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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA Lembrando da vida, da cor, do gênero: um estudo de imagens e interpretações sobre o negro em Belém (Final do Séc. XIX/ Início do Séc. XX). Tiago Luís Coelho Vaz Silva BELÉM -PA Janeiro/ 2005

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Page 1: Lembrando da vida, da cor, do gênero: um estudo de imagens ... · Lembrando da vida, da cor, do gênero: um ... de uma perspectiva de registro e interpretação da memória social

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

Lembrando da vida, da cor, do gênero: um

estudo de imagens e interpretações sobre o negro em Belém (Final do Séc. XIX/ Início do Séc. XX).

Tiago Luís Coelho Vaz Silva

BELÉM -PA Janeiro/ 2005

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

Tiago Luís Coelho Vaz Silva

Lembrando da vida, da cor, do gênero: um estudo de imagens e interpretações sobre o

negro em Belém (Final do Séc. XIX/ Início do Séc. XX).

BELÉM -PA Janeiro/ 2005

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Lembrando da vida, da cor, do gênero: um estudo de

imagens e interpretações sobre o negro em Belém (Final do Séc. XIX/ Início do Séc. XX).

Tiago Luís Coelho Vaz Silva

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Antropologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará como requisito para obtenção do título de Bacharel e Licenciado Pleno em Ciências Sociais/ ênfase em Antropologia sob a orientação da Prof ª Dr ª Maria Angelica Motta-Maués.

Banca Examinadora:

Prof ª Diana Antonaz (Examinadora) _____________________________

Prof.ª Angélica Motta-Maués (Orientadora) ______________________________

BELÉM –PA, _____/_____/_____

Conceito: __________________________

3

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SUMÁRIO Abreviaturas utilizadas..............................6 Agradecimentos.............................7

Epígrafe: Os ombros que suportam o mundo..............................8 Saber Envelhecer.............................9 Apresentação.............................10 Introdução..............................11 Capítulo I – As Unidades de Acolhimento a Pessoa Idosa............................17

1- Por que as UAPI(s).............................17 2- O Cenário Pesquisado: O espaço das UAPI(s).............................19 3- Organização e Funcionamento da UAPI(s).............................25

Capítulo II - A Associação Santa Luiza de Marillac.............................34

1- A escolha da Associação como “Locus” da Pesquisa...........................34 2- O Cenário Pesquisado: A Associação Santa Luiza de Marillac.........................35

3- A organização interna da Associação..............................40

Capítulo III – Os Interlocutores da pesquisa: Quem são esses velhos e velhas a quem tanto ouvi?............................46

1- Os Internos das Unidades de Acolhimento a Pessoa Idosa...........................46 2- As interlocutoras da Associação Santa Luiza de Marillac ou Quem são as

mulheres que querem ouvir sua voz no gravador?....................58 3- Quadro sobre as características apresentadas pelos interlocutores..................65 4- Algumas considerações sobre cor/ raça a partir do parentesco.........................66

Capítulo IV – Ouvindo velhos negros e brancos: histórias de vida e interpretações sobre raça e cor..............................69

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1- Falando da vida: Lembranças sobre família, trabalho e cidade........................69 2- A(s) Cor(es) de Belém: terminologias, gradações e continuum de cor...............79 3- Quadros sobre as gradações de cor e a forma como as categorias de cor/ raça

foram utilizadas pelos informantes..............................98

Considerações Finais..............................99 Referências Bibliográficas..............................102 Apêndice I: Croquis UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel............................111 Apêndice II: Cronograma de atividades das UAPI(s)..............................113 Apêndice III: Pesquisa Bibliográfica...............................115

Fotos: Fotos 1 e 2..............................21 Fotos 3 e 4..............................24 Fotos 5 e 6.............................30 Fotos 7 e 8..............................41

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ABREVIATURAS UTILIZADAS

CEAF

CFCH

CIASPA

CNPq

DAB

FBESP

LAANF

LBA

PA

PIBIC

SESC

SETEPS

UAPI

UFPA

Centro de Atendimento a Família

Centro de Filosofia e ciências Humanas

Centro Integrado de Assistência Social do Pará

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

Diretoria da Assistência Básica

Fundação do Bem-Estar Social do Pará

Laboratório de Antropologia Arthur Napoleão Figueiredo

Legião Brasileira de Assistência

Pará

Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica

Serviço Social do Comércio

Secretaria Executiva do Trabalho e Promoção Social

Unidade de Acolhimento a Pessoa Idosa

Universidade Federal do Pará

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AGRADECIMENTOS

- Aos meus pais Milton e Cleide pela força e incentivo durante a vida toda,

especialmente, pela oportunidade que me deram para estudar;

- A minha irmãzinha Letícia, a quem quero sempre bem;

- A todos meus familiares pelo apoio;

- As minhas avós Maria e Floralice, desejando mais felicidades e muitos anos de vida

para elas;

- Aos meus padrinhos Édson e Cecília, por quem tenho profundo apreço;

- A todos meus amigos pelo companheirismo;

- Aos meus amigos Bruno e Gianno que também contribuíram para elaboração deste

trabalho;

- A minha companheira Hermínia que sempre me incentivou e esteve ao meu lado me

apoiando nos momentos difíceis;

- Aos avaliadores internos e externos do Programa de Iniciação Científica PIBIC/ CNPq

pelas contribuições nas discussões relativas a pesquisa.

- A minha orientadora Maria Angelica Motta-Maués pela aprendizagem e dedicação,

sem a qual este trabalho não poderia ser realizado.

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Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

Em vão batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

Mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é velhice?

Teus ombros suportam o mundo

E ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos

edifícios

Provam apenas que a vida prossegue

E nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

Preferiram (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

(Os ombros suportam o mundo, Carlos Drummond de

Andrade).

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Por certo, os que não obtêm dentro de si os recursos

necessários para viver na felicidade acharam

execráveis todas as idades da vida. Mas todo aquele

que sabe tirar de si próprio o essencial não poderia

julgar ruins as necessidades da natureza. E a velhice,

seguramente, faz parte delas! Todos os homens

desejam alcança-la, mas, ao ficarem velhos, se

lamentam. Eis aí a inconseqüência da estupidez!

Queixam-se de que ela chegue mais furtivamente do

que a esperavam. Quem então os forçou a se enganar

assim? E por qual prodígio a velhice sucederia mais

depressa à adolescência do que esta última sucede a

infância? Enfim, por que diabos a velhice seria menos

penosa para quem vive oitocentos anos do que para

quem se contenta com oitenta? Uma vez transcorrido

o tempo, por longo que seja, nada mais consolará

uma velhice idiota...

Vós que costumais admirar minha sabedoria – possa

ela ser digna de vossa opinião e de meu nome! -,

reparai que somos sábios se seguimos a natureza

como um deus, curvando-nos às suas coerções. Ela é

o melhor dos guias. Aliás, não seria verossímil que,

tendo disposto tão bem os outros períodos da vida, ela

se precipitasse no último ato como o faria um poeta

sem talento. Simplesmente, era preciso que houvesse

um fim: que, à imagem das bagas e dos frutos, a vida,

espontaneamente, chegada sua hora, murchasse e

caísse por terra. A tudo isso o sábio deve consentir

pacificamente. Pretender resistir à natureza não teria

mais sentido do que querer – como os gigantes –

guerrear contra os deuses.

(Saber Envelhecer, Cícero).

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Apresentação

Este Trabalho de Conclusão de Curso é resultado de dois anos de pesquisa como

bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC)

patrocinado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq) em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA), onde tive a

oportunidade de desenvolver, sob orientação da Prof ª Maria Angelica Motta-Maués, as

duas pesquisas que deram origem a esta monografia, intituladas: Lembranças da Cor:

Memória e Identidade de Velhos em Belém (Final do séc. XIX/ Início do séc. XX) e

História de Vida: Lembranças de Velhas Negras e Brancas em Belém.

A partir das pesquisas mencionadas, o presente estudo tem por objetivo

identificar e analisar imagens e interpretações criadas sobre o negro, assim como a

criação de categorias de cunho racial empregadas em relação a este, existentes e

identificadas no final do século XIX e início do século XX na cidade de Belém, através

de uma perspectiva de registro e interpretação da memória social de pessoas negras e

brancas, utilizando como instrumental teórico-metodológico a co-relação entre história

de vida e memória social dos interlocutores que se disponibilizaram em participar da

pesquisa.

O estudo teve como locus de pesquisa três instituições: as Unidades de

Acolhimento à Pessoa Idosa (UAPI-s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel, que são

instituições asilares que abrigam pessoas idosas, de responsabilidade do Governo do

Estado do Pará e; a Associação Santa Luiza de Marillac, que desenvolve atividades de

assistência à idosos de baixas condições financeiras, sendo de caráter particular.

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Introdução

A finalidade deste estudo é identificar e analisar as imagens e interpretações

formuladas sobre o “negro”1, bem como as categorias de cunho racial empregadas para

referi-lo, isto é, (baseadas nas percepções e nominações de cor), que foram construídas

no final do século XIX e início do século XX, na cidade de Belém2. O estudo se

encaminhou através de uma perspectiva de registro e interpretação da memória social,

considerando relatos particulares ou história de vida de dez velhos, sendo quatro

homens e seis mulheres.

A pesquisa desenvolveu-se principalmente com pessoas negras que se auto-

identifiquem e que sejam identificadas pelos outros como tal, mas também, e do mesmo

modo, com pessoas brancas, homens e mulheres que possuem mais de sessenta anos

(alguns com idade acima de oitenta e noventa anos), cuja idade permita explorar uma

memória do período em questão, não diretamente, pois não seria possível, mas de forma

indireta através de informações adquiridas com outras pessoas, como seus pais, avós,

familiares ou amigos, que nasceram por volta da última década do século XIX. Para isso

utilizei os recursos metodológicos da memória e da história de vida no mesmo sentido

que Luís Fernando Dias Duarte (1987) e Antônio Custódio Gonçalves (1992) conferem

ao termo, ou seja, no sentido de (re) construção e /ou construção de identidades de

grupos e etnias, que se enquadra na perspectiva da “segunda via” de se trabalhar com

memória social3, que, como sabemos, sempre se apresenta como fundamental neste tipo

de análise.

1 Refiro-me desta maneira aos personagens principais deste estudo por ser esta forma utilizada para designar os descendentes de africanos, considerando-se o processo de construção histórica que, na virada do XIX para o XX, transformava o escravo no negro. Processo, aliás, interpretado, por exemplo, para São Paulo, por Schwarcz (1996), utilizando também fontes jornalísticas tal como faço neste trabalho. Além disso, daqui por diante, toda vez que palavras como negro, negritude, raça, racismo, racialismo forem mencionadas no texto não serão utilizadas aspas com intuito de não torná-lo pesado para os leitores. 2 Para uma referência desse processo em relação ao país cf. Maggie, 1996. 3 Tanto Duarte quanto Gonçalves indicam vias de trabalho para análise da memória social, sendo que em Duarte elas aparecem de duas formas: a) memória individual como fato social e b) memória como (re) construção e /ou construção de identidades de grupos, classes, nações e etnias, através de categorias como passado, tradição e história. Gonçalves, por sua vez, acrescenta mais uma via, além das duas apontadas por Duarte, como uma terceira via que seria, assim, a visão de patrimônio para composição da memória social.

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O trabalho de coleta de dados foi realizado em três locus de pesquisa: nas

Unidades de Acolhimento à Pessoa Idosa (UAPI-s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel, e na

Associação Santa Luiza de Marillac. As UAPI(s) possuem característica

eminentemente asilar, estando sob responsabilidade da Secretaria Especial do Trabalho

e Proteção Social e Secretaria Executiva do Trabalho e Promoção Social (SETEPS), sob

coordenação da Diretoria de Assistência Básica (DAB) e administração do Governo do

Estado do Pará. Diferentemente das duas primeiras instituições, a Associação Santa

Luiza de Marillac não tem como característica a reclusão de idosos e se configura como

uma associação de mulheres católicas que tem por finalidade disseminar a prática

filantrópica e assistencial entre idosos desamparados, ao mesmo tempo em que se

conforma enquanto um grupo de convivência para as mulheres atendidas que

freqüentam esta instituição.

Mesmo sabendo que as etapas de uma pesquisa não são rigorosamente

separadas, arrisco-me nesta tentativa de arrumá-las assim, para demonstrar os caminhos

percorridos para efetivação do trabalho em questão.

O presente trabalho possuiu várias fases no seu desenvolvimento, iniciando a

partir da pesquisa documental e bibliográfica, em que considerei os conteúdos e o

referencial teórico a ser aplicado de acordo com o contexto, desenvolvendo a leitura

bibliográfica concomitantemente com o desenrolar da pesquisa.

Para realização de um estudo sobre histórias de vida de velhos em Belém, o

recurso metodológico (junto com o referencial teórico) do estudo da memória se revela

de fundamental importância, uma vez que possibilita, de forma ímpar, trabalhar com a

subjetividade desses indivíduos, já que estas subjetividades tendem a ultrapassar as

individualidades e atingem características coletivas de grupos específicos (cf.;

Bernardo, 1998; Bosi, 1979; Duarte, 1987; Gonçalves, 1992; Halbwachs, 1990; Pollak,

1992).

O segundo momento do desenvolvimento do estudo se refere a realização da

pesquisa de campo, onde visitei as UAPI(s) com intuito de conhecer as pessoas,

sobretudo os idosos, homens e mulheres, que residem em tais instituições, para recolher

os depoimentos e histórias de vida dos mesmos sobre as questões referentes a pesquisa,

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utilizando como critério a idade mínima de sessenta anos (tendo sido muito interessante

coletar informações com interlocutores de setenta e oitenta anos ou mais).

Noutra etapa, que se realizou na segunda vigência da bolsa de iniciação

científica, dei continuidade à pesquisa de campo, que teve como locus a Associação

Santa Luiza de Marillac, onde desenvolvi o estudo somente com mulheres (utilizando

novamente o critério de sessenta anos como idade mínima), uma vez que a associação é

composta apenas por mulheres católicas, e a presença masculina quase não ocorre.

Deste modo, pude estabelecer contatos formais e informais com as mulheres idosas

dispostas a colaborar no desenvolvimento da pesquisa, com intuito de propiciar um

ambiente de empatia entre o pesquisador e as interlocutoras, ou de algum modo

propiciativo ao desenvolvimento do trabalho.

A coleta de dados tanto com os internos das UAPI(s) quanto com as mulheres

que freqüentam a Associação Santa Luiza de Marillac realizou-se através de conversas

informais (que, como sabemos, se mostram sempre tão ricas para nossas pesquisas), de

entrevistas formais com utilização do gravador e, sobretudo, como instrumento

importante, as histórias de vida dessas pessoas.

A história de vida enquanto metodologia qualitativa foi de fundamental

importância para efetivação desta pesquisa, pois ela permite um rendimento maior dos

contatos informais entre o pesquisador e o interlocutor (cf. Bernardo, 1998; Debert,

1986), uma vez que quando este recurso é utilizado como um suporte da investigação,

possibilita compreender as redes de relações sociais nas quais os interlocutores estão

inseridos (cf.; Piscitelli, 1993). Além disso, a experiência da Antropologia com esta

técnica é antiga, uma vez que foram os antropólogos os primeiros pesquisadores das

Ciências Humanas a utilizarem este recurso e, no caso em questão, esta técnica de

pesquisa se torna importante para juntar a memória (mais) pessoal e a construção social

(histórica).

Sobre esta técnica a antropóloga Guita Debert diz:

“a razão alegada para utilização deste instrumental reside no fato de possibilitar o estabelecimento de uma conversação ou um dialogar entre informante e analista. Quando os autores, neste caso, fazem uma oposição entre falar e conversar ou

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enfatizam o argumento que a história de vida possibilita um dialogar com os sujeitos estudados, chamam a atenção para dois aspectos. Em primeiro lugar, para a violência implícita no procedimento que envolve a imposição, aos informantes, de categorias que não lhe dizem respeito, vindas de uma teoria exterior a eles ou ao conjunto de valores do próprio pesquisador. Em segundo lugar, para a importância de darmos condições aos informantes de nos levar a ver outras dimensões e a pensar de maneira mais criativa a problemática que, através deles, nos propomos a analisar” (1986: 142).

Entretanto, apesar da história de vida se apresentar como um recurso

valiosíssimo para inúmeras pesquisas, esta técnica apresenta algumas armadilhas para

os pesquisadores que nela se apóiam para realizarem seus estudos. De acordo com

Pierre Bourdieu (1986) os indivíduos ao relatarem suas histórias de vida o fazem de

forma encadeada com início, meio e fim, geralmente obedecendo a uma ordem

cronológica; assim, as coisas e os acontecimentos possuem uma origem e um sentido na

história de vida de cada indivíduo e são justificados através dela.

Para Bourdieu, os relatos sobre história de vida tendem a mostrar

acontecimentos e eventos que nem sempre ocorrem na vida das pessoas naquela ordem

real. Assim, as histórias de vida são contadas a partir de esquemas “arrumados” de

elaboração de discurso, em que os acontecimentos vividos e presenciados por

determinado indivíduo são relatados sob forma de “romance” ou até mesmo de uma

novela, diria eu, já que estas duas formas se apresentam (ou podem se apresentar) como

modelos disponíveis para o relato da história de vida, o que sugere que tais relatos

sejam compreendidos sob a técnica de análise de discurso, cabendo ao pesquisador

desconstruir e “desnaturalizar” tais fenômenos como se apresentam.

Porém, ainda segundo Bourdieu, tais esquemas “arrumados”, os discursos sobre

histórias de vida, não são propriedade única dos informantes, mas muitas vezes são

reproduzidos pelos próprios pesquisadores, uma vez que estes modelos também fazem

parte de sua construção social, devendo ser desnaturalizados por eles através de uma

vigilância epistemológica e metodológica, como indica este autor.

Assim, a pesquisa se desenvolveu a partir das seguintes perspectivas: fazendo

uma análise antropológica com o propósito a que se refere Malinowski: “apreendendo

do ponto de vista dos nativos” (1978: 37-38), aqui entendidos como velhos negros e

brancos, homens e mulheres, “seu relacionamento com a vida, sua visão de seu mundo”

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(Idem); com um “olhar treinado”, “olhando”, “ouvindo” e “escrevendo” como propõe

Roberto Cardoso de Oliveira (2000). Na medida em que, só depois do texto escrito (e a

rigor, dado ao público), como aponta este autor, nosso trabalho como antropólogo se

completa.

Entretanto, mesmo com o devido rigor teórico-metodológico com que a pesquisa

foi conduzida, devo dizer que os dados coletados sobre as imagens e interpretações

formuladas sobre o negro em Belém, no período delimitado pelo estudo, surgiram nos

relatos dos meus informantes em menor proporção em relação a outros temas. Deste

modo, a partir das lembranças oriundas da memória social dos interlocutores da

pesquisa, obtive uma série de relatos sobre família, trabalho, cidade e outros assuntos

que dizem respeitos às várias esferas da vida social destes indivíduos.

Apesar disto, no desenrolar do estudo, não me distanciei completamente da

problemática proposta inicialmente, pois, os próprios relatos sobre família, trabalho (dos

quais falei acima) encaminharam a pesquisa para o fenômeno do sistema de

classificação racial brasileiro (para o qual enveredei, particularmente, porém sem

esquecer o tema inicial), isto é, a forma pela qual a nossa sociedade classifica/

categoriza as pessoas considerando noções sobre a cor/ raça dos brasileiros, já que,

principalmente, pela forma como se constituiu o Brasil, as relações sociais (família,

trabalho, etc.) não podem ser pensadas separadamente das relações raciais (cf. DaMatta,

2000; Fernandes, 1978; Hasenbalg, 1996; Hasenbalg & Silva, 1988; Sansone, 1996),

uma vez que tais relações estão estruturadas sob um conjunto de representações sociais

sobre cor e raça.

Assim, o trabalho está dividido em quatro capítulos: no primeiro, discorro sobre

as duas UAPI(s), Val-de-Cans e Socorro Gabriel, onde exponho os motivos da escolha

de tais instituições para realização do estudo. Neste capítulo faço uma descrição do

cenário em que a pesquisa se desenvolveu, mostrando os espaços e as especificidades

das UAPI(s) com a finalidade de apresentar uma idéia geral da organização das duas

instituições, bem como dos internos que residem nelas e dos funcionários que ali

trabalham.

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No capítulo seguinte (cap. 2), mostro o outro locus onde o estudo se

desenvolveu, a Associação Santa Luiza de Marillac. Neste capítulo, como já terei

mostrado no anterior, apresento os motivos que me levaram a desenvolver o estudo

nesta associação, procurando, também, dar uma idéia geral da organização interna da

associação, assim como das mulheres que a freqüentam.

No terceiro capítulo, pretendo mostrar o perfil e a história pessoal dos dez

interlocutores da pesquisa, para o que se apresentou de fundamental importância a

elaboração de esquemas de parentesco que enfatizam as idéias (representações) sobre a

cor/ raça de alguns deles, com o intuito de inserir o leitor na discussão sobre o sistema

de classificação racial predominante no país, que é abordado no capítulo seguinte. Além

disso, neste capítulo consta um quadro que reúne características em comuns dos

informantes que se dispuzeram em participar da pesquisa, como por exemplo: cidade de

origem, cor da pele, tipo de cabelo, dentre outros.

O quarto capítulo trata do foco principal de análise deste estudo, momento em

que os relatos sobre as histórias de vida dos interlocutores são agrupados com intuito de

reunir itens em comum dos informantes para analisá-los sistematicamente. Neste

capítulo, a partir dos relatos obtidos, abordo as várias esferas da vida social dos

interlocutores, que dizem respeito à família, cotidiano, trabalho, cidade e sobretudo, às

questões que envolvem o fenômeno do sistema de classificação racial brasileiro, bem

como a construção das imagens e interpretações criadas sobre o negro no final do século

XIX e início do século XX na cidade de Belém.

A última parte do trabalho refere-se às considerações finais, onde procuro, mais

do que chegar a conclusões definitivas, fazer algumas reflexões e considerações a

respeito da problemática discutida. Além disso, também consta um apêndice com os

croquis das UAPI(s) e seus cronogramas de atividades, assim como, um representativo

levantamento bibliográfico sobre história de vida e memória social.

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Capítulo I – As Unidades de Acolhimento à Pessoa Idosa

1 – Por que as UAPI(s) ?

A instituição que primeiro foi pensada para a realização desta pesquisa foi a

Casa de Abrigo Associação da PIA – União do Pão de Santo Antônio, devido esta ficar

localizada às proximidades da Universidade Federal do Pará (UFPA), na Avenida José

Bonifácio, no bairro do Guamá, além do interesse particular de minha orientadora,

Maria Angelica Motta-Maués, de que a pesquisa se desenvolvesse em tal instituição –

dada a clientela mais diversificada em termos de classe social da mesma. Entretanto,

segundo a assistente social do abrigo, este somente é aberto ao público, tanto para visita

de parentes quanto para estudantes, pesquisadores, pela parte da manhã sendo as

atividades realizadas pela parte da tarde exclusivamente de funcionários do abrigo,

portanto a pesquisa nesta instituição ficou inviabilizada, uma vez que desenvolvo

minhas atividades discentes de assistência às aulas pela parte da manhã.

A outra instituição pensada foi a Casa do Ancião Dom Macedo Costa, localizado

na Avenida Almirante Barroso, no bairro do Souza, porém esta instituição estava

desativada devido a que a estrutura física do prédio onde funcionava se encontrava

abalada; tal fato acarretou a transferência dos idosos que residiam neste asilo para outras

instituições. Mas, foi a partir deste fato, e de seu encaminhamento, que acabei

escolhendo o locus desta pesquisa.

Com a desativação da Casa do Ancião Dom Macedo Costa foram criadas pela

Secretaria Especial do Trabalho e Proteção Social e Secretaria Executiva do Trabalho e

Promoção Social (SETEPS), sob coordenação da Diretoria da Assistência Básica

(DAB), outras instituições para suprir as necessidades do antigo Dom Macedo Costa;

criou-se, então, as denominadas Unidades de Acolhimento a Pessoas Idosa (UAPI),

passando a exercer a função duas novas instituições: a UAPI – Val-de-Cans e a UAPI –

Socorro Gabriel, sendo que o Lar da Providência, uma instituição que já existia,

localizada na Alameda Samuca Levi, nos fundos do Dom Macedo Costa, também

passou a fazer parte das UAPI(s).

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As UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel são unidades exclusivamente

públicas, enquanto a UAPI – Lar da Providência cobra taxas para residência do idoso,

porém, em determinados casos, existem exceções em que não se paga a taxa. Sendo

assim, as instituições selecionadas para realização da pesquisa foram as UAPI(s) Val-

de-Cans e Socorro Gabriel, pelo fato de serem instituições exclusivamente públicas sob

administração do Governo do Estado do Pará e, por isso, não cobram mensalidade dos

idosos que, na sua grande maioria, não teriam condições de pagá-la, pois são oriundos

das classes populares e possuem poucas condições financeiras, caso contrário,

procurariam os serviços de outras instituições asilares como o abrigo do Pão de Santo

Antônio ou o próprio Lar da Providência, por exemplo. Além disso, tais instituições

foram escolhidas devido acreditar encontrar nelas um maior número de velhos negros

(daí porque a escolha das duas e não só de uma), já que estes representam a maioria da

população de baixa renda no Brasil4, haja vista a consideração da exploração

historicamente sofrida por este grupo social em nosso país. Outro motivo que levou a

escolha da realização deste trabalho nas UAPI(s) deve-se a residência permanente

desses indivíduos nesses determinados locais, ou seja, um locus específico para

realização da pesquisa.

Apesar da opção por duas UAPI(s) (Val-de-Cans e Socorro Gabriel), o que de

certa forma excluiu o Lar da Providência de minha pesquisa, esta última instituição foi

locus de pesquisa de outro pesquisador, também participante do grupo de pesquisa (cf.

Santos, 2004), que em sua dissertação de mestrado realizou um estudo sobre saudade e

memória social entre os idosos que residem no Lar, procurando analisar o sentimento de

saudade como uma categoria sociológica através das lembranças e dos relatos de seus

informantes, com intuito de compreender e interpretar tais lembranças a partir das

diferenciações de gênero, isto é, como eram e sobre o que eram os sentimentos de

saudade dos homens e como eram e sobre o que eram os sentimentos de saudade das

mulheres.

No período de 1999 a agosto de 2000, anterior a sua desativação, o Dom

Macedo Costa possuía em média 127 idosos e ao iniciar-se esse processo,

concomitantemente inicia-se o processo de mudança de alguns desses idosos para as

4 Sobre as causas da pobreza dos negros no Brasil cf. Guimarães, 2002; Hasenbalg e Silva, 1993, entre outros.

18

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novas instituições. Foram transferidos 30 idosos para a UAPI – Val-de-Cans e 12 idosos

para a UAPI – Lar da Providência, sendo que neste período a UAPI – Socorro Gabriel

ainda não existia, portanto, restando 85 idosos que, a partir de julho de 2001, passariam

a ser atendidos nas seguintes instituições5:

Instituições Quantidade de Idosos

CEAF Tucunduba 23

Hospital de Clínicas 17

Pavilhão São José 20

UAPI – Lar da Providência 02

UAPI – Val-de-Cans 08

CIASPA 15

Total 85

O pedido para internação dos idosos nas instituições públicas, UAPI – Val-de-

Cans e UAPI – Socorro Gabriel advém de familiares, do próprio idoso, da

“comunidade” (vizinhos, amigos dos idosos) ou através do ministério público (seguindo

esta mesma ordem), porém, uma grande parcela das pessoas que procura uma instituição

desse tipo para si próprias ou para parentes ou amigos não consegue vaga, pois de

acordo com funcionários da equipe técnica, estas instituições já se encontram com sua

capacidade esgotada, e até mesmo com um número de indivíduos superior a sua

capacidade. O que significa, segundo tal informação, que a demanda ultrapassa a

possibilidade de atendimento.

2 - O Cenário Pesquisado: O espaço das UAPI(s)

A Unidade de Acolhimento a Pessoa Idosa – Val-de-Cans foi inaugurada e

começou a funcionar no dia 28 de agosto de 2000 para acolher os idosos que residiam

no abrigo Dom Macedo Costa. A UAPI – Val-de-Cans está localizada no Conjunto

Providência, Avenida Norte, no bairro de Val-de-Cans, próximo a Unidade Básica de

Saúde deste bairro. Ela está localizada em um terreno relativamente grande que

corresponde a quase um quarteirão, sendo que apenas metade desse terreno é ocupada

pela construção da casa que abriga os idosos, e a outra metade não está sendo

5 Relatório Anual das Atividades do Ano de 2002 – UAPI – Socorro Gabriel.

19

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aproveitada, e possui apenas um gramado, abandonado, com duas torres refletoras

(semelhantes, em menor proporção, as que existem em estádios de futebol) voltadas na

direção da casa.

A estrutura física desta unidade ainda possui alguns traços da estrutura da creche

municipal que lá funcionava, mesmo após algumas reformas feitas no prédio, de modo

que alguns quartos apresentam batentes de cimento e armários embutidos nas paredes,

onde supostamente funcionava antes uma cozinha, impedindo a presença de mais

camas, pois de acordo com a assistente social da instituição, a casa deve passar por mais

reformas para poder se adequar, mais ainda, a sua função de “abrigo”.

A UAPI – Socorro Gabriel está localizada em um prédio térreo, localizado ao

lado da Seccional Urbana de Polícia do bairro da Cremação, na travessa Padre Eutíquio,

na parte que corresponde a atual rua dos Cabanos, passando a exercer a função de

abrigo para idosos a partir de março de 2002. Do mesmo modo como ocorreu na UAPI

– Val-de-Cans, esta instituição também servia anteriormente como creche, porém já

encontrando-se melhor estruturada para desempenhar sua função de abrigo. Levando em

conta apenas a casa, ou seja, a construção existente na UAPI Val-de-Cans, percebe-se

que a outra é maior e mais bem estruturada, caso contrário seria o inverso, pois, como já

mencionei esta metade do terreno da UAPI – Val-de-Cans que corresponde a quase um

quarteirão, não é utilizada.

Na entrada da UAPI – Val-de-Cans existe um portão com uma guarita ao lado,

onde se encontram, permanentemente, um porteiro da instituição (durante o dia) e um

vigia (durante a noite). Nesta área, anterior a entrada, propriamente dita, da casa,

existem vários vasos com diferentes plantas e algumas passarelas em volta, todas com

cobertura para locomoção das pessoas ao redor da mesma.

Tanto a porta de entrada quanto as janelas da instituição são todas gradeadas e

pouco se pode ver do lado de fora para dentro do prédio. Passando pela porta, existe

uma sala onde grande parte dos internos encontra-se vendo televisão ou simplesmente

sentado em sofás ou poltronas. Nesta mesma sala, do lado direito, está localizada a sala

da diretoria e equipe técnica da instituição e, ao lado desta, um primeiro “quarto

feminino”, como é chamado, acomodando seis mulheres.

20

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Font

e: U

API

– S

ocor

ro G

abrie

l, 20

02.

Foto 1 – Passeio: Idosos da UAPI – Socorro Gabriel na Caminhada pela Saúde na Praça Batista

Campos

Font

e: U

API

– S

ocor

ro G

abrie

l, 20

02.

Foto 2 – Missa: Idosos da UAPI – Socorro Gabriel na Missa promovida pela instituição

21

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Do lado esquerdo existe mais um outro quarto com cinco mulheres e ao seu lado

o primeiro “quarto masculino” acomodando cinco homens. Caminhando da sala em

direção a um corredor encontra-se o posto de enfermagem do abrigo, onde as

enfermeiras trabalham em turnos, sendo três plantonistas 12/48 horas, ou seja,

distribuídas em escala corrida de 10 plantões, e uma coordenadora de 6 horas.

No final do corredor se encontra, do lado esquerdo, o segundo quarto masculino

com cinco pessoas e do lado direito, um pequeno corredor levará a outros três

aposentos: um, onde se guarda os mantimentos da instituição, o segundo é um quarto

masculino com três homens e o terceiro, é um banheiro (o único fora dos quartos), que

atende a este quarto masculino. Mais adiante, do lado esquerdo, ainda, encontra-se um

outro corredor onde existe uma secretaria e o último quarto masculino comportando três

pessoas, totalizando os dormitórios em quatro masculinos e dois femininos.

Na entrada da UAPI – Socorro Gabriel existe um portão que não é muito largo e

poucos metros após este portão, na recepção, encontra-se uma parede de blocos de vidro

trabalhado. A recepção possui algumas cadeiras e poltronas onde os internos passam a

tarde inteira sentados, olhando outras pessoas e carros passarem, apesar de só poderem

observá-los por um ângulo um tanto quanto limitado, pois o portão por onde se têm

acesso a instituição é estreito e ao lado esquerdo deste (vista de dentro) existe uma

parede grande com pequenas frestas de onde, na verdade, pode se ver muito pouco. O

mesmo pode-se dizer de quem está do lado de fora, querendo olhar para dentro, pois não

se vê muita coisa, uma vez que existe, poucos metros depois do portão, uma parede de

blocos de vidro trabalhado, como já foi mencionado (p. 20), que impede a vista para

dentro da instituição, além da parede com pequenas frestas ao lado do portão.

Percebe-se que essas “janelas gradeadas”, a “parede com material de vidro

trabalhado” logo após o portão e a “parede grande com pequenas frestas de onde pode

se ver muito pouco” fazem parte da característica de “fechamento” das instituições

totais (cf. Goffman, 1974), decorrente da tentativa de “isolamento” das pessoas que

residem neste tipo de instituição, um estado de reclusão social, impossibilitados de ver

“o mundo lá fora”, assim como as pessoas de fora também não podem observar o que

acontece no “mundo de dentro”. Essas e outras características como: homogeneização

dos indivíduos, homens e mulheres (são todos “internos”, com a mesma ficha

22

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padronizada, a mesma rotina), a proibição da livre locomoção, a uniformização dos

aposentos, a proibição de aquisição particular de objetos, resultam, conseqüentemente,

na “mortificação do eu” dos indivíduos que residem em tais instituições, já que são

tolhidos das três esferas básicas da vida estabelecida pela sociedade moderna: dormir,

brincar e trabalhar com pessoas diferentes e, em locais variados, sob diferentes

autoridades. Deste modo, Erving Goffman (1974) – em seu estudo referencial

originalmente denominado, justamente, “Asylums” – diz sobre as “instituições totais”

"Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. (1974: 11)

Ainda no que se refere ao controle e a normatização dos indivíduos Michel

Foucault (1977), em outra obra referencial para o estudo de, ou em, instituições deste

tipo, aponta a disciplina como um dos mecanismos táticos e dispositivos que serão

progressivamente utilizados na sociedade contemporânea, ou seja, manobras políticas

efetivas e técnicas de exercício de poder que se estruturam e que tem como lógica de

funcionamento o processo de disciplinarização; o panoptismo, isto é: “o principio geral

de uma nova ‘anatomia política’, cujo objeto e fim não são as relações de soberania,

mas as relações de disciplina” (Foucault, 1977: 183).

Na UAPI – Socorro Gabriel, tanto os dormitórios quanto as enfermarias, estão

divididas por sexo, existindo o dormitório masculino que se divide em dois blocos

ocorrendo o mesmo com o feminino. Nos dormitórios, ao invés de camas, existem leitos

ou macas, como se as pessoas estivessem em enfermarias de um hospital, pois a

instituição possui um aspecto mais hospitalar do que o de uma casa de repouso ou asilo

para idosos, como no caso da UAPI – Val-de-Cans. No que se refere à enfermaria

ocorre a mesma divisão, duas alas, tanto na enfermaria masculina quanto na feminina.

Nesta UAPI existem áreas que não são totalmente fechadas, ou seja, não possuem

paredes laterais e permitem a circulação de ar e a passagem direta da luz do sol, como,

por exemplo, a área destinada às refeições que é apenas demarcada por batentes, com

aproximadamente 70 centímetros de altura. Embora possam circular pelas áreas comuns

do abrigo, existem algumas áreas que não podem ser freqüentadas pelos internos da

instituição como, por exemplo: a cozinha e o local destinado a guardar os mantimentos.

23

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Font

e: U

API

– V

al-d

e-C

ans,

2002

.

Foto 3 – Festa: Comemoração do dia das Crianças na UAPI – Val-de-Cans

Font

e: U

API

– V

al-d

e-C

ans,

2002

.

Foto 4 Passeio: Círio dos Idosos realizado pela UAPI – Val-de-Cans

24

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Na UAPI Val-de-Cans, os quartos possuem camas, diferentemente dos

dormitórios da UAPI – Socorro Gabriel que apresentam leitos ou macas, como já disse

há pouco, e todos os quartos possuem banheiros, com exceção de um dos quartos

masculino em que o banheiro se encontra no corredor. Voltando por este mesmo

corredor encontrar-se-á a cozinha e o local de refeições dos internos, com várias mesas

com lugar para quatro cadeiras em cada uma; esse refeitório também serve como local

de recreação dos mesmos, pois possui televisão. Mais adiante existe uma sala destinada,

especificamente, a atividades recreativas, com mesas e cadeiras que são utilizadas de

diversas formas como veremos mais adiante. Diferentemente da UAPI – Socorro

Gabriel na UAPI – Val-de-Cans o interior da casa não possui áreas abertas com

circulação de ar e passagem direta da luz do sol.

Na UAPI – Socorro Gabriel existe uma área destinada às refeições onde os

internos realizam tanto as refeições principais, almoço e jantar, quanto lanches entre

estas, com sucos, biscoitos, etc. Nesta mesma área também são realizadas recreações

onde essas pessoas se distraem de alguma forma, seja assistindo televisão ou escutando

música ou jogando dominó com outros internos. Alguns internos ao invés de assistir

televisão ou jogar dominó com outros, preferem ir para entrada do prédio, ou seja, para

a chamada “recepção’, onde se encontra um porteiro.

Foi na área da recepção que pude estabelecer, nesta instituição, um primeiro

diálogo ou contato, se assim podemos denominar, com um dos internos e futuro

interlocutor, como será observado posteriormente.

3 – Organização e Funcionamento da UAPI(s)

De acordo com uma funcionária da equipe técnica, a UAPI – Val-de-Cans abriga

vinte e oito idosos, sendo dezessete homens e onze mulheres. Cada interno possui um

prontuário psico-social e de saúde, sendo que neste prontuário não consta a

identificação de cor ou racial de cada indivíduo, portanto, a instituição não possui o

registro de quantos velhos negros e brancos lá residem. Lá só residem internos velhos,

ou seja, indivíduos com mais de sessenta anos, como a instituição considera.

25

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Já a UAPI – Socorro Gabriel tem capacidade para acolher sessenta e duas

pessoas, porém atualmente abriga sessenta e cinco, estando dividida em espaços para

homens e para mulheres, sendo que neste universo de sessenta e cinco pessoas existem

trinta do sexo feminino e trinta e cinco do sexo masculino. Diferentemente da outra

UAPI, a instituição não acolhe somente pessoas velhas, ou seja, pessoas com mais de

sessenta anos. Temos, então, a presença de três pessoas não-velhas (por essa

classificação), que, de alguma forma, conseguiram acesso a instituição, seja através de

ações pelo Ministério Público, como é o caso da Dona Maria da Glória6 e do Seu

Roberto Zabala ou através do recurso denominado “Prontidão”, como no caso do Seu

Roberto Travasso Pingarilho, que ocorre quando o indivíduo apresenta um determinado

“risco social”7, e então, consegue acesso a instituição; porém estas pessoas estão lá em

número bastante restrito.

Nas duas UAPI(s) cada interno possui um prontuário psico-social e de saúde,

como já mencionei, sendo que, na fase inicial da pesquisa, não constava neste

prontuário a identificação de cor ou racial de cada interno. Atualmente, com a

introdução deste indicador em uma delas a partir do mês de maio de 20038 a residência

de velhos na UAPI – Socorro Gabriel quanto a cor e o sexo é a seguinte9:

Cor / Sexo Homem Mulher Total

Branco 16 08 24

Preto 05 04 09

Pardo 14 18 32

Entretanto, antes disso, após uma observação mais apurada na instituição e com

outro parâmetro de identificação que não considera apenas a pele absolutamente negra

como indicador (cf. Maggie, 1988, 1991, 1996; Guimarães, 1998; Sheriff, 2001; Sodré,

6 Os internos das UAPI(s) serão aqui referidos pelos seus próprios nomes. Além disso, também, será atribuído “Seu” para homens e “Dona” para mulheres, já que tais designações são usadas de forma aberta e freqüente pelos funcionários das instituições, bem como, pelos próprios internos. 7 A situação denominada de “risco social” pela instituição é aquela em que um indivíduo se encontra “marginalizado” no seio da sociedade, rejeitado pela família e sem ter onde morar, conseqüentemente, perambulando pelas ruas e praças da cidade. 8 Mesmo sem poder afirmar com certeza, acredito que a introdução do indicador de identificação racial ou de cor no prontuário psico-social da UAPI – Socorro Gabriel se deva a realização da pesquisa nesta instituição, já que este dado foi por mim solicitado num momento anterior a sua elaboração. 9 Os dados referidos neste capítulo foram coletados em pesquisa de campo durante o período de outubro de 2002 a maio de 2003.

26

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1999) pude perceber trinta e seis negros que lá residem, vinte e três homens e treze

mulheres, sendo que a maioria, tanto dos homens, quanto das mulheres já, se encontra

com seu estado de saúde visivelmente debilitado. Seguindo o mesmo padrão de

identificação utilizado aqui, na outra unidade (UAPI – Val-de-Cans), pude perceber a

presença de dezoito negros, onze homens e sete mulheres residindo naquela unidade.

A partir da inauguração da UAPI – Socorro Gabriel, os idosos que passaram a

viver nesta unidade, precederam dos seguintes locais10:

Instituições Quantidade de Idosos

CEAF Tucunduba 38

Hospital de Clínicas 17

UAPI – Lar da Providência 02

UAPI – Val-de-Cans 07

Total 64

De acordo com dados da instituição, considerando o indicador básico “vínculo

familiar”, a condição dos internos deste abrigo é a seguinte11:

Vínculo Familiar Percentual (%)

Possui família 34,55

Não possui família 52,73

Referências colaterais∗ 12,73

Total 100

A maioria dos internos no caso da UAPI – Val-de-Cans primeiramente teve

acesso a instituição através do abrigo Dom Macedo Costa a partir do qual 30 e,

posteriormente, mais 8 idosos passaram a residir nesta nova unidade. Os idosos que

atualmente residem na instituição chegaram a ela através, em sua maioria, da

comunidade (vizinhos, amigos do idoso) e de familiares, como se observa na tabela que

se segue12:

10 Relatório Anual das Atividades do Ano de 2002 – UAPI – Socorro Gabriel. 11 Idem. ∗ Vínculo de procedência “não-parentesca”, ou seja, de outras procedências como, por exemplo, vizinhos, amigos, etc. 12 Relatório Anual das Atividades do Ano de 2002 – UAPI – Val-de-Cans.

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Procedência Quantidade de Idosos

Pavilhão São José 02

FBESP 03

Hospital da Aeronáutica 01

Comunidade 11

Pronto Socorro de Icoaraci 01

Família 06

Santa Casa de Misericórdia 01

CIASPA 02

Ministério Público 01

Total 28

No que se refere ao foco central desta pesquisa, o estudo de memória social e

história de vida de velhos negros, especialmente, mas também brancos, a funcionária da

Administração técnica da UAPI – Val-de-Cans observou que a pesquisa poderá

apresentar dificuldades neste sentido, pois segundo a mesma, estes velhos já não

possuem “discernimento” do que é presente e do que é passado13, possuindo

“deficiência mental” e “esclerose”, porém não colocou outras dificuldades para

realização do estudo, a não ser a proibição de registro com material fotográfico14.

Ao mencionarmos que a pesquisa a se realizar na instituição se tratava de um

estudo com perspectiva de registro de memória e identidade de velhos, a posição da

funcionária da UAPI – Socorro Gabriel foi a mesma da funcionária da UAPI – Val-de-

Cans, entendendo que, neste sentido, a pesquisa poderia ter alguns problemas, pois

segundo a mesma, a maioria destes velhos já possui algum tipo de “deficiência mental”,

como, por exemplo, a esclerose, sendo esta a mais comum entre essas pessoas de idade

avançada, porém não colocava nenhum empecilho a realização da pesquisa no local,

apenas com as restrições da não utilização de material fotográfico e do compromisso do

pesquisador em fornecer uma cópia das transcrições das entrevistas com idosos.

13 Para uma interpretação instigante, que constitui um verdadeiro tratado moderno sobre a questão da velhice – com minuciosa refutação dos argumentos acima – ver Cícero (2002), que “respondia” as considerações de seu tempo, ainda na Roma do século IV da era Cristã. 14 Apesar da proibição de registro com material fotográfico, tanto dos internos quanto dos espaços das unidades, as UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel disponibilizaram, por decisão e escolha própria, algumas fotos para ilustrar a pesquisa.

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Ao perguntar sobre o número de velhos negros que residem na instituição, pude

observar a conhecida problemática de identificação racial que ocorre no Brasil, pois a

funcionária apenas identificou aqueles imediatamente reconhecíveis, ou seja, que

apresentam a cor da pele bem escura, em relação a outros, devido ao seu fenótipo.

Apesar disso, parece ser evidente a percepção da identificação das pessoas nestes

termos, uma vez que a mesma funcionária observou que ocorre o que ela chamou de

“situações de discriminação racial” na UAPI – Socorro Gabriel envolvendo velhos

brancos em relação a velhos negros.

De acordo com ela, a instituição está dividida entre pessoas “dependentes”, ou

seja, pessoas que, por algum motivo, seja deficiência física ou mental, ou até mesmo a

idade bastante avançada, não podem exercer nenhuma atividade sem a ajuda de algum

funcionário ou enfermeiro; e pessoas “não-dependentes”, assim denominadas as pessoas

que ainda podem realizar algumas atividades básicas, como tomar banho e alimentar-se

sozinhas. Existe uma quantidade maior de pessoas “dependentes” na UAPI – Socorro

Gabriel do que de pessoas “não-dependentes”, sendo que as primeiras ocupam a

enfermaria da instituição, não ocupando os dormitórios em que estão alojados os “não-

dependentes”. Uma pessoa é encaminhada à enfermaria quando sua saúde se encontra

bastante debilitada, caso contrário, continua ocupando os dormitórios.

Ao freqüentar algumas vezes a UAPI – Val-de-Cans pude observar que a

maioria destes internos ainda pode exercer algumas atividades sem a ajuda de

funcionários ou enfermeiros, podendo até, em determinados casos, sair da instituição

para caminhadas, passeios, inclusive pela cidade de Belém, mediante autorização da

equipe técnica; ou seja, esta instituição possui a maioria de idosos não-dependentes, fato

que a diferencia da UAPI – Socorro Gabriel. Tal observação foi confirmada pela

assistente social da instituição, que acrescentou: “quando o estado de velhice se acentua

eles são transferidos para UAPI – Socorro Gabriel”, uma vez que esta possui uma

estrutura mais adequada de enfermaria para tratar das deficiências por estes velhos

apresentadas.

Nas duas UAPI(s) os enfermeiros constantemente estão aplicando a medicação

destinada aos internos, sendo que, segundo informações, estes medicamentos são

receitados de acordo com o problema individual de cada um deles.

29

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Foto 5 – Passeio: Idosos da UAPI – Val-de-Cans na Caminhada pela Saúde na Praça Batista Campos

Fonte: UAPI – Val-de-Cans, 2002.

Foto 6: Idosos da UAPI – Socorro Gabriel sentados no sofá

Fonte: UAPI – Socorro Gabriel, 2002.

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Trabalhando na UAPI – Val-de-Cans existe um total de 50 funcionários, sendo

três assistentes sociais (mulheres), sendo uma delas “gerente”; três médicos (clínico

geral, psicólogo∗, psiquiatra)15; uma nutricionista e quatro enfermeiros (homens e

mulheres) fazem parte da equipe técnica da instituição. Os demais funcionários estão

assim divididos: oito cozinheiros (homens e mulheres), oito atendentes de enfermagem

(homens e mulheres), três auxiliares administrativos (homens e mulheres), dezessete

cuidadores de idosos (homens e mulheres), uma lavadeira e dois vigias.

No caso da UAPI – Socorro Gabriel, existem 148 funcionários, ou seja, 98

funcionários a mais do que na outra instituição, o que segundo um auxiliar técnico,

deve-se ao número de internos e principalmente ao estado de saúde dos mesmos, pois,

como já foi mencionado, a instituição possui uma quantidade de indivíduos

“dependentes” superior a de “não-dependentes”. Fazem parte da equipe técnica da

instituição: uma advogada (que não funciona como tal e sim como gerente da

instituição), um psicólogo, uma assistente social, um médico, um psiquiatra, uma

terapeuta ocupacional, uma fisioterapeuta, seis enfermeiros (homens e mulheres), uma

nutricionista e dois auxiliares técnicos. Os demais funcionários estão assim divididos:

quinze agentes administrativos (homens e mulheres), trinta e sete auxiliares de

enfermagem (homens e mulheres), trinta cuidadores de idosos (homens e mulheres),

vinte agentes de portaria, quatro cozinheiros (homens e mulheres), vinte serventes

(homens e mulheres), um motorista, dois auxiliares de serviços complementares, uma

costureira e dois vigias.

A equipe técnica das duas instituições freqüentemente promove passeios

coletivos16 (por ocasião de festas ou comemorações) para outras instituições de idosos,

balneários (Neópolis), bem como oficinas ocupacionais na própria instituição, como as

de tapeçaria que ocorrem na UAPI – Val-de-Cans, por exemplo. Nesta mesma

instituição, todas as quintas-feiras, reza-se, coletivamente, o terço às 8 horas da manhã e

∗ Nota-se que nestas instituições o profissional de psicologia está inserido na condição de médico, entendido como se fosse um “médico da cabeça” se assim pudermos denominar. 15 Estes 3 médicos não são funcionários efetivos da instituição e apenas prestam serviços para a mesma. 16 Um dos passeios mais comentados pelos idosos da UAPI – Val-de-Cans foi o Círio dos Idosos, onde estes realizaram uma procissão na semana do Círio de Nazaré pela principal rua do bairro, dando a volta pelo quarteirão; também o passeio mais comentado pelos idosos da UAPI – Socorro Gabriel diz respeito ao Círio, quando os internos tiveram a oportunidade de homenagear a Santa Nossa Senhora de Nazaré no Santuário da Basílica de Nazaré na praça do CAN.

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na última quinta-feira do mês, é celebrada uma missa, no mesmo horário. É válido

ressaltar que tanto essas atividades mencionadas acima, como passeios, oficinas

ocupacionais ou essas duas de caráter religioso, não são atividades obrigatórias, ou seja,

só participam os internos que se interessam pelas mesmas.

Contudo, é importante que se deixe bem claro que é fácil visualizar que toda

atividade realizada pelos internos é feita sob a supervisão dos funcionários ou dos

monitores (dirigentes), e se realiza como se feita por grande número de “iguais”17 (cf.

Goffman, 1974; 1982), que fazem as mesmas coisas em conjunto. Essas atividades são

pré-estabelecidas em dias e horários, rigorosamente cumpridos, para que haja o bom

funcionamento da instituição e sua meta seja cumprida, do seu ponto de vista, isto é, de

seus dirigentes.

Sendo assim, percebe-se que a vida dos internos é controlada e administrada

pelos funcionários ou dirigentes da equipe técnica que cuidam do acompanhamento das

atividades realizadas na instituição, sendo responsáveis pela manutenção da ordem e

principalmente sendo a “mão” do Estado na mesma. Nota-se, também, o modo

homogeneizado de se referir às pessoas que residem nesta instituição, como internos,

característico das instituições totais. Estas características podem ser melhor observadas

no referencial trabalho de Maria Luiza Gusmão (1978), que fez um estudo sobre a

ideologia do velho asilado em um abrigo para idosos, sob administração da “Casa do

Candango”, em uma cidade satélite de Brasília. Nesta obra Gusmão mostra a instituição

do ponto de vista de três atores diferentes: dos internos, dos funcionários, e dos

dirigentes da instituição.

Neste sentido, podemos perceber, também, o caráter disciplinar existente nestas

instituições, e lembrar outra vez Foucault (1977, 1979) quando nos ensina que a

disciplina é uma técnica de poder que faz com que indivíduos sejam vigiados

constantemente, possibilitando o registro, o controle e o acúmulo de saber sobre os

indivíduos vigiados; além disso, ela é também o controle do tempo e análise do espaço,

uma vez que baseia-se na visibilidade, na regulamentação minuciosa do tempo e na

localização exata dos corpos nesse espaço.

17 De acordo com Goffman (1982) a categoria sociológica iguais é atribuída a todos os indivíduos que compartilham de um mesmo tipo de estigma.

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Os internos das duas unidades, onde realizei a pesquisa, não podem sair da

instituição, a não ser acompanhados por um funcionário da mesma – isso no caso de

alguns internos que saem uma vez por mês para receber proventos (pensões ou

aposentadorias) ou no caso de visitas de parentes que os levam para passar o fim de

semana ou algumas datas comemorativas, como aniversários, natal, etc. Porém, como já

se sabe, em raros e determinados casos, ocorre que um ou outro interno da UAPI – Val-

de-Cans, em boas condições de saúde, pode receber autorização da equipe técnica para

passear pela cidade de Belém, realizar caminhadas, ou até mesmo, visitar parentes ou

conhecidos.

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Capítulo II – A Associação Santa Luiza de Marillac

1 – A escolha da Associação como “Locus” da Pesquisa

Esta etapa do trabalho de campo corresponde a segunda vigência de bolsa de

iniciação científica PIBIC/ CNPq, que foi pensada, a princípio, para ser realizada na

residência das pessoas que se dispusessem a participar da pesquisa. Entretanto, com a

intenção de se obter mais prontamente (dado o tempo de desenvolvimento do estudo)

um maior número de participantes, optei por desenvolver o trabalho de campo num

local (que não possuísse características semelhantes a asilos, pois a pesquisa anterior se

realizou neste tipo de instituição, como foi mostrado no primeiro capítulo) onde esses

indivíduos se encontrassem agrupados em maior número, ou seja, caracterizando um

local específico onde o estudo pudesse ser realizado.

Assim, pensou-se primeiro em realizar a pesquisa com um “Grupo de Terceira

Idade” na Escola Superior de Educação Física da Universidade do Estado do Pará

(UEPA), porém, mesmo após algumas mulheres do grupo terem se disposto a participar,

percebi que geralmente depois das atividades de dança, caminhada, expressão corporal,

dentre outras, que são realizadas naquele local, elas não tinham muito tempo para as

conversas, pois tinham que retornar para suas residências para cuidar de outros afazeres,

ou devido ao horário necessário para esse retorno.

Conversando sobre as dificuldades de desenvolver a metodologia da pesquisa

com a professora de educação física deste grupo de terceira idade, ela me indicou a

Associação Santa Luiza de Marillac, onde também desenvolve sua atividade

profissional de forma voluntária. Ao visitar a Associação pude perceber que o local

preenchia os requisitos necessários para o andamento da pesquisa, possuindo um

número bastante relevante de freqüentadoras que não vão somente para as atividades lá

promovidas, mas também para conversar sobre assuntos do cotidiano, familiares, etc.,

como será mostrado no item seguinte, em que pretendo dar uma idéia geral da

Associação Santa Luiza de Marillac, bem como das mulheres que a freqüentam. Então,

foi a partir destes fatos que se deu o encaminhamento da escolha do locus onde se

realiza o trabalho de campo.

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2 – O Cenário Pesquisado: A Associação Santa Luiza de Marillac

A Associação Santa Luiza de Marillac foi fundada na cidade de Belém no dia 15

de março de 1935 (tendo portanto, cerca de 69 anos de existência) por um grupo de

mulheres católicas que tinham por objetivo disseminar o evangelho cristão, através do

atendimento social a idosos “carentes” e “desamparados”. De acordo como Dona Suely,

presidente da Associação, esta instituição beneficente teve sua primeira sede nas

dependências do Dispensário São Vicente de Paulo, onde permaneceu durante 54 anos.

Esta Associação se encontra presente em outras cidades do país e tem como inspiração

as primeiras Associações de Damas de Caridade, conhecidas pelo nome de “Caridades”

fundadas por São Vicente de Paulo em 1617 na França, da qual Luiza de Marillac18 era

membro integrante.

Na cidade de Belém, a sede da Associação se encontra localizada na Travessa

Ferreira Pena nº 593, no bairro do Umarizal, funcionando principalmente nos dias de

terça, quinta e sexta-feira. A Associação Santa Luiza de Marillac se configura como

uma instituição sem fins lucrativos, ou seja, uma associação beneficente de caráter

filantrópico e, principalmente, como um espaço de convivência de mulheres idosas,

onde se conversa assuntos do cotidiano, assuntos familiares, da vizinhança, etc. Enfim,

a Associação se configura enquanto um espaço de interação e de sociabilidade dessas

mulheres, semelhante, entre outros, ao grupo de convívio de terceira idade estudado

pela antropóloga Flávia de Mattos Motta na cidade de Porto Alegre.

18 Luiza de Marillac nasceu no dia 15 de agosto de 1951 em Paris. Ela foi pupila espiritual de São Vicente de Paulo, com quem fundou na França a Companhia das “Filhas de Caridade” ou simplesmente “Caridades”. Esta ordem religiosa foi a primeira em que as irmãs podiam sair as ruas para trabalhar em hospitais e não eram obrigadas a fazer o voto perpétuo. A partir daí Luiza de Marillac foi guia para vários grupos femininos de assistência a pessoas necessitadas. Ela faleceu em 15 de março de 1660, em paris. Foi beatificada em 1920 e canonizada em 1934 pelo Papa Pio XI, sendo considerada padroeira dos doentes, dos vicentinos e das viúvas, além de ser patrona de todas as obras sociais. As informações adquiridas sobre Santa Luiza de Marillac, bem como, sobre a origem e fundação da Associação na cidade de Belém, foram obtidas no “Projeto Social” da Associação e em pesquisas em sites da Internet: www.filhasdacaridade.com.br/fundadores , www.psleo.com.br/santos_03.htm.

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Motta (1998) ao pesquisar em um grupo de idosos da LBA - Legião Brasileira

de Assistência (em local onde a maioria dos freqüentadores eram mulheres19) tinha

como objetivo compreender como se desenvolve a construção de uma identidade

feminina na velhice, e observa que a “faceirice” (o ato de se pintar, embelezar, passear,

namorar, dentre outros) se assenta como o eixo central da noção de feminilidade

daquelas mulheres, se conformando como um estilo, uma estética, um ethos específico

das mesmas, como a autora nos mostra:

“A identidade feminina que aqui examino está definida em função de uma certa noção (e vivência) de feminilidade. Como parto do pressuposto de que ‘noções de feminilidade’ não são universais e que, portanto, há ‘n’ maneiras de construir essa noção, vou aqui referir-me à que é particular ao grupo estudado, como faceirice. A faceirice é o eixo central que define a identidade feminina das mulheres que observei em dado contexto e em determinado momento de suas vidas – segundo um estilo, uma estética, um ethos específico” (Motta, 1998: 16-17).

Desta forma, o trabalho de Motta se diferencia de outros estudos sobre

identidade e sociabilidade de velhos (cf. Barros, 1981; Debert, 1984; Motta, 1999) que

tomam o aspecto da velhice como concepção fundamental para a construção da

identidade das pessoas que se encontram neste período da sua vida.

Do mesmo modo que Motta observa no grupo de terceira idade da LBA, na

Associação Santa Luiza de Marillac não existe um tipo absoluto de idosa faceira ou uma

“velha faceira” típica, como aponta a autora, mas sim, o que tenho visto é que entre as

mulheres idosas que freqüentam o espaço estudado, algumas são mais e outras menos

faceiras. Talvez, pelo fato dessas mulheres possuírem baixos recursos financeiros (até

mesmo inferiores aos recursos que as informantes de Motta possuíam) essa “faceirice”

não se expresse (não possa se expressar) tanto em vestidos, colares e outros objetos de

adorno feminino, porém, isso não impede que elas concebam e externalizem esta

faceirice de outras formas, não em si mesmas, mas nas relações com os outros, homens

particularmente, através de coisas como passeios, paqueras e, por que não, namoro.

Um exemplo que pode ilustrar a construção da identidade de velha faceira nessa

idade é que mesmo residindo no asilo UAPI – Val-de-Cans, Dona Maria do Carmo e

19 Embora não tenha dados mais representativos oriundos de pesquisas, posso dizer, de acordo com observações e informações obtidas, que essa maior freqüência feminina parece ser uma constante nestes grupos assistenciais à idosos e nos chamados clubes de terceira idade.

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Dona Nair apresentavam essa noção de feminilidade. Dona Maria do Carmo era

considerada, principalmente por mulheres, como “namoradeira” e “metida”, talvez por

ser muito vaidosa e gostar de estar sempre bem arrumada, unhas dos pés e das mãos

pintadas, cabelo cortado, sobretudo por possuir alguns bens dentro da instituição que

outras internas não possuíam, como: cordões, brincos, pulseiras e, até mesmo, bonecas

que exibia com orgulho. Dona Nair, outra interna, chegou a ter um relacionamento com

Seu Raimundo, também interno; o relacionamento surgiu desde a Casa do Ancião Dom

Macedo Costa, outro asilo, onde se conheceram, porém o namoro terminou devido a

saída deste interno da UAPI – Val-de-Cans para residir com seu filho. (cf. Vaz Silva

2003 a).

É sabido que algumas idosas sofrem mais e de diferentes formas o impacto da

velhice e por diversos fatores, e isto está (ou pode estar) intimamente relacionado com a

construção ou não da identidade “faceira” na velhice, tomando emprestado o termo de

Motta. Além disso, acredito que este fato influencia também na forma de faceirice –

idosa com pretensões “namoradeiras” ou simplesmente que gostam de se enfeitar,

passear, etc. – que uma ou outra idosa possa ter. Posso utilizar como exemplo a

experiência que tive com as mulheres idosas da Associação Santa Luiza de Marillac

quando li para elas os direitos que o Estatuto do Idoso lhes garante e, percebi, confesso

com um pouco de demora, que a grande maioria delas estava mais interessada em saber

se teria entrada gratuita ou não em cinemas e outros locais de diversão pública e,

principalmente, o que precisariam fazer para viajar para outros Estados onde tem

parentes e/ou conhecidos, já que a lei agora lhes garante este benefício20, do que outros

itens do texto que lhes garantem o direito a cidadania (de outras formas) como, por

exemplo, a criminalização da discriminação ao idoso. Apesar deste fato, deram sempre

a devida atenção a leitura e não desvalorizaram as demais conquistas.

Assim, o interesse destas informantes pela gratuidade nos cinemas, na passagem

para viajar e conhecer outras cidades ou encontrar com parentes e amigos corrobora

com as várias conversas informais que tive com muitas delas ao longo do trabalho de

campo sobre assuntos que são freqüentemente relatados, como por exemplo, as idas as

20 De acordo com o Estatuto do Idoso, em viagens interestaduais as companhias rodoviárias devem reservar uma quantidade de vagas de forma gratuita para os indivíduos que possuam mais de 60 anos de idade, desde que estes marquem a passagem com um período de antecedência.

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praças da cidade de Belém que cada uma delas realiza nos finais de semana com os

netos e outros parentes, as visitas a outras instituições e os passeios em sítios e

balneários promovidos pela Associação também são mencionados, fazendo, então, com

que a “faceirice” a que me refiro, no caso destas interlocurtoras, se expresse em sua

maioria desta maneira.

Pode-se dizer que a Associação Santa Luiza de Marillac é um espaço de

interação e sociabilidade fundamentalmente marcado pela presença feminina, ou seja, a

maioria das pessoas, se não todas, que freqüentam este local de convivência são

mulheres; a presença de homens neste local se realiza apenas esporadicamente,

principalmente no dia da doação das cestas básicas para os idosos que a Associação

promove no terceiro domingo de cada mês ou quando é preciso fazer algum tipo de

reparo na casa, como por exemplo, consertar o encanamento ou infiltração, ou seja, a

presença se dá com data e horário marcados, se assim pudermos nos referir. Mesmo

assim, os que aparecem para receber a assistência estão em número muito pequeno e

alguns alegando que foram representar sua esposa que por ocasião não pode

comparecer. A dificuldade de acesso a alguns documentos da Associação Santa Luiza

de Marillac21 inviabilizou a verificação se algum homem possui registro na instituição

ou não, para o recebimento da cesta básica. Mesmo sabendo que este fato não

compromete o desenvolvimento da pesquisa, seria importante para obtenção de alguns

dados, como por exemplo, a quantidade de pessoas que estão realmente inscritas na

Associação e há quantos anos essas pessoas estão lá, bem como, o número de pessoas

que recebem a assistência com as cestas básicas, dentre outros, que contemplariam

melhor as informações sobre a instituição pesquisada.

A maioria das mulheres que freqüentam a Associação possui idade superior a

sessenta anos de idade e possui baixas condições financeiras, sendo oriundas de

diversos bairros periféricos de Belém, como: Jurunas, Guamá, Terra-Firme, dentre

outros; e, ainda, existem casos de mulheres que se deslocam de Ananindeua, Marituba e

21 É importante dizer que nas Unidades de Acolhimento à Pessoa Idosa, asilos públicos do Estado, não tive este tipo dificuldade, pois tive acesso a alguns livros de registros das UAPI(s), bem como, informações dos prontuários psico-sociais dos internos que lá residem.

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Icoaraci22 até a Associação, porém em menor número. Assim, este espaço de

convivência se conforma enquanto o seu “pedaço”, isto é, um local de encontro e lazer

para um grupo de mulheres idosas que procuram a Associação para estabelecer uma

rede de relações sociais com pessoas que possuem características em comum com elas,

partilhando de gostos, hábitos e valores semelhantes que lhes confere o caráter de um

grupo. De acordo com José Guilherme Cantor Magnani, preocupado com o

desenvolvimento dos estudos em antropologia urbana, em trabalho intitulado “Quando o

campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole” (2000), a categoria “pedaço” é

definida como um determinado espaço territorial demarcado, ou um segmento deste

espaço, que se torna referência na distinção de um grupo específico que freqüenta e faz

parte do mesmo; pertencendo a sua rede de relações. Para Magnani é no “pedaço” que

se desenvolvem as relações do cotidiano, a vida do dia-a-dia na vizinhança, as trocas de

informações, também, sendo o espaço privilegiado para as práticas de lazer nos bairros

populares.

Porém, o autor sinaliza que a categoria “pedaço” não se restringe apenas a

bairros populares, existindo também nas regiões centrais da cidade, como por exemplo:

lugares de encontro, lazer, onde indivíduos não precisam se conhecer necessariamente

nas relações estabelecidas no cotidiano do bairro, como é, neste sentido, o caso das

mulheres que freqüentam a Associação Santa Luiza de Marillac, com exceção de

algumas vizinhas e irmãs que freqüentam juntas a instituição. Deste modo, compreendo

como o “pedaço” das mulheres idosas que freqüentam a Associação não só as suas

vizinhanças e os bairros dos quais são oriundas, onde se desenvolvem as relações do

dia-a-dia com familiares e amigos, mas também a própria Associação Santa Luiza de

Marillac, uma vez que, enquanto grupo de terceira idade ou grupo de convivência, como

mostrarei mais adiante, esta instituição se configura como um dos espaços de interação,

sociabilidade e lazer destas idosas, sendo assim, no sentido de Magnani, o seu “pedaço”.

Pode-se dizer, então, que na associação se comunga de valores, hábitos e gostos

em comum, caracterizando-se, principalmente, a idade e a feminilidade como fatores

distintivos, fazendo com que essas mulheres idosas tenham um sentimento de pertença a

22 Estas localidades se encontram mais afastadas do centro de Belém, sendo que Icoaraci é um distrito e fica a 14 km do centro desta cidade; e Ananindeua e Marituba são municípios do Estado do Pará que fazem parte da região metropolitana de Belém.

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um grupo comum, ou seja, sintam-se fazer parte de um mesmo grupo, onde se possui

códigos e símbolos semelhantes que marcam a diferença e o caracterizam como grupo.

Assim, para Magnani (op. cit) a categoria “pedaço” deve ser compreendida como uma

forma particular de sociabilidade e apropriação do espaço, sendo resultado de práticas

coletivas e, ao mesmo tempo, condição para seu desenvolvimento e fruição.

Diferentemente das UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel que possuem

características asilares, onde os idosos residem na instituição (como mostrei no capítulo

anterior), as mulheres idosas apenas freqüentam e participam das atividades promovidas

pela Associação Santa Luiza de Marillac e não residem na mesma.

3 – A organização interna da Associação

No período que corresponde aos meses de janeiro e fevereiro de 2004, a casa que

funciona como sede da Associação Santa Luiza de Marillac começou a apresentar

alguns problemas como alagamento, infiltração nas paredes e destelhamento devido as

fortes chuvas e ventos que se intensificam durante esta época do ano em Belém. Devido

a este fato, durante o mês de março e grande parte de abril a Associação passou a

realizar suas atividades apenas um dia por semana, mas sem designar um dia específico,

a depender da chuva, o que diminuiu bastante a freqüência das mulheres idosas que a

procuram, e que na maioria das vezes, contou apenas com a presença da presidente,

Dona Suely.

No final do mês de abril a sede da Associação que, como já disse, está localizada

na Travessa Ferreira Pena nº 593, no bairro do Umarizal, entrou em obras para reformar

as estruturas da casa que já se encontravam abaladas devido o passar dos anos e as

fortes chuvas que costumam cair na cidade de Belém. Assim, a Associação se encontra

funcionando atualmente durantes os dias de segunda, terça e quartas-feiras em outro

local, o dispensário São Vicente de Paula, localizado na Travessa Soares Carneiro entre

a Avenida Senador Lemos e a rua Municipalidade, no bairro do Telégrafo.

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Foto 7 – Missa: O arcebispo Dom Vicente Zico celebrando a Quaresma com as idosas da Associação Santa Luiza de Marillac

Fonte: Associação Santa Luiza de Marillac, 2004.

Foto 8 – Comemoração da Semana Santa na Associação Santa Luiza de Marillac

Fonte: Associação Santa Luiza de Marillac, 2004.

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Deste modo, para a reforma da casa, sede da Associação Santa Luiza de

Marillac, a presidente, Dona Suely, conseguiu através de ofício encaminhado a SETEPS

um pequeno recurso financeiro para realização das obras, porém a quantia recebida não

foi suficiente para totalização da reforma pela qual a associação atravessa. Assim, outras

formas de obtenção de recursos (além do bazar da pechincha, dos artesanatos e

confecções, como mostrarei mais adiante) foram iniciadas, em que se destaca a

utilização dos meios de comunicação (impresso e televisivo), solicitando a ajuda aos

comerciantes, empresários e a sociedade civil em geral, sob forma de apelo, enfatizando

a importância em colaborar com a reforma da associação e manutenção das cestas

básicas, para que, assim, se possa dar continuidade ao trabalho de assistência aos idosos

que procuram a Associação Santa Luiza de Marillac, promovido por esta instituição.

Assim, como na ocasião das reportagens estava desenvolvendo minha pesquisa e

freqüentando periodicamente esta instituição, fui convidado a participar de duas delas,

auxiliando Dona Suely e as idosas na relação com responsáveis pela reportagem, bem

como, com alguns depoimentos sobre a Associação.

Durante o mês de julho as atividades realizadas pela Associação foram

novamente interrompidas devido a chegada de um grupo de freiras oriundas de várias

localidades do interior do Estado, que vieram a Belém para participar de um retiro de

orações e ficaram hospedadas no dispensário São Vicente de Paula. Porém, no mês de

agosto as atividades já normalizaram, sendo realizadas nos dias de segunda, terça e

quarta-feira, como já foi dito.

A Associação Santa Luiza de Marillac é composta por dois grupos distintos de

mulheres: a) as associadas ou “Luizas” (voluntárias); b) as idosas (assistidas). As

“Luizas”, como já disse, são as mulheres católicas que se disponibilizaram como

voluntárias na disseminação das práticas cristãs para a assistência filantrópica de velhos

considerados como carentes e desamparados. As idosas são as mulheres que procuram a

Associação ou que chegaram até ela através de outras pessoas e que são beneficiadas

pela atividade desenvolvida pelas “Luizas”. Porém, no decorrer do trabalho de campo

pude observar que, na sua organização, se configura um terceiro grupo na Associação

composto por algumas mulheres idosas que são beneficiadas pela instituição e

receberam elas também o título de “Luizas”, e que serão referidas por mim, a partir

daqui, como “Luizas-beneficiadas”. Devo dizer que estas idosas não são classificadas

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por si e por outras pessoas desta maneira e, sim, apenas, como “Luizas”, portanto a

categoria “Luizas-beneficiadas” não se configura como uma categoria nativa (cf.

Malinowski, 1978), sendo fruto da classificação do pesquisador – embora surgida/

constituída a partir das observações em campo. Desta forma, temos: as associadas ou

“Luizas” (voluntárias); as idosas (assistidas) e as “Luizas-beneficiadas” (idosas

assistidas que receberam o título de “Luizas”).

As idosas que passaram a serem designadas por “Luizas” na Associação (e por

mim “Luizas-beneficiadas”) receberam tal titulação por sua atuação e desempenho ao

longo dos anos no exercício da caridade e voluntarismo aos idosos que necessitam de

assistência, que se constitui como a principal meta das “Luizas”, além de disseminar o

evangelho cristão. Uma característica que diferencia as “Luizas” e as “Luizas-

beneficiadas” das demais idosas, além da nomenclatura ou titulação de “Luizas”, é o

fato destas possuírem um cordão com um crucifixo grande de madeira que é dado a elas

por sua ação e empenho como voluntárias no amparo de idosos carentes e necessitados.

Desta forma, este cordão representa (além dos significados que o cristianismo confere

ao objeto) a prática da caridade e do voluntarismo na assistência dos idosos

desamparados.

A Associação não possui muitos recursos financeiros, mantendo-se,

principalmente, com a mensalidade paga pelas associadas ou “Luizas” que estão

atualmente em número mais ou menos de 42 mulheres. Além das mensalidades a

Associação recebe doações e proventos de alguns colaboradores (principalmente,

comerciantes da cidade de Belém), sendo obtida, também, uma pequena renda com a

venda periódica de algumas roupas e objetos usados (“bazar da pechincha”) e com a

venda de alguns trabalhos artesanais que são confeccionados pelas próprias idosas.

Todos os recursos financeiros obtidos pela Associação são utilizados na manutenção da

casa e, principalmente, para composição da cesta básica23 fornecida aos idosos todos os

meses. O dia da doação pode variar, dependendo fundamentalmente dos recursos

obtidos para a composição da cesta básica, mas a entrega é realizada principalmente no

terceiro domingo de cada mês. 23 A cesta básica é geralmente composta por: Arroz, feijão, macarrão, sal, açúcar, café, biscoito e farinha de mandioca. A quantidade de alguns alimentos que compõem a cesta básica pode variar de acordo com a quantidade de produtos arrecadados, podendo determinado produto constar ou não na cesta básica, de acordo com a situação.

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A Associação promove algumas atividades ocupacionais para as idosas, como

por exemplo, as atividades de educação física que são realizadas nos dias de terça-feira

e quinta-feira e a atividade de música que ocorre às sextas-feiras. A atividade de

educação física tenta proporcionar um cuidado com a parte muscular e articulação das

mulheres idosas, bem como caminhadas, dinâmicas de grupo, expressão corporal, além

de atividades recreativas como jogos, brincadeiras etc., enquanto a atividade musical

tem por objetivo a formação de um coral. De acordo com os comentários das

interlocutoras as duas principais atividades trazem benefícios para elas, sendo que os

resultados das atividades de educação física são mais percebidos no dias-a-dia, nas

tarefas realizadas em casa e nas caminhadas pela cidade, enquanto o reflexo das

atividades de música estão sempre remetidos ao lúdico, ao gosto pela música que grande

parte delas dizem possuir.

É importante dizer que as atividades promovidas na Associação são, na maioria

das vezes, realizadas com muito improviso, como no caso das aulas de educação física

em que as idosas utilizam pequenas garrafas plásticas de refrigerante preenchidas com

areia como haltere (peso). Além disso, esses profissionais que desempenham seu

trabalho na Associação não possuem nenhum vínculo empregatício com a mesma,

realizando-o de maneira voluntária, uma vez que esta não possui muitos recursos

financeiros e não teria como contratar tais profissionais.

Desta forma, é de fundamental importância que se compreenda a Associação

Santa Luiza de Marillac como uma instituição beneficente de caráter filantrópico para

assistência a pessoas idosas, mas, sobretudo ou talvez mais – no que se refere as idosas

assistidas por ela, sua característica de sociabilidade para este grupo social. Assim,

pode-se dizer que instituição proporciona para as idosas que a freqüentam um espaço de

interação privilegiado, configurando-se como um espaço social, que atualmente, passa

por um largo processo de expansão na sociedade moderna e com freqüência, vem sendo

denominado de “grupo de convivência” ou “grupo de terceira idade”.

De acordo com a antropóloga Simoni Lahud Guedes (1999), em artigo intitulado

“A concepção sobre a família na Geriatria e na Gerontologia brasileiras: ecos dos

dilemas da multidisciplinaridade” em que esta discute a temática da velhice, tomando

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para análise o ponto de vista de geriatras e gerontólogos, ela indica que os “grupos de

convivência” ou “grupos de terceira idade” tem por objetivo proporcionar uma melhor

qualidade de vida para os idosos, para que eles possam ser pessoas mais saudáveis,

pessoas que se relacionem tanto com pessoas adultas quanto com jovens e

principalmente, estejam bem com sua família, fazendo com que tais características

(saúde, normalidade e relacionamento familiar harmonioso) apontem para uma “velhice

bem-sucedida” em detrimento de uma “velhice mal-sucedida”, como se refere a autora.

Segundo Guedes, deste ponto de vista a “velhice bem-sucedida” é marcada

fundamentalmente pelo eixo simbólico da atividade/inclusão e, é/ deve ser trabalhada

pelos grupos de convivência no sentido contrário da “velhice mal-sucedida” que é

demarcada pelo eixo simbólico da inatividade/exclusão.

Assim, partindo desta perspectiva também podemos considerar a Associação

Santa Luiza de Marillac como uma instituição que preza por uma melhor qualidade de

vida para as idosas que a freqüentam, tentando proporcionar a elas uma “velhice bem-

sucedida” no mesmo sentido que fazem (porém de formas diferenciadas, por serem

instituições privadas) os “grupos de convivência” ou “grupos de terceira idade”

mencionados por Guedes (op. cit).

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Capítulo III – Os Interlocutores da pesquisa: Quem são esses velhos e velhas a

quem tanto ouvi?

Neste capítulo, como o próprio título já indica, pretendo mostrar, da forma mais

completa que me for possível fazê-lo, o perfil e a história pessoal de cada uma das dez

pessoas que concordaram em participar da pesquisa como interlocutores, bem como a

construção de esquemas de parentesco que enfatizam as idéias (representações) sobre a

cor/ raça de alguns deles. Isto tem a finalidade de introduzir o leitor na discussão sobre

o sistema de classificação racial brasileiro e sobre as imagens e interpretações

construídas sobre o negro no final do século XIX e início do século XX em Belém, que

se constitui no foco central deste trabalho e será abordado no quarto tópico deste

capítulo, mas, principalmente, no próximo capítulo onde a questão é trabalhada de

forma mais ampla.

Além disso, no terceiro tópico deste capítulo, elaborei um quadro que reúne itens

em comum sobre os informantes, como por exemplo: cidade de origem, residência em

instituições asilares, cor da pele e tipo de cabelo, dentre outros, com a finalidade de

mostrar o conjunto dos dados coletados com esses interlocutores que foram referidos na

história pessoal de cada um deles. É importante esclarecer que todas as informações

sobre os velhos, contidas nesta parte do trabalho, são fruto das lembranças ou relatos

sobre a história de vida desses interlocutores, bem como, das observações do

pesquisador e dos depoimentos de funcionários e dirigentes das instituições.

1 – Os Internos das Unidades de Acolhimento a Pessoa Idosa

Este tópico se deterá no perfil e história pessoal dos informantes – assim como

nos esquemas de cor/ raça e parentesco de alguns deles – que residem em duas

instituições públicas de caráter asilar: as Unidades de Acolhimento a Pessoa Idosa,

UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel. Nestas duas Unidades os interlocutores estão

em número de seis pessoas, sendo quatro homens: Seu Abílio, Seu Francisco, Seu

Euclídes e Seu Isidoro do Carmo; e duas mulheres: Dona Olívia e Dona Nair.

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Seu Abílio

Foi na recepção da UAPI – Socorro Gabriel que pude conhecer Seu Abílio, um

velho negro, calvo, com cabelo bem crespo e totalmente esbranquiçado, que possui 84

anos e nasceu no município de Acará, no interior do Estado do Pará. Ele é magro de

estatura mediana, anda com ajuda de um “andador” e possui a voz muito baixa que

chega a ser preciso fazer um pouco de esforço para escutar. Seu. Abílio é, ou pode ser

imediatamente identificado por sua cor, como negro por ser “muito escuro”24, apesar da

referência a esta sua pretensa identificação ter surgido em poucas oportunidades nos

seus relatos e em conversas informais com o pesquisador. Em algumas destas conversas

pude identificar, através do seu depoimento, que ele sempre pertenceu a uma família

pobre, de poucas condições financeiras, tendo tido que trabalhar muito e desde cedo,

para poder obter algo; aliás, sempre se referindo com orgulho a sua profissão de torneiro

modelador e carpinteiro.

Seu Abílio já reside há cerca de seis anos neste tipo de instituição pública do

Estado, passando primeiro pelo abrigo Dom Macedo Costa. Antes de ser transferido

para residir na “casa”, modo como funcionários e internos chamam as UAPI(s), tendo já

residido um período na outra UAPI. O caso dele é um caso comum, pois a maioria das

pessoas que residia no Dom Macedo Costa também foi transferida para outras

instituições; a maioria delas foi para o CEAF Tucunduba e alguns para a UAPI – Val-

de-Cans, como já foi demonstrado (p. 10), para somente no início do ano de 2002 os

idosos serem transferidos para a “casa”, o que indica este tipo de percurso.

A instituição, na opinião do Seu Abílio não é boa, pois ele se queixa da

alimentação e de pretensos roubos que ocorrem freqüentemente no local. Ele se refere a

instituição da seguinte forma: “Aqui é duro (...) aqui é barra!”. Ao comparar a UAPI –

Socorro Gabriel a UAPI – Val-de-Cans Abílio diz: “lá eu ainda podia tomar um tacacá

que vendia na esquina à tardinha, aqui eles não deixam eu comprar um sorvete, quando

passa aí na frente!”. Apesar de não concordar com a forma como algumas coisas

funcionam na “casa”, Seu Abílio se comporta adequadamente, segundo as regras da 24 A partir daqui todas as referências que serão feitas sobre as características físicas dos interlocutores, como por exemplo, a cor da pele “muito escura” ou o tipo de cabelo “bem chegado”, são realizadas através de categorias que foram encontradas ao longo da pesquisa de campo, mencionadas pelos próprios interlocutores.

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instituição, sendo bem visto pelos funcionários, devido seu jeito “ordeiro” e

“comunicativo” e também pelo fato de não chamar muitos palavrões, como dizem que é

costume por parte de alguns internos, principalmente homens, que freqüentemente,

quando estão conversando entre si ou até mesmo com algum funcionário, utilizam-se

bastante de palavrões. Por outro lado, por causa deste e dos outros motivos já referidos,

Seu Abílio não possui muitas amizades com os outros internos, principalmente homens,

suas amizades são com poucas mulheres internas e alguns funcionários, como ele

próprio diz: “não me misturo muito não (...) sou mais chegado das mulheres, não sou

chegado deles não”. Utilizando a palavra “deles” para se referir aos internos do sexo

masculino.

Seu Abílio, como a grande maioria dos internos da UAPI – Socorro Gabriel,

recebe poucas visitas, apenas de uma sobrinha, que quando pode, leva algumas roupas e

frutas para ele. Este interlocutor não possui mais irmãos e esposa, já falecidos. Ele não

chegou a ter filhos com sua mulher, apesar de ter “criado” nove filhos com ela, os

chamados “filhos de criação”, adotados informalmente.

Dona Olívia

Dona Olívia é uma negra de 69 anos que, quanto a cor, é o que se chamaria

também de “muito escura”. Ela possui o cabelo curto e bastante crespo, totalmente

esbranquiçado, sua estatura é mediana e socialmente seria reconhecida como

“gordinha”. Ela nasceu em Belém, onde morou por alguns anos antes de ir ainda criança

para Breves, na Ilha do Marajó. Dona Olívia, quando criança e jovem, morou muito

tempo com seus pais e mais 7 irmãos no interior de Breves, município do Estado Pará,

retornando a Belém, depois de adulta, quando já se encontrava viúva com um filho de

seu primeiro casamento.

Ela morou bastante tempo no bairro do Marco com seu segundo marido, antes

deste ser transferido para o Estado de Pernambuco para trabalhar na Estação

Ferroviária. Após morar 14 anos em Pernambuco ela mudou-se para o Rio de Janeiro,

onde seu segundo marido faleceu. Eles residiram 18 anos no Rio, e após a morte de seu

companheiro, Dona Olívia voltou para Pernambuco para morar com seu filho. Depois

de um ano decidiu voltar para Belém, devido as saudades de seus familiares, sem

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precisar quais sejam. Segundo relata, Dona Olívia decidiu morar por conta própria no

Dom Macedo Costa, pois devido sua idade avançada, não queria dar problemas para

seus parentes. Ela residiu 5 anos no abrigo Dom Macedo Costa e está residindo há 2

anos na UAPI – Val-de-Cans, onde aproveita bastante as oficinas de tapeçaria com as

outras internas que também se interessam por esta atividade.

Ao ser indagada sobre a instituição, Dona Olívia diz: “eu não gosto daqui, mas é

o jeito né!. O salário não dá pra se sustentar lá fora. As minhas sobrinhas me chama pra

morar com elas, mas .... eu passo uma semana, uns dias.” Apesar de não gostar da

instituição, esta informante é bem vista pelos funcionários que lá trabalham, não se

envolvendo em discussões e outros problemas, o que pode ser comprovado, já que ela é

uma das poucas internas que pode sair e passar alguns dias com parentes, como ela

própria nos mostra no relato acima.

Em seus relatos esta interlocutora constantemente se refere aos seus familiares,

sobretudo, às lembranças contadas por sua avó paterna e seu avô materno. Os nomes do

pai e da mãe de Dona Olívia eram, respectivamente, Graciliano Pereira do Nascimento e

Benedita Antônia Pires da Luz. Esta informante chegou a conhecer alguns de seus avós.

Segundo ela, seus avós paternos eram africanos: o nome de sua avó era Zulmira Ferreira

e o do seu avô ela já não se lembra mais. Seus avós maternos eram descendentes de

portugueses. O nome de seu avô era Gregório da Luz e sua avó se chamava Maria Pires.

Recordando das conversas com seu avô, Dona Olívia lembra: “o meu avô Gregório

dizia: ‘ah meus filhos! quando vocês ficarem da minha idade, se vocês chegarem na

minha idade, você vai ter muita coisa pra contar pra frente’”, e assim, esta informante

encerra a entrevista com o pesquisador.

Dona Nair

Dona Nair foi a primeira mulher a estabelecer um diálogo com o pesquisador,

apesar de ser um pouco retraída, às vezes, chegando a ser bastante introspectiva, falando

e sorrindo pouco durante a realização das entrevistas, apesar disto, nunca colocou

dificuldades para realização das mesmas. Ela é uma senhora de cor branca nascida no

Estado de Goiás, e também como Dona Olívia, seria socialmente reconhecida como

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“gordinha”. Esta interna não tem certeza de sua idade correta, mas acredita possuir 72

anos, quatro destes no Dom Macedo Costa, sendo transferida posteriormente para UAPI

– Val-de-Cans onde já reside há 2 anos.

No desenrolar das conversas informais com esta informante, ela relembrou sua

saída de Goiás para a cidade de Belém, pois ela já teria conhecido a cidade

anteriormente por um período e se apaixonado por um rapaz, do qual não referiu o

nome. Então, com sua família em Goiás ela recebeu uma carta de uma moça que lhe

contara que este rapaz estava se envolvendo com outra moça, fato que fez com que

Dona Nair vendesse algumas coisas de valor que possuía e fugisse para Belém a procura

do rapaz. Após alguns meses, Dona Nair e o tal rapaz já possuíam um relacionamento,

que, segundo ela, não durou o período esperado; rompendo com ele, ela preferiu não

retornar para sua família e seu Estado de origem, trabalhando em várias “casas de

família” como empregada doméstica.

Dona Nair nunca se casou, não possui filhos e, de acordo com Dona Maria do

Carmo25, outra interna da instituição, desde que ela fugiu de Goiás nunca mais

estabeleceu contato com sua família e esta última nunca soube o paradeiro de Dona

Nair. Dona Nair chegou a ter um relacionamento com um interno, Seu Raimundo26; o

relacionamento surgiu desde a Casa do Ancião Dom Macedo Costa onde se

conheceram, porém o namoro terminou devido a saída deste interno da UAPI – Val-de-

Cans para residir com seu filho.

Devo dizer que, grande parte do material que coletei com esta interlocutora

escapou aos diálogos estabelecidos com ela no momento em que me utilizava do

gravador, talvez por ela não ter se sentido a vontade com o registro de alguns assuntos 25 Dona Maria do Carmo é uma mulher de 71 anos, de cor branca, cabelo pouco crespo e bastante esbranquiçado. Considerada “namoradeira”, “fuxiqueira”, e, sobretudo, “metida”, talvez por ser muito vaidosa gostando de estar sempre bem arrumada, mas, principalmente, por possuir alguns bens dentro da instituição que a maioria dos internos não possuem, Dona Maria do Carmo não é muito bem vista pelas mulheres da UAPI – Val-de-Cans. Depois de conhecê-la, ao retornar na semana seguinte para dar continuidade a pesquisa recebi a notícia que Dona Maria do Carmo, repentinamente, havia falecido de infarto no dia 19 de novembro de 2002. 26 Seu Raimundo é um negro de 76 anos nascido no interior de Abaetetuba (PA). Consta que Seu Raimundo possui um relacionamento dentro da instituição com a Dona Nair, relacionamento que é do conhecimento tanto dos internos quanto dos funcionário da instituição e existia desde o Dom Macedo Costa, porém não gosta de falar sobre essa questão com outras pessoas, inclusive com outros internos. Mas, em dezembro de 2002, seu Raimundo saiu da UAPI – Val-de-Cans para residir com seu filho, o que pode ter posto fim ao “namoro”.

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muitos particulares de sua vida, ou até mesmo, pelo fato de não estar acostumada com a

utilização do gravador e com o tipo de situação ao qual estava participando, assim,

acredito que a utilização deste aparelho, em alguns momentos, a intimidava de alguma

forma.

Seu Euclides

Seu Euclides é um paraense de 80 anos nascido no bairro do Telégrafo onde se

criou. Este interno ainda chegou a residir durante quatro meses no Dom Macedo Costa

antes de sua interdição, sendo deslocado para o Lar da Providência onde ficou mais

quatro meses. Ele já reside há dois anos na UAPI Val-de-Cans. Seu Euclides trabalhou a

maior parte de sua vida como garçom na noite belemense, sendo vários anos no

Amazon Bar no Grande Hotel, atual Hilton Hotel (localizado na Avenida Presidente

Vargas, próximo a Praça da República). Boêmio, como ele próprio se denomina,

conheceu grandes personalidades e artistas da boemia belemense de sua época que

costumava ver quando trabalhava, como por exemplo: Guiães de Barros, Geruza Souza,

Assis dos Santos, Pérola, entre outros27.

Este interlocutor se refere a este período de sua vida da seguinte forma: “naquele

tempo era bom” e diz que chegou a ter um “caso” com uma cantora de samba da época,

de nome artístico Marquise Negra. Seu Euclides se lembrou dos principais lugares

freqüentados pela boemia belemense da época, a boite “Palhoça”, localizada na Praça da

República, o Sinuca Bar no Bairro do Telegrafo, Pedreira Bar no bairro da Pedreira, Bar

da Condor no Guamá, além do Amazon Bar onde trabalhava e freqüentemente se

apresentavam as orquestras “Martelo de Ouro” e banda “Los Crioulos”.

Seu Euclides, segundo relato seu, chegou a morar na cidade de São Paulo,

trabalhando em uma boite na Avenida Paulista, a boite Táxi Dancing, onde trabalhou

por dois anos. Teria chegado, também, a conhecer alguns artistas e boêmios paulistanos

como, por exemplo, um advogado e poeta negro com quem chegou a fazer amizade, não

se recordando do nome deste, lembrando, porém que era conhecido como “miolo de 27 O primeiro era pianista e dono de conhecido e prestigiado conjunto musical nos anos cinqüenta em Belém, tocando na Rádio Clube, única emissora da época, e em festas nos grandes clubes e nas residências de membros da elite local. A segunda era cantora que se apresentava na Rádio Clube e em shows na cidade (Informações pessoais da orientadora).

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lápis” por ser “pretinho, magrinho e cabeça chata”. Ao se lembrar do amigo e declamar

alguns de seus poemas mais conhecidos Seu Euclides chorou. Ao final da conversa ele

disse: “eu vou contar pro senhor a minha vida, a minha história é um romance. O que eu

me lembro era isso”. Como vemos, praticamente só lembranças boas, certamente

ativando assim, o outro “capítulo da memória ... e não sua função antagônica”, como

nos diz do esquecer, Pedro Nava em seu “Baú de Ossos” (1999).

Seu Francisco

Seu Francisco é um negro de 84 anos, ele é baixo, calvo e os poucos cabelos que

possui são brancos e crespos. Este interlocutor é de naturalidade acreana, porém, morou

grande parte de sua vida no interior do Rio Grande do Norte, onde trabalhou na roça

com sua família. Seu Francisco é filho de João Ramos de Oliveira e de Regina Ramos

Duarte, e segundo este informante, ele chegou a conhecer os seus avós paternos José

Salviano Ramos de Sousa e Maria Ramos de Sousa. Ele não se lembra dos nomes de

seus avós maternos, pois de acordo com o seu relato, ele saiu muito pequeno do Estado

do Acre, onde os parentes de sua mãe, inclusive seus avós maternos, moravam.

Seu Francisco nunca se casou e também não tem filhos, tendo morado sempre

com sua mãe no bairro do Guamá, em Belém. Ele dedicou grande parte de sua vida ao

trabalho e a cuidar de sua mãe, por isso não procurou se casar e constituir família com

mulher alguma, ao contrário de seus irmãos e irmãs (com exceção de uma delas) que se

casaram cedo e deixaram a casa da materna para morarem com seus parceiros, que para

este informante, fez com que seus irmãos aos poucos fossem se afastando cada vez mais

da família materna, a qual ele valoriza e afirma ter sempre permanecido. Segundo ele, já

trabalhou em várias profissões, chegando a possuir quatro bancas de engraxate no Ver-

o-peso, de onde surgem algumas lembranças, principalmente das comidas típicas

paraenses, como vatapá, tacacá, maniçoba e especialmente o açaí e o peixe frito ou

caldeirada.

Este interlocutor é bem quisto pelos funcionários da UAPI – Val-de-Cans, sendo

considerado por eles como uma pessoa bem-humorada, sorridente e bastante

comunicativa, o que faz com que este interno possua uma boa relação dentro da

instituição tanto com os funcionários quanto com os outros internos, com quem passa as

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tardes conversando e/ ou jogando dominó. Além disso, Seu Francisco gosta sempre de

participar das atividade programadas pela equipe técnica da instituição, como por

exemplo, as oficinas de musicalização, mas, gosta, principalmente, quando ocorrem os

passeios e os “festivais de sorvetes” que são programados a outras instituições com

características semelhantes (UAPI – Socorro Gabriel) ou passeios em balneários, onde

são selecionados para esta atividade apenas aqueles que possuem “bom

comportamento”.

Diferentemente da maioria dos outros internos, ele não veio transferido de outra

instituição para idosos, residindo neste tipo de instituição apenas há dois anos e pode ser

considerado, do mesmo modo que Dona Olívia, um dos privilegiados da UAPI – Val-

de-Cans, uma vez que é dada a ele, mesmo que raras vezes e com o horário pré-

determinado, a possibilidade de fazer visitas a conhecidos e passeios pela cidade de

Belém, principalmente, no Ver-o- peso, de onde este informante guarda muitas

recordações.

Deste modo, a partir dos relatos sobre história de vida dos informantes, mas,

sobretudo, os de Seu Francisco, Seu Euclídes e Dona Olívia, podemos perceber o

caráter “seletivo” da memória social, já que a memória, na maioria das vezes, é ativada

e possui uma interligação com os fatos e acontecimentos que, de alguma forma foram

vivenciados e/ ou marcaram e possuíram uma profunda relação com o indivíduo e com

o grupo ao qual ele pertence (Cf. Bosi, 1995; Halbwahcs, 1990; Nava, 1999; Pollak,

1989, 1992). Assim, a partir destas considerações e, concebendo o elemento seletivo

que constitui a memória, esta deve ser compreendida através de seu caráter “relacional”

com o esquecimento e não como fenômenos distintos e antagônicos, mas

complementares.

Seu Isidoro do Carmo

Seu Isidoro do Carmo é um negro paraense de 78 anos, nascido em Belém. Este

interlocutor é cego e já reside neste tipo de instituição há aproximadamente quatorze

anos, possuindo tal deficiência desde dois anos antes de entrar nesta última “casa”, ou

seja, há dezesseis anos. Segundo ele, grande parte dos seus familiares já faleceu, seus

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pais morreram quando ele possuía apenas oito anos de idade, o que fez com que ele

tivesse que se criar na casa de conhecidos da sua família e trabalhar desde cedo no

ofício de motorista de caminhão, de ônibus e chofer de táxi, a sua preferida.

Atualmente, os únicos parentes com quem Seu Isidoro do Carmo mantém contato,

mesmo que de forma esporádica, são seus dois filhos que moram um no Estado de

Pernambuco e o outro na Bahia e, segundo este informante, ligam quando podem.

No decorrer do diálogo, este interno se recordou do bairro onde morou em um

momento de sua vida, o bairro de Canudos, mais precisamente na Rua Nina Ribeiro

próximo a Rua Roso Danin. Antes de ser transferido para a UAPI – Socorro Gabriel,

Seu Isidoro residia no antigo Dom Macedo Costa; como já foi mencionado antes, esta

instituição já não possui esta característica (de asilo), então este interno foi transferido

para outra denominada CEAF Tucunduba, localizada próximo ao final da Avenida 1° de

Dezembro, para apenas no início do ano de 2002 ser transferido para a “casa”. Ao se

referir a constante troca de uma instituição para outra Seu Isidoro diz “a gente vem

rolando”, e ao ser indagado sobre as condições que a atual instituição lhe oferece e se

gosta dela, ele responde: “tem que gostar, não tou pagando nada! (...) se não gostar,

morre e vai embora”.

Este interlocutor, diferentemente de Seu Abílio, que também reside na mesma

instituição, UAPI – Socorro Gabriel, não é muito bem visto pelos funcionários que

trabalham nesta Unidade, pois é considerado por estes como “encrenqueiro”,

“reclamão” (segundo alguns funcionários, Seu Isidoro gosta de chamar muitos

palavrões) e em algumas situações, até mesmo, violento. A antipatia da equipe técnica

com este interno foi percebida por mim quando estes dirigentes souberam por

intermédio de outros funcionários que no desenrolar da pesquisa utilizei o gravador para

registrar a entrevista com este informante, foi então, que os dirigentes me solicitaram a

transcrição da entrevista realizada com ele e, a partir daí com todos os outros, só pude

realizá-las mediante fornecimento da cópia de cada entrevista, sendo assim, instituída

esta regra para realização das entrevistas nesta instituição, como mencionei no primeiro

capítulo.

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=

Zulmira (muito escura)

Graciliano (pretinho mesmo)

=

Benedita (mais clara)

=

João (muito escuro)

Antônio (bem escuro)

Jovelina (mulata)

Pedro (mais claro)

= =

S/f. (sem filhos) João Antônio (bem escuro)

Joaquim (mais claro)

Dona Olívia (muito escura)

(branca) (branco) (branca)

Gregório (branco)

Maria (branca)

=Dona Olívia

55

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=

José (branco)

Celina (branca)

Abraão (branco)

=

=

Nair (mais morena)

Maria (morena)

Abraão (moreno)

José (mais moreno)

Raimundo (moreno)

Dona Nair (branca)

Alcebíades (branco)

Carmem (morena)

Raquel (mais morena)

Dona Nair

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=

José (branco)

Maria (branca)

=

João (branco)

Regina (morena escura)

João (mais moreno)

Francisca (mais clara)

Fátima (morena escura)

Maria (mais clara)

Alcides (branco)

=

(moreno escuro) (mais morena)

Seu Francisco (mais moreno)

Seu Francisco

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2 – As interlocutoras da Associação Santa Luiza de Marillac ou Quem são as

mulheres que querem ouvir sua voz no gravador?

Este tópico tem por finalidade abordar sobre o perfil e história pessoal de quatro

mulheres idosas que freqüentam a Associação Santa Luiza de Marillac: Dona Maria

Filomena, Dona Raimunda Carvalho, Dona Maria Auxiliadora e Dona Ana Silva

Gonçalves. Como no tópico anterior, neste também, consta os esquemas de cor/ raça e

parentesco de duas das quatro interlocutoras.

Dona Maria Filomena

Dona Maria Filomena ou simplesmente Dona “Filó”, como é chamada por

algumas companheiras na Associação, foi a primeira interlocutora a estabelecer contato

com o pesquisador neste locus de pesquisa. Ela é uma negra de 85 anos de idade e

nasceu na cidade de Chaves na ilha do Marajó. No que se refere as características

físicas, Dona Maria Filomena é magra e baixa, possui o cabelo crespo bastante

esbranquiçado, o que, no primeiro caso, e de acordo com as categorias encontradas na

pesquisa, se chamaria de “bem chegado” e, do mesmo modo, a cor da sua pele poderia

ser classificada como “muito escura”. Segundo seu relato, ela morou grande parte da

sua vida na cidade de Chaves com sua mãe e duas irmãs, sendo que seu pai morreu

quando ela tinha apenas seis meses de idade. Quando residia em Chaves, Dona “Filó”

trabalhava com sua mãe e irmãs no roçado e na mata; já em Belém, trabalhou muitos

anos como lavadeira de roupa e como empregada doméstica em “casa de família”.

Atualmente, trabalha só na sua casa como costureira e cuida dos afazeres do lar.

Dona Maria Filomena e sua irmã Raimunda Carvalho de 92 anos vieram morar

em Belém após a morte da mãe, mas ela não se lembra exatamente há quantos anos

reside aqui, acreditando que tinha 30 ou 40 anos quando veio para cá. Desde que vieram

para esta cidade, ela e sua irmã moram em casas próximas, na mesma rua do bairro do

Jurunas e ajudam-se mutuamente no trabalho, nos afazeres, na vida cotidiana, enfim.

Dona Maria Filomena nunca se casou e teve três filhos homens, sendo que todos já

faleceram.

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Assim, como já foi dito, Dona Maria Filomena mora no bairro do Jurunas e

freqüenta a Associação Santa Luiza de Marillac juntamente com sua irmã e outras

vizinhas, porém, também, não se lembra há quantos anos a freqüenta, o que também não

pude confirmar, pois não tive acesso a tais informações. Quanto a sua classificação no

grupo, ela se encontra na categoria que defini como “idosa (assistida)”.

“Filó” foi bastante receptiva para participar como informante da pesquisa (tanto

é que quis ser a primeira a ser entrevistada); sempre bem humorada e sorridente, antes

de começar a gravação, perguntava: “depois dá pra gente escutar a nossa voz”?, o que

inspirou o título deste tópico do trabalho.

Dona Raimunda Carvalho

Dona Raimunda Carvalho nasceu na Ilha do Marajó, mais precisamente na

cidade de Chaves, onde se criou com os pais: Quirino Carvalho dos Passos e Paula

Andrade Carvalho e duas irmãs, dentre elas Dona “Filó”, que sempre esteve ao seu lado

desde a saída de Chaves e chegada em Belém, no bairro do Jurunas, onde residiram

juntas durante muitos anos e, atualmente são vizinhas28.

Dona Raimunda Carvalho é uma negra de 92 anos que, quanto a cor também

pode ser classificada como “muito escura”. Esta interlocutora é bastante magra, possui

estatura mediana e seus cabelos são completamente esbranquiçados e crespos. Ela

chegou a se casar e teve cinco filhos, sendo três homens e duas mulheres, porém apenas

as mulheres encontram-se vivas. Dona Raimunda Carvalho trabalhou durante muito

tempo, desde sua chegada em Belém, como empregada doméstica em “casa de família”,

além de ajudar sua irmã, Dona Maria Filomena, com as lavagens de roupa que as duas

faziam para algumas patroas.

Das quatro informantes desta Associação, citadas neste trabalho, Dona

Raimunda Carvalho é a mais introspectiva, sorri pouco, não fala muito e não participa

das atividades de educação física proporcionada pela Associação Santa Luiza de

Marillac, talvez por causa da idade mais avançada e por possuir um pouco de

28 O que até pouco tempo atrás acontecia, pois Dona Raimunda Carvalho veio a falecer no ano de 2004, durante o mês de fevereiro.

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dificuldade para se locomover. Ela mostra gostar mais das aulas de canto, momento em

que parece ser um pouco extrovertida e esboça até alguns sorrisos e risadas em certos

momentos.

Dona Raimunda Carvalho, no que se refere a Associação Santa Luiza de

Marillac, se diferencia das demais informantes que participaram desta pesquisa, pois

esta interlocutora faz parte do grupo de mulheres idosas que precisam da assistência

beneficente promovida pela associação, porém, devido sua atuação e empenho enquanto

voluntária no amparo à idosos carentes e necessitados, recebeu o título de “Luiza”.

Assim esta informante se enquadra na categoria que classifiquei como “Luizas-

Beneficiadas” (idosas assistidas que receberam o título de “Luizas”), já que, apesar de

possuir essa titulação, continua recebendo a assistência dada pela associação.

Dona Maria Auxiliadora

Dona Maria Auxiliadora é uma belemense de 64 anos de idade. Ela possui traços

físicos fortes, tanto de negro quanto de indígena, possuindo longos cabelos negros e

lisos, que, quando soltos, chegam ao fim das costas, sendo que a cor de sua pele é

bastante escura e seus lábios e nariz são protuberantes e, nos seus relatos ela se

classifica como morena. Dona Maria Auxiliadora, junto com mais quatro irmãs, perdeu

seus pais quando era muito criança e foram todas morar com seus respectivos padrinhos

e segundo esta interlocutora, depois de morar alguns anos com os padrinhos foram

“dadas”29 (entregues para serem criadas) a outras pessoas desconhecidas, na casa das

quais trabalharam como domésticas para poderem sobreviver. Quando adulta Dona

Maria Auxiliadora continuou trabalhando em casa de família até se casar. Ela chegou a

ter dez filhos, sendo cinco homens e cinco mulheres, mas, como a própria interlocutora

diz “as primeiras filhas não foi de casamento”. Atualmente, dois filhos seus, um homem

e uma mulher, já faleceram. Depois que se casou, Dona Maria Auxiliadora trabalhou

durante 20 anos como gari na limpeza pública municipal até se aposentar.

29 O fenômeno da criação de crianças longe dos seus genitores, seja por parentes como, avós, padrinhos, tios, ou, até mesmo, por pessoas desconhecidas, por um determinado período de tempo, podendo ser mais curto ou mais prolongado a depender de uma confluência de fatores, dentre eles a condição sócio-econômica da família, vem sendo referido nas Ciências Sociais como “circulação de crianças” (cf. Fonseca, 1995; Motta-Maués, 2004; Sarti, 1996).

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Dona Maria Auxiliadora é uma das mulheres que se deslocam de bairros

longínquos para participar dos encontros na Associação; ela mora no bairro das Águas

Lindas no município de Ananindeua, na grande Belém, porém é sempre uma das

primeiras a chegar às reuniões. Esta interlocutora freqüenta a Associação Santa Luiza de

Marillac há dois anos, e assim como Dona “Filó”, ela se encontra na categoria que

denominei de idosa (assistida). Das quatro interlocutoras com quem estabeleci contato

nesta Associação, esta informante parece ser a mais simpática e extrovertida

participante da pesquisa. Com muito bom humor e gargalhadas ela tenta sempre ser

prestativa e colaboradora com o pesquisador tanto no momento de efetivação do estudo

propriamente dito (entrevistas e conversas formais) como em momentos de bate-papo e

conversas informais. Do mesmo modo que Dona “Filó”, Dona Maria Auxiliadora fez

questão de escutar sua voz no gravador ao término da entrevista.

Dona Ana Silva Gonçalves

Dona Ana Gonçalves é uma mulher branca, de 68 anos de idade que nasceu e

morou grande parte da sua vida no município de Soure, na ilha do Marajó, no interior

do Estado do Pará. Quanto as suas características físicas, ela é baixa e, o que poderia se

considerar, um pouco “gordinha”, possui cabelo crespo e grisalho. Esta interlocutora

trabalhou muito tempo com sua mãe, Alzira Alves da Silva e cinco irmãos na roça,

enquanto seu pai, Raimundo Leão da Silva, trabalhava como embarcadiço num barco

conhecido na região como “Cláudio Monarca”. Depois da morte de seus pais, Dona Ana

Gonçalves continuou morando em Soure, vindo a residir há apenas alguns anos em

Icoaraci, onde seu filho conseguiu se empregar. Esta informante nunca residiu na cidade

de Belém, vindo à cidade de maneira esporádica e, principalmente, nos dias que

freqüenta a Associação Santa Luiza de Marillac.

Deste modo, esta interlocutora não possui muitas lembranças sobre a cidade de

Belém, ao contrário do que ocorre com sua cidade natal, de onde surgem várias

recordações familiares, das brincadeiras de infância, do trabalho na roça com sua mãe e

irmão, além das festas e namoros na juventude.

Dona Ana é viúva e seu marido faleceu há cerca de dez anos, ainda na cidade de

Soure, antes dela vir para Icoaraci com o filho. Ela teve dois filhos, um homem e uma

61

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mulher, porém nenhum é fruto do casamento com seu marido, tendo nascido antes desta

união. Dona Ana trabalhou muitos anos em Soure como lavadeira de roupa, além de

outros serviços que eram realizados em casa como varrer, capinar terreiro e cuidar de

outros afazeres domésticos. Do mesmo modo que Dona “Filó” e Dona Maria

Auxiliadora, Dona Ana Silva Gonçalves também se enquadra na categoria de idosa

(assistida).

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=

Gerência (morena)

=

Quirino (bem moreno)

Paula (bem escura)

Joana (bem escurona mesmo)

João (bem escuro)

Dona Maria Filomena

=

Raimunda Carvalho (muito escura)

Joaquina (morena escura)

Dona Maria Filomena (muito escura)

63

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Dona Ana Silva Gonçalves

=

Francisco (moreno claro)

Raimundo (moreno claro)

Alzira (clara)

=

=

Eva (mais clara)

Dona Ana (branca)

=

Jaci (morena clara)

Jorge (branco)

S/f. (sem filhos)

Célio (moreno)

José (moreno claro)

(mais escuro)

64

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Idosos

Cidade de

origem

Cor da Pele

Cabelo

Residência e tempo de moradia em asilos

Residência em outra

instituição asilar

Freqüenta algum Grupo de

Terceira Idade

Recebe Cesta Básica

mensalmente do grupo

Relatos sobre

histórias de vida e imagens

construídas sobre o negro

Seu Abílio Acará (PA) Negro, muito

escuro Calvo, cabelos bem

crespos e esbranquiçados Socorro Gabriel. Reside

há 6 anos em asilos Sim, outras

duas Não _____ Sim

Dona Olívia Belém (PA)

Negra, muito escura

Curto, bastante crespo e esbranquiçado

Val-de-Cans. Reside há 7 anos em asilos

Sim Não _____ Sim

Dona Nair Interior de Goiás

Branca Lisos e pretos na altura dos ombros

Val-de-Cans. Reside há 6 anos em asilos

Sim Não _____ Sim

Seu Euclides

Belém (PA)

Negro, mais claro

Pouco calvo e pouco

crespo e esbranquiçado

Val-de-Cans. Reside há

3 anos em asilos

Sim, outras

duas

Não

_____

Sim

Seu Francisco

Interior do

Acre

Negro, mais claro

Calvo, pouco crespo e

esbranquiçado

Val-de-Cans. Reside há

2 anos em asilos

Não

Não

_____

Sim

Seu Isidoro do

Carmo

Belém (PA)

Negro, mais claro

Calvo, bem crespo e

totalmente esbranquiçado

Socorro Gabriel. Reside

há 14 anos em asilos.

Sim, outras

duas

Não

_____

Sim

Dona Maria

Filomena

Chaves (PA)

Negra, muito

escura

Curto, bem crespo e

esbranquiçado

Nunca residiu em asilo

______

Associação Santa Luiza de Marillac

Sim

Sim

Dona Raimunda

Carvalho

Chaves (PA)

Negra, muito

escura Curto, bem crespo e

totalmente esbranquiçado Nunca residiu em asilo ______

Associação Santa Luiza de Marillac

Sim

Sim

Dona Maria Auxiliadora

Belém (PA)

Traços fortes de negro e indígena,

morena

Lisos e pretos, longos ao

fim das costas

Nunca residiu em asilo

______

Associação Santa Luiza de Marillac

Sim

Sim

Dona Ana Silva

Gonçalves

Soure (PA)

Branca

Crespos e grisalhos na

altura dos ombros

Nunca residiu em asilo

______

Associação Santa Luiza de Marillac

Sim

Sim

65

3 – Quadro sobre as características apresentadas pelos interlocutores

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4 – Algumas considerações sobre cor/ raça a partir do parentesco

A partir do relato destes informantes e da elaboração de cinco esquemas de cor/ raça

e parentesco, pude identificar, num primeiro momento, 21 (vinte e uma) categorias ou

gradações de cor: branco, branca, clara, mais claro, mais clara, mulata, moreno, morena,

moreno claro, morena clara, mais moreno, mais morena, bem moreno, moreno escuro,

morena escura, mais escuro, bem escuro, muito escuro, muito escura, pretinho mesmo e

bem escurona mesmo.

Devo dizer que as categorias usadas pelos cinco interlocutores representam apenas

uma pequena amostra das inúmeras terminologias utilizadas pelos brasileiros na

identificação de sua cor/ raça30, o que aponta para uma disseminação abrangente que

norteia a sociedade brasileira: o “mito de origem” da colonização pelo português, em que,

supostamente, teria se estabelecido no país uma relação harmoniosa entre brancos, negros e

índios de que resultou uma sociedade miscigenada onde não existe preconceito e

discriminação racial, uma espécie de “paraíso racial” onde as três “raças” que conformam o

país interagem de forma aberta e igualitária. Assim, no Brasil se construiu o imaginário de

uma sociedade onde predominaria a democracia racial (cf. Freyre, 1933/1984; Ventura,

2000).

Porém, este “mito de origem”, apontado por Roberto DaMatta (2000) como a

“fábula das três raças”, nos ajuda a pensar a forma peculiar de como são construídas as

relações raciais no país, ou como o próprio autor se refere o “racimo à brasileira”.

Entretanto, a concepção de uma suposta democracia racial existente no Brasil, apesar de

amplamente discutida e refutada por sociólogos e antropólogos (cf. DaMatta, 2000;

Fernandes, 1978; Guimarães, 1998, 2002; Hasenbalg, 1979, 1996; Hasenbalg & Silva,

1988, 1993; Sansone, 1996, Schawarcz, 2001) ainda permeia nossa sociedade, trazendo

como uma das suas conseqüências a dificuldade de discussão e enfrentamento efetivo da

30 Na pesquisa da PNAD realizada pelo IBGE em 1976, os brasileiros que foram entrevistados responderam apresentando 136 categorias de cor para se referir à sua classificação sobre cor/ raça.

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questão racial31, assim como a dificuldade de classificação quanto a cor/ raça dos

brasileiros.

De acordo com estudiosos do nosso sistema de classificação racial, as categorias

que designam a cor/ raça dos brasileiros se apresentam, em sua grande maioria, sob forma

de gradações de cor que obedecem a lógica de um continuum que opera nesse sistema de

classificação, onde se privilegia terminologias como claro, mais claro, escuro, mais escuro

(como as que surgem nos relatos e esquema de parentesco dos interlocutores) em

detrimento de categorias polares como branco e negro, por exemplo (cf. Birman,1989;

Maggie, 1988, 1991, 1996; Sodré, 1999; Sheriff, 2001).

Segundo a antropóloga Yvonne Maggie (1988, 1996), a forma pela qual as pessoas

classificam outras pessoas e a si próprias no Brasil, tende a “encobrir” ou “escurecer” os

termos polares branco e negro, pois, com a utilização de uma variedade de gradações de

cor, estas categorias parecem, na maioria da vezes, como se estivessem camufladas no

discurso sobre raça e cor em nosso país. Maggie sustenta sua tese afirmando que branco e

negro seriam “termos indizíveis”, sendo, sempre que possível, evitado pelos brasileiros, o

que ela considera como conseqüência do ideal de branqueamento que ainda se faz presente

no imaginário da nossa sociedade.

As várias gradações de cor que compõem o nosso sistema de classificação racial são

interpretadas por Suely Kofes (1976) a partir de duas classificações: a) os termos

descritivos, que tem por finalidade apenas a descrição minuciosa de características físicas

dos indivíduos para se diferenciar uma pessoa de outra, como por exemplo, a cor da pele

mais clara ou morena; b) os termos categóricos, terminologias que possuem uma relevante

autonomia em relação as características físicas da pessoa a quem se quer fazer referência,

remetendo a uma classificação ou categorização racial.

31 O melhor exemplo sobre essa questão é o debate atual a respeito da implementação ou não da política de ação afirmativa que reserva cotas para negros nas universidades federais brasileiras. Para uma melhor discussão a respeito (cf. Carvalho & Segato, 2002; Heck, 2003; Maggie & Fry, 2003; Vogt, 2003).

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Assim, para a antropóloga norte-americana Robin Sheriff (2001) as diversas

categorias raciais que se referem a cor/ raça dos brasileiros devem ser compreendidas na

mesma perspectiva apontada por Kofes (op. cit), denominada pela norte-americana como

discursos sobre raça, cor e racismo. Esses discursos podem ser classificados de três

maneiras: a) discurso de descrição, nestes discursos (como nos termos descritivos de Kofes)

o objetivo é apenas descrever as características físicas dos indivíduos; b) estilo pragmático

ou indicial de discurso, esta forma de discurso é uma maneira substantiva de se referir a

outra pessoa, onde se manipula o vocabulário sobre raça/ cor para escolher uma categoria

racial específica que, supostamente, representaria a “verdadeira cor” de uma determinada

pessoa; c) estilo racial de discurso, este discurso é construído a partir de categorias raciais,

não enfatizam a cor e nem a aparência, mas, categorias raciais bipolares (branco e preto ou

branco e negro) ou categorias raciais tripartites (branco, mulato e negro), pois ressaltam a

noção de raça.

Estas formas de interpretar as categorias utilizadas para a classificação de cor/ raça

serão familiarizadas aos leitores no decorrer deste trabalho, assim como, a discussão mais

ampla sobre o sistema de classificação racial brasileiro e suas implicações nas relações

raciais no país.

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Capítulo IV – Ouvindo velhos negros e brancos: histórias de vida e interpretações

sobre raça e cor

Este capítulo tem por desígnio apresentar e interpretar os relatos particulares e

oriundos da memória social dos homens e mulheres residentes das UAPI(s) Val-de-Cans e

Socorro Gabriel, bem como das mulheres que freqüentam a Associação Santa Luiza de

Marillac. Primeiramente, abordo as diversas esferas sociais da vida dos dez interlocutores

que se dispuseram a participar da pesquisa em questão, em que pude obter relatos que

dizem respeito a família, cotidiano, trabalho, cidade, infância, namoro, festas, entre outros.

Em seguida, e como objetivo principal deste estudo, este capítulo pretende desenvolver a

temática da construção das imagens e interpretações criadas sobre o negro no final do

século XIX e início do século XX na cidade de Belém, para o que se apresentou de

fundamental importância a co-relação entre historia de vida e memória social dos

informantes, sendo que os relatos se encontram de forma agrupada com intuito de reunir

itens em comum destes indivíduos para analisá-los sistematicamente.

1 – Falando da vida: Lembranças sobre família, trabalho e cidade

Os relatos dos interlocutores sobre suas histórias de vida, na maioria das vezes,

referem-se a lembranças de seu lugar de origem, de família, lembranças dos pais, irmãos e

parentes mais próximos com quem possuíam algum tipo de vínculo afetivo e sentimento de

pertencimento ao grupo familiar. A princípio, como sabemos, a memória pode parecer um

elemento de caráter individual ligada a uma determinada pessoa, porém, se observarmos ao

longo das lembranças dos interlocutores apresentadas neste trabalho perceberemos que

estas sempre nos remetem a uma coletividade; isto se deve a relação destes indivíduos com

seus familiares e com os grupos com que eles se relacionam, de modo a confirmar a

memória como um fenômeno construído socialmente. Neste sentido, como veremos depois,

são lembranças compostas com e remetidas a um universo mais amplo, do qual elas

também são personagens. Isso nos remete ao que afirma Maurice Halbwachs, para quem:

“a memória deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a

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flutuações, transformações, mudanças constantes” (HALBWACHS Apud POLLAK,1992: 201).

Deste modo, no processo de construção social da memória coletiva, seguindo esta

observação, podemos perceber o caráter social da memória quando meus interlocutores se

referem, por exemplo, às classificações de cor mencionadas por eles, uma vez que estas

classificações fazem parte de um processo de construção social de categorias de cor no

Brasil que utilizamos, em nosso cotidiano, sem até nos darmos conta disso. Entretanto esta

questão será melhor discutida no decorrer deste capítulo.

No que se refere as lembranças familiares, devemos também lembrar que, de acordo

com Myriam Lins de Barros (1989), a família apresenta-se como o objeto das recordações

das pessoas e, ao mesmo tempo, o meio e o espaço em que as lembranças familiares podem

ser avivadas, daí porque o grupo familiar aparece, quase sempre, como referência

fundamental para a reconstrução do passado de uma pessoa. Neste sentido, sobre suas

famílias e a relação com seus familiares, as lembranças de Seu Abílio, Dona Ana Silva

Gonçalves e Dona Maria Filomena, respectivamente, enfatizam a estabilidade e harmonia

da convivência, valores certamente muito caros e a serem, orgulhosamente, salientados por

aqueles a quem o senso comum e a historiografia (esta até recentemente, como nos

mostram, especialmente, Slenes, 1999; Julião, 2000), reservavam apenas a carência:

“Minha mãe nasceu num lugar com o nome de Jacarequara, município do Acará, Cândida Ferrei... Rosa Ferreira da Silva, morreu com 95 anos, aqui no bairro do Juruna, na minha custa. (...) Minha mãe e meu pai eram tão ‘velho querer’ que eu nunca vi empurrar o outro, isso que é família, meu amigo! Isso que é família, nunca vi nem minha mãe com meu pai discutir, nunca, nunca, nunca não! (...) Uma criação da minha mãe e do meu pai que eu gostei. Apanhei uma vez da mamãe e uma vez do papai, só isso! Porque tem pai que bate em filho, e filho que quer bater em pai, de tudo, tá tudo errado! Meu pai foi, é um homem que eu queimava cartucho de carta de cigarro no bolso, com medo dele. Hoje em dia pai convida filho pra ir lá no bar: ‘umbora meu filho, vamos beber uma cerveja ali’. Vai ser triste dar confiança pra um filho. Eu só vim beber cachaça com quarenta e poucos anos de idade, que eu vim beber, eu apanhei, uma vez do papai, uma surra antes do almoço. (...) O papai com a mamãe num tantinho conversavam assim, num tantinho de conversa com pai e mãe, com um tantinho, mas eu não vivia dentro de casa eu só vivia na oficina, aprendendo ofício, eu nunca, eu parava em casa só dia de domingo mesmo (...) não era de conversar com pai e mãe, assim como a gente conversa, não tinha esse tempo, mas não tinha tempo mesmo” (Seu Abílio, 84 anos).

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“O nome do meu pai era Raimundo Leão da Silva, minha mãe era Alzira Alves da Silva; eu tenho uns irmãos, um que mora na praia lá do Pesqueiro, lá no Marajó e outra mora aqui no Telégrafo e eu lá no Icoaraci. (...) Irmãos eu tenho três ... Quer dizer antes. A mãe teve, éramos seis, quer dizer que o mais velho morreu, então tem quatro vivos... é quatro vivos! Dois irmãos e duas irmãs. Um tá agora lá em Icoara..., lá no Pesqueiro, outro pra banda daí, que eu não sei pra onde, da Bahia, ele trabalha embarcado e a outra mora aí no... no Telégrafo. Vou dizer, os meus avós parte de pai eu cheguei a conhecer só o meu avô, que era Chico, chamavam ‘Chico do povo’, agora a minha avó eu não cheguei a conhecer e nem a da minha mãe também. Eu só conheci a minha mãe e o meu pai só”. (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos).

“O nome do meu pai era Quirino Carvalho dos Passos e da minha mãe era Paula Andrade Carvalho. Eu não conheci meu pai, quando ele morreu eu estava com seis meses de nascida, não conheci ele não. (...) E irmão, nós éramos três de matrimônio, que era eu, ela ali (refere-se a irmã que também freqüenta a Associação)e uma que morreu. (...) E a mãe da minha mãe se chamava Joana Batista dos Santos, agora pai eu não sei, né. Eu não conheço o pai dela e nem de quem é. Agora e a ... e a ... ela era minha avó por parte de mãe, agora da parte do meu pai chamava-se Gerência Carvalho dos Passos, era a mãe dele, do meu pai. Agora os irmãos dele eu não sei, ele tinha muito irmão, mas eu não conheci. Assim, também da parte da minha ma..., da minha avó era muita gente, ela tinha muitas irmãs, irmãos, mas assim, eu não conheci todas as irmãs dela. Nossa família era muita grande ...” (Dona Maria Filomena, 85 anos).

Os relatos sobre histórias de vida obtidos com esses interlocutores também se

remetem ao mundo do trabalho, sendo que no caso dos homens, as lembranças sobre o

trabalho surgem com o orgulho da profissão que foi exercida:

“Então, quando completei 22 anos foi quando meus dois pais faleceram. Eu tive que viajar e fui conhecer Brasília, tavam construindo Brasília, aí eu fui trabalhar com a minha profissão de garçom (...) então depois que construiu Brasília e tal, ai eu tive que sair de Brasília, fui pra São Paulo. Em São Paulo eu trabalhei no Táxi Dancing, ali onde é o..., onde é a..., em frente a Praça da Bandeira na Avenida São João. (...) Ai voltei. Quando eu voltei fiquei aqui em Belém, aí fui trabalhar no Grande Hotel, em baixo em um bar com o nome de Amazon Bar, no tempo da guerra. Eu trabalhei lá no Amazon Bar como garçom também, a minha profissão” (Seu Euclides, 80 anos).

“Eu sou torneiro modelador. Depois aprendi carpintaria, mas me esqueci mode... mode...(...) meu pai morreu com 88, eu tava em Conceição do Araguaia como mestre de obra numa companhia federal, SESP. (...) Eu tive que andar no mundo nessa companhia que eu trabalhei, entrei em 40, primeiro lugar na estra... que começou na estrada nova, da marinha pra cá. (...) Vou lhe dizer uma coisa, o resto do bagulho tudo eu faço, viu. O senhor sabe aquele caracol grande? Faço um bagulho daquele, tudo isso eu faço, de cama, de mesa, de cadeira, tudo, tudo isso!” (Seu Abílio, 84 anos).

Em relação às mulheres as lembranças sobre o trabalho, em sua grande maioria, não

aparecem da mesma forma como no relato dos homens, talvez, pelo fato de todas com

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quem estabeleci contato terem trabalhado como domésticas em casa de família. Desta

forma, surgem algumas características recorrentes mostrando que padrões como: o trabalho

na roça, para as mulheres que moravam no interior na sua infância e juventude e,

principalmente, o trabalho como doméstica, na maioria das vezes, na função de lavagem de

roupa, são um dos poucos espaços no mercado de trabalho que estiveram disponíveis para

essas mulheres, como pode ser visto abaixo:

“É... eu, eu sempre fiquei em casa de patroa...trabalhava pra fora, fazia cumida, lavava, passava, essas coisa né!” (Dona Nair, 72 anos)

“Quando a mamãe era viva eu trabalhava na roça, depois que ela morreu não trabalhei mais, não trabalhei mais. Meu trabalho era em casa mesmo, capinar terreiro, varrer, era isso que eu fazia. (...) Trabalhava em casa, né. Em casa que eu trabalhava, quer dizer, quando eu cheguei em Soure, o meu marido, ele era pescador, o meu marido era pescador. Aí eu fui trabalhar na casa da vizinha, da dona Maria, né, negócio de lavar roupa, né, fui trabalhar lá. Também foi só que eu trabalhava, mas assim empregada não, assim empregada pela carteira não” (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos).

“De verão a gente trabalhava no campo, quando era de inverno a gente trabalhava no mato. Tinha uma fruta que a gente juntava pra vender, chamava é ‘muri-muri’ (...) quando era de verão a gente ia pro campo, era a gente que cortava o .... tinha, agora já não tem mais... Era ‘piri’ que chamava o nome, um mato que crescia assim, cumprida, que a gente cortava pra secar aquilo, secavam e daí a gente fazia esteira pra vender. Neste tempo dava um tostão uma esteira (...) Eu e ela (refere-se a irmã) trabalhamo muito, tanto lá como aqui em Belém. Aqui em Belém, quando eu cheguei aqui em Belém, eu me empreguei em lavar roupa. Lavava roupa. Ia buscar roupa nesse edifício aí, aqui na 28 tem aquele edifício Fátima, eu ia buscar roupa lá, segundo andar, eu subia, ia buscar roupa lá em cima. Dia de semana vinha trazer, tinha tempo que a gente tinha seis, sete lavagem de roupa em casa. Depois comecei a trabalhar já em casa de família viu, eu trabalhei em casa de família. Trabalhei oito ano numa casa ali na... na Ó de Almeida (...) daí eu tava, só lá eu trabalhei oito ano, ainda acha.... ainda não saia de casa, era sábado, era domingo, ainda trabalhava em casa. Tudo isso eu fazia”. (Dona Maria Filomena, 85 anos).

Pode-se dizer que o trabalho de doméstica desenvolvido na casa dos patrões e de

lavadeira de roupa, que elas faziam em suas próprias casas, é um padrão que se repete para

mulheres negras desde a escravidão, e tende a reproduzir-se tanto quanto não se

desenvolvam melhorias na condição sócio-econômica de vida da família negra, e das

famílias pobres de modo geral. O trabalho de doméstica e de lavadeira de roupa exercido

por essas mulheres durante grande parte de suas vidas deve ser compreendido como uma

estratégia de sobrevivência das famílias de baixa renda, sobretudo, as famílias negras.

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De acordo com historiadores paraenses, além dos ofícios de doméstica e na lavagem

de roupa exercido pelas mulheres negras escravas e/ou libertas, os registros de jornais

belemenses que datam aproximadamente do final do século XIX e início do século XX

mostram-nas vendendo nas ruas seus produtos: doces, mingau, tacacá, açaí, “cheiro” (Cf.

Conceição, 1995; Fontes, 1997; Pantoja, 2001; Salles, 1988), o que também pode ser

comprovado por uma de minhas informantes quando relata sobre o mercado do Ver-o-Peso,

em um período que corresponde as primeiras décadas do século XX; segundo ela:

“Era assim... uns morenos e uns brancos, assim mo..., mas que vendia assim era dentro do mercado, fazia venda assim num banco, naqueles banco de mercado que vendia... vendia mingau, vendiam fruta, vendia tacacá. Era tudo lá no mercado, depois foi que foram criando a feira. (...) Mas, tinha muitas senhoras que vendia tacacá, senhoras idosas que vendiam tacacá, caruru, vatapá. (...) A roupa delas era assim negócio de fazendas baratinhas, né! Aventalzinho na frente pra fazer aquela venda” (Dona Raimunda Carvalho, 92 anos).

Outro padrão que se repete nas famílias pobres, sobretudo, nas famílias negras a que

me refiro é a dificuldade de criação das crianças na infância, depois da morte dos pais. A

criação das crianças é realizada, na maioria dos casos ou muitas vezes, por padrinhos ou

parentes mais próximos quando estes possuem condição para isso, caso contrário elas

podem ser criadas, até mesmo, por desconhecidos, porém isto só ocorre em último caso,

como pode ser observado a partir dos seguintes relatos:

“O nome do meu pai era Raimundo Jorge do Nascimento e da minha mãe era Maria Barbosa. Depois que meus pais faleceram, aí fui pra casa da madrinha, madrinha de batismo né, me criou junto com o filho dela (...) meu padrinho e ela minha madrinha, aí fui me criando assim, sabe?, um dia bem, um dia mal, um dia bem, um dia mal. Eles eram muito bom comigo, mas depois eu não tive ... eles não tiveram mais condição de me criar, né, me botaram na casa de outros, né, sabe como é casa dos outros, né, tem vez que eu ia dormir duas horas, três horas da manhã, porque não tinha empregada e a empregada lá era eu, pra tudo. A hora que o patrão chegava ele me chamava pra botar a comida pra ele, aí eu tinha que me acordar, nem que eu não quisesse. Era assim ! Me diverti pouco, fui muito pouco pro colégio, não tinha tempo de ir pra aula, porque eles não deixavam ir. Porque o braço direito era eu, né, aí eu queria ir pra aula, mas não podia ... Até que enfim eu saí de lá e fui pra uma casa de uma professora, foi lá que eu aprendi a assinar meu nome e ler alguma coisa, porque ler, eu não sei ler assim corretamente, mas eu leio alguma coisa”. (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos).

“Nossa família era muito grande e quando meu pai morreu, eu fiquei pequena, eu fiquei pequenininha, com seis mês de nascida era na época assim que tinha.... e meu irmão estava com três anos, eu tinha seis mês só de vida. Brincando (de repente)

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minha mãe ficou viúva, tenho, ficou com ela, ela ficou em poder da mãe dela, quem nos criou foi ela e o filho dela que era João (tio), o nome dele era João. Depois nós tivemos um ‘bocado’ junto, depois que nos fumos crescendo ficamos filhas-moças, rapaz, foi quando a minha mãe mandou fazer uma casa pra nós separada, aí se separemos, foi o tempo que o tio que nos criou casou também, e ela não quis ficar com a cunhada, né, na casa morando só numa família, né. Cada qual se separou”. (Dona Maria Filomena, 85 anos).

De acordo com a antropóloga Cláudia Fonseca (1995) a criação de crianças em lares

diferentes, ora na casa dos pais, ora na casa dos avós e padrinhos, o que a autora denominou

de “circulação de crianças”, ou seja, “o grande número de crianças que passa parte da

infância ou juventude em casa que não a de seus genitores” (1995: 14) é uma pratica

tradicional de muitas gerações anteriores das famílias de baixas condições financeiras ou de

grupos populares, como a autora classifica.

Para Cláudia Fonseca (op. cit), na maioria das vezes, as famílias que apresentam

esta característica de circulação de crianças são rotuladas e compreendidas como desviantes

do modelo da “família tradicional”, isto é, são vistas como famílias “patológicas” e

“desorganizadas” e de péssima influência para as virtudes e valores da sociedade. Desta

forma, Fonseca pretende desconstruir a concepção que vigora sob a ótica da ideologia

dominante de desorganização da família pobre pelo fato de crianças circularem entre a casa

de avós, parentes e até mesmo desconhecidos, a partir de uma outra noção de família, que

tem nesta prática e em seus contornos simbólicos um “processo social” e não um “problema

social”. Assim, para autora, a prática de circulação de crianças deve ser compreendida

como uma estrutura básica da organização de parentesco das famílias de baixas condições

financeiras, sendo um arranjo familiar, ou como a autora denomina, uma estratégia de

sobrevivência dos grupos populares que encontram nesta forma alternativa de organização

familiar uma maneira de criação das crianças. E não de abandono delas como muitas vezes

se interpreta.

Em trabalho que também discute o fenômeno de “circulação de crianças” Maria

Angelica Motta-Maués (2004) relativiza ainda mais a questão da circulação representar a

desorganização de famílias pobres como quer a ideologia dominante, já que, segundo esta

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autora o “vaivém” de crianças é uma alternativa de organização familiar não só dos grupos

populares, mas, muitas vezes, também das camadas médias urbanas, embora assumindo

entre elas outros contornos e diferentes e mais dinâmicos fluxos. Desta forma, Motta-

Maués aponta que o fenômeno de “circulação de crianças” deve ser entendido de forma

mais ampla e dinâmica para compreender temporadas e períodos mais curtos e em

diferentes espaços, e não como algo mais permanente com maior duração na vida das

crianças, como até então se pensava a questão.

Então, para Motta-Maués este “vaivém” de crianças ora na casa dos pais, ora na

casa dos avós, outros familiares ou outros espaços, não deve ser interpretado como uma

prática de criação dos filhos ou um arranjo familiar realizado apenas pelas famílias de

baixas condições financeiras, mas também pelas camadas médias urbanas, mesmo que esta

prática vá de encontro à visão de mundo, ao ethos e ao estilo de vida desta camada social.

Do mesmo modo como a família e o trabalho, a cidade, a casa e até mesmo as

brincadeiras de infância e o namoro também estão bastante presentes nos relatos dos meus

informantes, que lembram, por exemplo, da casa comprada e construída por eles próprios,

ou da casa em que passaram a maior parte de sua infância, onde ocorriam as brincadeiras

com seus irmãos e amigos daquela época.

A cidade, na maioria das vezes, é referida (e reconstruída) a partir da relação de

vínculo do sujeito com a mesma, ou seja, a partir das atividades de trabalho, de lazer, dentre

as mais variadas que foram desenvolvidas no cotidiano desses indivíduos e que remetem a

um local, que pode ser uma rua ou um bairro, por exemplo, que possui uma relação com os

interlocutores que se referem a estes espaços da cidade, sendo estes espaços, por sua vez,

mencionados através do processo de urbanização e dos constantes processos de mudança

pela qual passou Belém no decorrer das décadas, como podemos perceber através dos seus

relatos:

“Então quando terminava a função (de garçom) lá as quatro horas da manhã nós atravessávamos pro Bar do Parque, já existia o Bar do Parque, atravessávamos e vínhamos é pra boemia, ali freqüentavam só os boêmios, ficava ali ate de manhã. Um

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cantava outro declamava e assim... era toda noite depois das quatro horas da manhã, toda madrugada a gente ia pra lá pro Bar do Parque. É a minha vida foi essa. Eu aqui em Belém não existia ainda, ih! Aqui em Belém, naquele tempo não tinha, no tempo do bonde né, no tempo do trem que saia aqui de Belém pra ir, pra ir pra Bragança, onde é agora o Ico.... Icoaraci, antigamente era o Pinheiro né... era Pinheiro, pegava o trem pra ir pra Pinheiro, que hoje em dia é Icoaraci32. Então, aqui em Belém ali na Cidade Velha, a Cidade Velha, não existia Cidade Nova nesse tempo, era Cidade Velha, e aí a gente também durante o dia né, ficava por ali pela Praça da Sé, ali de frente hoje em dia é o....me esqueci o nome... tem aquele canhão ... o Forte do Castelo, ficava ali em frente da praça, ali durante o dia conversando com os amigos... (...) a gente podia ficar a vontade, pessoas, moradores aqui de Belém, a noite sempre às oito, às nove horas da noite ficava nas porta conversando com o vizinho, sentado nas porta da sua casa e tal, hoje em dia não se pode fazer mais isso devido o bandido, a grandiosidade de malandro...” (Seu Euclides, 80 anos).

“Então, eu trabalhava aqui na ca... nessa como é, aonde tem essa vala grande? nesse canal grande que é... como é que chama esse canal grande? (...) Doca de Sousa Franco. Antigamente aqui não era Doca de Sousa Franco era Igarapé das Armas, não entrava canoa, não entrava nada! (...) Sabe aonde era aquele bairro São Jorge, agora é Matinha.... (atual bairro de Fátima) eu, os meus irmãos tudo se formou lá, tudo se formou lá na Matinha (...) Aí eu comprei aqui uma casa na 22 de Junho (atual Alcindo Cacela), de primeiro era 22 de Junho. Não tinha água, um carro pipa vinha deixar água nas casas, não tinha água não. Comprei essa casa de açaizeiro (...) O nome dessa rua mudou, antigamente ela era na Condor, isso aqui mudou tudo mesmo, não vê a Bernardo Sayão, Bernardo Sayão não, era Conceição, agora é Bernardo Sayão. Aqui é Padre Eutíquio, não era, Padre Eutiquio era como, era São Mateus, passou pra Padre Eutíquio. Tudo isso teve, vai mudando as ruas. Tamoios era trilho e mudou Rua do Trilho, agora já é Tamoios, mudou muito. (...) Olha eu acompanhava o Círio, não largava, tempo de menino, rapazinho eu não largava, acompanhava a Santa até lá no, no arraial” (Seu Abílio, 84 anos).

“Quando nós trabalhava... quando trabalhava no Ver- o- Peso o ônibus que tinha, quando eu cheguei aqui era bonde não tinha ônibus, depois é que foi que foi nascendo bonde... ônibus. O bonde foi se acabando, se acabando até que acabou o bonde ficou só ônibus. Agora não, já tem muito ônibus, ta tudo mais fácil, tudo já tem carro. O ônibus nós vamos nesse daqui, paramos lá perto de casa, vem de lá nele. Pra todo lado agora tem ônibus, antes não tinha” (Dona Raimunda Carvalho, 92 anos) .

“Antes a cidade era só ponte. Quando a gente andava na Humaitá (bairro) era só ponte, escorregava da ponte tava no igapó. Agora tá tudo bonito, mas no meu tempo a gente ia buscar roupa, tinha que andar devagar por cima do açaizeiro33 porque se escapulisse do açaizeiro estava em cima, tava em cima da lama. As vezes eu caia da

32 No tempo ao qual Seu Euclides se refere, o distrito de Icoaraci era denominado Pinheiro e o percurso era realizado de trem, como ele próprio diz. O bairro da Cidade Velha é o bairro onde se formou o primeiro núcleo em Belém, sendo considerado o mais antigo e um dos mais tradicionais bairros da cidade. O bairro da Cidade Nova é mais recente (surgindo, aproximadamente, na década de 80), pertencendo ao município de Ananindeua, localizado na grande-Belém. 33 No tempo ao qual Dona Maria Auxiliadora se refere, era comum nos bairros mais periféricos da cidade de Belém andar sobre os troncos da palmeira (árvore em que cresce o fruto do açaí e se retira o palmito) e sobre os “igapós” (terrenos muito alagados), aterrados com os caroços do açaí (depois de batidos). Ainda hoje, bairros como, por exemplo, Terra-Firme e Guamá apresentam igapós, abaixo das pontes, aterrados com caroço de açaí.

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ponte com uma trouxa de roupa tudo branca. A maré, tava chovendo, aí eu fui querer passar de um pau pro outro, o meu pé escapoliu aí eu tchum! O garapé chio d’água, a trouxa foi embora! Agora não, ta tudo bonito, asfaltado, porque no nosso tempo quando a gente era moleque, hum!” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos)

Sobre a casa onde passaram a maior parte de sua infância elas lembram:

“Minha casa, a primeira casa que eu fiz aqui no... em frente ao Lauro Sodré na rua Vigília. A primeira casa foi de buruçú, sabe o que é buruçú? È uma palha, é tipo essa palha do coqueiro, palha grande! Hoje em dia ainda tem, ainda, mas casa agora ta difícil, tudo agora é só Brasilit, faz de telha de barro, mas as minhas toda vida foi telha de barro, eu nunca gostei de brasilit, muito quente! Hoje em dia sempre faz telha de barro, que é mais barato! Na rua Nova comprei três casa lá, duas, duas de madeira e uma de alvenaria, tinha cinco compartimentos, toda forrada, lajotada, toda murada, gradeado na frente. Ela era por dentro, era dessa cor assim, por dentro era dessa cor assim, meio, meia cinza né, toda ela por dentro, por fora ela era branca” (Seu Francisco, 84 anos).

“Era tudo de barro, casa de palha, a nossa casa da Humaitá era toda de barro coberta de palha. Mas não chovia, não respingava nadinha, podia dar a chuva que desse. Agora a gente compra telha, a chuva vem lá na casa de uma senhora a gente tem que ficar subindo nos bancos, molha tudinho. Na casa de palha nem respingava. Ela era pintada, toda rebocada de barro, todinha. Você olhava assim você dizia que ela era de alvenaria, mas não era não, era de barro, papai mandou fazer. Era grande... Nosso quintal era um verde que deu uma vila de casa, era, era doze de frente por oitenta de fundo, a nossa casa da Humaitá, quando eu passo lá me dá saudade, eu choro, não gosto de passar! Puxa, era tão bonito, era cheio de fruta, papai plantava muito... depois que ele vendeu o dono derrubou tudinho pra fazer, pra fazer vila de casa” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos).

As brincadeiras de infância: jogo de bola, para os meninos e, roda, para as meninas,

são algumas dentre várias brincadeira praticadas quando criança, além dos namoros e festas

em uma fase mais adulta, que também são bastante lembrados pelos interlocutores,

sobretudo mulheres, como pode ser observado.

Sobre as brincadeiras infantis eles recordam:

“Eu ia brincar bola, jogar, lá apanhava um sol danado. círio eu ia, festa do Mosqueiro eu ia, Bragança” (Seu Isidoro do Carmo, 74 anos). “Era brincadeira de roda, ‘fazendo poço’. Era brincadeira de roda, moinho de barro, era mexendo com terra, no meu tempo era moinho de barro. A gente brincava papai deixava, a gente ia, a gente ia na rua... não tinha, não tinha perigo no tempo em que a gente era criança, era, era... a rua era deserta não tinha esse negócio que tem agora não, na rua a gente ficava até de manhã brincando era muito bom! Brincava de pira, a gente gostava de brincar de pira, pira-coca, pira-se-esconde. Hoje em dia você não

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pode sair até ali no canto que já estão lhe agarrando, era assim” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos)

“É, a gente brincava, a gente brincava em casa, a nossa brincadeira, a gente quase não brincava. Ah! Só assim criancinha desse tamanho assim. A gente brincava sozinho de ‘besteira’, rodava, brincadeira de roda, de criança mesmo. (...) Nós é que inventava mesmo brincadeira. Eu é que era mais brincalhona, que brincava. Eu sozinha brincava só, não tinha com quem brincar ninguém ia na casa do vizinho brincar, porque a nossa criação era assim (..) ninguém vivia pela casa dos outros, era tudo dentro de casa” (Dona Maria Filomena, 85 anos)

A respeito de namoro elas dizem:

“O primeiro namorado meu... quer dizer, a minha irmã foi lá pra Soure e começou a namorar o Raimundo. Aí nós ia no cinema né, aí quando era mocinha assim, o Raimundo, o Raimundo que era o namorado da Eva, ele, ele foi, ele conheceu um rapaz... daí ele, que esse rapaz foi meu namorado, primeiro namorado meu. Aí depois eu deixei, aí comecei a namorar outros, namorei outros, aí foi o tempo que, que... aí fizeram o que fizeram... fizeram comigo, aí eu peguei um filho, peguei um filho, mas eu já tava, já tava grandona, já tava com meus 33 anos quando eu peguei filho” (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos). “Ah! Meus, meus, meus pais de criação... hum! Eles eram... (...) namorava era escondido, hum, na escola a gente saia da escola ia namorar era escondido, o papai ‘Deus o livre’. O papai não deixava, eu chamava de pai pro meu padrinho sabe? (...) E aí ‘Deus me livre’ se chegasse uma pessoa em casa assim:

- Ah! Seu Jesus, quero falar com a Dona Maria. - O que é que você quer com ela?

Procurava saber tudo. Hum, tu sabe quando tu chegar lá em casa não vai dizer que quer falar comigo, diz que quer falar com a madrinha aí eu dou a volta pela saguão e vou me encontrar contigo lá no canto (risos)” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos)

Assim, como pode ser observado nos relatos destes interlocutores a família, o

trabalho, as brincadeiras infantis e outras esferas da vida social aparecem como forte

referencial nas recordações e lembranças pessoais, e tem essas informantes como detentoras

e responsáveis pela manutenção e reconstrução do passado de suas famílias.

Feitas essas primeiras observações a respeito das esferas sociais como as relações

cotidianas com a família, no trabalho, este estudo se deterá a partir de agora no foco

principal de análise que se refere a construção de imagens e interpretações sobre o negro na

cidade de Belém, no período delimitado por esta pesquisa, bem como, nas discussões a

respeito do sistema de classificação racial predominante em nosso país, na sua tradução

local tal como identificada neste estudo.

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2 – A(s) cor(es) de Belém: terminologias, gradações e continuum de cor

O material que se apresentou no decorrer da pesquisa, versou, principalmente, sobre

temas como família, trabalho e cidade, se constituiu valiosíssimo para o estudo do sistema

de classificação racial brasileiro, uma vez que em nosso país as relações sociais (constituem

as diversas esferas da vida social) devem ser compreendidas imbricadas (de forma

relacional) com as relações raciais, devido as representações que tais questões assumiram

no país ao longo da formação histórica e social da nossa sociedade.

Devo dizer que as classificações de cor/ raça referidas neste trabalho por meus

interlocutores fazem parte de um processo de construção social de categorias de cor/ raça

que norteiam o sistema de classificação racial no Brasil e, por sua vez, dentro deste mesmo

sistema de classificação seguem uma lógica de um certo continuum em que existe uma forte

presença de gradações de cor como sinaliza Patrícia Birman:

“Há muito que já se sabe que o sistema de classificação racial brasileiro possui como uma de suas particularidades o fato de ser ordenado de modo a privilegiar relações entre dois pontos polares ao invés de traçar uma linha divisória nítida entre dois campos. Em outras palavras, privilegia-se um certo continuum de relações ao invés de estabelecer campos com fronteiras em domínios excludentes. Nesse sistema as referências à cor da pele se fazem preferencialmente por gradações – as pessoas aproximam-se do negro em certas circunstâncias. São em certos contextos mais ou menos ‘escuros’.” (195-196: 1989).

Assim, segundo esta antropóloga, no sistema de classificação racial brasileiro o

continuum e as gradações de cor tendem a privilegiar relações entre dois pontos polares e

não uma separação nítida entre branco e negro. O que, aliás, tem sido constatado e

interpretados por vários estudiosos de nossas relações raciais (Cf. Fry, 2002; Kofes, 1976;

Maggie, 1988, 1991, 1996; Muniz, 1999; Sansone, 1996; Sheriff, 2001).

Desta forma, as classificações de cor referidas abaixo pelas informantes estão

inseridas no complexo e ambíguo sistema de classificação racial brasileiro, sendo

proferidas de forma bastante abrangente no cotidiano da sociedade nacional, como pode ser

observado quando os interlocutores descrevem a composição em termos da cor apresentada

por seus familiares:

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“Meu pai era filho de africano, meu pai era bem escuro e bem forte mesmo. Meu pai era pretinho mesmo, ele era mesmo que aquela pimentinha (do reino), mesmo o cabelo dele. Nós saímos tudo escuro, tudo assim da minha cor, a gente puxamos tudo pro lado do meu pai mesmo, muito escuro. A minha mãe era mais clara, não era branca não!, era morena bem clara assim, tipo mulata mesmo. Tinha um cabelão grande. Ela quando casou com meu pai já tinha 3 filhos do primeiro marido dela, são tudo branco. Ela casou com o segundo marido que era o meu pai, porque o meu pai era bom, escuro mesmo, ele era bom (...) A família parte do meu pai era africana e da minha mãe era de português. Eu tenho família escura e família branca ... é... a minha família é misturada. È arroz com ..., é leite com café” (Dona Olívia, 69 anos). “Minha mãe e meu pai era da minha cor, moreno escuro (...) Só tem gente mais escuro do que eu na minha família. É tudo misturado, eu tenho gente que é desta cor em Icoaraci. A minha avó por parte do meu pai era índia (...) O meu avô era italiano, não lembro o nome dele também” (Seu Abílio, 84 anos). “Nós somos tudo do interior de Goiás eu... eu e meus pais. O nome da minha mãe é Maria da Conceição e do meu Pai é Abraãozinho do... do... não lembro. (...) O meu pai é branco que nem eu... e... e... e eu também, já a minha mãe é... ela é morena, morena. (...) Os meus irmão, homem e mulher são seis... e são moreno tudo da minha mãe já eu branca do meu pai” (Dona Nair, 72 anos).

“O meu pai chamava-se João Ramos de Oliveira, cor branca, minha mãe Regina Ramos Duarte, morena alta, cabelos compridos, cabelos longos, muito trabalhadeira. (...) A minha mãe ela era da minha cor, morena. Meu pai era branco. Os meus irmãos eram tudo moreno, quando saiam uns mais claros. Os que puxavam pro lado do meu pai eram mais claros, os que puxavam pro lado da minha mãe eram mais morenos” (Seu Francisco, 84 anos).

“A cor da minha mãe... ela tinha a cor dessa senhora aí... (refere-se a outra idosa que freqüenta a associação), dessa cor. O meu pai ‘diz que’34 era bem moreno. Eu nunca conheci ele. (...) Só a mãe da minha mãe que eu conheci, mas ela era bem escura, era bem preta mesmo. E a mãe da minha avó era branca... dos olhos amarelados, eu ainda conheci ela, conheci ela, ainda me lembro dela, do jeito que ela era. Ela era branca dos olhos verdes, linda, tinha assim... o cabelo dela bem amarelo, o cabelo dela. Ela era branca mesmo, e a mãe... e a minha avó, filha dela, era bem escurona mesmo, cabelo bem chegado” (Dona Maria Filomena, 85 anos).

“Meu pai era assim meio claro, que nem esse menino aí (refere-se a um neto que acompanhava sua avó a associação) e a minha mãe já era moreninha assim da minha cor. Meu padrinho era branco parece um português e a minha madrinha era morena, quase da minha cor assim” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos)

“A cor da minha mãe era clara, ela era filha de espanhol, espanhola. O meu pai era cearense, era. Ele era, ele era moreno, ele era moreno, não era escuro, muito escuro, era moreno claro, assim... mais escuro do que eu. A cor dele... e do meu avô também é da cor, da cor dele. E o meu marido também era, o meu marido era mais escuro do que eu” (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos).

34 A expressão “diz que” é utilizada entre nós para tratar sobre algum assunto que não temos total certeza, assim, supostamente, segundo as informações de Dona Maria Filomena seu pai “diz que era” bem moreno.

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A partir destes vários relatos que fizemos questão de expor aqui, é importante

destacar alguns pontos para percebê-los no seu conjunto e no contexto do debate sobre

classificações de cor/ raça dentro do sistema de relações raciais no Brasil. Devo destacar,

primeiramente, a questão dos indivíduos utilizarem a si próprios e a outras pessoas como

parâmetro para definir a cor de alguém, como nos mostram os interlocutores quando dizem:

“Nós saímos tudo escuro, tudo assim da minha cor”; “Minha mãe e meu pai era da minha

cor”; ou ainda “A cor da minha mãe... ela tinha a cor dessa senhora aí...”. Assim, estes

informantes estão se referindo, supostamente, a cor/ raça de seus pais e irmãos a partir da

sua própria cor; portanto, utilizando a si mesmos como parâmetro para definir a cor/ raça de

seus familiares, interpretação que é acompanhada, muitas vezes, por um gesto indicativo

que “ajuda” a compor a classificação que estão fazendo35.

Esta característica de grande importância que acompanha tal fato diz respeito a

movimentos gestuais, principalmente, com as mãos e com o dedo indicador para assinalar a

semelhança entre a cor/ raça de uma pessoa e de outra; deste modo, grande parte dos

interlocutores ao falarem sobre essa questão utilizam-se deste movimento gestual,

mostrando um de seus braços – passando os dedos da mão espalmada na pele – para se

referir à cor deles mesmos e de seus parentes, como pude demonstrar em outras

oportunidades (cf. Vaz Silva, 2003a, 2003b, 2004b). Fatos como este também foram

observados, por exemplo, pela antropóloga americana Robin Sheriff (2001) em sua

pesquisa que aborda os discursos sobre cor, raça e racismo com moradores do “Morro do

Sangue Bom” no Rio de Janeiro.

Pelos relatos dos interlocutores, podemos perceber que os mesmos ao se referirem a

cor/ raça dos seus familiares constroem um “discurso de descrição”, na perspectiva

35 Um outro exemplo interessante sobre essa questão das pessoas utilizarem outras e a si próprias como parâmetro para definir a cor de alguém e, também, valer-se de movimentos gestuais para isto, se deu na realização de uma pesquisa de opinião, como avaliação da disciplina Estatística Aplicada às Ciências Sociais I, realizada no bairro da Terra Firme, por mim e Bruno Guilherme dos S. Borda, também estudante de Ciências Sociais, sobre identificação de cor/ raça com a seguinte pergunta: Como você se identifica em relação a sua cor/ raça ou etnia? Como opções, havia as respostas branca, preta, parda e indígena. Na oportunidade, um rapaz negro estava respondendo a questão enquanto um outro, também negro, observava esperando sua vez. Ao responder, o outro rapaz viu que o primeiro tinha escolhido a opção parda e, antes de responder, olhou novamente para o rapaz, em seguida olhou para seu braço, notando que era “mais escuro”, então, respondeu: “marca aí... preto”, como se a partir daí não tivesse alternativa.

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apontada pelas antropólogas Suely Kofes (1976) e Robin Sheriff (2001), pois possuem

como objetivo apenas a descrição das características físicas apresentadas pelos seus

parentes. De acordo com Kofes, nestes casos em que as pessoas precisam ou tem por intuito

apenas descrever as características físicas de outras, elas fazem uso de “termos de cor

descritivos” como classifica a autora, que nada mais são que uma gama de termos

descritivos que levam em conta os mínimos detalhes para identificar e diferenciar uma

pessoa de outra, a cor da pele de intensidade mais ou menos escura, por exemplo; como

relata Dona Ana Silva Gonçalves quando diz: “Ele era, ele era moreno, ele era moreno, não

era escuro, muito escuro, era moreno claro, assim... mais escuro do que eu”

Neste mesmo sentido, caminha a abordagem de Sheriff. Para a autora norte-

americana, no discurso de descrição, os indivíduos não fazem uso de termos que denotem

uma noção concreta de identidade racial, portanto, estes discursos não devem ser

concebidos como possuidores de categorias raciais ou classificações raciais, mas apenas

termos que remetem a uma descrição física, onde se descrevem características como cor da

pele, cor do cabelo, entre outras, como fazem, aliás, meus interlocutores no relato anterior.

Na maioria das vezes, e nos relatos em questão, o discurso de descrição é construído sob

forma de comparações com familiares ou outras pessoas que, por ventura, possuam

características semelhantes a pessoas a quem se deseja fazer referência.

É importante destacar, também, que ao dizer, por exemplo, “meu pai era bem escuro

(...) meu pai era pretinho mesmo”, “minha mãe era mais clara”; “minha mãe e meu pai era

da minha cor, moreno escuro”; “os meus irmãos eram tudo moreno, quando saiam uns mais

claros (...) os que puxavam pro lado da minha mãe eram mais morenos”, as pessoas que

ouvi, utilizam-se do diminutivo (pretinho) e da gradação de cor ou continuum de cor (bem

escuro, mais clara, mais claros, moreno escuro, mais moreno) de uma forma que parece

“encobrir” ou “escurecer” as polarizações (preto e branco), já que preto e branco seriam

termos “indizíveis”, como demonstra Yvonne Maggie (1996).

Retomando novamente a discussão sobre a constituição do sistema de classificação

racial brasileiro a partir das gradações de cor e do continuum de cor apontado por Patrícia

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Birman (op. cit), Yvonne Maggie (1996), outra estudiosa das relações raciais no Brasil,

pensa que as inúmeras terminologias de cor utilizadas para se referir a suposta cor/ raça de

determinada pessoa tendem, como já disse, a “encobrir” ou “escurecer” as polarizações

preto e branco, como já sinalizava Birman, se considerarmos preto e negro como categorias

equivalentes.

Para Maggie, no sistema de classificação ou identidade racial do Brasil, as

classificações de cor/ raça: preto e branco seriam “termos indizíveis”, pois as pessoas

geralmente evitam utilizar estes termos, já que os mesmos fazem referência explícita as

diferenças existentes entre branco e negro, o que não reforçaria o mito de branqueamento

que norteia a sociedade brasileira que se compreende “misturada, e não segregada” como

nos indica esta autora. Ficando isso explícito em falas como as seguintes: “Eu tenho família

escura e família branca... é... a minha família é misturada. É arroz com ... (o que sugere

como complemento feijão), é leite com café”; “Só tem gente mais escuro do que eu na

minha família. É tudo misturado...”.

Além disso, segundo o cientista político Michael Hanchard (1996), um afro-

americano que fez extensa pesquisa sobre movimento negro no Brasil, a constante opção

por variadas categorias de cor desmascara a outra dimensão que há muito vigora no “senso

comum” racial brasileiro que é o mito de “democracia racial”. Por outro lado, com o uso

em menor freqüência destas polarizações (branco e negro) tanto o mito da “democracia

racial” quanto o ideal do branqueamento passam a ser bastante reforçados uma vez que no

sistema de classificação racial brasileiro os indivíduos possuem uma diversidade de

terminologias e gradações de cor como: moreno claro, bem moreno, bem escura, muito

escuro, entre outras, tais como aquelas que são proferidas por meus interlocutores.

Contudo, falar em gradações e continuum de cor não implica em dizer que em determinadas

situações a polaridade de cor (branco e negro) não exista e surja no discurso dos mais

variados sujeitos, como mostrarei mais adiante, que fazem parte e ajudam a construir o

sistema de classificação racial brasileiro.

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Ainda sobre os primeiros relatos dos informantes e os que se seguirão a partir daqui

é de fundamental importância que se perceba a recorrência com que vem se apresentando

determinados termos de reforço que aparecem como agregados as variadas categorias de

cor/ raça que se inserem no continuum de cor. Terminologias como assim, quase, meio,

bem, mesmo, mais e muito se configuram enquanto termos que ressaltam uma intensidade e

um reforço da cor/ raça de quem se deseja fazer referência, uma vez que estes são

pronunciados de uma forma bem particular, com uma entonação peculiar na fala que ajuda

a dar sentido e a explicar a cor/ raça que se quer mencionar, ajudando a compor a

mensagem, como quando relatam: “minha mãe era mais clara, não era branca não!”; “Os

meus irmãos eram tudo moreno, quando saiam uns mais claros”. Além disso, quando Dona

Olívia diz: “não era branca, não!”, percebemos que o fato de sua mãe ser “mais clara” não

implica em que esta fosse branca, portanto, “mais claro” e branco são termos que se

apresentam (ou podem se apresentar) como diferentes em relação a informação sobre a cor/

raça dos indivíduos.

Ao longo das pesquisas que desenvolvi como bolsista do programa de Iniciação

Científica, tais termos vem sendo denominados por mim de agregados/ explicativos. Estes

termos sugerem uma variedade ainda maior nas gradações de cor e possuem locais

específicos para cada terminologia no continuum, já que quando Dona Ana Gonçalves se

refere: “Ele era, ele era moreno, ele era moreno, não era escuro, muito escuro, era moreno

claro, assim... mais escuro do que eu”, ela quer dizer que seu pai era moreno, não muito

escuro, porém era mais escuro do que ela própria (que se auto-identificava como branca) e,

segundo a mesma se enquadrava na categoria de moreno claro – veja-se a sofisticação e

sutileza da classificação!

Dona Maria Filomena diz: “Só a mãe da minha mãe que eu conheci; mas ela era

bem escura, era bem preta mesmo (...) E a mãe da minha avó era branca... e a minha avó,

filha dela, era bem escurona mesmo, cabelo bem chegado”. Se observarmos o relato desta

informante ela se utiliza de dois termos agregados/ explicativos bem e mesmo nas duas

vezes que vai se referir ao seus familiares, primeiramente sua mãe que é definida por ela

como “bem preta mesmo” e em seguida sua bisavó que ela define como “bem escurona

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mesmo”. Além disso, podemos verificar, a partir do relato acima, que os termos “bem

escura” e “bem preta mesmo” e outros que estejam mais próximos da categoria negro

significam preto ou negro (já que ambas são análogas, como será mostrado mais adiante) se

apresentando como categorias equivalentes, diferentemente da categoria “mais claro” em

relação a branco, como foi observado anteriormente (p. 84)

Assim, a grande maioria dos interlocutores (para não dizer todos) ao definirem a

cor/ raça de seus parentes se dispõem com uma variedade de terminologias que denotam

raça/ cor e utilizam-se dos termos agregados explicativos para reforçar e intensificar a cor/

raça que pretendem mencionar para diferenciá-las das demais. Deste modo, os termos

agregados/ explicativos também podem ser úteis para verificação de termos que podem se

apresentar como categorias equivalentes ou não em relação a informação sobre a cor/ raça

dos indivíduos, como mostrei ainda a pouco.

É de grande importância observar as lembranças de Dona Maria Filomena e Dona

Olívia para discutir a temática das relações raciais que proponho neste trabalho, pois

segundo seus relatos:

“(...) E, a mãe da minha avó era branca... dos olhos amarelados, eu ainda conheci ela, conheci ela, ainda me lembro dela, do jeito que ela era. Ela era branca dos olhos verdes, linda, tinha assim... o cabelo dela bem amarelo, o cabelo dela. Ela era branca mesmo, e a mãe... e a minha avó, filha dela, era bem escurona mesmo, cabelo bem chegado” (Dona Maria Filomena, 85 anos).

A minha irmã pegou o nome de mulata, porque tinha um cabelão grande, bem quebrado o cabelo dela né! Aí todo mundo chama: ‘cadê a mulata’? Mulata por causa do cabelo. O nome dela é Jovelina, o nome verdadeiro dela (...) Ela era clara porque é do primeiro marido da minha mãe, mas é irmã por parte de mãe. Ela era morena clara, bem clara. Ela tinha um cabelo que vinha até aqui (mostra gestualmente o tamanho do cabelo que atingia a metade da costa) (...) porque antigamente, os cabelo assim, a gente chamava de mulata, né! Todo aquele cabelo, todo. Era bonito o cabelo dela, ai chamavam: ‘cadê a mulata’? mulata, mulata e por mulata ficou” (Dona Olívia, 69 anos).

No primeiro relato podemos perceber que os padrões de beleza mencionados por

esta interlocutora são padrões de origem européia, que tem na cor da pele branca, nos olhos

verdes e no cabelo “bem amarelo” (loiro) a referência estética para definir o que é belo ou

não. Assim, em nenhum momento sua avó que era “bem escurona mesmo” e era dona de

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um “cabelo bem chegado” foi referida pela informante como bela ou simplesmente bonita,

o que sugere que os padrões de beleza e estética, neste caso, estejam intimamente

relacionados com questões raciais, o que aponta para uma “norma somática” que ao longo

da história coloca o fenótipo negro em uma escala inferior, em relação ao branco, no que se

refere a questões de beleza e “boa aparência”. Assim, a beleza e a estética também se

conformam como um dos componentes que fazem parte do sistema de relações raciais

brasileiro ou do habitus racial que norteia a concepção sobre as relações raciais no Brasil,

como sinaliza Livio Sansone (1996) pensando na noção de habitus proposta por Pierre

Bourdieu como relações sociais que são internalizadas, mas não são estruturas estruturadas

e sim estruturas estruturantes.

Por outro lado, quando Dona Olívia fala sobre os apelidos de infância,

principalmente o de sua irmã que era chamada de mulata, e até mesmo, do seu primeiro

relato sobre sua mãe, no inicio deste capítulo, quando diz: “minha mãe era mais clara, não

era branca não!, era morena bem clara assim, tipo mulata mesmo. Tinha um cabelão

grande.”, percebemos a valorização da mulata, que para Mariza Corrêa (1996) vem se

constituindo ao longo do seu processo histórico-social como uma figura “mítica” ou

“imaginária” em nossa sociedade. O que significa trabalhar, com o processo de construção

e atualização de nosso sistema de diferenciações e hierarquizações raciais o qual, como se

tem referido, opera fortemente imbricado com as de gênero (cf. Corrêa, 1996; Motta-

Maués, 1987).

Em seu trabalho intitulado: “Sobre a invenção da mulata”, Corrêa (1996) tem como

principal objetivo discutir a construção da mulata enquanto categoria social, com intuito de

questionar a forma habitual que estamos lidando com esta categoria, tanto nas relações

raciais quanto nas relações de gênero. De acordo com esta autora, a mulata ao longo de sua

construção social, a quem se atribuiu nos discursos médicos, literários ou carnavalescos

uma sensualidade e sexualidade acentuadas, acabou por se configurar como um objeto de

desejo, a ponto de assumir um certo estatuto simbólico que lhe confere positividade e

tornar-se símbolo nacional, escapando, assim, de seu pólo negativo que tinha na

miscigenação um grande problema para a sociedade brasileira. Porém, Corrêa aponta que a

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passagem do pólo negativo ao pólo positivo, o qual a mulata percorreu em sua trajetória,

não ocorreu da mesma forma com seu par masculino: o mulato.

Segundo Corrêa (op. cit), no seu processo de integração a sociedade brasileira o

mulato passou por um processo de branqueamento social de forma muito rápida,

transformando-se em agente social de grande importância para constituição da nossa

sociedade, enquanto a mulata foi “engendrada” socialmente, configurando-se em nosso

imaginário social/ racial como “objeto social, símbolo de uma sociedade (que se quer)

mestiça” (p. 48). Mas, as diferenças não param por aí. No que se refere ao continuum de cor

a categoria mulato se apresenta de forma extremamente ambígua e frouxa e quase não

aparece nos relatos dos informantes, já seu par feminino, mesmo que ambíguo, se revela

como uma categoria fixa diante da fluidez que possui as várias gradações de cor dentro do

continuum, pois como nos mostra Corrêa: “A mulatice não é uma definição passível de

negociação: ‘a mulata é a tal’ ”(p. 47), a autora acrescenta ainda que: “ao destacar dela a

mulata que é a tal, parece resolver-se esta contradição, como se se criasse um terceiro termo

entre os termos polares Branco e Negro”(p. 49).

De acordo com Corrêa, nas discussões sobre gênero, tanto o mulato quanto a mulata

saíram do campo das classificações de sexo para os da classificação de gênero, porém o

primeiro assume o papel de agente social, como já disse, enquanto a mulata é concebida

como símbolo de sensualidade e desejo sexual, o que lhe confere uma maior “visibilidade”

tanto em relação ao mulato quanto em relação a própria mulher negra que não é

nomeadamente mulata. Afinal, é para a mulata – noutra interpretação, a negra – que se

promove o concurso de musa do carnaval (vinheta globeleza) e os olhares e as câmeras

estão voltados neste período no país.

Motta-Maués (1999) pensando na questão da “invisibilidade” imposta ao negro no

Brasil trabalhada por Carlos Hasenbalg (1988), aponta a existência de uma delicada

combinação entre “invisibilidade & visibilidade” que, segundo a autora, compõe os dois

eixos que conduzem a forma de lidar com o negro e a questão racial entre nós. Sobre isso

ela diz:

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“De minha parte e olhando de outro ângulo, penso que, como sempre, a vida social é mais complexa. Falo da existência no Brasil de uma esdrúxula combinação entre invisibilidade & visibilidade, mistura, aliás, que casa bem, tanto com nossas construções acadêmicas sobre a nação, como com o processo de construção histórico-intelectual da mulher negra, nomeadamente mulata ou não. O que joga com outra imbricação significativa: raça/ cor e gênero. Assim, verso e reverso da mesma moeda, invisibilidade & visibilidade configuram, para mim, os dois eixos que ordenam nossa forma de lidar com o negro e a questão racial” (1999: 6).

Retomando novamente o relato anterior de Dona Olívia podemos perceber que esta

interlocutora ao falar na figura da mulata se referindo tanto a sua mãe quanto a sua irmã dá

bastante ênfase aos cabelos de ambas, ficando explicito em sua fala que “cabelão grande” e

“cabelo bem quebrado” são características das mulatas. Deste modo, remeto novamente a

Motta-Maués (1999) ao tratar do jogo de “invisibilidade & visibilidade” e do processo de

construção da mulata. Motta-Maués acredita que os cabelos, principalmente no caso das

mulatas, é o elemento de maior visibilidade (talvez, mais até que a própria cor da pele),

pois “emoldura o rosto”, uma vez que está no alto da cabeça e pode modificar-se de acordo

com a intenção de sua dona ou dono de embranquecer ou enegrecer. Sobre isso a própria

autora diz:

“Penso que os cabelos, mais (talvez) que a cor da pele, casam perfeitamente com o nosso sistema racial de classificação de cor e, no meu caso, aqui, de gênero. Eles são muito bons parceiros no jogo invisibilidade & visibilidade, de ser, não sendo, característico de nossos modos e modas nos assuntos de raça e cor. Sendo, ao que parece, o elemento de maior visibilidade – está no alto da cabeça, ‘emoldura o rosto’ – pode participar, a gosto, desse jogo, transformando-se (sendo transformado por seu dono ou dona) conforme o desejo (de ‘mudar de cor’) ou a própria mudança mesmo. Seja para embranquecer ou para enegrecer, aliás. Daí que, parece, não é a pele, a cor que é boa ou ruim, bem ou mal com Deus, como se diz no Brasil, mas o cabelo” (MOTTA-MAUÉS, 1999: 18-19).

De acordo como Suely Kofes (op. cit) e Robin Sheriff (op. cit) no sistema de

classificação racial brasileiro existem algumas situações em que o discurso sobre

classificação racial deixa de ser apenas descritivo e passa a ser um discurso que privilegia

determinadas terminologias que tendem a categorizar e classificar ao se referir sobre a cor/

raça dos indivíduos, como por exemplo, quando Dona Olívia se refere a irmã e a mãe como

mulatas. Esta forma de discurso pode ser observada no relato de Seu Abílio que prefere ser

chamado de moreno e escuro a ser chamado de negro e, também nas lembranças de Dona

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Ana Silva Gonçalves ao se referir a uma amiga que a acompanhou a uma festa junina no

município de Soure; segundo eles:

“Agora eu acho chato dizer pra um moreno uma coisa.... chamar cor negra. Tem essa cor negra? Não tem! A cor negra é carvão e piche. O cara é escuro, escuro tá certo! Escuridão é escuridão, há cor assim né? Há cor morena, cor assim...., mas negro eu não gosto de.... ser chamado de negro. Eu não gosto, negro é carvão. (...) Agora eu não vou dizer que eu sou branco, eu não vou chamar você de outra cor né, se sua cor é branca é branca!, a minha cor é escura é escura!” (Seu Abílio, 84 anos).

“Eu ia pra lá, eu e uma vizinha lá do lado, a morena. Nós dançava, dançava, dançava bem. Graças a Deus a mamãe não proibia nada não” (Dona Ana Silva Gonçalves, 68 anos).

Para Kofes os termos “categóricos”, como designa a autora, possuem uma relevante

autonomia em relação às características físicas; no nosso caso tais como a que a amiga

denominada de morena por Dona Ana Silva Gonçalves possa apresentar, uma vez que tais

termos ou discursos remetem a classificação ou categorização, por isso, se diferenciando

dos termos ou discursos descritivos, como indica Kofes. De acordo com Robin Sheriff (op.

cit), essa forma substantiva de se referir a outra pessoa é denominada como “estilo

pragmático ou indicial” de discurso cotidiano. Segundo Sheriff, nesses discursos os

indivíduos “manipulam conscientemente o vocabulário sobre raça/ cor” (Sheriff, 2001:

219), de maneira a optar por uma determinada categoria racial que para ela representa a

“verdadeira cor” da pessoa a quem se referiu. Conforme a autora, no “estilo pragmático ou

indicial” de discurso o termo escolhido para designar a cor/ raça de alguém depende

fundamentalmente “do jeito de falar”, fazendo com que o indivíduo que se refere desta

forma a pessoa de cor “marca, constrói e/ ou negocia ativamente” (idem, p. 222) sua

relação com esta última, podendo ofender ou não a pessoa a quem se direciona tais termos,

já que são classificatórios, como já disse.

Porém, para Robin Sheriff, os termos classificatórios ou categóricos podem ser

classificados em dois tipos de discurso sobre a cor/ raça: a) estilo pragmático ou indicial de

discurso e; b) estilo racial de discurso. Enquanto no trabalho de Suely Kofes não existe tal

distinção, além daquela entre os termos descritivos em relação aos categóricos, concebendo

esta autora apenas estas duas classificações. Os termos que designam e remetem a uma

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classificação sobre cor/ raça são englobados em um único grupo, denominado por Kofes

como “termos categóricos”.

No diálogo com alguns interlocutores surgem relatos de relatos (de seus

ascendentes) sobre escravidão – o que sugere que nestes estejam contidas as primeiras

imagens e interpretações sobre o negro no final do século XIX/ início do XX em Belém,

apresentadas neste trabalho – pois segundo os mesmos, alguns de seus parentes chegaram a

ser escravos; ao lembrar deste fato eles nos contam:

“A minha avó que era parte da mãe do meu pai contava que eles vieram da África. Veio ela, esse filho; meu pai e o marido, que era o meu avô. Meu pai... vieram num navio grande, vieram muita gente de lá da África pra cá pro Brasil. O pai da minha mãe e a minha avó que era mãe do meu pai foi escrava. (...) Eles viviam, eles vinham no porão do navio, é que eles não tinham direito assim de ..., assim como os outros passageiros né!, vinham tudo misturado, um dormia de rede, outro dormia no chão, outro dormia assim, todo engelhado. Eles vinham no fundo do navio, embaixo... diz que eles eram mesmo que ser bicho, comiam, bebiam ali, tudinho. Mesmo o meu avô quando ele viajou pra cá, ele viajou escondido, porque lá na África tavam morrendo tudo e aí ele não sei como que ele conseguiu que eles vieram pra cá. Ela mostrava o lençol que meu pai veio embrulhado com a minha avó, o cobertor, ele veio pequenininho, veio com nove meses, o meu pai né!, já a minha avó que contava e ele se criou aqui no Brasil. (...) Diz que era muito frio lá no navio, muito frio...muito frio. Era morrendo gente de frio, aí eles vieram, vieram muita gente para cá no navio, muito negro mesmo, muito africano, tudo africano... tudo africano” 36 (Dona Olívia, 69 anos). “É que meu pai e minha mãe conversava com nós. Então, eu teve uma tia que foi escrava, ela não era preta, preta, preta, era morena assim. Então ela foi vendida prum... prum pessoal aí (...) ela era prima do meu pai, ela não era preta não, era uma clara ... não tem esses pobre quando se empregavam... tinha rico, vendia pra eles o diabo desse pessoal. (...) Chegou a ser escrava. Nova ela foi escrava, naquela época o que mandava era o dinheiro. Um dia topamos ela lá37, lavando roupa numa ponte na beira do rio. Fui lá né! Conhecemos ela, aí encostamos de modo a canoa, conversamos com ela, o que ela tinha? ‘ah eu fui vendida pra cá, faz tempo. Eu queria sair daqui, me maltratam aqui à beça. Aqui se juntaram, arrumaram dinheiro e foram comprar ela de novo. Compraram, aí foi que ela foi embora. Dorotéia o nome dela. Eu já vim conhecer ela, eu menino, eu já conheci ela meia velhota ainda (...) já

36 A partir do relato desta interlocutora podemos perceber claramente o problema relacional de tempo-espaço e memória, como constituinte da própria memória individual ou social, pois, provavelmente, os avós de Dona Olívia devem ter nascido por volta de 1890, período em que o tráfico negreiro já havia sido extinto no país, o que sugere que tais acontecimentos pertençam a um campo da memória que Pollak (1992) denominou de acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja, fatos vivenciados pelo grupo ou pela coletividade a qual o indivíduo se sente fazer parte. Assim, os familiares de Dona Olívia podem ou não ter vivenciado tal acontecimento relatado por ela, mas, o fato é que muitos outros negros que foram escravizados vivenciaram e, é a este grupo que Dona Olívia tem um sentimento de identidade e pertencimento. 37 Em alguns casos os interlocutores relatando algum fato ocorrido, seja com familiares ou conhecidos, assumem a autoria do feito relatado, como foi observado no relato anterior.

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morreu, ela tava mais ou menos com uns mais de 40 anos já morta” (Seu Abílio, 84 anos).

“Negócio de escravidão que existia antigamente, ficar como escravos dos outros né, vivia cento e onze anos e ainda era escravo (...) e também esse negócio de escravidão, ainda existe gente por aí que ainda foram escravo né, ainda existe gente por aí que ainda foram escravo, tão tudo com cento e cinco anos, eu tô lembrando agora.... ali tem uma com cento e cinco anos, ela que falava isso, na época dos escravos ela tinha sido escravo (...) essa que morava no bairro do Guamá.... falava um bocado das coisas da época dos escravos. Ela foi escravo... ela foi escravo. Ela foi escravo de uns cara lá, passou uns anos lá aí depois se saiu. O nome dela, não me lembro o nome dela. Ela era filha de escravo, era pretinha ela, era bem moreninha. Filha de escravo ela falava que tinha sido escrava de um cara lá, maltratavam dela lá, aí passado um tempo ela se saiu deles, ficou... sei lá, por aí. Ela é lá do Guamá” (Seu Francisco, 84 anos).

É importante esclarecer que não tenho pretensão de analisar a veracidade histórica

de tais informações, ou seja, analisar se realmente vieram negros africanos em navios para

serem escravos neste período no Brasil, mais precisamente em Belém e suas redondezas,

haja vista que o tráfico negreiro já havia sido extinto, ocorrendo então comércio interno de

escravos. Portanto, como já foi mencionado, pretendo analisar as questões relativas ao

sistema de classificação racial brasileiro e; as imagens e interpretações construídas sobre o

negro na cidade de Belém, no período estabelecido pela pesquisa, através da memória

social dos velhos, sendo que alguns deles me parecem ter um sentimento de reciprocidade e

continuidade a um grupo específico, ou seja, um sentimento de identidade e pertencimento

ao grupo por eles mencionado, vivenciando pessoalmente ou não tais acontecimentos.

Neste sentido, tratando sobre os elementos constitutivos da memória individual ou coletiva

Michael Pollak diz:

“Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de ‘vividos por tabela’, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade a qual a pessoa se sente pertencer (...) Locais muito longínquos, fora do espaço-tempo da vida de uma pessoa, podem constituir lugar importante para a memória do grupo, e por conseguinte da própria pessoa, seja por tabela, seja por pertencimento a esse grupo. (...) Portanto, podemos dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (POLLAK, 1992: 201-204).

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Assim também, os velhos que ouvi apresentam desta forma os acontecimentos

englobados de um modo (acontecimentos vividos pessoalmente), ou de outro

(acontecimentos “vividos por tabela”), às suas vidas como, por exemplo, os relatos de Seu

Abílio sobre sua tia que, supostamente, teria sido escrava, e de Dona Olívia sobre a viagem

de sua família da África para o Brasil.

Ao serem indagados sobre o que seus pais e parentes comentavam em relação a

forma como as pessoas brancas se referiam aos negros e da discriminação sofrida por estes,

alguns interlocutores dizem:

“Elas chamavam de pretos, chamavam de mulatos” (Dona Olívia, 69 anos).

“Elas chamavam de preto, pretinho...” (Dona Nair, 72 anos).

“Já, eu tenho visto já! O fulano é negro, fulano negro, fulano negro... negro. Eu acho isso feio eu não gosto” (Seu Abílio, 84 anos).

“Nunca ouvi falar, nunca ouvi falar, nunca ouvi ela falar sobre essa gente assim”(Seu Francisco, 84 anos)

Destes comentários é importante destacar alguns pontos. Podemos perceber pela

primeira vez a presença de algumas imagens formuladas sobre o negro, a partir de

informações contidas no relato dos interlocutores – adquiridas supostamente com seus pais,

parentes ou amigos, que devem provavelmente ter nascido por volta do final do século

XIX/ início do século XX. Assim, a partir daqui iremos verificar que por de trás de

categorias como: preto, pretinho, mulatos e negro, existe um conjunto de representações

sociais negativas que foram associadas ao negro, que baseadas no conceito e concepções de

“raça”, conferiam a este personagem uma inferioridade diante de outros grupos sociais.

No relato de Seu Abílio, ao falar que tem conhecimento da forma como as pessoas

têm se referido ao negro: por negro, é importante lembrar a coerência com a qual é

construído o discurso deste informante, pois ele próprio já havia dito que não gosta desta

forma para fazer referência a “pessoa de cor”, dando preferência a categorias como moreno

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e escuro, talvez, devido as representações negativas que a categoria negro traz consigo –

um conjunto de imagens e interpretações construídas socialmente ao longo da história que

remetem a escravidão e a seu período pós-abolição, em que se conferia ao negro um caráter

eminentemente pejorativo de cunho racial, que atribuía uma inferioridade a este grupo

social em uma escala bio-psico-social, em relação a outros grupos como, por exemplo, os

brancos e os índios. Deste modo, de acordo com o esquema racial de Arthur de Gobineau

temos:

RAÇAS HUMANAS38

NEGRA AMARELA BRANCA

Intelecto Débil Medíocre Vigoroso

Propensões animais Muito fortes Moderadas Fortes

Manifestações morais Parcialmente inteligentes

Comparativamente desenvolvidas

Altamente cultivadas

De acordo com antropólogos estudiosos da questão racial no país (cf. DaMatta,

2000; Motta-Maués, 1989; Skidmore, 1976; Schwarcz, 1996) as ideologias ou doutrinas

raciais brasileiras surgem no período que antecede a proclamação da república e a abolição

da escravatura, momento de crise no país e abalo nas estruturas hierárquicas. As teorias

raciais e racistas de Gobineau e outros como: Buckle e Agassis, tem origem na Europa e

nos EUA a partir do século XIX, sendo amplamente difundidas no Brasil por intelectuais da

época como, Silvio Romero, Nina Rodrigues, entre outros que bebiam diretamente na fonte

destes teóricos do racismo (sem ao menos questioná-los), uma vez que estas teorias

possuíam respaldo científico, eram teorias do evolucionismo e do determinismo, isto é,

segundo os evolucionistas, cada raça ocupa um lugar na história da humanidade e para os

deterministas existem raças superiores a outras, todas determinadas biologicamente.

Ainda sobre as representações negativas atribuídas ao negro, quando Seu Francisco

diz: “Nunca ouvi falar, nunca ouvi falar, nunca ouvi ela falar sobre essa gente assim”

devemos observar que é um negro falando de outros negros sem identificar-se com eles, 38 Gobineau 1856: 95, 96 Apud DaMatta 2000: 72.

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portanto, dando conotação do discurso do “Eu” versus “Outros”, em que, no caso em

questão é como se Seu Francisco não se sentisse fazendo parte deste grupo.

Outro ponto importante a ser destacado se refere a presença nos relatos destes

interlocutores do que Sheriff (op. cit) denominou de “estilo racial de discurso”, ou seja, um

discurso que é construído não mais sob a ótica do continuum de cor, sobre o qual venho me

referindo ao longo deste capítulo (não aparecendo as ambíguas e múltiplas categorias que

envolvem cor/ raça, pois não enfatizam a cor e nem a aparência), porém sob a perspectiva

de categorias raciais bipolares (branco e preto ou branco e negro) ou categorias raciais

tripartites (branco, mulato e negro), já que tal discurso ressalta não só a noção de categorias

raciais, mas também a de raça.

Porém, quando a mesma pergunta sobre discriminação vai direcionada as suas

famílias, com intuito de saber se alguma pessoa já teria se referido desta forma a um de

seus parentes e se estes já teriam passado por situação semelhante, eles respondem:

“não, nunca vi!. Nunca vi meu pai contar essas coisas, não comentava não!. Ele nunca comentava negócio, dizer assim: ‘fulano disse isso, fulano fez aquilo’. Ele nunca comentava com a gente. (...) mas no modo de serem discriminados eu não tenho o que contar pro senhor não, pra falar disso não. O meu pai era bem visto, ele tinha muitos amigos, muitos amigos comerciantes, mas que fomos discriminados não, nem de falar nessas coisas assim. Eu sei que tem aqui discriminação dos brancos sobre os negros né! Mas eu nunca vi isso, nós ter sido maltratado assim, aquele negrinho! aqueles negros! Não tenho muita coisa que contar” (Dona Olívia, 69 anos).

“Não. É isso o que eu falei, fora isso eu não me lembro mais, faz muitos anos já né, mas isso tudo foi esquecido já, eu nunca ouvi falar sobre isso, eu nunca ouvi falar sobre isso” (Seu Francisco, 84 anos).

É interessante ressaltar o fato do pai de Dona Olívia ter comentado com ela que os

brancos se referiam aos negros chamando-os de “pretos”, “mulatos” e esta interlocutora

nunca ter visto e/ ou ouvido outros falarem em relação ao seu circulo familiar desta forma;

também, no caso de Seu Francisco que no relato anterior diz nunca ter ouvido falar sobre

“essa gente assim” e depois fala “faz muitos anos já né, mas isso tudo foi esquecido já, eu

nunca ouvi falar sobre isso, eu nunca ouvi falar sobre isso”. Talvez seja porque estas

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lembranças fazem parte do que Pollak (1989) denominou de “memória subterrânea”, no

sentido de que essas memórias, na maioria das vezes, aparecem como lembranças

proibidas, indizíveis e, no caso em questão, vergonhosas, uma vez que são memórias e

lembranças de grupos excluídos, minorias marginalizadas. É neste sentido que, Terezinha

Bernardo em seu estudo sobre velhos descendentes de africanos e de italianos em São

Paulo, retoma Pollak para dizer que tais lembranças “são zelosamente guardadas em

estruturas de comunicações informais e passam despercebidas pela sociedade englobante”

(1998: 34).

Entretanto, Dona Olívia lembra de um fato ocorrido com um garoto quando ela

morava no Estado do Rio de Janeiro; ela narra:

“já, eu já depois de grande, já faz muito tempo, eu fui morar no Rio de Janeiro. Aí eu vinha, eu ia na casa de uma senhora, lá eu conhecia ela e ela me conhecia, eu sempre ia lá. Quando eu fui no domingo, eu fui lá, aí quando eu cheguei lá ... ela morava em um apartamento em Ipanema, ela morava lá em cima, então ela tinha um menino que era filho de criação dela, filho da empregada, ele era moreno e tinha 12 anos ... ele subia no elevador. Quando foi um dia eles não deixaram ele subir no elevador, aí eles mandaram, porque tinha dois elevador, tinha o dos brancos e tinha o dos pretos, dos negros como eles chamam, aí quando ele foi subir o porteiro barrou ele: - ‘Não, você não pode subir aqui!’ Aí ele agarrou o rapazinho e ele subiu pelo outro elevador” (Dona Olívia, 69 anos).

O que nos encaminha, pelo menos, para dois pontos: para o objeto da memória/ da

lembrança (as relações, não serenas, entre negros e brancos) e para a especificidade da

memória de combinar-se sempre com ou conter nela mesma o esquecimento (cf. Pollak,

1989; Nava, 1999).

No relato acima, novamente podemos perceber o “estilo racial de discurso” quando

minha interlocutora diz: “...porque tinha dois elevador, tinha o dos brancos e tinha o dos

pretos, dos negros como eles chamam...”, que nada enfatiza de cor e aparência, ressaltando,

neste caso, identidades raciais bipolares (brancos e pretos/ negros). Além disso, nota-se,

também, no relato de Dona Olívia, que negro é a forma como os outros (brancos) chamam

os pretos, fato que também foi observado por Sheriff (op. cit) quando do relato de um de

seus informantes que dizia sobre a diferença entre preto e negro: “Não tem diferença, só

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que negro é um apelido que os brancos deram aos pretos” (Sheriff, 2001: 223), como

também pode ser observado no caso de Seu Abílio que não gosta de ser chamado de negro.

Deste modo, cotejando meus dados com os dados da autora acima, pode-se entender que

preto e negro são categorias raciais equivalentes, apesar de que para as pessoas “de cor” a

palavra negro, quase sempre, possui uma conotação pejorativa, considerada como sendo

utilizada de maneira preconceituosa por pessoas racistas.

Ainda sobre o “estilo racial de discurso” duas interlocutoras ao lembrarem das

pessoas que trabalhavam no mercado Ver-o- Peso nos dizem:

“Era assim... uns morenos e uns brancos, assim mo... (...) Elas eram morenas, tinha umas que eram pretonas mesmo, tinha umas que eram morenas clara, assim...” (Dona Raimunda Carvalho, 92 anos).

“Tinha toda, toda espécie de gente trabalhando. Um vendia fruta, outro vendia peixe, tinha o mercado de carne...(...) eram uns morenos misturado com pretos, branco misturado com....Eram de toda a cor né! O trabalho lá na... na feira tinha gente de todo jeito lá” (Dona Maria Auxiliadora, 64 anos).

Então, de acordo com o relato destas informantes podemos verificar a presença de

termos categóricos e classificatórios como: brancos, pretos e pretonas mesmo que

ressaltam a concepção de categorias raciais e, sobretudo a noção de raça, a qual descreve

Robin Sheriff (op. cit). Também podemos observar a presença do termo agregado/

explicativo mesmo que ressalta, intensificando mais ainda a categoria racial pretonas, o que

indica que não eram apenas pretonas que trabalhavam no Ver-o-Peso, mas pretonas

mesmo, ou seja, pretas verdadeiramente, neste sentido.

Deste modo, retomo novamente as proposições de Patrícia Birman (op. cit) e

Yvonne Maggie (op. cit) quando indicam que no sistema de classificação racial brasileiro

existe uma certa preferência pelas gradações e por um continuum de cor, mas que isso não

implica dizer que, em determinadas ocasiões, não se faça uso de categorias raciais bipolares

ou tripartites, como nos mostra Sheriff (op. cit) e pode ser observado nos relatos acima de

minhas interlocutoras.

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Porém, mesmo com a presença de termos que ressaltam categorias raciais e a

concepção de raça, o discurso destas informantes é permeado de gradações que obedecem a

lógica do continuum de cor como: morenos, morenas, morenas clara, pois como nos diz

Dona Maria Auxiliadora: “Eram de toda a cor né!(...) tinha gente de todo jeito lá”. O que

sugere novamente as considerações de Maggie de uma sociedade nacional que se

compreende misturada e não segregada, conseqüência do ideal de branqueamento, tese que

era também um projeto do Estado brasileiro, como já disse, e que, de certo modo, ainda

norteia nossa sociedade (cf. Skidmore, op. cit.). Embora se possa dizer que, mais

complexamente do que isto, mesmo se valendo do uso do continuum, ninguém deixe de

saber o que está dizendo ao falar das categorias de cor.

Neste sentido, e tratando também sobre o sistema racial brasileiro, Livio Sansone

(1996) acredita haver uma série de relações construídas sob um conjunto de regras

preestabelecidas em que existe um certo e problemático consenso, o qual ele denomina,

seguindo terminologia de Bourdieu, habitus racial. Para Sansone temos:

“um sistema racial não polar, caracterizado por um alto grau de miscigenação; uma tradição sincrética no campo da religião e cultura popular; um continuum de cor e uma norma somática que tem historicamente colocado os fenótipos negros na escala inferior da noção de ‘boa aparência’. Em torno desse sistema, como produto da tradição das relações raciais, tem-se construído um conjunto de regras sobre as quais existe um certo e problemático consenso, o qual podemos chamar de habitus racial” (1996: 207).

Desta forma, Sansone em suas pesquisas corrobora, de forma exemplar, as análises

de Birman (1989); Maggie (1996); no que se refere as inúmeras terminologias ou categorias

pertencentes ao continuum de cor. Também, porém de uma forma não explícita, podemos

pensar os termos “descritivos” e “categóricos” de Kofes (1976) e os discursos sobre raça,

cor e racismo de Sheriff (2001) a partir da noção de habitus racial proposta por aquele

autor.

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3 – Quadros sobre as gradações de cor e a forma como as categorias de cor/ raça foram utilizadas pelos informantes

Gradações de cor inseridas no Continuum de cor

branco brancos

branca branca

mesmo

claro clara moreninha moreno claro morena clara

moreno morena bem moreno

mulatos mulata escuro mais escuro mais escura muito escuro

muito escura bem escura bem escurona

mesmo

pretinho pretos preto pretonas

mesmo

bem preta

mesmo

negro

Termos Agregados/ Explicativos – indicam reforço e “intensidade” da cor/ raça

Assim quase meio bem mesmo mais muito

Categorias raciais que ressaltam a noção de raça

branco mulatos pretinho pretos preto pretonas mesmo negro

Termos equivalentes preto e negro bem escura, bem preta mesmo e preto ou negro

Termos não equivalentes

mais claro e branco

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Considerações Finais

De tudo que pude apresentar até aqui, pode-se concluir que para identificação e

análise das imagens e interpretações criadas sobre o negro, construídas na cidade de Belém,

no período delimitado pela pesquisa (mesmo com poucos dados sobre a questão), o estudo

da história de vida e da memória social de velhos, homens e mulheres, negros e brancos se

revela como um instrumento importante para a apreensão da memória social de um

momento e locus específicos. Deste modo, para realização de um trabalho sobre história de

vida, o recurso metodológico do estudo da memória se revela de fundamental importância,

pois permite, talvez, melhor que qualquer outro, trabalhar com a subjetividade dos

indivíduos, pois as subjetividades tendem a ultrapassar as individualidades e atingem

características coletivas de grupos específicos (cf.; Bernardo, 1998; Bosi, 1979; Halbwachs,

1990; Pollak, 1992), possibilitando a análise de diversos temas que surgem a partir dos

relatos dos informantes, como por exemplo, arranjos familiares e de parentesco; relações de

trabalho; lembranças sobre a cidade e; principalmente, as classificações sobre raça e cor na

concepção dos brasileiros, que acabou por se constituir como o foco principal de análise

deste trabalho – porém, sem esquecer do objetivo inicialmente proposto. Além disso, a

história de vida enquanto metodologia qualitativa é de fundamental importância para

efetivação de uma pesquisa como a que faço, pelas razões já expostas.

Desta forma, a partir do relato dos interlocutores que se disponibilizaram em

participar da pesquisa, o estudo se preocupou em compreender como opera o sistema de

classificação racial brasileiro tendo como embasamento teórico as análises de Patrícia

Birman (1989) e Yvonne Maggie (1996) a respeito das inúmeras terminologias sobre cor/

raça que se conformam em gradações de cor e, estas por sua vez obedecem a lógica de um

certo continuum de cor. A diversidade de gradações de cor que permeia nosso sistema de

classificação racial, que segundo Maggie é decorrente de fatores como o ideal de

branqueamento, faz com que os brasileiros evitem termos que impliquem na diferenciação

entre negros e brancos, conseqüentemente privilegiando terminologias como: mais claro,

moreno, mais escuro, dentre outros, como pude mostrar ao longo deste trabalho.

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Assim, devo acrescentar que as imagens e interpretações criadas sobre o negro em

Belém, no final do século XIX e início do século XX, fazem parte, e ao mesmo tempo,

ajudam a construir o complexo e ambíguo sistema de classificação racial brasileiro,

freqüentemente aparecendo no discurso cotidiano sem polarizações, apresentando inúmeras

terminologias e gradações de cor, principalmente, pelo fato das relações raciais serem

construídas sob um conjunto de regras preestabelecidas sobre o qual existe um consenso ou

habitus racial (Sansone, 1996).

Por outro lado, e pensando em outra questão pode-se dizer que, as Unidades de

Acolhimento a Pessoa Idosa – Val-de-Cans e Socorro Gabriel, onde ouvi os relatos para

meu estudo, encarnam o modelo de instituição total proposto por Goffman (1974), uma vez

que as pessoas que residem nestas instituições tem suas vidas administradas e controladas

por regras e normas estabelecidas pela equipe técnica ("equipe dirigente" para Goffman)

que as dirigem. Além disso, como aponta Foucault, as normas e as regras estabelecidas

nestas instituições se estruturam e tem como lógica de funcionamento o processo de

disciplinarização. Sendo assim, estes indivíduos acabam vivendo em estado de reclusão

social, “isolados” da sociedade maior, tendo seu único contato com esta através de outras

pessoas, apesar de não desligados por si mesmos, como mostra o exemplo dos internos da

UAPI - Socorro Gabriel, que passam a tarde inteira observando pelas frestas da parede o

que acontece do lado de fora da instituição – no “mundo de fora”.

No outro locus da pesquisa, a Associação Santa Luiza de Marillac, percebe-se que

esta instituição, além de ser uma associação sem fins lucrativos de caráter beneficente e

filantrópico, com intuito de ajudar idosos com necessidades e baixas condições de renda,

também se constitui como um espaço de convivência, interação e sociabilidade de mulheres

idosas, se configurando como um “grupo de convivência” ou de “terceira idade” como vem

sendo designados atualmente tais espaços sociais. Pode-se dizer, então, que na Associação

se comunga de valores, hábitos e gostos em comum, caracterizando-se, principalmente, a

idade e a feminilidade como fatores distintivos, fazendo com que essas mulheres idosas

tenham um sentimento de pertença a um grupo comum, ou seja, sintam-se fazer parte de

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um mesmo grupo, onde se possui códigos e símbolos semelhantes que marcam a diferença

e o caracterizam como grupo.

Em conclusão, devo dizer que se os dados coletados na pesquisa de campo não

apontaram tão enfaticamente e de forma mais representativa para a temática das imagens e

interpretações formuladas sobre o negro em Belém, no período estabelecido pela pesquisa,

além de tais questões não serem abandonadas, foram os próprios dados que encaminharam

o desenrolar da análise para a questão que se tornou central no trabalho, pois os relatos das

histórias de vida dos informantes sobre: trabalho, cidade e, sobretudo, família apontaram

para um tema (não distanciado do problema inicial) verdadeiramente importante e até hoje

não tratado com tanta atenção, o sistema de classificação racial brasileiro. Assim, este

assunto acabou por se configurar como a discussão principal pela qual enveredei ao longo

deste trabalho.

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Apêndice I: Croquis UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel

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Apêndice II: Cronograma de atividades das UAPI(s)∗

Cronograma de Atividades UAPI – Socorro Gabriel

Julho de 2003

Quarta-feira, 09 de julho Passeio

Quinta-feira, 10 de julho Festival de Picolés

Sexta-feira, 11 de julho Aniversariantes do mês de julho

Quarta-feira, 16 de julho Festival de Pizzas

Quinta-feira, 17 de julho Passeio

Quinta-feira, 24 de julho Festival de Açaí

Quarta-feira, 30 de julho Festival de Sanduíches

Quinta-feira, 31 de julho Aniversariantes do mês de julho

Cronograma de Atividades AUPI – Val-de-Cans

Dezembro de 2002

Dias da Semana

Manhã

Tarde

Segunda-feira

- Caminhada

- Oficina de artigos para decoração

natalina

- Oficina de artigos para exposição

Terça- feira

- Novenas às 7:30

- Oficina de fantoche e oficina de

decoração natalina

- Oficina de artigos para exposição

Quarta-feira

- Higienização

- Oficina de artigos para decoração

natalina

- Higienização

- Oficina de artigos para exposição

Quinta-feira

- Caminhada às 8:00

- Oficina de fantoche

- Oficina de artigos para decoração

natalina

- Oficina de artigos para exposição

Sexta-feira - Musicalização, dança,

brincadeiras, vídeos, etc.

- Relaxamento, jogos de salão, etc.

Sábados e Domingos

Livre para receber visitas

∗ Os cronogramas mostrados aqui foram selecionados por apresentarem uma maior variedade de atividades desenvolvidas pelas UAPI(s) Val-de-Cans e Socorro Gabriel, já que, esses meses que são considerados extraordinários, onde os idosos realizam outros tipos de atividades que não fazem parte do seu cotidiano.

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Cronograma de Atividades AUPI – Val-de-Cans

julho de 2003

Quarta-feira, 02 de julho Passeio à praia de Outeiro

Quarta-feira, 09 de julho Festival do sorvete na UAPI – Lar da Providência

Quarta-feira, 16 de julho Passeio ao balneário de Neópolis

Quarta-feira, 23 de julho Festival do açaí

Quarta-feira, 30 de julho Encerramento da programação de férias no SESC

Cronograma de Atividades AUPI – Val-de-Cans

agosto de 2003

Sexta-feira, 01 de agosto Passeio no balneário de Neópolis

Sexta-feira, 08 de agosto Passeio a orla de Outeiro

Sábado, 09 de agosto Dia dos Pais

Sexta-feira, 22 de agosto Visita ao bosque Rodrigues Alves

Sexta-feira, 29 de agosto Aniversariantes do mês de agosto

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