lacan e a cibernética

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LACAN E A CIBERNÉTICA Há um texto de uma conferência no seminário II de Lacan, intitulado “Psicanálise e Cibernética, ou acerca das origens da linguagem” datado de junho de 1955, que ainda é pouco estudado pelos historiadores da psicanálise. Nele, Lacan propõe uma interessante aproximação entre a sua teoria do inconsciente e a cibernética, uma disciplina então nascente e que décadas mais tarde iria se tornar a inteligência artificial. Curiosamente, nem mesmo os mais competentes biógrafos de Lacan, como, por exemplo, Elisabeth Roudinesco, mencionam essa conferência. Por que será? Talvez essa seja uma atitude intencional de alguns psicanalistas que vêem na inteligencia artificial e na ciência cognitiva algo necessariamente oposto à psicanálise. A ciência cognitiva é demonizada, de forma caricatural, como uma espécie de teoria diabólica que visa, em última análise, transformar os seres humanos em máquinas. Essa tendência aparece na obra de Roudinesco, especialmente no livro Por que a Psicanálise? que tem passagens ácidas no que se refere à ciência cognitiva. Mas, uma outra hipótese é a de que o texto dessa conferência revela-se extremamente complexo para aqueles que não têm formação em ciência da computação. Nele, por exemplo, aparecem desenhos de tabelas que parecem, à primeira vista, estranhas. Elas são, na verdade, representações de portas lógicas de um computador.

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Texto que discute a relação e a interpretação que Jacques Lacan fez do surgimento da cibernética e da Inteligência Artificial durante a década de 1950. A neurose é a recursão.

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LACAN E A CIBERNTICA

H um texto de uma conferncia no seminrio II de Lacan, intitulado Psicanlise e Ciberntica, ou acerca das origens da linguagem datado de junho de 1955, que ainda pouco estudado pelos historiadores da psicanlise. Nele, Lacan prope uma interessante aproximao entre a sua teoria do inconsciente e a ciberntica, uma disciplina ento nascente e que dcadas mais tarde iria se tornar a inteligncia artificial. Curiosamente, nem mesmo os mais competentes bigrafos de Lacan, como, por exemplo, Elisabeth Roudinesco, mencionam essa conferncia. Por que ser? Talvez essa seja uma atitude intencional de alguns psicanalistas que vem na inteligencia artificial e na cincia cognitiva algo necessariamente oposto psicanlise. A cincia cognitiva demonizada, de forma caricatural, como uma espcie de teoria diablica que visa, em ltima anlise, transformar os seres humanos em mquinas. Essa tendncia aparece na obra de Roudinesco, especialmente no livro Por que a Psicanlise? que tem passagens cidas no que se refere cincia cognitiva.Mas, uma outra hiptese a de que o texto dessa conferncia revela-se extremamente complexo para aqueles que no tm formao em cincia da computao. Nele, por exemplo, aparecem desenhos de tabelas que parecem, primeira vista, estranhas. Elas so, na verdade, representaes de portas lgicas de um computador.As portas lgicas so uma espcie de representao eltrica do pensamento humano. Se assumirmos que quase todo pensamento constitudo de proposies e que elas so, invariavelmente, ou verdadeiras ou falsas, podemos construir um circuito eltrico que as represente. A idia que verdadeiro ou falso podem corresponder, reciprocamente, a 0 e 1, e estes, por sua vez, a um circuito fechado (no qual passa corrente) ou um circuito aberto ( no qual no passa corrente). da idia cotidiana de que nossos raciocnios so proposies verdadeiras ou falsas que so constantemente combinadas na forma de um clculo que surge a semelhana entre circuitos eltricos e mentes ou, em ltima anlise, entre mentes e computadores.Mas, por que Lacan estaria se preocupando com isso? Por que ele iria se interessar pelos os fundamentos da ciberntica e da cincia da computao? A razo parece estar no fato de que h um outro conceito fundamental que norteia a cincia da computao e a programao de computadores: a recurso.A recurso um tipo de processo no qual um de seus passos envolve sua repetio completa. Uma forma humorstica de definir a recurso dizer que as bolachas vendem mais porque so fresquinhas e so fresquinhas porque vendem mais. O que se percebe nessa frase um procedimento de repetio, no qual, se no houver uma instruo especfica para parar, continuar assim por um tempo ilimitado. Ou seja, a recurso o procedimento em crculo, sem que se coloque um fim para ele.Procedimentos recursivos so muito utilizados em cincia da computao e so a base da construo de algoritmos (programas). Mas isso ocorre no somente com as linguagens artificiais utilizadas pelos computadores. Nossa linguagem natural tambm recursiva. Na dcada de 1950, Noam Chomsky props essa hiptese. Quando escrevemos uma sentena, podemos sempre acrescentar uma outra a ela, e assim por diante, num processo infinito. Uma sentena chama outra e mais outra, num processo que se assemelha ao dos procedimentos recursivos. H um homem sentado na porta pode se transformar em H um homem que matou o gato e est sentado na porta e H um homem que matou o gato e est sentado na porta e agora aguarda ser julgado por isso e assim por diante. A linguagem remete prpria linguagem e este um procedimento circular e repetitivo. por isso que construir uma sentena pode ser um processo interminvel.Ora, Lacan acompanhava os progressos da ciberntica na dcada de 1950 e, possivelmente, conhecia os trabalhos de seus pioneiros, entre eles o de Norbert Wiener que estava profundamente envolvido com a programao de computadores. Da mesma maneira, os trabalhos de Chomsky acerca da recurso em linguagens naturais tambm deviam ser conhecidos por Lacan.Se a linguagem recursiva, nos diz Lacan, o inconsciente tambm o ser, pois ele est estruturado na forma de uma linguagem. da que vem o carter repetitivo do inconsciente, o fenmeno da repetio inexorvel, identificado por Freud na sua obra de maturidade. A repetio em um processo neurtico praticamente interminvel, a no ser que em algum momento haja uma instruo para interromp-lo, como pode ocorrer na psicoterapia. A neurose um procedimento recursivo e, para explicar sua natureza, teramos de buscar um modelo ciberntico para ela. O neurtico uma mquina em looping e isso que o aproxima da pulso de morte. Essa , em sntese, a mensagem da conferncia de Lacan transcrita no Seminrio II.Talvez devamos, ento, reconsiderar a posio da psicanlise diante da inteligncia artificial e da cincia cognitiva. Talvez Roudinesco esteja excessivamente margem esquerda do rio Sena para poder vislumbrar o interesse de Lacan por essas disciplinas, que, na dcada de 1950, j eram pesquisa cientfica de ponta. Mas para reconhecer isso ser preciso abandonar preconceitos que permeam a historiografia da psicanlise. Provavelmente so eles que no permitem que os historiadores da psicanlise consigam vislumbrar a verdadeira dimenso dessa conferncia de Lacan e prefiram no mencion-la. Outra hiptese para o esquecimento dessa conferncia a dificuldade de sua leitura. Psicanalistas dificilmente esto familiarizados com conceitos como portas lgicas e recurso. No fcil acompanhar Lacan, seja pela sua erudio, seja por seus extensos passeios por muitas disciplinas cientficas e pela filosofia. Encontrei esse texto nos Seminrios II quase por acaso, quando o folheava. No o li no original francs e sim, no ingls. Ler Lacan em ingls pode parecer algo bem inabitual. Por ter estudado na Inglaterra, tenho, s vezes, preguia de ler em francs. Mas, houve tambm mais um acaso feliz. Estudei psicanlise como disciplina terica no meu curso de graduao em filosofia e, anos mais tarde, cincia da computao.