jutorides 2011 janeiro-4

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Colégio Dinâmico – R.T37, 2693 – Setor Bueno – Goiânia – Goiás – (62) 4009-7828 – www.colegiodinamico.com.br 1 1. Quando a imprensa é uma chance para a paz fevereiro 11, 2011 Autor: Eugenio Bucci - Convidado Antes de olharmos o que se passa na Praça Tahir, no Cairo, onde o povo se aglomera para derrubar o ditador Hosni Mubarak e jornalistas de todos os países sofrem abusos e agressões, façamos uma breve escala no passado recente. Recapitulemos, em poucos parágrafos, a Guerra do Iraque, suas mentiras e a lição sutil ainda não assimilada que elas nos deixou. No dia 21 de janeiro, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair prestou seu segundo depoimento à Comissão Chilcot, que investiga a participação do Reino Unido na invasão do Iraque. Houve protestos na audiência. “Suas mentiras mataram meu filho!”, acusou Rose Gentle, mãe de um dos 179 soldados ingleses mortos no conflito. Nomeada pelo sucessor de Blair, Gordon Brown, a comissão tem a incumbência de esclarecer as verdades e as mentiras que levaram o Reino Unido à guerra e de preparar um relatório final para o Parlamento. Há muito a ser elucidado. Hoje se sabe que pelo menos uma mentira, uma gigantesca mentira, foi decisiva para que, nos Estados Unidos, o então presidente George W. Bush obtivesse o apoio do Congresso para atacar o Iraque: a acusação de que o ditador Saddam Hussein fabricava secretamente armas químicas de destruição em massa. Como ficaria claro, a acusação era falsa. As tropas de Bush e Blair viraram o Iraque de pernas para o ar, localizaram Saddam Hussein escondido num porão, barbudo e alquebrado, mas não acharam arma química nenhuma. Mas ainda há mistérios no episódio. Por exemplo: quando bancou essa informação, Bush sabia que mentia? A pergunta está em aberto. Segundo seu ex-assessor político Karl Rove, em seu livro Courage and Consequence, lançado no ano passado, o ex-presidente foi sincero. E quanto a Blair? No depoimento à Comissão Chilcot, ele diz lamentar as baixas, como a do filho de Rose Gentle, mas considera que a guerra teve razões justas. Na opinião dele, o planeta estaria pior do que está se Saddam Hussein não tivesse sido arrancado do poder. A discussão será longa. E, pelo menos até agora, um dos fatos mais relevantes da escalada da guerra vai ficando na sombra: a mentira que ajudou Bush a costurar sua base entre os parlamentares americanos, e que pesou de algum modo na decisão de Blair, foi disseminada e sustentada não apenas nos gabinetes dos políticos, mas na opinião pública. Ela foi endossada por alguns dos jornais mais influentes do mundo que, depois, reconheceriam sua falha. Se Bush e Blair erraram, grandes e respeitáveis veículos de imprensa erraram junto. Chegamos, então, ao que deveria ser a maior lição desse episódio: a verdade deixou de ser a primeira vítima da guerra; hoje, a guerra não é mais a causa, mas a consequência da verdade vitimada. Até meados do século 20 prevaleceu como verdadeira uma frase atribuída, entre outros possíveis autores, ao senador americano Hiram Johnson (1866-1945): “Quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade”. Segundo a velha máxima, um país, ao entrar em conflito armado com outro, deveria aceitar de bom grado mentir sobre o inimigo e sobre si mesmo. Ganhar a guerra seria mais importante do que dizer a verdade sobre os fatos. Hoje, quando os interesses nacionais se veem obrigatoriamente mediados por algo que, em termos apressados, poderíamos chamar de um interesse público supranacional, cujo ponto mais alto é a paz, a informação jornalística já não pode ser vista ou tratada como arma de guerra. Ela é parte da base comum para o diálogo. O valor da informação jornalística situa-se acima dos cálculos dos governos, uma vez que é pré- requisito para a convivência entre as nações. Isso aumenta, é claro, a responsabilidade do jornalismo. Hoje, quando a verdade é violentada, a primeira vítima pode ser a paz. Uma grande mentira nas páginas de um grande jornal pode render, entre outras tragédias, as 179 mortes pelas quais Tony Blair diz chorar até hoje.

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Page 1: Jutorides 2011 janeiro-4

Colégio Dinâmico – R.T37, 2693 – Setor Bueno – Goiânia – Goiás – (62) 4009-7828 – www.colegiodinamico.com.br 1

1. Quando a imprensa é uma chance para a paz

fevereiro 11, 2011

Autor: Eugenio Bucci - Convidado

Antes de olharmos o que se passa na Praça Tahir, no Cairo, onde o povo se aglomera para derrubar o ditador Hosni

Mubarak e jornalistas de todos os países sofrem abusos e agressões, façamos uma breve escala no passado recente.

Recapitulemos, em poucos parágrafos, a Guerra do Iraque, suas mentiras e a lição sutil – ainda não assimilada – que elas

nos deixou.

No dia 21 de janeiro, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair prestou seu segundo depoimento à Comissão Chilcot,

que investiga a participação do Reino Unido na invasão do Iraque. Houve protestos na audiência. “Suas mentiras mataram

meu filho!”, acusou Rose Gentle, mãe de um dos 179 soldados ingleses mortos no conflito. Nomeada pelo sucessor de

Blair, Gordon Brown, a comissão tem a incumbência de esclarecer as verdades e as mentiras que levaram o Reino Unido à

guerra e de preparar um relatório final para o Parlamento. Há muito a ser elucidado.

Hoje se sabe que pelo menos uma mentira, uma gigantesca mentira, foi decisiva para que, nos Estados Unidos, o então

presidente George W. Bush obtivesse o apoio do Congresso para atacar o Iraque: a acusação de que o ditador Saddam

Hussein fabricava secretamente armas químicas de destruição em massa. Como ficaria claro, a acusação era falsa. As

tropas de Bush e Blair viraram o Iraque de pernas para o ar, localizaram Saddam Hussein escondido num porão, barbudo e

alquebrado, mas não acharam arma química nenhuma. Mas ainda há mistérios no episódio. Por exemplo: quando bancou

essa informação, Bush sabia que mentia? A pergunta está em aberto. Segundo seu ex-assessor político Karl Rove, em seu

livro Courage and Consequence, lançado no ano passado, o ex-presidente foi sincero. E quanto a Blair? No depoimento à

Comissão Chilcot, ele diz lamentar as baixas, como a do filho de Rose Gentle, mas considera que a guerra teve razões

justas. Na opinião dele, o planeta estaria pior do que está se Saddam Hussein não tivesse sido arrancado do poder.

A discussão será longa. E, pelo menos até agora, um dos fatos mais relevantes da escalada da guerra vai ficando na

sombra: a mentira que ajudou Bush a costurar sua base entre os parlamentares americanos, e que pesou de algum modo na

decisão de Blair, foi disseminada e sustentada não apenas nos gabinetes dos políticos, mas na opinião pública. Ela foi

endossada por alguns dos jornais mais influentes do mundo – que, depois, reconheceriam sua falha. Se Bush e Blair

erraram, grandes e respeitáveis veículos de imprensa erraram junto.

Chegamos, então, ao que deveria ser a maior lição desse episódio: a verdade deixou de ser a primeira vítima da guerra;

hoje, a guerra não é mais a causa, mas a consequência da verdade vitimada. Até meados do século 20 prevaleceu como

verdadeira uma frase atribuída, entre outros possíveis autores, ao senador americano Hiram Johnson (1866-1945):

“Quando uma guerra começa, a primeira vítima é a verdade”. Segundo a velha máxima, um país, ao entrar em conflito

armado com outro, deveria aceitar de bom grado mentir sobre o inimigo e sobre si mesmo. Ganhar a guerra seria mais

importante do que dizer a verdade sobre os fatos. Hoje, quando os interesses nacionais se veem obrigatoriamente

mediados por algo que, em termos apressados, poderíamos chamar de um interesse público supranacional, cujo ponto

mais alto é a paz, a informação jornalística já não pode ser vista ou tratada como arma de guerra. Ela é parte da base

comum para o diálogo. O valor da informação jornalística situa-se acima dos cálculos dos governos, uma vez que é pré-

requisito para a convivência entre as nações. Isso aumenta, é claro, a responsabilidade do jornalismo. Hoje, quando a

verdade é violentada, a primeira vítima pode ser a paz. Uma grande mentira nas páginas de um grande jornal pode render,

entre outras tragédias, as 179 mortes pelas quais Tony Blair diz chorar até hoje.

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A conclusão é simples: se souber e puder acompanhar os fatos e documentá-los com um mínimo de honestidade e

integridade, a imprensa pode ajudar a evitar abusos.

Agora voltemos à Praça Tahir, no Cairo. Nela, e no seu entorno, os apoiadores do ditador Mubarak investem contra

qualquer pessoa que represente a possibilidade de diálogo entre os cidadãos. Até o representante do Google no país passou

semanas encarcerado. Celulares emudeceram e depois voltaram a falar. Os jornalistas Corban Costa, da Rádio Nacional, e

Gilvan Rocha, da TV Brasil, ficaram presos por 18 horas. Na segunda-feira, a Embaixada do Egito no Brasil divulgou um

pedido de desculpas, lacônico. Para a tirania que tenta sobreviver no Cairo, a imprensa, qualquer imprensa, da Al-Jazira

ao Estadão (cujo correspondente, Jamil Chade, também foi agredido), é inimiga mortal. A ditadura não quer testemunhas.

Sabe que todas as suas chances dependem da escuridão.

No caso do Iraque, a investigação jornalística sobre as armas químicas chegou tarde demais. A paz saiu perdendo. Agora,

é diferente. Correspondentes do mundo todo estão a postos na praça. Querem fazer seu trabalho. Aos governos de todos os

países, à ONU e às entidades da sociedade civil cumpre exigir da ditadura egípcia, com muito mais veemência, o devido

respeito os jornalistas, que representam os olhos de todos nós. Por isso, uma agressão a um jornalista no Cairo deve ser

repelida como uma agressão ao seu país de origem.

A esta altura, ninguém sabe direito para onde vai o Egito. Mas, desde já, sabemos que sem repórteres por perto o caminho

será muito mais sangrento. Garantir a presença da imprensa internacional na Praça Tahir é dar uma chance à paz. Omitir-

se na defesa dos jornalistas equivale a patrocinar, indiretamente, a brutalidade que só prospera onde não há direito à

informação.

2. Brasil, país do presente

fevereiro 11, 2011

Autor: José Celso de Macedo Soares

Na década dos 30 do século passado, o escritor alemão Stefan Zweig, judeu, fugindo da Alemanha nazista, veio para o

Brasil. Depois de alguns anos aqui morando, escreveu livro que ficou celebre: “Brasil , país do futuro”.

Agora outro alemão, o jornalista Alexander Bush, que trabalha há 16 anos no Brasil, acaba de lançar instigante livro com

o titulo: “Brasil, país do presente – O poder econômico do gigante verde” (Ed. Cultrix, 2010). É interessante rever

passagens do livro. Começa dizendo que subestimar o Brasil é um erro grave pois, o Brasil, atualmente, é o celeiro de

matérias primas da economia mundial. Faz rasgados elogios a empresas privadas brasileiras. Exemplos: a Ambev que,

com a compra da maior cervejaria americana Anheuser-Busch, fabricante da famosa cerveja Budweiser, tornou-se a maior

fabricante de cerveja do mundo, dirigida pelo brasileiro Carlos Brito.

Outro exemplo: o frigorífico JBS-Friboi. Depois de comprar, em 2008, a norte-americana Swift Foods Company,

segundo maior frigorífico dos Estados Unidos, tornou-se o maior exportador de carne bovina do mundo. Possui 37

fábricas no Brasil, Argentina e Austrália. Mais: a Cosan, hoje a maior exportadora mundial de açúcar e etanol. A Cosan,

sozinha, processa mais cana de açúcar do que a Austrália, terceiro maior exportador internacional de açúcar. Diversificou

suas atividades. Comprou por 1 bilhão de dólares a rede de postos de gasolina da Esso no Brasil para distribuir o etanol

por ela produzido. Fundiu-se com a subsidiária da holandesa-britânica Shell, dando origem à maior empresa mundial de

biocombustíveis, avaliada em cerca de 12 bilhões de dólares. Juntas tem uma rede de 4.500 postos de gasolina no Brasil,

onde pretende distribuir seu etanol.

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A Embraer depois de privatizada, tornou-se a maior fabricante de jatos regionais do planeta. E a Vale hoje é a segunda

maior exportadora de minério de ferro do mundo, aumentando muito sua capacidade exportadora depois de privatizada. A

Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa) é a maior do mundo em pesquisas da agricultura tropical,

sendo notáveis seus progressos no aproveitamento do cerrado brasileiro. Estes são apenas alguns exemplos dados pelo

autor.

Mas, o livro não é só elogios. Referindo-se ao setor bancário, nota, com razão, que em nenhum outro lugar do mundo os

spreads (diferença entre a taxa de juros na captação do dinheiro e na oferta de crédito) são tão altos quanto no Brasil.

Afirma que, em 2008, o spread bancário foi de cerca de 3,5%. A porcentagem é 11 vezes maior do que nos países

industrializados, afirma. Pelo exemplo, concluo: não é de admirar os lucros astronômicos dos bancos brasileiros, com

prejuízo para o crescimento da economia brasileira, pois a função principal dos bancos é ajudar a atividade mercantil.

Vai além. Declara que o Congresso brasileiro, com os exemplos da má conduta habitual de nossos legisladores, mais

preocupados com suas mordomias do que com o bem da coletividade, está à margem da sociedade. Mas, comenta: a

estabilidade democrática que apresentamos é um trunfo na América Latina.

E, termino, com esta analise do autor: “Se fosse possível definir um ranking para avaliar a dinâmica brasileira em

seus três grandes aspectos – economia, política e sociedade – eu diria que a economia ocupa o primeiro lugar. Em

segundo vem a sociedade, que se adapta razoavelmente depressa às novas realidades. E, em ultimo lugar, eu

colocaria a política que, reage devagar às mudanças’’. Concordo em gênero, número e grau.

3. Cristaleiras

fevereiro 10, 2011

Autor: Roberto DaMatta

Nosso universo social se divide em bens e serviços e, na categoria dos bens, há os móveis e os imóveis. Os primeiros vão

da camisa (que, dizem os sábios, só precisamos de uma unidade para sermos felizes) ao automóvel, a casa e a conta

bancária que fala daquilo que permeia – como as orações no mundo religioso e o favorecimento partidário no político –

tudo. Sobram, é claro, os “móveis” que fabricam a paisagem da casa e são o foco ou a imagem central – símbolos como

diriam Geertz, Victor Turner ou Lévi-Strauss – do que chamamos de “propriedade privada”. Pois quase sempre

começamos nossas vidas de casado comprando os móveis (a cama e a mesa) da casa para depois completarmos o seu

interior com poltronas, armários, aparadores, guarda-roupas, criados-mudos e esse objeto ímpar e, até onde vai minha

enorme ignorância e vã e superada antropologia, as cristaleiras.

Eu só tive consciência desse móvel quando fui aos Estados Unidos e verifiquei que os americanos davam mais valor às

suas vastas e confortáveis poltronas e estantes do que a esse repositório de “cristais”, situado justamente num local de

destaque nas salas de jantar ou em outros espaços nobres das residências. Ali, conforme num certo dia nebuloso, perdido

no vasto labirinto da minha memória, mamãe (e não papai que estava mais ligado na primeira gaveta do seu guarda-roupa,

a única trancada e com direito a chave de nossa casa) dissertou sobre cristais da Baviera e da Boêmia, pegando com

extremo cuidado terrinas e xícaras de chá tão finas quanto papel que teriam vindo da China e seriam a única herança de

vovó Emerentina. Uma herança obviamente passada por linha materna (de mães para filhas) tal como canetas, relógios e

revólveres passavam de pai para filho. Um belo exemplo de descendência paralela que, por motivos que não posso

detalhar aqui, faz parte da minha vida intelectual.

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O fato é que na América, sempre tocquevilliana, não existiam essas um tanto ostensivas cristaleiras feitas de vidro e

espelhos, um móvel que lembra uma catedral, uma caixa de jóias e os cetins que envelopavam (revelando, contudo) o

corpo das mulheres. Objeto destacado da casa a ser visto, admirado e eventualmente aberto com extremo cuidado para

visitantes ilustres ou ocasiões preciosas como aniversários, mortes e casamentos – os grandes ritos de passagem que

marcam as nossas vidas. Dir-se-ia que a vida, marcada pelo ascetismo laico calvinista e pela religiosidade cívica

rousseauniana, bloqueava essas demonstrações ostensivas de coisas preciosas, já que, para eles, o viver para dentro era

mais importante do que essa vida cristalizada para os outros (sobretudo para as visitas importantes ou de maior prestígio),

como é o nosso caso. Vi muitas cristaleiras na minha infância e juventude e, quando casei, compramos a nossa que,

imitava o móvel dos nossos lares de origem. Nossa cristaleira foi inaugurada com um singelo conjunto de cinco pequenas

taças de cristal da Boêmia de tonalidade vermelha e hastes leves e delicadas como as pernas das bailarinas. Taças que,

com o devido elixir (no caso, o vinho do Porto), ajudam a produzir esses sonhos que são a matéria de nossas existências.

Um dia, numa discussão acalorada entre professores mais velhos, ouvi de um deles o seguinte: “O fulano procede como

um macaco em cristaleira!”. Jamais ouvi definição melhor daquele colega que, por qualquer coisa, usava um canhão para

matar um passarinho e fazia uma tempestade num copo d”água, numa descalibragem tão recorrente nos sistemas

autoritários, de Estado forte, nos quais a cleptomania se legitima em cleptocracia, como faz prova hoje em dia a nossa

elite política enriquecida e, mais que isso, aristocratizada com o dinheiro dos nossos impostos que segue diretamente não

para obras públicas, mas para as suas cristaleiras.

Nas casas tradicionais do Brasil, as cristaleiras representavam – ao lado do branco dos vestidos das noivas e da limpeza

impecável da casa – a pureza das mulheres; e a mulher como símbolo maior da pureza. Como figura situada entre os anjos

e os homens, por contraste com as que (sem casa e cristaleira) dialogavam com as forças satânicas que, entretanto,

permitiam o teste e demonstravam a existência desse dom complexo chamado de “liberdade”, que nos foi dado por Deus

na forma do livre-arbítrio. Dom sem o qual faria com que tudo fosse determinado e justificado, tirando o mérito das

escolhas e impedindo que o mundo tivesse significado. Pois o problema não é a cristaleira, mas a inefável transparência

que a constitui, deixando ver em dobro tudo o que colocamos dentro dela.

No plano coletivo, sou inclinado a sugerir que a cristaleira de um país é o seu governo e, no seu governo, o seu

Parlamento. A tal transparência tão invocada pelos mais atrasados coronéis que hoje mandam na nossa riqueza, gastando-

a com nomeações de partidários e familiares. Transparência que é, de fato, uma mera palavra de ordem para encobrir os

móveis de chumbo de um Brasil sem crítica, sem contraditório político, sem – enfim – igualdade e transparência. Esse

translúcido móvel feito em vidro e espelho que permeava as casas que, como a República e a Democracia, guardava

pureza, honra, compaixão e uma honestidade que sumiram da política nacional.

Fonte: O Globo, 09/02/2011

Visite meu blog: jutorides.zip.netNele discuto política, cultura, economia e analiso imagens.