leituras de cinema

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LEITURAS DE CINEMA Filmes para o Vestibular Uesb 2011

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Page 1: Leituras de Cinema

LEITURASDE CINEMA

Filmes para o Vestibular Uesb 2011

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Apresentação..............................................................pág.04

Filmes Exibidos........................................................... pág.05

Leituras ..................................................................... pág.09

Linha de Passe.............................................................pág.10

A Onda.........................................................................pág.22

Pro Dia Nascer Feliz.....................................................pág.29

Créditos.......................................................................pág.39

ÍNDI

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Em 2004, o vestibular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia teve, como uma novidade, questões sobre obras cinematográficas. A proposta foi feita pelo programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, abraçada pela Pró-Reitoria de Graduação e pela Comissão Permanente do Vestibular, que organizam o processo seletivo, e apoiada pela Pró-Reitoria de Extensão. E, incluindo a seleção e sugestão dos filmes, surgiu o projeto “Cinema: Eis a Questão – O Janela Indiscreta no Vestibular”, que promove, desde então, sessões comentadas das obras, nas três cidades-sedes da universidade, Vitória da Conquista, Jequié e Itapetinga.

A cada ano, são três filmes, criteriosamente escolhidos no rol da produção cinematográfica nacional e internacional, observando-se as críticas, a relevância dos temas abordados, a qualidade estética e narrativa e a possibilidade de acesso, uma vez que as obras podem facilmente ser encontradas em locadoras. Mas o diferencial do projeto não está na exibição dos filmes, e sim nas diferentes leituras que são feitas, após as exibições, por professores e/ou pesquisadores da área de cinema ou das temáticas abordadas nas obras. Cada obra é comentada por três pessoas, que apresentam as suas reflexões e estimulam as leituras dos vestibulandos.

A experiência tem sido extremamente exitosa. O projeto soma, este ano, 21 filmes exibidos, comentados por 63 pessoas, para um público de cerca de 22 mil vestibulandos. É gratificante chegar à sétima edição sabendo que, para muitos, houve a possibilidade de ampliação de olhares por meio do cinema. E também são olhares que esta publicação traz: reflexões sobre os filmes do Vestibular Uesb 2011: “Linha de Passe”, “A Onda” e “Pro Dia Nascer Feliz”. São distintas leituras, feitas pelos convidados para comentar os filmes nas sessões e por outras pessoas que aceitaram, gentilmente, colaborar com a proposta. Que esta seja mais uma oportunidade de apreender, aprender e discutir questões da vida que nos são trazidas pela sétima arte.

Raquel CostaCoordenadora-executiva do Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb

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A cada ano, a equipe de trabalho do Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb seleciona, a partir de alguns critérios, dois filmes brasileiros, de preferência uma ficção e um documentário, e um filme estrangeiro reconhecido pela crítica e que se adeque aos propósitos do projeto.Confira as obras exibidas e comentadas em todas as edições.

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Filme: “Linha de Passe” Direção: Walter Salles e Daniela ThomasDuração/Ano/País: 113 min., 2008, Brasil

Filme: "A Onda” Direção: Dennis Gansel

Duração/Ano/País: 106 min., 2008, Alemanha

Filme: "Pro Dia Nascer Feliz"Direção: João JardimDuração/Ano/País: 88 min., 2007, Brasil

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DOS 2009

Filme: "Mutum"Direção: Sandra Kogut

Duração/Ano/País: 95 min., 2007, Brasil

Filme: "Encontro com Milton Santos ou O mundo global visto do lado de cá” Direção: Sílvio TendlerDuração/Ano/País: 87 min., 2007, Brasil

Filme: "Ensaio Sobre a Cegueira"Direção: Fernando Meirelles

Duração/Ano/País: 120 min., 2008, Brasil/Canadá/Japão

2008Filme: "Zuzu Angel"Direção: Sérgio RezendeDuração/Ano/País: 110 min., 2006, Brasil

Filme: "Babel"Direção: Alejandro González Iñarritu

Duração/Ano/País: 142 min., 2006, EUA

Filme: "Estamira"Direção: Marcos PradoDuração/Ano/País: 115 min., 2006, Brasil

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DOS2007

Filme: "Macunaíma"Direção: Joaquim Pedro de Andrade

Duração/Ano/País: 108 min., 1969, Brasil

Filme: "Anjos do Sol"Direção: Rudi LagemannDuração/Ano/País: 90 min., 2006, Brasil

Filme: "Balzac e a Costureirinha Chinesa"Direção: Dai Sijie

Duração/Ano/País: 116 min., 2002, China/França

2006Filme: "A Marvada Carne"Direção: André KlotzelDuração/Ano/País: 77 min., 1985, Brasil

Filme: "Hotel Ruanda"Direção: Terry George

Duração/Ano/País: 121 min., 2004, Itália/África do Sul/Estados Unidos Unidos

Filme: "Terra em Transe"Direção: Glauber RochaDuração/Ano/País: 115 min., 1967, Brasil

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DOS 2005

Filme: "Deus e o Diabo na Terra do Sol"Direção: Glauber Rocha

Duração/Ano/País: 115 min., 1964, Brasil

Filme: "Cidade de Deus"Direção: Fernando MeirellesDuração/Ano/País: 135 min., 2002, Brasil

Filme: "A Excêntrica Família de Antônia"Direção: Marleen Gorris

Duração/Ano/País: 102 min., 1995, Bélgica/Inglaterra/Holanda

2004Filme: "Cinema Paradiso"Direção: Giuseppe TornatoreDuração/Ano/País: 123 min., 1988, Itália

Filme: "Abril Despedaçado"Direção: Walter Salles

Duração/Ano/País: 95 min., 2001, Brasil

Filme: "Bicho de Sete Cabeças"Direção: Laís BodanzkyDuração/Ano/País: 80 min., 2000, Brasil

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A leitura de filmes é uma prática cotidiana do Programa Janela Indiscreta, ao longo de muitas e muitas sessões realizadas, numa trajetória que completa 18 anos em novembro de 2010. Com o projeto “Cinema: Eis a Questão” não poderia ser diferente, ainda mais com um público tão especial, que são os vestibulandos.

Nas sessões de exibição dos filmes do Vestibular Uesb, três professores e/ou pesquisadores da área de cinema ou das temáticas abordadas comentam cada uma das três obras apresentadas. Esses “leitores-guias”, que refletem sobre distintos aspectos abordados nos filmes, foram convidados também a escrever suas leituras para esta publicação. Assim, temos a contribuição de Adriana Camargo, Rafael Carvalho e Rogério Luiz Oliveira (“Linha de Passe”); Tatiana Fantinatti e Veruska Anacirema da Silva (“A Onda”) e Sara Martin (“Pro Dia Nascer Feliz”). Além deles, temos outras pessoas, que, embora não estejam participando dos comentários nas sessões, aceitaram, gentilmente, elaborar uma reflexão, como Macelle Khouri e Izabel de Fátima Melo (“Linha de Passe”), Laura Bezerra (“A Onda”) e Inês Teixeira (“Pro Dia Nascer Feliz”), ou ceder para a publicação uma crítica já escrita, como Chico Fireman e Ruy Gardnier (“Pro Dia Nascer Feliz”).

Que essas reflexões sejam profícuas, ao lançar diferentes olhares sobre as obras e incentivar cada vestibulando a fazer suas próprias leituras.

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Filme: “Linha de Passe”Direção: Walter Salles e Daniela ThomasDuração/Ano/País: 113min./2008/Brasil

LINHA DE PASSE

Sinopse: São Paulo. Reginaldo (Kaique de Jesus Santos) é um jovem que procura seu pai obsessivamente. Dario (Vinícius de Oliveira) sonha se tornar jogador de futebol, mas, aos 18 anos, vê a ideia cada vez mais distante. Dinho (José Geraldo Rodrigues) dedica-se à religião. Dênis (João Baldasserini) enfrenta dificuldades em se manter, sendo também pai involuntário de um menino. Os quatro são irmãos, tendo sido criados por Cleuza (Sandra Corveloni), sua mãe, que trabalha como empregada doméstica e está mais uma vez grávida, de pai desconhecido. Eles precisam lidar com as transformações religiosas pelas quais o Brasil passa, assim como a inserção no meio do futebol e a ausência de uma figura paterna.

Prêmios: Sandra Corveloni ganhou o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes.

Elenco: Vinícius de Oliveira (Dario), João Baldasserini (Dênis), José Geraldo Rodrigues (Dinho), Kaique de Jesus Santos (Reginaldo), Sandra Corveloni (Cleuza).

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...Pelo meio do caminhoRafael Carvalho*

Uma mulher grávida e seus quatro filhos, na periferia de São Paulo. Através desse núcleo familiar, os diretores Walter Salles e Daniela Thomas realizam um filme de grande observação, marcado pela individualidade, apesar de os personagens possuírem uma grande proximidade entre si. O filme se constrói pela soma das partes para alcançar um todo maior ainda.

Num primeiro momento, pode incomodar a forma como a história de cada um se entrecruza, sem uma ligação direta, quase como blocos narrativos separados. Mas cada trajetória ganha consistência à medida que eles se fortalecem na tela como personagens principais (e são cinco). Embora Cleuza, como mãe, seja o centro da família, cada qual possui seus próprios dilemas e um núcleo particular onde se apresenta um conflito narrativo distinto. O filme se equilibra pela consistência de cada segmento e consegue sustentá-los todos muito bem.

Nesse estudo de personagens, nota-se como todos eles são pessoas falhas e, por isso mesmo, mais complexas e interessantes. A mãe, grávida, surge várias vezes com um cigarro na mão e solta palavrões o tempo todo, principalmente contra os próprios filhos, que apanham dela, embora também recebam o carinho materno no momento certo. Para ser admitido em algum clube, Dario falsifica a carteira de identidade, a fim de parecer mais novo. Dênis, na malandragem, passa a roubar os motoristas dos carros que ficam parados no sinal. Mas, mesmo assim, não há julgamento dos personagens por seus atos tortos. E o filme transmite um carinho tão grande por eles que talvez nem o espectador se sinta tentado a condená-los.

Ao mesmo tempo, o filme foge da ideia tão comum no cinema contemporâneo de lidar com uma família disfuncional. Os problemas dos personagens não se encontram entre si, mas consigo mesmos. Não estamos diante de um núcleo familiar em pedaços. Eles brigam muito, é evidente, mas a grande força do filme é traçar a trajetória de cada um, acentuando acertos e erros no percurso que eles precisam seguir. Talvez por isso, uma fotografia escura e pesada muitas vezes põe os personagens na penumbra total, deixando transparecer somente suas silhuetas, fortalecendo a ideia de pessoas rodeadas por dificuldades. Mas elas persistem, tendo na família um ponto de apoio, a base de sustentação nessa “caminhada”.

E é com esses percursos múltiplos que o filme aproveita ainda para fazer uma espécie de investigação social, através de pequenos detalhes inseridos na

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... narrativa. Daí, vislumbramos a própria questão racial como miscigenação existente na família brasileira, a (im)possibilidade de cura e salvação através da religião, ou então o embate entre classes sociais distintas, seja pela relação de distanciamento entre o motoboy e os clientes para quem faz suas entregas, seja no choque entre Cleuza e a patroa de classe alta.

No entanto, o filme faz isso de maneira bastante sutil e nunca soa forçado ou com ares de cinema “socialmente engajado”, um mal terrível e cada vez mais presente dentro do cinema brasileiro. Por essa perspectiva, notamos facilmente o que há de documental no filme, como o retrato dos torcedores aflitos no estádio, as centenas de garotos que tentam uma oportunidade para serem jogadores de futebol, a crença dos fiéis diante da pregação na igreja. E o filme nunca julga esses grupos ou mesmo confere maior ou menos importância a eles, como no momento em que as mãos erguidas dos torcedores no estádio se confundem com as mãos dos fiéis na igreja. Eles se complementam.

Além disso, a narrativa de “Linha de Passe” é toda marcada pela naturalidade com que os atores compõem seus personagens. Ajuda muito o fato de a maioria deles serem desconhecidos do grande público; são caras novas que trazem renovação para o cinema brasileiro e auxiliam ainda mais nessa composição naturalista do filme, ajudada por uma trilha sonora discreta e sem grandes interferências.

O final em aberto, a despeito de desagradar muita gente, pega os personagens em momentos decisivos (e o grande público aprendeu, através da narrativa do cinema clássico, a sempre ter respostas prontas e finais concretos). Mas aqui é diferente, porque esta parece ser a tônica de todo o filme: a existência de um longo caminho ainda a percorrer, apesar dos pesares (que são muitos).

O título do filme, num primeiro momento, evoca, no futebol, a troca de passes entre os jogadores sem que o adversário tome a bola, nos fazendo refletir sobre a perseverança daqueles personagens em continuar no “jogo”. Para além disso, “linha” expressa trajetória, percurso, e, no caso dessa família, a linha parece tortuosa e ainda bastante comprida. Os obstáculos hão de continuar pelo caminho. Basta aos personagens andar, andar, andar...

* Rafael Carvalho é graduado em Comunicação Social – Jornalismo (Uesb) e crítico de cinema.

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...Linha de Passe: caminhos e descaminhos do eu-nósMacelle Khouri*

No futebol, a expressão linha de passe designa a passagem da bola de um jogador a outro. É com esse sentido, passando de uma vida a outra, que Walter Salles e Daniela Thomas costuram a complexa narrativa de “Linha de Passe”, um dos filmes mais belos e emocionantes do cinema brasileiro.

O longa nos apresenta o contexto da vida de quatro irmãos, que vivenciam os seus desejos e conflitos, em meio ao cotidiano agitado e individualista da cidade de São Paulo. Dario sonha ser jogador de futebol; Reginaldo quer conhecer o pai, que é motorista de ônibus; Dênis, o mais velho, é motoboy e já tem um filho; e Dinho encontra na religião a fuga para um passado cheio de problemas. À espera do quinto membro da prole está Cleuza, uma empregada doméstica que luta sozinha para criar os filhos e manter a união da família.

O filme é marcado pela complexidade de cada um dos seus personagens e pela sutileza com que diversos problemas sociais são trazidos à reflexão. A ausência da paternidade é uma dessas questões, já que os irmãos, além de não serem filhos do mesmo pai, também não mantêm contato com eles. Nesse contexto, não é de se estranhar que Dênis estabeleça uma relação distante com o filho pequeno, que mora com a mãe e espera pela ajuda financeira do pai para comprar remédios, e que Dario encontre no seu treinador a referência de apoio, incentivo e orientação. A maternidade também encontra lugar nessa história, pois, mesmo com todas as dificuldades, Cleuza, uma corintiana fanática, não se descuida dos filhos e procura, na medida do possível, acompanhar as atividades deles. Sabe ser dura e até agredir, mas consegue também dá um abraço carinhoso, uma palavra de incentivo. Já Dona Estela, a sua patroa, que aparentemente também não é casada, não parece se preocupar muito com o filho adolescente, que vive nas baladas com os amigos e se envolve com drogas.

De maneira sutil, os diretores vão trazendo o universo conflituoso de cada um dos irmãos, por meio de planos que destacam as expressões faciais e movimentos corporais. Reginaldo é uma criança negra no meio de adolescentes brancos, que passa horas nos ônibus coletivos, dirigidos por motoristas negros, alimentando a expectativa de encontrar, entre eles, o seu pai. A sensação de isolamento que ele tem como membro da família se reflete nas viagens solitárias que faz pela cidade. Mas, mesmo se sentido um estranho no ninho familiar, a sua percepção infantil o aproxima dos irmãos, seja para atender aos seus interesses pessoais, como quando “compra” o sofá na mão de Dênis, ou para auxiliá-los, quando passa para Dario as informações sobre um treino de futebol. Treino esse que será decisivo para a vida do irmão, que, após atingir a

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... maioridade, não tem mais como buscar aprovação nas “peneiras” dos times paulistas. Como tantos adolescentes brasileiros, Dario vê no futebol a possibilidade de ascensão social e de uma carreira de sucesso. O aniversário de 18 anos, para ele, se configura, portanto, como um fim de linha, já que o tempo é cruel com os atletas.

Dinho, por sua vez, traz à tona a questão da religiosidade como forma de mudança de vida. Seu envolvimento com a igreja representa a fuga de um passado que trouxe tantas preocupações para a sua mãe e a possibilidade de um recomeço cheio de dignidade, de quem trabalha e ajuda nas despesas da casa. Embora a fé religiosa seja tratada de maneira muito respeitosa no longa-metragem, sem cinismos ou gozações, os fracassos dos líderes religiosos são atribuídos à falta de fé dos fiéis. E essas quedas e fraquezas também fazem parte dos conflitos de Dinho, a quem vemos, em uma cena, se masturbando e, em outra, cometendo um crime violento, por ser chamado injustamente de ladrão. Injustiça fundamentada na imagem de displicência de Dênis, que, por ser ainda muito imaturo e não conseguir se desvincular de uma vida de farras, estava sempre atrás do irmão para pedir dinheiro.

“Linha de Passe” é uma ficção que deseja ser documental. Traz a veracidade do cotidiano de tantos jovens e de tantas famílias invisíveis aos olhos da sociedade paulistana. É um filme que fala do Brasil e que revela a necessidade de se reconhecer no outro e ser por ele reconhecido; que mostra a luta diária por melhores condições de vida ou por um espaço na sociedade; que fala da busca pela libertação da alma ou pelo encontro do afeto paternal. A fotografia urbana, mais escura e triste, leva a um mergulho no universo de cada um dos personagens, que, em meio à indiferença social e à escassez de oportunidades, só podem contar uns com os outros, para enfrentar suas angústias e incertezas. Novamente, a narrativa apresenta, nesse contexto, um elemento reflexivo, quando traça um paralelo entre as mãos que se levantam no estádio, numa vibração positiva dos torcedores, com as que se erguem no templo religioso, numa demonstração de fé.

Sutilmente demarcada pela cena da água limpa que escorre pelo ralo da pia, antes entupido, a fase final do filme se compõe de imagens mais claras e límpidas, que denotam uma sensação de alívio e designam a possibilidade de uma nova fase na vida da mãe e dos irmãos. Cada personagem encontra a libertação daquilo que tanto os oprime; cada um percebe, então, o brilho do sol, apontando novos caminhos.

“Linha de Passe” deixa para o espectador o exercício de reflexão sobre essas novas possibilidades, esses novos caminhos. Salles e Thomas reservam, assim, a grata surpresa de perceber que a complexidade de cada um desses personagens só pode ser compreendida olhando-se para além da narrativa cinematográfica.

* Macelle Khouri é mestre em Jornalismo (UFSC) e professora da Uneb.

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Uma pia sempre entupida. Ônibus cheios. Muito trabalho. Pouco dinheiro. Uma família da periferia de São Paulo formada de uma mãe grávida de pai desconhecido e quatro filhos de idades e trajetórias variadas. Cleuza, Dinho, Dênis, Dario e Reginaldo. Empregada doméstica; frentista evangélico; um motoboy; uma jovem promessa do futebol; e uma criança negra em busca do pai. Em todos eles, podemos enxergar “representantes” de sujeitos sociais e questões emergentes no Brasil contemporâneo, e, entre todos eles, o futebol como analogia das relações sociais.

“Linha de Passe” lida com um tema habitual do cinema brasileiro, mas com uma leitura e construção que são bastante próprias da dita Retomada. Ou seja, temos um filme que fala, mais uma vez, das classes subalternas, das suas angústias e dificuldades de sobrevivência, mas aqui eles são construídos com percepções, atitudes e necessidades muito singulares, ainda que pese sua participação numa mesma família. São cinco trajetórias diferentes, nas quais a paixão pelo futebol, em especial pelo Corinthians funcionaria como a grande liga identitária.

Imiscuída nesses fluxos contínuos e aparentemente desconexos das trajetórias dessas personagens, existe uma linha que é, simultaneamente, tênue e dura – a que divide os “pobres” e a “classe média”. E, nessa partida, cada um sabe bem qual o seu lado, embora existam as permeabilidades, aproximações e pequenas misturas. Esta questão se coloca, sobretudo, nas sequências do jogo em que Dinho participa no time do filho de Estela, patroa de Cleuza, e no momento da “balada”, no qual ele se torna um espectador e volta para casa sozinho e “chapado”, sendo ajudado pelos seus irmãos.

O que se mostra como uma das grandes características do filme é a urgência do movimento. Durante todo o tempo, as personagens transitam – de ônibus, a pé, de moto, correndo pelo campo de futebol ou até mesmo pela transcendência da fé. Contudo, as injunções do cotidiano agem de modo a refrear esse trânsito, assim como a água que insiste em não escoar ralo abaixo, apesar dos insistentes esforços de Cleuza, algumas vezes regados a cerveja, outras entremeados por xingamentos e reclamações.

“E a luz há de chegar aos corações”: Linha de Passe ou Com quantos conflitos sociais se faz um filme brasileiro

Izabel de Fátima Cruz Melo*

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E, na ânsia/necessidade de buscar e construir novos caminhos para extrapolar a estagnação imposta, é preciso insistir e andar. Na maior parte das vezes, a caminhada é feita de percalços, de “maus” passos. Entretanto, na perspectiva trazida por Walter Salles de Daniela Thomas, os equívocos, os “jeitinhos”, também podem ser uma trajetória para a realização, para que a água siga o seu caminho e escoe ralo abaixo, liberando o movimento. E é justamente a partir daí que a vida das personagens parecem tomar outro rumo, prenhe de esperanças representadas no nascimento do próximo bebê de Cleuza, no gol de Dario, na confirmação da fé de Dinho, no assalto mal sucedido de Dênis e, especialmente, na alegria de Reginaldo em dirigir o ônibus. A cada um, o seu caminho, mas, sobre todos eles, pesa a responsabilidade de não parar jamais.

* Izabel de Fátima Cruz Melo é mestre em História Social do Brasil (Ufba) e professora da Uneb.

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Atualmente, instaura-se um conflito entre o que é reconhecido e pertence ao universo do que se pensa comum e as novas construções identitárias na sociedade, onde é cada vez mais compreensível a necessidade de reconhecimento de novos referentes, que, por vezes, trazem, atrás de si, concepções particulares do mundo, diversas formas de interações e novas orientações de sociabilidade. Pode-se dizer que esse processo está ligado ao conceito de globalização.

Com isso, a desterritorialização das relações sociais instaura outras formas de ser e estar. Hoje, as interações sociais face a face são pouco experienciadas no cotidiano, devido principalmente à produção exacerbada de bens simbólicos, ao culto e à prática das relações midiatizadas e virtualizadas, que nos destituem da convivência e das trocas presenciais.

Na história-estória de “Linha de Passe”, de Walter Salles e Daniela Thomas, a presença e o convívio entre os personagens ganham notoriedade e trazem, com legitimidade, o confronto e os sintomas das subjetividades dos mesmos. No diário da rotina dessa família, a subjetividade do outro é expressivamente próxima, diferentemente das outras formas de interações mediadas, às quais nos habituamos no contemporâneo.

“Linha de Passe” se desvela entre o visível e o legível, em movimentos alternados, calcados em fé, desejo, coragem e vontade, na trajetória de cada personagem apresentado. As relações encadeadas no roteiro, mesmo situadas em um universo distinto ao do espectador, refletem leituras e memórias de repertórios pessoais, e, de alguma forma, o espectador é conduzido ao reconhecimento e/ou pertencimento, no discorrer da trama.

“Corinthians, corinthians minha vida, corinthians minha história, corinthians meu amor...”. Quem, como Cleuza, não torce para um time de futebol e sofre com as perdas e ganhos do mesmo e ainda se nutre a partir do desejo do time de vencer e ganhar o título? Isso se reflete no seu próprio desejo de também

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Costuras e tessituras: relações face a face entre realidades e

ficções no movimento de passeAdriana Camargo*

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vencer e continuar com o seu trabalho reconhecido e valorizado, na adequada criação dos filhos e na esperança de uma nova vida com a criança que espera no ventre.

Dario, a uma semana de fazer 18 anos: idade tão aguardada pelos adolescentes, que, no caso deste rapaz, reflete frustração de um desejo pessoal e, ao mesmo tempo, coletivo, pois o êxito como jogador profissional é a promessa de uma vida mais digna para si próprio e, como consequência, para a família. Assim como o desejo feminino de ser uma modelo de sucesso e ganhar fama, em ambos os casos o tempo se instaura como maior inimigo: um grande jogador de futebol, assim como uma modelo de renome, inicia a sua carreira realmente muito jovem ou até mesmo na infância e, nesse caso, 18 anos já pode ser muito tarde, fatal.

“Agradeço a Deus pelo período que passei triste, que passei perdido, que passei sozinho... Aleluia, Senhor”. Dinho, em uma busca pessoal, recorre à fé (perdida ou adquirida) e ao trabalho como aconchego e “remissão” por seus comportamentos e atitudes mal sucedidas no passado. Ao partilhar de uma cólera social devido ao individualismo, retraimento e dissociação das relações face a face, em determinados momentos, como o do personagem, o indivíduo se encontra carente e necessitado da palavra, do retorno, do afago, e, nesse caso, vale lembrar aqui o quanto a igreja evangélica dispõe de um interlocutor, mesmo com fins para além da religião – ouvir, dar atenção e importância ao outro.

Poucas pistas, mas muita vontade atravessa o caminho de Reginaldo, que, nas viagens de ônibus, sai em investigação de sua paternidade e identidade: a rebeldia comum para a idade, ora criança, ora adolescente, conflitando, ainda, com questões de raça, cor e preconceito. A figura do pai se instaura como representação e modelo a ser seguido. Lembramos que, a todo o momento, criamos modelos e desejamos segui-los, nos reconhecemos primeiramente na imagem da “família”, até instituirmos as nossas noções e escolhas particulares.

Dênis é o motoboy, pai solteiro e o menos compromissado consigo mesmo e com o outros, se revela o personagem mais polêmico e, ao mesmo tempo, mais reconhecido pelo espectador, no que compete à prática da

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marginalidade e da irresponsabilidade retratada diariamente pelos meios de comunicação de massa e potencializada pelo mesmo. Contudo, Dênis é o personagem que transita entre os universos do visível e do sensível de forma mais viril e obstinada.

É sabido que a realidade vivida por cada indivíduo é um construto compartilhado, mas que se funda mesmo na particularidade histórica: meio onde está inserido, relações e interações com o ambiente, consigo e com o outro. Nessa relação de costura e debate, os personagens se defrontam com o seu universo particular de construção da realidade, a partir da experiência calcada na relação face a face com o outro e do outro, culminando na dimensão de alteridade e recriação de si próprio. Nesse movimento de tessitura, entre realidades e ficções, o espectador é convidado a participar de universos paralelos, que também formam e constroem a sua trajetória pessoal, mesmo dissociada, em grande parte, da experiência relacional no mundo hodierno.

O espectador se reconhece como sujeito, que, inserido nessa construção social da realidade particular, deseja se reconhecer ou edificar uma identidade, se superar, encontrar singularidade e legitimidade nas suas interações pessoais e sociais, mesmo que, para isso, tenha que travar embates, superar limitações ou lidar com as suas potencialidades de forma positiva e coletiva. No movimento, “a bola está viajando de um personagem para o outro” (Daniela Thomas), o espectador viaja junto com os personagens, em oscilação de idas e vindas, que provocam sensações de memória e apropriação, em diálogo e citação do passado: a sua história privada refletida no espelho da linha de passe.

*Adriana Camargo é especialista em Comunicação: Novas Tecnologias e Hipermídia (Centro Universitário de Belo Horizonte) e professora da Uesb.

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Linha de PasseRogério Luiz Oliveira*

Começo por dar um exemplo que emana do próprio cinema: o documentário “Conte Comigo Mengão – Carioca 2007”, dirigido por Pedro Asbeg e Raphael Vieira, revela os bastidores do título carioca conquistado pelo Flamengo. O filme mostra a vibração da torcida, a preleção feita no vestiário pelo treinador da equipe, lances da partida e, acima de tudo, depoimentos de jogadores. É uma história contada por aqueles que protagonizaram aquele capítulo vitorioso da história do time. Nada chamou tanto a minha atenção no filme como uma frase dita por um jogador, imaginando o que seria fazer um gol na final, com o estádio do Maracanã lotado: “Acho que eu me jogo no fosso da geral!”

Fama, riqueza, adoração, a sensação de ter o mundo diante dos próprios pés, uma multidão gritando o seu nome... São alguns dos elementos que levam, em “Linha de Passe”, o jovem Dario, que sonhava com a carreira de jogador de futebol, a passar por peneiras, a alterar a própria idade, a se frustrar e a usar drogas numa balada com jovens ricos que conheceu por ser filho da empregada doméstica da casa de um deles.

Por essas e outras, “Linha de Passe” se mostra, por vezes, como uma busca pela redenção. A história do menino que queria ser astro do futebol; o drama do jovem errante convertido ao protestantismo e que precisa ouvir os desaforos do patrão; a insatisfação de um motoboy, que, de tanto trabalhar honestamente, sente a necessidade de experimentar o alto preço da subversão; a persistência de uma criança cuja única certeza é uma fotografia rasgada.

Estes poderiam ser, respectivamente, os resumos de vida de Dario, Dinho, Dênis e Reginaldo. Quatro irmãos unidos pelo fato de serem filhos de uma mesma mãe, Cleuza. Quatro homens que buscam novas perspectivas, a partir de distintos caminhos. O primeiro quer, a todo custo, passar num teste para uma equipe profissional de futebol; o segundo busca esquecer, com a prática religiosa, o passado; o outro quer encontrar um modo de ganhar uma grana fácil, usando a moto como ferramenta; o último quer encontrar o pai, que nunca viu nem por foto, entrando em todos os ônibus coletivos, apenas sabendo que ele é negro.

Não é a primeira vez que Walter Salles retrata a saga de homens de uma mesma família. “Abril Despedaçado”, dirigido em 2002, é prova disso. Uma família que vive no sertão baiano, por volta de 1910, abriga três irmãos. São três trajetórias e

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três finais bem diferentes. Numa guerra entre famílias, morre Inácio, o mais velho. Era costume se vingar a morte de um ente querido. Tonho, o irmão do meio, é escolhido para matar um membro da família inimiga e, tendo sucesso em sua empreitada, passa a ser o alvo da vingança. Como se verá em “Abril Despedaçado”, Tonho é salvo da morte pelo amor ou, em últimas consequências, pela arte. É que certo dia, Menino, o caçula, é abordado, no terreiro de casa, por um casal de um circo mambembe. A moça, Clara, presenteia Menino com um livro, que traz histórias de sereia, que são, no mínimo, uma janela para o mundo da imaginação do garoto. Acompanhado de Tonho, o caçula vai assistir à estreia do circo, e Tonho se apaixona por Clara. O desfecho dessa história é que Menino, por sensibilizar-se diante daquele sentimento que nasce entre o irmão e Clara, morrerá, propositalmente, no lugar de Tonho.

Um pequeno evento na rotina dos dois irmãos mudou, decisivamente, a história da família. Talvez o que tenha faltado a Cleuza, a mãe dos filhos paulistanos, cuja rotina incluía o trabalho intenso ou a ida, religiosa e devota, ao estádio para ver o Corinthians jogar. Ausentaram-se, quem sabe, opções mínimas para seus filhos, impossibilitados de ver o mundo, por conta de anseios repetitivos e inalcançáveis, pelo menos do modo como eram perseguidos.

Faltou a Dario, por exemplo, a desconfiança de que poderia não dar certo ser jogador de futebol e que seria necessário pensar outras possibilidades de sobrevivência; Dinho não percebeu que a recuperação da dignidade requer insistência e que os preceitos religiosos devem ser acompanhados de muitos outros valores; deveria Denis entender que, para se diferenciar em meio a tantos motoboys idênticos, no modo de ver a vida, era preciso um esforço bem maior do que criar coragem para empunhar uma arma; ao caçula Reginaldo, não foi possível o direito de ter uma referência paterna dentro de casa, um problema sentido na pele por milhares e milhares de filhos.

Entre o que é oferecido e o que é desejado pelos personagens e por milhões de jovens brasileiros, tem-se que, na ausência de ambientes onde a dignidade, a educação, a sensibilidade, o amor, o respeito ou a sensatez possam florescer, age o acaso, brutal e cruelmente.

* Rogério Luiz Oliveira é graduado em Comunicação Social – Jornalismo (Uesb) e professor da Uesb.

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A OndaFilme: “A Onda”

Direção: Dennis GanDuração/Ano/País: 106 min./ 2008/ Alemanha

Sinopse: Rainer Wegner, professor de ensino médio, deve ensinar seus alunos sobre autocracia. Devido ao desinteresse deles, propõe um experimento que explique na prática os mecanismos do fascismo e do poder. Wegner se denomina o líder daquele grupo, escolhe o lema "força pela disciplina" e dá ao movimento o nome de A Onda. Em pouco tempo, os alunos começam a propagar o poder da unidade e ameaçar os outros. Quando o jogo fica sério, Wegner decide interrompê-lo. Mas é tarde demais, e A Onda já saiu de seu controle. Baseado em uma história real, ocorrida na Califórnia, em 1967.

Prêmios: O filme ganhou o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante para Frederick Lau, no German Film Awards, assim como, na mesma premiação, o produtor Christian Becker levou o bronze na categoria de Melhor Filme. Venceu o 13º Festival de Cinema Judaico de São Paulo e ainda foi indicado no Festival de S u n d a n c e , n a c a t e g o r i a “ W o r l d C i n e m a – D r a m a t i c ”.

Elenco: Max Riemelt (Marco), Dennis Gansel (Martin), Jürgen Vogel (Rainer Wenger), Frederick Lau (Tim Stoltefuss), Jennifer Ulrich (Karo), Christiane Paul (Anke Wenger), Jacob Matschenz (Dennis). .

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A OndaLaura Bezerra*

Alemanha, tempo atual. Uma escola de ensino médio como tantas outras: professores cansados, professores engajados; alunos interessados, alunos desmotivados; grupinhos fechados; estórias de amor; conflitos e tensões; esperanças; grafitti e hip-hop. Apesar da distância geográfica, tudo nos parece conhecido.

O professor Rainer Wegner, numa semana de projetos, deve ensinar seus alunos sobre a autocracia(1). Aqui, já temos a primeira contradição, das muitas que enriquecem o filme: Wegner é um professor “diferente” e representa o que há de mais rebelde dentro daquela escola. Na verdade, o tema escolhido por ele para a semana foi a anarquia, mas um outro professor, mais velho e conservador, se apropria deste tema – muito a contragosto de Wegner. Com um tema que não escolheu, nem lhe agrada, e uma turma de alunos desinteressados, o professor é confrontado com um desafio: explicar à classe como funcionam os governos totalitários. Ele começa com o que está mais próximo: a ditadura de Hitler seria imaginável hoje? Ao ouvir dos alunos que o nazismo não seria possível na Alemanha dos dias atuais, ele propõe um experimento: durante uma semana, os alunos têm que participar de um grupo, cujo lema é a “força pela disciplina”.

E assim, meio que por acaso, surge o movimento A Onda. Diversos rituais são criados para dar unidade ao grupo, normas de conduta são definidas, obediência torna-se uma palavra fundamental. Alguns (poucos) alunos reagem, questionam a atmosfera despótica que se formou e se afastam. Outros, apesar de sentirem algum desconforto, permanecem no grupo – seja por causa dos amigos, seja para não ter o trabalho de trocar de turma. Em muito pouco tempo, porém, o “poder da unidade” conquista a maioria dos alunos, que passa a agir de acordo com o espírito coletivo. O grupo torna-se um bem maior, que deve ser propagado e defendido; quem não é d'A Onda, é contra ela. Não há mais espaço para discordância. A Onda se transforma em um movimento real, que sai dos muros da escola e alcança toda a cidade. Ao percebê-lo, Wegner decide interromper o jogo, mas A Onda já saiu de seu controle – com consequências trágicas.

Seguramente, o filme deve ser pensado no contexto alemão do Nacional-Socialismo e do Holocausto. Mas, na medida em que problematiza o surgimento do totalitarismo, na medida em que mostra os mecanismos que tornam possível a manipulação de grupos, ele supera a carga histórica do nazi-fascismo e passa a dizer respeito a todos nós. Dennis Gansel, o diretor do filme, disse, numa entrevista, que pretendeu entender os mecanismos que possibilitaram o nazismo, sem, entretanto, transformar os fascistas em antagonistas. Este é um ponto de partida muito produtivo, pois nos confronta com o desafio de compreender uma situação tão perversa quanto complexa. É fácil pensar nos nazistas como “monstros”; um monstro é algo distante, não tem nada a ver comigo

Segundo o Dicionário Michaelis Online, autocracia é: “1 Governo exercido por um só, com poderes absolutos e ilimitados. 2 Sociol Dominação política discricionária, exercida por uma pessoa ou um pequeno grupo de pessoas; pode assumir as formas de despotismo, tirania, ditadura e oligarquia, autarquia.”

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(monstros são sempre os outros, não é verdade?). Pensar nos nazistas como “monstros” é se render ao incompreensível – e é exatamente isso que o filme não faz.

“A Onda” torna compreensível que um indivíduo abra mão de sua autonomia em troca do sentimento de pertencimento a um grupo; mostra a fascinação pelo “poder da unidade”, pela sua força. Este não é apresentado como um processo simples e linear, mas como algo cheio de contradições. Se, por um lado, vemos como a massificação, a irracionalidade, o fanatismo e a intolerância vão entrando nas vidas dos jovens, vemos também que eles estão motivados como nunca e passam a trabalhar conjuntamente (até o aluno turco, antes excluído, torna-se um membro efetivo do grupo); como alguns deles se sentem valorizados pela primeira vez na vida; como os “deslocados” e os “perdidos” parecem encontrar um lugar no mundo. O filme tem a coragem de mostrar que, para aquela turma, há, também, ganhos. Entender este processo nos possibilita olhar nos olhos do totalitarismo e abrir o debate. Nosso poder contra o despotismo é exatamente a discussão e o embate; a melhor forma de combater o fascismo é reafirmar e defender o direito de ser diferente.

O grande mérito do filme de Dennis Gansel é nos mostrar que a manipulação de grupos não acaba com o fim dos governos totalitários, nem foi superado nos dias atuais. É trazer a problemática para bem perto de nós. Neste sentido, é uma ótima ideia que o experimento seja proposto por um professor libertário e rebelde; é excelente que aquele professor crítico e anarquista caia, ele próprio, nas malhas do autoritarismo; que ele se empolgue com a nova dinâmica da classe, com a participação ativa de alunos que antes não se interessavam por nada. Se as ideias totalitárias podem funcionar com ele, elas podem funcionar com qualquer pessoa. É verdade. “A Onda”, inclusive, se baseia em fatos reais; o experimento foi realizado em 1967, numa escola de Palo Alto (Califórnia, Estados Unidos).

A teórica política judia-alemã, Hannah Arendt(2), refere-se à “banalidade do mal”: foram pessoas “comuns”, como você e eu, que executaram o Holocausto. Se pensarmos adiante esta ideia, podemos dizer que foram pessoas “comuns” as responsáveis pelo genocídio de Ruanda ou o massacre de Sarajevo, ambos acontecidos em 1994. Foram pessoas comuns, jovens da classe média de Brasília, que, em 1997, tocaram fogo no índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. Com isso, a autocracia (o fascismo, o racismo, o machismo, a homofobia, a discriminação dos pobres, a exclusão dos gordos, dos feios, dos “outros”, dos “diferentes”) fica bem próxima a nós. É algo que poderia acontecer com você, comigo – o que significa também que é algo que podemos superar. A responsabilidade é toda nossa.

* L a u ra B e ze r ra é m e s t r e e m L i t e ra t u ra e C i ê n c i a d a M í d i a (Universidade de Tréveris, Alemanha) e pesquisadora da área de cinema.

No seu livro “Eichmann em Jerusalém. Um Relato sobre a Banalidade do Mal”. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. O original foi publicado em Londres, em 1963.

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FIOS DE MEMÓRIAS E DE SENTIDOS EM “A ONDA”Veruska Anacirema*

É como um fantasma que o nazismo apresenta-se, no século XXI, para muitos indivíduos e grupos situados no marco da sociedade ocidental. Passados 65 anos do fim do regime alemão que instaurou tal barbárie, relatos, imagens, objetos e, sobretudo, lembranças/esquecimentos, estão ainda a nos informar sobre a capacidade destrutiva do homem sobre o próprio homem. A memória de tal experiência persiste, incomodando e incomodada, a trazer à tona os limites do processo civilizatório moderno que, se, de um lado, é capaz de produzir avanços nas mais diversas áreas, do outro, não consegue eliminar a dor, o sofrimento e o irracionalismo do percurso da humanidade.

O cinema é um dos domínios socioculturais por meio dos quais essa memória se expressa e faz pensar. Ao atualizar os temas do poder, da disciplina e da superioridade, tão característicos do nazismo, na vivência de uma classe de jovens estudantes, “A Onda” apresenta aos espectadores uma espécie de metáfora do nazi-fascismo e de outros regimes totalitários. Baseado em um fato real, ocorrido em uma escola secundária norte-americana do estado da Califórnia, em 1967, o filme favorece uma discussão sobre o emprego e a aceitação da violência como ferramentas legítimas de luta e significação social tanto em pequenas quanto em grandes escalas.

“A Onda” conta a história de um professor, que, para mostrar aos seus alunos o real significado da ascensão e do genocídio nazistas, na Alemanha, realiza uma arriscada experiência pedagógica, que consiste em reproduzir, na sala de aula, alguns elementos do regime: rituais, doutrinamento, estímulo à pertença de grupo, adoração a um líder, entre outros. A classe se torna, então, um tipo de microcosmos de experiência autoritária, revelando o potencial inscrito em determinadas formações sociais para práticas de intolerância e para o uso da força. O descontrole é tanto maior quanto mais se apela a sentimentos de descontentamento, insegurança, ressentimento, numa espiral de caráter sócioafetivo, com consequências funestas.

No filme, que tem uma narrativa linear, a experiência ganha contornos trágicos, levando o professor a pensar sobre as implicações do movimento d'A Onda. O espectador também é instigado a pensar sobre o tema para além do filme, tocando, então, a “realidade”. Entre as tantas vias possíveis de abordagem da obra, está a da existência de uma memória dos terrores de regimes totalitários, expressa

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na permanência de temores diante da sempre presente possibilidade de retorno dessas experiências não apenas nos constructos mais amplos que são as Nações, mas também no cotidiano de grupos e estratos sociais. “A Onda”, então, torna-se, a partir desse viés de análise, um alerta para os fenômenos de fanatismo e de intolerância do ser humano e para a necessidade de estratégias de formação continuada de sujeitos críticos, perpassada por valores humanistas, como respeito, solidariedade e liberdade, rumo à construção de sociedades mais harmoniosas.

Há também outro ponto possível de discussão a partir da história contada em “A Onda”: a do vazio e a da busca de sentido que marcam a sociedade contemporânea. Os jovens da escola representada no filme parecem perdidos, desmotivados, sem metas sólidas ou importantes para suas vidas. O movimento aparece, então, como um elemento integrador das vivências, ocupando o tempo e os pensamentos, dando sentido à vida, ainda que eles não perguntem sobre que sentido é esse. Se levarmos essa questão para nossa realidade, algo que quase sempre é favorecido pelo cinema – pelos menos pelos bons filmes –, não é difícil percebermos que os nossos “jovens reais” e, também, muitos adultos, experimentam esse vazio socioexistencial; buracos imensos, seja na dimensão do “eu” ou nas relações tecidas com outras pessoas e grupos. Um vazio que nem a parafernália tecnológica, nem os itens de toda ordem disponíveis para o consumo, nem os avanços médicos e terapêuticos são capazes de preencher. Infelizmente, muitas pessoas buscam no exercício da opressão e da violência sobre o outro os significados de vida.

O cinema, esta moderna modalidade artística e intelectual, oferece boas oportunidades de reflexão sobre diversas situações/questões, pois, como forma de expressão humana, são os temas da vida social que dão substância às narrativas cinematográficas. Nesses termos, “A Onda”, mesmo sem efeitos ou recursos estilísticos especiais, nos apresenta a possibilidade de discutir sobre determinadas características da sociedade contemporânea; sobre essa tão propalada falta de sentido; sobre o que nos motiva para a vida; sobre a necessidade inesgotável de praticarmos nosso senso de justiça, respeito e tolerância para com o próximo. Às vezes, diante de sentimentos de impotência com relação a tantos atos e acontecimentos violentos ou desrespeitosos que acontecem nos mais diversos espaços sociais, discutir, refletir e dialogar são, muitas vezes, o caminho para que as pessoas possam repensar posturas e tentar maneiras mais felizes de viver a vida.

* Veruska Anacirema é mestre em Memória: Linguagem e Sociedade (Uesb) e professora da Rede Estadual de Ensino de Vitória da Conquista.

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O que há por trás da imagem? Analogias em “A Onda”Tatiana Fantinatti*

Ao menos quatro realidades são convocadas quando se revisita o filme “A Onda” (“Die Welle”), de Dennis Gansel, ambientado na Alemanha atual: a primeira é o fato propulsor, o nazismo em si; as outras três, consequências da primeira, sucederam-se uma decorrente da outra: a história acontecida numa escola da Califórnia, em 1967, com o professor Ron Jones e seus alunos; o filme “The Wave”, de Alex Grasshoff, rodado e ambientado nos Estados Unidos, em 1981 (com base no referido episódio); e o livro de Morton Ruhe, “The Wave”, que também conta a história dessa escola. Nas três experiências desencadeadas pela primeira – o nazismo –, a principal questão é: haveria a possibilidade de um regime autocrático tornar a se instaurar na Alemanha – e, por extensão, no mundo?

Nos primeiros momentos do filme, a resposta é positiva. Respondamos com analogias subjacentes na obra de Gansel. No colégio, o professor foi ironicamente obrigado, compelido, a mudar o tema que ministraria: autocracia. Por trás desta imagem, repousa, latente, o poder que oprime sem possibilitar o diálogo, a troca, a defesa, o posicionamento.

Nos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, o führer Adolf Hitler, líder do nazismo, tinha a certeza de que a raça ariana ganharia a maior parte das medalhas no Atletismo, tido como o principal esporte. O jogo de Pólo Aquático mostra os membros do movimento A Onda – time e torcida – entusiasmados com a segurança da superioridade e da conseguinte vitória. Nem os arianos de 1936 ganharam o primeiro lugar nas medalhas de Atletismo, nem o movimento A Onda logrou bom êxito no jogo. Há uma diferenciação que precisamos, no entanto, marcar: não se dá, no filme, uma repulsa a qualquer raça ou condição social, pois a repulsa ocorre com relação àqueles que não aceitaram o movimento.

Mais uma analogia, guardadas as dessemelhanças: o professor teria vergonha de seus estudos numa faculdade pública, o que é posto em questão quando a esposa o alerta da sensação de superioridade que a experiência lhe proporciona. Adolf Hitler se constrangia de sua vida humilde – distorcida no

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livro Mine kampf – e inclusive provinha de uma família de judeus. O vislumbre da ascensão pode sequestrar os sentidos, deixando-os reféns da utopia.

Por sua vez, todos os alunos enfraquecidos de algum modo – descaso da família, rechaço dos colegas – vêem que o pertencimento ao grupo os fortalece, conferindo-lhes aparente igualdade. Dentre os mesmos, estão Tim – o alijado que levava droga a um grupo de colegas para conseguir aceitação – e o menino turco. Seguiam-se, dessa forma, as condições essenciais para o nascimento e fortalecimento do nazismo, como insatisfações várias: desemprego, desigualdade, desinformação.

Então, ainda é possível controlar as subjetividades e lograr o controle das massas? O desenrolar da experiência respondeu aos questionamentos iniciais do professor e dos alunos, os quais constataram que um retorno à autocracia não só era possível como acabara de acontecer com eles, não obstante alguns alertas dos que estavam de fora, que já viam O Ovo da Serpente, como a esposa do professor ou Karo e a família. Compreendeu-se também como uma grande massa de incautos irreflexivos e manipulados deu força ao 3º Reich. A obra cinematográfica respondeu, igualmente, aos objetivos que parecia buscar junto ao público, alertando-o contra prováveis recidivas autocráticas. Ron Jones, professor real do experimento, reconheceu seus alunos daquele tempo no filme, cuja mensagem é clara: pequenas células totalitárias podem exsurgir em instituições de ensino, grupos diversos, empresas, famílias, posto que a insondável psiquê talvez surpreenda, mesmo em nossos dias.

* Tatiana Fantinatti é doutora em Letras Neolatinas (UFRJ).

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Pro Dia Nascer FelizFilme: Pro Dia Nascer Feliz

Direção: João JardimDuração/Ano/País: 88 min./2007/ Brasil

Sinopse: Definido pelo próprio diretor como "um diário de observação da vida do adolescente no Brasil em seis escolas", Pro Dia Nascer Feliz flagra o dia-a-dia e adentra a subjetividade de alunos e professores de Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. As entrevistas são intercaladas com seqüências de observação do ambiente das escolas – meio, por sinal, bem pouco freqüentado pelo documentário. Sem exercer interferência direta, a câmera flagra salas de aula, esquadrinha corredores, pátios e banheiros, testemunha uma reunião de conselho de classe (onde os professores decidem o destino curricular dos alunos "difíceis") e momentos de relativa intimidade pessoal.

Premiações: “Pro Dia Nascer Feliz“ foi eleito, pelo júri popular do Festival de Gramado/2006, como o Melhor Filme. O mesmo festival concedeu ao longa o prêmio de Melhor Trilha Sonora e o prêmio Especial do Júri. O título também conquistou o prêmio de Melhor Fotografia de Documentário, pela Associação Brasileira de Cinematografia, e o prêmio Especial do Júri, na décima edição do Cine de Pernambuco.

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Pro Dia Nascer Feliz (ou Pro Mundo Inteiro Acordar?)

Ana Lúcia Azevedo Ramos* e Inês A. Castro Teixeira**

Inspirando-se em verso de Cazuza e originado nas inquietações de um jovem e talentoso diretor do cinema brasileiro contemporâneo, o documentário “Pro Dia Nascer Feliz”, de João Jardim, nos move e nos comove. Lançado em 2007, após longa e cuidadosa pesquisa por ele realizada, mediante a montagem de imagens e depoimentos contundentes de garotos e garotas de nossas escolas e de algumas de suas professoras, essa obra fílmica expõe um conjunto de problemas relativos à juventude e à escola no Brasil. Confirma também, na tela, a ideia de que as questões da educação se associam aos processos sócio-históricos, às estruturas e dinâmicas sociais do país, de que não podem ser separadas para as compreendermos.

No documentário, estão, portanto, colocados de forma respeitosa, terna e cuidadosa, problemas que dizem respeito à sociedade brasileira em seu conjunto e não apenas à educação e à escola ou aos jovens, como também não são problemas pertinentes somente aos educadores e famílias. No documentário, estão questões que dizem respeito a todos nós, sobretudo os adultos, às gerações mais velhas e aos que detêm o poder econômico e político. Na tela, estão questões que nos atingem e nos interpelam, sobre as quais precisamos pensar e discutir, sobre as quais é necessário “o mundo inteiro acordar”, outra expressão da canção de Cazuza, adequada para intitular o documentário.

Nas sequências e planos do roteiro do documentário, a obra fílmica expõe, em imagens e palavras, as desigualdades sociais que constituem a sociedade brasileira desde a colonização, e suas consequências em nosso sistema educacional e escolas. Ao trazer à tela situações relativas às famílias, ao trabalho e à vida cotidiana de alguns daqueles jovens alunos e grupos juvenis, o documentário coloca em pauta desafios e dificuldades que eles enfrentam em seu dia-a-dia.

Embora estejam localizados em classes sociais e tenham pertencimentos étnico-raciais diferentes, os jovens e suas angústias estão presentes tanto nas escolas públicas quanto nas particulares, como, por exemplo, seus

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sofrimentos originados na ausência dos pais (do pai, em especial) e a questão das perspectivas e projetos de futuro, ao lado das dificuldades materiais ou não-materiais presentes.

A desatenção do poder público para com a precariedade material das escolas públicas no interior do país; professores desestimulados e desestimulantes; a ausência de respeito entre colegas, docentes e discentes, professores e alunos; as aulas muitas vezes entediantes para os garotos e garotas; a falta de perspectiva de futuro estão lá, nas histórias pessoais contadas pelos educadores e educandos de diversas classes sociais, de diferentes regiões e lugares do Brasil trazidos à tela.

Destaca-se também, entre outras tomadas e elementos da linguagem fílmica do documentário, as imagens de estradas. Esses caminhos a que somos levados pela câmera os percorremos pensativos, seja porque nos indagamos sobre o que virá adiante, seja porque nos perguntamos sobre os caminhos da vida presente e futura daqueles jovens: quais serão seus percursos, para onde irão e para o que estão sendo conduzidos? O que os espera e o que estamos construindo com eles, os adultos, quando não os deixamos à deriva? Como seus caminhos e estradas estão sendo pavimentados?

Visto de um modo geral, pode-se dizer que “Pro Dia Nascer Feliz” traça um real, denso e tenso quadro do que hoje se passa com inúmeros jovens nas escolas brasileiras e em sua vida do dia-a-dia. É também uma descrição dos alentos e desalentos, das oportunidades e impossibilidades que afetam e inquietam, que interpelam e constrangem milhares de jovens brasileiros, parte dos quais são levados à transgressão e ao crime, sobretudo alguns garotos das classes populares, que estudam em nossas escolas públicas do Ensino Fundamental II e Médio. Para eles, não faltam as dificuldades, os desafios e os problemas a enfrentar, que por vezes lhes rouba a calma, a paz, os direitos, a sua própria juventude.

Costurando os fios das imagens, sequências, cenas, depoimentos e diálogos do filme, vemos uma clara perspectiva temporal, apreensível pela forma como João Jardim inicia e termina seu documentário. Nos primeiros segundos do filme, vemos fragmentos de reportagem de um tempo pretérito – imagens e cenas dos anos 1960, em que se vê, em branco e preto, dois jovens tentando

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abrir um carro para roubá-lo e algumas estatísticas relativas à escolarização no Brasil. Essa cena, as perguntas e comentários que as descortinam compõem o pano de fundo mediante o qual o documentário se desenrola. Em sentido oposto, agora em imagens coloridas dos dias atuais, o diretor vai até a infância, filma o interior de uma creche, sugerindo reflexões sobre o presente e o futuro daquelas crianças.

Depois de fixar a câmera em rostos de jovens apresentados em close na tela, aparece, na finalização do trabalho, imagens de crianças pobres recebendo em uma creche seu pratinho de sopa para se alimentarem. Num silêncio comovente e impactante, aqueles frágeis seres infantes parecem nos interrogar não apenas sobre seu presente, mas sobre seu futuro de jovens e de adultos. Qual seja, quando muitos espectadores imaginam que o documentário terminou, João Jardim nos surpreende, nos impacta, nos comove com estas cenas de crianças na creche. Aqui, ele se afasta dos jovens nas escolas para focar um outro tempo e questões: da infância.

As crianças nos olham, nos interrogam. Seu silêncio comovente grita, retunda, nos afeta e incomoda. Seus olhares e gestos nos convocam, ternamente, a pensarmos nelas, crianças de hoje e jovens de amanhã, delas nos compadecendo e pensando em seus caminhos. Como serão suas estradas? Terão as mesmas, tantas e todas as dores e dificuldades dos jovens pobres que acabamos de ver e ouvir na tela? Que futuro juvenil e adulto lhes espera? Como serão suas vidas?

Com este término totalmente imprevisível para o espectador, João Jardim fecha o círculo do tempo, perguntando se os jovens de hoje e de amanhã continuarão apartados de seus direitos a uma vida digna e feliz, como aqueles das imagens em preto e branco, dos anos 1960, que abriram o documentário? Ontem, hoje e amanhã, os brasileiros mais pobres prosseguirão pelas estradas com as mesmas dificuldades de sempre, ou seria possível construir com eles um outro dia, um outro tempo, pro dia nascer feliz?

* Ana Lúcia Azevedo Ramos é mestre em Educação (UFMG) e professora da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte.** Inês A. Castro Teixeira é doutora em Educação (UFMG) e professora da UFMG.

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Sob a direção de João Jardim, “Pro Dia Nascer Feliz” informa, provoca e emociona. Se alguns conseguem resumi-lo como um documentário sobre a situação de escolas no Brasil, outros acreditam que essa definição seja extremamente pobre para uma obra que, olhada mais de perto, parece tocar em assuntos que ultrapassam o problema do funcionamento do sistema de ensino escolar brasileiro.

Não há novidade na estética visual: o filme segue sendo costurado por depoimentos e conduzido por personagens. Nada mais clássico para o gênero documental. A novidade parece estar na forma como a narrativa nos apresenta o tema em questão. Não se trata apenas de uma abordagem sobre os problemas escolares, mas de uma reflexão existencial, de uma denúncia acerca da corrupção social e de um questionamento que nos coloca frente a um sistema que, apesar de ter sido criado por nós mesmos, acabamos não conseguindo dominá-lo, perdemos a rédea, porque, quando pensamos – e se pensamos – em mudanças, não sabemos por onde começar.

Ao narrar múltiplas perspectivas de um Brasil diverso na forma de entender, ser e coexistir do jovem em suas premissas sociais, suas vontades, sonhos e desejos, “Pro Dia Nascer Feliz” nos conduz a perguntas como: Para que serve nossa escola? Para além da formação profissional, qual o seu papel na realização de vida do aluno? Como ensinar e educar sem oprimir? Como o professor alcança o respeito de alunos que estão desacreditados da importância da escola em seu futuro?

Diferentemente do que estamos acostumados a ver, João Jardim não coloca a escola rica e a escola pobre como a luta entre o bem e o mal. Nesse sentido, o diretor nos traz contradições e inversões de valores, a exemplo da estudante Valéria, que, mesmo vivendo numa pobre cidade do sertão nordestino e lutando contra toda sorte de adversidade social, desenvolveu o gosto pela literatura e a aptidão em escrever belos poemas.

Assim como para nós, que estamos acostumados a taxar a pobreza como sinônimo de inferioridade intelectual, essa situação parece inacreditável também para os professores de Valéria, visto que a menina sempre recebe nota baixa por ser acusada de estar plagiando algum outro autor. Contudo, Valéria não parece insatisfeita com a vida que tem. Num de seus poemas dedicados ao lugar onde mora, percebemos seu contentamento em viver ali, mesmo que na simplicidade.

Pro Dia Nascer FelizSara Martin*

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No extremo oposto da esquizofrênica pirâmide social brasileira, assistimos às angústias e crises existenciais de jovens de classe média alta dos tradicionais colégios do Rio de Janeiro e São Paulo, superexigidos por pais, professores, amigos ou até por si mesmos. Também vemos uma aproximação entre os dois pólos sociais quando ouvimos, por parte dos jovens ricos, depoimentos sobre a falta de carinho paterno que se assemelham aos dos jovens das escolas públicas mais pobres. Um painel de recursos tecnológicos-educacionais abundantes, muita expectativa e competição, mas, nem por isso, muito afeto.

Por outro lado, somos surpreendidos com a realidade mundo-cão das escolas das favelas das periferias do Rio e São Paulo, largadas a incúria das autoridades públicas, dentro do tradicional quadro de irresponsabilidade política e de ausência de cidadania, característico de nossa cultura de impunidade. Professores que fingem ensinar e alunos que fingem aprender, aqueles desiludidos da eficiência do sistema educacional vigente e cativos do medo de alunos delinquentes, estes descrentes da importância da escola como propiciadora de um futuro melhor e seduzidos pelo poder ilusório do narcotráfico.

A educação reproduz a sociedade em que vivemos: frangalhos de escolas e frangalhos de valores. Uma das cenas finais é emblemática nesse sentido. Imagens de prédios luxuosos são acompanhadas por declarações de estudantes pobres ligados ao tráfico e à violência, os quais se comparam aos políticos, com a diferença de que estariam, proporcionalmente em relação estes, numa posição de “menos culpa”.

A corrupção política, segundo os jovens estudantes ladrões e traficantes, é a precursora de todo o mal; o que justificaria a criminalidade geral da sociedade são justamente seus políticos. E ainda concluem dizendo que a diferença entre eles é, além da quantidade de dinheiro roubado, a possibilidade de serem presos, enquanto que o mesmo não acontece no caso do crime político.

Se o assunto de “Pro Dia Nascer Feliz” é escola e educação, podemos dizer que João Jardim nos dá uma grande e dura aula a respeito de cidadania brasileira. Somos colocados frente à realidade de sistemas educacionais, jurídicos e políticos sucateados e deixados a míngua em nosso país. No círculo vicioso da violação legal e da violência social, vagueia uma sociedade omissa e alienada, que, apesar de notar seus problemas, parece ter preguiça de tomar iniciativa em meio às dificuldades.

*Sara Martin é graduada em Comunicação Social - Rádio e TV (Uesc).

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Pro Dia Nascer FelizChico Fireman*

“Pro Dia Nascer Feliz” foi tão elogiado que eu já começava a desconfiar dele antes mesmo de assisti-lo. Como realizar um filme sobre educação no Brasil e não cair nos maneirismos daquele cinema social que virou padrão numa nova faceta dos documentários? Minha ideia sobre o primeiro vôo solo de João Jardim na direção de um longa-metragem era de um cinema chato, em que o denuncismo fácil – o Brasil é uma seara farta para este tipo de filme – dava o tom da narrativa e os realizadores faturavam em cima da miséria alheia.

Eu nunca tive tanta vergonha de estar errado sobre um filme. E nunca mais me percebi tão feliz por estar errado sobre um filme. Em “Pro Dia Nascer Feliz”, João Jardim dá conta de uma missão dificílima: equilibrar a denúncia de uma educação desigual com os dramas, sonhos e projetos de adolescentes prestes a aterrissar num mundo de adultos que pode hostilizá-los pela falta ou pelo excesso. E, num terceiro eixo, Jardim dá a palavra ao professor, a figura-chave de todo o processo, que raramente ganha um fórum correto para se apresentar.

Da primeira cena, em que são mostrados os banheiros de uma escola pobre, até os corredores de um dos colégios mais ricos do país, o filme passa por uma sucessão de metamorfoses que, se não fosse bem costurada por roteiro e montagem, poderia resultar num tiroteio cego que atira para vários lados e não acerta um alvo sequer. Mas, pelo contrário, abre várias frentes de discussão e consegue apresentá-las, dar densidade a elas e discuti-las, mesmo que rapidamente, num tom bastante acertado.

O trabalho de pesquisa de personagens foi fundamental para que o filme funcionasse tão bem. Jardim dá voz a professores, mas nunca ousa classificá-los e nem, como dita o clichê, consagrá-los como heróis populares. O filme é exato em desenhá-los em duas dimensões: ao mesmo tempo em que são esforçados, estão desiludidos com a profissão. É quando o trabalho vira serviço.

O tratamento mais delicado, porém, é dado aos estudantes. Jardim tem um imenso cuidado em defender cada um de seus eleitos como um grande pai,

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mas não abre concessões nessa defesa. Sua câmera e, sobretudo, sua edição sempre tentam compreender os sentimentos e as dúvidas dos alunos. Os depoimentos são naturalmente emotivos, como o da menina que abdica de seu sonho no jornal da escola depois que ganha um emprego de dobrar calças.

O filme ainda sabe relativizar os dramas dos personagens. Nada parecia mais forte do que a história de Valéria, pernambucana do interior cuja vontade de estudar e o talento para escrever superam as dificuldades de chegar à escola e a falta de aulas. Mas Jardim sabe colocar essa história no mesmo patamar da de Ciça, estudante de um colégio caríssimo que se dedica tanto aos estudos – para justificar o investimento de seus pais em sua formação – que enche os olhos de água ao lembrar que faz tempo que não namora.

Ainda que alguns espectadores da sessão em que eu vi o filme tenham rido desta cena – riso que deveria estar justificado depois de mazelas tão, a princípio, mais graves apresentadas até então –, João Jardim selecionou esta cena para dar as múltiplas dimensões do universo dos adolescentes brasileiros. O diretor entendeu perfeitamente que as lágrimas de Ciça são tão honestas quanto a versão de Valéria para a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.

* Chico Fireman é jornalista e crítico de cinema.

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Pro Dia Nascer FelizRuy Gardnier*

O nome não deixa muito claro, mas “Pro Dia Nascer Feliz” é um filme sobre educação no Brasil. E, claro, num país tão socialmente contrastado e de dimensões continentais como o Brasil, tudo é questão do recorte que se faz e de como se operam as interrelações dos lugares e das situações específicas que se vai registrar. Nesse primeiro desafio, João Jardim se sai formidavelmente bem. A tentação de chamar a atenção para as patentes diferenças geográficas e de classe é tão grande quanto fácil, e a ideia de fazer um uso "dialético", montando e integrando lugares e problemáticas heterogêneas cairia rapidamente num denuncismo confortável e no lugar-comum. E o que “Pro Dia Nascer Feliz” faz? Analisa cada segmento por si mesmo, criando quatro blocos homogêneos de instalação num ambiente, filmando os lugares, tomando depoimentos de alunos e professores, enfim, criando um esforço de compreensão a partir do que se filma, com um interesse maior no que está diante da câmera do que com a tese que está embaixo do braço. Assim, vemos inicialmente as precárias condições de uma escola na cidade de Manari, em Pernambuco; depois, somos transportados para uma escola em Duque de Caxias, Rio de Janeiro; em seguida, vamos para Itaquaquecetuba, no interior de São Paulo; e, por fim, paramos numa escola de elite da cidade de São Paulo.

Vemos diferenças? Claro. Uma escola de cidade pequena enfrenta problemas que uma escola de cidade grande não enfrenta, as crianças numa cidade pobre vivem dificuldades diferentes daquelas de uma cidade rica. Mas o que o filme mostra, com extrema competência, é que o dinheiro não faz necessariamente uma criança mais feliz do que outra, assim como uma educação mais qualificada pode ocasionar tantas oportunidades na vida quanto criar pacientes de consultórios de psicanálise. Assim, vemos a aluna-poeta de Manari que consegue construir para si, com todas as circunstâncias contra, uma vida esclarecida, ao passo que algumas alunas de um colégio rico do Alto de Pinheiros lutam para saber o que querem da vida. Cada segmento é afrontado por seus próprios problemas. Alguns dizem respeito à falta de condições, mas todos são afetados pelo modo de vida das redondezas e pelas circunstâncias específicas dos bairros e cidades em que estão situados. Assim, a escola de Caxias vive o problema da criminalidade, e a escola rica de São Paulo não consegue viver com o fato de ser um bunker de riqueza em meio à pobreza e falta de meios da maior parte do país. Cada situação é respeitada, sem tecer hierarquias ou expor ao ridículo algum dos lados. Claro, existe a tendência de espectador em empatizar com os pobres e minimizar os

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problemas dos ricos, considerados como fúteis (o que provoca, por vezes, reações monstruosas por parte da plateia), mas João Jardim consegue orquestrar seu filme a partir de uma estrutura que deixa cada segmento viver sua própria vida, respirar sua própria respiração.

Numa segunda parte, o filme intercala e integra seus segmentos a partir da questão da paternidade (o que revela pais ausentes tanto em Manari quanto no Alto de Pinheiros, ainda que a ausência se dê por razões diversas) e, em seguida, para a questão, igualmente paterna, do Estado e dos contrastes sociais (plano aéreo clichê dos arranha-céus e das favelas horizontais de São Paulo), e, ao mesmo tempo, o filme toca na questão da violência dos jovens, que também se dá de formas heterogêneas em cada ambiente. É nesse momento que o filme evidencia uma de suas insuficiências, a de buscar pronunciadamente alguns casos de exceção, culminando em dois depoimentos de crimes de aluno, ambos em áudio sem imagem, um ilustrado pela tela preta (meninos falando que roubam por ódio ou por falta do que fazer) e outro com a chuva batendo nas poças em câmera lenta (uma menina que narra um assassinato que cometeu no colégio, de forma deliberada e orgulhosa com o feito, porque a pena para menor é ínfima). Por mais que seja absolutamente necessário se referir a casos como este, as cenas – sobretudo a narração do assassinato – se revelam como algo oportunista no filme, seja pela pieguice das soluções de imagem para fazer caber o áudio, seja porque certas questões muito mais gerais e decisivas da educação acabam sendo obnubiladas pela força desses depoimentos.

O filme também recorre à empatia com certos personagens como forma um pouco fácil de desenvolver uma relação calorosa com a plateia – não à toa, faz retornar a adorável aluna-poeta de Manari no fim do filme –, mas, no geral, o filme consegue mais do que fazer apenas um inventário dos maiores problemas da educação no Brasil, chegando inclusive a exercitar certos questionamentos mais teóricos e contemporâneos, como a adequação dos programas escolares às necessidades da vida dos alunos e à necessidade de uma reformulação completa do papel entre professor e aluno, uma vez que a relação de respeito ao mestre construída ao longo de séculos parece não mais fazer efeito nos dias de hoje. Filme de grandes qualidades e alguns evidentes defeitos, “Pro Dia Nascer Feliz” funciona como o ponto de partida para um questionamento sobre educação por parte não só dos professores, mas de todos aqueles interessados na importância da transmissão de saber e na extrema necessidade que essa transmissão tem na constituição da cidadania.

* Ruy Gardnier é graduado em Comunicação Social - Jornalismo (UFRJ) e crítico de cinema.

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Esta é uma publicação especial da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), referente ao projeto “Cinema: Eis a Questão – O Janela Indiscreta no Vestibular”, realizado pelo Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, em parceria com a Pró-Reitoria de Graduação e a Comissão Permanente do Vestibular, com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários. Tiragem: dois mil exemplares. Distribuição gratuita.

ORGANIZAÇÃORaquel Costa e Talita Nobre Pessoa

DESENVOLVIMENTOAgência vOceve MulticomunicaçãoProjeto Gráfico e Design: Isaque Oliveira e Jamille C. DiasAtendimento: Adailton Rocha, Marco Antonio J. Melo e Rafael Carvalho

Janela Indiscreta Cine-Vídeo UesbRevisão: Raquel Costa

FOTOSArquivo Janela Indiscreta Cine-Vídeo UesbDivulgação

EQUIPE DO PROJETOCoordenação Acadêmica: Milene GusmãoCoordenação Administrativa: Raquel CostaProdução Executiva: Talita NobreApresentação: Aline MattosAssistentes de Produção: Rayssa Fernandes e Luciano Marques

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIAPRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS

PROGRAMA JANELA INDISCRETA CINE-VÍDEO UESBEstrada do Bem-Querer, km 04 – Campus Universitário

Vitória da Conquista-Bahia – CEP 45.083-900 | Tel.: (77) 3425.9330E-mail: [email protected]

Site: www.janelaindiscretauesb.com.br

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