas de

várias criaturas. Não demorou muito para que a Tinta S.A. zesse dos Knight a família mais rica do

vilarejo. Mas esses dias chegaram ao m. A Tinta S.A. está praticamente falida, assim como o vilarejo.

E é por isso que vamos embora de Manchado-pelo-mar.

— Quando vocês vão partir? — perguntei.

— Assim que os Knight nos derem a ordem.

— Mesmo que a srta. Knight não volte?

— O que podemos fazer? — perguntou tristemente a outra mulher. — Nós somos apenas as

empregadas.

— Então vá me fazer um chá — disse uma voz disposta vinda do corredor. A cozinha iluminada

pareceu car mais escura conforme o dr. Flammarion foi caminhando por ela; ele pegou um pãozinho

de canela sem pedir e sentou-se ruidosamente.

— Nós estávamos falando sobre a srta. Knight — uma das mulheres disse, timidamente.

— Muito preocupante — concordou o boticário, de boca cheia. — Mas pelo menos seus pais estão

repousando confortavelmente. Eles caram chocados quando souberam do desaparecimento. Dei a

eles uma injeção extra de remédio para que possam passar a tarde num estado confortável de delírio

despreocupado.

— Que remédio é esse, doutor? — perguntei.

O dr. Flammarion franziu a testa para mim.

— Você é um rapazinho curioso — ele disse.

— Me perdoe, dr. Flammarion — eodora disse. Ela tinha terminado de comer seu pãozinho de

canela e estava limpando os dedos na fotogra a da garota desaparecida. — Meu aprendiz esqueceu os

modos.

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— Está tudo bem — disse o dr. Flammarion. — A curiosidade costuma colocar garotinhos em

apuros, mas logo ele aprenderá isso por conta própria.

Ele me ofereceu um sorriso sórdido como presente ruim, e então disse rapidamente:

— O remédio que eu dei a eles se chama Bicabecabuca.

Eu não havia cursado medicina e nunca soube direito como se soletra a palavra “aspirina”, mas

mesmo assim sabia que Bicabecabuca não é remédio nenhum. Mas não importava. Mesmo que ele não

tivesse se revelado um mentiroso, eu sabia que tinha alguma coisa suspeita no dr. Flammarion; e,

mesmo que ele não me dissesse, eu sabia que o remédio que ele estava dando aos Knight era láudano.

Reconheci o cheiro de um incidente ocorrido semanas antes, quando algumas pessoas tentaram

colocar um pouco disso no meu chá. Esse incidente está descrito no meu relato sobre a primeira

pergunta errada, caso você venha a ter, por algum acaso, acesso a esse material ou interesse por ele.

— Deve ser difícil cuidar do sr. e da sra. Knight sozinho — eu disse, olhando em seus olhos. Ele

piscou por trás dos óculos e sua barba tentou fugir ainda mais de seu sorriso sórdido.

— Eu não estou exatamente sozinho, rapazinho — ele me disse. — Tenho uma enfermeira que é

boa com a faca.

Theodora ficou de pé.

— Quero fazer uma revista completa na cena do crime — ela disse.

— Que crime? — disse o dr. Flammarion.

— Que cena? — perguntei.

— Parece que um crime terrível foi cometido — disse eodora, com rmeza, sem pensar no

quanto isso aborreceria as duas mulheres que cuidavam da srta. Knight.

— Como boticário particular da família Knight, devo dizer que não estou certo de que um crime

tenha sido mesmo cometido. Provavelmente a srta. Knight simplesmente fugiu, como mocinhas

costumam fazer.

As duas empregadas, frustradas, entreolharam-se.

— Ela não teria fugido — disse uma delas —, não sem deixar um bilhete.

— Quem sabe o que uma mocinha rica pretende fazer? — disse o dr. Flammarion, dando

suavemente de ombros. — Em todo caso, eu disse a Zada que não valia a pena alertar a polícia.

— Zora — ela o corrigiu severamente.

— Perdão, Zora — disse o dr. Flammarion, fazendo uma pequena reverência que indicava que ele

não estava nem um pouco arrependido.

— Eu sou a Zada — ela o corrigiu novamente —, mas é verdade. O dr. Flammarion impediu que

Zora chamasse a polícia e sugeriu que chamássemos vocês em vez disso.

— O bom doutor fez uma boa escolha — disse eodora, num tom de voz que provavelmente

considerava con ante, e então se levantou e fez um gesto dramático. — Todavia, eu gostaria de

revistar o lugar em que a srta. Knight foi vista pela última vez. Me levem ao quarto dela!

Não havia discussão com S. eodora Markson quando ela começava a gesticular de forma

dramática, então segui minha tutora enquanto ela seguia Zada e Zora pela casa empacotada, com o

dr. Flammarion logo atrás de mim, seu hálito tão desagradável quanto todo o resto dele. Logo

chegamos a um quarto que reconheci da fotogra a, a qual eodora colocou sobre uma escrivaninha

novinha em folha para poder vasculhar as roupas no armário. Aquilo não fazia sentido. Não era o lugar

em que a srta. Knight tinha sido vista pela última vez. Era simplesmente o lugar em que Zada e Zora a

tinham visto pela última vez. A garota saiu dirigindo um automóvel extravagante. Era provável que

alguma outra pessoa a tivesse visto depois.

— As coisas deste quarto não foram encaixotadas — eu disse.

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— A srta. Knight queria fazer isso ela mesma — disse uma das mulheres —, mas ela não chegou a

guardar nada além de umas poucas peças de roupa.

Isso me levou a fazer uma pergunta que estava mais próxima da pergunta certa do que eu

imaginava.

— O que ela estava vestindo quando saiu?

Zada ou Zora apontou para a foto.

— Veja você mesmo — ela disse. — Nós tiramos essa foto ontem de manhã, a pedido dela. Foi uma

questão de sorte. Agora a foto está por toda a cidade.

Olhei novamente para a foto. Nada parecia familiar, mas o chapéu cor-de-rosa parecia fora do

lugar.

— Esse é um chapéu incomum — eu disse. — Você sabe onde ela o conseguiu?

— Snicket — eodora disse, rispidamente. — Um rapazinho não deveria se interessar por moda.

Nós temos um crime a resolver.

O dr. Flammarion sorriu novamente para mim, e eu olhei para a escrivaninha em vez de olhar para

minha tutora ou para aquele médico suspeito. No meio da escrivaninha bem-arrumada estava uma

folha de papel branco sem nada escrito. “Não, Snicket”, pensei. “Isso não está certo.” Aqui e ali havia

algumas reentrâncias, como se alguma coisa a tivesse arranhado. Eu me inclinei na direção da

escrivaninha e dei uma cheirada e, pela segunda vez desde que havia entrado na torre enorme em

forma de caneta, senti um aroma familiar, ou melhor, dois aromas familiares misturados. O primeiro

era o aroma do mar, um cheiro forte e salgado que ainda vinha das algas da Floresta Aglomerada

quando o vento soprava na direção de Manchado-pelo-mar. Precisei parar um momento para

identi car o segundo aroma. O cheiro era de alguma coisa que estava na ponta da minha língua até

que inspirei mais uma vez.

— Limonada — eu disse, mas, apesar de parecer, não estava dizendo meu próprio nome. Levei o

pedaço de papel até a mesinha de cabeceira, acendi a luminária e esperei por um minuto ou dois até

que a lâmpada esquentasse. Enquanto esperava dei uma olhada pelo quarto e me ocorreu que Zada e

Zora estavam erradas. A garota Knight tinha começado a encaixotar suas coisas. Ela costumava passar

a noite acordada em seu quarto fazendo experimentos cientí cos, mas não havia sequer uma peça de

equipamento científico à vista. Finalmente a lâmpada esquentou o suficiente.

Há três coisas que é preciso saber sobre tinta invisível. A primeira é que a maioria das receitas

contém suco de limão. A segunda é que a tinta invisível se torna visível quando o papel é exposto a

algo quente, como uma vela ou uma lâmpada acesa por alguns minutos. Segurei o papel bem próximo

à lâmpada e quei observando. Zada e Zora viram o que eu estava fazendo e vieram na minha direção

para dar uma olhada. O dr. Flammarion também se aproximou. Só eodora não cou olhando para o

papel enquanto ele esquentava e, em vez disso, tirou uma blusa do armário e a segurou contra o seu

corpo para se olhar no espelho.

Não importa quantos mistérios lentos e complexos eu encontre na minha vida, ainda espero que

um dia um mistério lento e complexo seja resolvido de forma rápida e simples. Um colega meu chama

essa sensação de “o triunfo da esperança sobre a experiência”, que signi ca simplesmente que jamais

vai acontecer, e foi isso que aconteceu naquela vez. A terceira coisa que é preciso saber sobre tinta

invisível é que raramente funciona. Após vários minutos de exposição do papel ao calor, olhei para ele

e li o que dizia:

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Em outras palavras, nada. Mas o curioso era que esse nada signi cava uma pista que eu nalmente

poderia usar.

Page 18: Lemony SNICKET - Quando Voc a Viu Pela Ltima Vez e

3

— Este é um dia afortunado — Theodora me disse. Com uma das mãos coberta pela luva, ela

dirigia o esportivo verde de volta ao Braços Perdidos e, com a outra luva, ela me estapeava com força

no joelho. Ninguém gosta de ser estapeado no joelho. Praticamente ninguém gosta de ser estapeado

em qualquer lugar. Ela continuou fazendo isso. — “Afortunado” é uma palavra que, neste contexto,

signi ca fortuito, e é particularmente fortuito para você. É auspicioso. É oportuno. É o destino. É a

maior sorte que há. Sorte sua, Snicket! Com esse novo caso, revelarei minha rotina e meus métodos

para investigar paradeiros.

Do lado de fora parecia que talvez fosse chover de novo. Do lado de dentro eu levava a fotogra a

da garota no meu colo. A jovem e promissora química parecia ainda mais descontente, talvez porque

Theodora tivesse deixado marcas de dedo açucaradas por toda a foto.

— O que devemos fazer primeiro? — perguntei.

— Não fale, Snicket — disse eodora. — Os tolos falam e os sábios escutam; então escute, e eu

vou lhe dizer como nós resolveremos este caso de maneira inteligente e adequada. Nós vamos fazer

seis coisas, e para cada coisa eu vou levantar um dedo da minha mão, de modo que no nal eu estarei

com seis dedos levantados e você não estará confuso.

Eu parei de ouvir, é claro. Os métodos inteligentes e adequados de eodora para resolver nosso

caso anterior nos tinham feito car desnecessariamente pendurados em uma boça, que é um cabo

suspenso no ar, e não uma coisa inteligente ou adequada a se fazer. Assenti solenemente com a cabeça

ao primeiro item, e quando ela levantou o segundo dedo dentro da luva olhei pela janela e pensei. Eu

estava surpreso que grande parte do mistério já tivesse sido resolvida. O dr. Flammarion estava dando

a Ignatius e Doretta Knight doses pesadas de láudano com sua agulha hipodérmica, o que os deixava

balbuciando e semiconscientes. Não era difícil imaginar os motivos que levariam um boticário a

querer controlar a família mais rica do vilarejo, mesmo que eles não fossem mais tão ricos quanto

tinham sido um dia e a cidade estivesse desaparecendo. Mas o dr. Flammarion teria mais di culdade

com uma jovem e promissora química, que saberia tudo sobre láudano e seus efeitos soníferos e

perigosos. E então ela havia sumido.

A parte da história que me confundia era o bilhete. Zada e Zora tinham insistido que a srta. Knight

teria deixado um bilhete se ela tivesse fugido, e o dr. Flammarion tinha dito que não havia bilhete

algum. Mas eu havia encontrado uma espécie de semibilhete — uma mensagem escrita com tinta

invisível que não havia funcionado. A srta. Knight era química. Ela saberia que tinta invisível

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raramente funciona. Ela também parecia gostar de roupas novinhas em folha, mas na foto estava

usando um chapéu velho. Há uma conexão, meu cérebro me disse, entre o chapéu e o

desaparecimento, mas eu disse ao meu cérebro que, se havia uma conexão, ele teria de pensar nela

sozinho, uma vez que meus olhos haviam enxergado uma pista maior lá fora, na rua.

— Pare o carro — eu disse.

— Não seja bobo — Theodora disse. — Eu ainda nem cheguei ao número quatro.

— Pare o carro, por favor.

Ela parou o carro, talvez porque eu tivesse dito “por favor”. Eu pisei na calçada de uma rua

silenciosa, embora praticamente todas as ruas em Manchado-pelo-mar fossem silenciosas. Elas eram

tão silenciosas que, se você dirigisse por elas regularmente, perceberia qualquer novidade, como os

cartazes da srta. Knight com a palavra DESAPARECIDA. Você também perceberia um automóvel enorme,

principalmente se fosse um dos automóveis mais extravagantes já produzidos.

Eu estava diante de um Dilema. Existem pessoas que se interessam por automóveis e existem

pessoas que não dão a mínima. Mas todas elas cam impressionadas com o Dilema. O Dilema era

uma coisa tão formidável de olhar que eu o observei por uns bons dez segundos antes de lembrar a

mim mesmo que eu deveria pensar nele mais como uma pista para solucionar um mistério do que

como uma maravilha da engenharia moderna. Era um dos modelos mais novos, com uma pequena

buzina antiga empoleirada em cada uma das janelas da frente; uma manivela lustrosa na lateral, para

que você pudesse abrir o teto caso algum dia fizesse um clima agradável em Manchado-pelo-mar; e era

da cor de alguém comprando uma casquinha de sorvete para você sem nenhum motivo.

Theodora havia saído do esportivo e encarado o Dilema por tanto tempo quanto eu.

— Você deveria se envergonhar, Snicket — ela disse, quando se lembrou de agir como tutora. —

Você deveria estar procurando pela srta. Knight, e não se distraindo com automóveis, não importa o

quanto eles sejam bonitos, nem o quanto sejam interessantes de se ver, e não importa por quanto

tempo você queira car aqui olhando para ele porque é muito bonito e interessante de se ver, de

modo que você acaba olhando para ele por algum tempo porque é tão bonito e interessante…

— Esse carro provavelmente pertence à srta. Knight — eu disse antes que ela pudesse continuar. —

Poucas pessoas podem comprar um Dilema novo.

— Então ela deve estar por perto — eodora disse, virando-se rapidamente para trás para olhar

em todas as direções na rua vazia.

— Eu li uma vez — eu disse — sobre uma pessoa que estacionou o carro e depois foi a outro lugar.

— Não seja impertinente — Theodora franziu a testa. — Para onde ela teria ido?

Dei uma olhada ao redor. “Impertinente” é uma palavra que na verdade signi ca “inadequado às

circunstâncias”, mas a maioria das pessoas a usa no sentido de “estou usando uma palavra complicada

na esperança de que ela o faça parar de falar”, de modo que apenas apontei na direção do único

mercadinho da cidade.

O Comidas Incompletas deve ter sido, algum dia, um grande supermercado. Ele não era um grande

supermercado durante a minha estada em Manchado-pelo-mar. Parecia um grande supermercado que

alguém havia empurrado escada abaixo. Para entrar na loja você tinha de atravessar um par de portas

de vidro enormes com puxadores de cobre entalhados com a imagem de frutas e vegetais frescos, mas

elas estavam com muitas rachaduras e eram difíceis de abrir. Havia prateleiras largas e gôndolas

profundas prontas para abrigar montanhas enormes de comida deliciosa, mas pelo menos metade

delas estava vazia, e o resto continha comida que estava ou muito verde ou muito passada, ou muito

mole ou muito dura, machucada ou enrolada em muitas camadas de plástico, ou era alguma coisa de

que eu não gostava. O lugar era quase enorme e quase deserto, de modo que levei algum tempo

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perambulando pelos grandes e escassos corredores até encontrar alguém com quem pudéssemos

conversar. A dona do Comidas Incompletas era uma mulher capaz de aparentar estar muito zangada e

muito entediada ao mesmo tempo e, na verdade, era isso que ela estava fazendo quando a

encontramos. Vestida com um macacão manchado, ela tinha um crachá descascado que dizia POLLY

INCOMPLETA.

— Bom dia — Theodora disse a ela.

— Quem são vocês? — Polly Incompleta perguntou. Ela estava parada ao lado de um cesto de

melões verdes. Eu não gosto de melões verdes. Não vejo sentido neles.

— Meu nome é S. Theodora Markson, e este é o meu aprendiz — Theodora disse, e tomou o cartaz

da minha mão. — Estamos procurando esta pessoa.

Polly Incompleta deu uma olhada na garota carrancuda.

— É a Cleo Knight — ela disse, apontando para as palavras escritas acima da fotografia.

— Sim, nós sabemos — Theodora disse. — Queria saber se você a viu recentemente.

— Difícil dizer — Polly Incompleta disse. — Ela parece uma fugitiva como qualquer outra, mesmo

sendo de uma família rica. Haverá recompensa? Se eu tivesse dinheiro su ciente, poderia me

aposentar e me dedicar à criação de chinchilas.

Os Knight não tinham falado nada sobre uma recompensa, mas eodora não disse nada sobre ela

não existir.

— Só se você nos ajudar — ela disse. — Você viu essa garota?

A dona da loja apertou os olhos observando o cartaz.

— Ontem de manhã — ela disse —, por volta de dez e meia. Ela entrou correndo aqui para

comprar aquele cereal matinal bobo que ela gosta.

Ela nos levou por um corredor e puxou uma caixa para nos mostrar. Era o cereal Schoenberg, a

marca que Zada e Zora haviam mencionado. DOZE GRÃOS INTEGRAIS COMBINADOS NUMA SEQUÊNCIA

RIGOROSA, dizia o rótulo. Eu não conseguia imaginar quem comeria uma coisa dessas numa cozinha

onde era possível comer pãezinhos de canela recém-saídos do forno.

— Os Knight são os únicos que compram — Polly Incompleta disse —, embora geralmente seja

uma daquelas empregadas gêmeas que faz as compras.

— Ela disse alguma coisa? — Theodora perguntou.

— Ela disse “obrigada” — Polly disse —, e depois disse que estava fugindo para se juntar ao circo.

Minha tutora coçou a cabeça.

— O circo?

— Foi o que ela falou — disse Polly Incompleta.

— A-há! — gritou Theodora.

— Então ela saiu, pegou um táxi e foi embora.

— A-há!

Eu não tinha visto nada digno de fazer a-há!, mas eu nunca tinha sido muito de fazer a-há! mesmo.

— O que ela estava vestindo? — perguntei.

Theodora deu um suspiro exasperado.

— O que foi que eu disse a você a respeito desse seu interesse por moda? — ela disse. — Um

rapazinho que faz muitas perguntas sobre roupas vai acabar sendo alvo de rumores desfavoráveis.

— Você mesmo pode ver o que ela estava vestindo — disse Polly Incompleta, me devolvendo o

cartaz. — A família Knight está sempre vestida de preto e branco, em homenagem ao negócio da

família e ao papel em que a tinta é usada. Eu lembro que o chapéu me surpreendeu. Não era preto

nem branco. Parecia francês.

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— Você nos ajudou muito, sra. Incompleta — disse eodora. — Estou certa de que os Knight lhe

agradecerão.

— Claro que tudo parece francês quando você para pra pensar.

— Você é uma testemunha muito con ável — não pude evitar dizer, e Polly Incompleta olhou pra

mim como se nunca tivesse me visto.

— Saiam daqui — ela disse. — Tenho latas de sardinha para empilhar.

Saímos da loja e camos parados na rua. Lá em cima as nuvens discutiam com o vento se deveria

ou não chover novamente.

— Bem, eu diria que o caso está resolvido — eodora disse, e o seu cabelo balançou

concordando. — O dr. Flammarion tinha razão. Não há crime. A garota Knight fugiu de casa. Ela

dirigiu até a cidade, comprou os suprimentos de que precisava e pegou um táxi para se juntar ao

circo. Você tem alguma pergunta?

Eu tinha tantas perguntas que por um minuto elas brigaram entre si na minha cabeça para saber

qual seria perguntada primeiro. “Por que ela não precisaria de mais nada além de cereal?” foi a

vencedora. “Por que ela não deixou um bilhete?” cou em segundo lugar, seguida de “Por que ela não

teria fugido em seu próprio carro?”.

Theodora agitou a mão coberta pela luva na minha direção, como se eu fosse um cheiro ruim.

— Não seja bobo — ela disse. — Não há sinal de crime. Eu mesma vou escrever o relatório para

ficar com todo o crédito por ter resolvido o caso.

— Nós deveríamos investigar mais — eu disse.

— Isso foi o que você disse da última vez — eodora me lembrou, colocando seu capacete e

abrindo a porta do esportivo —, e a única coisa que você investigou foi aquela garota boba. Garotas e

moda, Snicket. Você se distrai muito fácil.

Eu me senti corando. Não é um sentimento do qual eu goste. Minhas orelhas cam quentes, e o

meu rosto fica vermelho, e não ajuda a ganhar uma discussão.

— Vou caminhar de volta até o Braços Perdidos, se você não se incomoda — eu disse. — São só

algumas quadras.

— Fique à vontade — disse eodora —, você seria uma quinta roda se casse no nosso QG

enquanto escrevo o relatório. Na verdade, Snicket, por que você não dá uma sumida até a hora do

jantar?

Ela fechou a porta do esportivo e foi embora. Esperei até o som do motor desaparecer e então passei

mais um minuto olhando para o Dilema. Até estendi o braço e pus a mão sobre uma das buzinas.

“Quinta roda” é uma expressão que signi ca que alguém não ajuda em nada, do mesmo jeito que

uma quinta roda num automóvel não faz ele andar mais rápido. Não fazia sentido a srta. Knight ter

dirigido até o Comidas Incompletas e depois ter pegado um táxi para outro lugar qualquer. Ela jamais

precisaria de um táxi tendo um automóvel daqueles. Mas ela precisou. Mas ela não precisaria. Mas ela

precisou. Pare de discutir consigo mesmo, Snicket. Você não tem como ganhar. Olhei para o chão e

desejei ter olhado para ele mais cedo. Um dos pneus do Dilema estava murcho, então em vez de ter

um aspecto redondo ele parecia uma batata velha. Não era possível dirigir por muito tempo desse

jeito. Um Dilema com um pneu murcho era um lembrete de que não importa o quanto o mundo seja

esplêndido e maravilhoso, ele pode ser arruinado por algo que você nem percebe até que o estrago já

tenha sido feito.

Eu me inclinei para ver mais de perto e quando percebi estava olhando para uma agulha. Era o tipo

de agulha que os médicos gostam de espetar em você, e estava espetada num pneu murcho.

— Olá — eu disse à agulha.

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Nem a agulha nem ninguém disse nada. Tirei a agulha do pneu. Não tinha cheiro de nada, mas

não era necessário injetar láudano num pneu. Furá-lo seria o su ciente. Tomando cuidado para não

ser picado, coloquei a agulha no bolso e quei de pé para olhar para os lados. Não havia ninguém por

perto. Como a maioria dos quarteirões da cidade, aquele não tinha nada além de lojas e casas lacradas

com tábuas e cartazes de Cleo Knight me encarando. Mas também havia um lugar que eu queria

visitar desde a minha chegada ao vilarejo. “Por que não agora?”, pensei.

O Faminto’s era um lugar pequeno e apertado, e uma mulher grande e espaçosa estava parada em

pé lá dentro, polindo o balcão com um trapo.

— Boa tarde — ela disse.

Eu disse a mesma coisa.

— Faminta — ela disse.

— Bem, então você está no lugar certo.

Ela franziu o cenho e me entregou um cardápio.

— Não, eu quis dizer que sou a Faminta. É o meu nome: Faminta Hix. Sou a dona deste lugar.

Você está faminto?

— Não — eu disse. — Estou com fome. Faminta é você.

— Não dê uma de espertinho — Faminta disse.

— É que me faz bem — eu disse.

— Sente onde quiser — ela disse. — Um garçom logo virá atender você.

Havia algumas mesas ao longo de uma parede, mas eu sempre gosto de sentar no balcão. Havia um

garoto alguns anos mais velho do que eu, encostado numa pia cheia de pratos sujos, com um livro na

mão e cabelos vermelhos revoltos sobre os olhos. Eu nunca tinha ouvido falar daquele livro, mas

gostava do autor.

— Que tal esse livro?

— Bom — ele disse, sem olhar para cima. — Um cara chamado Johnny pega o trem errado e acaba

na Constantinopla de 1453. Os livros desse cara sempre são bons.

— Isso é verdade — eu disse —, mas tem um monte de livros que ele não escreveu de verdade. E

colocaram o nome dele mesmo assim. Você tem que prestar muita atenção para se assegurar de que

este não é o caso.

— É mesmo? — ele disse, e deixou o livro de lado e me serviu um copo d’água e apertou a minha

mão. — Sou Jake Hix — ele disse. — Nunca tinha visto você aqui antes.

— Sou Lemony Snicket, e nunca tinha estado aqui — eu disse. — Você é filho da Faminta?

— A Faminta é minha tia — Jake disse. — Eu trabalho para ela em troca de casa e comida.

— Sei como é — eu disse. — Também sou um aprendiz.

— Aprendiz de quê?

— É uma longa história — eu disse.

— Eu tenho tempo.

— Não, você não tem — Faminta resmungou, espremendo-se para passar por Jake e o golpeando

com uma toalha. — Anote o pedido dele e vá lavar a louça.

— Não ligue para ela — Jake disse, quando a tia se afastou. — Ela está mal-humorada porque os

negócios vão mal. Pouca gente ainda vem aqui. O vilarejo está escorrendo pelo ralo, como se alguém

tivesse aberto um tampão. Você é o primeiro cliente que recebemos hoje.

— Não tenho dinheiro — eu disse.

Jake deu de ombros.

— Se você estiver com fome, preparo alguma coisa pra você — ele disse. — É melhor do que lavar a

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louça. Você gosta de sopa?

Nunca diga que você está com fome até que saiba o que será preparado.

— Eu gosto quando é boa — eu disse.

— Saindo uma sopa boa — Jake disse, sorrindo. — Com bolinhos.

Jake se ocupou do fogão e eu pus o cartaz sobre o balcão.

— Você viu esta pessoa? — perguntei.

Jake olhou rapidamente para a fotografia e depois desviou o olhar.

— Claro — ele disse. — É a garota Knight. Esses cartazes estão espalhados por toda a cidade.

— Estou procurando por ela — eu disse.

— Todo mundo está, ao que parece.

— Você disse que pouca gente vem aqui — eu disse a ele. — Ela era uma dessas pessoas?

Jake me deu as costas e picou algo muito rápido e com muita força antes de jogar dentro de uma

panela para refogar.

— Não gosto de falar sobre os meus clientes — ele disse.

— Se ela está em apuros — eu disse —, posso ajudar.

Jake, então, virou-se para mim e me olhou como se eu fosse mesmo uma quinta roda. Não parecia

que ele tinha feito de propósito, mas mesmo assim não gostei.

— Você? — ele perguntou. — Um estranho que acabou de aparecer no restaurante?

— Não sou um estranho — eu disse, apontando para o livro. — Leio os mesmos autores que você.

Jake pensou naquilo por um minuto, e a comida começou a cheirar bem.

— A srta. Knight esteve aqui ontem de manhã — ele disse —, por volta das dez e meia.

— Dez e meia? — perguntei. — Você tem certeza disso?

— É claro que tenho certeza — ele disse.

— Ela tomou café da manhã?

— Chá — ele disse. — Ajuda ela a pensar.

— Ela disse alguma coisa?

Jake me olhou com curiosidade.

— Ela disse “obrigada”.

— Mais alguma coisa?

— Não sei o que você ouviu por aí, Snicket, mas a srta. Knight não é minha amiga. Ela é apenas

uma cliente.

— O que ela estava vestindo?

— O mesmo que nessa foto.

— Deixe-me adivinhar — eu disse. — Depois ela entrou em um táxi.

— Um táxi? — Jake repetiu, gargalhando. — Você é mesmo um estranho. Cleo num táxi! A srta.

Knight ganhou um Dilema novinho em folha que é bem melhor do que qualquer táxi.

— Não precisa nos insultar, Jake — disse uma voz vinda da porta.

Dois garotos entraram no Faminto’s, e eram dois garotos que eu conhecia. Eram Bouvard

Belerofonte e Pecuchet Belerofonte, o que explica por que todos os chamavam de Juca e Chico. Eles

trabalhavam como motoristas de táxi quando o pai cava doente, e aparentemente ele estava doente

naquele dia. Eu disse olá e eles disseram olá e Jake disse olá e nós percebemos que todos se conheciam.

— Estou fazendo uma sopa para o Snicket — Jake disse. — Vocês dois querem um pouco?

— Com certeza — Juca disse. — Os negócios estão devagar hoje.

— Então vocês podem me dar uma carona depois do almoço? — perguntei a eles.

— Claro — disse Chico, com a voz chiada. — Estamos estacionados bem aqui na frente. Vai visitar

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sua amiga de novo, na Colina dos Lenços?

— Ela não mora mais lá — eu disse, sem querer dizer o nome de Ellington —, e não sei se posso

chamá-la exatamente de amiga.

— Que pena — Juca disse. — Ela me pareceu bem legal.

— Prefiro não falar sobre isso — eu disse. — Como está o pai de vocês?

— Preferimos não falar sobre isso — Chico disse.

— Bom, então sobre o que devemos falar?

— Livros — Jake disse, e serviu a sopa. Depois da primeira colherada, eu já sabia onde comeria

pelo resto da minha estada. Os bolinhos tinham o sabor do paraíso, e o caldo se espalhou pelas minhas

veias como um segredo divertido guardar. Eu queria contar o segredo à minha irmã, que teria

gostado da sopa, mas ela estava na cidade, fazendo as coisas erradas enquanto eu fazia as perguntas

erradas, de modo que não era possível compartilhar com ela. Juca e Chico provavelmente gostariam

de compartilhar a sopa com o pai, e eu tinha uma ideia sobre a pessoa com quem Jake gostaria de

compartilhar a dele. Mas não falamos sobre isso. Nós falamos sobre o autor do livro que ele estava

lendo. Foi bom. Terminei minha sopa, limpei a boca e perguntei se havia alguma outra coisa de que

ele pudesse se lembrar sobre a srta. Cleo Knight. Ele disse que não havia. Ele não estava dizendo a

verdade, mas eu não podia car chateado com isso. Eu também não estava contando a ninguém o que

estava fazendo. Eu me levantei e Juca e Chico se levantaram e nós saímos do Faminto’s e fomos até o

táxi. Chico entrou e se agachou perto dos pedais do freio e do acelerador, e Juca empilhou alguns

livros para que pudesse sentar neles e alcançar a direção. Entrei no banco de trás, me movendo com

cuidado para não ser picado pela agulha no meu bolso.

— Pra onde nós vamos, Snicket? — Juca me perguntou.

— Rumo ao farol — eu disse, o que me lembrou de um livro que eu estava querendo ler. — Preciso

cortar o cabelo.

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4

O farol que ficava nos limites de Manchado-pelo-mar provavelmente era visto pela maioria das

pessoas como uma quinta roda. Ele havia sido erguido na beira do penhasco para observar as águas

revoltosas do mar, mas desde que o mar fora drenado havia sob a vigilância do farol apenas uns

poucos poços de tinta remanescentes, e a enorme e assustadora extensão da Floresta Aglomerada.

Nenhum navio poderia navegar ali, de modo que não havia necessidade de serem guiados por um

facho de luz. Além disso, um dia o farol havia servido de sede para o único jornal de Manchado-pelo-

mar, O Farol Manchado, mas já não havia tinta su ciente para imprimir as notícias, e quase ninguém

para lê-las.

Mas o farol não era uma quinta roda, já que uma das pessoas que viviam ali era uma ótima

jornalista, muito embora O Farol Manchado tivesse fechado. Seu nome era Moxie Mallahan, e ela era

minha amiga, apesar de não parecer muito amigável quando abriu a porta.

— Quais são as novas, Moxie? — eu disse.

Ela franziu a testa debaixo do seu chapéu de sempre, que, pelo menos naquele momento, pareceu

estar se franzindo também.

— Lemony Snicket — ela disse.

Raramente é bom ouvir alguém dizendo o seu nome completo, exceto talvez quando é no nal da

frase “Eu tenho uma entrega para”.

— Eu sei que faz tempo que não apareço, Moxie — eu disse.

— Eu estava entediada — disse Moxie. — Você sabe que não sobrou muita gente da nossa idade

neste vilarejo.

— Não que magoada — eu disse. — Arranjei uma coisa pra nós que tenho certeza que vai achar

interessante.

— Se tem alguma coisa a ver com aquela garota que pegou a estatueta — Moxie disse —, não estou

nem um pouco interessada.

Moxie havia me ajudado no meu caso anterior e tinha visto Ellington Feint desaparecer com a Fera

Ressonante.

— Não tem nada a ver com ela — eu disse, sem dizer o nome dela e sem saber que eu estava errado.

Moxie não parou de franzir a testa, mas parecia estar pensando em parar.

— E então?

— Estou procurando a garota Knight.

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— Você e todo mundo no vilarejo — disse Moxie. — Eu vi aquele cartaz por toda parte.

— Theodora e eu estamos no caso — eu disse —, mas preciso da sua ajuda.

Ela olhou para mim e cou pensando. Atrás dela eu podia ver a máquina de escrever, que se

dobrava formando sua própria caixa. Moxie sempre deixava sua máquina à mão para o caso de ter de

tomar notas sobre o que estava acontecendo. Eu sabia que sua curiosidade sobre as coisas que

aconteciam no vilarejo faria com que ela me deixasse entrar, e eu estava certo. Antes que pusesse os

pés lá dentro, liguei para os irmãos Belerofonte e perguntei se eles se importariam de esperar por mim.

Eles não se importariam desde que eu desse a eles outra dica em troca de outra carona. Eu disse “é

claro”. A dica que dei a eles pela carona até o farol tinha sido sobre os livros de um autor que não

foram escritos de verdade por aquele autor. Era uma dica antiga, já que eu já a havia dado a Jake Hix.

Mas era a única que eu tinha à mão.

Acompanhei Moxie até a cozinha. Havia uma cafeteira borbulhando, então eu soube que seu pai

estava ali por perto, mas Moxie não o mencionou, apenas me fez sentar à mesa e colocou sua máquina

de escrever entre nós.

— O que está rolando? — ela perguntou. — Onde está Cleo Knight? Quando foi que ela

desapareceu? Com quem você falou? Que tal um chá?

— Não, obrigado — eu disse, respondendo apenas à última pergunta. — Mas eu esperava que você

pudesse cortar o meu cabelo. Não vi nenhum cabeleireiro no vilarejo.

— O último fechou — ela disse —, mas eu não vou cortar seu cabelo, Snicket, até que você me

diga o que está acontecendo.

— Vou contar a você — eu disse —, enquanto você corta o meu cabelo. Um corte de cabelo pode

ajudar a resolver esse caso. Você poderia pegar uma tigela?

Ela me lançou um olhar descon ado. Ser descon ado é uma coisa boa para um jornalista, porque

isso quer dizer que você não con a totalmente em ninguém. Eu tentei devolver a ela um olhar de é-

bom-ser-descon ada-mas-por-favor-não-seja-descon ada-agora. Não sei se meu olhar foi entendido,

mas ela buscou um par de tesouras e uma tigela pequena, que encaixou na minha cabeça. Tenho

muita esperança de que essa parte da história, caso ela seja publicada algum dia, não seja ilustrada, já

que qualquer um ca parecendo um idiota com uma tigela na cabeça. Moxie estalou as lâminas da

tesoura e começou a cortar, e eu comecei a minha história.

— Cleo Knight levantou ontem de manhã e tomou seu café da manhã costumeiro de cereal

Schoenberg — eu disse. — Ela estava usando roupas novinhas em folha nas cores preta e branca, e um

chapéu velho meio rosa. Ela fugiu para se juntar ao circo e não deixou um bilhete, mas isso não

poderia ter acontecido pois ela é uma química brilhante, não uma artista de circo, e as pessoas que a

conhecem bem dizem que ela de nitivamente deixaria um bilhete. Ela foi vista no Comidas

Incompletas, por Polly Incompleta, às dez e meia, comprando cereal Schoenberg, e indo embora num

táxi, mas isso não poderia ter acontecido, pois ela dirigiu até lá com seu Dilema novinho em folha.

— É um bom carro — disse Moxie.

— Preste atenção — eu disse. — Só que Cleo Knight também foi vista no Faminto’s por Jake Hix,

também às dez e meia, e ela foi embora no Dilema. Mas isso não pode ter acontecido, porque o

Dilema está estacionado ali perto com um pneu furado.

— São muitas coisas que não poderiam ter acontecido — disse Moxie.

— Ou Polly Incompleta está errada — eu disse —, ou Jake Hix está errado.

— Ou os dois estão errados.

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— Isso é verdade. Você conhece algum deles?

— Conheço os dois — disse Moxie —, mas não muito bem. Mas é dos Knight que estamos falando.

Eles devem estar morrendo de preocupação.

— As empregadas estão morrendo de preocupação — eu disse. — O sr. e a sra. Knight estão num

estado de delírio despreocupado.

— Eu não sei o que isso quer dizer — disse Moxie, movendo-se em direção à parte de trás da

minha cabeça.

— Isso quer dizer que o boticário está dando a eles injeções regulares de láudano — eu disse. — É

uma droga que te deixa sonolento e estranho. O que você sabe sobre a família Knight?

Moxie caminhou até car na minha frente e franziu a testa. Eu não sabia dizer se ela estava

franzindo a testa por estar pensando sobre os Knight ou por causa do corte de cabelo que ela havia

feito.

— Bem, Ingrid Nummet Knight, a avó de Cleo, foi o gênio que fundou a Tinta S.A. junto com seu

parceiro comercial, o coronel Colofão, o maior herói de guerra do nosso vilarejo. Ingrid morreu há

algum tempo, deixando a empresa para o lho, Ignatius Nettle Knight. O pai de Cleo não é nem um

pouco genial, nem cientista. Ele é um magnata, que é um tipo de homem de negócios, e os negócios

não andam bem.

— Você pode dizer isso mais uma vez.

— Os negócios não andam bem.

— Corta essa, Moxie. O que aconteceu com o parceiro comercial?

— O coronel Colofão sofreu ferimentos terríveis.

— A guerra é terrível — eu disse.

— Sim, é mesmo — disse Moxie —, mas o coronel Colofão não se machucou na guerra. Ele se

machucou durante a inauguração da estátua em sua homenagem. Era uma estátua enorme, bem na

frente da biblioteca, que o mostrava desemaranhando a pipa de uma criança de uma árvore enquanto

uma batalha era travada ao seu redor. Mas houve uma explosão na cerimônia e o coronel sofreu

queimaduras terríveis. Uma clínica especial foi construída na periferia do vilarejo para ajudá-lo a

curar seus ferimentos. O coronel foi enrolado em tantas ataduras que cou parecendo uma múmia.

Ele vive na clínica desde então. Eu sou jovem demais para lembrar, mas tenho certeza de que saiu

uma foto disso no jornal. Posso procurá-la, se você quiser.

— Não, obrigado — eu disse. — Eu sei como uma múmia se parece. Mas vamos voltar à família

Knight, por favor. Como foi que o pai de Cleo arruinou os negócios?

— Foi ideia dele drenar o mar para que a Tinta S.A. pudesse explorar o último dos poços de polvos

tintureiros, o que acabou se revelando um plano muito caro.

— Caro ou não, se ele não tivesse feito isso, não haveria mais tinta neste vilarejo.

— Isso vai acontecer de qualquer jeito — disse Moxie tristemente, abaixando a tesoura. —

Naqueles poços estão os últimos polvos. Um dia aquelas agulhas enormes descobrirão que cutucaram

o último dos polvos, e então não terá restado nada. Não gosto de pensar nisso.

— Também não gosto de agulhas — eu disse, e tirei uma do meu bolso.

— O que é isso? — Moxie perguntou.

— Um tipo diferente de agulha — eu disse. — O tipo que um médico usaria.

— Você não devia carregar uma agulha hipodérmica por aí no bolso, Snicket.

— Isso é verdade — eu disse. — Ela poderia me furar. Essa agulha é grande o bastante para furar

um pneu.

— Como o pneu de um Dilema — disse Moxie. — Foi assim que você a encontrou?

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— Você é muito boa jornalista, Moxie.

— Sim — disse Moxie —, mas não sou muito boa cabeleireira.

Ela tirou a tigela da minha cabeça e ergueu uma frigideira, lustrosa o su ciente para que eu

pudesse ver o meu re exo. Não era nada que eu quisesse ver numa ilustração, mas também não era

assim tão medonho.

— Você está parecendo o Stew Mitchum — ela disse.

— Obrigado.

— Como este corte de cabelo vai te ajudar a deter aquele médico?

— Deter o dr. Flammarion?

— Você não suspeita dele?

— Bem, ele é suspeito — eu disse —, mas por que sequestraria Cleo?

— Para pedir o dinheiro do resgate para os Knight.

— Eles estão num estado de delírio despreocupado tão profundo que ele poderia roubar o que

quisesse sem ter que se dar o trabalho de sequestrar. Além do mais, a maior parte do dinheiro que

ganharam com a tinta se foi.

Moxie suspirou e me olhou com atenção.

— Isso é trabalho do Tiro Furado?

— Bem — eu disse —, estamos lidando com uma maldade. Mas que tipo de maldade exatamente é

o que eu vou descobrir.

— Você e Theodora? — ela me perguntou.

— Theodora acredita na história do circo.

— No que você acredita?

— Eu acredito que preciso voltar para o vilarejo — eu disse.

— Eu acredito que preciso ir com você.

— Moxie…

— Não discuta comigo, Snicket. Quero descobrir o que está acontecendo. Agora varra o seu cabelo

enquanto eu tomo algumas notas.

Encontrei uma vassoura e Moxie voltou-se para a máquina de escrever. Eu varria e ela datilografava

furiosamente. Algumas pessoas são tão sentimentais que guardam mechas de cabelo das pessoas que

amam, mas ninguém ia querer o que eu estava varrendo. Lembrei do pai desaparecido de Ellington

Feint e quei pensando se ele teria deixado alguma coisa para trás que ela guardava por razões

sentimentais. Moxie datilografou ainda mais rápido, como se soubesse o que eu estava pensando e

aquilo a incomodasse. Joguei meu cabelo no lixo, e ela fechou a máquina.

— Vamos — disse Moxie.

— Você não tem que avisar seu pai que vai sair?

— Estou saindo! — ela gritou para o pai, e saímos do farol e entramos no táxi que estava à espera.

— De volta ao vilarejo, Snicket? — perguntou Juca, enquanto seu irmão se agachava em direção

aos pedais.

— Comidas Incompletas, por favor — eu disse —, e se você gosta de histórias sobre

acontecimentos estranhos, permita-me recomendar um livro sobre uma garota chamada Amanda, que

é ou uma bruxa ou uma meia-irmã, ou ambas.

Juca deu a partida no motor e me passou um pedaço de papel.

— Parece bom — ele disse. — Você anotaria o título para mim?

— Ele anotará se você responder a uma pergunta — intrometeu-se Moxie. — Juca, você e seu

irmão levaram Cleo Knight a algum lugar na manhã de ontem por volta de, digamos, dez e meia?

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É difícil chutar sua própria bunda no banco de trás de um automóvel, então eu simplesmente me

imaginei fazendo isso por ter me esquecido de fazer essa pergunta eu mesmo.

— Cleo Knight nunca entrou em nosso táxi — disse Chico, do assoalho —, e eu não posso culpá-la,

com um Dilema daqueles.

— Então Polly Incompleta estava mentindo — Moxie murmurou para mim —, e Jake Hix estava

falando a verdade.

Fiquei pensando na gura de Polly Incompleta, e a comparei com a de Jake Hix. A dona do

mercado era uma pessoa desagradável, mas não parecia ser mentirosa. Jake Hix, por sua vez, parecia

um camarada decente que lia bons livros e fazia uma boa sopa. Mas mesmo que eu não soubesse qual

era a verdade, eu sabia que ele não a havia me contado quando perguntei sobre Cleo Knight.

— É bom saber quem são os mocinhos e quem são os vilões — continuou Moxie, mas eu sacudi a

cabeça. Geralmente se diz que as pessoas agem de determinada maneira porque são boas ou más, mas

de acordo com a minha experiência, isso não era bem assim. Ellington Feint, por exemplo, tinha

mentido para mim e me roubado, mas não porque fosse uma pessoa má. Ela era uma boa pessoa,

obrigada a fazer coisas más para libertar seu pai das garras do Tiro Furado. Minha irmã, para dar um

outro exemplo, certamente era uma boa pessoa, mas estava prestes a cometer um crime envolvendo

um dos objetos do museu. Até onde eu sabia, as pessoas não agiam de determinada maneira por serem

boas ou más. Elas agiam de determinada maneira porque não conseguiam pensar numa alternativa, e

a única coisa que eu conseguia pensar era em descobrir o que estava acontecendo naquele vilarejo.

— Chegamos — Juca disse, dando um tapinha no irmão para que ele acionasse os freios. —

Comidas Incompletas. Quer que eu o espere novamente, Snicket?

— Não, obrigado — eu disse, e dei a ele o pedaço de papel. — Você consegue ler essas palavras?

Está escrito “sem cabeça”.

Juca assentiu com a cabeça, mas ele estava olhando para alguma coisa muito além do para-brisa.

Moxie e eu saímos do carro, e os irmãos Belerofonte seguiram dirigindo pela rua vazia.

— Fique por perto — eu disse à jornalista —, mas é melhor você não ser vista comigo agora.

Moxie abriu sua máquina de escrever.

— Por que não?

— Porque estou prestes a ser preso — eu disse, e entrei a passos largos no supermercado. Parecia

surrado como sempre, com alguns clientes aqui e ali entre os corredores de comida vencida.

Caminhei pelo lugar por alguns minutos, e Moxie caminhou por perto, mas sempre num corredor

diferente e trazendo no rosto uma expressão de quem estava procurando algum item especí co. Ela

era boa nisso. Logo encontrei Polly Incompleta empurrando uma grande pilha de sopa enlatada em

direção a um canto remoto do lugar.

— Olá — eu disse. — É bom vê-la novamente.

Polly franziu a testa.

— Eu não me lembro de você.

— Eu derrubei um mostrador uma vez — eu disse —, espalhando abacaxis por toda a parte.

— Ah, sim — Polly disse, assoprando na direção da testa para aumentar o franzido.

— Não — eu disse —, não fui eu quem fez isso.

Dei meia-volta e caminhei rapidamente na direção do cesto de melões verdes. Em qualquer lugar

que você encontrar um melão verde, você também poderá encontrar outros tipos de melão. E todos

são melhores. Realmente não há nenhum motivo para comer um melão verde, em qualquer

circunstância. Peguei dois melões, me assegurei de que Polly Incompleta estivesse olhando para mim

e então saí correndo porta afora. Ouvi Moxie suspirar.

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— Pare, ladrão! — Polly Incompleta gritou para mim. — Pare ou eu vou chamar a polícia!

É claro que não parei. Eu queria que a polícia fosse chamada.

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Ouvi a sirene da polícia mais cedo do que eu esperava. Tive o tempo exato para me ajoelhar ao

lado do meio- o e esconder os melões verdes rapidamente embaixo do Dilema. Eu me levantei e

comecei a limpar as calças bem quando a perua arrebentada dos únicos policiais de Manchado-pelo-

mar estacionou na frente do Comidas Incompletas. Como de costume, havia uma lanterna vermelha

presa no teto do carro com uma ta adesiva, em vez das luzes tradicionais da polícia, e o som da

sirene era feito por um garoto mais ou menos da minha idade, sentado no banco traseiro. Stew

Mitchum tinha a habilidade irritante de imitar o som de uma sirene, e esta não era a única

habilidade irritante que ele já havia demonstrado para mim. Ele era o tipo de criança desagradável

com todo mundo, mas que se comportava como um anjinho na frente dos pais. Não há nada que se

possa fazer contra esse tipo de pessoa. O melhor é nem falar com elas, mas Stew tinha me visto e

saltou para fora do automóvel enquanto seus pais entravam no Comidas Incompletas. Harvey e Mimi

Mitchum estavam discutindo, como sempre, e Stew dava seu sorriso perverso de costume.

— Eu pensei que você tinha deixado o vilarejo, Limãozinho — ele me disse. — Manchado-pelo-

mar não é lugar para idiotas.

— Sério? — eu disse. — Ouvi dizer que eles podiam trabalhar como sirenes de polícia.

— Fico feliz de saber que você acha o trabalho da polícia tão engraçado — Stew disse. — Meus pais

receberam uma denúncia de um jovem ladrão no Comidas Incompletas. Você não saberia nada sobre

isso, saberia?

— Só estou aqui para admirar este Dilema — eu disse —, e, é claro, para conversar com uma pessoa

tão encantadora quanto você.

— Me chame de encantador mais uma vez e te encho de porrada — Stewie rosnou, mas então ele

teve que me dar um sorriso largo e amistoso, porque os policiais Mitchum estavam saindo do

supermercado.

— Mamãe! Papai! — disse Stew, correndo na direção dos policiais. — Eu senti tanta saudade.

— Que gracinha — disse Mimi Mitchum, enquanto recebia um abraço longo e falso do lho. —

Nós também sentimos saudades, Stewie. Mas temos um crime para resolver.

— Um crime importante — corrigiu o marido.

— Todo crime é importante, Harvey.

— Mas alguns crimes são mais importantes do que outros.

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— Acho que não deveríamos discutir essas coisas na frente do gê-á-érre-o-tê-o.

— Stewart sabe soletrar “garoto”, Mimi. Não tem motivo pra você soletrar.

— E não tem motivo para você falar comigo desse jeito, Harvey.

— Mimi…

— Não venha com “Mimi” para cima de mim, Harvey.

— Bem, então não venha com “Harvey” para cima de mim.

— Como é que eu posso não ir com “Harvey” pra cima de você se o seu nome é Harvey?

Não fazia muito tempo que eu estava em Manchado-pelo-mar, mas aprendera fazia tempo que os

policiais Mitchum continuariam discutindo até que alguém os interrompesse.

— Olá, policiais — eu disse. — Não os vejo há algum tempo.

Harvey e Mimi Mitchum pararam de se xingar e voltaram seus olhares para mim. Eles tinham uma

expressão no rosto que provavelmente consideravam intimidante. “Intimidante” é uma palavra que

signi ca que eles deveriam me assustar, mas em vez disso eu só me perguntava o que eles teriam

comido para estarem com caras tão feias.

— Lemony Snicket — Harvey Mitchum disse. — A última vez que o vimos foi durante toda aquela

chateação com a estatueta roubada, e agora aqui está você, na cena de outro roubo.

— Um roubo? — eu disse. — Putz!

— Não use essas palavras imundas de quatro letras — Mimi Mitchum me disse, cobrindo as

orelhas de Stewie.

— Tipo qual? Essa pode? — eu disse, usando apenas palavras de quatro letras. Eu estava sendo

atrevido, mas tive medo de que, se fosse educado, talvez não fosse preso.

— Já chega — Harvey Mitchum disse. — Você está preso, Snicket. Venha conosco.

Ele agarrou meu braço, e então Mimi Mitchum disse que era ela quem deveria me segurar, porque

ele havia segurado as últimas três pessoas que eles haviam prendido, e Harvey disse que não fazia

diferença quem segurava o braço de alguém que eles estavam prendendo, e Mimi disse que, se não

fazia diferença quem segurava o braço de alguém que eles prendiam, por que não podia ser ela quem

segurava meu braço, e ele disse que preferia não falar mais sobre isso na frente do gê-á-érre-o-tê-o, e

Mimi o lembrou que ele a havia lembrado que o lho inteligente e sensível deles certamente poderia

soletrar uma palavra simples de seis letras, ao contrário de alguém como eu, que usava palavras de

quatro letras o tempo todo e que tinha de ser preso imediatamente. Era interessante observar o rosto

de Stewie enquanto seus pais se al netavam. Ele lembrava um tubarão que eu havia visto certa vez no

aquário, nadando em círculos em um tanque enquanto crianças de uma escola batiam no vidro. O

tubarão parecia estar pensando: “Eu não vou car preso desse jeito para sempre. Um dia estarei no

mar aberto, bem onde vocês nadam. Quando isso acontecer, é melhor vocês tomarem cuidado”.

Mas não foi Stew que interrompeu os Mitchum alfinetantes.

— O que está acontecendo, policiais? — Moxie Mallahan disse, saindo do Comidas Incompletas e

levantando a mão até a aba do chapéu. Era ali que ela guardava cartões com seu nome e pro ssão

impressos. Ela deu um cartão a cada um dos Mitchum para relembrá-los de quem ela era. Eles não

pareceram felizes ao serem relembrados.

— Isso é problema da polícia — disse o policial Mitchum masculino. — Houve um roubo de

melões verdes no Comidas Incompletas e estamos apenas prendendo um suspeito.

— Quem vocês estão prendendo? — Moxie perguntou. — Por que vocês o prenderam? Como vocês

chegaram à conclusão que ele era um suspeito? Que provas vocês têm? Onde estão os melões?

— Este rapazinho — Mimi Mitchum disse, apontando para mim — foi visto roubando dentro do

supermercado. Ele tem um histórico de atividades suspeitas. Nós vamos levá-lo à delegacia para ser

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identi cado pela testemunha. Ainda é muito cedo para tirar conclusões, mas eu não caria surpreso

se este garoto Snicket, aqui, acabasse na cadeia por um bom tempo.

Os policiais Mitchum sempre diziam que era muito cedo para tirar conclusões. Mas aparentemente

eles gostavam de entrar em ação cedo.

— Vocês se importam se eu os acompanhar? — perguntou Moxie. — Gostaria de ver como isso vai

se desenrolar.

— Não sobrou nenhum jornal no vilarejo — Harvey Mitchum disse, descon ado. — Como você

pode ser uma jornalista?

— Esta é a pergunta errada — Moxie disse, dando um leve sorriso. — A pergunta é: como é que um

vilarejo vai saber o que está acontecendo se não há ninguém para informar?

Os policiais Mitchum resmungaram e deram de ombros, e abriram a porta traseira da perua para

nos empilhar lá dentro. Moxie entrou primeiro, e depois eu, e depois Stew. É desconfortável sentar no

meio, mas Stew tinha mania de beliscar as pessoas, e eu achei que Moxie ia querer evitar isso. Era o

mínimo que eu podia fazer. Depois de uma breve discussão sobre quem deveria guiar, Mimi deu a

partida no motor e Stew fez seu barulho de sirene pela janela enquanto dirigíamos pelo vilarejo.

A delegacia de Manchado-pelo-mar ocupava metade de um prédio que um dia havia sido a

prefeitura. A outra metade era a biblioteca, onde eu passava grande parte do tempo. O prédio era uma

sombra do seu passado, o que signi ca que algum dia ele havia sido bonito, mas agora estava

esvanecendo como o resto do vilarejo, com dois grandes pilares arruinados e um lance de escadas

cobertas de rachaduras na entrada. Harvey Mitchum me tirou do carro, Moxie e Stew vieram atrás,

enquanto Mimi Mitchum manobrou a perua e seguiu dirigindo. Atravessamos o gramado em direção

ao prédio, passando por uma escultura tão destruída que eu nunca havia sido capaz de identi cá-la.

Olhei para ela de uma maneira diferente dessa vez. Pensei em um herói de guerra, e no dia em que a

estátua fora inaugurada.

No m das contas, a delegacia consistia em uma sala comprida, aproximadamente do tamanho de

um ônibus. No fundo do ônibus cava a única cela da cadeia, com barras de metal grossas e uma

cama pequena para que o prisioneiro dormisse. Não havia nenhum prisioneiro, dormindo ou

acordado. O resto da sala estava tomado por escrivaninhas, cadeiras, armários, mesas e pilhas

intermináveis de papel, que sempre fazem todo escritório parecer igual e chato.

— Agora escute aqui, Snicket — Harvey Mitchum me disse. — Estamos fazendo tudo dentro da

lei. Polly Incompleta disse que um garoto mais ou menos da sua idade roubou dois melões verdes da

loja dela. Mimi irá trazê-la aqui agora para fazer o reconhecimento, que é um termo da polícia para

quando uma pessoa reconhece o criminoso.

Ele saiu caminhando pesado em direção a um armário e tirou de lá três bonés imundos e três

pedaços de papelão grandes e quadrados com barbantes grampeados. Franziu a testa e apontou na

direção de uma parede vazia e suja.

— Vá ficar parado ali — ele latiu — e use isto.

Ele me entregou um boné e um quadrado de papelão. O boné era do Manchas Marítimas, uma

equipe esportiva de Manchado-pelo-mar que não existia mais, e o quadrado de papelão no m das

contas era uma placa com o número um rabiscado.

— Filho — ele disse ao Stew —, você poderia me fazer um favor e car ao lado do garoto que

acabamos de prender?

Stew virou de costas, para que o pai não pudesse ver que ele estava fazendo caretas para mim, e

então parou ao meu lado enquanto seu pai colocava um boné e uma placa nele. O boné do Stew era

igual ao meu. Seu cartaz dizia B.

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— Precisamos de uma terceira pessoa — o policial Mitchum balbuciou, e começou a olhar pela sala.

Ele parou em Moxie, que já estava datilografando em sua máquina. — Mocinha — ele disse —,

preciso da sua ajuda.

— É claro, policial — ela disse.

— Por favor, me ajude a levar aquele gaveteiro até onde estão os garotos — Harvey Mitchum disse,

e então, juntos, o policial e a jornalista empurraram o gaveteiro até ele se en leirar comigo e com

Stew. O policial balançou a cabeça, admirando sua obra, e equilibrou um boné e uma placa no topo do

gaveteiro. Na placa havia uma estrela simples rabiscada, do tipo que uma professora desenha na capa

do seu dever de casa para indicar que ou você fez um bom trabalho ou ela não o leu com cuidado.

Nós três camos ali parados por um tempo. Eu não sei o que Stew estava pensando, e o gaveteiro

não estava pensando nada. Mas eu estava pensando: o mundo é mesmo assim? Você realmente veio

parar num lugar como este, Snicket? Era uma questão que me ocorria, como poderia ocorrer a você,

quando alguma coisa ridícula ou triste acontecia. Eu cava pensando se era ali mesmo que eu deveria

estar, ou se existia outro mundo em algum outro lugar, menos ridículo e menos triste. Mas eu nunca

sabia como responder a essa pergunta. Talvez eu tenha estado em outro mundo antes de ter nascido e

já não me lembre dele, ou talvez eu vá conhecer outro mundo quando morrer, o que eu não tinha a

menor pressa de fazer. Enquanto isso, eu só conhecia o mundo em que estava. Enquanto isso, eu

estava preso naquela delegacia, fazendo uma coisa tão ridícula que chegava a ser triste, e me sentindo

tão triste que chegava a ser ridículo. O mundo da delegacia de polícia, o mundo de Manchado-pelo-

mar e de todas as perguntas erradas que eu estava fazendo era o único mundo que eu conseguia

enxergar.

— Feche os olhos — Harvey Mitchum disse. — Feche os olhos até que eu diga o contrário.

Fechei os olhos e escutei o alvoroço de duas pessoas que entravam na delegacia.

— Aqui estamos, sra. Incompleta — Mimi Mitchum disse. — Dê uma boa olhada nesta la para

reconhecimento.

— Algum deles é o ladrão?

— Isso é você que precisa nos dizer, senhora. Lembre-se, você pode ver todos os suspeitos, mas eles

não podem vê-la. E então, você reconhece algum desses três indivíduos? O ladrão que roubou sua loja

é o número um, o número B ou o número estrela?

Fez-se um silêncio breve e carregado enquanto Polly Incompleta nos observava. Moxie até parou de

datilografar.

— Número B — ela disse, enfim. — Sim, é o número B. Aquele é o ladrão!

Ouvi Harvey Mitchum respirar fundo.

— Como você se atreve? — ele trovejou depois de tomar fôlego. — O número B é o meu lho Stew.

Ele não poderia ter pegado aqueles melões verdes. Ele esteve comigo o dia todo, e ele nunca come

frutas ou vegetais frescos.

— Eu não gosto do gosto delas — explicou Stew, ao meu lado.

— E você não precisa gostar, meu querido — Mimi Mitchum murmurou.

— O número B é o único que reconheço — insistiu a dona do mercado. — Eu juraria sobre o

túmulo da minha mãe, se ela estivesse morta.

— Agradecemos pela ajuda, sra. Incompleta — Harvey Mitchum disse, num tom ingrato. —

Minha mulher a levará de volta até sua loja.

— Por que eu tenho que levá-la? — perguntou a policial Mitchum feminina. — Por que você não a

leva, só para variar?

— Porque você ficou com as chaves do carro, Mimi.

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— Então agora eu tenho que dirigir e car com as chaves do carro? Por que você não coloca logo os

pés em cima da sua escrivaninha, como sempre, já que estou fazendo todo o trabalho da força policial

de Manchado-pelo-mar?

— Eu não coloco os pés em cima da escrivaninha!

— É claro que coloca! Você tira quando eu entro na delegacia, mas você não me engana, Harvey.

Eu tenho olhos de avestruz.

— Os olhos dos avestruzes não são particularmente bons. Acho que você estava querendo dizer que

são de águia.

— Não me diga o que eu estava querendo dizer!

— Bem, então não me diga que você é um avestruz quando na verdade é uma águia!

— Eu sou uma mulher, Harvey. Não me chame de pássaro, seu imbecil!

— Não me chame de imbecil, sua idiota!

— Não me chame de idiota, seu cabeça oca!

— Deixa pra lá — Polly Incompleta disse. — Pre ro voltar a pé para o mercado. Tenham um bom

dia, policiais.

Os policiais Mitchum resmungaram alguma coisa que não pude ouvir por causa do barulho da

máquina de escrever de Moxie, e depois ouvi as pegadas da sra. Incompleta indo em direção à porta e

descendo as escadas.

— Você pode abrir os olhos agora, lho — Harvey Mitchum disse, em meio a um suspiro. — Você

também, Snicket.

Aparentemente, o gaveteiro deveria permanecer com os olhos fechados. Eu tirei o chapéu e a placa

e os devolvi ao policial.

— Ainda acho que você tem alguma coisa a ver com esse crime — ele disse —, mas não tenho

provas.

— A visão dela pode estar ruim — sua esposa disse. — Polly Incompleta já não é uma fruta verde.

— Eu diria que é uma fruta madura — concordou Harvey Mitchum —, ou até uma fruta passada.

Ela não seria capaz de reconhecer um abajur nem se eu o colocasse em sua cabeça.

— Pode ser a visão dela — eu disse —, ou pode ser que ela veja tanta gente entrando e saindo da

loja que já não consegue diferenciá-las. A questão é que ela não é uma testemunha confiável.

— Você tem razão — Harvey Mitchum admitiu, e sentou em uma das escrivaninhas. — Bem, pelo

menos resolvemos um crime hoje. Nada mau.

— É mesmo — Mimi Mitchum concordou. — Nós encerramos o caso Knight.

Ela tirou um lenço do bolso, lambeu uma ponta e tentou tirar uma sujeira do rosto de Stew, que se

contorceu. Moxie e eu trocamos olhares.

— Aquela garota desaparecida? — perguntei.

— A srta. Knight não está desaparecida — Harvey disse, e colocou os pés em cima da

escrivaninha. — Nós vimos os cartazes espalhados por todo o vilarejo e camos nos perguntando por

que ninguém havia nos ligado, mas acabamos topando com a sua parceira eodora e ela nos disse

que não havia crime nenhum. A srta. Knight foi vista fugindo para se juntar ao circo.

— A pessoa que a viu não seria capaz de reconhecer um abajur nem se eu o colocasse em sua

cabeça.

Mimi olhou severamente para Harvey e empurrou seus pés de cima da mesa antes de olhar com a

mesma severidade para mim.

— O que você quer dizer? — ela indagou.

Olhei para Moxie, e a jornalista tocou a aba do chapéu e deu levemente de ombros. Eu sabia o que

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aquilo signi cava. Signi cava que os policiais Mitchum não eram bons policiais, mas eram boa gente.

Eles tentariam ajudar alguém que estivesse encrencado. Eles fracassariam, mas pelo menos tentariam,

mesmo que a encrenca fosse só um par de melões verdes que ninguém deveria comer. Cleo Knight

provavelmente estava metida numa encrenca muito maior, então eu deveria contar a eles o que sabia,

mesmo achando que eles ajudariam muito pouco. Era muita coisa para dizer apenas com um gesto de

ombros, mas é assim que funciona com bons jornalistas. É assim que funciona com bons amigos.

— Polly Incompleta viu alguém comprando cereal e entrando num táxi, mas não era Cleo Knight.

A sra. Incompleta não me reconheceu quando cortei o cabelo, e não foi capaz de ver a diferença entre

seu filho e um gaveteiro.

Stew estava mostrando a língua para mim, mas seus pais ouviam com atenção.

— Então onde está a garota Knight? — Mimi perguntou.

— Existem duas pessoas que podem saber — eu disse. — Uma é Jake Hix, que trabalha no

Faminto’s. Ele também a viu naquela manhã, e a história dele está fazendo sentido até agora. A outra

é o dr. Flammarion.

Harvey Mitchum franziu o cenho e colocou os pés para cima novamente.

— Flammarion?

— Os Knight o contrataram como boticário particular. Ele injetou tanto láudano no casal que eles

mal estão cientes de que a filha desapareceu.

— E daí? — Mimi disse. — Os tratamentos médicos da família Knight são da conta deles, e se a

filha adolescente mimada quer se juntar ao circo não há nada que possamos fazer.

— Ela é uma química brilhante, não uma adolescente mimada — eu disse. — Se ela tivesse fugido,

teria deixado um bilhete para aqueles que a amam naquela casa.

— Talvez — Harvey disse.

— Talvez — eu concordei. — E talvez a polícia deva investigar uma garota desaparecida.

— Como faríamos isso?

— Vocês podiam ter a ideia de ir fazer algumas perguntas duras ao dr. Flammarion sobre o

desaparecimento de Cleo Knight.

Mimi ficou de pé e empurrou os pés do marido de cima da escrivaninha mais uma vez.

— Acabo de ter uma ideia — ela disse. — Vamos fazer algumas perguntas ao dr. Flammarion sobre

o desaparecimento de Cleo Knight.

— Algumas perguntas duras — o marido concordou.

— É claro que as perguntas serão duras, Harvey. O que você acha que eu quis dizer? Que a gente ia

fazer umas perguntas fáceis a ele?

— Como é que eu vou saber o que você quis dizer? Você fala bobagem metade do tempo.

— Bem, você fala bobagem dois terços do tempo.

— Não tem como calcular uma coisa dessas.

— Podemos ir com vocês, policiais? — Moxie perguntou, fechando a máquina de escrever.

— De forma alguma — Harvey Mitchum disse. — Fique longe deste caso. E isso também serve

para você, Snicket. Agradeço por chamarem nossa atenção para o assunto, mas de agora em diante a

investigação será conduzida de maneira ordenada e madura. Stewart, vou precisar que você faça o

barulho de sirene.

— É claro, papai querido — Stew disse, e nós saímos da delegacia. Mimi Mitchum trancou a porta,

e Stew aproveitou a oportunidade para esticar a perna na esperança de me fazer tropeçar enquanto

descíamos as escadas. Moxie conhecia aquele truque, então segurou a máquina de escrever mais baixo

e bateu com força sobre o joelho de Stew. Ele gemeu alto. Ela pediu desculpas com doçura. Ele ainda

Page 38: Lemony SNICKET - Quando Voc a Viu Pela Ltima Vez e

estava gemendo quando os Mitchum o acompanharam pelo gramado.

— Foi uma bela jogada, Moxie — eu disse —, com a máquina de escrever.

— A sua também — ela disse —, com o corte de cabelo. Você vai mesmo se afastar desse caso?

— É claro que não — eu disse. — É meu trabalho encontrar Cleo Knight.

— Que trabalho é esse, exatamente? — ela perguntou. — Para quem você trabalha? De onde você

veio? Quanto tempo você vai car? Quando você vai embora? Por que você está investigando coisas

neste vilarejo?

— É uma história complicada — eu disse.

— Tenho tempo e uma máquina de escrever — disse Moxie. — Me conte tudo.

Respirei bem fundo o ar puro. Pensei na minha irmã, que provavelmente estava nas profundezas,

longe da mais fraca das brisas.

— No ramo em que trabalho — eu disse —, as pessoas que sabem de tudo tendem a acabar em

grave perigo. Não quero colocar você na mesma situação.

Moxie inclinou a cabeça, e seu chapéu marrom se inclinou junto.

— Então aonde é que você vai me levar, Lemony Snicket? — ela perguntou.

— Não muito longe — eu disse, e caminhei até o outro lado do edifício, em direção à porta da

biblioteca.

Page 39: Lemony SNICKET - Quando Voc a Viu Pela Ltima Vez e

6

Uma biblioteca tende a parecer com o problema que você está tentando resolver com a ajuda

dela. A biblioteca de Manchado-pelo-mar nunca tinha me parecido tão grande e confusa. Os livros e

as prateleiras pareciam estar no meio de uma discussão interminável.

— Desculpem a bagunça. — Era a voz profunda de Dashiell Qwerty, mas eu não conseguia vê-lo.

Sua escrivaninha estava tomada por pilhas de livros, junto com algumas de suas eternas inimigas —

uma expressão que, nesse contexto, signi ca “traças” —, rodopiando longe do alcance do seu lenço

xadrez. — Tivemos algumas preocupações recentemente, então a biblioteca está tomando algumas

medidas de precaução.

— Que preocupações? — Moxie perguntou, já abrindo sua máquina de escrever. — Que medidas?

Qwerty empurrou alguns livros para o lado para que pudesse nos ver. Ele se denominava sub-

bibliotecário, mas eu o considerava não apenas um bibliotecário completo, mas um bom bibliotecário

completo. Ele estava usando sua jaqueta de couro costumeira, decorada com peças de metal, e o seu

cabelo, como sempre, parecia com medo dela.

— Alguns livros sumiram — ele disse —, e algumas ameaças foram feitas.

— Quem fez as ameaças?

— Quem dera eu soubesse — ele disse. — Em todo caso, estou reorganizando completamente as

prateleiras, e em alguns dias um sistema de sprinklers será instalado, para que não tenhamos que nos

preocupar com incêndios. Enquanto isso, se vocês estão procurando uma boa leitura, permitam-me

recomendar um livro que eu gosto bastante, chamado Desespero. A trama acompanha duas pessoas que

não se parecem em nada, mas mesmo assim bolam um plano nefasto.

— Parece interessante — eu disse —, embora minha aliada e eu tenhamos um monte de coisas

para pesquisar.

Qwerty me deu um sorriso familiar e fez um gesto amplo com o braço coberto pela jaqueta de

couro. Eu gostava daquele gesto. Não era como os gestos dramáticos de eodora, que pareciam

feitos para chamar atenção para si. Aquele era um gesto feito para que você olhasse para a biblioteca, e

eu gostava do que ele sempre dizia quando terminava de gesticular.

— Sinta-se em casa — ele disse, e Moxie e eu trocamos um sorriso e o agradecemos e partimos em

direção às prateleiras abarrotadas.

— E então? — ela disse, quando nos distanciamos.

— Então é aqui que eu faço as minhas pesquisas.

— Sim, mas o que estamos pesquisando?

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— O dr. Flammarion está obviamente tramando alguma coisa — eu disse —, e nós precisamos

descobrir o quê.

— Não vai ter um livro sobre o dr. Flammarion — disse Moxie.

— Não — eu disse —, mas pode ser que tenha algum sobre o coronel Colofão.

— O que ele tem a ver com tudo isso?

— Quem dera eu soubesse — admiti. — Ele era o parceiro comercial de Ingrid Nummet Knight, e

o dr. Flammarion trabalha na clínica em que o coronel vive. Também quero pesquisar um pouco sobre

química. O dr. Flammarion trabalha com láudano, e Cleo Knight estava trabalhando com tinta

invisível. Talvez tenha outra conexão aí.

— Eu vou atrás do coronel Colofão, e você fica com a química. Tudo bem?

— Tudo bem.

— E… Snicket?

— Sim, Moxie?

— Você realmente me considera uma aliada?

— Com certeza.

Ela sorriu do jeito que as pessoas sorriem quando tentam segurar o sorriso.

— Então nós vamos resolver esse caso juntos?

— Eu já falei que não quero colocar você em perigo — eu disse. — Nós não sabemos o que

aconteceu com Cleo Knight.

— Se é seguro o bastante para você, é seguro o bastante para mim — disse Moxie, com firmeza.

— Eu fui treinado para esse tipo de coisa — eu disse. — Foi parte da minha educação.

— Theodora é parte dessa educação?

— Sim — eu disse. — Ela também é minha aliada.

— A mesma eodora que fez você roubar a Fera Ressonante de mim? A mesma eodora que

acha que nenhum crime foi cometido no caso de Cleo? — A jornalista pôs a máquina de escrever

numa das mesas da biblioteca. — Acho que eu seria uma aliada melhor do que a sua aliada.

Moxie Mallahan estava me lembrando de mim mesmo. Eu era conhecido por discutir com os

professores até eles carem tão desorientados que só conseguiam pensar em uma coisa para me dizer.

Era uma coisa injusta, a coisa que eles diziam, mas eu já estava com quase treze anos. Estava

acostumado com injustiças.

— Mãos à obra — eu disse a ela.

Moxie suspirou e se afastou de mim, caminhando em direção à seção da biblioteca dedicada à

história militar. Fui na direção da seção de ciências, torcendo para que os livros que eu estava

procurando estivessem nas prateleiras, e não nas pilhas bagunçadas que obstruíam os corredores. Para

chegar até a seção de ciências eu tive de passar pela seção de cção, onde havia uma lacuna do

tamanho de três livros, comprida e óbvia como um dente que estivesse faltando. Era minha culpa. Eu

precisei retirar três livros da biblioteca sem dar baixa, e agora os livros estavam em posse de Tiro

Furado. Eram livros bons, e agora ninguém poderia retirá-los. Não que se lamentando, Snicket. Não

há nada que você possa fazer.

A seção de ciências não estava organizada de nenhuma maneira, então os livros de química estavam

empilhados com os de biologia amontoados com os de botânica apoiados nos de endocrinologia. Dei

um suspiro, mas isso não fez as coisas melhorarem. A sala estava silenciosa. Me ajoelhei no chão e

comecei a vasculhar tudo. Não havia um livro chamado Láudano ou um livro chamado Tinta invisível

ou um livro chamado Láudano e tinta invisível ou um livro chamado O caso do desaparecimento de Cleo

Knight resolvido em um livro de modo que Lemony Snicket não precise resolvê-lo ele mesmo. Acabei

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encontrando um livro sobre química, mas eu não queria lê-lo. Era grande como um bolo e se chamava

Química. Não tinha um índice, então não tinha como olhar no nal para ver onde estavam os

capítulos sobre láudano. Era preciso trombar com eles. Eu queria era trombar em quem quer que

tivesse tomado a decisão de não colocar um índice no nal de Química. Eu o arrastei até uma mesa e

comecei a ler.

A química é um ramo da ciência que lida com as substâncias elementares das quais todos os corpos

e a matéria são compostos, e as leis que regulam a combinação desses elementos quando formam

misturas, e os fenômenos que ocorrem quando tais corpos são expostos a diferentes ambientes e

condições físicas. Fechei o livro. Eu já tinha lido o bastante. Cleo Knight morreria tranquilamente

durante o sono, aos cento e dois anos, cercada por seus bisnetos, antes que aquele livro me ajudasse a

resolver o caso.

Em vez de ler, me permiti um momento de melancolia. Era m de tarde. “Só um momento”, eu

disse a mim mesmo. Só um momento de melancolia. Pensei na minha irmã, dentro de um túnel

debaixo da cidade. Devia estar escuro lá, embora ela provavelmente tivesse uma lanterna ou uma

tocha. Ela estaria franzindo a testa, como sempre faz quando está muito concentrada. Ela mediria os

passos, certi cando-se de que iria parar exatamente abaixo do Museu de Objetos. Então pensei nos

meus pais. Pensei na aparência deles sob a sombra de uma grande árvore, numa tarde remota. O vento

estava soprando com força, e nós fazíamos uma trilha, despreocupados. O vento arrancou um galho

pesado da árvore, fazendo-o despencar. Dava para ouvi-lo caindo, chocando-se contra as folhas,

durante o que pareceu um longo tempo. Minha mãe deu um salto — um salto grande, alto,

surpreendente —, barrou o galho com os braços e o arremessou rolando na grama. Eu me lembro do

som. Tinha sido por pouco. “Nós cuidamos uns dos outros”, minha mãe disse, enquanto minha irmã e

meu irmão e eu estávamos parados, boquiabertos, olhando para o galho que teria arruinado nosso dia.

“Nós, os Snicket, cuidamos uns dos outros.”

Eu não estava cuidando dos outros. Minha irmã estava sozinha, enquanto eu estava numa

biblioteca, locupletando-me de melancolia. “Locupletar” signi ca fazer algo que não é realmente

necessário. Me levantei e fui atrás de Moxie.

— O que “abstêmio” quer dizer? — ela me perguntou.

— Uma pessoa que não bebe álcool — eu disse.

— O coronel Colofão é abstêmio — ela disse —, embora eu não consiga imaginar como isso pode

nos ajudar mais do que qualquer outra informação. Ele lutou com bravura na guerra, mas desviei a

pesquisa um pouco, para ler mais sobre isso. Eu achava que a guerra era um assunto simples, com um

lado do bem e outro do mal. Mas, quanto mais eu lia, menos claro ficava.

— Acho que isso vale para todas as guerras.

— Talvez. Em todo caso, o vilarejo de Manchado-pelo-mar prestou uma homenagem a ele com

uma estátua. Aqui estão eles na cerimônia de inauguração.

Ela virou o livro sobre a mesa e eu vi uma grande fotogra a de uma multidão. A legenda me

informou que políticos, artistas, cientistas, magnatas, biólogos, veteranos de guerra e outros cidadãos

haviam se reunido na frente da prefeitura para o primeiro dia de trabalho da construção da estátua

em homenagem ao coronel Colofão. O lugar parecia muito melhor na fotogra a do que agora. Os

pilares estavam lisos e a grama bem cuidada, e havia uma árvore, alta e larga, prestes a ser cortada, no

local em que a estátua seria erguida. Pare de pensar em árvores, Snicket. Pare de pensar na sua família.

Havia vários homens e mulheres em uniformes de bombeiro, e havia uma pequena banda de metais da

Academia da Maré, que tinha sido uma escola de ponta um dia, mas agora estava vazia e abandonada

na periferia do vilarejo, na Ilha Distante. Pensei ter visto os policiais Mitchum na multidão, muito

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mais jovens, e lá estava Próspero Perdido, esfregando as mãos. Havia uma jovem mulher que poderia

ser Polly Incompleta alguns anos atrás, e um homem que poderia ser o dr. Flammarion, sem barba e

rindo num grupo de homens e mulheres. É claro que a maioria das pessoas na multidão era

desconhecida para mim. Algumas delas pareciam felizes, e algumas delas não. Eu não sabia por que

estava olhando para elas.

— Diz alguma coisa sobre o que aconteceu depois? — eu perguntei. — E quanto à explosão?

— Não tem muita coisa — disse Moxie. — Até onde entendi, o coronel Colofão passa todo seu

tempo na Clínica Colofão, escondido em sua sala especial no sótão do hospital, ou andando pela

propriedade. Olha, aqui tem uma foto dele sentado ao lado da piscina da clínica.

— Ele realmente parece uma múmia.

— Uma múmia sentada em cima de um monstro. Dê uma boa olhada no banco.

Dei uma boa olhada no banco onde o coronel estava sentado. A Fera Ressonante, monstro lendário

de Manchado-pelo-mar, me encarava na fotografia.

— Parece que esse banco é feito da mesma madeira da estatueta que Tiro Furado está atrás —

disse Moxie.

— Mesma madeira, mesma fera. Deve existir uma conexão.

— Se ela existe, não consegui encontrar. Ou talvez exista alguma coisa, mas eu não tenha

encontrado por causa da bagunça que está a biblioteca.

— Você acha que a redação no farol pode ter algumas reportagens antigas sobre tudo isso?

— É possível — disse Moxie —, mas O Farol Manchado também está uma bagunça. Muitas edições

do jornal se perderam. Minha mãe levou algumas quando deixou o vilarejo, e temo que meu pai não

seja muito bom tomando conta de qualquer coisa.

— Você deve sentir saudades dela.

— Todos os minutos, Snicket, de todas as horas de todos os dias. E quanto a você? O que

descobriu?

— A química é um ramo da ciência que lida com as substâncias elementares das quais todos os

corpos e a matéria são compostos, e as leis que regulam…

Moxie levantou as mãos.

— Chatice não é bala de alcaçuz, Snicket — ela disse. — Não tem por que dividir comigo.

— Acho que vou pedir ajuda ao bibliotecário — eu disse. — Ele está ocupado, mas ele é bom.

— Vou datilografar mais algumas notas — disse Moxie, e eu assenti com a cabeça e segui em

direção ao balcão do bibliotecário. Primeiro achei que Dashiell Qwerty havia deixado a biblioteca,

pois pensei ter visto um vulto atravessando a porta, mas então eu o vi escovando a lombada de um

livro todo chique sobre ostras, com uma escova grossa e macia e uma concentração feroz.

— Com licença — eu disse —, mas eu não achei o que estava procurando.

— Uma reclamação comum.

— Preciso de informações sobre láudano, ou algum outro tipo de sonífero, ou um histórico sobre

espionagem industrial, ou qualquer coisa sobre o coronel Colofão e a explosão que o feriu e a clínica

fundada em sua homenagem.

— Seria melhor se você não fosse tão especí co — Qwerty disse, espantando uma traça. — Numa

biblioteca é mais fácil torcer pela serendipidade do que procurar uma resposta precisa.

— Serendipidade?

— “Serendipidade” é uma descoberta feliz feita por acaso —, Qwerty disse. — Numa biblioteca,

isso pode signi car encontrar alguma coisa que você não sabia que estava procurando. Em todo caso,

temo que a maioria dos livros sobre os assuntos que você mencionou já foi retirada. Um associado os

Page 43: Lemony SNICKET - Quando Voc a Viu Pela Ltima Vez e

reservou há algum tempo e acaba de vir buscá-los.

Eu pisquei e saí correndo até a porta. O vulto que eu tinha visto não era mais um vulto. Agora era

uma mulher, descendo as escadas em direção ao gramado onde um dia existira uma árvore alta e

larga. Depois, uma estátua. Agora, os restos da estátua. A mulher vestia um casaco branco que parecia

o cial, o que me deixou nervoso. Eu não a reconheci. Ela estava carregando um monte de livros

debaixo de um braço, e uma sacola de mantimentos no outro. Eu conseguia ver a parte de cima da

sacola. Parecia que ela tinha comprado leite, um pão e talvez uma dúzia de limões. E havia uma caixa

de uma coisa que talvez você coma no café da manhã, caso você goste de doze grãos integrais

combinados numa sequência rigorosa.

— Quem é aquela? — perguntei a Qwerty, tentando manter a voz baixa. — Quem retirou aqueles

livros?

— Um bibliotecário não revela esse tipo de informação — Qwerty respondeu. — Quem você é e o

que você lê é sigiloso numa biblioteca. O mundo…

— Estou dizendo que preciso saber quem é aquela pessoa — eu disse.

Qwerty pôs uma das mãos no meu ombro. Os enfeites de metal chacoalharam nas mangas de sua

jaqueta.

— E eu estou dizendo — ele disse gentilmente — que você não vai conseguir essa informação

comigo.

Olhei de novo para a mulher indo embora, depois para Qwerty, e depois à biblioteca em volta, com

suas pilhas selvagens de livros. Havia três livros novos agora, empilhados bem em cima do balcão. A

mulher havia devolvido três livros à biblioteca, três livros que encaixavam perfeitamente na lacuna da

seção de cção. Eu havia surrupiado aqueles livros da biblioteca, e agora eles estavam de volta. Isso

não deveria ser uma surpresa. É claro que Tiro Furado estava envolvido de alguma forma.

Os três livros eram todos do mesmo autor, e recomendo todos eles. Um é sobre uma garota que

espia seus vizinhos e um é sobre bilhetes assustadores que arruínam o verão de algumas pessoas e um é

sobre uma família que não muda embora as crianças queiram. Eles tinham estado em posse de Tiro

Furado, o que signi cava que a mulher que os havia devolvido era uma de suas aliadas. Eu não

conseguiria nenhuma informação sobre ela perguntando para um bibliotecário, mas havia outro jeito.

Dei uma última olhada na biblioteca e saí correndo atrás dela.

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A mulher que caminhava pelas ruas de Manchado-pelo-mar, carregando uma sacola de

mantimentos e uma pilha de livros, tinha o cabelo enrolado no topo da cabeça como uma cobra

dentro de um cesto. Dava para perceber que seus pés doíam. Dava para perceber que, quando cava

furiosa, ela sabia exatamente o que dizer para fazer você se contorcer. Ela passou pela loja de

departamentos Arriscada, com seus manequins tristes e silenciosos nas janelas. Ela passou pela Tinta

S.A., com sua portinha fechada. Eu continuei atrás dela. Ela não olhou para trás uma vez sequer. O

truque para seguir alguém sem ser pego é seguir alguém que não acha que está sendo seguido. Foi

assim que aprendi a seguir pessoas e, ao longo do curso de um ano letivo inteiro, descobri segredos

fascinantes sobre completos desconhecidos que segui por horas a fio. Isso me fez pensar em quem teria

descoberto meus segredos, nos dias em que eu pensava que estava caminhando sem ninguém atrás de

mim.

Ela dobrou a esquina e esperei um pouco antes de segui-la por aquele quarteirão silencioso. Não

havia uma loja sequer — nada de Faminto’s ou Braços Perdidos ou Café Gato Negro. “Deve ter sido

um belo quarteirão um dia”, pensei. Devia haver lojas, no lugar das janelas quebradas e portas

acorrentadas, e em cima das lojas havia leiras de apartamentos que devem ter sido ocupados. Todos

os apartamentos tinham grandes janelas e varandas, que estavam destruídas e desertas. Foi fácil

imaginar a aparência deles num dia quente, com as janelas abertas e as pessoas nas varandas, tomando

bebidas geladas e assistindo a um des le que talvez estivesse passando — um des le em homenagem a

um herói militar, por exemplo. Pensei no coronel Colofão e na estátua em frente à biblioteca. Era

como uma música que eu não conseguia parar de cantarolar, mas cujo nome não sabia. Fazia sentido,

de alguma forma. Eu devia ter prestado mais atenção na foto que Moxie me mostrara. Moxie cará

zangada como se tivesse se cortado com papel, eu pensei, quando perceber que deixei a biblioteca sem

ela. Pare com isso, Snicket. Concentre-se na mulher à sua frente, franzindo a testa para todas as

entradas dos prédios. Seus sapatos parecem ter pisado em algo molhado e sujo. As entradas estão todas

lacradas com tábuas. Ela não vai encontrar nada lá.

Ela dobrou outra esquina. Tive de esperar. A rua estava muito silenciosa, mas, quando espiei, ela

estava mais silenciosa ainda.

A mulher havia sumido.

Me obriguei a me acalmar. Se uma pessoa desaparece ao virar uma esquina, isso quer dizer que ela

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entrou em um dos prédios ou que um pássaro gigante a levou embora. O céu estava limpo, então

conferi as entradas. Havia um restaurante abandonado, com mesas redondas pequenas demais para

comer confortavelmente. Espiei através da janela rachada e li algumas palavras numa lousa — LES

GOMMES, que era francês, para quem soubesse —, mas a porta estava pregada rme, como um caixão.

Não ia demorar para que todas as portas no vilarejo cassem desse jeito, com os Knight abandonando

seu negócio de tintas e se mudando para a cidade.

Do outro lado da rua havia outra loja fechada. A placa quebrada dizia UÁRIO, que não parecia

francês. As janelas estavam cobertas por panos negros, como se alguém tivesse fechado as cortinas. A

porta estava fechada, mas havia alguma coisa tremulando embaixo dela, presa no vão onde a porta

tentava alcançar o chão. Era uma única folha de papel branco. Caminhei em sua direção e a puxei pela

borda. Ela deslizou para fora.

DESAPARECIDA, dizia. Era um dos cartazes de Cleo Knight. Se ele estava preso na porta, isso

significava que a porta havia sido aberta recentemente. Talvez apenas instantes atrás.

Soltei o pan eto e ele saiu voando, carregado rua abaixo pelo vento apressado. Lembrei a mim

mesmo de uma lição que aprendi durante o treinamento: faça a coisa assustadora primeiro, e que

assustado depois.

Empurrei a porta e ela rangeu de leve. Seria preciso abri-la muito devagar. Um pequeno rangido

aqui, um pequeno rangido ali. Provavelmente ninguém ouviria. Porque provavelmente ninguém

estaria próximo da porta. Eles estariam longe, muito longe da porta, quem quer que eles fossem. E eles

cariam felizes de me ver se eu acabasse aparecendo. “Então por que você está esperando do lado de

fora?”, perguntei a mim mesmo. Fique assustado depois.

Empurrei a porta até abri-la, mais devagar que uma lesma. A porta rangeu, mas eu era o único que

estava ali para ouvir. O piso estava molhado e sujo, mas não havia ninguém lá. Eu estava dentro da

loja, ou do que havia sido uma loja. Eu estava certo. “UÁRIO” não era francês. Era uma boa parte da

palavra “AQUÁRIOS”. Antigamente o povo de Manchado-pelo-mar ia até lá para comprar peixes e

aquários e todo o material para cuidar deles. Talvez alguns peixes tivessem vindo diretamente da

costa do vilarejo, quando ainda havia um mar em vez da paisagem sem lei da Floresta Aglomerada.

Mas agora não havia mais peixes. Uns poucos tanques rachados e sujos estavam sobre as prateleiras,

mas a maioria havia sido levada. Recipientes de comida e alguns castelinhos de plástico que as pessoas

gostam de pensar que os peixes gostam estavam esquecidos em pilhas. O único sinal de vida era um

aquário solitário sobre o balcão empoeirado ao lado de uma caixa registradora empoeirada e de uma

caneca vazia. Dentro dele havia o que parecia ser um punhado de girinos negros minúsculos,

nadando numa água turva. Havia um pedaço de alguma coisa verde-clara para eles mordiscarem, e

um grande pedaço de madeira que se erguia inclinado, como se fosse para dar aos girinos algo para

escalar. Dei uma olhada nos girinos, mas eles não pareceram interessados.

Havia uma trilha de pegadas cruzando o piso sujo e atravessando uma porta aberta nos fundos, que

dava em uma escadaria sombria que levava ao andar de cima. Mas eu já sabia aonde a mulher tinha

ido. Podia ouvir suas pegadas vindas de cima. Pensei por um minuto e peguei a caneca antes de subir

as escadas em silêncio. Os girinos não me viram partir. Eles estavam pensando em outras coisas.

A escadaria acabava na porta de um apartamento, bem como eu havia pensado, e depois fazia uma

curva subindo até outro apartamento. Não havia um capacho de boas-vindas, mas eu não me sentiria

bem-vindo de qualquer forma. Segurei a caneca contra a porta, com a boca virada para a madeira, e

encostei o ouvido na outra ponta. Um copo vazio funciona melhor, ou um estetoscópio, se você tiver

um à mão, mas ninguém tem um estetoscópio à mão.

— Comprei todos os limões no supermercado — a mulher dizia, e ouvi quando ela soltou a sacola

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no chão, um som alto sobre outro mais baixo.

— Obrigado — disse outra voz. Era a voz de uma garota. — Você pode colocar os limões na

geladeira, junto com o leite. Vou cortá-los mais tarde.

— Você não vai fazer nada disso — a mulher disse, e ouvi os limões rolando sobre uma mesa.

— Bem, ao menos me deixe ajudá-la — a garota disse. — Você está fazendo tanta coisa, enfermeira

Martíria.

— E você não está fazendo nada — a enfermeira Martíria disse amargamente. Ouvi o som agudo

de metal raspando metal, e então uma sequência de barulhos rigorosamente idênticos: Bate-raspa!

Bate-raspa! Bate-raspa! Bate-raspa! — Eu achei que você precisaria de todo tipo de equipamento

cientí co — ela disse. Bate-raspa! Bate-raspa! — Mas você só pegou um monte de tigelas e copos da

cozinha. Parece culinária, e não química.

— Cozinhar é muito parecido com química — a garota disse. A voz parecia estranha. Eu não sabia

dizer exatamente por quê. Era uma voz aguda, exceto em certas palavras, quando cava,

repentinamente, bem grave. Algumas palavras saíam quase claras demais, e outras eram totalmente

murmuradas, como se ela estivesse mastigando uma bola de gude.

— Espero que sim — a enfermeira disse. Bate-raspa! Bate-raspa! Bate-raspa! — Ele vai querer

resultados. E rápido!

— Ele esteve aqui?

— Isso não é da sua conta. — Bate-raspa! Bate-raspa!

— Acho que ele esteve.

— Ele vai aonde ele quer, quando ele quer. — Bate-raspa! Bate-raspa! — E da próxima vez que ele

vier aqui, vai querer que você tenha conseguido o que prometeu.

— E quando vai ser? — perguntou a garota.

— Eu disse que não é da sua conta. — Bate-raspa! Bate-raspa! Bate-raspa! Bate-raspa! — Pronto, aí

estão todos eles. Você mesma pode espremê-los.

— Você é boa com a faca.

— Lembre-se disso se pensar em tentar fugir.

— Eu não vou tentar — a garota prometeu.

— É melhor que não — a enfermeira Martíria disse. — Agora você tem tudo de que precisa. Mãos

à obra.

— Será que não podemos conversar por um minuto?

— Nós acabamos de conversar por um minuto.

— Mas eu gosto de companhia.

— Não somos amigas. Você está trabalhando para nós. Eu trouxe tudo que você pediu. Você disse

limões. Muitos limões, você disse. Certos livros, você disse.

— Bem, espero que funcione — disse a garota, sem muita certeza —, mas pode ser que não. Nesta

época do ano, o suco de limão tem consideravelmente menos…

A voz foi cando mais baixa, e eu conseguia ouvir as unhas da enfermeira Martíria tamborilando

impacientemente sobre alguma coisa. O som mais baixo, eu me dei conta, era música.

— Menos o quê?

— Menos de um elemento químico importante.

— Qual elemento?

“Bicabecabuca”, pensei.

— Um que é fundamental para o que estou fazendo — a voz disse, ainda mais aguda e grave do

que o normal.

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As pegadas da mulher se moveram muito, muito lentamente pelo cômodo.

— Você deu sua palavra, Cleo Knight. Não nos passe para trás. Nossa sociedade não tolera a

traição. Nós demos a você tudo que pediu. É hora de você honrar sua promessa.

— Será que você poderia ao menos levar uma mensagem para o Tiro Furado?

Por um segundo não houve som nenhum, e estremeci encostado na caneca. Então a mulher falou

muito calmamente.

— Eu disse para você jamais mencionar o nome dele — ela disse, e então houve o som de metal

raspando metal mais uma vez. Não sabia dizer se a mulher estava guardando a faca ou apontando-a

para a garota. — Não me provoque.

As pegadas vieram na minha direção. Não havia lugar nenhum para ir nem tempo para chegar,

então z a única coisa que consegui pensar, que foi nada. A porta se abriu e me empurrou contra a

parede. Cheirava mal. Minha mão agarrou a alça da caneca. Quando a porta voltasse eu seria

descoberto, mas a porta não voltou. “Provocar” signi ca irritar tanto uma pessoa que ela talvez não

perceba o que está acontecendo à sua volta. A enfermeira Martíria passou por mim subindo as escadas

e pisando com força. Não consegui vê-la direito. Não vi se ela estava com a faca. Meus olhos estavam

fechados. É inútil fechar os olhos quando você está se escondendo, mas todo mundo faz isso mesmo

assim. Eu me lembrei de respirar e agradeci quando a porta fechou com um baque. A garota a trancou.

Eu estava sozinho. “Não tem como ter certeza”, disse a mim mesmo. Não tem como saber o que você

espera que você saiba.

Eu bati na porta.

— Pois não? — a voz da garota esqueceu por um instante como deveria soar, mas em seguida se

lembrou do seu som errado. — Quem é?

— Entrega — eu disse, também usando uma voz falsa —, para a srta. Cleo Knight.

— Não tem ninguém aqui com esse nome — a voz respondeu.

— Talvez eu deva tentar lá em cima — eu disse.

— Não! — pude ouvir as mãos apressadas da garota mexendo na fechadura, para se assegurar de

que eu não tinha como entrar. — Ninguém neste prédio se chama Cleo Knight!

— Sinto muito — eu disse. — Li errado. É outro nome.

— Que nome?

Disse o primeiro nome que me veio à mente.

— Também não tem ninguém aqui com esse nome.

— Imaginei que não. É o nome de uma escritora sueca.

Ouvi as mãos mexendo na fechadura mais uma vez, mas agora mais devagar.

— Ela escreveu um livro sobre uma garota com um nome comprido e tranças compridas que vive

aventuras com seus vizinhos. É mais interessante viver aventuras com outras pessoas, você não acha?

A voz não disse nada.

— Quer dizer, você não ia querer ficar sozinha se estivesse em circunstâncias perigosas.

A voz não viu nenhum motivo para quebrar seu silêncio.

— Existem outros livros sobre ela, também. Tem um em que ela vai para os mares do Sul. Isso não

parece divertido?

— Vá embora — disse a voz, muito serenamente.

— Você não é muito boa disfarçando sua voz.

— Nem você.

— Isso é asinino — eu disse. — Abra a porta.

“Asinino” é uma palavra que soa como se você não devesse pronunciá-la, então quando você a

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pronuncia as pessoas geralmente engasgam. Isso faz dela uma maneira deliciosa de dizer “não muito

inteligente”, que é tudo que ela signi ca. Não houve um engasgo do outro lado da porta, mas a

fechadura fez um clique e a porta abriu e eu entrei.

Era um apartamento surrado. Havia uma luminária mal pendurada e uma mesa comprida de

madeira que alguém havia golpeado com alguma coisa. Agora estava coberta de tigelas e copos, com

uma pilha de livros numa das pontas e um grande número de limões, todos cortados ao meio. Havia

uma grande pilha de papéis sobre uma cadeira raquítica, e um sofá lotado de travesseiros empelotados

e cobertores horríveis, para que alguém dormisse — ou tentasse dormir — ali. A única coisa simpática

no cômodo era uma pequena caixa com uma manivela na lateral e um funil em cima, com música

saindo dela. E havia uma garota parada na minha frente. Seus olhos verdes eram os mesmos, mas seu

cabelo já não era mais negro, não agora. Em vez disso estava loiro, tão loiro que parecia branco. Seus

dedos ainda eram compridos, novamente com unhas negras compridas, e sobre seus olhos havia

sobrancelhas estranhas, encurvadas como pontos de interrogação. Ela também estava dando o mesmo

sorriso. Era um sorriso do qual eu gostava. Um sorriso que podia significar qualquer coisa.

“Agora você tem certeza”, eu disse a mim mesmo. “Agora você a encontrou, e agora pode dizer o

nome dela.”

— Ellington Feint.

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8

— Lemony Snicket — ela me respondeu. Ficamos parados nos encarando. Não fazia muito tempo

que eu conhecia Ellington Feint, e não era possível dizer que nós éramos exatamente amigos. Nós

dois nos encontrávamos em Manchado-pelo-mar em missões misteriosas. Nós dois tínhamos roubado

a mesma estatueta e nós dois procurávamos pelo mesmo vilão, e agora o caso de Cleo Knight havia

nos aproximado mais uma vez. Mas a Fera Ressonante, esculpida a partir do monstro lendário de

Manchado-pelo-mar, e Tiro Furado, que estava mantendo o pai de Ellington prisioneiro, e mesmo o

desaparecimento de uma química brilhante não nos fazia amigos. Nós éramos mais como peças de um

quebra-cabeça, partes diferentes de uma mesma história. Há pessoas assim aonde quer que você vá.

Elas são parte do mesmo mistério que você, mas não é possível dizer exatamente como vocês se

encaixam juntos. O mundo é um quebra-cabeça, e não podemos montá-lo sozinhos.

— O que você está fazendo aqui, srta. Feint? — eu disse.

— Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta, sr. Snicket.

— Estou procurando Cleo Knight — eu disse.

Ellington se moveu e fechou rapidamente a porta.

— Para todos os efeitos, para as pessoas que estão aqui — ela disse num sussurro —, eu sou Cleo

Knight.

Sentei à mesa com todos os utensílios de cozinha e os limões cortados ao meio. Eu sabia a maior

parte da história, mas não toda.

— É uma façanha e tanto — eu disse. — Como você conseguiu?

Ellington caminhou até o sofá e en ou a mão embaixo dele para puxar uma mala. Era a mesma

mala que ela trouxera de Campos do Maçarico, um vilarejo próximo onde ela havia crescido. Estava

cheia de todo tipo de roupa: tudo que ela precisaria usar em sua jornada para encontrar o pai. Ela

ergueu um novo casaco, com listras pretas e brancas, e um chapéu da cor de uma framboesa.

— Do chapéu eu me lembro — eu disse. — Eu o vi quando você estava morando na Colina dos

Lenços. Onde você conseguiu o casaco?

— Cleo Knight comprou para mim — ela disse —, na loja de departamentos Arriscada.

— É um presente generoso. Vocês devem ser muito amigas.

— Eu não diria que somos amigas — Ellington disse. — Eu a conheci apenas algumas semanas

atrás, no Café Gato Negro. Ela estava tentando fazer com que a máquina servisse uma xícara de chá

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para ajudá-la a pensar. Eu a convenci a experimentar o café em vez disso, e nós começamos a

conversar. Ela me contou que seus pais iam abandonar o negócio de tintas e se mudar para a cidade,

mas ela vinha trabalhando num experimento importante que poderia salvar o vilarejo.

— Tinta invisível — eu disse.

Ellington sorriu.

— Eu deveria saber que você saberia. Cleo Knight é mesmo uma química brilhante. Geralmente,

tinta invisível é só uma besteira feita com suco de limão, mas ela estava aperfeiçoando uma nova

fórmula, com um ingrediente secreto que ela mesma descobriu. Haverá tinteiros cheios de tinta

invisível em toda parte, ela me disse, assim que a fórmula for nalizada. As pessoas voltarão ao

trabalho. Manchado-pelo-mar irá prosperar novamente. Os polvos não correrão mais risco. Eles

poderão até regressar ao mar, que é o lugar deles, tudo por causa da fórmula de Cleo Knight. Dá para

imaginar? Uma tinta invisível que funciona de verdade.

— Certas pessoas que eu conheço estariam muito interessadas nisso — eu disse.

— Sua tutora, S. Theodora Markson, por exemplo?

— Muita gente se interessaria por uma tinta invisível que funciona de verdade.

— Isso é exatamente o que preocupava Cleo Knight. Ela não queria que sua fórmula caísse nas

mãos erradas.

— Ela tinha razão em ficar preocupada — eu disse, pensando no dr. Flammarion.

— E estava certa em desaparecer. Ela sabia que o perigo estava por perto. Seus pais haviam

incentivado muito seus experimentos, mas então, subitamente, eles começaram a agir de uma forma

estranha e insistiram para deixar o vilarejo. Era uma situação desesperadora, Snicket. O destino de

todo o vilarejo estava nas mãos de Cleo Knight. Então fizemos um acordo.

— Você deu a ela seu chapéu extra — eu disse —, e ela comprou um casaco extra para você.

— Ela até me deu o composto químico certo para deixar o cabelo loiro.

— Então agora existem duas Cleo Knight.

— A verdadeira Cleo Knight encontrou um lugar seguro para se esconder, deixou um bilhete para

os pais e saiu dirigindo seu carro extravagante com seu equipamento especial. E eu deveria aparecer

no vilarejo vestida como ela, falando sobre me juntar ao circo, de modo que, se alguém procurasse por

ela, seguiria a pista errada.

— E depois?

Ellington sorriu, mas ela não estava olhando para mim.

— E depois, nada — ela disse. — Essa é a história toda. Cleo Knight está em algum lugar seguro,

fazendo seus experimentos, e eu estou confundindo seus inimigos até que ela termine.

— Essa não é a história toda — eu disse —, nem de longe. Em primeiro lugar, a família dela nunca

encontrou o bilhete, e Cleo Knight e seu Dilema nunca chegaram a nenhum lugar seguro. Alguém

mudou os planos, srta. Feint. Alguém destruiu o bilhete e manteve o sr. e a sra. Knight num estado de

delírio despreocupado, graças a injeções regulares de láudano. E alguém furou o pneu do Dilema com

uma agulha hipodérmica e depois ofereceu a Cleo Knight uma carona. Alguém em quem ela con ava:

o boticário particular da família, dr. Flammarion.

— Não o conheço.

— Talvez não, srta. Feint. Mas a mulher no apartamento em cima deste, a mulher que está

cuidando de você, é a enfermeira do dr. Flammarion.

Ellington levantou a cabeça e olhou para o lustre do apartamento, que balançava, como se esperasse

que a mulher caísse do teto.

— Como você sabe?

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— Eu a segui desde a biblioteca — eu disse. — Ela devolveu alguns livros que eu não via há algum

tempo, livros que estavam em posse do Tiro Furado. Esse vilão está controlando tudo, Ellington. Você

se lembra de quando ele obrigou a dama Sally Murphy a se fazer passar pela sra. Murphy Sallis? Agora

Tiro Furado pôs o dr. Flammarion para fazer o trabalho sujo. E a enfermeira Martíria o está ajudando.

E você também, srta. Feint.

— Como assim?

— A enfermeira Martíria disse que você está aqui porque deu sua palavra. Ela disse que você

precisa honrar sua promessa. Você está fazendo alguma coisa para eles, srta. Feint. Você está ajudando

Tiro Furado com suas trapaças, e você nem sabe disso!

Então ela olhou para mim. Seus olhos pareciam mais verdes, ou talvez o verde só estivesse mais

bravo do que eu já tinha visto. Ela apontou um dedo furioso na minha direção, suas unhas mais

negras do que as noites na Suíte Extremo Oriente, quando estava muito, muito tarde, e eu ainda não

tinha conseguido dormir.

— Claro que eu sei, sr. Snicket — ela disse. — Você acha que vim até este lugar por acaso? Quando

eu estava no sótão do Café Gato Negro, encontrei um pacote. Estava endereçado ao meu pai e tinha

sido mandado por uma organização da qual eu nunca tinha ouvido falar.

Ela en ou a mão num bolso e tirou uma etiqueta muito amarrotada, que estendeu sobre a mesa.

Juntos, franzimos a testa olhando para ela.

SOCIEDADE DESUMANA A/C ARMSTRONG FEINT

Não havia mais nada como endereço. Havia mesmo um monte de pacotes na última vez em que

estive naquele sótão. Não tinha pensado neles como pistas.

— O que é a Sociedade Desumana? — eu disse.

As sobrancelhas de Ellington fizeram sua melhor curva.

— Você não sabe? — ela disse. — Pensei que você fosse membro, sr. Snicket.

— Não — eu disse com cuidado. — Minha organização é diferente.

Por um segundo, nenhum de nós disse coisa alguma, ainda que nossos segredos estivessem no ar,

brigando entre si sobre nossas cabeças.

— Eu quei naquele sótão por dois dias — ela disse, nalmente. — Eu saía do esconderijo apenas

para comer pão e beber café.

— Onde você se escondeu? — perguntei.

— Tem um armário — ela disse — que é maior do que parece.

— Procurei por você muitas vezes.

— Eu sei que procurou, sr. Snicket — ela disse. — Eu pensei que você fosse pegar o pacote.

— Você acha que sei onde seu pai está?

Ellington não sorriu, mas pareceu que ela tinha pensado em sorrir.

— Não somos exatamente amigos, sr. Snicket — ela disse. — Você simplesmente caiu em cima de

uma árvore uma noite e, desde então, tenho a sensação de que somos parte de um mesmo mistério.

Eu não gostava de pensar na minha queda ridícula sobre a árvore, embora costumasse pensar em

Ellington me encontrando lá e me ajudando a descer.

— Eu prometi que a ajudaria a encontrá-lo — eu a lembrei. — Se eu soubesse onde ele está, teria

contado a você.

Ela assentiu com a cabeça, de leve.

— De qualquer forma, não foi você que pegou o pacote. Foi a enfermeira Martíria. Eu a segui até

aqui, mas quei com medo de ir adiante. A loja de aquários abandonada parecia tão assustadora, e eu

não sabia o que poderia encontrar aqui dentro. Mas, quando conheci Cleo Knight e nós bolamos o

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plano, eu sabia que era a minha chance. Em vez de car aparecendo em todos os lugares, z apenas

uma aparição, no Comidas Incompletas. Depois peguei um táxi até aqui e bati na porta. A enfermeira

Martíria abriu, e me apresentei como Cleo Knight. Prometi uma fórmula de tinta invisível que

funcionaria de verdade em troca de um encontro com Tiro Furado. É um bom plano, sr. Snicket.

— Ah, com certeza — eu disse —, como fazer malabarismo com dinamites ou dar um chute num

urso-polar.

— Não seja asinino.

— Asinino é tentar enganar um vilão desse jeito.

— É a única maneira — Ellington disse. — Passei por todo aquele trabalho de conseguir a Fera

Ressonante, mas quando mandei uma mensagem a ele, dizendo que estava com ela, ele nunca

respondeu. Preciso resgatar meu pai, sr. Snicket. Agradar o Tiro Furado é a única maneira.

Não falei que quem tinha passado por todo trabalho de conseguir a estatueta tinha sido eu. Não

perguntei a ela como foi que ela mandou uma mensagem para o Tiro Furado. Quando paro para

pensar nesse incidente da minha vida, começando com a ligação da minha irmã e terminando no

porão da Clínica Colofão, a lista das coisas que z errado se estende na minha frente e não consigo

enxergar o fim.

— Você não consegue fazer tinta invisível, consegue?

— É claro que não — Ellington disse, gesticulando de forma desesperançosa na direção de tudo

que estava em cima da mesa. — Nem sei qual é o aditivo secreto. Quando a enfermeira Martíria está

aqui, co fuçando nas coisas e njo ser uma cientista. E, quando ela sai, vasculho o prédio atrás do

meu pai.

— O que você descobriu?

— Nada. O apartamento da enfermeira Martíria é bem comum, e o resto dos apartamentos está

vazio. É um mistério o fato de este aqui ser mobiliado. Não vi Tiro Furado, mas acho que ele esteve

aqui.

— Como você saberia? Você nunca o viu.

— É só uma sensação que eu tenho — ela disse, olhando para o apartamento surrado.

— Uma outra pessoa também vai ter uma sensação, srta. Feint. Vai ter a sensação de que você os

está enganando.

— Mas todo mundo pensa que eu sou Cleo Knight, a cientista brilhante. Todo mundo confia nela.

— Mas na verdade Cleo Knight está nas garras do Tiro Furado — eu disse. — Ele vai contar para o

dr. Flammarion, e o dr. Flammarion vai contar para a enfermeira dele. E a enfermeira dele é boa com a

faca.

Então Ellington olhou para mim. Seus olhos se arregalaram debaixo das sobrancelhas, e seus dedos

se curvaram como garras sobre a mesa. Nós dois erguemos a cabeça para olhar para o lustre, atentos a

qualquer som proveniente do apartamento da enfermeira Martíria. Mas tudo que ouvimos foi o disco

que Ellington tinha posto para tocar. Não era uma música que eu conhecia. Eu conseguia distinguir

um trompete e um trombone, com piano e percussão no acompanhamento. Soava como algo

despreocupado. Todo mundo estava se divertindo, onde quer que fosse, quando tocaram aquela

música.

— O que eu faço? — ela me perguntou baixinho.

— Não que assustada agora — eu disse. — Você é uma garota incrível, srta. Feint. Você segue as

pessoas pela rua e se disfarça de química brilhante. Você bate na porta dos vilões e os engana. Se você

estivesse naquele livro sueco, ele diria que você é capaz de derrotar um bando de gatos selvagens.

— Na verdade, gatos selvagens me assustam. Uma vez meu pai e eu avistamos um enquanto

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fazíamos uma trilha, e ele ainda me dá pesadelos.

— Eu também conto histórias — eu disse — quando estou nervoso. Nós temos que sair daqui, srta.

Feint. Deixe tudo para trás, especialmente os livros da biblioteca sobre química. Eles são chatos.

— Como posso ir embora? — Ellington disse. — A enfermeira Martíria vai me ouvir.

— Ela pode ouvir você — eu disse —, mas não tem como ela saber que você é você.

— Ela viu todas as roupas — Ellington disse. — Ela revistou minha mala quando cheguei aqui.

Tirei meu casaco.

— Ela não me revistou — eu disse. — Pegue isto.

— O sol está se pondo — ela disse. — Está frio lá fora, sr. Snicket.

— Então eu terei calafrios — eu disse. — Já tive calafrios antes.

Ela baixou os olhos para a mesa e escreveu o nome do pai com a unha negra.

— Eu também — ela disse, e vestiu meu casaco. Ela vasculhou a mala atrás de grampos e, em

instantes, prendeu seu longo cabelo no topo da cabeça. Observá-la fazendo aquilo pareceu algo muito

íntimo. Nunca tinha visto minha irmã ou minha mãe fazendo o que quer que fosse com o cabelo. Era

um segredo.

— O que você acha, sr. Snicket? Pareço um garoto?

— Não. De longe, talvez.

— Como é que isso vai funcionar?

— É fácil — eu disse. — Eu aprendi a fazer.

— Na sua organização.

— Sim — eu disse.

Ellington deu uma olhada pela sala.

— Não gosto de deixar essas coisas para trás.

— De que coisas você está falando?

— Meu gramofone. Meus papéis. E…

A música parou.

— Não se preocupe, srta. Feint — eu disse, quando a pausa acabou. — Eu levarei para você. Não

podemos ser vistos indo embora juntos, e é melhor que você não esteja com nada disso caso seja pega.

Mas eu assumo a partir daqui, e me encontrarei com você.

— Onde?

— Você sabe onde. Na esquina da Caravan com a Parfait.

— Você promete?

— Prometo. Mas é melhor você me dizer onde está.

Eu gostei que Ellington nem sequer ngiu não saber do que eu estava falando. Ela caminhou até a

geladeira e a abriu. Era do tipo que tinha algumas gavetas para manter os vegetais mais frescos. Ela

abriu uma delas e, dentro, não havia nada muito fresco. Parecia alface, ou talvez uma coisa que tinha

sido alface em tempos mais felizes. Agora estava toda gosmenta e aguada e não parecia com nada que

você ia querer tocar, e eu acho que era essa a ideia. Ellington empurrou a alface velha para o lado e

puxou uma coisa grande e preta. Parecia um pouco com um cavalo-marinho, com buracos pequenos

no lugar dos olhos e um sorriso vazio e perverso. Eu não sabia o que a estatueta era antes, e não sabia o

que era agora. Ela me olhou como se não fosse me contar. Eu a segurei e virei de cabeça para baixo por

um minuto para sentir o remendo de papel amassado que estava colado sobre uma pequena ranhura.

“Passe um tempo comigo”, pensei. “Sente aqui comigo, sua fera terrível. Me conte todos os seus

segredos.” Mas não havia tempo, não agora. Peguei o menor cobertor do sofá, azul-claro com umas

franjas bobas nas bordas, e embrulhei a fera para que ninguém pudesse ver o que eu estava carregando.

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— Cuide bem disso — ela disse.

— O que é isso, exatamente? — perguntei.

Ela deu discretamente de ombros.

— É a minha única esperança — ela disse, e eu a acompanhei até a porta. Olhei para ela e quis

dizer para que também cuidasse bem de alguma coisa. Mas eu não tinha muita certeza do quê, então

abri a porta muito suavemente e depois bati fazendo muito barulho.

— Entrega — eu disse, na minha voz de entregador. — Entrega para a srta. Cleo Knight.

Ellington sacou na hora.

— Senhor — ela disse seriamente —, eu disse que não há ninguém aqui com esse nome, nem com

qualquer outro.

— Foi engano — eu disse. — Até mais ver.

— Até mais ver — ela respondeu e, depois de me olhar uma última vez, desceu correndo as escadas,

bem quando escutei o barulho de outra porta se abrindo no andar de cima.

— Srta. Knight? — a enfermeira Martíria chamou. — Quem era? Alguém veio procurar você?

Não respondi, é claro. Eu não sabia imitar vozes. Eu não era o Tiro Furado. Mas também não queria

que a enfermeira Martíria pensasse que não havia ninguém no apartamento. Caminhei rapidamente

até a vitrola e aumentei o volume. Os músicos soaram ainda mais felizes. Ellington tinha razão. Seria

uma pena deixar algo assim para trás.

— Srta. Knight? — a enfermeira chamou de novo.

Olhei rapidamente em volta. “O banheiro”, pensei. Mesmo o mais surrado dos apartamentos possui

um banheiro. Atravessei a única porta que vi e me encontrei num banheiro minúsculo, tornado ainda

menor por causa de uma pia tão grande que havia um aquário redondo apoiado sobre ela. Não havia

nada dentro dele além de um girino negro, como aqueles que eu tinha visto na loja de aquários, com

outro pedaço de comida e outro pedaço de madeira para o caso de ele estar num clima de escalada.

Mas não parecia estar. A torneira pingava a intervalos regulares, mas eu não iria consertá-la. Abri a

cortina do chuveiro e vi uma pequena janela, com uma pequena fresta aberta. O vento assobiava pela

fresta e me lembrava de uma coisa. Não era grande o suficiente para que eu saísse por ali.

— Srta. Knight, me responda!

Pus a estatueta, ainda enrolada no cobertor, sobre os azulejos sujos do piso. “Uma distração”,

pensei. Um grande barulho. Do lado de fora da janela. Tempo su ciente para Ellington escapar e para

que você também saia. Sim, eu precisava achar algum objeto pesado. Alguma coisa na cozinha. Mas a

enfermeira Martíria já estava descendo as escadas, e então eu a ouvi entrar no apartamento. Ela tinha

uma respiração levemente asmática que eu não havia notado antes. Agora eu conseguia ouvir, porque

ela estava muito perto de mim.

— Srta. Knight? — ela disse.

Fiquei escutando-a ofegar e pus o tampão no ralo da pia. A torneira continuava pingando. Entrei

no chuveiro e muito, muito lentamente abri a janela até o fim.

— Srta. Knight? — a enfermeira Martíria disse mais uma vez, como se fosse um alerta, e então ouvi

aquele som agudo novamente, de metal raspando metal. “Boa com a faca não quer dizer nada”, disse a

mim mesmo. É só uma expressão. Pense em outra expressão. O rei da cocada preta — essa é

engraçada. Por que um doce feito de coco significaria uma coisa maravilhosa? Fique assustado depois.

Agora havia água su ciente na pia. Me debrucei sobre o aquário. Tinha um cheiro doce, um cheiro

de alguma coisa que eu não gostava. Deixe isso pra lá, Snicket. Você não vê sentido em melões verdes.

En ei o braço na água e rapidamente peguei o girino, com a mão em concha. Eu o ergui e o larguei

dentro da pia, mas meu dedo doeu quando z isso, uma dor aguda e furiosa, como se eu tivesse sido

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espetado por um pedaço de vidro. Mas ainda não está quebrado, Snicket.

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— Onde você está, Knight?

Olhei para o dedo. Estava sangrando, só um bocado. Bocado. Eu tinha sido mordido. Baixei os olhos

para o girino. “Eu estava tentando salvá-lo e você me morde, sua coisinha ingrata?” Ele me ignorou.

Estava ocupado circulando pelo seu novo ambiente. Peguei o aquário e entrei no chuveiro. Agora a

voz estava do outro lado da porta.

— Knight?

Arremessei o aquário pela janela e, por um segundo, não escutei nada. Então ouvi um tremendo

estilhaço de vidro. Foi muito alto. Me fez sorrir. Todos no bairro puderam ouvir, mas eu só me

preocupava com uma pessoa. Funcionou. Ouvi a enfermeira Martíria arfar e depois sair correndo do

apartamento e descer as escadas para ver se aquela barulheira era a garota que ela estava procurando.

Peguei a estatueta, me certi quei de que estava bem embrulhada no cobertor e desci correndo

também. Atravessei a loja de aquários abandonada com meu dedo mordido dentro da boca. “Não

gosto do primo de vocês”, murmurei para todos os girinos no balcão. Na linguagem silenciosa dos

girinos eles disseram “quem se importa?”. O piso ainda estava sujo e a porta estava aberta, então não

precisei me preocupar com o barulho. Saí na rua e vi a silhueta descon ada e atenta da enfermeira

Martíria parada ao lado do café, olhando de um lado para o outro. Quando ela olhou para um lado,

fui para o outro, e quando ela olhou para o outro, eu já tinha virado a esquina.

Ellington estava certa. Ficou frio depois que o sol se pôs. Eu queria que o cobertor estivesse

enrolado em mim, e não na Fera Ressonante. Eu a tinha nas mãos e poderia ter ido a qualquer lugar.

Poderia ter voltado ao Braços Perdidos para inteirar minha tutora dos fatos. Poderia ter ido até os

policiais Mitchum para ver se eles haviam resolvido o caso. Poderia ter voltado à biblioteca para

buscar Moxie, ou ido até o Faminto’s para ver Jake Hix, ou caminhado por aí até encontrar Juca e

Chico e pedido a eles que dirigissem pela cidade procurando Cleo Knight. Todas essas são coisas que

você poderia fazer, Snicket. Tremendo, encostei na lateral do prédio e quei pensando naquilo. Você

poderia fazer qualquer uma dessas coisas. Você deveria fazê-las. Você não precisa se encontrar com ela.

Ela é uma ladra e uma mentirosa. Ela está desesperada. Ela é confusão. Ela roubou você. Ninguém

sabe o que você prometeu. Você pode guardar isso pra você.

Mas você pode dizer o que quiser para si mesmo. Um gato selvagem é apenas uma das maravilhas

da natureza, e não te dará pesadelos. Foi apenas uma vez, durante uma trilha, anos atrás, e você

deveria deixar isso para lá. Até que você se vê sentado na cama no meio da noite, o coração batendo

rápido por causa da perseguição, e já não importa o que você diga a si mesmo. Sua irmã está mais

velha agora. O galho de uma árvore não poderia mais machucá-la. Você não precisa estar na cidade

ajudando-a. Você pode car aqui, em Manchado-pelo-mar. “Ninguém está correndo nenhum perigo”,

eu disse a mim mesmo. Apertei a fera contra o peito e comecei a caminhar rápido. “Você sabe para

onde”, eu disse a mim mesmo. Esquina da Caravan com a Parfait. O Café Gato Negro é onde ela está

esperando.

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Se esta história pode ser chamada de mistério, então o Café Gato Negro é um mistério dentro

de um mistério. Certamente havia coisas misteriosas no estabelecimento. A máquina reluzente no

meio da sala — que produzia pão ou café, dependendo do botão que você apertasse — sempre

funcionava perfeitamente, mas eu nunca tinha visto ninguém fazendo a manutenção. O sótão era um

lugar onde você podia retirar pacotes, mas eu nunca tinha visto ninguém os entregando. A pianola

tocava músicas que eu não conseguia identificar.

Mas não era disso que eu estava falando. Não me importava quem botava óleo na máquina do Café

Gato Negro e se certi cava de que os compartimentos estivessem cheios de farinha e grãos torrados,

ou quem entregava as caixas de livros cheios de páginas em branco ou apetrechos para extração

vegetal. A música não tinha importância para mim. O verdadeiro mistério do Café Gato Negro era a

garota de sobrancelhas encurvadas e sorriso indecifrável, que estava no balcão quando cheguei, com

uma xícara vazia sobre um pires na frente dela, e outra fumegando na frente do banco vizinho. Seu

cabelo ainda estava preso para cima, mas meu casaco repousava dobrado em cima do balcão.

— Disse a mim mesma que se você não estivesse aqui quando este café esfriasse — ela falou —,

você não apareceria mais.

— Eu disse a você que a encontraria — falei.

— Você nem sequer escondeu isso aí — ela disse, e apontou para a Fera Ressonante.

— Verdade — eu disse, apesar de mantê-la enfiada embaixo do braço.

— Você vai me devolver?

— Você vai me dizer o que ela é?

— É a estatueta de uma fera imaginária.

— É mais do que isso, e você sabe.

— Só sei que o Tiro Furado a quer.

— Então por que ele não a tomou de você?

Ellington sacudiu a cabeça.

— Não sei — ela disse. — Sente-se, sr. Snicket. Beba um pouco de café.

Ela deu um tapinha no banco vizinho, e eu me sentei, mas empurrei o café de lado.

— Você sabe que sou abstêmio quando o assunto é café.

— Você iria gostar, se experimentasse.

— Prefiro gengibirra.

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— Procurei gengibirra para você por toda a cidade — ela disse. — Procurei até mesmo ontem,

quando estava enganando a mulher do Comidas Incompletas. Eles não têm.

— Eu sei — eu disse. — É uma das muitas desvantagens deste vilarejo.

Ela bebeu meu café.

— Quais são as outras?

As decepções de Manchado-pelo-mar pareciam muito numerosas para serem listadas.

— Este vilarejo ca longe de pessoas das quais eu preferia estar perto — eu disse —, e está sob a

sombra das maldades de um terrível vilão.

— Suponho que tenha sido isso que nos trouxe até aqui — ela disse.

— Não — eu disse. — Estou aqui porque minha tutora está aqui.

— Mas por que ela está aqui?

— É complicado — eu disse. — É como uma história tão grande que você acaba se perdendo no

meio. Você conhece aquela sobre uma briga enorme a respeito de uma maçã e uma mulher bonita?

— Aquela que termina com uma estátua oca e um fantasma que gosta de enterrar coisas? Meu pai

estava lendo essa história para mim quando desapareceu — ela terminou o café e pôs a xícara de

cabeça para baixo no pires. Foi um gesto bonito de ver. — Todas as noites, meu pai chegava em casa

depois do trabalho de campo e deixava as botas na varanda. Era na época das cheias, e suas botas

cavam tão enlameadas que não adiantava lavá-las. Ele fazia o jantar só de meias, e depois eu lavava a

louça, e ele servia uma taça de vinho para ele e lia um capítulo de alguma coisa para mim, antes de

apagar as luzes.

— Parece uma vida bem confortável — eu disse.

— E era — a voz de Ellington estava distante, e eu mal conseguia ouvi-la por trás dos sons da

pianola. — Meu pai é biólogo, por isso nossa casa estava sempre cheia de ores silvestres dos campos

próximos, ou animais lhotes que ele havia resgatado e cavam se recuperando em caixas de sapato

velhas até estarem saudáveis o su ciente para serem soltos. E ele era amante da música, então a

primeira coisa que fazia de manhã era dar corda na vitrola, para que pudéssemos ouvir música

enquanto tomávamos café. Então, certa noite, não ouvi suas botas na varanda, e agora aquela música

é tudo que eu tenho.

Pensei na vitrola ainda tocando música naquele apartamento surrado.

— Lamento que você tenha sido obrigada a deixar a vitrola para trás — eu disse —, mas talvez você

tenha como pegá-la de volta.

— Eu ainda tenho isto — Ellington en ou a mão no bolso e colocou um objeto pequeno entre as

duas xícaras de café. Era parecido com a vitrola antiga, mas tinha o tamanho de um baralho de cartas.

Ela girou a pequena manivela, e nós dois nos inclinamos para a frente para ouvir a música fraca que

tilintava. — Meu pai sempre levava essa caixinha de música — ela disse — para que pudesse ter

música com ele independente do quanto estivesse mergulhado na natureza. Ele a deixou para trás no

dia em que desapareceu, então estou tomando conta dela.

— Eu conheço essa música — eu disse, me lembrando da primeira noite em que Ellington e eu nos

vimos. A mesma música estava tocando na vitrola na Colina dos Lenços. Era uma música triste, mas

não a ponto de fazer chorar, como se estivesse tentando dizer que não tinha por que se debulhar em

lágrimas quando havia tanto trabalho a ser feito. — Qual é o nome dela?

Ellington apenas sacudiu a cabeça. Existem alguns segredos que você quer guardar para si, mesmo

que não sejam importantes. Talvez eles só sejam importantes se você os mantiver em segredo.

— Eu vi o girino resgatado — eu disse — no aquário na pia do banheiro. Você acha que seu pai

esteve lá?

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— Não sei. Mas resgatar um animal pequeno daquele jeito é definitivamente algo que ele faria.

— Talvez seja pequeno, mas é feroz — ergui o dedo e mostrei a ela a pequena ferida onde eu havia

sido mordido.

— Parece que está doendo.

— Está doendo tanto quanto parece.

— Se meu pai estivesse aqui, ele poderia dar um jeito nisso — Ellington disse. — Ele colheria as

plantas certas crescendo por entre as rachaduras na calçada e elaboraria alguma coisa que faria efeito

rapidinho. Ele é um cientista brilhante.

— Manchado-pelo-mar precisa de cientistas brilhantes — eu disse. — Talvez em breve seu pai e

Cleo Knight estejam trabalhando lado a lado para impedir que este vilarejo desapareça por completo.

— Enquanto isso — Ellington disse, soltando um suspiro —, estamos sozinhos. Estamos sozinhos e

é difícil. Você não acha difícil estar sozinho, sr. Snicket?

Soltei o embrulho que estava segurando, a estatueta misteriosa envolta num cobertor.

— Não sei — eu disse. — Fui ensinado a não me importar com isso.

— Quem te ensinaria uma coisa dessas? S. Theodora Markson?

— Não, não, isso eu aprendi muito antes de ela se tornar minha tutora.

— Ah, sim — ela disse. — Você me falou que teve uma educação incomum, mas não me contou os

detalhes.

— Não gosto de pensar nos detalhes.

— Cavar um túnel, você me disse uma vez. Cavar um túnel até o porão de um museu.

— Isso mesmo.

— Não existem mais museus em Manchado-pelo-mar.

— Não — eu disse. — Não existem.

— Então não é você que está cavando. É outra pessoa.

— Sim.

— Alguém de que você preferia estar perto, como você disse.

— Sim.

— Então acho que você se importa de estar sozinho, no final das contas.

— Eu disse a você, nos ensinaram a não nos importarmos — eu disse. — Podem ensinar qualquer

coisa a você. Isso não quer dizer que você aprenda. Não quer dizer que você acredite.

— Então você não pode ir ajudar quem quer que esteja cavando esse túnel?

— Não — eu disse. — Preciso ficar aqui.

— Por quê? Por causa da Theodora?

— Por sua causa — eu disse. — Prometi ajudá-la. Você não se lembra, srta. Feint?

Ellington olhou para mim, e seus olhos verdes se encheram de água.

— Sim — ela disse. — Sr. Snicket, meu pai é um homem tão amável. Ele deve estar muito

assustado, onde quer que esteja. Como vamos encontrá-lo?

— Se encontrarmos Cleo Knight — eu disse —, acho que encontraremos seu pai. Cleo é uma

química brilhante, e seu pai é um biólogo brilhante. O Tiro Furado está pegando pessoas brilhantes e

obrigando-as a fazer coisas terríveis.

— Meu pai jamais faria qualquer coisa terrível.

Não respondi. Eu não o conhecia. A mim parecia que todo adulto faria alguma coisa terrível cedo

ou tarde. “E toda criança”, pensei, “cedo ou tarde se torna um adulto.” Eu não gostava de pensar

naquilo, então quei ouvindo os sons da pianola entrelaçando-se aos sons da caixinha de música de

Armstrong Feint. Fiquei ouvindo até um novo som se juntar ao conjunto, um som que infelizmente

Page 62: Lemony SNICKET - Quando Voc a Viu Pela Ltima Vez e

eu conhecia. Era o som de um garoto mais ou menos da minha idade, pendurado na janela de uma

perua ngindo ser uma sirene. Em instantes, os policiais Mitchum entraram a passos largos no Café

Gato Negro, seguidos pelo lho sarcástico e uma enorme bola de lã desgrenhada. Tive de piscar três

vezes até entender que a bola de lã era, na verdade, S. eodora Markson, com seu cabelo ainda mais

rebelde do que costumava ser.

— Snicket! — ela gritou. — Você está aí!

— S! — não consegui não responder. — Eu estou aqui.

— Os policiais estavam procurando você, Snicket. Eles me interromperam no meio do banho,

quando eu estava colocando o xampu. Disse a eles que você gostava de passar os dias aqui, com dor de

cotovelo por causa de sua cupidez por Elaine.

— O nome dela é Ellington Feint — eu disse —, e ela está sentada bem aqui.

— Não nos interessa onde seus amigos estão sentados — Harvey Mitchum me disse. — Estamos

interessados no que você está tramando.

— Minha tutora me disse para dar uma sumida até a hora do jantar — eu disse.

— Ela também disse para você mandar a polícia procurar agulha num palheiro? — perguntou Mimi

Mitchum. — Você desperdiçou tempo da lei, e de um dos lhos da lei, que poderia ter feito coisas

mais construtivas com o seu tempo.

— É verdade — Stew me disse, com uma falsidade que os ouvidos adultos não conseguiam

detectar. — Eu ia fazer exercícios de soletrar, mas você desperdiçou a minha tarde.

Era inútil argumentar que era mais provável que Stew Mitchum fosse dar prosseguimento às suas

estrepolias com o estilingue, que estava notavelmente pendurado em seu bolso.

— Você nos disse para ir ver a família Knight — Harvey Mitchum falou. — Você nos disse

bobagens sobre o dr. Flammarion. Mas em vez disso…

— Deixa que eu falo, Harvey — Mimi disse. — Eu sou melhor contando histórias.

— Não é.

— Sou sim! Lembra daquela vez que contei uma história num chá que a mãe do nosso amigo deu

naquele restaurante que costumava ser na esquina perto da lavanderia onde aquele homem

costumava…

— Viu só? — Harvey Mitchum vangloriou-se em triunfo. — Essa história já está chata e você

ainda nem a contou!

— Se eu ainda não contei, como é que ela pode estar chata?

— Você consegue tornar qualquer coisa chata, Mimi! É como se você tivesse uma varinha mágica

de chatice!

— Bem, e é como se você tivesse uma varinha mágica de bafo!

— Eu fico com bafo porque como o que você cozinha!

— Pois é! Você nunca cozinha!

Ellington Feint não tinha passado muito tempo com os policiais Mitchum, mas instintivamente

sabia que a única maneira de fazer com que eles parassem de discutir era interrompendo.

— Com licença — ela disse —, mas o que aconteceu quando vocês foram ver os Knight?

Harvey Mitchum franziu a testa irritado e a encarou.

— Não aconteceu nada — ele disse. — Os Knight foram embora de Manchado-pelo-mar. O prédio

da Tinta S.A. está lacrado com tábuas, como quase todos os outros prédios do vilarejo.

Pensei no que Zada e Zora haviam dito. O que elas poderiam fazer se o sr. e a sra. Knight dessem a

ordem para partir? Elas eram apenas empregadas.

— As empregadas também se foram?

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— Todo mundo se foi. Você nos levou até um prédio vazio, Snicket, e nós fomos até a sua tutora

para descobrir por quê.

— Vou te dizer por quê — eu disse. — Porque estou tentando resolver o caso de Cleo Knight.

— O caso de Cleo Knight não existe — eodora disse, com rmeza. — Como contei aos

policiais, nenhum crime foi cometido. Nós sabemos que a garota Knight fugiu para se juntar ao circo,

e sabemos que seus pais se mudaram da cidade.

— Não sabemos de nada disso — eu disse. Me virei para os policiais. — Vocês encontraram o dr.

Flammarion? Vocês falaram com ele?

Mimi Mitchum sacudiu a cabeça para mim de um jeito que ninguém gostaria que uma cabeça

fosse sacudida para si.

— Em primeiro lugar — ela disse —, o dr. Flammarion é um boticário respeitado. E em segundo

lugar… Bem, na verdade não tem um segundo lugar. O caso está encerrado.

— Mas o carro da srta. Knight ainda está estacionado na frente do Comidas Incompletas.

— Não seja bobo, Snicket. A srta. Knight foi vista deixando o Comidas Incompletas e entrando em

um táxi.

— Aquela não era a srta. Knight — Ellington disse, suavemente. — Aquela era eu.

— Você? — Harvey Mitchum disse severamente.

— Sim. Eu estava pregando uma peça na dona do mercado.

— Então você e este rapaz, Snicket, estavam nos enganando juntos?

— O sr. Snicket não sabia de nada disso — Ellington disse —, até se deparar comigo aqui.

Uma vez eu tive uma calça que me servia tão bem quanto a história de Ellington servia à verdade.

Ela caía assim que eu dava alguns passos.

— Então temo que você esteja presa — Mimi Mitchum disse duramente, e pegou Ellington pelo

braço. — Pregar peças é chamado de fraude, e fraude é crime.

— Isso não está certo — eu disse. — Vocês deveriam estar procurando a srta. Knight, e não

prendendo a srta. Feint.

— Não nos diga o que fazer — Harvey Mitchum disse rigidamente. — Esta garota esteve

envolvida em um roubo não faz muito tempo, e agora é culpada de fraude. Ainda é muito cedo para

tirar conclusões, mas eu não caria surpreso se ela estivesse envolvida em todas as outras travessuras

suspeitas que aconteceram no vilarejo.

— Como aquelas ameaças à biblioteca — Mimi disse.

— Ou aqueles melões roubados — seu marido disse.

— Ou o vidro quebrado naquele beco.

Harvey Mitchum olhou direto nos olhos verdes de Ellington Feint.

— Você está numa grande enrascada, mocinha. Provavelmente estará no próximo trem para a

cidade, onde será presa por seus crimes. Enquanto isso, nós a levaremos até a delegacia e a

manteremos trancafiada até que todos saibamos de tudo tim-tim por tim-tim.

Eu não gostava de pensar quanto tempo demoraria para que todos soubéssemos de tudo tim-tim

por tim-tim. Minha própria tutora ainda não sabia como arrumar o cabelo de forma aceitável, e ela

lidava com ele havia anos. Os policiais Mitchum marcharam com Ellington porta afora, e eu pus o

casaco e enfiei a Fera Ressonante embaixo do braço antes de segui-los.

— Que cobertorzinho bonito — Stewart murmurou para mim, apontando para as franjas azul-

claras.

— Fico feliz que você tenha gostado — disse a ele —, mas não está à venda.

— É uma pena que você não queira fazer negócios comigo — ele disse, me lançando um olhar

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muito sombrio. — Eu serei muito importante por aqui.

— Você já é — eu disse. — Você é o garoto mais adorável que este vilarejo já viu.

— Continue brincando — Stew disse. — Pode continuar brincando para ver aonde isso vai te levar.

— Acho que eu deveria ficar assustado — eu disse. — Você é bom com o estilingue.

O filho dos policiais se inclinou para perto de mim.

— E eu tenho um contato — murmurou — que é bom com a faca.

Pisquei os olhos e o enxerguei sob uma nova luz, uma frase que nesse contexto signi ca que eu já

não achava que ele fosse inofensivo. Dizem a todos nós para ignorar os valentões. É uma coisa que

ensinam a você, e podem ensinar qualquer coisa a você. Isso não quer dizer que você aprenda. Não

quer dizer que você acredite. Você jamais deve ignorar os valentões. Alguém tem de detê-los.

— Entra aí, Snicket — Harvey Mitchum disse, entrando no carro. Aparentemente era a vez dele de

dirigir. — Vamos dar uma carona a você e à sua tutora até a delegacia.

— Muito gentil de sua parte — eodora disse. — Lamento que meu jovenzinho tenha causado

tantos problemas.

Os adultos se amontoaram na frente do carro, e as crianças entraram atrás, porque é assim que o

mundo funciona. Stew en ou a cabeça para fora da janela e começou a sirenar, e Ellington cou

olhando xo para a frente, sem me dizer nada. Eu a deixei organizar seus pensamentos e quei

ouvindo os adultos. Como era difícil cuidar de crianças, eles diziam. Desobediência, eles diziam.

Autoridade. Uma idade difícil. Quando eram crianças, jamais teriam coragem de fazer o que as

crianças fazem hoje em dia sem pestanejar. Se seus avós estivessem vivos para ver, eles se revirariam

nas covas. Passei a ouvir o barulho da perua em vez daquilo. Fazia mais sentido.

Os Mitchum estacionaram, e nós atravessamos a grama, passando pela estátua que derreteu na

explosão. Subimos os degraus e entramos na delegacia, que parecia ainda menos impressionante do

que naquela manhã. Talvez porque naquela manhã eu tinha pensado que talvez a polícia fosse fazer a

coisa certa. Eles levaram Ellington Feint até o fundo da sala e a colocaram na cela. Eu a vi sentar na

cama, e Stew aproveitou a oportunidade para me chutar na panturrilha quando ninguém estava

vendo. Ele chutou com força. Eu desejei ter aquele girino mordedor por perto. Os adultos ainda

estavam balançando a cabeça falando sobre o triste estado da juventude atual, então fui até Ellington

e examinei sua situação.

— É uma fechadura de pinos bem vagabunda — eu disse a ela num sussurro discreto. — Você pode

arrombá-la com um de seus grampos de cabelo. Pense na fechadura como se ela fosse um pequeno

gaveteiro. Se você abrir todas as gavetas na altura certa, a fechadura vai abrir.

Ela assentiu discretamente com a cabeça.

— Não vou poder fazer isso — ela sussurrou de volta —, a menos que você os distraia.

— A polícia está atenta aos meus truques — eu disse —, mas vou tentar dar a eles um motivo real

para que saiam da delegacia. Enquanto isso, pelo menos você está segura.

— Qualquer coisa ficará segura — ela disse — se estiver trancada aqui.

Dei um passo para trás, bem de leve. Ellington se levantou da cama.

— Dê para mim — ela disse. — É o melhor lugar pra ela.

— Venha comigo agora, Snicket — eodora me chamou. — Já zemos estes policiais arrancarem

os cabelos demais por nossa causa.

Era impossível não sorrir quando Theodora dizia a palavra “cabelos”. Ellington sorriu também.

— Ela vai perguntar a você o que é isso — ela disse.

— Ela não vai nem perceber — eu disse.

— Ela vai perceber.

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— Bom, daí eu conto pra ela.

— Você não vai contar pra ela.

Mas Theodora tinha me alcançado.

— O que é isso? — ela disse, franzindo o cenho ao ver o que eu estava segurando. Olhei para

Ellington Feint. Ellington Feint ficou me observando.

— É o meu cobertor de estimação — eu disse.

— Cobertor de estimação? — eodora repetiu, com a testa franzida. — Não seja bobo, Snicket.

Não é adequado que alguém da sua idade tenha um cobertor de estimação. Dê para mim.

— Eu pensei em dá-lo para a srta. Feint — eu disse —, caso ela se sinta muito sozinha.

— Estou me ensinando a não me importar — Ellington disse suavemente.

— Podem ensinar qualquer coisa a você — eu disse, e tirei a estatueta de baixo do braço. Mesmo

enrolada num cobertor infantil ela parecia sombria, e misteriosa, e até mesmo ameaçadora. Senti o

peso dela nas mãos enquanto a passava por entre as grades. Podem ensinar qualquer coisa a você. Não

quer dizer que você aprenda. Não quer dizer que você acredite. Eu mesmo não podia acreditar que

estava entregando a Fera Ressonante a Ellington Feint.

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10

Moxie estava me esperando do lado de fora da delegacia.Ela parecia zangada. Ela tinha até largado a máquina de escrever no chão, perto da porta da

biblioteca, para que pudesse cruzar os braços. Ela estava muito zangada.

— Não fique brava, Moxie.

— Eu estou brava — ela disse. — Fiquei sentada na biblioteca lendo sobre história militar por horas,

e quando fui mostrar a você o que tinha descoberto, você tinha saído de fininho.

Theodora pôs a mão firme sobre o meu ombro.

— “Sair de ninho” não é adequado — ela disse a Moxie. — O termo correto é “esgueirar-se”. E

não me surpreende que Snicket a tenha decepcionado, quem quer que você seja.

Moxie desviou os olhos de mim para minha tutora, e então tocou a aba de seu chapéu.

— Sou Moxie Mallahan — ela disse, entregando um de seus cartões a eodora. — As novas. Já nos

encontramos antes.

— Não estou interessada em discutir encontros imaginários — eodora disse, en ando,

distraída, o cartão de Moxie em seus cabelos. — Tive um dia muito cansativo. Resolvi um caso em

alguns minutos, mas então meu aprendiz passou a tarde mandando a polícia caçar agulha num

palheiro. A amiguinha dele foi presa, e estou pensando em colocá-lo novamente em período de

experiência.

Recentemente descobri a diferença entre estar no período de experiência e não estar no período de

experiência. A diferença é que, se eu estivesse no período de experiência, eodora poderia me

lembrar de que eu estava no período de experiência; e, se eu não estivesse no período de experiência,

eodora poderia me lembrar de que poderia me colocar de volta no período de experiência.

eodora me olhou de soslaio para ver o que eu tinha achado do que ela havia dito. Olhei para o

chão.

— Lamento saber disso, sra. Markson — disse Moxie, tentando não olhar muito para o cabelo de

eodora. — Uma pessoa com as suas quali cações não deveria se preocupar com aprendizes ineptos.

Se você resolveu um caso hoje, deveria estar comemorando, não disciplinando subalternos

problemáticos.

A voz de Theodora ficou levemente macia, como uma cebola velha.

— Concordo deveras — ela disse. — Talvez você seja mais inteligente do que eu havia pensado.

— É muito gentil de sua parte dizer isso — disse Moxie, educadamente.

— Snicket, dê uma sumida — Theodora disse. — Vou comemorar a resolução deste caso.

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— Ficarei de olho nele, sra. Markson — disse Moxie. — Assim a senhora não vai precisar arrancar

os seus…

Fiquei observando o rosto de Moxie enquanto ela fazia algo muito difícil. É mais difícil segurar

uma risada do que engolir um melão verde inteiro. Sua boca se retorceu para todos os lados, e seus

olhos ficaram se mexendo loucamente enquanto ela olhava para qualquer lugar, menos pra mim.

— Os seus cabelos, sra. Markson — ela finalmente encerrou. — Arrancar os seus cabelos.

eodora acenou para Moxie com a cabeça e desceu a escada a passos largos. Esperamos até que

fosse seguro cair na gargalhada, e então rimos juntos.

— Você tem uma voz educada muito boa — eu disse a ela.

— É muito gentil de sua parte dizer isso — ela repetiu. — Minha mãe dizia que uma boa voz

educada é a melhor arma de um jornalista, porque as pessoas cam mais suscetíveis a contar

informações importantes se você as trata bem. Ela tinha uma expressão para isso: “você pega mais

moscas com mel do que com vinagre”.

— De qualquer forma — eu disse —, você vai acabar cheio de moscas. Também foi sua mãe que

ensinou a você a expressão “subalternos problemáticos”?

— Meu pai costumava chamar todo mundo no jornal desse jeito, como uma piada — ela olhava

para o gramado, a estátua dani cada e o céu escurecendo. — Isso na época em que o jornal ainda

funcionava — ela disse —, e quando meu pai estava num clima piadista.

— É uma boa expressão — eu disse.

— Talvez você não seja um subalterno problemático, Snicket, mas ainda assim é problemático.

Você disse que nós éramos aliados, e depois saiu correndo da biblioteca sem me falar nada.

— Eu precisei seguir alguém.

— Eu teria ido com você.

— Eu continuo dizendo, Moxie: não quero colocar você em perigo.

Ela se abaixou e pegou a máquina de escrever.

— Eu sou uma jornalista, Snicket. Uma história perigosa é uma história interessante, e o lugar de

histórias interessantes é no jornal. Agora me conte tudo que aconteceu desde que você se esgueirou

para fora da biblioteca…

— Saí de fininho — eu disse, mas Moxie apenas sacudiu a cabeça.

— Quando você saiu? Quem você seguiu? Como você sabia que precisava seguir essa pessoa? Aonde

ela foi? O que você descobriu? Por que você não está me contando?

Sentei nos degraus.

— Vou contar — eu disse.

Ela abriu a máquina de escrever.

— Tudo — ela me lembrou.

Contei tudo a ela. Ela datilografava furiosamente, como se estivesse correndo atrás de alguma

coisa. Ela tirou o chapéu e coçou a testa, pensando.

— Então Ellington Feint ngiu ser Cleo Knight, para que Cleo pudesse permanecer no vilarejo e

terminar sua fórmula de tinta invisível.

— Mas a srta. Feint levou sua imitação de Cleo Knight até a Sociedade Desumana para car mais

perto de Tiro Furado e resgatar o pai.

— E, enquanto isso, Cleo foi sequestrada e ninguém viu ou ouviu mais nada sobre ela.

— Talvez alguém tenha — eu disse de repente. — Faminta?

— Sim, estou.

— Engraçado. Pensei em outra pessoa Faminta.

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— Não estou conseguindo acompanhá-lo, Snicket.

— Então me acompanhe, Moxie.

Moxie me acompanhou. Os últimos raios de sol desenhavam listras opacas no gramado. Os

contornos da estátua arruinada formavam uma sombra comprida e estranha.

— Você nem me perguntou o que eu descobri — disse Moxie.

— Eu achei que você estivesse brava demais para me contar.

Ela franziu a testa.

— Não gostei de ter sido deixada para trás na biblioteca, mas encontrei informações importantes.

Dashiell Qwerty deu uma passada para ver como eu estava e calhou de deixar um livro sobre a mesa

que se mostraria importante. Não é uma coincidência estranha?

— Talvez seja serendipidade — eu disse —, ou talvez exista alguma outra coisa.

— Sempre que converso com você fico com a sensação de que existe alguma outra coisa — Moxie me

disse. — Você está caçando mistérios, Snicket, mas você mesmo tem sido um mistério desde que

chegou ao vilarejo. Tenho a sensação de que você não está me contando alguma coisa, algum segredo

por baixo da superfície, como um túnel embaixo da terra.

Congelei.

— O que você descobriu, exatamente?

Moxie caminhou em direção aos restos da estátua e passou as mãos pelo metal frio e derretido.

— Lembra daquela foto que mostrei a você?

Concordei com a cabeça.

— Era a cerimônia de inauguração, todo mundo estava reunido para celebrar o primeiro dia de

trabalho para a construção da estátua em homenagem ao coronel Colofão.

— Nem todo mundo estava celebrando — disse Moxie. — O livro que Qwerty deixou na mesa

falava sobre o que aconteceu antes daquilo. Houve uma discussão acirrada sobre a estátua, e depois da

cerimônia de inauguração a discussão cou ainda mais acirrada. Havia pessoas que achavam que não

havia nada a ser celebrado, e que o coronel Colofão não devia ser homenageado por todo aquele

derramamento de sangue. A árvore que foi arrancada era lar das Traças Comedoras-de-polpa de

Farnsworth, e as pessoas caram zangadas por ninguém ter pensado no que aconteceria àquelas

criaturas raras e ameaçadas de extinção. No começo havia poucas pessoas pensando desse jeito, mas

elas começaram a criar confusão. Até fundaram uma espécie de sociedade criadora de confusão.

— A Sociedade Desumana — eu disse.

Moxie piscou para mim.

— Eu sabia — ela disse. — Eu sabia que você saberia.

— Na verdade eu não sabia — eu disse. — Adivinhei.

— Você é um bom adivinhador.

— Tenho bons aliados.

Chegamos à porta do Faminto’s, e eu a segurei para Moxie, que se sentou imediatamente no balcão

e datilografou algumas linhas. Juca e Chico olharam ao redor para ver de onde vinha o som e

acenaram para nós, e Jake Hix nos saudou do fogão, onde estava parado fritando alguma coisa, com

uma espátula na mão.

— Você terminou aquele livro de mistério? — perguntei a ele.

— Ainda não — Jake disse.

— Bem, talvez você possa ajudar com o meu mistério.

Jake escorregou o que tinha sido frito para dois pratos e depois os polvilhou com um moedor de

pimenta.

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— Deixa só eu servir isso aqui e já venho falar com você — ele disse.

— O que você está preparando?

— Ovo na cesta. Deixa eu fazer um pra você.

— Pra mim também, Jake — disse Moxie, sem tirar os olhos de suas anotações.

Jake sorriu pra ela e levou o jantar dos irmãos Belerofonte.

— Pode deixar, Moxie. Faz um tempo que não a vejo por aqui. Como você está?

— Ocupada — disse Moxie, e continuou datilografando, enquanto Jake voltou ao trabalho

jogando outro cubo de manteiga numa frigideira quente.

— Me diga — eu disse ao Juca —, por que você não mencionou que levou Ellington Feint no táxi

outro dia?

— Você não perguntou — Juca disse, com a boca cheia.

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— Você só perguntou sobre Cleo Knight — Chico disse.

Jake franziu a testa olhando para a manteiga.

— Se é por isso que você está aqui, talvez eu não queira falar com você no nal das contas,

Snicket — ele me disse. — Já te disse que não falo sobre os meus clientes.

— Você é bom em guardar segredos — eu disse —, mas poderia ser melhor. Você cometeu um

deslize. Você disse que não a conhecia muito bem, e depois a chamou de Cleo. Todo mundo a chama

de srta. Knight. Até mesmo os pais dela. Vocês deviam ser amigos muito próximos para chamá-la de

Cleo.

Jake cou em silêncio por um minuto. Ele cortou dois nacos grandes de pão e fez um furo em cada

um deles, bem no meio, e depois jogou os nacos na panela fumegante junto com um punhado de

espinafre e alguns cogumelos. Ele estava com dois ovos prontos para serem quebrados, e ainda não

tinha olhado para mim. Ovo na cesta é preparado fritando um ovo num buraco bem no meio de uma

fatia de pão. É como se uma torrada e um ovo frito estivessem dançando, e o espinafre e os cogumelos

tocassem a música. Ele estava chateado comigo, mas mesmo assim estava preparando meu jantar. Jake

Hix era uma pessoa digna.

— Não somos amigos — ele disse baixinho, nalmente. — Somos namorados, o.k.? Vá em frente e

ria se quiser.

— Eu nunca rio da vida amorosa de um homem — eu disse. — Isso só diz respeito a ele.

— Bem, a família Knight não pensa desse jeito — ele disse. — Eles não acham adequado que um

lavador de pratos como eu se envolva com uma química brilhante.

— Uma química e um cozinheiro fazem basicamente a mesma coisa — eu disse. — No m das

contas tudo se resume a misturar e aquecer alguns elementos básicos.

Juca apontou para o seu jantar com o garfo.

— Então devo dizer que você é um químico brilhante, Hix.

Jake sorriu e tampou a panela.

— Bem, o sr. e a sra. Knight zeram tanto escândalo que Cleo e eu tivemos que manter tudo em

segredo. Mas agora que os Knight deixaram o vilarejo, não há motivo para continuarmos nos

escondendo.

— Isso quer dizer que posso publicar? — Moxie perguntou, com os dedos a postos sobre as teclas da

máquina de escrever.

— Claro — Jake disse. Ele secou as mãos numa toalha e a jogou por cima do ombro. — Cleo está

escondida, trabalhando num grande experimento. Quando ela terminar, Manchado-pelo-mar será

novamente um vilarejo de verdade, e nós vamos nos casar.

— Temo que não seja bem assim — eu disse.

— Claro que é — Jake disse. — Cleo fez um acordo com uma garota. Elas pintaram o cabelo da

menina e a vestiram com as mesmas roupas de Cleo, para que qualquer um que fosse procurar por ela

seguisse uma pista falsa. Desculpe, Snicket, mas você está pegando o bonde errado.

— Eu peguei o bonde errado, mas acabei encontrando outra pessoa que estava procurando — eu

disse. — Escuta, Jake. Cleo ligou para você?

Jake balançou a cabeça.

— Ela disse que talvez demorasse um pouco — ele falou. — Mas não estou nervoso quanto a isso.

Cleo não tem medo de nada, exceto de altura e de não terminar sua fórmula.

Olhei para ele e fiz a pergunta que está na capa deste livro.

— Na manhã de ontem, bem aqui fora do restaurante — Jake disse, apontando com a espátula. Ele

destampou a panela, e o vapor subiu até o seu rosto. — Ela tomou chá aqui, e depois entrou no

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Dilema e saiu dirigindo. Foi como eu te disse da outra vez, Snicket. Só não tinha dito tudo.

Ele serviu os ovos na cesta, primeiro para Moxie e depois para mim. Eu sabia que eles estariam

deliciosos, mas não queria comê-los. Eu não queria estar no Faminto’s dando as más notícias a Jake

Hix.

— O Dilema de Cleo Knight está estacionado a uma quadra daqui, com um pneu furado — eu

disse. — Ela foi pega pelo boticário da família, Hix.

Jake Hix ficou branco.

— Não — ele disse. — Agora é você que não está dizendo a verdade, Snicket.

— Temo que esteja — eu disse. — Acho que ela está nas garras de um médico chamado

Flammarion e de um vilão chamado Tiro Furado. Ela deve estar na Clínica Colofão. — Olhei para

Juca e Chico, sentados no balcão. — Eu agradeceria se vocês pudessem dar uma carona — eu

disse —, para que possamos trazê-la de volta.

— Mas é claro — Juca disse. — Vamos lá.

Todo mundo se levantou do balcão, e Jake Hix jogou a toalha no chão e virou uma placa na janela

indicando FECHADO.

— Por que você não me disse antes, Snicket? — ele perguntou. — Por que você me deixou car

tagarelando enquanto minha namorada estava em perigo?

— Desculpe — eu disse. — Eu precisava ter certeza.

— Certeza de quê?

— Certeza de que eu poderia confiar em você — eu disse. — Você já mentiu para mim antes.

— É claro que você pode confiar em mim — disse Jake Hix. — Nós lemos os mesmos livros.

— Vai ter lugar pra todo mundo no táxi? — Moxie perguntou, fechando a máquina de escrever em

sua maleta.

— Se nos apertarmos — chiou o Chico.

Jake balançou a cabeça.

— Vou com o Dilema — ele disse. — Só vou precisar de um segundo para trocar o pneu. Encontro

vocês na Clínica Colofão.

— Você vai encontrar dois melões embaixo do carro — eu disse. — Eu caria grato se você os

devolvesse ao Comidas Incompletas.

Jake estava tão preocupado que nem me perguntou por quê. Em um segundo estávamos do lado de

fora e ele virava a esquina correndo em direção ao carro de Cleo. Estava cando frio. Havia um vento

inconstante, e aqui e ali eu podia ver papéis brancos voando para cá e para lá e para cá de novo. Eles

pareciam plantas secas que haviam se soltado das raízes, deixando o vento levá-las para qualquer lugar.

Eu tinha visto isso uma vez numa viagem às montanhas com meus pais. Bolas de feno. Mas naquele

caso eram os cartazes sobre o sumiço de Cleo Knight sendo levados pelo vento. DESAPARECIDA. “Se não

a encontrarmos logo”, pensei, “ela estará perdida para sempre.”

Moxie se virou para mim quando estávamos entrando no táxi.

— Você tem certeza de que pode confiar em mim, Snicket?

— Claro que tenho — eu disse —, e isso também vale pra vocês dois aí na frente.

— Muito agradecido — Chico disse. Ele quis dizer “obrigado”, e seu irmão disse do jeito

tradicional.

— Se você con a em mim — disse Moxie —, por que eu tenho a sensação de que existem coisas

que você não está me contando?

— Existem coisas que você não está me contando também — eu disse. — Existem coisas que

ninguém está contando pra ninguém.

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Isso encerrou a conversa. O táxi saiu chacoalhando pelas ruas e depois pegou uma longa estrada

reta que levava para fora do vilarejo. Continuei olhando para a frente. Ninguém falava. Os irmãos

Belerofonte nem ao menos pediram uma dica. Se eles tivessem pedido, eu teria falado sobre o livro em

que estava pensando durante o trajeto. Era um livro sobre uma garota chamada Kit que ganha

reputação como bruxa. Isso a mete num monte de encrencas, mas ela acaba encontrando alguém em

quem pode con ar. O nome dele é Nathaniel, e ele batiza um navio em homenagem a ela. O navio se

chama A Bruxa, mas não consigo lembrar o nome do autor. Também não queria pensar em alguém

que havia gostado desse livro mais do que eu, alguém cujo nome também era Kit. Ela e eu tínhamos

algo em comum exatamente naquele momento. Ambos estávamos indo para o lugar errado, um lugar

escuro e enorme que parecia que ia engolir a todos nós. No meu caso eram portões altos de ferro,

muito mais altos e ameaçadores do que os portões normalmente precisam ser. Em um dos portões

estava escrito CLÍNICA, e no outro, COLOFÃO. Os portões já estavam abertos, escancarados, como o

abraço de alguém que você não gosta. Atravessamos os portões. Era noite, e os portões se fecharam

atrás de nós com um barulho profundo assim que passamos por eles, como se não fossem altos e

ameaçadores para manter as pessoas do lado de fora, e sim para mantê-las do lado de dentro.

Os irmãos Belerofonte pararam o táxi. Fazia um silêncio mortal. “No caso da minha irmã,

provavelmente é pior”, eu disse a mim mesmo, “mas você acha que ela está tão assustada quanto você?

O que você acha, Snicket? Você acha que pode ser tão corajoso quanto ela?” Eu não me sentia

corajoso. Olhei para o escuro da noite, onde todas as minhas perguntas talvez pudessem ser

respondidas, mas os calafrios na minha espinha diziam que eu estava muito longe de ser corajoso o

bastante.

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11

A Clínica Colofão não precisava ter uma aparência perversa para ser um lugar perverso, mas ela

tinha. Era feita de pedra negra, com algumas janelas pequenas e estreitas cortadas aqui e ali, como se

alguém tivesse usado uma faca pelo prédio. Para chegar à porta da frente, era preciso subir um lance

de escadas quebradas, com musgo escorregadio e negro crescendo nas rachaduras. Havia uma torre

cravada no topo, muito alta e muito na, com telhas a adas cobrindo todo o telhado. Não sei por que

lugares perversos geralmente parecem perversos. Você poderia imaginar que eles seriam bonitos, para

enganar as pessoas, mas raramente são. Até o céu estava ajudando, já que parecia que ia chover. Até os

arbustos, e até as ores dos arbustos pareciam querer machucar alguém. Juca cou olhando o lugar,

desconfiado, através do para-brisa.

— Isso não parece bom, Snicket.

— Não, não parece — eu disse. — Você pode me deixar aqui na entrada dos carros. Vejo vocês

depois, no vilarejo.

— Ah, claro, vou deixar você sair — disse Juca. — “Vejo vocês depois, no vilarejo”, ele diz. Com

certeza vamos deixar você num lugar como este e ver você depois, no vilarejo. Claro, isso é uma coisa

que caras legais como meu irmão e eu faríamos. Não tem nada de errado em deixar um cara sozinho

num lugar perigoso. Talvez no caminho de volta a gente consiga encontrar um cachorrinho para

atropelar, já que somos caras tão legais.

— Nós vamos car aqui, Snicket — Chico traduziu, escalando o banco para sentar ao lado do

irmão. — Os portões se fecharam atrás de nós, de qualquer forma.

— E você sabe que não vai se livrar de mim — disse Moxie.

— Você me dá a impressão de que eu poderia convencê-la a sair dessa — eu disse.

Ela sorriu e franziu a testa e balançou a cabeça.

— O que vamos encontrar lá dentro? — Juca perguntou.

— Não faço ideia — admiti. — Talvez Cleo Knight. Talvez o dr. Flammarion e suas agulhas e a

enfermeira Martíria e suas facas e talvez a Sociedade Desumana inteira acompanhada por um bando

de hienas ferozes treinadas. Nós não saberemos até entrar.

— Você não é muito detetive, não é?

— Não sou nem um pouco detetive — eu disse. Isso era uma coisa que eles repetiam várias e várias

vezes, ao longo de nossa infância, desde o dia em que começamos a entender o que as palavras

signi cavam até o dia em que nos formamos e fomos soltos no mundo. — Parece que estou

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resolvendo mistérios, mas não estou. Só estou metendo meu nariz onde não sou chamado. O que nós

fazemos, meus aliados e eu, é como vagar entre as prateleiras de uma biblioteca. Na verdade nós não

sabemos o que vamos encontrar. Só esperamos que seja útil.

— É uma profissão estranha — Juca disse.

— Está mais para uma ocupação.

— Então é uma ocupação estranha.

— De fato, às vezes é difícil encontrar voluntários.

— Por que alguém se ofereceria para fazer algo desse tipo?

— Por que você dirige esse táxi?

— Você sabe por que, Snicket — Chico disse. — Nós fazemos isso porque nosso pai está doente e

não pode fazer por conta própria.

— Eu faço o que faço basicamente pelo mesmo motivo.

— Não entendi — disse Moxie, calmamente.

Esfreguei as mãos na calça, como se quisesse me livrar de algo preso em mim.

— Quem mais iria fazer? — eu disse. — Mãos à obra. Eles fecharam os portões, o que signi ca que

nos viram chegando. Mas eles não sabem quantos nós somos. Seria idiota entrarmos todos juntos.

Quem tem um relógio?

— Eu estou com o relógio do meu pai — disse Moxie, puxando a manga para me mostrar.

— Também estou com o relógio do meu pai — Chico disse.

— Moxie e eu vamos entrar juntos — eu disse. — Esperem dez minutos e então entrem também.

Peçam o dinheiro pela corrida até aqui. De um jeito barulhento e grosseiro. O.k.?

— O.k. — disse Juca.

— É melhor sincronizarmos nossos relógios — disse Moxie, colocando seu pulso perto do pulso de

Juca. Eles ajustaram os relógios para que estivessem exatamente na mesma hora.

— Faltam exatamente três minutos para as oito horas — ela disse —, agora.

— Sete minutos depois das oito, conte com os irmãos Belerofonte — Juca disse.

— Fiquem frios até lá — eu disse, e saí do carro. A chuva derramava suas primeiras gotas. Moxie e

eu começamos a subir os degraus. Eu me lembrei de uma lição que tive, e fui até os arbustos e peguei

um bom punhado de flores.

— Você tem uma fita, Moxie?

— O quê?

— Uma fita de cabelo, um pedaço de barbante, qualquer coisa desse tipo?

— Tenho a ta da máquina de escrever — disse Moxie, gesticulando em direção à maleta —, mas

não posso datilografar sem ela, e essas fitas são muito difíceis de encontrar no vilarejo.

— Então deixa pra lá — eu disse. Segurei as ores formando um buquê grosseiro. Talvez enganasse

alguém, talvez não. Eu estava bem vestido o su ciente. Subimos os degraus. Um dos meus pés

derrapou numa trilha de musgo escorregadio, deixando um cheiro de sujeira no meu sapato. Uma

gota de chuva atingiu o musgo e ferveu. Nunca tinha visto chuva fervilhar no musgo. Aquilo me fez

parar.

Moxie pegou meu braço.

— Vamos — ela disse. — Lembra o que você me disse lá na mansão dos Sallis? Fique assustado

depois, Snicket.

As portas eram pesadas e de vidro, e foi preciso juntar a força de nós dois para abrir uma delas.

Então entramos em uma grande sala, cheia de janelas fazendo o melhor que podiam para manter o

ambiente iluminado e arejado. Elas estavam fazendo um péssimo trabalho. Havia alguns sofás caros

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para sentar, e aqui e ali havia quadros do tipo que as pessoas diziam que os lhos de cinco anos

poderiam ter pintado. Crianças sombrias de cinco anos, nesse caso. No meio da sala havia uma mesa

grande cheia de papéis empilhados, e sentada à mesa, com as mãos cruzadas, estava a enfermeira

Martíria. Ela olhou bem para nós e seus dedos se agitaram. Não gostei daquilo. Nunca na minha vida

eu tinha gostado de uma recepcionista.

— Pois não? — ela disse.

— Entrega — eu disse. — Flores para… — Fiz uma cena olhando para uma etiqueta que não

existia. — Coronel Colão?

— Coronel Colofão — a enfermeira Martíria corrigiu.

— Coronel Colofão.

— Não tem ninguém com esse nome na Clínica Colofão.

— Se não tem ninguém com esse nome na Clínica Colofão, como você sabia que era este o nome

que eu queria dizer?

— Deixe as flores aqui e saia. Eu as entregarei ao Colofão.

Balancei a cabeça.

— Preciso entregar estas flores diretamente ao coronel.

O rosto da enfermeira Martíria ficou vermelho.

— Não me provoque — ela disse. — A polícia foi avisada no momento em que você entrou de carro

em nosso terreno. Esta é uma propriedade particular.

— Bem, estas são flores particulares.

Moxie pôs a mão no meu ombro.

— Sinto muito — ela disse à enfermeira, em sua melhor voz educada. — Uma pessoa com as suas

quali cações não deveria se preocupar com subalternos problemáticos. Se você puder apenas deixar

meu aliado entregar estas flores… Prometo que depois o disciplinarei severamente.

A enfermeira Martíria se levantou. Ela ainda estava usando seu casaco branco, e uma de suas mãos

deslizou para dentro do bolso.

— Eu o levarei pessoalmente até o coronel — ela disse —, embora eu não possa garantir que ele

ficará feliz em receber uma visita.

— Vou car aqui — disse Moxie, e colocou a maleta sobre a mesa robusta, entre duas grandes

pilhas de papel. — Não se apresse. Tenho certeza de que posso encontrar algo interessante para ler.

A enfermeira Martíria tirou a mão do bolso e a colocou em cima de uma das pilhas de papel. Olhei

para a folha que estava no topo. Eu a reconheci. Eu a reconheci de um pequeno chalé perto do mar,

quando Manchado-pelo-mar tinha mar, e de um apartamento surrado em cima de uma loja de

aquários abandonada. Eram os papéis de Ellington Feint, o relato escrito de sua busca por seu pai. Eles

eram importantes para Ellington e agora estavam nas mãos de um dos aliados do Tiro Furado. A

enfermeira olhou dos papéis para mim e depois para Moxie. Não conseguia evitar me sentir mal por

ela, pelo menos um pouquinho. Tinham dito a ela que cuidasse para não deixar ninguém entrar no

prédio, e para que ninguém pegasse os papéis sobre a mesa. Ela não podia fazer as duas coisas.

— Posso encontrar o caminho sozinho — eu disse. A enfermeira Martíria não respondeu, mas

manteve os olhos em Moxie. “Essa é a parte perigosa”, eu quis dizer a ela. “É por causa disso que eu

não queria que você viesse junto.” Mas a jornalista parecia tranquila. Ela estava abrindo a máquina de

escrever e parou apenas para dar tapinhas com o dedo no relógio, enquanto eu passava pela mesa e

virava num canto para começar minha exploração pela clínica. Ela estava certa. Provavelmente não

havia muito tempo. Eu não tinha relógio. Tudo que meu pai havia me dado eu tinha deixado numa

estação de trem algum tempo atrás.

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Um jeito de marcar o tempo, se você não tiver um relógio, é assobiar ou cantarolar uma música que

você sabe de cor. Se a música tiver cinco minutos de duração, quando chegar ao m cinco minutos

terão se passado. É claro que você precisa saber quanto tempo dura a música. Eu não sabia quanto

tempo aquela durava. Nem sequer sabia como se chamava. Mas eu sabia de cor, por tê-la ouvido na

vitrola antiga de Ellington e na caixinha de música que seu pai havia deixado para trás. Eu gostava

daquela música. Era uma boa companhia.

Uma clínica é muito parecida com um hospital, e alguma coisa está errada quando um hospital está

vazio. Quando deixei a mesa para trás, me vi num corredor que parecia uma pintura de um corredor.

Não havia ninguém ali — nem médicos, nem pacientes, nem ninguém visitando algum doente.

Havia um cheiro de limpeza no ar, mas não era agradável. Alguém havia lavado tudo, e depois o lugar

todo havia sido pintado. Uma cadeira de rodas vazia estava encostada numa das paredes, e algumas

portas estavam abertas. Eu não ouvia nenhum barulho. Olhei pela primeira porta e vi uma cama

pequena. Não gostei daquilo. Era um quarto de hospital comum, mas a cama era pequena demais. Eu

caberia nela, mas não seria confortável. Não havia mais nada no quarto além de uma coisa metálica

no chão. Do corredor parecia uma cobra enrolada numa das pernas da cama.

Eu me aproximei. Era uma corrente, grossa e fria quando segurei nas mãos. Uma das pontas estava

presa à cama e o resto estava enrolado no chão, terminando numa forma metálica encurvada. Parecia

com a letra O, articulada para que pudesse se transformar na letra C. Eu a abri e fechei, abri e fechei.

Dispositivos desse tipo são chamados de manilha. É uma palavra antiga, mas isso não signi ca que as

pessoas não usem mais geringonças desse tipo.

— Não sei o que eu estava esperando — eu disse —, mas não estava esperando por isso.

A manilha não me respondeu. Recomecei a assobiar a música.

Nos três quartos seguintes foi a mesma história, e não era uma história de que eu gostava. Como um

túnel embaixo da terra, Moxie havia dito, e pensei na minha irmã, que também caminhava sozinha por

um lugar vazio. O corredor fazia curvas para cá e para lá, e todos os quartos pareciam idênticos. Meus

sapatos sujaram um pouco o piso limpo, marcando minha trajetória com manchas de musgo negro.

Finalmente cheguei a uma sala grande e espaçosa. As janelas altas, que iam do teto até o tapete, me

diziam que aqueles eram os fundos da clínica, e eu podia ver algumas árvores grandes próximas,

balançando um pouco na chuva e derrubando folhas na piscina, com seu banco escuro de madeira que

reconheci de uma fotogra a. Nos fundos da sala havia o começo de uma escada em caracol, um

degrau estreito de metal após o outro, levando até o topo da torre. Cleo Knight tinha medo de altura,

lembrei. Eles a puseram na torre.

Se parece que existe alguma coisa que não estou dizendo, alguma coisa sobre a sala, é porque existe

mesmo. A sala tinha três mesas muito compridas, ladeadas por bancos muito compridos. Em cima das

mesas havia retângulos de vidro compridos. Fiquei olhando por alguns segundos. Então os reconheci.

Tanques de peixe, vindos da loja de aquários. E posicionadas a intervalos regulares estavam as

mesmas correntes, com as mesmas formas e dobradiças pesadas, que eu tinha visto presas às pequenas

camas.

Eles os acorrentariam às mesas. E os acorrentariam às camas. Ainda não havia ninguém ali, mas

tudo estava pronto para a chegada de crianças na Clínica Colofão, que se tornariam prisioneiras da

Sociedade Desumana. A chuva batia nas janelas, e eu subi a escada. Ela era mais estreita do que eu

imaginava, muito mais estreita. Era como escalar um canudinho. Meus sapatos faziam muito barulho,

e o meu assobio ecoava escada acima. Continuei assobiando. Por que não? Se houvesse alguém ali,

saberia que eu estava chegando.

Então ouvi uma voz vinda do topo, chamando por alguém. Parei de repente.

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— Ellington? — Era a voz de um homem.

— Sr. Feint? — chamei. — Armstrong Feint?

Andei rápido, subindo mais adiante nas escadas. Meus passos faziam uma barulheira. Era verdade.

Aquilo não tinha nada a ver com resolver um mistério. Eu nem sequer estava fazendo o que deveria

estar fazendo. Eu deveria estar celebrando o m do caso com minha tutora na Suíte Extremo Oriente.

Eu deveria estar nas profundezas da cidade, andando rápida e silenciosamente através de um túnel

secreto, ou talvez eu já devesse estar no museu com o objeto nas mãos, acompanhando minha irmã

até a saída, que também era secreta. Eu não devia estar ali. Ninguém achava que Lemony Snicket

devia estar subindo a escada da Clínica Colofão, na periferia de Manchado-pelo-mar. O que eu estava

fazendo era imprudente. Era arriscado. Era perigoso. Era a coisa certa a fazer. Ninguém devia ser

acorrentado a coisa alguma.

— Sr. Feint? — chamei novamente. — Armstrong Feint?

Mas não era Armstrong Feint no quarto no topo da escada. Eu estava errado mais uma vez. Aquele

quarto era mais bonito e iluminado. Não tinha nada do clima de limpeza e abandono do resto da

clínica. Não tinha nada daquele cheiro de lavado. Era um lugar onde eu não me importaria de morar,

se eu pudesse levar alguns livros. Não havia nenhum ali, mas havia uma cama enorme de bronze,

cheia de colchas e cobertores e uma pilha de travesseiros que me fez sentir confortável só de olhar

para eles. Havia uma grande janela fechada por cortinas, e duas mesinhas, uma de cada lado da cama.

Uma estava lotada com prato pequeno com farelos de pão e um guardanapo e uma vela e uma taça de

vinho e a garrafa de onde ele veio. A outra não tinha nada em cima, o que pareceu estranho. Um dia

provavelmente alguma coisa esteve em cima dela. O resto do quarto era ocupado por uma grande

lareira de tijolos que deixava tudo laranja. Um belo fogo estava aceso, mas o quarto ainda estava frio.

Provavelmente não estava tão frio para o homem de pé ao lado do fogo, cutucando-o com um grande

espeto de ferro. Ele havia se levantado de uma poltrona grande e elegante, que combinava com uma

otomana — um móvel pequeno de madeira, com uma almofada vermelha redonda costurada em

cima — onde ele apoiava os pés. Ele vestia um uniforme militar que parecia velho, porém limpo. Era

cinza-escuro, e sobre o peito havia uma leira de medalhas e honrarias de diversos formatos e cores.

Mas em vez de sapatos ele calçava chinelos arredondados, e em todos os lugares em que deveria haver

pele — o rosto, o pescoço, as mãos — havia ataduras, enrolando todo seu corpo como uma múmia.

— Coronel Colofão — eu disse.

O coronel concordou com a cabeça de forma rígida e sentou na poltrona. Sua postura era ruim,

provavelmente por causa dos ferimentos. Ele empurrou a otomana para o lado e fez um gesto me

convidando a sentar.

— Achei que você fosse outra pessoa — ele disse, numa voz rouca e fraca que soou ainda mais fraca

através da fenda nas ataduras. — Não costumo receber muitas visitas.

— Estou aqui para lhe entregar estas ores — eu disse. Foi estranho acabar fazendo o que eu tinha

dito que iria fazer. Eu havia mentido, e agora era verdade.

O coronel pegou as flores com a mão enfaixada.

— Mas este não é o único motivo que te trouxe aqui — ele disse. — Conheço o olhar de um

rapazinho que tem uma pergunta na cabeça.

— A pergunta na minha cabeça — eu disse — é se você viu ou não uma jovem. O nome dela é Cleo

Knight, e ela é uma química brilhante.

— Como você deve saber — o coronel disse —, o homem que comanda esta clínica vem tentando

restaurar minha saúde há muito tempo. Ele contratou todo tipo de cientista para ajudá-lo ao longo

dos anos.

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— Não parece que o dr. Flammarion esteja trabalhando muito nisso ultimamente — eu disse. —

Esta clínica está completamente vazia.

Sua cabeça enfaixada assentiu lentamente.

— Esta clínica costumava ser um lugar movimentado — ele disse —, mas agora sou o único

paciente restante, e o dr. Flammarion precisou arrumar um emprego como boticário particular de

alguém.

— Ele está trabalhando para a família Knight — eu disse. — A lha dos Knight, Cleo, desapareceu,

e eu vim até aqui procurá-la.

— Entendo. Eu cheguei a ser útil para você?

— Você foi muito útil, coronel. Muitas coisas que pareciam sinistras agora têm explicações muito

simples. Mas você ainda não respondeu a minha pergunta, coronel Colofão. Cleo Knight esteve aqui?

Ele olhou para mim e depois para o fogo, e uma brisa gelada pareceu soprar pelo quarto.

— Sim — ele disse, nalmente. — Ela vinha aqui de tempos em tempos para estudar química com

o dr. Flammarion. Às vezes ela o ajudava quando ele testava algum tratamento novo para as minhas

queimaduras.

Fiz a pergunta uma última vez, aquela que está na capa deste livro.

— Ontem mesmo — o coronel respondeu. — Ela estava com o pneu furado e o dr. Flammarion deu

uma carona para ela até aqui, para que se despedisse de mim. Ela me contou que tinha cansado da

química e fugiria para se juntar ao circo. Entendeu, rapaz? Não há absolutamente nada sinistro

acontecendo. São apenas pessoas se mudando do vilarejo. Manchado-pelo-mar está sumindo e os

problemas estão sumindo junto com ele. Não há nada aqui com que você deva se preocupar.

Assenti com a cabeça.

— Essa é uma boa história — eu disse. — E responde a todas as perguntas que z a você. Mas acho

que eu estava fazendo as perguntas erradas, não é?

A fenda nas ataduras se franziu.

— O que você quer dizer?

— O que quero dizer é que eu deveria ter perguntado a você por que você disse aquele nome

quando eu estava subindo as escadas assobiando aquela música.

— Qual nome?

— Você sabe qual nome.

— Você deve ter me ouvido mal, rapaz.

— Você ouviu a música — eu disse — e pensou que sabia quem estava assobiando. Você estava

com medo de que uma certa garota nalmente o encontrasse. Você estava com medo de que ela

trouxesse o objeto que você pediu para ela roubar, de modo que você teria de libertar o pai dela.

— Não sei do que você está falando.

— Mas você não quer libertar Armstrong Feint — eu disse — ou Cleo Knight. Você e sua

sociedade ainda não conseguiram tudo que queriam com eles. Vocês têm um plano perverso.

O homem jogou as flores no fogo.

— Como você se atreve a me chamar de perverso? — ele rosnou com a voz rouca. — Sou um herói

de guerra.

— Você quase me fez acreditar que era — eu disse. — O coronel Colofão é abstêmio. Você devia

ter escondido aquela taça de vinho, Tiro Furado.

Então a voz dele mudou, depois que eu disse quem ele era. Aquela voz, se era a voz dele de verdade,

era muito, mas muito pior.

— “Abstêmio” é uma palavra muito so sticada para um rapazinho usar. Vamos testar um pouco

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mais o seu vocabulário? Você conhece a palavra “defenestração”?

Com um oreio, ele abriu as pesadas cortinas e o vento entrou com força. A janela havia sido

quebrada — não estilhaçada, mas havia um buraco grande e irregular no meio do vidro, mais ou

menos no formato de um homem. “Defenestração” é uma palavra que signi ca arremessar alguém

pela janela. Certamente aquilo tinha acontecido havia pouco. Tiro Furado envolveu meu pescoço

com os dedos enfaixados e me arrastou até o buraco irregular para que eu visse a chuva e as árvores e

as águas negras da piscina, onde o verdadeiro coronel Colofão havia caído. As águas estavam revoltas,

agitadas pela chuva como uma tempestade no mar.

— Escute — ele sussurrou no meu ouvido. — Escute com atenção, Snicket.

Entre o som da chuva e do vento batendo nas árvores, escutei outro som. Era uma espécie de ronco

ou zumbido. Tiro Furado me empurrou para mais perto da janela, e lutei contra ele. Foi uma dança

tensa. Meu pé cheio de musgo escorregava no carpete, e, quando minhas mãos seguraram o casaco

dele, uma medalha espetou meu dedo bem onde o girino havia me mordido. O som ficou mais alto.

— Você está ouvindo? — ele sussurrou.

— Dilema — consegui dizer.

— Não seja ridículo — ele disse. — Para mim não há dilema algum em destruir você, Snicket.

— Não é desse tipo de Dilema que estou falando —

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eu disse, e seus olhos se arregalaram por baixo das ataduras. Um dilema pode se referir a uma escolha

difícil, é claro, mas o som que eu tinha ouvido, por entre a chuva e o vento, era o motor de um

automóvel extravagante, do tipo que era possível bater contra a parede de um prédio e sair do outro

lado sem um amassado ou arranhão, mesmo que o prédio talvez desabasse. Eu já tinha ouvido aquilo

muitas vezes, mas nunca tinha visto ser posto à prova até aquela noite. O Dilema emergiu do meio

das árvores, derrapou em volta da piscina e bateu nos fundos da Clínica Colofão. Foi um espetáculo.

Como todo grande acidente, parecia errado de alguma maneira, como se fosse impossível que tivesse

mesmo acontecido. Mas tinha acontecido. Fez o teto tremer. Fez o prédio inteiro tremer. Fez uma

enorme rachadura se abrir na parede, com um barulho semelhante ao de uma perna se quebrando. Fez

o vilão cair no chão.

Eu me levantei, livre das garras do Tiro Furado. “Aí está ele”, pensei, “e aqui estou eu.” O vilão

cou de pé e se afastou de mim, em direção à janela fria e quebrada. Ele levou a mão até o rosto e

tirou de leve uma das ataduras. Não gostei de olhar para aquilo. Então Tiro Furado cou na ponta

dos pés e ergueu os braços acima da cabeça. Ele prendeu a ponta da atadura numa lasca de vidro

quebrado, como se estivesse pendurando um chapéu num cabide. Então abriu bem os braços e deu um

passo se afastando de mim, e depois mais um.

Em três passos ele tinha saído pela janela. A atadura foi se soltando enquanto ele caía, e quando me

debrucei para fora o vi segurando a atadura desenrolada, apoiando os pés no muro rachado da clínica,

para desacelerar e suavizar a queda. O prédio continuava tremendo e rachando. Estava muito escuro

para enxergar o rosto dele, é claro. Como todos os vilões, ele era covarde e não me encararia sem uma

máscara. Vi a silhueta turva de Tiro Furado soltar as ataduras e dar um pulo até o chão, aterrissando

na borda da piscina. As ataduras faziam um ruído suave conforme se desembrulhavam — o som que

uma aranha faria enquanto tece sua teia, se você estivesse perto o su ciente para escutá-lo. A água

espirrou, como se um dos sapatos dele tivesse caído dentro dela, ou talvez fosse alguma coisa saindo lá

de dentro. Não consegui ver. Ele parou por um momento e depois correu rapidamente na direção das

árvores. “Lá vai ele”, pensei, “e aqui está você. Você escapou das garras dele. Agora você precisa

resgatar todos os outros.”

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Ninguém estava atrás de mim, mas ainda assim desci as escadas correndo. O som da chuva foi

aumentando conforme eu corria, até que en m cheguei à sala com as várias mesas de madeira. As

mesas ainda estavam lá. Os bancos ainda estavam lá, e os tanques de peixe, e as manilhas. Mas onde

antes havia uma janela agora havia um automóvel maravilhoso, coberto de pingos de chuva

reluzentes, que acabou parando em meio a uma pilha de vidro quebrado. Eles estavam certos, os

fabricantes do Dilema. Nenhum amassado, nenhum arranhão. Mas Jake Hix, desa velando o cinto de

segurança e abrindo a porta do carro, parecia tão abalado quanto o prédio.

— Onde está minha namorada? — ele me perguntou, gritando em meio à chuva.

— Algumas pessoas estacionam seus carros — eu disse — e entram pela porta.

— A porta estava trancada — Jake disse. — Dava para ver que tinha gente se mexendo aqui dentro,

mas ninguém me deixava entrar. Havia um táxi estacionado na frente, mas não tinha ninguém

dentro. Onde ela está, Snicket?

Alguma coisa no prédio rangeu — o rangido de metal e tijolos prestes a ceder.

— Não consegui encontrá-la, mas ela está aqui em algum lugar.

— Como você sabe?

— Tiro Furado se empenhou muito para me fazer acreditar que não havia nada com que me

preocupar por aqui.

— Quem é Tiro Furado?

— Pense apenas que é alguém podre, Jake. Eu explico depois.

Por um momento pensei que Jake Hix tinha pensado em alguém tão podre que chegou a gritar.

Mas a boca de Jake estava fechada e preocupada. Os gritos vinham de outro lugar, abafados mas

frenéticos, com alguns baques no meio. Ele e eu nos entreolhamos e depois olhamos em volta, mas era

difícil dizer, em meio à chuva, de onde os gritos vinham.

É horrível. É uma sensação desgraçada saber que alguém precisa de ajuda e você não está ajudando.

Eu já havia escutado uma vez em Manchado-pelo-mar a pergunta “De onde estão vindo esses gritos?”,

e embora não fosse a pergunta errada, a resposta ainda era terrível.

Corri até o m da escada em caracol e olhei para cima, para onde eu estava antes. Os gritos não

vinham de lá. Jake foi pisando cuidadosamente por entre os estilhaços da janela e esquadrinhou a

chuva e as árvores e a piscina agitada. Sacudi a cabeça para ele e ele sacudiu a cabeça para mim, e

caminhamos na direção um do outro até chegarmos no meio da sala. De alguma forma, os gritos

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caram mais altos. “Mas a sala está vazia”, pensei. “Pense, Snicket. Jake Hix trabalha num restaurante,

mas você foi ensinado sobre o que fazer nessas situações.” Olhei para cima, mas vi apenas as vigas da

sala. Me inclinei para olhar debaixo das mesas, ainda que Tiro Furado não fosse capaz de esconder

uma garota gritando embaixo de uma mesa sem que ninguém percebesse do mesmo jeito que minha

irmã era capaz de esconder seu diário embaixo do travesseiro sem que ninguém percebesse. Mesmo

assim, os gritos caram mais altos quando olhei. Me ajoelhei no tapete, e eles caram ainda mais

altos. Eu não tinha reparado muito no tapete. Era vermelho sangue, com uma padronagem de

pequenos redemoinhos negros em colunas. Os redemoinhos, percebi, eram pequenos cavalos-

marinhos com dentes afiados e olhos perversos. Mesmo num tapete a Fera Ressonante era horrível.

Eu me levantei e comecei a empurrar uma das mesas.

— Me ajude a mover isso aqui — eu disse, e Jake entendeu imediatamente. Os gritos

continuaram, junto com alguns baques, enquanto empurrávamos a mesa o mais longe possível,

derrubando os bancos. Empurramos eles também. O tapete era muito grande, e tivemos de levar

rapidamente todos os móveis em direção às paredes. Tanques de peixe se espatifaram no chão. Não

nos importamos com nada que acontecia. Eu nunca tinha feito nada parecido e, mesmo sob aquelas

circunstâncias, foi meio divertido. Entendi melhor os valentões. Entendi por que você iria querer

ficar empurrando as coisas por aí sem se preocupar se estava causando algum tipo de dano.

Os gritos se tornaram bem nítidos agora. Socorro! era o que eles diziam.

— Aguenta aí, Cleo! — Jake gritou, com as mãos em concha em volta da boca. Chutamos mais

alguns bancos para um canto, e então o tapete cou livre, e Jake e eu o enrolamos juntos. O tapete era

grosso e não queria ser enrolado. Nós o enrolamos. Então sobrou apenas o piso de madeira, opaco e

empoeirado, com um enorme alçapão no meio. Era feito de metal, com raios circundando a borda, e

uma grande argola escura que se podia puxar para abri-lo. Sobre a argola havia duas iniciais gravadas

no metal. Gravar letras no metal leva muito tempo, e aquilo me deixou furioso. Me deixou furioso

porque eu sabia que a minha irmã provavelmente estava parada na frente de um alçapão com iniciais

gravadas, talvez naquele mesmo instante. Eram iniciais diferentes, mas ali, na sala chuvosa, com os

gritos e baques abaixo de nós, isso não importava. Parecia a mesma coisa. Adultos gravando iniciais

num alçapão e então o lacrando para ninguém descobrir segredos importantes, pessoas nobres, a

fórmula secreta que talvez salve o vilarejo. O alçapão era o problema, o alçapão com as iniciais SD de

“Sociedade Desumana” gravadas, e eu iria abri-lo.

Eu me ajoelhei e comecei a puxar, e Jake se ajoelhou e começou a puxar comigo. A argola era

grande o bastante para que nossas duas mãos e depois nossas quatro mãos a puxassem juntas. Era

como se estivéssemos puxando o planeta. Não se movia.

— Cleo! — Jake gritava de vez em quando, e os gritos continuavam. Socorro! Socorro! Alguém me

ajude! Eu não gritei nada. Tive medo de gritar o nome da minha irmã. Nós puxamos e puxamos e,

finalmente, Jake Hix me encarou.

— Não está se mexendo.

— Eu sei que não está se mexendo — eu disse. — Precisamos puxar com mais força.

— Talvez abra pelo lado de dentro.

— Não, a alça está aqui.

Jake olhou para mim e esfregou um pouco os olhos.

— Mas como você sabe que é possível, Snicket? Como você sabe que poderemos abrir?

— O Tiro Furado abriu — eu disse. — Nós precisamos abrir este alçapão, Jake. Precisamos abri-lo

agora.

— Minha tia sempre diz que, se você focar sua mente, pode fazer absolutamente qualquer coisa —

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Jake disse. — Isso é verdade?

— Não — eu disse. — Isso é besteira. Mas nós podemos abrir este alçapão. Vamos lá, Hix. Vou

contar até três.

Você nunca conta até sete antes de fazer uma coisa difícil. Nunca conta até dois. É sempre até três,

e isso é esquisito. Um, dois, três, e então Jake e eu puxamos a argola com muita força. Nossas mãos se

esforçaram juntas na tarefa, e nosso rosto se contorceu terrivelmente. Provavelmente parecíamos

ridículos, e provavelmente soávamos ridículos também. Mas ridículos ou não, íamos abrir aquele

alçapão. Parecer ridículo não importa quando você está entre pessoas que conhece e con a. Se você

está entre pessoas que conhece e con a, você não pode fazer absolutamente qualquer coisa. Disse isso

a mim mesmo e estava falando sério. “Mas você pode fazer isso, Snicket. Você pode abrir o alçapão e

resgatar a garota gritando.”

Mas não era a garota que estava gritando. O alçapão se abriu depois de um longo puxão;

simplesmente se abriu com um som estridente alto e nítido que retumbou em meus ouvidos. Foi tão

rápido que era como se o alçapão estivesse brincando sobre sua dificuldade de ser aberto. Jake e eu nos

entreolhamos com espanto e descemos apressados pelo alçapão, usando uma escada curta de metal

que nos levou até uma sala com teto baixo e alguém gritando dentro dela. O resto da sala era uma

mesa de laboratório comprida, repleta de todo tipo de equipamento cientí co. Havia tubos de ensaio

e recipientes borbulhantes. Havia caixas eletrônicas com luzes e botões, e lousas com equações

rabiscadas. E havia uma garota vários anos mais velha do que eu. Ela tinha o cabelo tão loiro que

parecia branco e óculos que faziam com que seus olhos parecessem muito pequenos. Ela estava

fazendo uma carranca, e esfregava um de seus pulsos, que parecia inchado e machucado. Eu pude ver,

enrolada em cima da mesa, outra manilha com a letra C bem aberta numa das pontas. Ela não estava

olhando para mim. Ela olhava para um canto da sala, para a pessoa que gritava. Era o dr. Flammarion,

tremendo e tropeçando, com medo da garota que fazia uma carranca para ele. E a garota era Cleo

Knight, é claro — a verdadeira Cleo Knight.

— Socorro! — gritou novamente o dr. Flammarion. — Alguém me ajude!

Jake correu para a namorada.

— Oi, Cleo — ele disse. — Senti saudades da minha srta. Knight. Estou feliz em ver você.

— Também estou feliz em ver você, Jake — Cleo disse, embora mal olhasse para ele. Seus olhos

estavam xos na gura tremulante do boticário. Ela se movia com calma, mas com calma até

demais. — Desculpe não ter entrado em contato com você antes — ela disse, numa voz calma e

equilibrada —, mas eu estava acorrentada num porão, sendo obrigada a continuar meus

experimentos. Eu estava pior do que a garota daquele livro, que vai viver com aquela família, os Reed,

e todo mundo é cruel com ela.

— É um livro maravilhoso — não pude evitar dizer, e a lembrei do título.

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— Esse cara é o Snicket — Jake disse. — Foi ele que descobriu que você tinha sido sequestrada, e

não apenas se escondido como havíamos planejado. Foi ele que descobriu que você estava presa aqui e

nos fez vir até aqui para buscá-la — ele olhou para os punhos dela e para a manilha. — Apesar de não

parecer que você precisava de alguém para resgatá-la, na verdade.

— Era uma fechadura de pinos bem vagabunda — ela disse, apontando para a manilha. — O

problema foi convencer Flammarion a me emprestar um grampo de cabelo. Mas é claro que eu

precisava que você viesse, Jake. Eu precisava que alguém abrisse esse alçapão. E precisava de alguém

para me ajudar a entregar este homem terrível à polícia.

O prédio gemeu de novo, e o dr. Flammarion se esgoelou mais uma vez pedindo ajuda, e agora

Cleo Knight já não estava calma. Em dois passos rápidos ela virou a mesa do laboratório, derrubando e

quebrando tudo no chão. Os vidros se estilhaçaram, os aparelhos elétricos se espatifaram e a poça de

um líquido chiou e ferveu no piso. Mas Cleo Knight não titubeou, um verbo usado para descrever a

reação usual que as pessoas têm quando ouvem um barulho muito alto ou presenciam uma

desventura. Eu não sabia o que esperava encontrar quando encontrei aquela química brilhante.

Suponho que eu tenha pensado que talvez ela fosse discreta e tímida, por causa de todo o tempo que

passou no quarto trabalhando numa fórmula de tinta invisível. Mas em vez disso ela continuava

caminhando na direção do homem que tremia no canto, e apontava para ele um dedo tão furioso

quanto o ferimento em seu pulso.

— Você é um monstro — ela dizia. Era uma voz irada, e uma voz calma, e aquilo me fez

titubear. — Você drogou meus pais até que eles não conseguissem mais pensar direito — ela disse. —

Você destruiu o bilhete que deixei para eles, Zada e Zora. Você vandalizou meu carro e me atraiu

para suas garras. Você me prendeu aqui embaixo e me fez trabalhar na tinta invisível para que pudesse

encher esta clínica de crianças e continuar suas maldades. Mas agora essa história acabou,

Flammarion. Você nunca vai pôr as mãos na minha fórmula, e não vou descansar enquanto

Manchado-pelo-mar não voltar a ser um vilarejo de verdade.

Quando eu tinha oito anos, um dos instrutores nos levou até um bosque onde passamos várias

noites. Um amigo meu capturou seu primeiro morcego, e meu irmão aprendeu que as vespas cam

irritadas rápido. Mas o que cou na minha cabeça foi uma lição que o instrutor me ensinou, a de que

um animal selvagem, quando acuado, pode se defender de forma repentina e desesperada. É por isso

que procuro não passar mais tempo ao ar livre do que o absolutamente necessário. O dr. Flammarion

parou de choramingar e se virou para todos nós, com um sorriso largo cheio de dentes sujos.

— Essa história não acabou — ele disse, e então, por algum motivo, olhou de forma sarcástica para

os meus sapatos sujos. — Você não tem ideia de onde se meteu. Você me chama de monstro, mas não

tem ideia dos monstros que estão por vir. Vocês jamais colocarão as mãos em Armstrong Feint. Jamais

colocarão as mãos em Tiro Furado. E antes que percebam, nós teremos nossa vingança contra seu

vilarejo abandonado e insigni cante. Agora saiam do meu caminho. Vocês são apenas um bando de

crianças insolentes, e eu sou um adulto com uma amiga boa com a faca, e estamos a quilômetros de

distância da polícia ou de qualquer outra pessoa que possa ajudá-los.

E então ouviu-se o som de uma sirene. Era um som maravilhoso, em meio à chuva, embora eu

soubesse que não era uma sirene de verdade, e nem uma pessoa maravilhosa fazendo aquele som. É

surpreendente quem você ca feliz em ver quando está num porão com um maluco. A sirene foi

cando mais alta e ouvi o barulho familiar da perua dos Mitchum. Cleo pegou um dos braços do dr.

Flammarion, e Jake Hix pegou o outro. Eles o arrastaram escada acima, e eu fui atrás. Parecia uma

cerimônia de casamento bizarra, cuja recepção estava sendo feita na sala de jantar destroçada, com o

vento e a chuva como convidados, os policiais Mitchum como rabino, e Stew Mitchum como a

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garotinha sarcástica que leva as ores, ao seguir os pais através da janela quebrada para nos

contemplar.

— O que é tudo isso? — Harvey Mitchum perguntou severamente.

— Isso — eu disse — é Cleo Knight. Ela planejava trabalhar em segredo numa fórmula importante.

E este é o dr. Flammarion, que a sequestrou para ter acesso a essa fórmula. Sua cúmplice, a enfermeira

Martíria, está por aqui em algum lugar. Ela foi provocada e pode ser perigosa.

Mimi Mitchum olhou para Cleo.

— É verdade? — ela perguntou.

— É claro que é verdade — Cleo disse, e empurrou Flammarion na direção dos policiais. —

Ninguém inventaria uma coisa dessas.

— Neste caso — Harvey disse severamente para o médico —, você estará no próximo trem para a

cidade, onde será preso pelos seus crimes.

— Minha vez — disse Mimi, rispidamente.

O marido franziu a testa para ela.

— O quê?

— Era a minha vez de fazer o discurso sobre estar no próximo trem para a cidade. Foi você que

disse para aquela garota Ellington.

— Mimi, que diferença isso faz?

— Se não faz diferença, então…

Um pedaço de gesso caiu do teto e se espatifou aos meus pés, e a Clínica Colofão deu mais um

rangido possante, como se também estivesse cansada dos Mitchum se alfinetando.

— Posso sugerir que saiamos daqui? — eu disse. — Este prédio pode desabar a qualquer momento.

Pela primeira vez os Mitchum não discutiram, e logo o dr. Flammarion era quem estava algemado,

en m. Ele cou olhando para o chão. Stew deu um sorriso sacana para ele. Corremos de volta pelos

corredores vazios da clínica até a porta da frente. Não gostei da ideia de que aquele médico corrupto

em breve seria companheiro de cela de Ellington. “Só que ela não está lá”, pensei. A polícia havia sido

atraída para longe e Ellington Feint já devia ter arrombado a fechadura de pinos e fugido para longe

da cadeia a essa altura. Pensei nela correndo pelo gramado, e pensei na estatueta que ela estaria

segurando. “Ainda vai demorar”, imaginei, e imaginei corretamente. “Ainda vai demorar para que

você a veja.” E de fato meu dedo estava completamente curado quando revi Ellington Feint, embora

outros problemas tivessem surgido.

Na entrada da casa, primeiro pareceu que os irmãos Belerofonte estavam montados num cavalo,

mas então percebi que estavam sentados sobre a enfermeira Martíria: Juca na metade de cima e Chico

na metade de baixo, segurando os braços e as pernas que se debatiam.

— Estamos felizes em ver você — Chico disse.

— Parece que vocês fizeram um bom trabalho — eu disse a ele.

Juca balançou a cabeça.

— Não se preocupe conosco. Preocupe-se com Moxie. Ela está ferida.

— Muito?

— Se não fosse muito, eu não teria mencionado.

Ele apontou com a cabeça para os fundos da sala, e corri na direção da garota deitada no chão. Seu

chapéu havia caído, e ela estava pálida e com os olhos fechados. Havia uma longa linha vermelha

descendo por seu braço, e levei um tempo para perceber que havia sido feita pela faca da enfermeira

Martíria. A arma estava no chão, ao lado da máquina de escrever de Moxie. Qualquer um que pensa

que a caneta é mais poderosa que a espada nunca foi golpeado pelas duas. Eu me ajoelhei ao seu lado

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e tentei não olhar para o ferimento.

— Moxie.

Os olhos dela se abriram entre piscadelas.

— Você tinha razão, Snicket — ela disse, dando um sorriso, e depois contraindo o rosto, e depois

franzindo a testa. — Esse trabalho é perigoso.

— Está doendo muito?

— Essa é a pergunta errada — ela disse, e fechou os olhos novamente. — A pergunta é: você pode

me salvar?

— Esta garota precisa de um hospital — eu disse aos outros.

— Este é o único hospital por aqui — Jake Hix disse, mas Cleo correu na direção de Moxie para

dar uma olhada.

— Ela vai car bem — a química disse com rmeza e, com um gesto ágil, arrancou uma das

mangas de sua camisa. Era uma camisa nova, dava para perceber, uma das muitas peças de grife

usadas pela lha da família mais rica do vilarejo. Agora era uma atadura, e Cleo a enrolou habilmente

em volta do braço de Moxie. — Veja o que você consegue encontrar nos quartos pelos quais

passamos — ela disse com firmeza ao namorado, e Jake saiu da sala apressado.

Moxie abriu os olhos.

— Você é Cleo Knight — ela disse, com a voz fraca. — O que o dr. Flammarion queria? Quem

estava por trás do plano de sequestrá-la? Quando nós vamos…

— Shh — Cleo disse.

— Esta é Moxie Mallahan — expliquei —, jornalista e minha aliada.

— Vou responder todas suas perguntas, Moxie — Cleo prometeu —, assim que dermos um jeito no

seu braço.

Houve uma lufada de vento gelado, e vi que os policiais Mitchum haviam aberto as portas da

frente da clínica. Stew Mitchum me deu uma encarada e depois desceu a escada, pulando os degraus

da maneira mais arrogante que pôde. Os policiais o seguiram, arrastando o dr. Flammarion e a

enfermeira Martíria, que agora também estava algemada.

— Parece que temos o culpado e o cúmplice — Harvey Mitchum me disse.

— O verdadeiro culpado não está aqui — eu disse. — Tiro Furado escapou pouco tempo atrás.

— Quem é Tiro Furado?

— Deixa pra lá — eu disse.

Mimi me encarou.

— Não diga ao meu marido para deixar pra lá.

— Eu lido com isso, Mimi.

— Do mesmo jeito que você lidou com a nossa vinda até aqui? Foi o percurso mais turbulento da

minha vida!

— Não reclame da minha pilotagem!

— Não reclame de mim!

— Será que vocês poderiam, por favor — a enfermeira Martíria disse —, nos levar para a cadeia

agora?

Os Mitchum escoltaram os criminosos porta afora, e a sala cou em silêncio. Juca e Chico

espanaram suas roupas e se levantaram para apertar minha mão.

— Agradeço pela ajuda — eu disse a eles —, embora precise pedir outro favor.

— É só dizer — Juca falou.

— Nos fundos do prédio há uma escada em caracol — eu disse. — No topo há uma sala com uma

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janela quebrada, e em algum lugar naquela sala está uma vitrola antiga. Estava numa mesinha de

cabeceira, mas Tiro Furado a escondeu um pouco antes de eu entrar. Por favor, levem ela, junto com

todos aqueles papéis sobre a mesa, para o Café Gato Negro e deixem no sótão. Tem um armário lá que

é maior do que parece.

Chico franziu a testa.

— Quem quer todas essas coisas? Algum outro aliado seu?

Moxie abriu os olhos e ficou me observando atentamente.

— Eu não a chamaria disso — eu disse, e então Jake Hix entrou correndo na sala com os braços

cheios de frascos.

— Estes são todos os remédios que consegui encontrar, Cleo — ele disse. Sua namorada pegou os

frascos e, depois de examinar rapidamente os rótulos, pegou dois e começou a misturar seus

conteúdos. Outro pedaço de gesso caiu no chão, e quei tentado a pedir a Cleo que se apressasse,

embora ela já estivesse se apressando.

— A Moxie vai ficar legal? — perguntei em vez disso.

— Vai levar uns dias até ela poder datilografar — Cleo disse, apontando para a máquina de

escrever com a cabeça —, mas ela vai car bem, Snicket. Me deixe trabalhar. Posso curar um corte. A

química é o ramo da ciência que lida com as substâncias elementares das quais todos os corpos e a

matéria são compostos.

— Eu nunca tinha achado interessante até agora — eu disse.

— Se tudo der certo, não vai demorar até que o vilarejo inteiro ache interessante.

— Você está muito perto de terminar a fórmula?

— Não sei — Cleo admitiu. Ela desenrolou a atadura e começou a passar sua mistura no corte de

Moxie. A jornalista fez uma careta, e me abaixei para segurar sua outra mão. Ninguém deveria sentir

dor sozinho. — Achei que estava perto de terminar algumas noites atrás e testei no meu quarto, mas

não funcionou.

— Eu sei. Eu mesmo testei.

— Bem, talvez minha sorte mude. Montei um laboratório num pequeno chalé bem onde o mar

costumava ficar.

— Colina dos Lenços?

— Esse mesmo. É um bom lugar. Alguns ingredientes de que preciso podem ser encontrados perto

da Ilha Distante, onde dá para chegar a pé a partir do chalé.

— Talvez a Guarda Costeira possa ajudá-la — eu disse. — Acho que são eles que tocam o sino

quando está na hora de vestir as máscaras.

— Eu tenho uma teoria — Cleo disse — de que o uso das máscaras não é por razões cientí cas.

Elas são apenas superstição, mais um mito de Manchado-pelo-mar que está desaparecendo.

— Como a Fera Ressonante — eu disse.

— Ou o coronel Colofão — Jake Hix disse. Ele devia ser um herói de guerra corajoso, mas acabou

se revelando um vilão.

Moxie sacudiu a cabeça.

— Tiro Furado é o vilão — ela disse. — O verdadeiro coronel Colofão deve estar em algum outro

lugar.

Eu abri a boca e não disse nada. Não havia motivo para mencionar a janela no quarto do Tiro

Furado, que já havia sido quebrada, ou a piscina de águas revoltas abaixo dela. Apenas fechei a boca e

franzi a testa olhando para Moxie, e Moxie franziu a testa para mim, e Cleo franziu a testa para o

braço de Moxie.

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— Tenho que terminar aquela fórmula — ela disse. — É um quebra-cabeça, mas tenho que resolvê-

lo. Tinta invisível que funcione de verdade poderia fazer da Tinta S.A. uma empresa de sucesso

novamente. Nós poderíamos salvar este vilarejo de todas as pessoas que querem nos destruir. Eu

mesma terei que fazer isso. Escrevi isso ao meu pai e à minha mãe, no meu bilhete. Eu os amo, mas

meus pais desistiram de fazer as coisas melhorarem.

— Assim como os meus — Jake disse, e os irmãos Belerofonte concordaram também. Até Moxie

balançou a cabeça concordando.

— Vocês vão precisar de ajuda — eu disse.

— Eu tenho ajuda — ela disse, sorrindo para Jake e depois para toda a sala. Era a primeira vez que

eu via Cleo Knight sorrir. Era um bom sorriso. Eu podia ver por que Jake havia se apaixonado pela

garota que lhe sorria. Juca e Chico acenaram para mim e deixaram a sala para juntar as coisas de

Ellington, e Jake foi buscar o Dilema. Todo mundo tinha alguma coisa para fazer. Comecei a descer

as escadas.

— Onde você está indo, Snicket? — A voz de Moxie estava tranquila, mas eu conseguia notar sua

curiosidade. Ser curioso é a parte mais importante de ser jornalista. Talvez seja a parte mais

importante de ser qualquer coisa.

— Tenho um trabalho a fazer — eu disse, e comecei a andar de volta para a cidade. Qualquer um

ali poderia ter me dado uma carona, mas eu queria ir andando, para poder pensar. Eu precisava fazer

um relatório para a minha tutora, mas o que, me perguntei, eu poderia relatar? O prédio rachava e

desabava atrás de mim. O que quer que Tiro Furado estivesse planejando, com aquelas mesas e

tanques de peixe e manilhas para crianças, não seria capaz de executar na Clínica Colofão. Mas suas

maldades não tinham chegado ao m. Elas se mudariam para algum outro lugar, algum lugar sombrio

e escondido, naquele vilarejo que tinha mais e mais lugares abandonados a cada minuto que passava.

Era um quebra-cabeça sombrio e solitário, e se eu era uma peça naquele quebra-cabeça, não sabia onde

entrar. Eu precisava ficar de lado, só por um tempinho, até que percebesse onde é que me encaixaria.

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13

Já havia passado da meia-noite quando entrei. Por um instante pareceu que a Suíte Extremo

Oriente estava coberta de confetes. Eu podia ouvir eodora roncando. Depois de todo aquele tempo

já era um som familiar para mim, mas não podia dizer que estivesse acostumado a ele. Pisei no

banheiro e acendi a luz e deixei uma fresta da porta aberta para que pudesse enxergar. A razão pela

qual parecia que o quarto estava coberto de confetes era porque ele estava coberto de confetes. Havia

algumas serpentinas penduradas nas paredes, e eu conseguia ver uma garrafa de champanhe dentro

de um balde de gelo. eodora estava dormindo em sua cama, com um chapéu de festa rosa-choque

meio de lado na cabeça. Ela havia caído no sono em meio a sua comemoração por ter resolvido o caso

de Cleo Knight.

Sentei na minha cama. Meus pés doíam da caminhada de volta ao vilarejo. Sobre a minha cama

estava o quadro de costume, com uma garotinha segurando um cão com a pata enfaixada. Tinha sido

um longo dia, e não me importo de contar que chorei um pouquinho. Não tem nada de errado em

chorar no m de um longo dia. Tentei ser discreto, mas eodora se sacudiu despertando, sentou na

cama e ficou olhando para mim.

— Você cortou o cabelo — ela disse.

Concordei com a cabeça e enxuguei os olhos. Eu já estava com o cabelo cortado da última vez que

ela havia me visto. Pelo menos agora ela tinha percebido.

— Onde você esteve? — ela perguntou. — Visitando sua amiguinha na cadeia?

— Ellington não está mais na cadeia — eu disse.

— O quê?

— Pelo menos eu acho que não.

Theodora levantou da cama em meio a uma nuvem de confetes. Tirou o chapéu e o jogou no chão.

— Isso é um desastre — ela disse. — Se o culpado escapou, então nós fracassamos, Snicket.

— Ellington Feint não é a culpada — eu disse. — Ela não tem nada a ver com o caso.

Isso era quase verdade, e Theodora quase acreditou.

— O que nós vamos fazer?

— Eu já fiz — eu disse. — Escreverei um relatório de manhã, e você pode assinar seu nome nele.

— Não sei se gosto do seu tom.

— Também não gosto, eodora. Mas é o tom certo para alguém que resolveu o mistério, mas

ainda está mistificado.

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— Me diga como você resolveu o mistério.

Encarei minha tutora, S. Theodora Markson.

— Me diga o que o S significa — eu disse.

— Mas que tom é esse? — ela disse, num tom daqueles. — Não é adequado, Snicket. Não seja bobo.

— Não serei bobo mais tarde — eu disse. — Agora quero dormir um pouco.

Mas ouviu-se uma batida na porta. E então, quando ninguém atendeu, outra batida.

— Sr. Snicket — veio a voz de Próspero Perdido. — Você tem uma jovem visita aguardando no

lobby.

— Só um minuto — eu disse, e ouvi os passos do proprietário voltando pelo corredor. Olhei para a

garotinha no quadro. Ela estava ocupada com o cão. eodora me deu uma olhada e depois voltou a

deitar na cama. De manhã, eu sabia, eu seria o responsável por varrer os confetes. Era parte do meu

trabalho como aprendiz. “Pode ser qualquer pessoa”, disse a mim mesmo. “Não há motivos, descendo

as escadas, para você pensar que é Ellington Feint esperando por você no lobby do Braços Perdidos.”

Como eu esperava, parada no meio da sala, logo abaixo da estátua da mulher sem braços, estava

outra pessoa.

— Não é sua culpa, Snicket — ele me disse logo de cara. Ele sempre teve a loso a de que não se

deve hesitar.

— O que foi? — perguntei a ele.

— Podemos conversar aqui?

— Não — eu disse. Eu nem precisava olhar para saber que Próspero Perdido estava por perto com

as orelhas em pé, uma expressão que neste contexto significa “ouvindo a nossa conversa”.

— Podemos dar uma volta, então?

Assenti. Meus pés doíam. O dia ainda não tinha acabado, nem mesmo depois da meia-noite.

Acompanhei meu aliado para fora do hotel e descemos a rua. Naturalmente, caminhamos em direção

à biblioteca, ainda que tenhamos parado no meio do gramado, onde a estátua arruinada reluzia sob o

luar. Eu podia ver as luzes acesas na delegacia de polícia, onde os policiais Mitchum estariam

discutindo para saber de quem era a culpa por Ellington ter fugido da cela, enquanto o dr.

Flammarion e a enfermeira Martíria cavam ali sentados, algemados e obrigados a ouvir. A biblioteca

parecia fechada e trancada, embora eu tivesse a impressão de ter visto algumas traças voando perto da

entrada, já que o seu lar, uma árvore alta e larga, não estava mais lá. Fiquei me perguntando se

Dashiell Qwerty havia terminado todo o trabalho que estava fazendo na biblioteca. Talvez ele

estivesse dormindo ali agora.

— O que aconteceu? — perguntei, por fim.

— Kit foi presa — meu aliado disse. — Minhas fontes me disseram que eles a pegaram bem quando

estava tentando abrir o alçapão. Era pesado demais para que abrisse sozinha.

Fechei os olhos. Ficava ainda mais escuro desse jeito.

— Ela não devia estar sozinha — eu disse.

— Snicket, já disse isso antes, não é sua culpa.

— Pode dizer quantas vezes quiser.

— Kit sabia que você não estaria lá. Ela decidiu tentar mesmo assim. E não posso culpá-la. Fazia

anos que o Museu de Objetos não tinha uma exposição como aquela.

— Oitenta e quatro anos — eu disse. — Se não pegássemos o objeto agora, não teríamos outra

oportunidade na vida.

— Ela pegou o objeto, mas também foi presa. Haverá um julgamento, Snicket. Ela pode muito bem

ir para a prisão.

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— Onde está o objeto agora?

— Ninguém sabe.

— Nós temos que descobrir.

— Ié — meu aliado disse, concordando lentamente com a cabeça. Era a sua maneira de dizer

sim. — Você sabe que eu o ajudaria se pudesse. Mas eu falei ao Quartel General que precisava

explorar essa área. Quando eles descobrirem que não tem mais água aqui, vão con scar meu

submarino.

— Você vai conseguir de volta.

— Não por um bom tempo.

— Acho que você não devia ter vindo.

— Eu queria que você soubesse, Snicket. Sua irmã focou a mente naquilo, mas não foi capaz de

abrir o alçapão para sair do museu.

— Obrigado — eu disse —, por me contar.

— Você sabe que eu o ajudaria se eu pudesse — ele disse novamente.

Eu me encostei na estátua e tirei o sapato.

— Então me diga se você sabe o que é isto — eu disse.

— É o seu sapato.

— Não, essa gosma nele.

— Lama? Musgo?

— Acho que é alguma outra coisa.

Widdershins franziu a testa e tomou o sapato das minhas mãos. Ele o cheirou.

— Cheiro de peixe — ele disse.

— Sim.

— A gente come de lanche a bordo do submarino às vezes. Caviar. Ovas de peixe. Gustav adora essa

coisa.

— Obrigado — eu disse, e coloquei o sapato de volta.

— Isso faz parte do caso em que você está trabalhando?

— Talvez faça.

— O que está acontecendo neste vilarejo, Snicket?

— Há um vilão chamado Tiro Furado — eu disse. — Ele sequestrou um biólogo e obrigou a lha

do biólogo a roubar uma estatueta de uma fera mitológica. Ele sequestrou uma química para que

pudesse roubar a fórmula dela para uma tinta invisível. Ele é parte de um grupo de pessoas que se

chama Sociedade Desumana, e eles estão planejando mais maldades. Ele foi visto pela última vez

ngindo ser um herói de guerra chamado coronel Colofão, que foi ferido durante uma explosão que

transformou essa estátua numa maçaroca de metal, e ele está planejando capturar um grande número

de crianças para algum propósito terrível.

Meu aliado tamborilou os dedos nos restos da estátua e depois acenou com a cabeça para mim.

— Quanto disso tudo sua tutora sabe?

— Quanto a sua tutora sabe — perguntei — sobre sua viagem secreta até aqui?

Ele sorriu para mim.

— Você não pode contar tudo a eles — ele disse. — Eles não entenderiam.

— Quem te ensinou isso?

— Você me ensinou, Snicket. Lembra? Você disse que poderíamos tornar nossa organização maior

do que nunca, mas apenas se parássemos de escutar nossos instrutores e encontrássemos novas

maneiras de consertar o mundo. Foi um discurso e tanto que você deu. Quase fez com que você fosse

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expulso para sempre.

— Talvez eles devessem ter me expulsado. Em Manchado-pelo-mar o mundo parece mais difícil de

ser consertado.

— Lembre-se do que nosso aliado disse — meu aliado me lembrou. — Nenhuma realidade tem o

poder de dissipar um sonho.

— Tiro Furado está bolando algo terrível — eu disse —, e não sei como detê-lo. Nem sei por onde

começar.

Então tocou um sino, o ruidoso alarme da torre. Pensei na Academia da Maré, abandonada na Ilha

Distante, onde o ingrediente secreto de Cleo Knight poderia ser encontrado.

— Ouvi falar disso — Widdershins disse. — Precisamos vestir máscaras?

— Não sei — eu disse. — Talvez seja uma superstição.

— Como você pode ter certeza?

Dei um suspiro.

— Não tenho certeza de coisa alguma, Widdershins.

Widdershins concordou uma última vez com a cabeça.

— Para mim isso soa como papo de aprendiz — ele disse. — Nenhum de nós tem certeza de coisa

alguma.

Ele acenou e começou a ir embora. Ele não podia car. Fiquei ali, vendo-o partir, e depois escalei

até o topo da escultura arruinada. O formato da maçaroca de metal di cultou a escalada, mas no topo

havia espaço su ciente para deitar e olhar o céu. O metal estava frio, mas era melhor do que a cama

na Suíte Extremo Oriente, com as ruínas de uma celebração equivocada. Não sei o que pensei,

deitado ali. Pensei na máscara prateada, e no rosto da Fera Ressonante. Pensei nas ataduras cobrindo

o rosto do Tiro Furado e naquelas enroladas no ferimento de Moxie. Pensei no cheiro de láudano, e

na sujeira no meu sapato. Pensei no alçapão da clínica e no alçapão do museu e nas iniciais gravadas

no metal de ambas. Pensei em Ellington Feint e em seu sorriso, um sorriso que podia signi car

qualquer coisa. Olhei para o céu. “Nenhuma realidade tem o poder de dissipar um sonho” signi ca

que não importa o que aconteça no mundo, você pode continuar pensando numa coisa,

especialmente se é uma coisa de que você gosta.

Eu me deitei na estátua e quei pensando, e o mundo seguiu em frente sem mim. Moxie Mallahan

estava en ada em sua cama, e Cleo Knight tinha entrado na Colina dos Lenços, onde seu

equipamento científico esperava por ela. Jake Hix começou a fazer o café da manhã no Faminto’s, e os

irmãos Belerofonte deixaram uma vitrola antiga e uma enorme pilha de papéis no sótão do Café Gato

Negro. S. eodora Markson adormeceu, e os policiais Mitchum se al netaram. Ignatius e Doretta

Knight receberam a notícia de que a lha estava a salvo, e Zada e Zora celebraram com algo delicioso,

e Polly Incompleta descobriu que dois melões verdes haviam sido devolvidos ao seu estabelecimento,

enquanto o dr. Flammarion e a enfermeira Martíria caram sentados, algemados, esperando por um

trem que chacoalharia entre pontes que não estavam mais sobre a água, em direção à cidade onde eu

não trabalhava mais. E é claro que Tiro Furado espreitava de onde quer que ele espreitasse, e

Ellington Feint estava escondida onde quer que ela se escondesse, e a Fera Ressonante encarava o

mundo com seus olhos vazios e malvados. Tudo isso aconteceu sem mim, enquanto eu observava a

noite até que não aguentasse mais, e então escorreguei estátua abaixo e quei de pé. Fui em direção

ao Braços Perdidos e ao nosso próximo caso. O sino tocou novamente, sinalizando que o perigo havia

passado. Eu não sabia onde me encaixava, mas tinha uma ocupação. Não tinha certeza de nada, mas

tinha um trabalho a fazer.

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EREDITH HEU ER

LEMONY SNICKET é mais velho do que você e deveria saber das coisas. Outros relatos e estudos

feitos anteriormente por ele foram recolhidos e publicados em forma de livro, caso de

Desventuras em Série, Autobiografia não autorizada, Raiz-forte, 13 Palavras, O compositor está morto

e O pedacinho de carvão.

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Copyright do texto © 2013 by Lemony Snicket

Copyright das ilustrações © 2013 by Seth

Copyright da ilustração da capa © 2013 by Seth

Copyright da capa © 2013 by Hachette Book Group, Inc.

Publicado mediante acordo com Charlotte Sheedy Literary Agency.

Todos os direitos reservados.

Ilustrações publicadas mediante acordo com Little, Brown and Company,

Nova York, Nova York, Estados Unidos. Todos os direitos reservados.

O selo Seguinte pertence à Editora Schwarcz S.A.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua

Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original

When Did You See Her Last?

Capa

Gail Doobinin

Preparação

Maria Fernanda Alvares

Revisão

Adriana Cristina Bairrada

Luciana Baraldi

ISBN 978-85-8086-824-1

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA SCHWARCZ S.A.

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