leituras diaspóricas

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O texto promove um debate sobre as configuração social assumida com a diápsra

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  • Revista Expedies: Teoria da Histria & Historiografia V. 5, N.2, Julho-Dezembro de 2014

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    LEITURAS DIASPRICAS DE FREUD:FRANTZFANON,EDWARDSAID

    Jacson Schwengber69

    RESUMO: Nesse artigo feito o esboo de um itinerrio de leituras e releituras, entre os muitos possveis, de um conjunto especfico de noes fundamentais para uma discusso historiogrfica sobre trs autores: Sigmund Freud, Ftantz Fanon e Edward Said. Em nosso percurso conceitos chaves como arqueologia, histria, identidade e termos como fado (fardo), fissura, descontinuidade e dispora apontaro o caminho para o mapeamento de algumas discusses que sero aqui sublinhadas. O objetivo ser apontar as diferentes significaes que obras e conceitos podem assumir em tempos e lugares diversos. Em termos cronolgicos faremos idas e vindas, mas com destaque para algumas datas de acordo com o seu valor para as reflexes aqui elaboradas. O elemento propriamente historiogrfico da discusso encontrase nas prprias proposies dos autores sobre a histria; em suas elaboraes sobre a importncia do passado na construo ou desconstruo das identidades. PALAVRASCHAVE: Dispora. Histria. Arqueologia. Leitura.

    FREUDS DIASPORIC READINGS: FRANTZ FANON, EDWARD SAIDABSTRACT: In this paper is made a draft itinerary of reading and rereading among the many possible a specific set of key notions into a historiographical discussion of three authors: Sigmund Freud, Ftantz Fanon and Edward Said. Key concepts in our journey as archeology, history, identity and terms like a fardo (burden), cleft, discontinuity and diaspora point the way for mapping some discussions that will be highlighted here. The goal will be to point out the different meanings and concepts that works can take in different times and places. Chronologically we will comings and goings but especially for some dates according to their value to the reflections elaborated here. The proper element of historiographical discussion is the authors' own propositions about the story; in their elaborations on the importance of the past in the construction or deconstruction of identities. KEYWORDS: Diaspora. History. Archeology. Reading.

    69 Mestrando em Histria no Programa de PsGraduao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CNPq. Professor de histria na rede pblica de educao do Estado do Rio Grande do Sul. Email: [email protected]. Artigo submetido em 31/08/2014 e aceito para publicao em 29/12/2014.

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    Primeiraspalavras

    Dispora, substantivo que remete a ideia de movimento; termo carregado de

    significao e experincias histricas heterogneas colocadas em curso ao longo da histria,

    mas que, aps a Segunda Guerra Mundial, assumiu contornos relevantes para as discusses

    identitarias levadas a cabo por intelectuais noeuropeus. O processo de descolonizao dos pases da sia e frica se desenrolou ao longo de quase todo o sculo XX, com dinmicas e

    graus de belicosidade diferentes de acordo com cada regio. O fim do processo de

    emancipao dos novos pases no apagou as marcas profundas da herana colonial. O esforo

    intelectual para compreender as marcas deixadas pelo colonialismo nos campos artsticos,

    filosficos e literrios deu origem a um conjunto diversificado de teorias unificadas sob o

    rtulo de estudospscoloniais. Corrente de pensamento que rene um cnone bibliogrfico bastante ecltico. As razes conceituais dos assim denominados intelectuais pscoloniais esto ligadas a um conjunto no menos heterodoxo de autores e teorias que os precederam:

    Nietzsche, Bakhtin, Gramsci, Freud, Lacan, Benjamin, Adorno, Hannah Arendt, Barthes,

    Foucault, Lyotard, Fredric Jameson, Jacques Derrida, e a lista poderia seguir.

    Edward Said, com seu livro Orientalismo (1978), apontado com frequncia como o

    fundador, ou precursor, dos estudos pscoloniais, porm, de outro texto seu que nos ocuparemos aqui. Em dezembro de 2001, no interior do Museu Freud, em Londres, Said

    apresentou sua conferencia Freud e os noeuropeus. Nela o autor palestino props uma releitura da obra MoisseoMonotesmo (1939). Com essa conferncia Edward Said prestou uma espcie de tributo ao pai da psicanlise, apontando para a relevncia e atualidade da

    obra de Freud para a compreenso da histria, da cultura e da sociedade. Na verdade essa

    conferencia reatualizava o desejo de levar a psicanlise para fora dos consultrios, tal como

    pretendeu Freud.

    I.

    Depois de seu imenso esforo na constituio de uma nova (ou primeira) cincia da

    subjetividade individual, a psicanlise, Freud cada vez mais passou a se interessar pelas

    contribuies que esse novo conhecimento poderia oferecer filosofia, a sociologia e a

    epistemologia da cincia (GAY, 1989, p. 290). Suas novas ambies consistiram, desde ento,

    em uma interpretao psicanaltica da cultura. Embora soubesse no ser um historiador,

    fillogo ou arquelogo, nesse novo projeto a histria ocupou um espao privilegiado. De

    acordo com um de seus bigrafos, o historiador estadunidense Peter Gay, em certa etapa de

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    sua vida Freud passou a se preocupar com questes relativas s origens da religio, da moral,

    da justia e da filosofia. Para o psicanalista vienense, uma histria completa da cultura estava

    apenas espera de seu interprete psicanaltico (GAY, 1989, p. 290).

    Trs obras de Freud tocaram mais a fundo esse programa de estender a psicanlise

    ao campo sciohistrico: TotemeTabu (1913), MalEstarnaCivilizao (1930) e MoisseoMonotesmo (1939). Colocar a cultura no div (GAY, 1989, p. 291), eis o objetivo, mas ele no

    estava solitrio em tal empreitada. Desde 1902, Freud passou a organizar reunies semanais

    na sua residncia em Viena. Em tais encontros, realizados sempre as quartasfeiras, os domnios da mitologia, da histria e das religies j eram pauta do debate. Esses temas se

    estenderam para o mbito das discusses realizadas entre os membros da Sociedade

    Psicanaltica de Viena (1908) e no interior da Associao Psicanaltica Internacional (1910).

    Levar a nova cincia para alm dos consultrios tornouse uma meta e um programa: a psicanlise dos fundadores havia transformado a histria em uma regio a conquistar

    (CERTEAU, 2011, p.87).

    De fato, para a psicanlise o passado uma dimenso importante. Em 1937, no

    mesmo ano em que comeou a escrever MoisseoMonotesmo, Freud publicou um artigo sob o ttulo de ConstruesemAnlise. Nele eram feitos paralelos entre a atividade do analista e do arquelogo:

    Seu trabalho [o do analista] de construo, ou, se se preferir, de reconstruo, assemelhase muito escavao, feita por um arquelogo, de alguma morada que foi destruda e soterrada, ou de algum antigo edifcio. Os dois processos so de fato idnticos, exceto pelo fato de que o analista trabalha em melhores condies e tem mais material sua disposio para ajudlo, j que aquilo com que est tratando no algo destrudo, mas algo que ainda est vivo e talvez por outra razo tambm. Mas assim como o arquelogo ergue as paredes do prdio a partir dos alicerces que permaneceram de p, determina o nmero e a posio das colunas pelas depresses no cho e reconstri as decoraes e as pinturas murais a partir dos restos encontrados nos escombros, assim tambm o analista procede quando extrai suas inferncias a partir dos fragmentos de lembranas, das associaes e do comportamento do sujeito da anlise. Ambos possuem direito indiscutido a reconstruir por meio da suplementao e da combinao dos restos que sobreviveram. Ambos, ademais, esto sujeitos a muitas das mesmas dificuldades e fontes de erro (FREUD, 1996, p.146).

    Nas camadas sedimentadas da mente, fazer uma espcie de escavao arqueolgica

    do passado enterrado, esquecido, reprimido e negado (SAID, 2004, p.57). Em suas prticas

    quase historiadoras, Freud cruzou as fronteiras entre o social, o histrico e o biolgico.

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    Trabalho de sntese que se mostra de forma exemplar em o MalestarnaCivilizao, tratado que tentou reconstituir as origens das pulses, dos prazeres e dos sentimentos humanos.

    Os sofrimentos humanos emanariam de trs fontes: a) da fragilidade do homem ante

    a fora da natureza; b) sua finitude, com a inescapvel deteriorao biolgica de seu corpo; c)

    o desacordo dos indivduos em relao s regras que devem regular os relacionamentos

    mtuos entre os homens (na famlia, no Estado e na sociedade) (FREUD, 2011, p.15). Nesse

    ponto da argumentao de o Malestar na Civilizao algo espantoso se apresenta. Um paradoxo:

    (...) o que chamamos de nossa civilizao em grande parte responsvel por nossa desgraa e que seramos muito mais felizes se a abandonssemos e retornssemos s condies primitivas. Chamo esse argumento de espantoso porque, seja qual for a maneira por que possamos definir o conceito de civilizao, constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos protegermos contra as ameaas oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilizao (FREUD, 2011, p. 15).

    Assim, a civilizao, com seu conjunto de regras e tecnologias, responde a uma dupla demanda: proteger os homens contra a natureza e ajustar seus relacionamentos mtuos (FREUD, 2011, p.17). O processo civilizador70 coloca em movimento categorias que privilegiam o asseio e a ordem (FREUD, 2011, p.17). A sujeira de qualquer espcie nos parece incompatvel com a civilizao (FREUD, 2011, p.19). O critrio de limpeza se estende tambm aos corpos, tanto que no surpreenderia conferir ao emprego do sabo uma marca civilizatria: ficamos estupefatos ao saber que o emanava um odor insuportvel de europeus que viveram a no muito tempo atrs, diz Freud, e meneamos a cabea quando, na Isla Bella nos mostrada a minscula bacia em que Napoleo se lavava todas as manhs (FREUD, 2011, p.19).

    O outro elemento a ordem. A observao da regularidade dos movimentos dos

    astros e de padres repetidos pela natureza levou a humanidade a desejar esse tipo de

    organizao para a sua vida:

    A ordem uma espcie de compulso a ser repetida, compulso que, ao se estabelecer um regulamento de uma vez por todas, decide quando, onde e

    70 Este conceito seria magistralmente desenvolvido pelo socilogo Norbert Elias em seu livro OProcessoCivilizador (1939). Em nota, no primeiro volume, Elias declarou seu dbito com a obra de Freud: Neste particular, dificilmente precisa ser dito, mas talvez valha a pena enfatizar explicitamente, o quanto este estudo deve as descobertas de Freud e da escola psicanaltica. As ligaes so bvias a todos os familiarizados com os escritos psicanalticos, e no nos pareceu necessrio mencionlos em determinados exemplos, especialmente porque isto no poderia ter sido feito sem longas ressalvas. Tampouco as diferenas, que no so pequenas, entre todo o enfoque de Freud e o adotado neste estudo foram explicitamente enfatizadas, sobretudo porque os dois poderiam, talvez, aps alguma discusso, ser conciliados sem excessiva dificuldade (ELIAS, 1994, p.263). Mas foi principalmente no segundo volume, O Processo Civilizador: Formao do Estado e Civilizao, que Elias procurou demonstrar como as interdependncias sociais atuam no sentido de controlar pulses instintivas.

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    como uma coisa ser efetuada, e isso de tal maneira que, em todas as circunstncias semelhantes, a hesitao e a indeciso nos so poupadas (FREUD, 2011, p.19).

    Ao lado da ordem e da limpeza, outro critrio relevante a importncia que uma

    sociedade confere s atividades do espirito: nenhum aspecto, porm, parece caracterizar

    melhor a civilizao do que sua estima e seu incentivo em relao s mais elevadas atividades

    mentais do homem suas realizaes intelectuais, cientficas e artsticas e o papel

    fundamental que atribui s ideias na vida humana (FREUD, 2011, p.19). Essas atividades no

    tm qualquer carter de ordem prtica; respondem ao instinto de busca de prazer. Tambm a

    capacidade de sublimao da arte busca suas energias em uma economia da libido, sendo um

    derivativo to poderoso quanto qualquer outro narctico. So dessa ordem os sistemas

    religiosos, as especulaes filosficas e os ideais humanos (FREUD, 2011, p.19).

    Voltemos ao paradoxo mencionado acima. A civilizao, cujo objetivo est no

    combate a infelicidade do homem, concede a este algum grau de segurana ante a natureza

    com suas demandas de organizao e algum paliativo ao prolongar (pelo asseio, pela clnica,

    pela alimentao) sua vida. Mas, ao mesmo tempo, a civilizao, ao regular as relaes

    intersubjetivas, inibe pulses vitais bsicas. Em outros termos, ela instrumento para

    obteno da felicidade e tambm fonte de infelicidade (malestar). A civilizao se ope ao indivduo, limitao, castrao. A liberdade no constitui um dom da civilizao, sua essncia reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de

    satisfao, ao passo que o indivduo desconhece tais restries (FREUD, 2011, p. 20). Logo,

    civilizarse renunciar aos instintos, ao princpio de prazer e os custos disso no so nada desprezveis71.

    No processo civilizador, legitimado no principio de justia e equidade, a represso e a

    coero agem no sentido de desestimular o conflito entre os indivduos. Porm, o medo da

    punio no suficiente: os indivduos tm de estar convencidos de que devem comportarse de uma determinada forma. Assim, nasce os conceitos de bom e mau, do justo e do injusto;

    noes que devem ser interiorizadas pelo indivduo para que tenham efetividade prtica.

    Freud identifica a a origem de todo o edifcio moral, tico e religioso do Ocidente. nesse

    ponto que estabelece um dos elos entre a psicanlise e a anlise social. Os valores e os

    71 O maior empecilho para o estabelecimento da civilizao est nessa pulso instintiva latente em todos os indivduos. O homem no pode dar vazo aos seus desejos, tem que policiar seu comportamento na rua, na mesa e mesmo na cama. Esse o preo para que o convvio humano seja possvel. Todavia, a civilizao age contra o indivduo, e a maior das ameaas, o instinto mais deletrio para o programa civilizacional a violncia humana, sua pulso para o conflito, para a agresso.

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    preconceitos sociais condicionam os indivduos, tal como o superego submete o ego no nvel

    psquico72. Mais, a rigor, a subjetividade e os padres sociais esto imbricados, um

    condicionando o outro.

    Os cdigos sociais devem ser internalizados pelos indivduos para que a obedincia s

    regras no se fundamente s no temor da autoridade e da punio. A comunidade desenvolve

    um superego coletivo:

    O superego de uma poca de civilizao tem origem semelhante do superego de um indivduo. Ele se baseia na impresso deixada atrs de si pelas personalidades dos grandes lderes homens de esmagadora fora de esprito ou homens em quem um dos impulsos humanos encontrou sua expresso mais forte e mais pura e, portanto, quase sempre, mais unilateral (FREUD, 2011, p.47).

    Leitor de Darwin, o aspecto biolgico da anlise de Freud possui uma ntida marca

    evolucionista. Tambm por isso o tempo73 no poderia deixar de figurar como um importante

    elemento de suas apreciaes. A ontognese, estudo do desenvolvimento de um indivduo

    desde sua concepo at a maturidade, no d conta dos estudos da subjetividade. A mente

    tem uma histria de longa durao, cada indivduo carrega o pesado fardo do passado de sua

    72 Mais uma vez Norbert Elias paradigmtico na apropriao de Freud para a anlise social Particularmente consonante com os achados do presente estudo a ideia de que o "remorso", e tambm a estrutura psquica aqui estudada segundo princpios freudianos, ainda que com um significado ligeiramente diferente, com o nome de superego, gravada no indivduo pela sociedade em que ele cresce em uma palavra, que seu superego sociogentico (ELIAS, 1994, p.263). Quanto sociognese nos deteremos a frente com a obra de Frantz Fanon. 73 Falamos em tempo aqui em um sentido bastante superficial, quase identificado com uma cronologia linear e os acontecimentos por ela organizados. Mas Freud desenvolveu uma conceituao de tempo bem mais complexa e de difcil operacionalizao para um trabalho propriamente historiogrfico. O conceito chave para o desenvolvimento de sua teoria temporal aodiferida. Esse conceito foi melhor desenvolvido em o Homem dos Lobos (1914). Ao diferida (Nachtrglichkeit) um movimento de transito entre o passado e o presente, mas que virtualmente s se realiza no momento de evocao do passado, no ato deliberado de rememorao ou quando, de forma consciente, se narra uma histria. O momento da narrativa como uma volta ao passado. O transito est no fato de que o presente da evocao altera o passado, atualizao, assim como o presente alterado pela evocao do passado, alterando a perspectiva de futuro (GOLDFARB, 2004, p. 112/114). Um dos expoentes da chamada teoria pscolonial, o indobritnico Homi K. Bhabha, explorou esse conceito em sua obra OLocaldaCultura (1998): o que est em jogo a natureza performtica da produo de identidade e de sentido. Ou seja, a performance remete a esse presente da significao, abolindo a noo de passado transcendental. Homi Bahaba coloca o tempo pscolonial como uma quebra no interior das tradies teleolgicas de passado e presente do ocidente; rompendo com a polarizao historicista entre arcaico e moderno. Para ele o passado se consuma a cada momento no presente, um presente agonstico, de disputa pela significao. O tempo no uma linha reta, mas uma intermediao histrica, familiar ao conceito psicanaltico de nachtrglichkeit (ao diferida): uma funo transferencial por meio da qual o passado se dissolve no presente (BHABHA, 1998, p.19).

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    espcie. Por isso a anlise dos processos mentais deve associar ontogenia a filogenia (estudo

    da evoluo da mente no interior da espcie).

    Mas a biologia no o nico elemento das teorias freudianas. A narrativa de MalestarnaCivilizao combina histria, cincia, psicanlise e mito. A origem da civilizao est em um passado imemorial, impossvel de ser datado, mas que Freud nos figura como um ato

    mtico: a morte do pai primordial por seus filhos. Uma dupla natureza: Eros (o amor) e Ananke

    (a necessidade) surgem como os pais da civilizao74.

    II.

    Do circulo intelectual austraco, passamos agora para um leitor noeuropeu. Nascido na pequena ilha da Martinica, ainda hoje possesso francesa. Frantz Omar Fanon talvez seja

    herdeiro mais polmico de Freud (SAID, 2004, p. 51). Um homem de ao, sua atividade

    intelectual foi a extenso de sua atuao poltica e de seu combate contra a dominao

    colonial. Assim, como ato de subverso e libertao, converteu a prpria Europa em objeto de

    anlise: sua obra to abrasadora para outros para vs [europeus] permanece gelada:

    amide fala de vs, mas nunca a vs (SARTRE, apud prefcio FANON, 1968, p. 05).

    Frantz Fanon conseguiu unir a crueza da denuncia e a violncia do ataque com a

    sutileza da poesia e a sofisticao da anlise. Obra clssica, PelesNegrasMascarasBrancas contm hipteses que foram bastante exploradas posteriormente. Argumentava que o negro

    uma construo da cultura ocidental branca. No desconsiderou os fatores econmicos e

    tecnolgicos da dominao colonial. Porm, tambm identificou uma forma de dominao

    mais sutil. Na normatizao das condutas, dos gestos e das linguagens tambm residia uma

    forma de coero, uma microfsica do poder. Nas primeiras linhas do prefcio de OsCondenadosdaTerra (1968), outra obra clssica de Fanon, Jean Paul Sartre fazia ressoar essa hiptese em tom de denuncia: No faz muito tempo a terra tinha dois bilhes de habitantes,

    isto , quinhentos milhes de homens e um bilho e quinhentos milhes de indgenas. Os

    primeiros dispunham do Verbo, os outros pediamno emprestado (FANON, 1968).

    74 Dessa narrativa quase mtica um esquema cronolgico, mas sem data, estabelecese: Em primeiro lugar, vem a renncia ao instinto, devido ao medo de agresso por parte da autoridade externa. ( a isso, naturalmente, que o medo da perda de amor equivale, pois o amor constitui proteo contra essa agresso punitiva.) Depois, vem a organizao de uma autoridade interna e a renncia ao instinto devido ao medo dela, ou seja, devido ao medo da conscincia. Nessa segunda situao, as ms intenes so igualadas s ms aes e da surgem sentimento de culpa e necessidade de punio. A agressividade da conscincia continua a agressividade da autoridade (FREUD, 2011, p.38).

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    Duas questes: que quer o homem? e que quer o homem negro? A resposta

    talvez no seja possvel se levarmos em conta a afirmao que segue: o negro no um

    homem (FANON, 2008, p.26). O negro no pode ser um homem, pois o homem um SIM

    vibrando com as harmonias csmicas. Porm, na geografia colonial de Peles Negras,MascarasBrancas h uma regio estril e rida. H uma zona de no ser, nela que habita o homem de cor (FANON, 2008, p.26).

    Essa zona de no ser em que se encontra o homem de cor, para Fanon, era a

    prpria civilizao. Nesse ponto, embora tributrio, a perspectiva do martinicano no converge

    com a do psicanalista austraco. A civilizao, para Freud, no era necessariamente nem boa

    nem m. O que no o impediu de condenar a sociedade de seu tempo75. Embora destaque que

    civilizao no sinnimo de aperfeioamento e to pouco constitui caminho para a perfeio

    (FREUD, 2011, p. 21), h uma luz de esperana em seus escritos. A histria, que o conjunto

    mesmo da civilizao, um fardo, porm, seu peso pode ser aliviado. E para isso no h

    necessidade de se abandonar os parmetros civilizacionais; talvez repensalos, reordenlos. Para seu continuador caribenho, no entanto, a condenao da civilizao no aceita

    apelao. Para libertar o homem de cor ela tem de ser desconstruda. Dentro dela o negro

    possui apenas um destino. E ele branco (FANON, 2008, p. 28). Sua histria a histria do

    homem branco, ou simplesmente do Homem, para o negro esse fardo insuportvel. Mais

    que isso, no faz sentido o esforo de tentar amparalo sobre os ombros. Todo esse peso que no sequer seu.

    Em sua experincia na Martinica, ilha sobre a tutela da Frana, o prprio aprendizado

    da lngua representava uma forma de clausura e de negao de uma identidade prpria. Nas

    escolas se introduzia uma atitude de desprezo ao pato, e a burguesia antilhana s faz uso do

    crioulo na comunicao com os domsticos (FANON, 2008, p.36). Isso porque o negro

    antilhano ser tanto mais branco, isto , se aproximar mais do homem verdadeiro, na medida

    em que adotar a lngua francesa (FANON, p. 34). O homem colonizado ocupa um espao na

    cultura que no propriamente seu. Embora dominar a linguagem signifique possuir o mundo

    que ela expressa, a carga, no entanto, excessiva, pois: falar estar em condies de

    75 No final da vida o tom pessimista ficou mais forte. Em fevereiro de 1938, enquanto escrevia MoisseoMonotesmo, as avaliaes de Freud no eram nada alentadoras. Em seu exlio na Inglaterra observava com horror o recrudescimento do antissemitismo nazista na Alemanha, e as arbitrariedades totalitrias da URSS. Estamos vivendo num perodo especialmente marcante. Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso aliouse barbrie (FREUD, 1996, p.29).

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    empregar um certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual lngua, mas sobretudo

    assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilizao (FANON, 2008, p. 33).

    Mas Peles Negras, Mascaras Brancas no se aproxima de o Malestar naCivilizao apenas pelas antteses e diferenas de gradao. Ambos partem de uma

    perspectiva psicanaltica para analisar a sociedade e a histria. Para Fanon, o malestar do homem de cor (ou de todo homem colonizado) reside no complexo de inferioridade, o

    negro quer ser branco. O complexo de inferioridade se origina de duas fontes. A primeira

    delas econmica. A segunda vem pela interiorizao, ou melhor, pela epidermizao dessa

    inferioridade (FANON, 2008, p. 28). Mais uma vez temos o exemplo na lngua: na Frana se

    diz: falar como um livro. Na Martinica: falar como um branco (FANON, 2008, p. 36).

    Mais do que inferioridade, o peso dessa civilizao, que no sua, provoca o

    aniquilamento. O homem colonizado um noSer: sentimento de inferioridade? No, sentimento de inexistncia. O pecado preto como a virtude branca. Todos estes brancos

    reunidos, revlver nas mos, no podem estar errados. Eu sou culpado. No sei de qu, mas

    sinto que sou um miservel (FANON, 2008, p.125).

    Neste ponto identificamos a ideia de superego social de Freud, no qual a dinmica de

    processos psquicos internos que podem ser transpostos para coletivos humanos cada vez

    maiores. Todavia, tratase de um processo intercambivel (de retroalimentao), pois se as pulses de indivduos podem ser identificadas na organizao social, por outro lado, os valores

    sociais tambm interferem na dinmica das pulses individuais. Ao fim e ao cabo, para a

    pergunta quem faz quem? O homem a sociedade ou a sociedade o homem? Permanece sem

    resposta, pois se trata de uma aporia.

    Ao lado da ontogenia e da filogenia, da anlise freudiana da cultura, Fanon agrega a

    sociogenia (FANON, 2008, p. 28). Sua pretenso foi realizar um estudo clnico para

    estabelecer um sciodiagnstico da situao colonial (idem). Sua abordagem sociolgica tambm carrega muito de uma atitude propriamente historiadora. A arquitetura do presente

    trabalho situase na temporalidade. Todo problema humano exige ser considerado a partir do tempo (FANON, 2008, p. 28).

    Os alicerces conceituais do edifcio terico de Fanon no so fceis de destrinchar.

    Hegel, Nietzsche e Freud so suas principais influncias na construo de uma explicao

    psicopatolgica e filosfica do existir negro (FANON, 2008, p. 30). Mas a anlise acima de

    tudo regressiva. Renega as racionalizaes da civilizao branca europeia. Tambm no aceita

    qualquer forma de essencialismo da cultura negra fundado em um passado mstico.

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    A cultura, atravs da lngua se inscreve no prprio corpo do homem colonial.

    Submetido aos parmetros brancos e europeus nem mesmo isso lhe pertence. O corpo

    narrado e organizado de acordo com uma hierarquia histricoracial que vem de fora, feito pelo outro: no mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaborao de seu

    esquema corporal. O conhecimento do corpo unicamente uma atividade de negao. um

    conhecimento em terceira pessoa (FANON, 2008, p. 104).

    Como compreender algo que no tem histria? O programa de libertao do

    homem de cor passa pela possibilidade de narrar sua prpria histria. Inscrever seu corpo na

    cultura e percebelo por si mesmo. Sem os culos do outro. Em seu passado no se ver mais um estrangeiro em sua prpria terra. A denuncia foi clara: uma cincia europeia que se

    pretende universal, mas que foi instrumento de hierarquizao e perseguio racial. Mas

    Fanon no apontou todos os caminhos que tinha em mente76 (SAID, 2004, p. 52). Quanto

    histria, apenas sugere um caminho sem percorrlo, e nos informa toda a dramaticidade inerente condio histrica do homem colonial: sem passado negro, sem futuro negro, era

    impossvel viver minha negrido. Ainda sem ser branco, j no mais negro, eu era um

    condenado (FANON, 2008, p. 124).

    III.

    Nos aproximamos do fim de um breve percurso. E ele nos leva de volta ao ponto de

    partida: FreudeosnoEuropeus. Nessa conferencia Edward Said retoma a dupla significao do termo noeuropeu. Uma no sentido do prprio Freud, a saber, qualquer um que viveu fora do horizonte de seu prprio mundo (SAID, 2004, p. 45). Outra, politicamente mais

    carregada, diz respeito cultura que emerge no ps Segunda Guerra Mundial (SAID, 2004, pp.

    4849). Esta ltima carregada de todo um desenvolvimento intelectual e poltico que se desenrolou com o fim dos imprios clssicos remanescentes e com o grande nmero de novos

    pases independentes, da frica, sia e Amricas (SAID, 2004, pp. 4849). O noeuropeu, na concepo de Said, afigura como aquilo que, no vocabulrio ps

    colonialista, psestruturalista e ps moderno, designase como o outro. Em certo sentido,

    76 De certa forma, em OlocaldaCultura, Homi Bahabha segue o programa proposto, mas no trilhado por Fanon. Bhabha rompe com os binarismos tradicionais da cultura ocidental. Seu conceito de entrelugar, no um isso ou aquilo, nem o negro nem o branco, mas algo liminar. Ou, em outros termos, a significao no est nem nas peles negras, nem nas mascaras brancas, mas no espao entre (inbetwin), aberto no embate mesmo desses elementos.

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    argumenta o autor, toda a obra de Freud trata sobre o outro. Aquilo que est fora da razo, da

    conveno e da conscincia (SAID, 2004, p. 46). Sua dedicao intelectual estava voltada para

    aquilo foi esquecido e que no admitido (SAID, 2004, p. 46).

    Edward Said no esquece em nenhum momento em sua fala que Freud foi um

    investigador europeu (SAID, 2004, p.46). O outro, para ele, estava bem localizado e no era de

    todo desconhecido. Assim, o interesse de Freud pela antiguidade grecoromana e israelita sobrepujavam seu interesse em povos e culturas primitivas noeuropeias (SAID, 2004, p. 47). Era, ao fim e ao cabo, a Antiguidade Clssica Ocidental que Freud reconfigurava como os

    seus verdadeiros predecessores em termos de imagens e conceitos psicanalticos:

    (...) acredito que correto dizer que Freud possua uma viso eurocntrica da cultura e por que no haveria de slo? O seu mundo ainda no tinha sido tocado pela globalizao, nem pelas viagens rpidas, ou a descolonizao, que tornariam aquelas culturas, antes desconhecidas ou reprimidas, disponveis para a Europa metropolitana. Ele viveu imediatamente antes dos deslocamentos populacionais em massa que trariam indianos, africanos, turcos e curdos ao corao da Europa, como trabalhadores estrangeiros e frequentemente como imigrantes indesejados. E, claro, morreu no momento em que o mundo romano e austrogermnico, to memoravelmente retratados por grandes contemporneos como Thomas Mann e Romain Rolland, ficaria em runas, com milhes de seus irmos judeus massacrados pelo Reich nazista (SAID, 2004, p. 48).

    Freud estava inserido no prprio contexto77 de sua poca, por isso no se espera

    dele mais do que ele de fato pode oferecer. No obstante, Edward Said sublinha o quo

    fecundo podem ser as propostas do psicanalista vienense para a atual questo identitria

    envolvida no conflito Israel/Palestina. Em sua leitura de MoisseoMonotesmo, reatualiza as ideias de Freud no interior de uma discusso que ele jamais poderia ter previsto:

    (...) a histria posterior reabre e questiona o que parece ter sido a finalidade de uma figura de pensamento anterior, colocandoa em contato com formaes culturais, polticas e psicolgicas com as quais jamais sonhou o autor, no obstante filiada a ele pelas circunstncias histricas. Todo o escritor tambm, evidentemente, um leitor de seus predecessores, mas o que quero sublinhar que a dinmica muitas vezes surpreendente da

    77 O termo contexto aparece aqui de forma um tanto vaga. O objetivo apenas ressaltar que Freud no tinha em mente as mesmas questes intelectuais propostas por autores posteriores. Apelar ao contexto, portanto, no pretende responder a todas as questes de interpretao: nunca temos ao menos no caso de textos complexos um contexto, mas vrios. O que ocorre com frequncia a hipostasiao do contexto, tomando como realidade absoluta o que seria na verdade relativo. Conforme o historiador Diminick LaCapra: um fato s pertinente em relao a um marco de referncia, mas esse fato, para ele, pode ter referncias variveis. Muitas so as formas de atribuio de sentido a uma obra: a inteno e biografia de seu autor, a sociedade, a cultura, a comparao com outras obras, o gnero discursivo (se poesia, filosofia, etc.) (LACAPRA, 1998, pp. 247252).

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    histria humana pode dramatizar as latncias numa forma ou figura anterior que de repente esclarecem o presente. (SAID, 2004, p. 56).

    No texto Moiss e o Monotesmo, Freud sustenta, apoiado em um conjunto de estudos eruditos e de evidncias arqueolgicas, que Moiss, o patriarca dos Judeus, seria na

    verdade egpcio. Essa tese atribui uma origem hbrida dos judeus, produzindo, assim, uma

    fissura na imagem essencialista de suas identidades. nesse argumento que Said, leitor de

    Freud, identifica latncias que jogam luz para o melhor entendimento do presente.

    Essa leitura vai contra as diretrizes do atual estado de Israel, que atualmente se vale

    principalmente da arqueologia bblica na consolidao de seu sentimento nacionalista. No

    por acaso, Ariel Sharon, primeiro ministro israelense entre os anos de 2001 e 2006, afirmou ser

    a arqueologia a cincia israelense por excelncia (SAID, 2004. p. 74). Existe uma atitude

    deliberada no sentido de suprimir a cuidadosamente mantida, abertura de Freud, da

    identidade judaica em relao ao seu passado nojudeu. De acordo com Said as complexas camadas do passado, por assim dizer, foram eliminadas por uma Israel oficial. O que ele

    destaca que ao escavar a arqueologia da identidade judaica, Freud insistiu em que ela no

    teve inicio em si mesma, mas sim em outras identidades (egpcia, rabe), e percorreu um longo

    caminho em Moiss e o Monotesmo para descobrir, demonstrar e portanto restaurar o escrutnio (SAID, 2004 p. 73). Uma histria nojudaica, noeuropeia, foi meticulosamente apagada do seu registro mnemnico original. O Freud que surge dessa leitura mina qualquer

    tentativa doutrinria de assentar a identidade judaica em uma fundao slida, seja ela

    religiosa ou secular (SAID, 2004. p.74).

    A falta de disposio em explorar histrias no israelenses, transformou uma

    presena dispersa, composta de runas e espalhadas em fragmentos enterrados, em uma

    continuidade dinstica, apesar das evidncias contrrias e apesar das evidncias de histria

    nojudaicas (SAID, 2004, p.75). Mas essa viso monocromtica tem sido posta em xeque com o avano da arqueologia palestina e com o surgimento de uma historiografia pssionista desde a dcada de 1980 (SAID, 2004, p. 77). Mais uma vez ressaltando as potencialidades de

    renovao de seus textos, Said v em Freud um explorador da mente e tambm um filsofo:

    (...) um inversor e remapeador de geografias e genealogias aceitas e estabelecidas (SAID,

    2004, p.57). Por isso se presta de maneira especial a releituras em contextos diferentes, j

    que o seu trabalho , todo ele, sobre como a histria da vida se presta, pela memria,

    pesquisa e reflexo, a uma estruturao e reestruturao sem fim, tanto no sentido individual

    como coletivo (SAID, 2004, p.57).

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    Na figura histrica de Moiss, tal como foi esboada at aqui, termos contrastantes

    coabitam lado a lado. O patriarca monotesta descrito como forasteiro e ao mesmo tempo

    fundador de uma comunidade. Sem resoluo ou reconciliao: Freud, o cientista buscando

    resultados objetivos em sua investigao, e Freud, o intelectual judeu explorando a sua prpria

    relao com a f antiga por meio da histria e da identidade de seu fundador no so jamais

    postos em conformidade um com o outro (SAID, 2004, p.57). Em um nvel, isso nada mais

    do que dizer que os elementos da identidade histrica parecem ser sempre compostos (SAID,

    2004, p. 65). Os elementos irreconciliveis permanecem como tal, seu relato est repleto de

    episdios fragmentados, no terminados e sem polimento.

    ltimaspalavras

    Depois da segunda grande guerra, os noeuropeus j estavam corporificados nos rabes autctones da Palestina, nos srios, libaneses, jordanianos, toda a massa populacional

    do continente africano e tambm os latinos. Aps 1948, no local onde antes vivia uma

    populao heterognea e multirracial de noeuropeus e europeus, estabeleceuse o atual estado de Israel, um pas que, a despeito da diversidade que registramos acima, se

    estabeleceu com base na unidade identitria judaica. Uma nova hierarquizao dos povos e

    das raas, em um esquema que para aqueles que estudaram o fenmeno na Europa dos

    sculos XIX e XX, mais pareceu uma pardia das divises to assassinas de antes (SAID, 2004,

    p.70), estava posto.

    A Europa descrita por Freud est distante do horror que Frantz Fanon viu em sua

    face. Mas, seu esprito desalojado, seu esforo de arqueologia da identidade teve tambm

    um esprito inteiramente diasprico, que apontava para as fissuras, as descontinuidades e o

    carter compsito de toda identidade. Assim, Freud se mostra sempre aberto a novas leituras

    e, atravs das palavras de Edward Said, nos deixa a seguinte questo: pode uma histria to

    absolutamente indefinida e to profundamente indeterminada algum dia ser escrita? Em que

    lngua e com que tipo de vocabulrio?.

    REFERNCIASBIBLIOGRFICAS:BHABHA, Homi.OLocaldaCultura. Belo Horizonte, MG: ed. UFMG, 1998. CERTEAU, Michel de. Histria e Psicanlise: entre cincia e fico. Belo Horizonte, MG: Autntica, 2011.

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