kurt vonnegut jr

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KURT VONNEGUT JR. - "Revolução no Futuro" (Player's Piano) Kurt Vonnegut Jr. costuma ser classificado como um escritor de ficção científica, coisa que pode contribuir para que alguns o vejam com um preconceituoso desprezo por fazer parte desse "gênero menor" dentro da literatura. Gente como Philip K. Dick (Blade Runner), Ray Bradbury (Farenheit 451) e Stanislaw Lem (Solaris) já mostraram antes que a ficção científica pode atingir grandes profundidades de pensamento, muito além dos enredos fantásticos criados unicamente com fins entretivos, mas há ainda muitos que insistem em não levar a sério esse gênero boboca e vulgar que - é o que se diz - só sabe pensar em aliens verdinhos com armas lases digladiando contra os humanos em enredos absurdos... Vonnegut, de fato, tem o costume de povoar seus livros com entidades ou circunstâncias objetivamente absurdas, incluindo alienígenas esquisitões e naves espaciais (no Matadouro Número 5, por exemplo) e mega-corporações monopolistas que controlam como um Deus toda uma sociedade (a RAMJAC de Um Pássaro na Gaiola...), mas no fundo sua literatura é profundamente política. A imaginação de sociedades imaginárias de um futuro distante ou a inclusão de fábulas com aliens é somente um meio para o cara expressar sua opinião e sua revolta políticas. No Matadouro Número Cinco, por exemplo, Kurt criou uma novela desencanada e bizarra onde, por detrás do enredo propriamente sci-fi, procurava descrever o ataque aliado à cidade de Dresden, Alemanha, na Segunda Guerra Mundial, e as sequelas psíquicas causadas na mente de um dos sobreviventes. Vonnegut, aliás, estava preso pelos alemães na cidade e presenciou o ataque, tendo sido um dos que sobreviveram ao massacre que tomou 135.000 vidas (foi pior que Hiroshima...). Em Player's Piano, seu primeiro livro e o meu predileto entre todos dele que já li, Vonnegut cria uma monumental distopia futurística onde o homem comum, num mundo maquinizado ao extremo, está reduzido a uma artigo supérfluo. Acho que essa obra é bastante subestimada: pra mim, é um romance à altura de

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Page 1: Kurt Vonnegut Jr

KURT VONNEGUT JR. -

"Revolução no Futuro"

(Player's Piano)

Kurt Vonnegut Jr. costuma ser classificado como um escritor de ficção científica, coisa que pode contribuir para que alguns o vejam com um preconceituoso desprezo por fazer parte desse "gênero menor" dentro da literatura. Gente como Philip K. Dick (Blade Runner), Ray Bradbury (Farenheit 451) e Stanislaw Lem (Solaris) já mostraram antes que a ficção científica pode atingir grandes profundidades de pensamento, muito além dos enredos fantásticos criados unicamente com fins entretivos, mas há ainda muitos que insistem em não levar a sério esse gênero boboca e vulgar que - é o que se diz - só sabe pensar em aliens verdinhos com armas lases digladiando contra os humanos em enredos absurdos... Vonnegut, de fato, tem o costume de povoar seus livros com entidades ou circunstâncias objetivamente absurdas, incluindo alienígenas esquisitões e naves espaciais (no Matadouro Número 5, por exemplo) e mega-corporações monopolistas que controlam como um Deus toda uma sociedade (a RAMJAC de Um Pássaro na Gaiola...), mas no fundo sua literatura é profundamente política. A imaginação de sociedades imaginárias de um futuro distante ou a inclusão de fábulas com aliens é somente um meio para o cara expressar sua opinião e sua revolta políticas. No Matadouro Número Cinco, por exemplo, Kurt criou uma novela desencanada e bizarra onde, por detrás do enredo propriamente sci-fi, procurava descrever o ataque aliado à cidade de Dresden, Alemanha, na Segunda Guerra Mundial, e as sequelas psíquicas causadas na mente de um dos sobreviventes. Vonnegut, aliás, estava preso pelos alemães na cidade e presenciou o ataque, tendo sido um dos que sobreviveram ao massacre que tomou 135.000 vidas (foi pior que Hiroshima...).

Em Player's Piano, seu primeiro livro e o meu predileto entre todos dele que já li, Vonnegut cria uma monumental distopia futurística onde o homem comum, num mundo maquinizado ao extremo, está reduzido a uma artigo supérfluo. Acho que essa obra é bastante subestimada: pra mim, é um romance à altura de um "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, ou de um "1984", de George Orwell.

Player's Piano (também publicado com o título Utopia nº 14) é uma distopia: uma sociedade hiper-tecnologizada e industrializada, onde máquinas inteligentes realizam praticamente todo o trabalho produtivo, e a população em geral foi reduzida a um artigo inútil. Após duas revoluções industriais (a primeira tornando desnecessário o trabalho manual/muscular, a segunda tornando prescindível o pensamento de rotina), os mega computadores assumem as principais funções sociais e cuidam de pensar (muito mais eficazmente, para alguns) pelos homens. Vonnegut focaliza os acontecimentos do romance em Ilium, Nova York, futuro não muito distante. A cidade está dividida em dois reinos quase incomunicáveis: de um lado, a elite de dirigentes e engenheiros, de alto Q.I., reduzidos a meros vigilantes e reparadores de máquinas; do outro lado fica Homestead, onde vivem os homens comuns, agora condenados a escolher como ocupação ou o Exército ou os Grupos de Saneamento e Reparação.

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A elite dirigente, satisfeitíssima com o paraíso de eficiência e produtividade que o progresso possibilitou, vê com olhos lisonjeiros o mundo maquinizado. Os empregados humanos ficavam doentes, tiravam férias, não trabalhavam nos fins-de-semana, armavam greves, tinham problemas familiares, animosidades com colegas, ódios secretos contra a chefia. Já as máquinas suportam sem um pio sua escravidão, trabalham mais e melhor, desperdiçam menos, são mais eficazes e seus produtos são muito melhores e mais baratos. Por tudo isso, os dirigentes gabam-se de ter aumentado o padrão de vida do homem médio imensamente.

No entanto, do outro lado do rio Iliquois, em Homestead, o homem comum não está muito satisfeito com a situação. As válvulas, as máquinas e os computadores aumentaram em ritmo impressionante, mas proporcionalmente aumentava também o consumo de drogas, o alcoolismo, os divórcios, a delinquência juvenil, a taxa de suicídios. Devido à invasão das máquinas, praticamente todos os homens haviam perdido seus empregos anteriores. Médicos? Desnecessários: as máquinas apalpam, analisam, diagnosticam e sugerem a melhor opção possível de tratamento. Advogados? Totalmente supérfluos: há os infalíveis detectores de mentiras, e na memória dos computadores há o registro minucioso de toda a vida de qualquer pessoa; a máquina analisa o passado do suspeito, testa sua sinceridade e emite um juízo imparcial, desinteressado e justo. Sociólogos e economistas? Pra quê precisamos deles, se o mega-computador IPECAC é capaz de analisar muito melhor o andamento da sociedade e sugerir a melhor diretriz econômica? Comerciantes? Que tolice! Temos máquinas automáticas onde você deposita o dinheiro e retira o produto que quiser, e logo logo o progresso fará com que as máquinas sejam agentes de marketing de persuasão inigualável...

As pessoas perdem seus empregos, e isso acaba se refletindo numa perda da noção de seus próprios valores como indivíduos. É através de seu trabalho que um homem adquire a noção de estar contribuindo de alguma maneira para um objetivo maior. Compra com seu suor a consciência tranquila e o sentimento convicto de possuir uma função (por minúscula que seja) no universo. Sem emprego, perde sua auto-estima, e é confrontado dolorosamente pela certeza de sua própria inutilidade. Um homem, antes empregado, torna-se um empecilho social, um ônus público. Se fossem perguntar para IPECAC pra que servem as pessoas, como sugere o turista de uma cultura distante no romance, o computador certamente diria: "Não servem pra nada". E é isso que o homem comum descobre dentro de si como uma angústia bastante moderna.

Os dirigentes insistem em dizer que a vida agora é melhor, que o homem comum tem agora aparelhos de televisão, lava-roupas supersônica, fogão a radar, automóvel moderno, entre outra série de eletrodomésticos tornados populares. E, além disso, ganharam o ócio. Sim, mas o que farão as pessoas com seu tempo livre? "Viver!", grita apologeticamente um dos propagandistas do Sistema. Pelo contrário, as pessoas gastam estupidamente seu tempo em frente da televisão, machucando-se pelo tédio, e rezando para readiquirem um emprego que lhes traria de volta a consciência de servirem para algo. Quem disse que o que as massas desejam de um governo são férias ininterruptas? É essa a sociedade ideal? Vonnegut parece dizer que não: as pessoas precisam ter o sentimento de participação, precisam achar lugar para desenvolverem seus heroísmos, precisam conquistar a dignidade aos seus próprios olhos. O ócio é um terror absoluto para a maioria dos homens, que só pelo trabalho conquistam a consciência de terem algum valor.

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Paul Proteus, o personagem principal, é filho de um dos mais poderosos homens de Ilium e tem uma posição bastante privilegiada no status quo. É um empregado exemplar do sistema, mas que será influenciado por sua amizade com Finnerty, um rebelde revolucionário, e vai se transformar lentamente num adversário não-declarado do poder. Procura só uma ocasião adequada para "mandar tudo ao inferno" e voltar à vida campestre, longe das máquinas e dos computadores, onde sonha encontrar os prazeres simples do camponês em comunhão com a natureza.

Vonnegut, como ótimo escritor e artista que é, não iria se render à fórmula dos escritores medíocres, que fariam de Proteus um grande herói, um rebelde que vence todas as barreiras e alcança a felicidade, o profeta que salvará a humanidade de sua condição difícil. Vonnegut não está interessado em consolos fáceis e finais felizes: em última análise, Paul Proteus é totalmente esmagado pelo poder contra o qual se volta, e a Revolução é um completo fracasso. Seria medíocre fazer a revolução se desenrolar no mundo imaginário do romance, só para entregar ao público emoções baratas e um otimismo ilusório. Vonnegut questiona a própria possibilidade real de uma revolução como imaginada por Proteus, isto é, uma revolução que fosse retroativa no campo da tecnologia. É como se perguntasse: seria realmente possível retornar o mundo ao estado "primitivo" e desmaquinizado? E, além disso, será isso desejável?

A resposta que resplandece após o fim do romance parece ser: não, não é possível retornar uma sociedade ao estado tecnológico anterior. O motor da História segue em frente, sempre em frente, sem volta. Seria o mesmo que querer que os Estados Unidos da América retornasse ao estado tecnológico do começo dos anos 80, quando a World Wide Web como a conhecemos não existia. Agora, 25 anos depois, com dezenas de milhões de norte-americanos com um contato direto com essa tecnologia, não é possível esse retorno na história. A Revolução fracassada no livro de Vonnegut faz algumas máquinas em pedaços, pensando estar fazendo um bem ao homem-comum. Mas logo vem a desilusão: os homens comuns coletam as peças quebradas a fim de construir novas máquinas. Estão culturalmente programados a agir no mundo com as máquinas, e não conseguiriam (nem desejam) voltar ao estado "campestre".

Vê-se já quão útil pode ser essa obra de Vonnegut para os problemas de nosso tempo. Mas certamente ele não está só na meditação sobre isso. Alguns exemplos de outras pessoas pensando o problema: Saramago, emA Caverna, enfocou tema similar: a tecnologização tirando o emprego do homem comum, este homem comum tentando se adequar aos modos de vida do Centro tecnológico, e finalmente recusando-o e voltando para o idílio campestre. Kubrick em 2001 também focaliza dois astronautas tiranizados pela inteligência artificial do mega-computador HAL, o qual realiza todas as funções principais da aeronave, sendo que os humanos foram reduzidos a meros funcionários de manutenção e vigilância. O próprio Inteligência Artificial, de Spielberg, baseado em Philip K. Dick, coloca os computadores inteligentes fazendo o papel de filho perfeito: as máquinas como substitutos afetivos dos humanos imperfeitos e frágeis. Por cima de tudo, no mundo mainstream, é inevitável deixar de falar em Matrix, onde a humanidade foi subjugada quase completamente pelas máquinas, que mantêm a imensa maioria dos humanos com a mente presa a uma simulação computacional...

Page 4: Kurt Vonnegut Jr

Cada vez mais, a arte moderna tende a enfocar o combate homem x máquina como um dos dilemas fundamentais do nosso tempo. O Player's Piano de Vonnegut continua, além de uma diversão formidável e uma obra de arte coesa, uma leitura fundamental e bastante prolífica para pensar esses dilemas.

Eduardo Carli de Moraes

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