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FICHA TÉCNICA Título original: La Strada Verso Casa Autor: Fabio Volo Copyright © 2013 Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., Milano Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2014 Tradução: Rossana Appolloni Imagem da capa: Shutterstock Capa: Catarina Sequeira Gaeiras /Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, agosto, 2014 Depósito legal n. o 378 232/14 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA, S.A. Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: La Strada Verso CasaAutor: Fabio VoloCopyright © 2013 Arnoldo Mondadori Editore S.p.A., MilanoTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2014Tradução: Rossana AppolloniImagem da capa: ShutterstockCapa: Catarina Sequeira Gaeiras /Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, agosto, 2014Depósito legal n.o 378 232/14

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇA, S.A.Estrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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ÍNDICE

Anos oitenta ................................................................................. 13

Londres ........................................................................................ 23

Novamente juntos ........................................................................ 32

Irmãos .......................................................................................... 43

Lucia, a mãe ................................................................................. 51

As tardes depois da escola ............................................................ 61

Três homens: não é fácil! .............................................................. 68

Diagnóstico .................................................................................. 73

Isabella voltou .............................................................................. 75

A cama ......................................................................................... 82

Desejo de leveza ........................................................................... 91

Andando pela casa ........................................................................ 102

Uma demão de branco ................................................................. 107

Andrea & Irene ............................................................................ 117

Traição ......................................................................................... 123

Esparguete com amêijoas .............................................................. 129

Tour virtual pela vida dos sonhos .................................................. 141

Vou buscar‑te a casa ..................................................................... 151

Talvez a felicidade seja isto ........................................................... 159

A arrecadação ............................................................................... 164

Marco e o pai ............................................................................... 172

A colina ....................................................................................... 178

«Tu és daqueles que acabaram o curso com a nota máxima» ........ 187

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John Wayne ................................................................................. 195

Tire as calças, baixe as cuecas ....................................................... 203

O maior erro ................................................................................ 212

O mesmo quarto .......................................................................... 216

Mathilde ...................................................................................... 226

À noite na cozinha ....................................................................... 232

Dar uma segunda oportunidade ................................................... 240

A nossa família ............................................................................. 249

É um novo dia ............................................................................. 254

Marco volta para casa ................................................................... 257

Tenho saudades do pai .................................................................. 262

Um dia juntos em Londres ........................................................... 267

As palavras de Isabella ................................................................. 278

A água ......................................................................................... 283

Sono leve ...................................................................................... 288

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Ao meu pai.

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Há sempre uma filosofia para a falta de coragem.

Albert CAmus

Fui para a cama cinco minutos mais tarde que os outros para ter cinco minutos a mais para contar.

FrAnCo CAliFAno

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ANOS OITENTA

Nos anos oitenta as pessoas riam‑se. Riam‑se muito mais.Riam‑se no trabalho, na escola, com os amigos e, sobretudo,

riam‑se na TV. Aqueles anos eram uma época fabulosa. A Itália ganhava os Campeonatos do mundo em Espanha, a música era feita pelos DJ e o seu ritmo dance pulsava nas rádios e nas discotecas. Até o papa esquiava naqueles anos. Sentíamo‑nos livres, tinha caído o muro de Berlim.

O culto do corpo gerou uma explosão de ginásios, aulas de aeró‑bica para mulheres, body building para homens, centros de bronzea‑mento. Era preciso termos um físico esculpido, bronzeado, para o levarmos a passear em roupas de marca e óculos espelhados.

A qualquer hora do dia podíamos ligar a televisão e encontrar alguém que tinha sido posto ali para nos fazer rir, para nos distrair um pouco, para nos oferecer prémios ou até só para nos dizer uma série de frases divertidas e piadas prontas a serem usadas. Estava sempre cheia de moedas de ouro, de serpentinas, de trompetes, de minissaias brilhantes e de casacos coloridos. Estava cheia de sorrisos esplêndidos, cheia de lábios e de bocas que sopravam beijos aos telespectadores. Estava cheia de produtos à venda. Nos anos oitenta havia a sensação que podíamos comprar tudo. Até a alegria. Os pobres podiam parecer ricos. Antes dos anos oitenta ouviam‑se em casa frases do tipo: Não nos podemos dar a esse luxo, ou então, Isso não é para os nossos bolsos. Parecia que os anos oitenta tinham varrido tudo isto, juntamente com a cultura da poupança. O que se ganhava gastava‑se e, se não era suficiente, podia‑se fazer um leasing. A vida já não era construir um futuro mas comprar um enorme bilhete

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da lotaria. Se calhar foi naqueles anos que as palavras começaram a perder o seu verdadeiro significado, a tornarem‑se máscaras sem um rosto por trás. Era tudo engrandecido e superlativo.

Talvez por isso é que a família Bertelli, pai, mãe e dois filhos rapa‑zes, tinha um sentimento de inadequação. Era uma família fora do seu tempo, fora do tempo. Eles eram um pedaço de música sincopada.

Não tanto os pais, mas mais os filhos. Tinham mesmo a sensa‑ção que, enquanto o mundo estava a festejar, eles não tinham sido convidados para aquela festa. E, perante esta convicção, cada um reagia como podia, à procura do seu canto de intimidade.

Marco, o filho mais novo, conhecia duas maneiras para se man‑ter fora do mundo, dentro da sua solidão interior. A primeira era ficar na cama a ouvir música. Cansado de cantarolar «La Bamba» desde há cerca de um ano, sequestrou todos os discos do pai e levou‑os para o seu quarto juntamente com os que tinha comprado. Ficava ali deitado na cama com os auscultadores a encher a cabeça de música que, para entrar toda, tinha de deitar fora outros pensa‑mentos ou imagens. Exceto as visões que a música lhe conseguia evocar. Eram sempre imagens de viagens, de lugares que vira na TV ou no cinema e que sonhava um dia ver realmente: passear de mota pela Califórnia ou com um carro descapotável, fazer surf na Austrália, visitar o México de mochila às costas, fumar charutos em Cuba. Aquela forma de se abstrair era um bom exercício de fantasia e, quando adormecia, sentia‑se sempre mais leve, como só um coração cheio de curiosidade e aventuras pode sentir‑se.

A outra maneira era, pelo contrário, ficar em silêncio, apenas com os sons interiores: os dos pensamentos, do batimento cardíaco, da respiração, na tentativa de ouvir e escutar‑se a si próprio, indo às zonas mais profundas de si à procura de respostas derradeiras, como um espeleologista da alma, para experimentar, se fosse pos‑sível, um modo para poder nascer duas vezes. Queria conseguir chegar ao ponto em que terminam as vozes dos outros e começa a sua, a verdadeira. Única. Incondicional. Uma voz guia, mestra, que pudesse ajudá‑lo a enfrentar inquietações e perplexidades.

Naquela noite, Marco escolheu a via da música, estava deitado na cama a olhar para o teto e a brincar com o fio dos auscultadores.

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Era uma noite de verão, uma noite de fim de julho. Fazia calor. A janela do quarto estava aberta, o alarme de um carro estacio‑nado em frente do prédio tinha acabado de parar de tocar e os cães tinham parado de ladrar. Estava tudo imóvel, exceto os movimen‑tos circulares do fio dos auscultadores. Bob Dylan cantava «I’ll Be Your Baby Tonight» e, naquela noite, o homem da voz de bagaço parecia mais melancólica do que era costume.

Quando ouvia Bob Dylan, Marco respirava o ar frio de Nova Ior‑que, a cidade onde sonhava ir com Isabella, a sua namorada, e pas‑sear na neve abraçados exatamente como Dylan e a sua namorada Suze Rotolo na capa do The Freewheelin’. O álbum de 1963 de que a sua mãe tanto gostava. O álbum onde também era mencionada Sophia Loren. Ele gostava quando encontrava nomes ou pedaços de Itália citados pelo mundo fora. Orgulhava‑se como se se tratasse de alguém que conhecia. Acontecia‑lhe também quando, no gené‑rico de filmes americanos, lia apelidos italianos e imaginava que aqueles eram filhos de imigrantes que tinham conseguido safar‑se. Sentia‑se contente por eles.

Naquela noite, tinham entrado maus pensamentos na sua cabeça. Todos os medos que estavam ao virar da esquina, escon‑didos, atacaram‑no, exatamente como faz uma manada quando vê um animal ferido. Para reagir àquela opressão que sentia no peito imaginou levantar‑se da cama com um movimento assertivo, sair do quarto, lançar‑se escadas abaixo e correr o mais rápido que conseguia sem parar, atravessar a cidade inteira e chegar a casa de Isabella. Gritar o seu nome, pedir‑lhe para descer, agarrar nela e levá‑la consigo. Levá‑la para um mundo mais justo, sem as com‑plicações estúpidas dos adultos. As regras, as chatices e as contí‑nuas hipocrisias. Tinha sido uma noite difícil, tinha havido tensão durante o jantar. Naquela casa já se respirava mal. Queria chorar, chorar e acender um cigarro, mas eram duas coisas que só podia fazer quando estava sozinho. Fumar, um gesto adulto que ainda lhe era proibido. Chorar, uma fraqueza infantil igualmente proibida. Naquela noite sentia‑se em terra de ninguém.

Não era um fumador, ainda não. Fumava às escondidas quando andava por aí com os amigos, em casa praticamente nunca, só

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algumas raras vezes fechado na casa de banho com a janela escan‑carada. Tinha‑o feito umas cinco ou seis vezes, não mais, e depois de fumar atirava o cigarro para o mais longe possível com o clás‑sico movimento entre o polegar e médio. A seguir, lavava logo os dentes e punha na boca pastilhas de mentol. A primeira vez que fumou na casa de banho fez o erro de deitar o cigarro para a sanita e, ao puxar o autoclismo, apercebeu‑se de que a beata ficou ali a boiar. Experimentou deitar papel higiénico e puxar outra vez o autoclismo, mas nada. Foi obrigado a pegar na beata, enfiando as mãos na sanita, e a deitá‑la pela janela.

Fumar no quarto naquela noite teria sido outra coisa, outra conversa. Naquele caso não teria sido apenas pelo prazer do fumo inspirado e tragado para os pulmões, ou pelo gosto da transgressão, a justa rebeldia que acompanha os cigarros naquela idade. Não, desta vez, se tivesse concretizado aquela ação, tê‑lo‑ia feito para oficializar uma identidade, uma tomada de posição. Ultrapassar um limite e uma linha de sombra. Afirmar‑se a si próprio.

Em casa, no outro quarto, estavam os pais e no quarto com ele estava Andrea, o irmão três anos mais velho do que ele que, como sempre, estava sentado à escrivaninha.

Nada de música para Andrea, só estudo ou leitura, sempre coi‑sas complicadas. Quanto mais difíceis eram, mais as adorava. Esse era o seu modo de se enfiar na toca, o seu modo de se defender da maldade do mundo. Desde sempre que se deixava absorver com‑pletamente por fórmulas, equações e traduções, uma verdadeira obsessão.

Andrea tinha um talento inato para os exercícios de pura abs‑tração.

Aquela sua maneira de total dedicação levou‑o a ser o primeiro da turma e o único entre os seus colegas a traduzir do latim para o grego sem passar pelo italiano. Uma acrobacia intelectual com‑pletamente inútil.

Marco parou de olhar fixamente para o teto e agora observava o irmão, olhava para as suas costas dobradas para a frente e pergun‑tava‑se quem era aquele rapaz que partilhava o quarto com ele. Um estranho. Um desconhecido. Como podiam ser tão diferentes se eram

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irmãos? Filhos dos mesmos pais, filhos da mesma educação, do mesmo pudor. Ele, por exemplo, nunca teria pendurado em cima da própria cama a imagem do Homem vitruviano de Leonardo da Vinci, embora lhe fizesse lembrar Jim Morrison retratado naquela fotogra‑fia de braços abertos. Não é que não reconhecesse a beleza daquele desenho e a genialidade de Leonardo, mas parecia‑lhe uma escolha de velho. Era como cantar «Nel blu dipinto di blu» de Modugno. Al guma vez tinha sido jovem? Será que tinha nascido assim?

Mas a questão à qual não conseguia dar uma resposta era o que é que tinha acontecido entre eles. Até há apenas alguns anos, o seu irmão mais velho, para ele, era um herói. Imitava‑o, era o seu ídolo, o seu ponto de referência. Ele que conseguia fazer os seis lados do cubo de Rubik em menos de dez minutos. Marco repetia frases ditas por Andrea, roubava‑lhe determinadas expressões, apanhava determinadas palavras, determinados modos, até determinados ges‑tos, a forma como mexia as mãos. Ficava contente por vestir a sua camisola, como se fosse o fato de um super‑herói.

Depois, toda aquela admiração desapareceu. Onde é que tinha ido parar? O que é que os tinha afastado?

O facto de o irmão saber muitas coisas não fazia dele mais fasci‑nante aos olhos de Marco, antes pelo contrário, tornava‑o aborrecido e chato. Frequentemente, quando Andrea começava com os seus discursos de sabichão, Marco deixava de o ouvir depois de poucos segundos ou, pior ainda, no fim das suas tiradas dizia‑lhe: «Podes repetir‑me o que acabaste de dizer? Quero ver se ao ouvir pela segunda vez me interessa.» Andrea não se ofendia. Sentia‑se superior.

Marco voltou a pensar no cigarro que queria fumar. Nem sequer precisava de se levantar para o fazer, bastava‑lhe esticar a mão, abrir a gaveta da mesinha de cabeceira e procurar, no fundo, debaixo das folhas, o pacote de Marlboro vermelho que guardava escondido.

Na verdade, o irmão sabia do seu pequeno vício e não aprovava. Às vezes, quando discutiam, ameaçava contar aos pais, mas nunca o fez.

Enquanto Andrea estava absorto na leitura, ouvia, em fundo, como que à distância, a voz rouca e melodiosa de Dylan a sair dos auscultadores. Depois, o barulho de uma gaveta a abrir‑se, o roçar

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das folhas, o bater de uma gaveta a fechar‑se e, poucos segundos depois, um par de clique‑clique de um isqueiro. Aquele som cap‑turou a atenção de Andrea que, ao virar‑se, viu uma brasa vermelha incandescente e o perfil da cara do irmão, de cuja boca saía fumo.

— Estás doido? O que é que estás a fazer?Marco não ouvia e continuava a olhar para o teto, aspirando com

gosto outra passa do cigarro de olhos fechados. Só depois de ter expirado tudo o que tinha enviado para os pulmões é que abriu os olhos e se apercebeu de que Andrea estava ali em pé, a repetir a mesma pergunta. Desta vez, mesmo sem a ter ouvido, leu‑a através dos lábios.

— Que novidade é esta? Decidiste hoje começar a fumar tam‑bém em casa?

Sim, a partir de hoje fumo também em casa. O que é tens a ver com isso? Já não me apetece esconder-me, tenho dezasseis anos e se me apetecer fumar um cigarro fumo. Vai-te lixar e vai à merda, queria ter‑lhe respondido, mas não tinha vontade de falar nem de discutir.

— Se quiseres fumar em casa fala sobre isso com o pai, mas no meu quarto não fumas.

Na verdade o quarto também é meu. Esta teria sido a resposta se tivesse tido vontade de responder.

— É inútil olhares para mim e não dizeres nada. Quando eu cá estiver não fumas porque me incomoda. Esse já acendeste e podes acabá‑lo à janela. Mas que não se volte a repetir.

Àquele ponto, Marco, cansado da discussão na qual não tinha participado, foi à janela e apagou o cigarro esfregando‑o no para‑peito, deixando o rasto de um risco preto como um traço a carvão. Depois fê‑lo dar um salto, atirando‑o para o mais longe possível.

— Queres sempre fazer o que te passa pela cabeça. Se tiveres a oportunidade de fazer merda, por muito pequena que seja, tu agarra‑la logo. O que é que tens na cabeça?

Marco já estava em pé e, ao voltar da janela para a cama, apro‑veitou para parar o gira‑discos e mudar a música.

Desta vez pôs no prato não um disco do seu pai, mas um com‑prado por ele, Combat Rock dos Clash, e colocou a agulha na canção «Should I Stay or Should I Go».

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Deitou‑se novamente na cama e pôs na boca uma pastilha de mentol daquelas compridas e fininhas que, antes de se mastiga rem, dobram‑se como uma onda do mar. Andrea voltou aos estudos.

Repentinamente, o som lancinante de um alarme recomeçou a sua enfadonha ladainha. Não era a primeira noite que isto aconte‑cia. Desde há cerca de um par de meses, um vizinho, que morava no prédio em frente, tinha comprado um carro novo, um Ritmo Cabrio metalizado, e tinha‑lhe colocado como extra um alarme antirroubo que naqueles dois meses já tinha tocado várias vezes.

— Não acredito, outra vez aquele estúpido carro. Esta noite chamo a polícia, está a perturbar o sossego público — disse Andrea.

Numa noite qualquer, depois de se ter lamentado, Andrea teria voltado às suas leituras, mas aquela era uma noite diferente. Levan‑tou‑se e dirigiu ‑se ao corredor onde estava o telefone cinzento de casa. Ligou para a polícia.

O telefone tocava. Andrea, enquanto esperava, olhava‑se ao es‑pelho e tentava fazer uma cara de homem sério, apesar de, ao tele‑fone, não servir para nada. Tinha dezanove anos mas era mais velho, mais maduro e responsável do que os rapazes da sua idade. Gos tava imenso quando alguém lhe dizia isso, um professor ou os pais dos amigos.

— Sim, esquadra da polícia, diga.— Boa noite, o meu nome é Andrea Bertelli e estou a ligar por

causa de um problema...Enquanto explicava a questão ao polícia, olhava diretamente

para os seus olhos através do reflexo no espelho, como se falasse consigo próprio.

No outro lado da linha a voz dizia:— Bom, se ligavam todos os que ouvem um alarme na rua...Aquele conjuntivo errado perfurou Andrea na carne, para ele era

como se tivesse ouvido o raspar de unhas num quadro de escola.— Seja como for, se conhecer o proprietário do automóvel, é

mais rápido tocar‑lhe à porta a pedir que o desligue. Ou então, se esperar um pouco, há de parar por si.

— Sim, eu sei que para, mas depois de um bocado recomeça.

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Andrea agradeceu com sarcasmo ao polícia e decidiu voltar para o quarto para contar o telefonema ao irmão.

Marco não estava interessado.— A ti nunca te interessa nada, mas tu também sabes porque

é que temos de fazer parar esta porcaria de alarme.Como era previsível, o alarme parou de tocar e pouco depois

recomeçou.Andrea decidiu fazer o que o polícia tinha aconselhado: ir até

ao vizinho e tocar à campainha. Faltavam poucos minutos para a meia‑noite.

— Se o pai te perguntar onde é que estou, explica‑lhe tu.Andrea saiu do quarto, passou à frente do quarto dos pais e apro‑

ximou o ouvido da porta para tentar perceber se estavam acordados: estava tudo em silêncio, exceto o barulho de um ventilador, um daqueles que viram para a direita e para a esquerda. Saiu de casa. Enquanto estava a descer as escadas, apercebeu‑se de que estava muito ansioso, talvez tivesse medo da reação do proprietário. Não queria ser agressivo ou mal‑educado, queria apenas que interviesse e fizesse parar aquele som incomodativo. Perguntou a si próprio se teria de explicar porque é que para ele era um problema sério, mas decidiu que não era oportuno contar coisas pessoais, proble‑mas familiares. Enquanto procurava as palavras certas, parou no passeio à porta de casa, exatamente em frente do carro que ainda estava a tocar. Aproximou‑se da janela e, levantando uma mão para se proteger da luz do candeeiro, olhou lá para dentro, embora não houvesse um motivo real, como quando o nosso carro para e, mesmo não sabendo nada de motores, abrimos o capô e olhamos lá para dentro.

Depois daquela inútil vistoria, dirigiu‑se ao prédio. Olhava fixa‑mente já ao longe para as campainhas com os nomes iluminados.

O proprietário do carro chamava‑se Pezzini. Andrea sabia disso porque o pai já o tinha encontrado e já lhe tinha perguntado se era necessário incomodar assim tanto os vizinhos por causa de um carro.

O senhor Pezzini, um homem de uns cinquenta anos, com um pouco de excesso de peso e não muito alto, respondeu que tinha pena mas que o carro era novo e ele não podia arriscar. «Seja como for, o

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alarme ouve‑se as primeiras vezes, depois já nem se nota. Só serve para afugentar os ladrões, mas depois de algum tempo o som torna‑se familiar e já não acorda ninguém. É como as mulheres que deixam de ouvir o despertador do marido de manhã e continuam a dormir.»

«A minha mulher ouve sempre o despertador e, mesmo que não tenha de acordar, acaba por se levantar para se despedir de mim.»

«Sorte a sua, é um marido felizardo. A minha nem sequer me prepara o pequeno ‑almoço. Tenha ainda um pouco de paciência, o carro é um modelo que tem imenso sucesso e, infelizmente, não me posso dar ao luxo de o ter numa garagem. De qualquer forma, é legal ter um alarme.»

Andrea chegou ao prédio. Fixou durante um bocado a palavra SR. PEZZINI na campainha. Decidiu tocar, tinha a boca seca e suava, não só por causa do calor. Enquanto estava à espera de ouvir a voz pelo intercomunicador virou‑se e, assim, conseguia ver a luz do seu quarto acesa, imaginando aquele parvo do irmão a ouvir música deitado à balda na cama, provavelmente a fumar outro cigarro.

Se quando voltar ainda o apanhar a fumar vai ouvi-las. A janela do quarto dos pais tinha as persianas para baixo.

Andrea não podia saber que Marco não estava naquele quarto, que a cama estava vazia, que durante o trajeto que ele tinha percor‑rido para chegar à campainha do vizinho Marco tinha tomado uma decisão importante. Andrea não sabia que o seu irmão, três anos mais novo, se tinha levantado da cama de repente, tinha pas sado em frente ao quarto dos pais, tinha saído de casa e tinha descido as escadas a correr, com os pés todos tortos, agarrando‑se ao corrimão. Tinha‑se lançado pelas escadas com uma raiva e uma velocidade que até fazia tremer o prédio a cada salto que dava. Saltava para escapar daquele mundo, daquela vida, daquela família. Saltava con‑tra a maldade de Deus, contra todas as angústias e o azar. Saltava pela vontade de outra vida, pela vontade de respirar, de romper com tudo o que não conseguia aceitar.

O senhor Pezzini ignorou o primeiro toque da campainha, pensando que era uma brincadeira, mas ao segundo preocupou‑se. Levantou‑se e, arrastando as chanatas, chegou ao intercomunicador.

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— Quem é?— Boa noite, o meu nome é Andrea e moro aqui em frente,

exatamente onde estacionou o car...Estava a acabar a frase quando o portão do seu prédio se escan‑

carou com um forte barulho. Andrea virou‑se e viu o irmão a andar com um passo decidido. Reparou que tinha qualquer coisa na mão. Demorou uma fração de segundo para perceber que se tratava do taco de basebol. O seu irmão, em poucos segundos, atirou‑se com toda a fúria ao carro que estava a tocar: faróis, chapa, vidros e repe‑tidas tacadas no capô. As janelas dos prédios começaram a encher‑se de sombras, atraídas pelo alarido, figuras enquadradas a meio como se fossem grandes televisores. Depois, algumas pessoas que tinham saído à rua conseguiram pará‑lo. Quando o proprietário saiu à rua, foram precisos três homens para o segurarem. Gritava, estrebu‑chava e ameaçava Marco de morte. Chegou o pai. Chegou a polícia.

O pai falou com os polícias, mas não houve nada a fazer. Marco foi algemado e sentado no banco de trás do carro‑patrulha.

Não falava, o seu rosto estava vermelho, cheio de lágrimas. Antes de o carro o levar para a esquadra, por um instante teve a sensação que a sua mãe o estava a observar da janela. Não tinha a certeza. Virou‑se lentamente e olhou para cima. As persianas estavam fechadas. Marco disse a si próprio que tinha de deixar de acreditar em milagres. Dois dias depois daquele incidente a sua mãe morreu.

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LONDRES

Na Charlotte Street havia um cheiro agradável de fim de inverno. Estava tudo tranquilo, a chuva londrina caía levemente sobre todas as superfícies que encontrava: tetos, cabinas telefónicas, automóveis. E sobre as raras pessoas que passavam. A luz dos can‑deeiros era amarela e difundia‑se pelo ar carregado de humidade.

Marco tinha fechado há pouco o restaurante que se encontrava sensivelmente a meio daquela rua, um restaurante italiano do qual era sócio e que geria há alguns anos. Estava a acabar de fazer as contas e de arrumar as últimas coisas antes de se ir embora.

— Adriano, apetece‑te um copo de tinto? — perguntou ao cozinheiro que ainda estava na cozinha.

— Obrigado, vou já.Enquanto se dirigia ao balcão do bar para preparar dois copos,

parou a meio caminho. — Música! — Agarrou no MP3 ligado à aparelhagem e começou a rodar o dedo polegar no sentido dos pon‑teiros do relógio à procura da playlist certa: Inspiration’s Muse. Após uns segundos, o restaurante encheu‑se das notas de «Something» e ele foi preparar o vinho.

Enquanto esperava por Adriano, Marco olhou à volta, abriu os frigoríficos e controlou se o pessoal tinha feito todas as coisas como deve ser. Tinha uma boa relação com os seus empregados, era simpático e amigável, mas tinha de funcionar tudo na perfeição.

Uma coisa é a vida, outra coisa é o trabalho, e nisso era pouco tolerante.

Um instante depois, chegou Adriano e sentaram‑se à mesa com dois copos de vinho e uma garrafa aberta.

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Marco acendeu um cigarro e abanou a mão com o fósforo para o apagar.

— Que horas são? — perguntou Adriano. — Deixei o telefone na cozinha.

— Um quarto para a uma.— Cá para mim já não vêm.— Vêm, vêm! Cinquenta libras em como daqui a um quarto de

hora estão aqui?— Cinquenta não. Vinte?— Vinte.— É a primeira vez na minha vida que aposto na esperança de

perder — disse Adriano antes de tilintar com os copos no ar, num brinde auspicioso.

Era o chefe de cozinha do restaurante, romano, um ás na cozi‑nha. Habitualmente nunca ficava até à hora de fechar, mas naquela noite tinha uma boa razão para ficar.

Marco deu um pequeno gole e depois, como se naquele momento se tivesse lembrado de alguma coisa, disse:

— Ah... ouve, na próxima semana é o meu aniversário, estava a pensar dar uma festa aqui no domingo à tarde. Eu cozinho, só preciso que me encomendes o que é necessário.

— Ah pois, cozinhas tu, como da outra vez que tive de limpar trinta robalos. A não ser que queiras cozinhar porque não sou convi‑dado — acrescentou a sorrir: — Quantos anos é que fazes desta vez?

— Quarenta — respondeu Marco, abanando a cabeça como se fosse uma coisa grave.

— Parabéns! Daqui a cinco anos é a minha vez — disse Adriano.— Estava a pensar fazer qualquer coisa simples: queijos, enchi‑

dos, um primeiro prato e um bolo.— Caramba que imaginação! Quantas pessoas vais convidar?— Umas vinte, não mais.— O que é que queres como presente?— Nada.— Que chato pá, assim tenho de ter uma ideia! Vá lá, diz‑me

o que é que queres. Seja como for, tu sabes que sou obrigado a dar‑‑te uma prenda.

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— Está bem, vou pensar nisso. Chateia‑me ter de pôr o quatro em frente do número dos meus anos. É uma passagem importante.

— É só psicológico, na verdade não muda muito.— Não muda o tanas! Mudam imensas coisas, é um ponto de

viragem. A pessoa sente que já não é um jovem. Começamos a ver pior, temos de nos levantar à noite para ir mijar e se saímos com uma tipa com menos de trinta anos parece haver uma enorme dis‑tância entre os vinte e tal dela e os nossos quarenta.

— Porquê? Tu ainda sais com miúdas abaixo dos trinta? Para mim já nem sequer olham.

— Mas isso é porque és um careca de merda, olha a juba que eu tenho — passou a mão pelos cabelos.

— Juba tens, mas quem te vê por trás pensa que tu também estás nas lonas.

— Não estou nas lonas, estou na maior!Adriano desatou a rir‑se.— Seja como for, há já muito tempo que não me calha nenhuma

abaixo dos trinta. A última foi aquela que veio cá uma noite, lembras‑te? Era aquela com o dragão tatuado de que gostavas, aquela gira.

— Gira? Era uma toda boa! Só consigo foder uma assim se no encontro levar clorofórmio.

Desatam a rir‑se novamente.— Mas esta música que acabou de dar não era a «Something»

dos Beatles?— Sim, mas a versão feita pelo Ray Charles.— É porreira, não a conhecia.— Foi o George Harrison que a escreveu para a Pattie Boyd,

a sua mulher. Fiz uma playlist de canções escritas para as musas inspiradoras do rock. Esta é a «Layla» do Eric Clapton, totalmente escrita para ela.

— O Clapton escreveu uma canção para a mulher do Harrison?— Mais do que uma.— E ele não ficou chateado?— Não sei se ficou chateado com a canção, mas de certeza que

se passou quando o outro a fodeu.

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— A sério?— A sério, e depois casou‑se com ela.— Foda‑se, grande amigo!— Vê lá tu que o Clapton ligava para a casa do Harrison para

falar com a mulher e tocava‑lhe «Layla» ao telefone. Trabalhava‑a assim. Ainda por cima um solo de mão lenta.

— Coitado do Harrison. Efetivamente era o bom dos Beatles, aquele todo espiritual.

— Bom, enfim... mais ou menos! Enquanto o Clapton cortejava a Pattie Boyd, ele, naquele período, fodia com a mulher do Ringo.

— Ringo, o baterista?— Sim, era obcecado com a meditação e tinha mandado fazer

uma sala de propósito. Ia lá muitas vezes com a mulher do Ringo e, entre uma meditação e outra, saltava‑lhe para cima. Espiritual‑mente e, sobretudo, fisicamente.

— Foge, belo grupinho de amigos! Ainda bem que iam pelo mundo fora a falar de amor.

— De facto amavam‑se todos. Diz‑se que a Pattie Boyd também fodeu com o John Lennon e com o Mick Jagger antes de andar com o Clapton, mas ela sempre negou. O Mick Jagger, entretanto, fodia com o David Bowie e com a sua mulher.

— Muito bem! — Adriano bebeu um gole de vinho, depois acrescentou: — Vê lá tu que no ano passado encontrei o guitarrista dos Rolling Stones no metro.

— Quem? O Keith Richards?— Sim.— Mas o que é que estás para aí a dizer? O Keith Richards no

metro? Esse tipo nem sequer sabe que há metro em Londres!— Juro‑te que era ele! Era mais ou menos meia‑noite, eu entrei

em Finsbury Park e ele estava sentado à minha frente. Só estávamos nós os dois na carruagem.

— Devia ser um gajo parecido com ele! Imagina o Keith Ri‑chards à meia‑noite a apanhar o metro sozinho!

— O que é que isso tem? Porquê? Tem de estar sempre com alguém? Não pode dar uma volta de metro sozinho? Se calhar queria fazer as suas cenas, precisava de inspiração. Eu tenho imen‑

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sas inspirações no metro. É enquanto estou na carruagem que me vem à cabeça um prato novo. É ali. Ou então enquanto estou na sanita.

— O que é que te passou pela cabeça? Então tu achas que o Keith Richards, para se inspirar, vai dar uma volta de metro? Ele deve mas é snifar uns riscos de coca que só de olhar parecem lebres mortas deitadas na mesa. Qual metro qual quê... Mas tu sabias que ele snifou o pai?

— Snifou o pai?!— Sim, foi ele quem disse. Snifou um risco com as cinzas

do pai.— Estou a dizer‑te que era ele, a uma dada altura até comecei a

assobiar o início do «I Can’t Get No Satisfaction» e ele não levan‑tou o olhar uma única vez. Percebes? Estava a fazer de conta. Não queria que o chateasse. Sabes como é que são os famosos. Outra pessoa teria pelo menos olhado, levantado a cabeça por curiosidade, não achas?

— Vai‑te lixar! Essa é uma das tuas tretas do costume, como aquela de teres encontrado o papa a passear sozinho numa esquina de Roma com uma mala preta toda rota na mão e cheia de do‑cumen tos, ou então aquela vez que foste comer sushi e o cozinhei‑ro cortava um pedaço de peixe e depois voltava a pô‑lo no aquário para ficar fresco. Cada vez mais magro, ferido, mas fresco. A ver‑dade é que tu és um tangas de Roma.

No fim da frase, alguém bateu na vitrina do restaurante. Marco levantou‑se para ir abrir.

— São elas, estás a dever‑me vinte libras. Welcome back — disse ao abrir a porta às duas argentinas.

Por vezes, durante a noite, quando acontecia sentarem‑se duas raparigas à mesa, Marco ocupava‑se pessoalmente delas. Tentava perceber se eram turistas, quanto tempo ficavam ali, de onde vinham. Sabia lidar com os clientes, sobretudo se eram mulheres. Se dessem bola, avisava Adriano na cozinha e a meio da noite apre‑sentava‑o como um dos chefes italianos mais cotados no mundo. Conversavam um pouco e, no momento de pagar, o vinho era sempre oferta da casa. Depois, antes de as raparigas saírem do

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restau rante, convidava-as a voltarem para um copo depois do encer-ramento. As turistas de passagem por Londres eram as preferidas: evitava-se uma série de complicações.

Funcionava assim: se voltassem era uma boa maneira para acabar o dia, caso contrário não era grave.

As raparigas daquela noite eram de Rosário, perto de Buenos Aires. Tinham um pouco mais de trinta anos e chamavam-se Lupe e Celeste. Lupe tinha um rosto muito bonito e um corpo um pouco redondo, Celeste tinha um rosto menos bonito e um corpo espeta-cular, um rabo pequeno, firme e convidativo.

— Podemos oferecer-vos um copo de vino tinto?— Sim, obrigada. Aliás, se puder ser, aceitamos qualquer coisa

mais forte.— Claro que sí, uísque? Vodca? Rum? Temos tudo.— Pode ser uma margarita?— Perfeito, temos a melhor tequilha da cidade. Duas?— Sim, obrigada.— Com cubinhos de gelo ou um frozen?— Frozen.— É para já, quatro frozen margarita.Marco foi ao balcão enquanto Adriano as entretinha. Falavam

uma mistura de inglês, espanhol e italiano. As duas argentinas mexiam-se com naturalidade, como se conhecessem aquele restau-rante desde sempre.

É melhor aquela gira gordinha ou a feiinha com um rabo de sonho?, perguntava-se Marco enquanto pegava no gelo. Ele e Adriano não tinham nenhuma regra, sabiam que as raparigas quase sempre já tinham decidido. São sempre as mulheres a decidir.

De facto, uns minutos depois, uma das duas aproximou-se do balcão: aqueles eram os pares. A ele tinha-lhe calhado a feinha com o rabo de sonho, Celeste.

— Há quanto tempo vives em Londres?— A primeira vez que cá vim tinha menos de vinte anos, ia e

vinha. Vivo aqui há cerca de dez anos. Os meus avós eram italianos.— De onde?— Pádua.

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Enquanto falavam, Marco deitou o gelo no batedor, cinco déci‑mos de tequilha, dois décimos de sumo de lima e três décimos de Cointreau. Pegou em quatro copos do congelador, passou uma fatia de limão sobre a borda dos copos e depois mergulhou‑os em sal.

Celeste mirava ‑o com um olhar profundo e direto. Gostava das suas mãos, do modo como as mexia.

Uns segundos depois, Marco encheu os quatro copos e, quando chegou ao pé dos outros, fez vibrar os copos no ar.

Outro brinde.— Viva Maradona! — gritou Adriano.Marco preparou uma segunda volta e os dois casais começaram

a acomodar‑se num canto do restaurante, seguindo um ritual que as argentinas iam aceitando.

Normalmente Marco ia para o fundo da sala onda havia uma mesa grande com uma bancada e umas almofadas. Adriano, por sua vez, arranjava como desculpa mostrar a cozinha.

Celeste tinha vestido uma camisa cor‑de‑rosa ‑velho, semitrans‑parente, abotoada até ao pescoço.

Marco fitava ‑a nos olhos, escuros e profundos, e, sem dizer nada, começou a abrir os botões de cima para baixo. Sem pressas, sem incertezas, tirou a camisa da saia. Àquele ponto, começou a olhar para os seus seios, pequenos, e agarrou‑os com as mãos. Apertou‑‑lhe os mamilos.

Em poucos segundos, Celeste estava deitada na mesa do restau‑rante. Marco enfiou‑lhe as mãos por baixo da saia e tirou‑lhe as cuecas. Começaram a foder. Da cozinha chegavam barulhos de outro prazer.

No canto da mesa, perto da extremidade, Celeste tinha deixado o segundo copo de margarita. A cada movimento da mesa o copo mexia‑se e Marco pensou que daí a nada cairia ao chão e partir‑‑se‑ia.

Olhava para o copo, distraído, não sabia o que fazer, não podia parar e mudá‑lo de lugar, iria parecer uma velha dona de casa repri‑mida. A ideia dava‑lhe vontade de rir, mas conteve‑se.

Tentou abrandar a intensidade e a força dos movimentos, mas era inútil. O copo tinha chegado à beira da mesa, pronto para o salto.

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Estás parvo ou quê? O que é que o copo te interessa? Olha como é boa a miúda, disse a si próprio. Decidiu não pensar mais nisso e con‑centrar‑se na rapariga.

Fechou os olhos e começou a empurrar com mais violência até que o barulho do copo a estilhaçar‑se em mil pedaços o obrigou a abri‑los. Que se lixe, disse para si.

À parte aquele pequeno inconveniente, estava a divertir‑se. Ce‑leste, que ele pensava que se chamava Lupe, tinha sido uma foda divertida. O modo como olhava para ele, o que dizia, como se mexia, era envolvente.

No passado, acontecera algumas raparigas darem a entender que era possível fazerem uma troca. Será que esta é a noite para um switch?

Excitou‑se com a ideia de foder logo a outra. Durante aquele pensamento, o telemóvel de Marco começou a tocar.

Àquela hora só podia ser a sua amiga Jane a pedir‑lhe para passar por casa dela quando saísse dali.

O telemóvel estava numa cadeira ali ao pé e Marco decidiu não responder. Uns segundos depois, tocou novamente. Aquela insis‑tência revelava algo insólito, uma emergência ou um amigo bêbedo que precisava de ajuda.

Conseguiu deslocar‑se um pouco, o suficiente para ver o nome no ecrã. Ficou surpreendido, era o seu pai. Quase nunca lhe telefo‑nava. Marco nem sequer se lembrava de quando fora a última vez.

Era sempre ele a telefonar, umas duas vezes por mês, ou até menos.

O telemóvel continuava a tocar e a insistência anulava qualquer dúvida: tinha acontecido qualquer coisa grave.

A concentração e o prazer desvaneceram‑se.Como tinha preservativo, pensou em fingir um orgasmo, mas

uma espécie de orgulho ancestral masculino impunha‑lhe que aguen tasse até pelo menos o orgasmo dela.

— Onde é que vais? Não pares, não agora. Volta aqui — disse Celeste. Estava furiosa, estava‑se quase a vir.

Marco lamentava ter interrompido tudo, pois a vaidade sexual era uma coisa importante para ele.

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Ligou para o pai, segurando o telefone entre o ombro e a cabeça enquanto tentava enfiar as calças. Ao segundo toque o pai res‑pondeu.

— Pai, o que é que se passa?Ouviam‑se barulhos estranhos e suspiros.— Pai... pai, estás a ouvir‑me? O que é que se passa... pai? Estás

bem?Segundos depois, o pai respondeu:— Marco, Marco... finalmente encontrei‑te.

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