launnay_ memeria e citação

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  • 8/13/2019 Launnay_ memeria e citao

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    Dana, Salvador, v. 2, n. 1, p. 87-100, jan./jun. 2013 88

    A elaborao da memria na danacontempornea e a arte da citao1

    Resumo

    Ao indagar-se, no incio de seu texto, sobre como pensar o tempo de vida de um gesto

    de dana, a pesquisadora Isabelle Launay instiga o leitor a problematizar as questes que

    concernem ideia, vigente, de que a histria da dana se d por processos de transmisso.

    A traduo deste artigo tem como objetivo central disponibilizar a hiptese aqui apresen-

    tada, relativa importncia de se levar em considerao o processo de esquecimento nadinmica da memria, o que possibilitaria um entendimento da histria para alm de um

    eixo temporal linear.

    Palavras-chave: Isabelle Launay. Gesto. Memria. Esquecimento. Citao. Recriao.

    Elaborating the memory of ContemporaryDance and the art of quoting

    Abstract

    By asking, at the beginning of her paper, how to think of the lifetime of a dance gesture, the

    researcher Isabelle Launay leads the reader to question the issues that concern the current

    idea that the dance history takes place through transmission processes. The purpose of the

    translation of this article is to present the hypothesis dealt with herein related to the impor-

    tance of considering the forgetfulness process in the memory dynamics, which would enable

    comprehending history beyond a linear time axle.

    Key words: Isabelle Launay. Gesture. Memory. Forgetfulness. Quotation. Recreation.

    1 Artigo da conferncia realizada naBienal SESC de Dana, na cidadede Santos (SP) no ano de 2009.(PARIS DANCE, 2009)

    Isabelle LaunayProfessora de Histria e Estticada Dana Contempornea Departamento de Dana daUniversidade de Paris 8.

    Traduo de Ana TeixeiraDoutora em Comunicao e Semitica(2012) e mestre (2008) pela PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo(PUC/SP). Formada em EducaoFsica pela Universidade de Caxiasdo Sul (1991), e em Arts du SpectacleMention Danse pela Universit ParisVIII-Frana (2002). professora docurso de Comunicao das Artes doCorpo (PUC/SP) e do CL AC (CentroLivre de Artes Cnicas em SoBernardo do Campo-SP).E-mail: [email protected]

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    Como pensar o tempo de vida de um gesto de dana? Sob quais formas

    ele permanece no presente? Mesmo que seja comum lembrar e lamentar

    a falta de fontes de uma arte dita efmera, no seria possvel invocar essa

    questo de outra maneira: considerando o esquecimento tambm como

    uma grande oportunidade para a histria da dana? Ento, como e com

    que finalidade o esquecimento abordado na dana? Elogi-lo no , cer-

    tamente, criticar a necessidade de uma histria, negar o desejo de lem-

    brar ou se recusar a alimentar as lembranas. Muito pelo contrrio: ten-

    tar levar em conta o necessrio processo do esquecimento para a prpria

    dinmica da memria e os efeitos produtivos desse esquecimento para a

    memria das obras de dana.

    Se o esquecimento um componente da prpria memria, se no

    est no existe sem aquele, somos ento conduzidos a relativizar o pontode vista que estamos acostumados a ter sobre ele (e, em consequncia,

    sobre a memria). O esquecimento no o lado negativo da memria,

    no devendo ser considerado como falta a ser preenchida ou como perda

    triste da lembrana; tampouco a memria o lado positivo do esqueci-

    mento, um lugar para a acumulao das lembranas e dos hbitos, como

    um amplo estoque ou um reservatrio onde poderamos reencontr-los,

    voltando, como por magia, aos momentos do passado. Sabe-se, atualmen-

    te, que a memria, longe de designar a capacidade de lembrar graas s

    imagens que conservamos das coisas, como se estivessem impressas demodo permanente em nosso crebro, indica um processo complexo de

    reinveno perptua do passado no presente.2 Sendo assim, quais prticas

    ou quais polticas do esquecimento bailarinos e coregrafos cultivaram, e

    para que propsitos?

    Abordar aqui as formas e potencialidades criadoras do esquecimen-

    to, no entanto, tambm trabalhar com um modelo de tempo que no

    depende de uma linha cronolgica orientada num nico sentido de trs

    para frente ou, ainda, do passado em direo ao presente e organizada

    seguindo medidas peridicas, o que asseguraria a coerncia do relato his-trico. Em resumo, uma histria da dana que no espera que seu cam-

    po de estudo seja homogneo em relao a uma poca ou que pertena a

    um nico tempo, uma histria da dana no cronolimitada (consideran-

    do-se apenas as marcas que existem), mas muito mais voltada histria

    dos devires das obras coreogrficas e heterocronia que as organiza. Essa

    proposta pressupe considerar a histria da dana como um processo no

    decorrer do qual as obras coreogrficas seriam suas primeiras intrpretes:

    uma luta, um emaranhado de experincias cinestsicas, de imaginrios

    2 Ver a apresentao de IsraelRosenfield dos trabalhos sobrea memria de Gerald Edelman(Prmio Nobel), aps Charcot,Broca, Dejerine e Freud, da obrade ttulo programtico: Sacks eRosenfield (1994).

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    corporais, de espaos inventados, de temporalidades mltiplas que geram

    a transformao ininterrupta que cada obra realiza a partir de outras, que

    cada performance produz na sequncia de uma outra. Pressupe ainda

    lembrar de uma evidncia: a dana uma arte viva no momento do

    gesto danado, o passado no para de se reconfigurar e de gerar figuras

    ainda no advindas. Tal questionamento conduz anlise dos tipos de

    relaes com o passado que tratam da histria da dana, das famlias de

    memrias e de esquecimentos que lutam entre si e, muitas vezes, dis-

    putam o passado e de seus interesses e objetivos. Pode-se dizer, a ttulo

    de hiptese geral, que a transmisso na dana no existe. Ela s ocorre

    mediante transformaes, transdues, tradues, alteraes, e de modo

    muito inconsciente e inesperado.

    Existem mltiplas formas de se trabalhar a memria de um gestopara que uma experincia corporal se conte, se transforme, se estabilize,

    se contamine e se dissemine, conscientemente ou no. Sero evocadas

    aqui algumas delas: a prtica da variao (que implica certa recusa da no-

    o de obra, em favor do que se convm chamar tradio), o trabalho

    de reinterpretao (que pressupe aceitar no ser proprietrio do seu ges-

    to, mas ser possudo por ele), a citao (que presume o esquecimento da

    totalidade e a transferncia para outro contexto) e, finalmente, a sobrevi-

    vncia (que supe, no tocante a ela, o esquecimento do prprio tempo). A

    sobrevivncia no , de fato, a variao, ou o revival,ou o renascimento,tampouco o arqutipo ou a lembrana; no pertence a um tempo cont-

    nuo, mas, muito mais, a subdeterminaes complexas, prprias ao movi-

    mento de anamnese, uma forma de inconsciente histrico que atravessa

    a histria da dana e permite a volta intempestiva de gestos passados sob

    mltiplas formas.

    Nessa perspectiva, poderamos fazer frutificar, no campo coreogr-

    fico, a tese de Walter Benjamin segundo a qual a modernidade exige a

    descoberta de um novo tipo de relao com o passado e a transmisso do

    passado substituda pela citao. (ARENDT, 1974, p. 291) Uma parteda modernidade na dana assumiu, de fato, de maneira insistente, a cr-

    tica da transmisso, a fim de reduzir a influncia da tradio oral e abrir

    um novo modo de se relacionar com o passado. Entretanto, importan-

    te lembrar que a modernidade na dana no inventou a possibilidade de

    citar uma dana. O uso da citao j fazia parte do bal no sculo XIX. O

    bal para retomar aqui a noo, muito ampla na literatura, de intertex-

    tualidade , sem dvida, o gnero coreogrfico intertextual por exce-

    lncia. Os jogos intercoreogrficos e intergestuais (isto , a retomada

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    seguindo modelos de composio, os plgios, os pastiches, mas tambm,

    claro, toda a dinmica das variaes) faziam desabrochar uma prtica

    clssica da citao no mbito da tradio do bal. Esse trabalho se apoiava

    em uma base de passos reaproveitvel, concebida como um reservatrio

    de exemplos e de modelos mais ou menos emancipados da autoridade

    dos autores, cujo estatuto era, por vrios motivos, problemtico. A citao

    clssica repousava sobre hierarquias e valores que, ainda que instveis,

    serviam como medida para o julgamento sobre a adequao das varia-

    es. Ela ocorria, assim, em nome de uma tradio que o pblico conhe-

    cia, e a inveno supunha a retomada de modelos dominantes com o in-

    tuito de desenvolver toda uma esttica da variao. Citar, nesse contexto,

    no questionava a esttica do bal, mas assegurava a sua memria e a de

    suas tcnicas corporais e tradies de interpretao. E essa memria sem-pre transformada apresenta um movimento que ainda marca sua presen-

    a no mbito das instituies coreogrficas constitudas por companhias

    de bal e de repertrio.

    O estilo novo de relao com o passado que Benjamin formula no

    se ampara, portanto, no regime clssico da citao, mas em uma mem-

    ria coreogrfica livre da tradio que relativiza a ideia de transmissibili-

    dade. Essa citao sem linhagem paradoxal: ela tanto o lugar no qual

    a transmisso se realiza como o lugar de uma transmisso impossvel.

    Sabe-se que a busca de um estilo novo de relaes com o passado foi, paraas vanguardas dos anos 1920, o motivo de numerosos debates contra-

    ditrios, notadamente no campo da dana moderna na Alemanha, com

    Rudolf Laban, Valeska Gert e Mary Wigman, e deu um novo statuspara

    a citao na dana. Laban apresentou uma nova possibilidade de citao

    (partitura citao), e Valeska Gert mostrou outra (montagem/colagem

    citao). Quanto ao expressionismo de Wigman, se ele impunha uma

    interdio de reapresentao de suas coreografias, beneficiava, por outro

    lado, um retorno imprevisvel de sobrevivncias, de formas de citaes in-

    controlveis e sem autores graas s quais a coregrafa imaginava fazersurgir gestos vindos de uma base cultural ancestral.

    O interesse de um olhar sobre o que se chamar provisoriamente

    de intergesto imenso para a memria coreogrfica. Quando a dana

    se imagina em uma relao com o mundo, se imagina tambm numa

    relao com ela mesma. A presena de uma dana anterior em uma ou-

    tra dana, mesmo se ela resultar de uma citao, de um plgio, de uma

    aluso, de uma pardia, de um pastiche ou de uma encenao burlesca,

    provoca reflexo sobre a memria que a dana tem de si mesma. Assim,

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    o desafio no tem a ver com uma histria das fontes de tal ou tal obra ou,

    ainda, com um registro histrico que mostraria as influncias de um co-

    regrafo sobre outro ou de um intrprete sobre outro, mesmo que isso

    fosse muito interessante para a histria das obras coreogrficas. O de-

    safio est muito mais em revelar como uma obra moderna inventa sua

    prpria origem/originalidade, inserindo-se num contexto histrico que

    transparece mais ou menos. O desafio est, ainda, em mostrar na dana

    aquilo que j foi amplamente utilizado nas demais artes, especialmente

    na literatura e nas artes plsticas, isto , seu incessante dilogo com a sua

    prpria histria. Esse dilogo das obras contemporneas com as obras

    do passado foi amplamente obstrudo por uma modernidade liquidado-

    ra, pronta para tomar e consumir o novo como se ele fosse o indito. E a

    reapresentao de danas anteriores, as suas novas redaes e interpreta-es, e a produo de obras do passado em outros corpos continuam sen-

    do pouco estudadas pela histria e pela crtica da dana.

    Todo texto, entretanto, a absoro e a transformao de outro texto,

    escreveu Kristeva (1969, p. 115), no seu livro Smiotik.Essa ideia foi reto-

    mada por Barthes (1973, p. 1013) alguns anos depois, em Thorie du texte:

    [...]todo texto um tecido novo de citaes ultrapassadas, mesmo que

    tais citaes sejam pouco identificveis ou explcitas. Assim, talvez esteja-

    mos apenas danando entre ns. E, como pessoas, no somos feitos de

    pedaos de identidade, de imagens incorporadas, de traos de personalida-de assimilados, [...] o todo constituindo uma fico chamada eu?3(SCH-

    NEIDER, 1985, p. 12) Como a memria das obras coreogrficas, liberadas

    em parte de sua relao com a tradio oral, funciona, no tanto pela trans-

    misso de corpo a corpo, mas pela inquietante fora da citao? Retomada

    aleatria ou assumida, vaga lembrana ou homenagem reivindicada, sub-

    verso ou fidelidade ao modelo, citao literal ou mascarada, desintegrada

    e dissolvida, os modos de retomada na dana contempornea so mlti-

    plos, e seria intil tentar estabelecer a lista exaustiva deles. Atente-se aqui

    a um modo de citao mais explcita e mais imediata, o da cpia, mais exa-tamente o da cpia da cpia, isto , a cpia de uma filmagem. Trs artistas,

    em atuao recente na Frana, abordaram o tema da cpia com propsitos

    diferentes: Jrme Bel, em Le dernier spectacle (1998), Latifa Labissi, em

    Phasmes (2001-2002), e Mathilde Monnier, em Tempo 76e City maquette.

    Os trs coregrafos se posicionaram como artistas na situao de copistas

    ou fizeram da cpia uma ferramenta privilegiada de produo, porm as

    modalidades desse trabalho de copiar, assim como suas finalidades, foram

    muito diferentes, at opostas em certos aspectos.

    3 Schneider (1985, p.12) que incluia intertextualidade em suasfinalidades interpretativas.

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    Os elementos bsicos so: copiar uma dana gravada em vdeo e

    inserir essa cpia em um novo contexto. Em 1998, o bailarino e core-

    grafo Jrme Bel foi um dos primeiros artistas a recorrer prtica da c-

    pia como tema na dana. Alm disso, a obra de Bel bem inserida sob o

    signo generalizado da citao, incorporando, de vrias maneiras, trechos

    e falas de outras obras. A dificuldade estaria, ento, no apenas na sele-

    o e na extrao dos trechos escolhidos, mas tambm nos problemas de

    significao dessas transferncias e desses deslocamentos em outro con-

    texto, ou seja, nas suas modalidades de integrao e de transformao.

    Deteremo-nos aqui sobre Le dernier spectacle. Bel coloca no palco, no meio

    da pea, o resultado da cpia de uma dana, tendo em vista a recpia pelo

    pblico: um trecho de X minutos de um solo da coregrafa alem Susan

    Linke, Wandlung (de 1978, isto , criado 30 anos antes), com a msica La

    jeune fille et la mort, de Schubert. Essa cpia apresentada quatro vezes

    seguidas, por quatro intrpretes sucessivos, sendo uma mulher e trs ho-

    mens: Claire Haenni, Jrme Bel, Antonio Carallo e Frdric Sguette.

    Isso significa que so quatro cpias da mesma coreografia, mas resultan-

    do em quatro danas diferentes. Em Le dernier spectacle, a citao clara-

    mente proclamada, tornando-se visvel. A heterogeneidade do material

    sublinhada e as marcas do emprstimo, delineadas: de um lado, no

    programa da apresentao, pela referncia precisa da pea, sua data, seu

    autor; de outro lado, pela retomada do figurino, o mesmo para os quatrobailarinos, idntico ao de Linke um vestido branco com suspensrios,

    apertado na parte alta e bem amplo na parte de baixo, lembrando a figura

    de Ondine , e, ainda, pela retomada da mesma msica de Schubert.

    notvel o efeito provocado pela declarao inicial que faz cada intrprete

    antes de danar, na frente do palco: de p e olhando para o pblico, enun-

    ciam em um microfone, com voz lenta, calma e pausada, separando bem

    cada palavra, Ich bin Suzanne Linke, como se pedissem a ela para dan-

    ar em seu lugar. Essa declarao traduz, do ponto de vista cenogrfico,

    a funo das aspas. Ela deixa lugar, no texto que a acolhe, ao enunciadode outrem, neste caso, coreografia de Linke num novo espao-tempo. O

    fim da citao representado de outra maneira, pela sada pelo fundo do

    palco, com vista para o jardim. Percebe-se, na hora, que reempregar no

    o mesmo que restituir.

    Os efeitos poticos do trabalho de citao, no entanto, se apoiam

    tambm na repetio insistente (quatro vezes seguidas) da citao, a qual

    leva a uma forma de tdio produtivo. Bel convida insistentemente o es-

    pectador a comentar as diferenas e os microdesvios entre as quatro in-

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    terpretaes, cada uma se esforando em imitar o mximo que puder a

    dana de Linke. A dana repetida, mas possvel observar os desvios.

    Alm disso, o esforo de tornar-se o outro, de desprender-se do seu pr-

    prio gesto ou do seu prprio destino o que representa a dimenso primor-

    dial do trabalho do intrprete (como, talvez, de toda a existncia). Essa

    dimenso revelada igualmente nas transformaes individuais que tal

    esforo permite. A citao repetida tira proveito, tambm, de sua transfe-

    rncia a outro contexto. Sua extrao faz com que a vejamos vrias vezes,

    e essa repetio a carrega de um significado que ela no tinha antes.

    como se esse tipo de trabalho permitisse que a citao se tornasse melhor

    e aumentasse o seu poder de evocao potica. O extrato da cpia pode

    tornar-se ento quase to interessante quanto o original: ele adquire uma

    dimenso tragicmica em decorrncia do uso do disfarce que no consta-va na obra de Linke.

    Longe de dessacralizar esse trecho de Wandlung, a citao o glorifica

    e reativa seu sentido, tornando-o talvez mais destacado do que no origi-

    nal. Mas o uso da citao vem, por outro lado, perturbar o papel do autor-

    -proprietrio e opera como se fosse uma jurisprudncia: possvel copiar,

    e a cpia pode se mostrar to interessante quanto o original se ela revela

    sentidos ainda no institudos. A memria das obras se enrola na histria

    do indivduo assegurando, assim, uma dimenso at ento desconhecida

    to desconhecida que a ltima ocorrncia da citao danada escondidapor um lenol preto, que oculta a dana. O espectador , ento, convidado a

    recitar a dana em sua imaginao e fazer funcionar por inteiro a sua me-

    mria recente, a fim de juntar os fragmentos do que ele viu, aumentando

    seu potencial para, por sua vez, copiar. A memria da obra , assim, devol-

    vida a ele como um assunto do qual ele deve, sozinho, dar conta.

    Entre as propostas eu fracasso tentando danar e eu fao isso

    como se fosse meu h, sem dvida, definies da arte: como repetio

    obrigatria ou como apropriao. O artista, por meio de um dispositivo

    que reformula a citao, [...] pode se tornar proprietrio do seu tema eassim abandonar o traje desvalorizado do plagirio para vestir o traje mui-

    to mais valorizado do autor. (SAMOYAULT, 2005, p. 51) Dessa maneira,

    ao contrrio da declarao de Bel, Le dernier spectaclealmeja a conquista

    da noo de autor, a partir de um trabalho sobre a cpia, Um autor que,

    quanto mais afastado, mais poderoso . Ele se arrisca tambm a um des-

    vio cultural, ao retirar a censura do fato de se copiar uma dana. Bel, com

    toda razo, insiste que o campo coreogrfico no soube refletir e autorizar

    o direito da citao na dana por no ter pensado o bastante a respeito de

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    sua prpria histria. Ele, ento, reabilita esse trabalho de cpia do qual os

    bailarinos, em decorrncia das respectivas formaes que ativaram suas

    capacidades mmicas, tornaram-se peritos, enquanto, em outros campos

    artsticos, isso prosperava h muito tempo.

    A histria das artes e da literatura mostra, frequentemente, que no

    h oposio verdadeira entre o indito e o j dito, o que tambm deve va-

    ler, a fortiori, para a histria da dana, toda fundada na atividade mimtica.

    Para a dana, considerando-se que ela uma prtica gestual, interes-

    sa constatar a primeira atividade constitutiva da histria de uma pessoa:

    o fato em grande parte inconsciente de que, logo aps o nascimento,

    imitamos nossos semelhantes (voz, movimento, atitude, postura, modo

    de andar). Assim, ao longo de nossas vidas, apenas nos entreimitamos

    fisicamente, num dilogo tnico e postural. A histria desse dialogismogestual justamente aquilo que constitui uma cultura gestual, ao mesmo

    tempo singular e coletiva como mostraram Marcel Mauss, j nos anos

    1930, em um texto, hoje bem conhecido, sobre as tcnicas do corpo, Aju-

    riaguerra e toda a escola de Palo Alto, no campo da psicologia, e Daniel

    Stern (2005), no campo da neuropsicologia. Citar e copiar, enquanto ati-

    vidades que recorrem imitao, implicam uma relao com a alteridade,

    uma experimentao do gesto do outro. Procurando semelhana, algo do

    outro que se parea conosco, tentamos fazer com que ele chegue a ns,

    mas, inversamente, agimos tambm sobre ele, e possvel medir os des-vios desse processo.

    O imitador se aproxima ou revela aquilo de que no temos imagens

    ou que achamos ser inimitvel, singular. Ele questiona nossa tendncia

    narcsica em acreditar que somos nicos e desvenda aquilo que, em ns,

    define a nossa identidade, aquilo que resulta da construo da teatralida-

    de e da dana ntima que nos fabricam(modo de olhar, de tocar, de se ma-

    nifestar, de ficar de p etc.). No que no sejamos nicos. Mas o imitador

    aponta nosso idiotismo gestual, aquilo que nos designa, nos distingue,

    sem nos pertencer, retomando, assim, as palavras de Derrida. E aquiloque nos designa justamente aquilo j se estabilizou e at se fossilizou,

    aquilo que no est mais em movimento. O imitador de nossos gestos re-

    vela assim a nossa propenso, mais ou menos forte, a autocopiar, ou seja,

    aquilo que temos de autoimitao, de autocitao. Se o que nos escapa

    pode ser justamente aquilo de que algum pode se apropriar, ento o que

    nos sobra de singular?

    Nas artes, em particular na dana, talvez para escapar do risco regu-

    lar de autoimitao e de cair no que se convm chamar uma caricatura

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    de si, os artistas recorrem cpia dos seus semelhantes, pois, como dizia

    Picasso, mais perigoso autocopiar-se do que copiar os outros. Dessa

    forma, o roubo de ideias, assim como de gestos, difcil de ser compro-

    vado, porque tudo est no modo, na maneira como nos apropriamos de

    um determinado objeto. nisso que reside uma das dimenses do ato

    da criao.

    Seria fastidioso e intil lembrar os momentos da longa tradio da

    cpia nas artes: das cpias romanas da arte grega chegando at Dfinitions/

    Mthodes, de Claude Rutault, que fazia cpias de suas prprias telas, sem

    esquecer o Museu de reprodues de Hanover, que, em 1929, apresentou

    uma exposio colocando lado a lado originais de obras e suas cpias ou,

    ainda, o trabalho de Warhol. Um artista como Giacometti colocava no mes-

    mo plano a criao e a cpia, preenchendo, ao longo de sua vida, livros emque se podiam ver suas cpias e seus esboos de cpias, frequentemen-

    te justapostos s reprodues recortadas e coladas. As cpias, escreveu,

    fazem parte da minha vida [...], eu sempre tive vontade de fazer cpias a

    partir de reprodues [...]. Copiar antes mesmo de me perguntar o porqu.

    [...] Toda arte passada, de todas as pocas, surge na minha frente. Tudo si-

    multneo, como se o espao tomasse o lugar do tempo [...]. E acrescentou,

    um pouco mais adiante: No posso dizer nada sobre isso, seno contaria

    a minha vida toda, tudo de que me lembro.4

    Para os bailarinos, no tanto o museu que representa o passado,mas o cinema. Eles transformam a histria do cinema em um filo de

    arquivos gestuais, em partituras de movimentos ou em um repertrio gi-

    gantesco de atitudes e de comportamentos. Com efeito, no sculo XX, a

    histria da dana acessvel principalmente por intermdio das imagens

    do cinema e do vdeo. A histria da dana se funde com a histria do cine-

    ma, com a qual ela de fato atrelada: o cinema tem toda uma tcnica do

    corpo, como entendida por Marcel Mauss, e, inversamente, a dana uma

    fbrica de imagens. Num movimento de dupla captura, a dana e o cinema

    so lugares onde produzida a mobilidade coletiva, bem como a sua ima-gem. Eles so vastos laboratrios de experimentao gestual coletiva e de

    sua representao, e, neles, bailarinos e cineastas conspiram juntos, desde

    o incio do sculo XX.5Copiar-dublar a dana na tela, tal foi a primeira ma-

    neira adotada pelos bailarinos contemporneos para se apropriarem das

    danas do passado. Se o documento copiado no era a preocupao de Bel

    (ele procurou ocult-lo), a relao com o documento , em contrapartida, o

    corao de Phasmes,6de 2003, trs solos de Latifa Labissi, que, no palco,

    apresenta no apenas a fonte copiada, mas tambm a atividade de copiar

    4 Citao copiada por ns doscadernos de Giacometti, naexposio consagrada a ele, no

    Beaurbourg em 2007.

    5 Lembremos que a dana moderna

    e o cinema so contemporneosdo final do sculo XIX, tanto naAlemanha como nos EUA.

    6 Ttulo que a artista recupera dolivro de Georges Didi-Huberman(2000). Um phasme (bicho-pau) designa, lembremos, umpequeno inseto delgado, que ha propriedade de adotar a formae a cor do suporte onde ele seencontra, geralmente na grama,em pedaos de madeira, etc.

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    trs filmes em que danam sucessivamente Wigman, Gert e Dore Hoyer. A

    intrprete que dubla a imagem passa a entender a obra com seu corpo. Ela

    precisa alterar seu preparo muscular, fsico e psquico em funo de cada

    corpo mostrado na tela olhar, copiar, danar. Dessa forma, o arquivo tem,

    antes de tudo, o valor de sua utilizao. Ele no empregado como docu-

    mento histrico que exige um comentrio, tampouco como documento va-

    lioso, exumado cuidadosa e metodicamente, de acordo com os procedimen-

    tos ad hoc. Nesse caso, ele no um objeto de pura contemplao esttica,

    e em nada acentua a aura dos velhos filmes em preto e branco ligados ao

    fascnio de horizontes distantes. Antes de tudo, ele um elemento de tra-

    balho no palco, circunstancial, para fins de captao, tanto para a bailarina

    como para o espectador. Voltar no tempo consiste, principalmente, em fazer

    um trabalho de copiadora-dubladora, seguir e imitar o que os corpos estofazendo nas imagens, copiar trechos de um material gestual, tal como o his-

    toriador escreve no papel ou digita no seu computador as citaes que so

    de interesse para o trabalho em curso. Depois, necessrio captar, assimilar

    a cpia no corpo, colocar-se no lugar de.

    O ponto de vista de L. Labissi, como o de muitos outros artistas, no

    tem a ver nem com uma atitude melanclica perante o luto de um momen-

    to notvel de dana, que seria necessrio fazer reviver por igual ou de ou-

    tra maneira, nem com sua vertente manaca de querer encontrar, ali, um

    ideal a se atingir. A encenao no promove nem um adeus, uma ltimavez, nem uma homenagem, muito menos um enterro coreogrfico. Ao

    contrrio, ela instala um confronto, um face a face entre as imagens e sua

    dublagem (sequncia Wigman), a dublagem sem as imagens (sequncia

    Hoyer) e a prpria atividade da dublagem que se dedica ao processo da cap-

    tao (sequncia Gert). Essa forma de citar , de um lado, um trabalho de

    autodidata, que no passa pela fase da aprendizagem mmica do mestre ao

    aluno, como se, para sair da alienao mmica no mbito de um curso de

    dana, fosse necessrio mergulhar num trabalho mmico ainda mais exi-

    gente, escrutando o prprio ato de olhar; do outro lado, algo que Labissise permite fazer sem ter a legitimidade para tanto. Por isso, o projeto foi

    acolhido com resistncia e at violncia. Como possvel querer interpre-

    tar Hexentanzde Mary Wigman, verdadeiro monumento histrico da arte

    coreogrfica contempornea? No seria o mesmo que ir ao encontro do

    fracasso ou de uma decepo programada?

    Voltando ao trabalho de dublagem, Mathilde Monnier, em Tempo 76

    (2008), bem como em City maquette (2009), atribui a ele uma funo bem

    diferente, desta vez muito mais coletiva. Como, com efeito, o ato de copiar

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    pode ser um meio pedaggico e tambm de criao, capaz, ao mesmo tem-

    po, de emancipar um bailarino de seu modelo e, assim, recriar algo coleti-

    vo? Novamente, o jogo de intertextualidade e de autor-referncia no campo

    coreogrfico, longe de se fechar numa relao especular, s pode ser consi-

    derado em e por sua relao com o mundo.

    Nessa perspectiva, Mathilde Monnier privilegia o fato de que o ato de

    copiar a imagem de um gesto emancipa a relao de aprendizagem da liga-

    o afetiva entre mestre e aluno, ou bailarino e coregrafo, assim como do

    peso da imagem fictcia e ideal a ser atingida. Esse ato nos livra, tambm,

    da obrigao de formar um grupo e de danar em conjunto; ele desinibe.

    Absorvido por inteiro pelo ato de imitar, o bailarino que copia no tem

    como se preocupar com a imagem que, em tempo real, projeta. Ele almeja

    realizar a cpia mais exata possvel, preocupando-se em executar uma par-titura visual precisa do modelo com o qual no tem nenhum lao, a no ser

    o tempo imposto. Olhar e executar ao mesmo tempo impe uma urgncia

    que ultrapassa o intrprete.

    Tambm, quando um grupo inteiro procura copiar, em conjunto,

    uma determinada sequncia gestual previamente filmada e reproduzida

    numa tela, uma surpreendente figura coletiva aparece. Longe de serem

    algo unssono, de estabelecerem uma escuta atentiva do grupo, cada in-

    tegrante , naquela circunstncia, separado/liberado do outro por aquilo

    mesmo que os agrupa: a imagem reproduzida na frente deles. Toma-do pela mesma atividade, o grupo se mostra, ao mesmo tempo, unido e

    profundamente fragmentado, catico. Cada dublador organiza seu ato

    de maneira particular, apresentando, para uma s referncia, a mesma

    quantidade de gestos diferentes que de dubladores existentes. A confu-

    so de cada bailarino, em seu esforo para copiar, contribui para a confu-

    so do grupo dentro dos limites da realizao do trabalho de cpia. Isso

    evidente em City maquette, que compreende grupos de amadores, en-

    quanto o savoir-fairedos bailarinos profissionais em Tempo 76resulta em

    outra aparncia de grupo um perfeitamente unssono, mas que, longede se organizar a partir de seu interior, numa dinmica orgnica, se orga-

    niza a partir de um hors champ(algo exterior ao grupo). Paradoxalmente,

    a fora do grupo de bailarinos alinhados em ziguezaguee de frente para

    a plateia resulta da existncia destehors champe aponta para ele. Nessa

    pea, o filme a ser copiado era reproduzido nos bastidores, oculto da pla-

    teia. Os bailarinos olhavam todos para a mesma direo, para algo a que

    o espectador no tinha acesso. Mesmo que eles pudessem acompanhar,

    sem hesitar, o movimento na tela, j que por terem ensaiado o conhe-

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