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Entrevista

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Karl-Otto Apel: a raizcomum entre ética elinguagem

JESUS DE PAULA Assis

Ofilósofo alemão Karl-Otto Apel esteve no Brasil para uma sériede conferências — especialmente no Departamento de Filosofiada Universidade de São Paulo —, durante o mês de outubro de

1990. Foi sua primeira viagem intelectual ao Brasil. Na primeira, visitouapenas as cataratas de Iguaçu. Ligado à Escola de Frankfurt é, ao lado deJürgen Habermas, seu maior expoente em atividade.

Apel disse que, ainda em 1990, deveria tornar-se Professor Emé-rito pela Universidade de Frankfurt. Embora não fosse mais obrigado adar aulas, pretendia continuar suas atividades docentes e de pesquisa.Definiu sua área de estudo como "semiótica pragmática transcenden-tal" . Contra o relativismo que prevalece na filosofia que se estuda hoje,Apel levanta questões sobre valores transcendentes que possibilitam aprópria experiência humana e que não podem — ao contrário do quedefendem relativistas na linha do segundo Wittgenstein — estar intei-ramente sujeitos a condições locais e históricas.

Apel nos recebeu no hotel em que esteve hospedado, em SãoPaulo. Parte da entrevista que segue foi publicada no suplemento "Le-tras" , da Folha de S. Paulo, em 10 de novembro de 1990.

Jesus de Paula Assis — Qual foi o assunto de suas conferências noBrasil?

Apel — Apresentei ao publico duas opções: ética ou semióticatranscendental como filosofia primeira (minha área específica de traba-lho). A escolha recaiu sobre a última. O título completo das conferênciasfoi Semiótica transcendental e os paradigmas da filosofia.

f PA — O sr. trabalha com metodologia das ciências sociais.

Apel — E isso.

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JPA — Gostaria de começar com uma definição de sociologia dadapor Max Weber: "É a ciência que se ocupa da compreensão inter-pretativa da ação social e, ligado a isso, com a explicação causai de seucurso e conseqüências ". Essa definição coloca dois métodos, o causai —que é distintivo das ciências naturais — e o interpretativo — que é ca-racterístico das ciências humanas — lado a lado, sem deixar claro comoambos se articulariam. O sr. poderia falar um pouco dessa tensão me-todológica?

Apel — Toda minha vida insisti na diferença metodológica entreciências naturais e humanidades. Escrevi muito sobre o assunto, e mes-mo um livro sobre a controvérsia explicação/compreensão. No livro,traço toda a história desde seu início, no século passado na Alemanha,até hoje, depois de Wittgenstein. O assunto se tornou muito complexo eé difícil sumariar a questão toda. Hoje, a questão já não é apenas a dis-tinção entre explicação e compreensão, tal como foi introduzida porDroysen e Dilthey. Max Weber recebeu essa tradição, mas insistiu naimportância para a sociologia dos métodos de explicação como métodosde controle, o que torna a coisa toda muito complicada. O principalponto que devemos introduzir aqui é que não se tem apenas um métodonas ciências sociais. Temos, isto sim, diferentes tipos de ciências sociais.Escrevi sobre esses diferentes tipos, que variam conforme o interessecognitivo que se tenha. Por exemplo, posso falar de uma distinção muitoforte: é muito diferente a situação na qual estou interessado em conse-guir conhecimento preditivo — para tentar controlar o comportamentohumano através de explicações nomológicas, o que pode ser usado nocampo da tecnologia social — daquela em que me interesso primaria-mente em reconstrução hermenêutica. Cito como exemplo a história daciência. História da ciência não tem nada a ver com explicação nomoló-gica. Seria absurdo perguntar coisas como "por quê?" — em termos deleis e condições antecedentes — para saber o que teria de acontecer paraque Newton introduzisse seus conceitos fundamentais sobre espaço etempo absolutos. Se eu colocar aqui uma questão do tipo "por quê?"(" por que ele fez isso?" — eu poderia dizer: " por que Mozart compôssuas óperas?"), tenho em mente coisas bem diferentes do que no casoem que procuro explicações nomológicas nas quais pergunto "porquê?" em termos de "que causas?", em termos de condições anteceden-tes e condições nomológicas que tiveram de valer para que o evento emquestão ocorresse. Nesse sentido, nunca posso formular tal pergunta nashumanidades. Acho estranho, ou até irônico, que precisamente a históriada ciência, por exemplo, história das ciências exatas, não possa ser umaciência. É parte das humanidades, e deve responder a questões que peçampor razões, e não por causas. Deve, portanto, apoiar-se em compreensão,

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interpretação e nos métodos das ciencias humanas.

JPA — O sr., portanto, discorda da visão de, por exemplo, Hem-pel, colocada em A função das leis gerais em história, de que, no fim decontas, a história não é (ou não deveria ser) diferente metodológica-mente das ciências humanas?

Apel — Sempre discordei de Hempel. Vou mais longe. No pontoatual das discussões, o esquema de explicação de Hempel/Oppenheim,ou o esquema de Popper, não funciona sequer nas próprias ciências na-turais. E muito importante sublinhar, antes de entrar em detalhes téc-nicos relativos às ciências humanas: esse esquema de explicação não érelevante nem mesmo nas ciências naturais. O modelo — que nos anos30 era compartilhado por Popper, Hempel e seus seguidores — dizia quea explicação podia ser entendida como uma espécie de dedução (deduçãodo explanandum — o que deve ser explicado — a partir do explanans— as condições que explicam), sendo o explanam,, constituído de leis econdições antecedentes. Assim, a estrutura lógica da explicação seria amesma da predição. Acho que isso é completamente superficial e falso.Acho que Peirce sempre teve uma definição muito melhor de explicaçãonas ciências naturais. Para ele, explicação nas ciências naturais não eradedução do explanandum a partir do explanans, mas sim o achar de umexplanans a partir do qual fosse possível deduzir o explanandum, no casode uma explicação causai. Fica claro que, na explicação causai, apenasparte da explicação tem estrutura dedutiva. Mas a parte mais importanteé encontrar o explanans a partir do qual se possa deduzir o explanan-dum. Fazer isso requer uma inferência sintética, o que Peirce chamavainferência abdutiva. E essa é a parte realmente criativa, inovadora, ondeos cientistas têm de criar um tipo novo de conhecimento sintético. Nãoé apenas indução, mas também abdução. Abdução é o passo mais im-portante no desenvolvimento do conhecimento. Por isso, é importantediferenciar entre o modelo de Hempel/Oppenheim (e o primeiro mo-delo de Popper) do modelo de Peirce para explicação nas ciências natu-rais, porque isso mostra que a estrutura da explicação não é exatamentea mesma da predição. Você conhece o exemplo de Hempel sobre o carro(o radiador de um automóvel estoura numa noite fria; o evento pode serexplicado em termos de leis físicas conhecidas — por exemplo, " a águaaumenta de volume quando congela" — e de condições antecedentes dotipo "o radiador estava cheio e tampado", "ontem fez muito frio",etc.). Esse famoso exemplo é completamente equivocado. Ele pressupõea principal característica da explicação, ou seja, que você já tem o expla-nans de onde pode deduzir o explanandum, da mesma forma que al-guém é capaz de predizer alguma coisa. Mas esse é o caso somente quan-

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do não há ciência inovadora, quando você tem apenas uma ocorrência emmãos e a deduz a partir do que já é sabido. Na ciência real, o problemaé bem outro. O problema de achar uma explicação é o de achar um novoexplanam, encontrar novas hipóteses de leis, fazer novas hipótesesnomológicas. Não é o caso de apenas achar novas condições anteceden-tes. Existe um passo abdutivo, uma conquista sintética. Se se levar issoem consideração — e eu sou um peirceano, não só aí, mas também emoutros aspectos —, então a questão se torna: " Quais as dificuldades parase encontrar o que equivalha a explicações nas ciências humanas e nasciências naturais?". Agora, entro com minhas idéias — e de Habermas— acerca de diferenças de interesse cognitivo. Primeiro, coloco que exis-te uma diferença de interesse cognitivo entre as ciências naturais típicas(que estão interessadas em explicação causai, nomológica ou estatística)e as ciências hermenêuticas, as humanidades. Mas, de novo, eu diria que,dentro do espectro das ciências sociais, existem questões muito diferen-tes, de acordo com interesses cognitivos muito diferentes. De novo,existe um tipo de ciência social que está muito próximo das ciênciasnaturais e da tecnologia. Por exemplo, as ciências do comportamento,onde se quer, em muitos casos, explicar o comportamento de consumi-dores, ou de votantes, e se tenta tratar os seres humanos como porçõesda natureza. Isso nunca é realmente possível, mas se tenta encontrar qualseria o comportamento médio de uma amostra e que predições seriapossível fazer. E claro que existe um grande interesse em tecnologiasocial no sentido de se ter um certo tipo de controle sobre seres huma-nos, como se eles fossem objetos das ciências naturais. Mas isso não épossível completamente. Sabemos que existem coisas como a autocon-tradição. Isso nunca acontece com porções da natureza. Mas, no caso dasciências sociais, os objetos são parceiros de comunicação e se eles têmconhecimento acerca de o que o cientista sabe sobre eles, então eles in-tervém com suas próprias decisões e podem produzir autocontradições,coisa que nunca aconteceria em ciências puramente naturais. É somenteesse tipo de ciência social que está próximo das ciências naturais, e podeser estilizado com um método estatístico nomológico, etc. E tem trazidoalguns resultados. Mas é muito diferente das humanidades típicas, ciên-cias puramente hermenêuticas, como por exemplo história da ciência ouhistória da cultura como um todo. Aqui, existem questões de tipo radi-calmente diferente. Não pergunto, quando quero saber " como isso foiacontecer?" por causas e leis. Isso seria absurdo. Pergunto "por querazões eles fizeram isso?". Razões que podem ser boas ou ruins. Assim,graus entram em cena. Por exemplo, é muito irônico que pessoas comoKarl Popper, que antes eram a favor de ciência social neutra em termosde valores (como o era Max Weber), tenham, depois, chegado a um

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ponto de vista completamente distinto. Na controvérsia com ThomasKuhn, e temendo o perigo do relativismo, Popper tornou-se atento àproblemática da história da ciência. Notou que ela fazia parte das hu-manidades e, assim, não era neutra em termos de valores. Para recons-truir a história da ciência era preciso recorrer a conceitos como boa e máciência. O discípulo de Popper, Imre Lakatos, postulou a distinção entrehistória interna e externa da ciência. Primeiro, era preciso reconstruir ahistória da ciência do ponto de vista interno. Depois, num outro passo,seria possível procurar por uma reconstrução externa, mas apenas quan-do a reconstrução interna já não fosse possível. Você tem aí uma distin-ção bem evidente, que deixa clara a parte hermenêutica, a qual não éneutra, tem valores e pretende entender e avaliar a história da boa ciên-cia. Essa história é um processo no qual existe progresso. A transiçãopara a reconstrução externa só acontece se necessário. Lakatos formulouseu princípio assim: "reconstrução interna tanto quanto possível". Eisso é precisamente o princípio de Gadamer de " antecipação da perfei-ção" na interpretação hermenêutica. Esse é também o princípio de ca-ridade em Quine e Hanson. E um princípio hermenêutico o de que de-vemos tentar compreender e avaliar de forma positiva tanto quanto forpossível. Só se isso não for possível é que fazemos a transição.

JPA — Nessa fronteira, como (e quem) decide quando é hora detentar a transição?

Apel — Primeiro é preciso tentar uma compreensão hermenêutica.Primeiro avaliar positivamente tanto quanto possível. Por exemplo, seem nossa conversa você diz algo novo, primeiro devo tentar entendertanto quanto possível, não apenas o que você quer dizer, mas tambémdescobrir a plausibilidade do que você diz. Devo aprender. Mas, se vejoque há inconsistências, chego ao momento em que devo tentar explicarvia causas externas " o porquê desse sujeito estranho me dizer essas coi-sas" . O limite é atingido quando me sinto autorizado a começar a buscaruma explicação externa (penso "talvez ele tenha motivos ou interessesocultos", etc.). Essa é exatamente a atitude dos historiadores da ciência.E acho que Popper e especialmente Lakatos estão certos quando se co-locam contra os que tentam fazer história da ciência apenas através deexplicações externas (como os componentes da Escola de Edimburgo).Pois eles não podem sequer saber o que pertence e o que não pertenceà ciência. Só fazendo um primeiro passo seletivo, você poderá ter umaidéia sobre o que seja boa ciência. Daí, você pode entender a história daciência como uma peça de progresso no sentido da boa ciência. E só numsegundo passo você pode passar para causas externas. Eu não estou di-zendo que não haja causas externas. Se você toma a genética ou a pés-

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quisa farmacêutica atual, existem interesses econômicos em jogo, e oscientistas certamente estão motivados por isso, ou seja, existe motivaçãoexterna, existe ambição pessoal. Não nego isso, mas digo que, em boahistória da ciência, devemos primeiro ter um conceito positivo de boaciência e de progresso em ciência e devemos tentar entender os processosda história desse ponto de vista. Só se isso chegar a um limite, teremosrazões para desistir dessa empresa hermenêutica, e estaremos intituladosa tentar uma explicação externa. Esse é mais ou menos o paradigma paraa relação entre métodos hermenêuticos e métodos explanatórios nasciências humanas. Mas a coisa é ainda mais complexa. Mesmo quandoestou autorizado a fazer a transição da hermenêutica para a explicaçãoexterna, ainda assim estou longe da explicação nas ciências naturais.

JPA — O sr. fala de se ter uma idéia de o que seja boa ciência paracompreender a história da ciência. Mas, depois de Thomas Kuhn, osepistemologistas dizem que o próprio conceito de o que seja boa ciênciamuda. Embora o modelo de Kuhn seja criticado, ele pelo menos mostraque existem ocasiões bem evidentes de descontinuidade (as revoluções),em que a idéia de boa ciência muda completamente.

Apel — É verdade. Na primeira edição de seu livro A estrutura, dasrevoluções científicas (em 1962), ele falava de incomensurabilidade entrediferentes paradigmas. As idéias de progresso e de boa ciência foramrelativizadas a fases na história da ciência. Nunca me satisfiz com isso.Não se pode negar que existam coisas como ciência normal, onde nemtudo está em questão e que é exatamente isso que propicia progresso.Isso é bom Wittgenstein. Não podemos colocar tudo em questão todo otempo, questionar e duvidar de tudo. Essa idéia supera Popper. Para terprogresso, é preciso pressupor algum tipo de certeza paradigmática quenão é posta em dúvida. Kuhn detecta isso muito bem, num sentido bemwittgensteiniano. Mas ele vai longe demais — ou, pelo menos, ia —quando afirma que a transição de um paradigma para outro é apenasconversão (no sentido de conversão religiosa), que não existe transiçãoracional, que não existe idéia de progresso que perpasse todas as fases daciência. Por exemplo, eu diria que Kuhn não estava errado, mas umpouco equivocado, quando dizia que a transição entre física aristotélica efísica moderna foi uma transição de paradigma como a transição entreflogisto e a teoria de Lavoisier. Porque entre Aristóteles e Galileu (ouNewton) houve uma mudança realmente muito profunda, que é muitomais que uma transição de paradigma dentro da física moderna. Existiulá uma transição de interesse cognitivo. A física aristotélica tinha inte-resses teleológicos e não apenas de controle isento de valores sobre osfatos, como acontece na ciência moderna. Não era física a serviço do

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controle do mundo. Na ciência moderna, esse é um pressuposto prag-mático transcendental característico, e muito diferente de Aristóteles. Eincorreto chamar tudo isso de transição de paradigmas. A transição apartir de Aristóteles é uma transição de interesse cognitivo. Trata-se deoutro tipo de ciência. Dentro da ciência moderna, existem muitas pressu-posições que permanecem constantes. Nunca as mudamos. Desde Gali-leu, estamos convencidos de que deve haver, por exemplo, experimentosreproduzíveis, que possam ser repetidos por cientistas quaisquer. Issonão mudou até hoje. Independentemente de mudanças de paradigma,existem valores como a repetibilidade, conhecimento isento de valoressobre os fatos, validade intersubjetiva, os quais permitem progressoconstante que se expressa mesmo no poder tecnológico, que permite aseres humanos dominar o ambiente. Isso tem sempre aumentado.

JPA — Hoje em dia, idéias como reprodutibilidade são apenascritérios de regulação. Numa época de big-science, como na física de altasenergias, ninguém realmente reproduz experimentos. Mesmo o contatoentre teoria e observação acaba sendo posto de lado em prol de simula-ções em computador nas quais, na verdade, teorias são testadas contrateorias e não contra a experiência. Não precisamos, em vista disso, denovos critérios metodológicos?

Apel — E um problema novo e sério. Mas eu hesito muito em tirara partir disso conclusões acerca de novas metodologias. Não é possívelrealmente repetir todo experimento. Temos de acreditar nos outros cien-tistas. Mas não acho que isso seja fundamental em termos do interessecognitivo da ciência. Hoje, o interesse cognitivo é até mais forte do queera: controle tecnológico do meio ambiente.

JPA — Esse é o único interesse cognitivo das ciências naturais?

Apel — Começo com uma exceção. Você pode ter interesse cog-nitivo em reconstruir o processo de evolução biológica, ou mesmo evo-lução pré-biológica, da matéria. Essas teorias existem. Você tem entãointeresse em reconstruir a pré-história da história humana, e pode fazerciência natural desse ponto de vista. Em detalhe, isso não é diferente dosmétodos normais de explicação causai. Mas isso pode ser incorporado aum novo quadro de interesses, que é diferente do interesse de controle.

JPA — Isso vale para evolução cosmológica?

Apel — Primariamente biológica. Você pode, também, ter inte-resses cosmológicos, mas o interesse na reconstrução da pré-história dahistória é dominante. Esse interesse em cosmologia foi mesmo exercidopor Peirce. Mas o ponto de maior importância é a reconstrução da evo-

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lução da vida como pré-história da historia humana. Nisso se encaixama etologia de Konrad Lorenz e a sociobiologia. Isso pode ser consideradoum interesse similar ao que move a reconstrução de nossa história. Nãose quer, aqui, ter controle sobre o comportamento, de acordo com leis,mas sim compreender como a história pode ter ocorrido, como possamter evoluído os animais superiores e, destes, nós mesmos. Aqui entram

em jogo interesses hermenêuticos. Se você olhar para a etologia e para asociobiologia, verá que essas disciplinas usam várias categorias herme-nêuticas quando discutem comportamento, quando falam de animais"cuidando" de sua ninhada. Isso tudo é concebido em analogia com ovocabulário sociológico. Os sociobiólogos chegam a usar — heuristica-mente — conceitos de estratégia tirados da teoria dos jogos. Eles têmaplicado isso com muito sucesso ao comportamento animai. É claro queeles não defendem que os animais tenham interesses econômicos comoos seres humanos. Não dizem que cada animal age estrategicamente. Masdizem que o grupo age, o que seria favorecido pela pressão evolutiva. Aevolução teria favorecido àqueles animais que pudessem maximizar aproliferação de seus genes e de genes correlatos. Esse tipo de heurísticaé usado por Dawking (O gene egoísta), por exemplo, o que tem inspi-ração nas ciências humanas. Isso responde à sua pergunta acerca dos dife-rentes interesses cognitivos nas ciências naturais. Em todo caso, eu diria

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que, deixando de lado a evolução, o interesse-padrão e de dominação ede conhecimento tecnológico.

JPA — E esse interesse (mais próximo das ciências humanas) é oque mais interessa ao leigo hoje.

Apel — Isso tem um apelo muito grande. Mas você deve ver quetoda nossa vida na sociedade industrial está baseada no controle crescen-te do ambiente. O interesse tecnológico é ainda predominante.

JPA — E quanto aos diferentes interesses nas ciências sociais? Atéagora falamos apenas de tecnologia social, que é relativamente próximado interesse das ciências naturais.

Apel — Existem dois pólos. De um lado, as ciências do compor-tamento, mais dedutivo-nomológicas, a serviço da tecnologia social e, deoutro, conhecimento através de reconstrução hermenêutica da história,como, por exemplo, na história da ciência ou da cultura em geral. Entreeles, existem muitos outros tipos. Temos também a explicação funcio-nalista. Por exemplo, a teoria dos sistemas sociais. Eu e Habermas nãoconcordamos com outros autores que falam de explicações funcionalistasde sistemas sociais como tudo o que existe (por exemplo, que mesmocomunicação ou moralidade podem apenas ser explicadas em termosfuncionais). O máximo que podemos concordar é que esse tipo de ex-plicação é muito importante e que deve ser tomado em consideração.

JPA — Essas explicações dão conta do comportamento da socie-dade, mas não dos agentes.

Apel — Existe uma velha tensão dentro das ciências sociais entreos objetivos e os efeitos das ações de pessoas individualmente e, poroutro lado, os resultados no nível dos sistemas. Por exemplo, em eco-nomia, Adam Smith já reconhecia que virtudes podiam se tornar víciosem outro nível e vice-versa. Ele falava da "mão invisível" que cuidavapara que o egoísmo dos agentes individuais resultasse no bem-estar dasociedade. Esse é o germe do reconhecimento dessa tensão entre açãoindividual e ação da sociedade. Sabemos hoje que essa é uma tensão quenão pode ser superada. Os marxistas prometiam superar isso, mos-trariam que os seres humanos poderiam se organizar de modo a fazer ahistória. Isso é uma utopia que falhou terrivelmente. E agora estamosexatamente no centro dessa tensão entre a boa vontade e as boas inten-ções dos agentes individuais (políticos, moralistas) e, por outro lado, ascomposições dentro do sistema. Esse é talvez o maior problema das teo-rias sociais hoje.

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JPA — Em vista do que ocorre no Leste europeu, o que filósofose cientistas sociais têm a oferecer para os políticos de hoje?

Apel — O que estamos presenciando representa, também, a quedadas filosofias especulativas em historia, e da noção de progresso neces-sário em historia, que veio de Hegel, de Comte e, em especial, na linhado marxismo. Isso realmente caiu. O que vimos nestes dois anos é con-siderado um triunfo do capitalismo sobre os sistemas planificados. Aidéia de planificar a sociedade, de modo que ela consiga o que precisa, demodo a que ela progrida, me parece que falhou inteiramente. Isso é oprograma terrivelmente utópico do Estado marxista ortodoxo. Os inte-lectuais deveriam se tornar reis-filósofos, colocando a si próprios acimada sociedade, como aqueles que sabem o que é necessário fazer. O que ébom torna-se aquilo que é historicamente necessário. Existe aí a pressu-posição de que existem intelectuais que podem saber o que seriam osprocessos necessários da história. Isso tudo caiu. Mas, por outro lado,não acredito que tais acontecimentos signifiquem uma vitória do capi-talismo. Isso pode ser uma ilusão. Nossos problemas apenas começam.O que temos agora é uma détente Leste/Oeste. Ótimo, mas é agora queos problemas começam e, no momento, não temos filosofia ou progra-mas que dêem conta desses problemas. Exemplos disso são os problemasde diálogo entre Primeiro e Terceiro mundos e a questão ecológica que,hoje, é uma das maiores crises que enfrentamos. Temos trabalhado mui-to nisso em Frankfurt.

JPA — O senhor se considera um componente da Escola deFrankfurt?

Apel — Não da antiga. Eu, Habermas e outros formamos umanova escola de Frankfurt. Temos desenvolvido algumas coisas novas.Mas sou cético. Estamos ainda no início. Sua questão é pertinente: o queacontece hoje? O que temos hoje? Que teorias sociológicas ou filosóficaspoderiam dar conta da situação? Sou bastante cético, embora estejamostentando. Existem alguns enfoques novos que, talvez, possam ajudar.Em muitos lugares, aqui no Brasil, falei sobre ética do discurso. Eu achoque ética do discurso é uma saída para problemas de corresponsabilidadenuma escala planetária. Isso não apenas com respeito à crise ecológica,mas também com respeito à justiça social.

JPA — Como o senhor definiria essa ética?

Apel — Primeiro devo dizer que isso se liga a meu enfoque (e deHabermas) à filosofia teórica (pura) e à filosofia da ciência. Está inti-mamente ligado à hermenêutica e às ciências sociais reconstrutivas. Ten-

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tei desenvolver o assunto, em minhas conferências, aqui, em um nívelbem elementar. A noção está ligada a um enfoque novo da filosofiatranscendental. Não pretendo recuar até, por exemplo, uma consciênciasolitária, a um solipsismo do tipo " eu penso", como o que está em Des-cartes e em Kant ou Husserl. Acho que o a priori que não podemosevitar, que é em última instância requerido, é que sempre estamos dis-cursando. Nunca penso solitariamente. Posso, é claro, pensar solitaria-mente em minha sala, mas sempre pretendo validade intersubjetiva. As-sim, a estrutura de meu pensamento é sempre a estrutura de um discursorealmente argumentativo. Desenvolvi com Habermas a noção de que,sempre que tenho pretensões de validade, tenho de seguir:

a. pretensão de sentido (compartilhamento de sentido com outros— com uma comunidade ilimitada de comunicação),

b. pretensão de sinceridade e, também,c. pretensão de direito moral.Essa é uma nova característica da ética do discurso: ela nasce do

mesmo ponto em que nasce a filosofia teórica. Pois, agora, a pressupo-sição metodológica não é mais o "eu penso", mas o "eu argumento",pois sou membro de uma comunidade real e estou, ao mesmo tempo,antecipando estruturas de uma comunidade ideal, pois devo dirigir meusargumentos a essa sociedade. Devo supor a pretensão à verdade paratodo componente dessa sociedade ideal. Quando tenho essas pressupo-sições, contrariamente às suposições de Descartes ou Kant ou Husserl,tenho também as fundações da ética. Pois não posso pensar, ter preten-sões à verdade, argumentar seriamente, sem pressupor as normas éticasfundamentais de uma sociedade ideal livre. Devo, desde o início, reco-nhecer que todos os componentes têm direitos iguais para perguntar,responder, etc. Eles são corresponsáveis comigo em qualquer questãorelevante. Todos têm de ser iguais em termos de deveres e direitos.Assim, a ética aparece logo no início quando procuramos o que é pres-suposto no estudo de teorias. Esse é o ponto principal.

JPA — Mas o método solipsista insistia em que as categorias da-quela forma encontradas eram realmente fundamentais. Seu enfoque nãolevaria a "categorias provisórias", já que discurso e comunidade mu-dam?

Apel — Esse é um ponto importante. Muitos dizem que, quandopasso do "eu penso" para o "eu argumento", abro as portas para orelativismo e o historicismo, pois me torno dependente de uma época ede uma forma de vida em particular. Wittgenstein e Richard Rorty falamdessa dependência a um consenso apenas contingente, dentro de umadada tradição. Rorty, por exemplo, diz: "sou um norte-americano e

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nunca poderei transcender essa condição. Sou completamente dependen-te disso" . O mesmo é dito por conservadores como MacIntire ("que ouqual racionalidade?", "que justiça?", etc.). Acho tudo issocompletamente equivocado. Não é porque parto do "eu argumento"que devo desistir de toda pretensão à universalidade. De um lado, reco-nheço que aprendemos de Wittgenstein, de Heidegger, de Collingwood,de Gadamer, que somos dependentes de uma dada tradição. Por exem-plo, sendo alemão, sou dependente de uma certa tradição européia depensamento. Sei disso. Mas isso é uma coisa. Outra é dizer que não soucapaz de argumentar contrafactualmente, antecipando a estrutura deuma comunidade ilimitada de comunicação. Isso não é relativizável ouhistórico. Tem características universais que todos os argumentadoresdevem reconhecer. Você pode demonstrá-lo. Se você argumenta emfavor do relativismo, então, ao mesmo tempo, está apelando para umacomunidade ideal. Quem age assim pressupõe coisas que nega, como,por exemplo, uma noção de validade universal, a existência de normasmorais universais, pelo menos quando se argumenta. Nunca vi esses filó-sofos se comportarem de outro modo. Eles mostram, por seu compor-tamento nos congressos de filosofia, que, implicitamente, seguem essasnormas universais. Podemos encontrar isso mesmo em Wittgenstein. Elesempre fala de certos hábitos, formas de vida ou jogos de linguagem, massempre se esquece de seu próprio jogo de linguagem, que lhe permitefalar de todos os outros. Não existem apenas aqueles jogos de linguagemsobre os quais ele fala, mas também o jogo de linguagem que está pres-suposto quando ele fala de todos os jogos. Só os filósofos falam com essapretensão à universalidade. E mesmo aqueles que dizem que essa preten-são é impossível. Filósofos como Rorty mostram, por seu próprio com-portamento, que estão sempre em contradição. Derrida, por exemplo,diz que não é possível compartilhar significado com outros, que existesempre um desvio. Mas, para mostrar isso, para defender essa tese, eledeve pressupor o oposto. Ele deve escrever livros e esse ato já contradiza tese defendida. Os pós-heideggerianos também dizem que tudo é de-pendente da história do ser: Tudo isso, todos esses discursos, pressu-põem exatamente o que negam. Rorty, por exemplo, diz sempre " porque não desistimos de tudo e passamos a escrever novelas?". E ele dizisso em todos os congressos de filosofia. Até agora, não vi nenhumanovela de Rorty. Essa é a moda da filosofia posterior a Nietzsche. Todosos filósofos nessa linha estão enredados nesse tipo de contradição.

JPA — Sua argumentação aponta que o relativismo tem falhasóbvias. Por que, em sua opinião, ele se tornou tão atraente na filosofiado século XX?

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Apel — É compreensível que visões sobre nossa dependência acondições históricas, culturais e locais sejam impressionantes. Esse mo-vimento é antigo. Dilthey falava disso já no século XIX, na Alemanha.Hoje, isso assumiu dimensões planetárias. Mas, em todo lugar, as pes-soas dão o passo seguinte, sem parar e refletir. E são levadas a conse-qüências erradas, que não se seguem realmente dessa reflexão sobre nossadependência a condições históricas. Falta, simplesmente, um pouco dereflexão.

JPA — Durante suas respostas o senhor usou várias vezes o termo"paradigma". Ele está sendo usado no mesmo sentido de Thomas

Kuhn (Kuhn não o usa para falar de filosofia)?

Apel — Uso quase no sentido kuhniano e também o aplico à his-tória da filosofia. Existem algumas partes do significado de " paradigma"que compartilho com ele, outras que não. Por exemplo, não compartilhodo relativismo de Kuhn, quando ele afirma que a relação entre diferentesparadigmas na história é de incomensurabilidade, de tal forma que sem-pre, após uma revolução, um novo ideal de boa ciência aparece. Ouquando ele diz, ou pelo menos dizia em sua posição inicial, que existeapenas conversão entre adeptos de paradigmas diferentes. Não concordocom isso. Pelo contrário, acredito que entre os paradigmas da filosofiaprimeira existe uma relação de progresso no nível de radicalização dareflexão. No início, tínhamos a metafísica ontológica, com uma reflexãosobre as condições de possibilidade de conhecimento verdadeiro. Entãotivemos, em Kant, por exemplo, a primazia da reflexão sobre as condi-ções de possibilidade de validade intersubjetiva do conhecimento. Hoje,temos como paradigma da filosofia a questão de como podemos argu-mentar com sentido. Pesquisa-se para tentar definir a diferença entreargumentação com e sem sentido. Assim, eu diria que a crítica do signi-ficado está hoje no posto da filosofia primeira. Eu diria que hoje nãotemos metafísica ontológica, nem epistemologia crítica no estilo kan-tiano. O que temos agora é crítica de significado. Esta é minha idéia detrês paradigmas sucessivos da filosofia primeira, que constituem umaseqüência progressiva, em termos de radicalização da reflexão. Isso nãoé apenas uma seqüência — como Kuhn afirma — entre paradigmas in-comensuráveis.

Jesus de Paula Assis é bacharel em Física pelo Instituto de Física (IF) da USP e mestre emSociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Foipofessor na Unesp, campus de Marília, entre 1987 e 1988. Depois disso, ingressou na Folhade S. Paulo, onde exerceu os cargos de editor do caderno " ciência" e de repórter especial.Atualmente é aluno de doutorado no departamento de Sociologia da FFLCH-USP.