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LEITURAS DIVERSAS: alfabetização, letramento e diversidade Ramon Luis de Santana Alcântara 1 Alicilene Nascimento de Sousa 2 Venice Andrade da Luz 3 Camila Ramos Santos 4 Rhuanna Laylla Oliveira Miranda 5 Resumo Este trabalho problematiza dois impasses contemporâneos para a educação pública brasileira: alfabetização/letramento e diversidade. Parte-se da realidade, notadamente nos municípios maranhenses, do alto índice de estudantes nos últimos anos do ensino fundamental com problemas na leitura e escrita. Alia-se a essa problemática, os desafios da educação para a diversidade (étnico-racial, de gênero, sexual e relacionada a pessoa com deficiência). Metodologicamente, o apresenta discussões provenientes de uma intervenção realizada em uma escola de Grajaú/MA. Tem-se como principal resultado efetivação de metodologias diferenciadas e colaborativas ao sistema público de ensino que demonstram a necessidade de um trabalho qualificado para tratar tais impasses. Palavras-chave: Leitura; Escrita; Diversidade. Abstract This work problematizes two contemporary impasses for brazilian public education: literacy and diversity. It is part of the reality, especially in the municipalities of Maranhão, of the high index of students in the last years of elementary school with problems in reading and writing. The challenges of education for diversity (ethnic-racial, gender, sexual and disability-related) are allied to this problem. Methodologically, he presents discussions from an intervention carried out at a school in Grajaú/MA. It has as main result the effectiveness of differentiated and collaborative methodologies to the public education system that 1 Professor Adjunto da Universidade Federal do Maranhão. Doutor em Políticas Públicas. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Geografia na Universidade Federal do Maranhão/Campus de Grajaú. Bolsista FAPEMA. E-mail: [email protected] 3 Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Geografia na Universidade Federal do Maranhão/Campus de Grajaú. Bolsista FAPEMA. E-mail: [email protected] 4 Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Geografia na Universidade Federal do Maranhão/Campus de Grajaú. Bolsista Foco Acadêmico. E-mail: [email protected] 5 Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Geografia na Universidade Federal do Maranhão/Campus de Grajaú. Bolsista Foco Acadêmico. E-mail: [email protected]

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LEITURAS DIVERSAS: alfabetização, letramento e diversidade

Ramon Luis de Santana Alcântara1 Alicilene Nascimento de Sousa2

Venice Andrade da Luz3 Camila Ramos Santos4

Rhuanna Laylla Oliveira Miranda5

Resumo Este trabalho problematiza dois impasses contemporâneos para a educação pública brasileira: alfabetização/letramento e diversidade. Parte-se da realidade, notadamente nos municípios maranhenses, do alto índice de estudantes nos últimos anos do ensino fundamental com problemas na leitura e escrita. Alia-se a essa problemática, os desafios da educação para a diversidade (étnico-racial, de gênero, sexual e relacionada a pessoa com deficiência). Metodologicamente, o apresenta discussões provenientes de uma intervenção realizada em uma escola de Grajaú/MA. Tem-se como principal resultado efetivação de metodologias diferenciadas e colaborativas ao sistema público de ensino que demonstram a necessidade de um trabalho qualificado para tratar tais impasses.

Palavras-chave: Leitura; Escrita; Diversidade.

Abstract

This work problematizes two contemporary impasses for brazilian public education: literacy and diversity. It is part of the reality, especially in the municipalities of Maranhão, of the high index of students in the last years of elementary school with problems in reading and writing. The challenges of education for diversity (ethnic-racial, gender, sexual and disability-related) are allied to this problem. Methodologically, he presents discussions from an intervention carried out at a school in Grajaú/MA. It has as main result the effectiveness of differentiated and collaborative methodologies to the public education system that

1 Professor Adjunto da Universidade Federal do Maranhão. Doutor em Políticas Públicas. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Geografia na Universidade Federal do Maranhão/Campus de Grajaú. Bolsista FAPEMA. E-mail: [email protected] 3 Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Geografia na Universidade Federal do Maranhão/Campus de Grajaú. Bolsista FAPEMA. E-mail: [email protected] 4 Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Geografia na Universidade Federal do Maranhão/Campus de Grajaú. Bolsista Foco Acadêmico. E-mail: [email protected] 5 Graduanda em Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Humanas/Geografia na Universidade Federal do Maranhão/Campus de Grajaú. Bolsista Foco Acadêmico. E-mail: [email protected]

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demonstrate the need for qualified work to deal with these impasses.

Keywords: Reading; Writing; Diversity.

I. INTRODUÇÃO

Este trabalho se alicerçou em duas demandas sociais que o município de Grajaú

oferece à Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a saber: um diagnóstico que apresenta

sérios problemas no processo de alfabetização e letramento dos alunos do ensino

fundamental da rede municipal e o resultado de uma pesquisa de doutorado que relata

desafios para a formação de professores na perspectiva da educação para a diversidade.

Através de constantes relatórios dos programas institucionais, como o Programa

Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), e dos estágios, os discentes do curso

de Licenciatura em Ciências Humanas/Geografia relatam a dificuldade em cumprir suas

atividades, na medida em que são paralisados pela dificuldade de leitura por parte dos alunos

do ensino fundamental nas diversas escolas da rede municipal. Existe uma demanda pública

de maior incentivo no processo de letramento e isso apresenta-se como uma demanda social

no momento em que o poder público não consegue dar conta desta demanda via rede de

ensino municipal. Essa demanda social, nesse instante, é direcionada para a universidade,

seja através da formação de professores ou da pesquisa, seja através de atividades mais

diretas como se configuram a prática da extensão. Associando a essa demanda social,

levanta-se um outro sério problema que a educação grajauense vem enfrentando: o impasse

entre sua diversidade e suas práticas coloniais conservadoras de intolerância.

O município de Grajaú, detém mais de duzentos anos de fundação e se localiza

no centro-sul do Maranhão, apresentando fronteiras com terras indígenas e sendo marcado,

historicamente, por conflitos étnicos. O conflito entre “brancos” e “índios” aponta para uma

questão de intolerância. Vinculado a esse fato, há também um mascaramento de conflitos

étnico-raciais em relação aos negros. Outras questões como homofobia, machismo e demais

formas de discriminação também aparecem de forma frequente no cotidiano.

Os dados do censo demográfico do IBGE (2010) revelam alguns indícios sobre a

questão do racismo, por exemplo. Da totalidade da população negra, aproximadamente 1,2%

possuem ensino superior completo; 8,2% possuem ensino médio completo; 12,6% possuem

apenas o fundamental completo; enquanto 58% não têm instrução ou possuem o fundamental

incompleto. Da totalidade da população branca, aproximadamente 3,3% possuem ensino

superior completo, 12,4% possuem ensino médio completo, 13,1% possuem apenas o

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fundamental completo, enquanto 45,6% não têm instrução ou possuem o fundamental

incompleto (IBGE, 2017). Considero esses dados preocupantes no âmbito geral, pois

aproximadamente metade da população se apresenta sem instrução ou com apenas o

fundamental incompleto. Vale enfatizar que mesmo os dados sendo alarmantes no que se

refere a população como um todo, os números que se referem à população negra,

invariavelmente, estão abaixo daqueles que se referem à população branca, o que denota a

existência de um corte racial no âmbito escolar, seja na entrada, na permanência, na oferta,

no incentivo, nas condições para que os negros frequentem a escola em Grajaú.

Mas de fato, de forma mais gritante, a relação interétnica que envolve índios e

não-índios configura-se como a mais problemática para o município, na percepção dos

grajauenses. No município de Grajaú há terras indígenas Tentehar/Guajajara, sendo que uma

delas situa-se na sede do munícipio. Historicamente, as relações com índios têm sido

conflituosas. A própria criação do município se deu pelo viés do conflito, como aponta Coelho

(2002, p. 105, grifo nosso), citando a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros de 1957 do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), onde diz que “[...] o atual município de

Grajaú foi, quando de sua fundação e conservação, uma das maiores conquistas da

civilização sobre os indígenas nos sertões do Maranhão”. Esse sentimento de “conquista da

civilização” sobre “selvagens” e “primitivos” ressoa até hoje na cidade. Índios ainda são

percebidos como povos atrasados, ignorantes, sujos, deseducados.

No que se refere à questão indígena, os dados do Censo de 2010 do IBGE

revelam que do total de 4.135 índios estimados pelo instituto, pouco menos de 150 recebem

mais de um salário mínimo. Vale destacar que a cultura Tentehar é marcada por uma

sociedade sem assalariamento, sendo este tipo de relação comercial estabelecida e imposta

pelos não-índios. Os dados apontam ainda que mais da metade, aproximadamente 2.148

índios é considerada “sem instrução”. No entanto, devemos analisar que os não-índios

consideram como “instrução” a conclusão mínima do ensino fundamental. Nas culturas dos

povos indígenas, o valor dado à escola não corresponde aquele dado pelos não-índios. A

educação indígena tradicional não pressupõe a necessidade de frequentar uma instituição e

receber um certificado de escolarização. Entretanto, esse dado da instrução, associado a

outros como renda e emprego, revelam o desnível socioeconômico existente em Grajaú entre

índios e não-índios, tal qual já se apresentava entre brancos e negros. Tem-se então

elementos para analisar que há um problema social no munícipio, atravessado pela questão

étnico-racial. Problema esse diretamente vinculado às preocupações da Educação.

Na cidade há presença da homofobia, expressa em vários meios sociais e,

inclusive, na universidade. Essa intolerância a uma orientação sexual diferente da

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heterossexual não difere do que observamos no país, mas comparando-se ao preconceito

contra negros, pobres, indígenas, há a especificidade de ser explícita e declarada

enfaticamente pelas pessoas com as quais pude conversar. Neste contexto há o fundamento

religioso como base de valor. Outras questões como o machismo ou mesmo a percepção da

pessoa com deficiência como um incapaz se apresentaram, apontando Grajaú como um

cenário interessante para se problematizar a questão da diversidade.

A diversidade se apresenta em meio a contradições, à discriminação, ao

preconceito, à invisibilidade e à desigualdade. Os dados apresentados acima são ilustrativos

para se pensar como, ao modo de nossa herança colonial, a diversidade se associou à

desigualdade no Brasil. Em Grajaú, essa associação é visível em relação aos índios, negros,

mulheres e todos aqueles “outsiders” (ELIAS & SCOTSON, 2000) invariavelmente reduzidos

ou com acesso aos direitos básicos dificultado. Como destaca Capelo (2013, p. 20), “essa

ordem é legitimada socialmente pela tolerância romântica que alimenta as relações de poder”.

O que temos é uma invariável perpetuação da discriminação e da desigualdade, travestida,

em certas ocasiões de tolerância. Como continua a autora, “as desigualdades sociais estão

vinculadas às diversidades que têm a ver com as diferenças entre os grupos sociais”

(CAPELO, 2013, p. 25).

O Brasil é um país plural e multicultural, com diferentes etnias, orientações

sexuais, religiões e etc., mas marcado pelo viés colonial preconceituoso e discriminatório.

Nesse sentido, Grajaú, pela vivacidade dessas diferenças e desse viés colonial, configura um

espaço valioso para se pensar a diversidade no país. Esse trabalho se situa em uma

percepção de que o munícipio é marcado positivamente como um espaço multicultural e de

viva diversidade; porém, negativamente, por sufocar, em um tensionamento característico da

nossa herança colonial, a diversidade.

II. LEITURA, ESCRITA E DIVERSIDADE

Alfabetização e letramento

Alfabetização e letramento são temas bastante debatidos no meio acadêmico

principalmente quando falamos da pratica docente. Amplas teorias e metodologias são

criadas e recriadas em cada contexto histórico do processo de desenvolvimento educacional

do nosso país. Inúmeras tentativas de diminuição dos índices de analfabetismos a partir de

políticas públicas já formam previamente colocadas em práticas ou iniciadas, ou às vezes

apenas escritas como a garantia de uma educação com qualidade para todos e todas.

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Nesse contexto Ferreiro (1993) destaca um dilema que vivenciamos em relação

ao processo de alfabetização, relatando que mesmo aumentado o alcance dos serviços

educativos, ainda assim temos resultados insatisfatórios no que se diz respeita aos índices

de alfabetização por apresentarem baixas qualidades, definido pela autora como "mínimo de

alfabetização". Fazendo críticas a este resultado caracterizando-o como nível "técnico

rudimentar", pois, não conseguem atingir um nível mais elevado de transmissão de

conhecimentos, para que assim, os indivíduos possam conseguir dominar os códigos

linguísticos e numéricos em sua totalidade. Na qual Soares (2015) aponta como consequência

disto, a falta de políticas públicas que realmente se preocupem com a alfabetização e

letramento dos indivíduos do nosso país a partir de uma educação com qualidade.

Nessa perspectiva procuramos nos fundamentar nas discussões acerca da

alfabetização e letramento, apresentados por Soares (2004, p. 14) na qual destaca a distinção

de alfabetização/letramento, afirmando que a “alfabetização deve ser entendida como a

aquisição do sistema convencional de escrita, e letramento como o desenvolvimento de

comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em práticas sociais”.

Nesse contexto, acreditamos que não basta apenas alfabetizar o aluno como se só a

aquisição do sistema convencional da escrita fosse necessária e importante, também é

essencial inserí-los no letramento para que possam desenvolver comportamentos e

habilidades de uso competente da leitura e da escrita em todas as suas práticas sociais,

visando uma educação com qualidade permitindo as crianças a compreenderem que os

hábitos de

Assim Soares (2004) destaca a necessidade de superarmos os fracassos da

nossa educação em relação a alfabetização e letramento a partir da articulação de

conhecimentos e metodologias fundamentados em diferentes ciências e sua tradução em

uma prática docente que integre as várias facetas da aprendizagem da língua escrita,

articulando a aquisição do sistema de escrita, com o desenvolvimento de habilidades e

comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais de leitura e de

escrita.

Diversidade

Construímos nossas propostas com base em uma afirmação que postula a

expansão da diversidade e do pluralismo cultural na contemporaneidade da sociedade em

rede que vivemos. Procuramos pensar a diversidade estabelecendo um diálogo com autores

da crítica pós-colonial, em especial Bhabha (1998) e seu debate acerca do hibridismo cultural,

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também em expansão, e a luta que se estabelece nas diferenças culturais. Nesse sentido,

partimos do pressuposto de que, conforme historiadores e pesquisadores da educação

apontam, por exemplo Arroyo (2012), as concepções e práticas educativas estiveram sempre

fundamentadas em um saber-poder formulado no sentido de subalternizar e colonizar

determinados grupos sociais, tais como os povos indígenas, negros, filhos de trabalhadores,

entre outros. O sujeito da pedagogia, não raro, é o sujeito branco, católico, heterossexual,

masculino, burguês, “normal”. Todos aqueles que se diferenciam deste padrão são tidos como

“perigosos”. Precisam ser corrigidos ou excluídos.

É considerando essa perspectiva que tentando produzir alguns conhecimentos

acerca das relações de poder de diferenciação. Conceituamos aqui “relações de poder de

diferenciação” a partir da concepção de Michel Foucault que aponta que toda relação social

é uma relação de poder, ou mesmo Bhabha (1998) que marca que as relações sociais se dão

por via da negociação. Acrescentamos a esta perspectiva, a ideia, compartilhada pelos

autores tomados como referência nesta proposta, que a diferença não é uma propriedade que

o indivíduo ou determinados grupos sociais portam, mas a diferença se dá nas relações entre

indivíduos e grupos sociais, relações de diferenciações. As diferenças só se apresentam no

momento dessas relações.

Como todas relações sociais são relações de poder, aqui conceituamos as

relações de poder de diferenciação. Como opera as relações de poder no momento em que

se apresenta o processo de diferenciação? Essa é a indagação da proposta. Especificamente,

tratando-se de um cenário histórico e cultural que cristaliza essas relações de poder,

produzindo hierarquizações e inferiorizações de determinados grupos sociais.

Bhabha (1998) nos auxilia a problematizar a temática da diversidade. Em especial

no que se refere à diversidade cultural e diferença cultural, o pensador indiano abre

possibilidades teóricas para que matizemos, de maneira mais cuidadosa, o debate acerca da

diversidade, ou melhor dizendo, das relações entre “nós” e “eles”. Em linhas gerais, Bhabha

(1998) marca que diversidade cultural é um objeto epistemológico, que é tratado sob um

prisma ético, estético e etnológico. É um reconhecimento de totalidades culturais coexistentes

em seus conteúdos próprios. A ideia de diversidade cultural dá margem para se pensar, por

exemplo, a questão do multiculturalismo em contrapartida a concepções naturalizantes de

uma única cultura. Pelas considerações de Bhabha (1998), podemos entender que falar sobre

diversidade, nos termos que estamos trabalhando aqui, é compreender ou tornar objeto de

compreensão a coexistência de diferenças. Seria tomar a região de Grajaú como multicultural,

onde se tem uma (ou várias) cultura indígena e uma (ou várias) cultura não indígena, por

exemplo.

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A ideia de diferença cultural em Bhabha (1998) denota a análise dessas

multiculturas em relação de poder, configurando-se em “um processo de significação através

do qual afirmações da cultura e sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a

produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade” (BHABHA, 1998, p.

63). Assim, pode-se chegar a conclusão de que uma cultura só se produz no momento de sua

diferenciação. Não há uma cultura única, assim como toda cultura está em relação a outra.

Como não há uma cultura homogênea, cristalizada. Todos “nós” só se anuncia a partir da

existência “deles” e isso é dinâmico no tempo e no espaço. A única coisa que nos permite

falar em “não indígenas” em Grajaú ou em qualquer lugar do mundo é a existência das culturas

indígenas, que por sua vez só existem enquanto tal em relação aos “outros”, que somos nós,

não índios

Trazendo a discussão de Bhabha (1998) para nossos objetivos, esse espaço

relacional que o autor evoca para entender diversidade/diferença tem como principal efeito a

compreensão de que estamos permanentemente em disputa, ou em negociação, utilizando o

termo do autor. Estabelecemo-nos e produzimo-nos nesse campo de forças, nessas relações

de poder. Ainda segundo Bhabha (1998, p. 69), explorar esse espaço, esse entre-lugar, é

abrir a possibilidade de nos pensar como “os outros de nós mesmos”. Quando discutimos a

questão da diversidade, partimos dessa perspectiva. Entendendo diversidade como a

multidimensionalidade das relações de diferenciação, abarcando seu aspecto mais

significativo, que é entender essas relações como um campo de enunciação, disputa e

negociação.

Os grupos que assumem status de maior poder social se colocam em posição de

privilégio para classificar os outros grupos, discriminando, inferiorizando, negando sua

existência. Elias e Scotson (2000, p. 24) destacam que “afixar o rótulo de ‘valor humano

inferior’ a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de

poder, como forma de manter sua superioridade social”. Ainda analisando a constância dessa

mecânica, afirmam que existem semelhanças no padrão de estigmatização usado pelos

grupos de poder elevado em relação aos seus grupos “outsiders” no mundo inteiro, mesmo

levando em consideração as diferenças culturais. Em consonância com a linha de

pensamento que estamos construindo, Elias e Scotson (2000, p. 36-37) também

compreendem que “o ideal da racionalidade na condução das questões humanas continua a

barrar o acesso à estrutura e à dinâmica das figurações estabelecidos-outsiders”.

As contribuições de Castro-Gómez (2010) também me fornecem novos elementos

analíticos para entendermos nosso objeto. Estou partindo da ideia de que a escola e a

pedagogia moderna são construções de uma sociedade que se buscou ordenar, disciplinando

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e normalizando os “outros” que não seguiam suas concepções de aprendizagem e

subjetivação/identidade. Percebo agora que são os discursos coloniais, marcados por uma

visão de mundo hierárquica no que diz respeito aos aspectos étnico-racial, religioso, de

gênero, sexual etc., que fundam os discursos modernos de ordenação. Posso então entender

como esses discursos modernos se construíram e se reproduziram entre “eles” e entre “nós”,

até os dias atuais, negando, inferiorizando, excluindo determinados grupos sociais no Brasil.

Temos uma herança colonial presente na nossa forma de ser brasileiro. Pensar para além de

uma escola colonizada é mais que pensar políticas de inclusão ou políticas de escolas

indígenas ou quilombolas, por exemplo. É antes de tudo um exercício de problematização da

formação da nossa sociedade e da diversidade que a caracteriza.

A intervenção institucional pedagógica

Para a aplicação do projeto trabalhamos a partir dos pressupostos da Intervenção

Institucional, no que tange sua dimensão pedagógica. A Intervenção Institucional é um

processo feito por grupos localizados em instituições, como as escolas, neste caso, chamada

de intervenção pedagógica, cujo objetivo é propiciar a esse grupo que se tornassem capazes

de gerenciar suas próprias questões. Os interventores ficaram na instituição até os membros

do grupo sentirem-se capaz de resolverem seus problemas por conta própria. A capacidade

de solução dos problemas foi incentivada entre os membros do grupo, que inventaram as

estratégias de solução para os mesmos. A Intervenção Institucional trabalhou, desta forma,

em busca da autogestão (LOURAU, 2014).

Nessa perspectiva buscou-se a partir da intervenção pedagógica, com as

atividades desenvolvidas durante o período de efetivação do projeto de extensão, que os

alunos, sintam-se capazes de pensar alternativas para lidar com seus problemas de leitura e

compreensão de texto, bem como das questões que envolvem as múltiplas dimensões da

diversidade e seu enfrentamento contra as práticas de estereótipo, preconceito e

discriminação principalmente no que se desrespeita a suas cotidianidades.

Para isso, foram formados grupos de alunos previamente selecionados pela

coordenação da escola do ensino fundamental da rede municipal em Grajaú, no contra turno

às suas atividades escolares. Com estes grupos foram realizadas atividades de leituras e

debates de textos acerca das questões da diversidade. Os alunos selecionados foram aqueles

que apresentaram maiores dificuldades com a leitura e escrita identificados pelos professores

e pela coordenação da própria escola.

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Na oportunidade foram implementadas individualmente e coletivamente

estratégias de leitura e compreensão de textos, de forma a desenvolver a habilidade de leitura

com os alunos. Concomitantemente, no momento do debate, foram trabalhadas concepções,

crenças e valores acerca das questões da diversidade, de forma a promover uma educação

para a diversidade e contribuir para o desenvolvimento do processo de ensino aprendizagem

dos mesmos.

Para tanto decidimos trabalhar com 3 grupos de 10 alunos dos anos iniciais do

ensino fundamental (4º, 5º e 6º). Os alunos tiveram participação voluntária, mas também foi

feito um trabalho em conjunto com a escola, na intenção de garantir a participação dos alunos

que mais necessitavam de uma atividade complementar para o desenvolvimento da

habilidade de leitura e consequentemente da escrita.

Os encontros tiveram duração de 3 horas e foram realizados um encontro por

semana na própria universidade para cada grupo que aconteciam nos dias de terça-feira,

quarta-feira e quinta-feira. Nos dias de segundas realizávamos encontros na universidade

entre bolsistas voluntários e coordenador da extensão para tratarmos do andamento do

projeto no que tange a sua aplicação e planejarmos estratégias e metas para o

desenvolvimento do mesmo, assim como a discussão e debates de textos que versem sobre

a diversidade e a prática pedagógica. Para tanto cada bolsista ficou responsável por um

grupo, onde desenvolvemos as atividades em conjunto com os discentes voluntários e com

as orientações do coordenador.

Todas as atividades desenvolvidas durante o projeto de extensão foram

construtivas tanto para os futuros docentes e discentes que se empenharam para a sua

efetivação. Para tanto algumas atividades merecem destaque as quais nos proporcionaram

maior preparação e capacitação para trabalharmos com alfabetização. Como por exemplo o

minicurso “Aspectos teórico-práticos da alfabetização na perspectiva socio-interacionista”.

Que teve como objetivo refletir sobre os principais aspectos norteadores do fazer pedagógico

na alfabetização numa perspectiva socio-interacionista. Neste minicurso podemos ter uma

maior aproximação tanto com a teoria e a prática da alfabetização/letramento, o que nos

possibilitou ter preparação para trabalharmos com alunos do ensino fundamental nos anos

iniciais, com o objetivo de juntos poder contribuir para o processo de aprendizagem de leitura

e escrita dos alunos selecionados.

Outra atividade que destacamos com relevância foi o diagnóstico aplicado na

segunda semana do projeto com a discussão pautada na leitura coletiva de textos que versem

sobre as questões da diversidade, enfatizando a importância da leitura e escrita para a nossa

formação. Com aplicação de atividades que exigem leitura, interpretação textual e escrita com

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a perspectiva de identificarmos as principais dificuldades dos alunos e alunas para

elaborarmos estratégias e metas para podermos darmos continuidade ao projeto e alcançar

nossos objetivos.

Também trabalhamos com os alunos textos que versem sobre o tema “da

igualdade, preconceito, cultura, entre outros com o objetivo de abordar que apesar de sermos

diferentes, todos temos direitos iguais independente da nossa cor, religião, condição social,

cultura, entre outros fatores destacando a importância de discutirmos acerca da diversidade

e respeitar as diferenças, e incentivando os alunos a lerem e interpretarem os textos lidos

mesmo com a ajuda dos professores para podermos discutir em coletividade. De início,

podemos perceber que a maioria das crianças, apresentavam visões estereotipadas acerca

da diversidade apesar de algumas sofrerem preconceito, resultado principalmente do

ambiente em que convivem por termos herdado visões dos nossos colonizadores que

subalternam e rotulam aquilo que é visto como “diferente”.

Com isso, além de nos preocuparmos com as dificuldades identificadas para com

a leitura e escrita dos alunos, também tivemos a preocupação de criar condições e momentos

para discutirmos juntamente com eles temas e contextos referentes a diversidade vivenciadas

por cada um, a partir de conversas construtivas sobre as diferenças que cada aluno e

professores apresentam.

Também trabalhamos o alfabeto destacando as vogais e consoantes e com a

formação e leitura de palavras e frases a partir do alfabeto móvel e imagens, reforçando a

leitura das sílabas, para que os alunos não se confundissem com os sons que se parecem

quando pronunciadas, já que constatamos que essa é uma das principais dificuldades dos

alunos. O que nos mostrou maior interação dos alunos, já que com o alfabeto móvel eles

aprendem de forma divertida e construtiva, em coletividade com os colegas.

A principal finalidade do projeto estava voltada para uma forma de trabalhar a

diversidade por meio da leitura, onde os acadêmicos auxiliaram no desenvolvimento

linguístico dos alunos e alunas e ainda trabalharam de uma forma didática assuntos que

englobam a multidiversidade que encontramos em nosso país, seja esta de gênero, étnica,

racial, social, religiosa, entre outras.

Nesse sentido o projeto foi de suma importância não apenas para os bolsistas que

adquiriram experiências e conhecimentos, e nem tão somente para os alunos da rede

municipal que fizeram parte do projeto, mas para todos aqueles que almejam por uma

sociedade melhor que respeite e valorize a nossa diversidade e prezam a leitura e a escrita

enquanto ferramentas necessárias e essenciais para a formação de pessoas críticas e

reflexivas.

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Com esse propósito, conseguimos alcançar os principais objetivos que

almejávamos alcançar com as atividades que desenvolvemos, contribuindo significativamente

para com o desenvolvimento da leitura e escrita de alunos da rede municipal e ao mesmo

tempo fazendo com que entendam que a nossa diversidade deve ser respeitada e vivenciada.

Abrindo espaço propício para a discussão e reflexão das questões ligadas a diversidade, e

ao mesmo tempo contribuindo para o desenvolvimento da leitura e escrita de dezenas de

crianças e adolescentes que precisam de uma maior atenção e colaboração da sociedade

para que realmente possam realizar seus sonhos a partir do conhecimento e ter seus direitos

realizados, principalmente o direito a uma educação com qualidade.

No decorrer do projeto foi identificado uma interação dos alunos com cada tema

trabalho e consequentemente um estreitamento de laços com os mesmos, havendo

discussões pertinentes e proveitosas, onde tiveram grande impacto na visão crítica dos

discentes. Diante disso, percebemos que os objetivos foram alcançados com êxito, pois, as

práticas discursivas dos educandos foram mudadas no decorrer da intervenção.

III. CONCLUSÃO

O projeto de extensão “Leitura Diversas” não se resume apenas em uma

intervenção pedagógica, mas a uma aproximação direta entre os acadêmicos e os alunos,

havendo a continua troca de conhecimento, já que todos nós somos mediadores. O projeto

nos possibilitou trabalharmos com alfabetização e ao mesmo tempo ter contato com materiais

que versem sobre a diversidade, assim como também materiais para trabalharmos com

alunos e alunas do ensino fundamental menor.

Mesmo com todas as dificuldades as experiências vivenciadas com o projeto,

podemos ressaltar que o mesmo foi de suma importância para a formação dos docentes e

discentes que participaram do mesmo. Acreditamos que projetos como o “Leitura Diversas”

nos molda e nos orienta para nos desenvolvermos enquanto educadores que se preocupam

não apenas com a formação em si mesma, mas principalmente com uma formação pautada

na troca de conhecimento já que o conhecimento é inacabado e contínuo.

Nessa perspectiva mesmo que o projeto tenha sido de curto período (4 meses)

acreditamos que nossos objetivos foram alcançados e efetivados. Destacamos a necessidade

da existência de projetos que versem não apenas sobre a diversidade em si mesma, mas que

valorizem a interdisciplinaridade e principalmente o aprimoramento e desenvolvimento da

prática da leitura e escrita de alunos de escolas públicas que necessitam de maior atenção

de acordo com suas dificuldades em relação a leitura.

Page 12: LEITURAS DIVERSAS · 2017-10-05 · comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em práticas sociais”. Nesse contexto, acreditamos que não basta apenas

Concluímos que projetos como esse se faz necessário, para que novas crianças

possam ter a oportunidade de desenvolver o processo de aprendizagem principalmente a

leitura e a escrita em um espaço dedicado e qualificado. É necessário lutar por políticas

públicas efetivas na educação que rompam com o cenário social de reprodução das

desigualdades, notadamente de grupos historicamente inferiorizados no país. Mas

concomitantemente a essa luta, iniciativas, principalmente, oriundas da universidade pública,

são especiais para intervirem especialmente na vida daqueles alunos que estão vivenciando

os impasses da educação pública e não poderão aguardar resultados futuros das lutas

políticas. Mais que isso, projetos como esse, fortalecem essa luta, no sentido de possibilitar a

formação crítica de nossos estudantes, tanto na educação básica, como no ensino superior.

REFERÊNCIAS

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